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O alinhamento conceitual de violência no trabalho em rede: o Enfrentamento

às Violências

Emanuelle Minella Rodrigues(UEPG, Ponta Grossa)


Danuta Estrufika Cantoia Luiz(UEPG, Ponta Grossa)

Resumo: O presente artigo discute o alinhamento do conceito de violência no trabalho em rede


através do trabalho da Comissão Regional de Enfrentamento às Violências contra Crianças e
Adolescentes no período de 2017 e 2018. Tem como objetivo elencar as principais potencialidades e
dificuldades que o alinhamento conceitual de violência promove no trabalho em rede. A metodologia
empregada consistiu na pesquisa bibliográfica para subsidiar os conceitos de: ideologia, violência e
rede de proteção. A pesquisa documental foi utilizada para extrair os dados dos documentos
utilizados: atas e documentos orientativos da área. Estes foram organizados e analisados em
categorias analíticas. As potencialidades do trabalho em rede versam sobre os esforços em construir
um trabalho articulado de Enfrentamento às Violências, preconizando o trabalho em rede como
estratégia para a Proteção Integral. Quanto às dificuldades, aparece a não superação da Doutrina da
Situação Irregular, a invisibilidade social da violência e a omissão do poder público. A violência é
estruturante da sociedade, entendida como fato isolado que não necessita de intervenção,
reproduzindo uma naturalização que impede um Enfrentamento às Violências efetivo, diante da
multifatorialidade do fenômeno. O trabalho em rede é a estratégia que permite abarcar a
complexidade desse fenômeno.

Palavras-chaves: Alinhamento Conceitual. Proteção Integral. Razão Instrumental. Redes de


Proteção. Violência.

1. Introdução
O presente artigo se organiza na intenção de discutir de que forma as
dificuldades e potencialidades no alinhamento conceitual, no que se refere ao
conceito de violência, implica em dificuldades e potencialidades na efetivação do
enfrentamento às violências no funcionamento da rede de proteção de crianças e
adolescentes. A partir da atuação da Comissão Regional de Enfrentamento às
Violências, nos anos de 2017 e 2018, surgiu a motivação para entender a relação
entre o constructo ideológico do conceito de violência e os impactos no
funcionamento da rede de proteção.
A problemática a respeito desse tema versa sobre como se dá a
compreensão ideológica do conceito de violência que perpassa o trabalho em rede
nas ações de Enfrentamento às Violências, uma vez que se entende que o conceito
precede as ações na medida em que orienta os atores da rede na compreensão do
fenômeno.
A Comissão Regional em questão abrange os municípios do Escritório
Regional da Secretaria da Família e Desenvolvimento Social, regional de Ponta
Grossa. É uma estratégia de gestão das ações de Enfrentamento às Violências
contra crianças e adolescentes de âmbito regional, no Paraná. As Comissões
Regionais foram formalizadas em 2010, a partir da Resolução Conjunta 001/2010 de
23/11/2010.
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo fazer uma síntese das
potencialidades e dificuldades promovidos pelo conceito de violência no trabalho em
rede através da analise da documentação que normatiza e dá diretrizes para o
enfrentamento à violência e, posteriormente, aproximar e analisar o conteúdo das
normativas e Planos ao diagnóstico de rede e atas da Comissão Regional.

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2. Ideologia, violência e o trabalho em rede
Para compreender a questão da violência e o trabalho em rede, partimos da
fundamentação teórica de três categorias essenciais que nos subsidiaram no
transcorrer da pesquisa: ideologia, violência e trabalho em rede. Esta tríade
categorial-possui elementos explicativos, contextuais e teóricos que balizam a
análise proposta ao alcance do objetivo desta.
Na intenção de criar subsídios para analisar como são estruturadas as bases
do pensamento diante do alinhamento conceitual sobre violência e como este se
apresenta na sociedade, utilizaremos Adorno e Horkheimer em seus escritos, pós II
Guerra Mundial, período em que o nazismo põe em cheque a razão iluminista na
medida em que aquilo que era para promover a emancipação do homem o levou à
barbárie.
O projeto iluminista carregava em si a ideia de que ao dissipar as trevas
através da razão o homem seria conduzido a autonomia. No entanto, essa ideia deu
lugar a razão instrumental quando o domínio técnico e científico possibilitou, ao
invés da emancipação do homem, a dominação do homem pelo homem. A razão
perde seu potencial de autonomia e passa a ser instrumento de dominação,
matando no cerne, o projeto iluminista. A Teoria Crítica, abordagem teórica dos
autores citados, faz a denúncia das “tendências irracionalistas do pensamento
burguês dominante” (COHN, 1986, p.9), visto que se trata de uma teoria da
burguesia e, em última análise, uma crítica da razão burguesa – que é a razão
instrumental (COHN, 1986 ; E HORKEIMER, 1980).
Somado a isso, Adorno e Horkheimmer discutem como a possibilidade da
dominação da natureza tornou o esclarecimento obscuro na medida em que ele foi
utilizado como técnica para a dominação do homem sobre o homem: o homem ficou
à mercê das próprias tecnologias que desenvolveu. Com isso, o homem se esvazia
de si ao se submeter às tecnologias, é reificado. Ainda nessa soma, a Revolução
Industrial potencializa o que os autores chamam de Indústria Cultural (IC). O
conceito de IC trata do problema da cultura de massa, termo abandonado pelos
referidos autores a fim de não deixar brecha à confusão comum de que se trata de
uma cultura que surge como produto da massa quando na realidade a premissa
sobre as massas é a ideia de ser “acessório da maquinaria” dessa indústria.
O consumidor não ocupa papel de sujeito, ocupa o papel de objeto. Para que
a cultura de massa exista é necessária a presença dos meios de comunicação de
massa - tendo como um marco o surgimento da imprensa no sec. XV. No entanto,
essa imprensa era limitada em sua produção e restrita a uma camada da população.
A IC tem seus primeiros passos com os jornais na medida em que estes
apresentavam produtos simplificados em relação a sua origem, como eram os
romances de folhetim, semelhante à crítica que se faz nos dias atuais com as
novelas na televisão(COELHO, 1993, COHN, 1986; ADORNO e HORKHEIMER,
1985).
A característica principal que dá forma à IC é que o produto não é produzido
por aqueles que o consomem. E principal é também que a tudo se confere o status
de “coisa”. Na primeira vemos surgir a alienação e na segunda afirmação vemos
surgir a reificação. A cultura é “coisa” a ser vendida, ou seja, trocada por dinheiro. E
essa coisa é padronizada no compasso da produção em série, não é produzida por
aqueles que a consomem. A consomem pronta, uma cultura que tem preço e que é
“coisa”.
Soma-se o fato de que todo produto carrega em si as marcas do sistema em

2
que foi produzido. O produto produzido na sociedade capitalista só pode se parecer
e ter as características dessa sociedade: alienação e reificação. Na soma da
equação: Revolução Industrial, Capitalismo Liberal, Economia de Mercado e
Sociedade de Consumo temos o terreno para o desenvolvimento de uma cultura de
massa. É nesse padrão de sociedade, marcada por esse modo de produção, que os
indivíduos se tornam massa, homogêneos (COHN, 1989; COELHO, 1993).
A Industria Cultural é, essencialmente, ideológica. Para Adorno (1973), só é
possível compreender a ideologia quando a analisamos juntamente com o
movimento histórico do conceito, que é ao mesmo tempo o movimento histórico da
própria sociedade (ADORNO e HORKHEIMER, 1973, p. 185). Na medida em que a
ideologia é uma crença burguesa, essa crença é em si o substrato da ideologia. A
ideologia tem terreno nas relações de poder que escondem sua natureza de relação
de poder, tornando esse processo impossibilitado de crítica, relação na qual não é
possível uma mediação dessa ideia, tornando esse dado imediato.
A ideologia é eficaz na medida em que aliena o indivíduo produtor da reflexão
sobre o modo como o produto foi produzido, os dados da experiência social se
apresentam como imediatos, quando na realidade são mediados pelo processo que
o produziu. Cohn (1986, p.16) afirma que “a ideologia não é algo que se impõe de
fora a sujeitos passivos, mas sempre envolve uma secreta cumplicidade, sempre
demanda um investimento de energia daqueles que a sustentam”. O dado da
ideologia é a experiência social homogeneizada. É uma falsa experiência social na
medida em que não se reconhece como um produto de determinada atividade
social(COHN, 1986; ADORNO, 1973).
É consenso em todos os materiais consultados de que a violência é um
fenômeno social e multifatorial. É consenso também que a infância e adolescência
são as faixas etárias mais suscetíveis a sofrerem violência (OMS, 2002; PARANÁ,
2018). A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si


próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que
resulte ou tenha grande possibilidade de resultarem lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (OMS, 2002, p. 5)

A OMS também apresenta três aspectos comuns à violência: relação de


poder, dano e intencionalidade. Esses três fatores, relacionados entre si, validam o
status de violência ao fenômeno ocorrido. Ou seja, para que seja considerada uma
violência de qualquer natureza ou tipo há de existir numa relação de poder a
intenção de causar dano e que o dano se efetive.
Marilena Chauí traz um elemento importante para a discussão da violência: a
“coisificação” do outro. Para Chauí a violência acaba por negar a condição de ser
humano do outro, negando também que esse outro é um sujeito de direitos. É,
portanto, reificação na medida em que o outro é expropriado de seu lugar de
humano.De acordo com Minayo (2007) a violência é um fato humano, social e
histórico persistindo no tempo pelas diferentes sociedades abrangendo todas as
classes e segmentos sociais. A autora enfatiza que a violência é estrutural:

Dessa forma, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as


exclusões econômicas, políticas e sociais, o autoritarismo que regula as
relações sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições,
o racismo, o sexismo, as intolerâncias religiosa, sexual e política não são

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consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é
percebida como estruturalmente violenta, e, por isso, a violência aparece
como um fato esporádico superável”. (Chauí, 1999, p. 3).

Ao estabelecer as bases constitucionais para a “Doutrina da Proteção Integral


à Criança e ao Adolescente”, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988
evidenciou a necessidade de uma ação conjunta entre família, sociedade e Estado,
podendo ser entendido como um precursor a ideia do trabalho em rede. O Estatuto
da Criança e do Adolescente (2017), prevê a plena efetivação dos direitos
infantojuvenis e a implementação de políticas públicas intersetoriais de caráter
coletivo e continuado.
A Resolução 113 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente) cria parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), constituído
pela integração e a articulação entre o Estado, as famílias e a sociedade civil, com o
objetivo de assegurar e fortalecer a implementação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Conforme Digiácomo (2011, p. 4), o SGDCA é o “conjunto de
órgãos, entidades, serviços e programas de atendimento responsáveis direta ou
indiretamente pelo atendimento ou pela defesa dos direitos de crianças e
adolescentes em um determinado município”. O ECA (1990) é o marco legal que
ratifica os direitos e a proteção integral da infância e da adolescência, prevendo
também ações articuladas para que se efetive e operacionalize os direitos das
crianças e adolescentes no território nacional. A ideia do trabalho articulado por
diferentes instâncias e a corresponsabilidade também aparece na Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) de 1993.
A ideia de rede é algo para além do pensamento imediato de que ela será
institucionalizada através de um decreto ou um documento que diga que a partir de
dado momento está instaurado o trabalho em rede. O trabalho em rede é um
trabalho de base, construído pela decisão de dialogar com o outro fora da zona de
conforto, a partir do entendimento de que cada setor não será o detentor da
salvação, mas necessita dos outros setores para complementar o seu trabalho dado
o caráter multifacetado que caracteriza o fenômeno da violência. E para que isso
seja possível, é necessário que cada um tenha o seu papel bem definido.
Para a presente pesquisa, utilizaremos o entendimento sobre rede a partir de
dois materiais produzidos para a orientação do trabalho intersetorial e como subsídio
para as Comissões Regionais de Enfrentamento às Violências e demais
participantes da rede de proteção para a infância e adolescência. Na perspectiva de
uma rede intersetorial pública, responsável pelas obrigações do Estado com a
população, podemos destacar que o fator comum a todos os tipos de formação de
rede é a presença de pessoas, cada uma com igual responsabilidade para garantir a
“proteção integral”. A rede é feita de pessoas e por isso “a rede é viva”. A rede de
proteção não é algo novo que surge como um afazer, a rede é um pressuposto para
a construção do trabalho, “Redes traduzem a ideia de interdependência,
reciprocidade e complementariedade” (SECJ, 2010, p. 18) e, ainda, “a rede sugere
uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações” (SEDS,
2018, p.26).
De acordo com o Caderno Orientativo (SEDS, 2018), algumas características
configuram o trabalho em rede. Dentre elas, está o dinamismo. Ele é representado
pela corresponsabilidade e a capacidade de cooperação. É sobre o alinhamento das

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ações de ação contínua, de forma plástica, um funcionamento de engrenagem que
permite uma ação conjunta sempre disposta a construir, rever, criar e dialogar. Outra
característica é a multiliderança, que se caracteriza por ser partilhada e horizontal
fazendo com que as decisões e ações sejam tomados coletivamente. Os múltiplos
níveis também caracterizam o trabalho em rede na medida em que se faz
necessário que o trabalho seja desdobrado, sempre mantendo seu núcleo comum,
análogo a descentralização (SECJ, 2010).

3. METODOLOGIA
Como abordagem para o presente artigo foi utilizada a Pesquisa Qualitativa,
proposta por Gonzáles Rey (2005), visando construir um conhecimento a partir de
um caráter construtivo e interpretativo, entendendo que o conhecimento em
pesquisa é uma produção humana, e não algo que está pronto para ser apreendido
pelo pesquisador. A pesquisa é do tipo exploratória, por se tratar da ampliação do
conhecimento a respeito do objeto, conforme afirma Gil (2008, p.27) possui o
objetivo de “[...]desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em
vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para
estudos posteriores”. A Pesquisa Bibliográfica foi utilizada como procedimento
adotado na coleta de dados, possibilitando realizar um levantamento do
conhecimento disponível na área até então, identificando as teorias produzidas,
analisando-as e avaliando sua contribuição para compreender ou explicar o tema
que se estuda (MARCONI; LAKATOS, 2006).
Para compor o referencial teórico a fim de cumprir com os objetivos a que se
propõe artigo, foi realizada uma síntese das potencialidades e dificuldades no
alinhamento conceitual de violência para o trabalho em rede. Os temas ideologia,
violência e redes são utilizados como aporte teórico a fim de compreender como o
conceito de violência atravessa o trabalho em rede e como é vivenciado pelos
indivíduos.
Quanto ao procedimento adotado na coleta de dados, foi utilizada a pesquisa
documental uma vez que “[...]vale-se de materiais que não receberam ainda um
tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os
objetivos da pesquisa” (GIL, 2008, p.51). A amostra de documentos selecionada
compõem as normativas que regulamentam a atuação da Comissão Regional de
Enfrentamento às Violências no estado do Paraná e por esse motivo foram
elencadas. São as normativas selecionadas: Plano Decenal dos Direitos da Criança
e do Adolescente (2014-2023), Plano Decenal de Assistência Social (2016-2019) e
Resolução Conjunta 001/2010. Quanto aos documentos da Comissão Regional de
Enfrentamento às Violências, são os documentos utilizados: Atas e Diagnóstico de
Rede. São utilizadas as Atas do ano de 2017: nº38 de 16/03/2017; nº39 de
05/05/2017; nº 40 de 04/07/2017; nº 41 de 18/08/2017; nº42 de 04/09/2017 e do ano
de 2018: nº 43 de 15/03/2018; nº 44 de 17/04/2018; nº 45 de 24/05/2018; nº 46 de
21/06/2018; nº 47 de 19/07/2018; nº 48 de 31/08/2018; nº 49 de 22/10/2018 e nº 50
de 20/12/2018. A numeração das atas segue a numeração original arquivada, a ata
de número 1 é referente ao mês de julho de 2012. O Diagnóstico de Rede utilizado
como documento para análise é do ano de 2017, construído pela Comissão
Regional através da coleta de dados durante o evento “Fortalecendo Redes” do
mesmo ano. Participaram desse evento 14 municípios, que forneceram os dados
para compor o referido diagnóstico.
A coleta de dados nos documentos supracitados contou com os seguintes

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critérios: o modo como a violência é abordada e as decorrentes consequências, o
modo como os documentos abordam a violência e as ações de Enfrentamento às
Violências resultantes.
Após a extração da amostra, para compor análise dos dados foram utilizadas as
seguintes categorias analíticas conforme a temática encontrada: Doutrina da
Proteção Integral; Invisibilidade Social da Violência; Responsabilidades do
Poder Público e Atuação em Rede de Proteção.
Através da Análise de Conteúdo proposta por Laurece Bardin, foi realizada a
análise através da averiguação de como aparece o conceito ideológico de violência
nos documentos legais, normativas e diretrizes para o Enfrentamento às Violências
e, posteriormente, aproximado da análise das Atas de 2017 e 2018 e do Diagnóstico
de Rede.

4. Resultados e discussão: potencialidades e dificuldades do trabalho em rede


diante do conceito de violência
Apresenta-se as normativas produzidas pelo estado do Paraná que orientam as
ações de Enfrentamento às Violências para, na sequência, aproximar dos dados
obtidos na análise das atas da Comissão Regional e Diagnóstico da Rede da
regional na intenção de verificar como o conceito de violência atravessa esses
documentos.
O planejamento das ações de Enfrentamento às Violências contra crianças e
adolescentes no Estado do Paraná contou com o último plano específico para esse
fim, o Plano Estadual de Enfrentamento às Violências com vigência no período de
2010-2015, de forma que um novo Plano não foi elaborado para o período
subsequente.
O Plano Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente (PARANÁ,
2013) correspondente ao período 2014-2023, abarcando um conjunto de diretrizes
visando nortear a execução de políticas públicas que assegurem a promoção,
proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes. O conceito de violência
é abordado como um fenômeno dotado de certa invisibilidade social decorrente de
“traços culturais que representam a violência física como uma forma de
educação/correção da criança e do adolescente, de modo que algumas expressões
da violência não são assimiladas sob o registro da violação de direitos” (PARANÁ,
2014, p. 187). Essa invisibilidade indica um reflexo da desvalorização de crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos, na incompreensão da assimetria de poder
que desemboca em violência.
O Plano também indica a problemática da identificação da violência como
tal, fato que dificulta a denúncia, o atendimento e a produção de estatísticas. Essa
problemática faz com que esses dados não sejam expressivos, para representar
uma análise confiável dos municípios, sendo necessário investimento público em
sua valorização e capacitação das equipes para sua utilização. Essa temática é
abordada no objetivo do referido Plano que propõe “sensibilizar e mobilizar a
população sobre a temática da violência contra crianças e adolescentes, fortalecer e
divulgar canais de denúncia, visando diminuir a subnotificação da violência contra
crianças e adolescentes”, colocando em pauta o conjunto de crenças da sociedade
no que se refere a violência, uma vez que a ação que se propõe é a sensibilização
da população. Isso pode ser verificado quando se afirma que“a subnotificação é um
problema sério a ser enfrentado e se relaciona com uma cultura de não denunciar a
violência”(p.121). Esse entendimento aparece nas ações estratégicas e faz uso de

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alguns objetivos que estão em consonância com as ações para o Enfrentamento às
Violências.
Ainda sobre a subnotificação, é previsto como objetivo “conhecer a realidade
e acompanhar a evolução dos dados, visando aprimorar as ações no Enfrentamento
às Violências contra Crianças e Adolescentes” (p.369), fortalecendo o cuidado com a
produção de dados, citando como exemplo que “dados do SIPIA1 nem sempre são
utilizados como subsídio para políticas públicas, nem mesmo para a análise de
dados específica, por sofrerem falhas no acompanhamento dos registros e
descompassos entre a instância que o definiu, planeja suas alterações, a instância
que deve supervisionar e a instância que precisa registrar e compreender como
manipulá- -lo” (p.123).
No aporte ao trabalho das Comissões Regionais há um objetivo sobre
“estruturar e fortalecer as comissões de enfrentamento à violência contra crianças e
adolescentes e os trabalhadores que atuam nas ações do Plano Estadual de
Enfrentamento às Violências” (p.371), o plano em questão esteve vigente até 2015,
não havendo uma nova versão como referido anteriormente. Ademais, o Art.7º da
Resolução Conjunta 001/20102 estabelece que “para os encontros da Comissão
serão utilizados recursos materiais, financeiros e organizacionais já disponíveis em
cada Secretaria de Estado participante”, fragilizando a estruturação e organização
das Comissões.
O objetivo “fomentar a implantação de programas de orientação e
atendimento às pessoas que cometem violência contra crianças e
adolescentes”(p.371), elenca a violência como tema trabalhado com a sociedade por
meio da orientação e ação das políticas públicas. No objetivo “fomentar a
formalização das redes de proteção e a implantação de um Sistema de Notificação
Obrigatória de casos de violência contra crianças e adolescentes que garantam uma
ação articulada entre órgãos responsáveis, bem como registrem os
encaminhamentos dados” (p.372), coloca dois temas importantes em pauta: a
subnotificação e o trabalho em rede. Na relação da subnotificação com o trabalho
em rede, o entendimento sobre o que é violência é primordial na medida em que é
necessária a identificação da violência para que ocorra a notificação da mesma.
A necessidade do Poder Público prestar atendimento a vítimas de violência
de forma especializada aparece como tema no Plano citado através da estratégia de
“fortalecer os municípios para o acompanhamento especializado de crianças e
adolescentes em situações de violência e suas famílias”(p.375). Ainda sobre o
atendimento, é objetivo no referido plano “humanizar o atendimento de crianças e
adolescentes vítimas de crimes nos órgãos de segurança pública”, pressupõe-se
que a demanda que gera esse objetivo é o atendimento não humanizado que vem
ocorrendo, em discordância com o Estatuto da Criança e o SGD, gerando
desproteção ao invés da proteção necessária nos casos de violência. Isso pode ser
exemplificado nas reflexões presentes no Documento Base para a realização da XI
Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (BRASÍLIA, 2018)
quando discute o “[...] recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua
pelos profissionais de segurança pública, inclusive de forma repressiva, sem

1
Sistema Nacional de Informações para Infância e Adolescência. O SIPIA é um sistema nacional de registro e
tratamento de informações sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA. Disponível em: https://www.sipia.gov.br
2
Dispõe sobre a criação das Comissões Regionais para o Enfrentamento às Violências contra Crianças e
Adolescentes e dá outras providências.

7
flagrante de ato infracional, pelo simples fato de estarem desacompanhados” (p.13)
e sobre “[...] profissionais de segurança retiram crianças e adolescentes de mães em
situação de rua”(p.16).
O Plano Decenal de Assistência Social (2016 - 2019) é reflexo das
demandas do Plano Decenal Nacional, do Pacto de Aprimoramento dos Estados e
das deliberações da XI Conferência Estadual de 2015. A partir do que foi produzido
nessas instâncias, o Plano prevê algumas ações estratégicas que convergem com
os objetivos do enfrentamento às violências, como “intensificar a gestão e as
estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil” (PARANÁ, 2017, p. 201)
considerando que essa é uma das formas em que se apresenta a violência contra a
criança e o adolescente. Outro objetivo estratégico é “assegurar cobertura de
Acolhimento Institucional adequado para crianças, adolescentes e jovens”
(PARANÁ, 2017, p 202).
Ao fim do ano de 2018 encerrou o prazo do Reordenamento dos Serviços de
Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes3 que previa a qualificação da
rede de Serviços de Acolhimento existentes e a adequação desses às normativas
vigentes. Com o objetivo de “Aperfeiçoar a relação do SUAS com o Sistema de
Justiça e com o Sistema de Garantia de Direitos”, coloca em voga o trabalho em
rede com entes necessários ao efetivo enfrentamento as violências.
A Resolução Conjunta 001/2010 dispõe sobre a Criação das Comissões
Regionais para o Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes e
cita como referência para a atuação o CEDCA-PR e a Comissão Estadual
Interinstitucional para o Enfrentamento à Violência Contra a Criança e o
Adolescente. As normativas apresentadas estão na direção da Proteção Integral,
ressaltando algumas ações necessárias para o Enfrentamento às Violências, a
exemplo do incentivo ao combate a cultura de não denunciar violência contra a
criança e o adolescente. Contudo, é necessário apontar algumas fragilidades como
a falta de financiamento próprio para as Comissões Regionais, bem como a falta de
atualização e monitoramento do Plano Estadual de Enfrentamento às Violências
contra Crianças e Adolescentes.
As atas da Comissão Regional dos anos de 2017 e 2018 foram utilizadas
para compreender o que é discutido a respeito da violência e como, a partir disso, as
ações são pactuadas. Uma discussão que aparece nas Atas como pauta ao analisar
os dados anuais do SIPIA, é a subnotificação por parte dos municípios dos casos de
violência, conforme problemática apontada anteriormente. A dificuldade em
identificar a violência é apontada como uma das causas da subnotificação, fazendo
jus ao entendimento das normativas citadas anteriormente. Aparece também a
discussão sobre o não entendimento da importância em notificar para criar o
registro, construindo o trabalho em rede ao invés de ações isoladas. Nos municípios
em que houve capacitação, aumentou o numero de notificações, de forma que a
Comissão entende que a capacitação é uma estratégia para mitigar a
subnotificação, conforme consta na Ata 38/2017, “[...]o número de notificações
aumentou após a realização das capacitações e mobilizações de 2016 com relação
ao preenchimento do SINAN”.

3
Resolução CNAS Nº 23, de 27 de Setembro de 2013. Aprova critérios de elegibilidade e partilha dos recursos
do cofinanciamento federal para expansão qualificada e do Reordenamento de Serviços de Acolhimento para
crianças, adolescentes e jovens de até vinte e um anos, no âmbito dos municípios e Distrito Federal. Prorrogada
pela Resolução CNAS Nº17, de 24 De Novembro de 2017 que prova a prorrogação de prazo para a
demonstração da implantação dos serviços de proteção social especial.

8
A clareza das atribuições de cada política setorial no Enfrentamento às
Violências aparece como discussão na intenção de discutir a qualificação das ações,
apontando que as políticas têm trabalhado sem a clareza do seu papel e, também,
de forma isolada sem clareza do papel do trabalho em rede, conforme consta no
trecho da Ata 39/2017, a “[...] importância de se construir um fluxo de atendimento
intersetorial[...] construção deve envolver todos os setores para que estes se
comprometam e assumam suas responsabilidades”.
Aparece nas discussões em Ata a mesma problemática citada anteriormente
nas discussões do Documento Base para as Conferências, conforme trecho da Ata
40 de 04/07/2017 “[...]a culpabilização da família em relação as notificações de
violação de direitos[...] fator que se refere ao recorte de gênero, onde especialmente
a mãe é culpabilizada, diante das vulnerabilidades socioeconômicas que ainda
definem o acolhimento de crianças e adolescentes”.
A respeito do trabalho em rede, conforme Ata 41/2017 há a “necessidade de
um alinhamento da rede para se evitar movimentos isolados, [...]a pactuação da
rede deve ocorrer a partir de um trabalho de base através da mobilização”. Somando
essa discussão a respeito da fragilização do trabalho em rede, o trecho da Ata
42/2017 se refere ao“[...]desmonte das equipes devido a rotatividade dos grupos
políticos” havendo a “[...]necessidade de um alinhamento da rede para evitar
movimentos isolados” e a “[...] possibilidade de intervenção do MP para evitar
possíveis desmontes de equipes, devido a troca de gestores e a deslegitimação dos
conselhos devido ao não cumprimento das deliberações por parte do executivo”.
Uma das dificuldades discutidas e que aparece em ata é a falta de RH e
estrutura física dos órgãos que compõem a rede, em especial os governamentais, a
exemplo do trecho da Ata 44/2018 mencionando o “Instituo Médico Legal com
dificuldades para funcionar por falta de Recursos Humanos e estrutura física”. Pode-
se citar também conforme Ata 48/2018 “[...] municípios que não possuem CAPS ou
que possuem apenas o CAPS I e se negam a atender crianças e adolescentes” e
“[...]grande numero de crianças não atendidas pelo CMEI”.
Há a presença no discurso da Comissão Regional o princípio do
fortalecimento do trabalho em rede em todas as discussões e tomadas de decisão,
colocando o trabalho em rede como central no Enfrentamento às Violências, a
exemplo da “[...]preocupação da comissão em articular os eventos, na cidade, de
enfrentamento às violências e dos órgãos regionalizados para compor uma agenda
fortalecida” conforme disposto na Ata 44/2018.
No diagnóstico da rede realizado no ano de 2017, tendo como base 14
municípios presentes no evento da Comissão Regional que o gerou, identifica-se
que os 14 municípios realizam trabalho com a vítima e, desses, quatro realizam
trabalho com o agressor. Dos 14 municípios, cinco apresentam Comissão Municipal
de Enfrentamento às Violências em funcionamento, sendo que 4 dessas são
coordenadas pela política de Assistência Social. Ou seja, 9 municípios estão com a
rede de proteção fragilizada, uma vez que não se consegue cumprir com o que
prevê as normativas. Dentre as dificuldades elencadas pelos municípios para a
efetivação do trabalho em rede, aparece em primeiro lugar a falta de articulação da
rede, em segundo a falta de capacitação e em terceiro lugar o déficit de RH e a
rotatividade de pessoal a cada grupo político no poder. O SIPIA e o SINAN são
utilizados nos 14 municípios.

4.1 O conceito de violência: relação entre as normativas, atas e diagnóstico de

9
rede
A fim de cumprir com os objetivos desse artigo, os dados obtidos através das
Atas e Diagnóstico de rede foram divididos em quatro categorias analíticas: Doutrina
da Proteção Integral; Invisibilidade Social da Violência; Responsabilidades do Poder
Público e Atuação em Rede de Proteção.
A categoria analítica Doutrina da Proteção Integral diz respeito a quebra de
paradigma em relação a Doutrina da Situação Irregular, Lei 6.697/79, que instituiu o
primeiro Código de Menores do Brasil a partir do Decreto 17.943-A, de 12 de
outubro de 1927, conhecido como Código Mello Mattos. A Doutrina se organizava
através da ideia de crianças e adolescentes como menores em situação irregular. A
irregularidade girava em torno de menores carentes, abandonados e infratores.
Período na história marcado pela tutela judicial que assegurava o controle e a
vigilância, em especial a pessoas em situação de pobreza (CFP, 2012; SILVESTRE,
2013).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal n.º 8.069/90, rompe com
essa visão do adolescente em situação irregular para inaugurar a Proteção Integral
que fundamenta as ações direcionadas para todas as crianças e adolescentes,
assegurando os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
A Doutrina da Proteção Integral assegura a criança e o adolescente como
sujeitos de direito, saindo do papel de objetos passivos para se tornarem titulares de
direitos, destinatários de absoluta prioridade, respeitando a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento. Pode-se observar os esforços de uma parcela da
população em realizar a crítica a respeito da violência, partindo a ideia de que a
criança e o adolescente é alvo de violência e não produtor dela ao se encontrar nas
condições que o categorizam como tal, a exemplo das normativas que constituem
esse novo paradigma da Proteção Integral.
As normativas do trabalho em rede e do Enfrentamento às Violências estão
em conformidade com o previsto pela Doutrina da Proteção Integral. Ao passo que
Adorno (1986) afirma que o movimento da ideologia só pode ser compreendido na
medida em que se compreende o movimento histórico da sociedade, podemos
perceber na quebra de paradigma da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina
da proteção Integral, um movimento na direção da mudança das consciências a
respeito do que configura a violência contra a infância e adolescência e, resultado
disso, como deve ser realizado seu enfrentamento.
O trabalho em rede tem sido considerado dentro desse sistema de ideias
como primordial para a Proteção Integral. Está presente nas Atas, conforme citado
anteriormente, a dificuldade em se reconhecer a atribuição de cada política setorial,
dificultando que se efetive intervenções coletivas e continuadas no trabalho em rede,
problemática também indicada no Diagnóstico de Rede, como indica a Ata 47/2018
“uma vez que as demandas ultrapassam os limites das politicas setoriais”. É
imprescindível, a priori, que cada ator da rede tenha claro o seu papel dentro de sua
política setorial para que um trabalho intersetorial consistente resulte da soma das
forças na direção de um funcionamento em rede. O trabalho em rede evidencia uma
forma de lidar com os fenômenos partindo do princípio da incompletude das ações,
sendo necessário um trabalho especializado, qualificado e resolutivo na lógica da
atuação em coletivo. Para que essa lógica seja eficaz no Enfrentamento às
Violências, é preciso que as situações de violência sejam corretamente identificadas
e que haja um consenso sobre o papel de cada ator a respeito do enfrentamento, a
exemplo da discussão presente na Ata 37/2018 “[...] necessidade do trabalho

10
intersetorial para cumprir com os objetivos da proteção social”. Quando isso não
ocorre a Proteção Integral fica comprometida pois não há um objeto de intervenção
bem definido.
A problemática da desarticulação das ações entre os membros que compõem
a rede, conforme indicam as Atas e também elencado como a principal dificuldade
na efetivação do trabalho em rede presente no Diagnóstico de Rede demonstram
também a falta da definição do objeto de intervenção: violência. Sobre isso, há um
trecho na Ata 37/2018 que identifica essa necessidade quando “[...]propõe uma
apresentação a respeito dos subsídios para o trabalho em rede com o objetivo de
alinhamento conceitual do grupo”. O objeto de intervenção deixa de ser a
compreensão da irregularidade para se agir diretamente sobre o fenômeno da
violência. Ao não realizar o trabalho com o agressor, como aponta os dados de 10
dos 14 municípios que não realizam essa ação, a Proteção Integral não cumpre com
seu objetivo uma vez que o agressor retorna ou permanece no meio social sem que
a condição de agressor seja superada.
A respeito disso, Chauí (1999, p.1) afirma que a visão da sociedade a
respeito da violência é de algo “passageiro e acidental”, sendo “apenas um acidente
na superfície social sem tocar em seu fundo essencialmente não-violento - eis por
que os meios de comunicação se referem à violência com as palavras "surto",
"onda", "epidemia", "crise". O trabalho com o agressor diz respeito a essa
dificuldade, dessa forma, reforçando a ideia da violência como esporádica e
superável, suprimindo sua condição de estruturante da sociedade, como discorrido
anteriormente a respeito da violência. Com isso, há fragilização das ações de
Enfrentamento à Violência e do trabalho em rede pressuposto, uma vez que a
violência não é vista como intrínseca às relações sociais.
A categoria analítica Invisibilidade Social da Violência diz respeito a
criminalização da pobreza. Está presente nas Atas a situação dos acolhimentos
realizados por motivo de vulnerabilidade socioeconômica, tendo como norteador a
situação de pobreza.
É possível observar também o reforço dos estereótipos de gênero, uma vez
que ocorre a culpabilização da família, sobrecarregando o papel da mulher e
reforçando “a culpa da mãe” diante da situação de violência vivenciada pela criança
ou adolescente. O reforço desse papel é benéfico para a sociedade capitalista na
medida em que os cuidados são de responsabilidade da mulher, eximindo o Poder
Público do cuidado e do financiamento dos da proteção integral. Cecília Coimbra
(2001) contribui nesse aspecto quando expõe a construção da ideia das “classes
perigosas” vinculadas a “cultura da pobreza”.
A pobreza vista como mendicância e vagabundagem dentro de um sistema
que a produz, dado o modo de produção capitalista: “é importante ressaltar como o
capital, produtor da miséria, dela se aproveita e goza benefícios, promovendo a
reprodução desse mesmo sistema gerador de violência e garantidor de privilégios
para as elites” (p.82). Esse modelo de pensamento, difundido ideologicamente na
sociedade sem que haja uma consciência que permita a crítica, contribui para que a
mudança de paradigma para a Proteção Integral encontre entraves para a sua
efetivação, o que contribui para o desamparo da situação de pobreza gerando a
perpetuação dessa condição. A exemplo da “redução da maioridade penal”,
Proposta de Emenda à Constituição n° 33, de 20124, que propõe a possibilidade de
desconsideração da inimputabilidade penal de maiores de dezesseis anos e

4
Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106330

11
menores de dezoito anos por lei complementar, que de tempos em tempos retorna
ao cenário político.
A invisibilidade social da violência diz respeito à “irracionalidade do
pensamento burguês”, uma vez que esse discurso demonstra a alienação da
sociedade da produção da própria miséria da violência. Dessa forma, não há uma
consciência social que permita a crítica da razão instrumental, o domínio do homem
sobre o homem se torna natural e a violência enquanto produto da reificação do
indivíduo é mantida e reproduzida nas relações sociais.
A categoria analítica Responsabilidade do Poder Público versa sobre a não
proteção social diante da omissão do Poder Público nas suas atribuições enquanto
parte da rede de proteção no Enfrentamento às Violências contra a criança e o
adolescente. Somado à criminalização da pobreza, há outro fator diretamente ligado
com a visão sobre a violência que perpassa as ações do Poder público, o
financiamento dos interesses do capital ao invés dos interesses da sociedade
(SILVESTRE, 2013; SALVADOR, 2017). Exemplificando essa situação, podemos
citar a Emenda Constitucional 95/20165, que suprime os direitos para cortar gastos,
instituindo novo regime fiscal para as despesas discricionárias (não obrigatórias),
impedindo aumento de investimentos na saúde, educação, ciência e tecnologia, e
infraestrutura por um período de vinte anos. Importante ressaltar, quanto ao
financiamento que dá condições para que o trabalho seja desenvolvido. A questão
dos direitos negligenciados em prol da livre expressão do mercado se faz presente
no dado da falta de recursos humanos, estrutura física e recorrente troca de
recursos humanos a cada mudança de grupos políticos no poder.
A subnotificação identificada nas Atas e no Diagnóstico de Rede alude ao
investimento e entendimento da necessidade de capacitação para que os atores da
rede gerem indicadores a respeito da violência e, também, tenham subsídios para
identificá-las. Sobre a identificação das violências, um dos fatores para a
subnotificação, está presente o caráter ideológico de criminalização da pobreza e
dificuldade em ir além da situação irregular. A não consciência sobre a violência e
seu caráter intrínseco às relações humanas, pode ser visualizado no dado do
diagnóstico de rede: dos 14 municípios, 9 não possuem Comissão Municipal de
Enfrentamento às Violências atuante. Esse dado indica a fragilização da Proteção
Integral e do trabalho em rede, associado com o dado do mesmo documento, 4 dos
6 municípios que possuem Comissão são coordenadas pela Política de Assistência
Social. Pode-se inferir que existe a dificuldade das políticas setoriais identificarem o
fenômeno da violência como multifatorial e inerente às relações humanas,
precarizando o envolvimento do Poder Público no enfrentamento. Decorrente disso,
tanto os objetivos dos Planos quanto as normativas para o Enfrentamento às
Violências encontram dificuldades em se efetivar, diante dessas fragilidades
expostas.
A categoria analítica Atuação em Rede de Proteção diz respeito à efetivação
do trabalho em rede e do entendimento dos membros de que a rede de proteção é
estratégia para o Enfrentamento às Violências. O trabalho em rede é realizado pelos
indivíduos que nela atuam, fazendo com que o entendimento sobre a violência seja
marcado ideologicamente e difundido entre os pares, reproduzindo e mantendo a
violência intrínseca à sociedade. Conforme disponível nas Atas, as discussões da
Comissão Regional apontam no trabalho do Enfrentamento às Violências o
fortalecimento do trabalho em rede, em conformidade com as diretrizes para sua

5
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm

12
atuação. As discussões presentes nas Atas versam sobre o fortalecimento do
trabalho em rede na intenção de superar a dificuldade de articulação na rede que
aparece como problemática central no questionamento aos municípios a respeito
dos entraves à efetivação do trabalho em rede.
Estão presentes ações da Comissão Regional na intenção de alinhar entre o
próprio grupo o conceito de violência, para qualificar o trabalho. As atas também
demonstram ações na intenção de qualificar o trabalho em rede, como a realização
de eventos centralizados e descentralizados para assessorar os municípios na
implantação das Comissões Municipais, sem recursos próprios, através da
cooperação entre os membros representantes das políticas setoriais. No decorrer
dos anos analisados, a Comissão Regional definiu por iniciativa dos membros um
calendário mensal de reuniões na intenção de qualificar o trabalho. Importante
ressaltar que a Resolução Conjunta 001/2010 prevê reuniões trimestrais. Portanto,
isso demonstra os esforços na direção da efetivação da Proteção Integral.
Para pensar o conceito de violência e os ideais que o cercam a respeito da
infância e adolescência, se faz necessário retornar a história das normativas que
tratam da temática na intenção de que o movimento da ideologia é o próprio
movimento da sociedade. O modo como a violência é tratada e enfrentada é reflexo
dos interesses da classe dominante, determinado pelo modo de produção. Esse
modo de produção gera alienação na medida em que o produto não é produzido por
aqueles que o consomem, mecanismo esse presente também na difusão da cultura
de massa e na ideologia. No campo da subjetividade, a não consciência sobre a
produção gera a perda da autonomia e da autoconsciência. O indivíduo se torna
objeto, assim como a cultura se torna mercadoria. Nesse padrão de sociedade os
indivíduos se tornam massa a partir da experiência social massificada como
mercadoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na intenção de instrumentalizar o trabalho em rede no Enfrentamento às
Violências contra Crianças e Adolescentes, se debateu sobre o conceito ideológico
de violência e como ele perpassa as consciências dificultando ou propiciando um
enfrentamento efetivo.
A violência é um fenômeno que afeta todos os indivíduos, pois está na
estrutura da sociedade e no modo como se dão as relações sociais. Uma das
dificuldades no alinhamento conceitual da violência é a consciência de que a
violência é estrutural. Essa não consciência culmina em invisibilidade social da
violência, prejudicando o planejamento das ações e o manejo da gestão do
Enfrentamento às Violências. Na medida em que isso não é percebido e não é uma
premissa no trabalho em rede, ele se torna fragmentado e pontual, gerando ações
desarticuladas pouco efetivas. Em decorrência disso, as ações do Poder Público
acabam por violar direitos, se aproximando da Doutrina da Situação Irregular.
A dificuldade em romper com a visão da criança e do adolescente em
situação irregular também se apresenta como um entrave na medida em que não há
em totalidade a superação dessa visão, expropriando o status de sujeito de direito
desses indivíduos. Diante disso, a violência é, em essência, a “coisificação do
humano”. Isso aparece como modo de funcionamento da sociedade atual, através
da razão instrumental, de forma que isso se desdobra nas relações sociais
colocando os indivíduos no papel de objeto sem que possam ser autônomos na
produção e reprodução do conhecimento, inclusive, a respeito da violência. Esse

13
entendimento vem como um dado pronto, acabado em si mesmo. A não realização
da crítica “coisifica”, nesse mesmo caminho se tornando uma das dificuldades para o
Enfrentamento às Violências.
É nesse ponto que a sociedade se torna homogênea e as ideias que
preconizam o que é violência, acabam por se tornar um entrave, pois há de se saber
o que precisa ser enfrentado e de que modo. São essas ideias a respeito do
conceito de violência que moldam as ações futuras e viabilizam seu sucesso.
Essas dificuldades exemplificam o “tiro” do iluminismo que saiu pela “culatra” na
medida em que o esclarecimento se tornou barbárie na dominação do homem sobre
o homem na intenção de obter poder, com a ajuda do domínio técnico e científico.
Dentre as potencialidades podemos citar a organização do Enfrentamento às
Violências pela Comissão Regional através da preconização do trabalho em rede.
Há um entendimento a nível estadual e federal de que o trabalho em rede é o modo
mais viável, partindo do princípio da multifatorialidade do fenômeno da violência.
Esse é um fator de potencialidade na medida em que a orientação teórico-
metodológica do Enfrentamento às Violências se dá em um entendimento, a partir
das normativas, na direção da Proteção Integral.

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