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O corpo no ensino de Jacques Lacan

Colette Soler

A PSICANÁLISE E O CORPO DO ENSINAMENTO DE JACQUES LACAN


C. Soler

Que o inconsciente freudiano não seja sem incidência sobre o corpo, soube-se desde as
premissas da psicanálise. Essencialmente, é o sintoma que faz prova, especialmente sob a forma
da somatização histérica, pois basta que ele ceda ao deciframento para que a coisa seja
verificada. Entretanto, existe ainda mais, há a descoberta do caráter traumático da sexualidade,
que assinala quanto a ela, que o ser humano, rebatizado “ser falante” por Lacan, é afetado do
defeito essencial daquilo que seria um instinto sexual. A este defeito, o Édipo supre, é verdade,
grosso modo, e não sem incidentes sintomáticos. Depois, há ainda a descoberta deste paradoxal
além do princípio do prazer, onde se afirma a captação do sujeito por um gozo nocivo. Porém,
a psicanálise é um fato, nem enriqueceu o conhecimento do corpo biológico, nem
verdadeiramente renovou à resposta de Tirésias a questão do gozo sexual, nem mesmo
conseguiu Lacan o notava enriquecer a erótica de uma nova perversão. É preciso então dizer
como a psicanálise trata o corpo.
O corpo está, por assim dizer, na moda, não é pelo fato da psicanálise, mas de
preferência pelo fato da proliferação do que se chama correntemente as técnicas do corpo. Este
é um nome enganador, pois é certo que elas são todas técnicas do significante, e mesmo do
significante mestre, na medida em que este último tem por função, digamos fazer andar ou não.
É apenas uma imagem, certamente para indicar que se trata sempre de fazer entrar o corpo em
uma ordem. Poderia-se mostrar caso a caso. Eu colocarei a título de premissa, que de certa
maneira, a psicanálise participa bem de uma técnica do corpo, mas de uma forma que faz
exceção, pois justamente sua função não é fazer andar ou não. Fica a meu cargo justificar esta
afirmação.
Mas, o que é o “corpo”? Se eu digo: “o corpo é uma realidade”, suponho que se – o “se”
da omnitude, como diz Lacan – concordará comigo de boa vontade, mas temo que não seja no
sentido em que se acredita que ele é mais tangível que no sentido do blá-blá-blá, mais casual
em uma palavra mais real que o verbo que corre. Isso seria esquecer que, com Freud, a realidade
não é o real bruto. Para se convencer disso, bastaria reler nem que fosse seu Projeto de uma
Psicologia Científica, ao qual Lacan deu tanta importância em seu seminário sobre a Ética da
psicanálise. O inconsciente obriga a supor que a realidade não é um dado primário. Ela tem um
estatuto subordinado a uma construção secundária, uma vez que é habitada pelas relações que
portam a estrutura significante. Sem dúvida evocar a realidade, é evocar seu aquém – o dado
bruto elementar -, mas também seu além. Lacan não hesitou em fazer, a maneira de pastiche, a
partir do Além do Princípio do Prazer de Freud em Além do Princípio de Realidade. Título de
um de seus artigos de 1936, essa expressão se encontra retomada por ele em 1967 em seu texto
La psychanlyse dans ses rapports avec la réalité, para designar a ciência à medida que ela visa
o real, mas um real elaborado, cernido por todas as suas construções experimentais ou formais,
um real do qual promulgou uma definição à bem dizer inédita com sua fórmula: “o real, é o
impossível”, a ser entendido como o impossível a se inscrever numa arquitetura significante ou
formal. Dizer que o corpo é uma realidade, é dizer que como ela ele é tríplo, simbólico,
imaginário e real, sendo aí a questão, saber se, e como, a psicanálise, que opera pela fala, dá um
acesso eficiente a alguma coisa do corpo que seria real.
Percebe-se que a questão não tem sentido senão a partir do ensinamento de Lacan e que
há sobre esse ponto uma clivagem completa com a corrente maior da Internacional que é a
psicologia do ego. Seu postulado de base é que existem duas idéias inerentes inscritas no real
do corpo e subtraídas então à causalidade histórica do sujeito. Elas são, para resumir, de um
lado os aparelhos da realidade; do outro, os estágios libidinais. No sistema percepção-
consciência de Freud, eles reconhecem então um tipo de instrumento que apreende o mundo,
inato ainda que susceptível de desenvolvimento. Isso é Freud relido a partir de Piaget. Do
mesmo modo para a libido, da qual eles pensam os estágios como organicamente programados,
fazendo desta maneira do objeto progenital quase um objeto da natureza. Essas teses se mostram
tão esboçadas e explícitas que os autores as reivindicam sem as ter concebido. Tomem como
exemplo Margaret Malher em seu questionamento sobre o autismo infantil. Seguindo Anna
Freud, ela identifica estes dois inatos supostos que seriam a inteligência e a libido, com os
limites da psicanálise, não deixando a esta senão o campo estreito das relações de objeto que
sozinho pensa ela, relevam os avatares revistos da história infantil. Esses são postulados que,
em nome do preconceito segundo o qual o corpo seria o real, colocam fora de jogo tudo que é
suposto relevar de seu registro.

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No que diz respeito a isso, a demarche de Lacan é completamente oposta, pois ele não
cessou de construir e completar sua doutrina do corpo em função da inteligibilidade da
experiência da cura. Nesta evolução há etapas, mas uma constante se impõe: a distinção entre,
de uma parte o organismo, o vivente, e de outra o que a língua designa como corpo.
É inicialmente pela imagem que Lacan abordou o problema do corpo. Seu estágio do
espelho, que reordena um grande número de fatos assinalados tanto pelos etólogos quanto
psicólogos, implica que para fazer um corpo é preciso um organismo mais uma imagem.
Porque, notem que, o problema é de perceber isso que faz o “um” de um corpo, isso que faz o
sentimento de unidade e de pertinência. A unidade é aqui devida à consistência da forma, da
Gestalt visual, oposta ao estado de mal estar, à deiscênsia do organismo prematuro que a
imagem ainda não ordenou. E desde essa prótese do imaginário, que de um organismo
fragmentado faz um corpo unificado, concebe-se que essa imagem oferta-se ao amor e toma
seu valor libidinal – narcisismo, dizia Freud.
Vocês o sabem, Lacan não se reteve a essa tese, tendo reconhecido nas formações do
inconsciente descritas por Freud, os mecanismos do significante, ele veio imputar a
fragmentação das representações do corpo, não mais simplesmente a prematuração, mas ao
efeito da própria linguagem. As linhas de oposição deslocam-se então. Podemos notadamente
sublinhar coesão própria do organismo animal em relação à fragmentação fantasmática do
corpo humano. E de fato, salvo acidentes, Lacan o retomou até as fases tardias de seu ensino,
no seminário Mais Ainda ou na Terceira, o organismo subsiste um tempo em sua forma,
enquanto que sonhos e sintomas testemunham uma anatomia significante fragmentada que não
tem nada, nem de animal, nem de vivente. Isso não quer dizer que seja o indivíduo caro a
Aristóteles que funda o vivente: esse aqui não se confunde com o organismo individualizado,
porque a vida encontra-se até ao nível do pólipo, mas é dizer que a coesão do vivente opõe-se
ao corpo espedaçado que a linguagem dá ao ser falante, e que não tem, além disso, sua unidade
senão do “um” do significante. Voltarei sobre este ponto, mas vou propor dois exemplos muito
elementares. O esquizofrênico que diz que sua cabeça está a um metro acima de seu tronco, que
sua coluna vertebral é um saca-rolhas ou que ele vive sem estômago; o que é que nos autorizaria
a pensar que se trata de uma cenestesia doentia ou de uma perturbação da imagem do corpo,
pois o fato, é que se trata de um dito. É um dito que divaga certo, mas em relação a que, senão
em relação ao que o discurso veicula de saber concernindo tanto à imagem quanto o
funcionamento do organismo? Evoca-se agora o histérico, que apresenta uma paralisia, o
fenômeno parece bem diferente. Não se trata `a uma abordagem inicial de um dito, mas de uma
perturbação efetiva, e é necessário a interposição do deciframento para que ele entregue sua

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verdade, entretanto, aquela não revela menos um corte significante do corpo que a anatomia
não conhece.
Eu vou ao mais substancial do corpo. Não mais áquele da unidade imaginária, o do corte
significante, mas aquele que condensa o valor erótico. `As duas oposições precedentes, do corpo
unificado ao organismo fragmentado, do vivente funcional ao corpo recortado pela
representação inconsciente, soma-se aquela do corpo mortificado ao que lhe resta de vivo, e
que não é seu funcionamento biológico do qual a psicanálise não tem que conhecer, mas seu
ser libidinal. Este aqui, Lacan não o desconhece, ele ao contrário se esforçou em dar conta de
suas particularidades, tais quais elas se atestam na experiência analítica. Ele se impõe de tal
modo que o gozo não se diz senão como periférico, fragmentário, e localizado nas bordas
corporais – ditas por Freud zonas erógenas – em uma palavra, como essencialmente fora do
corpo, cativado por objetos que são peças separadas do corpo, os objetos que a teoria clássica
classifica de pré-genitais, e dos quais Lacan enumera quatro: seios, fezes, voz, olhar. Não é o
organismo que aqui Lacan opõe ao corpo, mas a carne (Cf. Radiophonie), enquanto que esse
termo, retomado de uma velha tradição, conta precisamente as tentações da libido. Por
conseqüência, o corpo propriamente falando é o corpo morto, por oposição, tanto ao
funcionamento do corpo vivo quanto aquilo que se esvazia de gozo. A questão é segundo Lacan,
que quando vocês falam do corpo, é indiferente que ele esteja vivo ou morto, o que manifesta
bem o fenômeno da sepultura: os corpos aí valem cada um por si, designados por um nome, ou
em sua falta, somente do número, o que permite contá-los.
É que há o Outro corpo, o verdadeiro, o primeiro, que, vos dá um Outro corpo, a
linguagem. Desde o seu Discurso de Roma em 1953, Lacan notava: ele é “corpo sutil, mas
corpo”. Em sua malícia ele chegou a evocar para sua tese, um ilustre predecessor, inesperado,
Stalin, que, com efeito, curiosamente, no debate dos marxistas para traçar a fronteira entre a
infra e a supraestrutura, colocou o peso de sua autoridade para dizer que a linguagem não é uma
supraestrutura. Falar do corpo do simbólico é um uso perfeitamente correto da palavra corpo,
qualquer um pode disso se assegurar pelo dicionário. O simbólico é corpo, como seus elementos
são coordenados em um sistema de relações internas. Aliás, é, porque há no simbólico, não
somente uma quase materialidade dos elementos, os significantes, mas também uma
objetividade de relações que a psicanálise que opera pelo simbólico, guarda um laço com a
ciência, e que não é mesmo contraditório, falar de uma objetividade do sujeito, como Lacan o
fez na época, por exemplo, em seu Seminário sobre os quatros discursos. A tese é, pois que o
corpo do simbólico, corpo incorporal, ao se incorporar nos dá um corpo (Cf. 60 e 61 de

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Radiophonie). Ele se apresenta em duplo sentido: ele nos atribui, mas, mais essencialmente, ele
nos fabrica. O corpo.
Que ele vos atribui não é senão um caso particular desta verdade que não há senão fato
de ser dito. É a linguagem que vos faz dizer que vosso corpo é um e vosso. Há certamente a
coesão do organismo, que parece ser primeira, ainda que dobrada pelo “um” do significante.
Entretanto nada autoriza a pensar que é ela que o funda talvez o contrário que é ele, o um, que
faz perceber a consistência real do organismo. É surpreendente por outro lado, que o discurso
nos atribui nosso corpo antes de nos identificarmos a ele, que falamos de ter um corpo e não de
ser um corpo, como hesitaríamos menos a fazê-lo para o animal. Esta contribuição implica a
disjunção do sujeito e do corpo – eu não falo da alma, que Lacan reduziu a não ser mais que a
transposição simbólica da unidade imaginaria do corpo.
Como sujeito do significante nós somos, com efeito, disjuntos do corpo tanto que do
sujeito, não somente deste fala antes que ele fale, mas dele se fala antes mesmo que ele tenha
um corpo, ou que ele não mais o habite, antes do seu nascimento ou após sua morte. É porque
a linguagem assegura essa margem além da vida que é a antecipação do sujeito e sua
perenização na memória, que nós podemos evocar o corpo como distinto, separado do ser do
sujeito. Pensem por exemplo, no grande tema dos fantasmas ou aquela da imortalidade. O que
é o fantasma senão um corpo que reaparece passado o tempo, portador de obscuras exigências?
Quanto à sobrevivência, não é consistência imaginaria que se emancipa de sua encarnação
temporal? A sepultura, identificável aos limites mesmos da humanidade, é uma maneira de
recuar que o corpo que nasceu pelo significante, - e ainda mais que eu não o disse até agora -,
que o corpo, eu digo, torna-se carniça e caminha como toda carne, para a desagregação. Mas é
evidente demais que ela o celebra senão com a subtração feita de sua vida, como o “um” inerte
disso que uma certa tradição designava como envelope morte, ou seja, trapos, tanto é verdade
que o significante, como o deus de Schreber, não conhece o vivente. Se ele o dá um corpo, é
um corpo desvitalizado, cuja animação própria escapa-lhe.
Há signos desta impotência do simbólico para inscrever o vivente. Que os antigos
tenham representado o corpo sobre o modelo de esferas celestes e que tenham identificado o
universo a um tipo de macro-corpo, já merece reter-nos. Não é surpreendente que para imaginar
a essência do corpo, eles não tivessem tido outro recurso senão o modelo do mundo inanimado?
Atribui-se geralmente uma propensão a animar este, mas o inverso vale tanto quanto. Quanto
`a Descartes, opondo a extensão ao sujeito do pensamento que seu cogito promovia, ele
testemunha que a vida é impensável. A oposição da substância pensante é substância extensa

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rateia o que era necessário chamar “substância gozante”, manifestando por aí os limites da
captura significante, que não captura o vivente senão a inscrevê-lo como de antemão morto.
Mas, ainda há mais; este corpo desvitalizado é também um corpo fragmentado em seu
funcionamento – e não somente em sua imagem – pois seus órgãos, ele os tem pelo fato que ele
habita a linguagem. (Cf. L’étourdit).
No metabolismo global do organismo, é a linguagem que isola os órgãos e lhes dá uma
função. Pode-se, às vezes, ter como consciência deste efeito de ordenamento pelo discurso,
notadamente na infância. À questão do adulto: onde dói? A criança doente pode ainda responder
por uma localização vaga de superfície. Mas, que retorqueria ela a isso: dói a barriga ou o
coração? Enquanto que ela está soletrando seus órgãos, que serão seus pelo verbo, sem imagem
e sem cenestesia, quando eles entrarão em seu discurso.
É o socorro deste que justamente falta ao esquizofrênico que evoquei agora mesmo,
quando se trata de dar funções aos seus órgãos. Bem entendido, não é uma simples questão de
aprendizado do vocabulário anatômico do qual o esquizofrênico é tão capaz quanto qualquer
um, o problema é de localização da libido. O essencial, com efeito, é de entender bem que a
captura da linguagem pelo vivente não se reduz a lhe associar um dito que o deixaria salvo. O
vivente não entra no simbólico senão as suas expensas, expensas reais. O que no-lo indica de
início, é que há um órgão, não tão fácil a domesticar em sua função e que é o órgão fálico. Aí,
Lacan inscreve-se em falso contra a fórmula retomada por Freud: a anatomia é o destino,
entendida aqui como anatomia sexual. Para Lacan, não é a anatomia, mas o discurso que faz o
destino, e o falo não é anatômico, diferente que é do apêndice peniano. Não é em suma o que
implica o Édipo Freudiano, que Lacan reconduziu a sua estrutura lógica no L`étourdit: homem
ou mulher é problema do sujeito e não da anatomia? O que é preciso bem chamar uma escolha
inconsciente do sexo impõe-se, aliás, quase ao nível dos fenômenos, quando a demanda do
transexual encontra a oferta cúmplice de nossa moderna cirurgia. A questão é, pois esta: se o
corpo, como diz Lacan, “faz a cama do outro”, se ele é “tabuleiro de jogo”, o que resulta o
concernente, qual é o efeito corporal da incorporação do corpo incorporal do simbólico?
O corpo se apresenta de início como uma simples é a marca do rebanho, como signo de
propriedade. As marcas de pertinência a um conjunto não faltam também ao corpo do ser
falante, mas elas vão mais longe, inseparáveis que são das propriedades libidinais.
Muitos fenômenos merecem ser mencionados. Pensem na tatuagem, que ao mesmo
tempo os identifica e os situa como objeto erótico, a circuncisão nas suas incidências múltiplas,
mas também a esta prática – mais rara e que indigna de tal modo aos ocidentais – que é a
excisão, e onde se indica de modo o menos equivoco uma tentativa de regrar diretamente o

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gozo. Mais acidentais, não instituídas, há também as cicatrizes que se esconde ou que se exibe
como traços visíveis, gloriosas ou vergonhosas, de uma história. O interessante, é que elas não
são sem repartir-se segundo os sexos. Para as mulheres, mais freqüentemente, são as cicatrizes
que marcam seu ventre que importam. Que resta, por exemplo, de uma cesariana, senão seu
traço, do qual se vai poder falar? Do lado dos homens, ao contrário, pelo menos em nosso
contexto, seriam mais as cicatrizes de guerra, aquelas que restam dos seus feitos de arma, que
tomam sentido. Eu não esqueço também as marcas que porta o corpo do masoquista, e que são
estigmas do gozo. A esse corpo, portador de traços que o riscam e que incizem sua forma, nós
podemos opor o corpo que a moda talha. Criadora da imagem, ela fornece formas de troca, sem
tocar na carne, aí onde a cirurgia estética, mais radical, não se contenta com formas removíveis,
mas corta no vivo para refazê-lo, não somente um rosto ou silhueta, mas vocês o sabem, em
seus excessos, um sexo outro, por enxerto ou ablação.
Marcado em sua superfície, o corpo é mais essencialmente afetado em seu gozo. É aí
que é preciso não se enganar. Não é o sujeito que o significante afeta. O sujeito, o significante
representa-o somente – não sem conseqüência –, mas é o corpo que ele afeta. Tal é a tese que
Lacan anuncia nos anos 70. Eu cito Ou Pire, Silicet 5, pág 8: “Eu digo que o saber afeta o corpo
do ser que não se faz ser senão de palavras, isso de fragmentar seu gozo, de cortá-lo aí até
produzir a queda da qual eu faço (a), a ler objeto pequeno a, ou melhor, abjeto...”.
Este termo gozo merece alguns comentários. Lacan deu a ele elaborações sucessivas,
passando do que ele situa em Subversão do Sujeito do termo de “gozo infinito”, a distinções
que o fazem múltiplos, triplo, ao final de seu ensino. Eu me aterei a alguns comentários de
definição. Gozo não é somente a volúpia. Poder-se-ia delimitar os extratos de significações do
termo em francês, pois ele teve um grande uso, sobretudo no século XVIII. Mas olhemos,
sobretudo suas correspondências em Freud. Não é o prazer (lust) freudiano, mas de preferência
o desprazer (unlust). Esse prazer, Freud correlacionou-o a idéia de excitação mínima, da menor
tensão – no que aliás o prazer sexual faz problema. Sobre seu traço, Lacan o comenta ao lado
da homeostase harmoniosa, da satisfação provada, dito de outra maneira, do equilíbrio de forças
que implica também de “nada fazer” ou de “fazer o mínimo possível” – estes são seus termos.
Não é um ideal, ao menos não é um ideal de análise, pois a ética analítica não é uma ética do
prazer. Ela não visa, como as éticas do bem, “a satisfação sem ruptura” da criatura a seu mundo,
aquilo com que ela tem de lidar é precisamente a estrutura, que introduz a discordância. Mais
que com o prazer e o bem-estar, o gozo tem afinidades com a dor e com o além do princípio do
prazer, que Freud teve que colocar para pensar a estranheza dos fenômenos da repetição e da
transferência.

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Os paradoxos da satisfação que se ligam ao que ele denominou pulsão, ou a esta famosa
pulsão de morte, são as referências freudianas fundamentais do que Lacan retoma com seu
termo de gozo. Que se possa estar bem no mal, que Sade seja a verdade de Kant, é o que se
verifica em todos os fatos onde se trai o que é preciso chamar uma aplicação do sujeito a sofrer.
A impensável pulsão de morte, da qual Lacan de início mostrou que ela não é sem a instância
mortífera do significante, carrega aqui seu componente complementar, na cativação dos
sujeitos por um gozo deletério, do qual a satisfação sexual mascara a importância, confundida
que ela está à dimensão do prazer. O gozo não é propriamente falando desejável, ao contrário,
protegido de sua aproximação por diversas barreiras, pois porta “promessas atrozes” diz Lacan.
O prazer é o primeiro de seus limites como “ligação incoerente da vida”, que funda a reação
animal de fugir da dor e da tensão. O desejo é uma outra, ele que o interdita funda como defesa
“ultrapassar certos limites” no gozo, o que não saberia compreender-se senão a condição de
distingui-lo de toda vontade de gozo.
Se quiséssemos agora compreender o gozo, não mais na sua oposição ao prazer ou ao
desejo insatisfeito, mas na palheta de suas variações, encontraria-se alguns toques nos textos de
Lacan. A evocação, por exemplo do gozo que se supõe que o animal tem com seu corpo, entanto
que ele não está sob a influência desarmônica do simbólico. Ilustra-se de boa vontade pelo gozo
do gato, enquanto para o cachorro ao contrário, pensa-se mais na “vida de cão”, sem dúvida
justamente porque ele é mais domesticado. E além disso, há uma questão sobre o gozo da planta.
Será que os lírios do campo gozam? Perguntava-se Lacan em 1975. Freud também sonhava às
vezes com um gozo que seria pleno. Vejam seu texto Para Introduzir o Narcisismo, onde ele
coloca em série o lactente que adormece sobre o seio, saciado, o felino em sua bela indiferença
e a mulher narcisista em sua soberba. Ele aí reconhece as ocorrências de um gozo fechado,
digamos sem Outro. É claro que é algo com qual se sonha – ou que se imputa ao outro. Para
aquele que não é sonhado, mas assegurado, ele vai da cócega a grelha, dizia Lacan nos anos
onde a imolação pelo fogo fazia quase uma epidemia. Isso situa os horrores da guerra no registro
do gozo e deixa à parte os “fingimentos” masoquistas. É verdade que há atualmente uma grande
clivagem no mundo, entre os países, os nossos, onde poder-se-ia crer que a homeostase aí está
quase inserida, onde a vida é em seu conjunto talvez melindrosa, e onde, subitamente sentimo-
nos obcecados pelo traumatismo, notadamente quanto às crianças. Em outra parte ao contrário,
e os dois estão aí, há estes famosos kamikazes que nos deixam estupefatos, e o
desencadeamento de formas extremas de gozo.
Eu volto aos prejuízos que sofre o corpo do ser falante. Eles são perda e fragmentação
de gozo. Esta perda faz do corpo “um deserto de gozo” (Cf. La psychanalyse dans ses rapports

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avec la realité). O inconsciente tal como Freud o constrói em seu Projeto para uma Psicologia
científica, implica este esvaziamento do gozo. Freud colocou a tese primeira segundo a qual o
psiquismo é regrado pelo princípio do prazer. O que ele aí acrescenta neste texto, onde trata-se
de dar conta do recalcamento e de seus frutos, é a idéia que a satisfação inscreve-se no aparelho
psíquico sob forma de traços que guiarão as buscas ulteriores do sujeito. Eis que muda tudo e
obriga Freud, vocês o sabem, a distinguir uma experiência de satisfação primeira, mítica, que
seria aquela de um corpo não ainda marcado, novo, em uma palavra, fora-significante. Ele
supõe esta primeira vez inscrita em uma malha de traços múltiplos e articulados, que
canalizarão desde aí toda busca de satisfação, e nas quais Lacan vai reconhecer a articulação
significante. Quando na A Direção da Cura ele define o inconsciente como “as primeiras marcas
ideais onde as tendências se constituem como recalcadas na substituição do significante à
necessidade”, ele está muito próximo do esquema Freudiano. Esse descreve-nos um psiquismo
separado ao mesmo tempo da realidade e de seu gozo pleno, constrangido a repassar pelos
canais de um suposto gozo primeiro, do qual ele jamais encontra de novo senão os traços
mortos, traços unários do gozo perdido. Dito de outra maneira: aí onde é o significante, o gozo
pleno não é mais; resta somente aquele que liga-se a repetição e que dessipa a perda da “coisa”,
fazendo do humano este ser sedento de uma impossível primeira vez que Freud descreveu e no
qual a insatisfação é constituinte. Entre a coisa, lugar do gozo, e o sujeito determinado pelo
significante, o encontro será para sempre falho, sem jamais ter existido, porque sua clivagem
funda-se desta impossibilidade mesmo.
O recalcamento da coisa pelo significante é pois correlativo disto que a libido – o que
Freud nomeou libido – supõe esta perda original de gozo. A libido, é o que ele coloca no
princípio de todo apetite dito sexual. O que faz buscar fora de si à extensão de um objeto
complementar. Já foi a seu enigma que Aristófanes respondeu com seu mito das duas metades
de esferas separadas e buscando-se uma à outra. Lacan consagrou algumas grandes páginas ao
conceito de libido na Posição do Inconsciente. Ele a correlaciona à emigração do gozo fora das
fronteiras do corpo, o que faz dela um “órgão”, um “instrumento” e que desloca o “verdadeiro
limite” do organismo além de seu envelope corporal. A subtração do gozo é posta como sua
condição estrutural. Essa encontra-se ao nível mesmo do animal – pois Lacan não recusa a idéia
de uma libido animal.
O elán da libido que traça os limites do território animal pode ser como efeito ser referida
a uma perda, aqui uma perda de vida: aquela que a sexuação implica pois a morte individual
vai junto à reprodução sexuada. O mito da lamínula, que Lacan subsitui ironicamente àquele de
Aristófanes, encarna essa mesma idéia de que não há libido senão a partir da subtração. Esta

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subtração que funda a libido como vetor em direção ao objeto, nós podemos escrevê-la com seu
signo e seu nome - _____, a castração. O texto mesmo de Lacan a evoca, de preferência a partir
do objeto parcial. Mas esse aqui, notadamente o seio, está situado por isto que ele é no complexo
de sevrage, ou seja uma parte perdida do próprio sujeito, que tem bem pouco a ver com a
reminiscência sensorial do corpo da mãe, com seu calor, seu odor, etc. Lacan coloca além disso
os “pingos nos is” em sua nota de 1966, onde ele anuncia o que desenvolve o artigo seguinte
dos Escritos, Du Trieb de Freud, dizendo: “Nós não pudemos entender essas considerações
sobre o objeto, até o que constitui seu interesse crucial, a saber o objeto enquanto causa do
complexo de castração”.
Essa negativação sendo que, do corpo, faz “deserto de gozo”, que resta então deste
último? Certamente resta uma parte, fragmentada e distribuída “fora do corpo”, e que Lacan
ilustra pelas sepulturas antigas, onde os objetos colocados ao lado do corpo enumeravam as
formas fora-corpo do gozo.
Esse gozo fora-corpo não é outro senão aquele da pulsão. Lacan acentuou
sucessivamente duas versões da pulsão, sua versão significante e sua versão de gozo. Ela não
existe sem o corte significante, pois correlacionada a demanda do Outro (Cf. o Grafo), como se
vê mais claramente concernindo às pulsões orais e anais. Mas ela é também condutora de um
gozo que pode ser dito não somente periférico, pois localizado nas bordas anatômicas (fontes
das pulsões, diz Freud), mas fora do corpo, na medida em que um objeto a condensa o qual é
precisamente separado do corpo “insensível pedaço a derivar dele como voz e olhar, carne
devorável ou então seu excremento”. Lacan o nomeia objeto + de gozar, sobre o modelo de
mais-valia de Marx, este “+” indicando aqui a compensação em relação ao menos evocado
precedentemente. Pelo efeito significante alguma coisa é perdida, que não mais vai ser restituída
mas em parte compensada. Deste fato, aliás este objeto tem um estatuto particular: ele é ao
mesmo tempo perdido e não reapropriável, preso na série de déficits, mas é também
repositivado e comporta um certo coeficiente de gozo.
É assim que o corpo é afetado pelo inconsciente, enquanto que o sujeito, ele é feliz
(hereux); ou seja levado a hora (heur); a fortuna, a tiquê pelo que ele não cessa de se repetir, de
repetir sua separação para com o Outro, notadamente o Outro sexo, em seus reencontros onde
seu parceiro não é outro senão o mais de gozar.
Esta estrutura, poderíamos inscrevê-la nos círculos de Euler, colocando o sujeito e o
Outro cada um em um círculo, fora interseção, enquanto que o objeto se inscreverá nesta
interseção. Television exemplifica esta estrutura, do par Dante e Beatriz. De Beatriz, Dante só
se apropria de seu balimento de cílios e não é preciso mais para encarnar o objeto, mas o Outro

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deste fato mesmo, fica barrado ao sujeito e uma ex-sistência, em duas palavras como escreve
Lacan. Este objeto que faz todo o preço da imagem é também o mais substancial do corpo, não
porque deveria a materialidade ou a extensão de um corpo – ele não tem nenhuma – É
certamente imaginarisável, a experiência o testemunha, mas ele é no entanto sem imagem. A
partir daí não podemos confundir o objeto a de Lacan, com o objeto parcial dos Kleinianos. No
máximo podemos ver no objeto pregenital uma primeira aproximação que os Kleinianos
“realizaram” até fazer dele um tipo de objeto-fenômeno, enquanto que Lacan empregou-se a
logicizá-lo, o que quer dizer também à desrealizá-lo – no sentido da realidade. Sem imagem,
ele é também sem significante que o represente, designável por uma simples letra, index do
impossível a simbolizar e no entanto substancial pelo gozo que se vincula, real pois, ejetado do
Outro.
Espero tê-los sensibilizado ao itinerário percorrido pelo ensinamento de Lacan quanto
ao corpo. Em nenhum momento desmente-se este princípio implícito de seu racionalismo de
que aquilo que se experimenta – porque desde que se fala do corpo imagina-se entrar neste
campo – encontra-se subordinado a isso que releva do registro da prova.
Envocarei agora as exceções a isso que é a regra do corpo, ou seja seu esvaziamento de
gozo. Podemos colocar três delas: a psicose, o sintoma e os fenômenos psicossomáticos. Estes
três deixam a parte o masoquismo. Esse, Lacan colocou-o sempre como desdobrado entre
mostração e demonstração. Daí os termos de “afetação”, “simulação” ou mesmo
“artificialismo” que ele lhe outorga. O masoquista sem dúvida mostra que sabe fazer voltar o
gozo no corpo, mas que não seja sem os artifícios de suas montagens cênicas, demonstra tão
bem “o que acontece para tudo do corpo, que ele seje justamente esse deserto”.
O que não é uma afetação, em compensação, é o sintoma. O sintoma, é um gozo exilado
no deserto. Dele, no ensinamento de Lacan, guardou-se sobretudo o que ele acentuou de início,
a saber sua dimensão de fala, de mensagem articulada ao Outro. Mas ele não deu menos valor,
ao fato que o sintoma analítico é um misto, misto de verdade e de gozo, antes de acentuar cada
vez mais este último componente. Que o sintoma seja verdade, é a tese original, mas é uma
verdade que se goza, a psicanálise esforçando-se desde então de reconduzí-la para sua pátria de
palavra. Isso Freud não contradiria, ele que de início viu no sintoma o retorno de uma satisfação,
a colocação em jogo de uma erogeneidade deslocada.
Quanto aos fenômenos psicossomáticos, a questão é precisamente de situar suas
diferenças no lugar dos sintomas neuróticos, desde que eles tem a mesma localização,
implantados também no deserto do gozo.

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As indicações de Lacan, embora pouco numerosas, traçam entretanto um eixo de
pesquisa. O fenômeno psicossomático, se é de toda evidência um fechamento do gozo no corpo,
não é verdade, ainda que releve por definição de uma tomada do significante sobre o corpo.
Que ele não seja verdade, está implicado pelas fórmulas do Seminário XI que colocam no seu
caso a marcação do corpo por um significante único, aí onde precisaria-se no mínimo um
segundo recalcado para fazer uma verdade do sujeito.
Gostaria de extender-me mais tempo sobre a psicose. Vocês sabem que Lacan em 1966
chegou a propor uma nova fórmula para a psicose como “identificando o gozo no lugar do
Outro”. Notem de início a concordância desta fórmula com os dados clínicos, aqueles do caso
Schreber por exemplo. Ele nos descreve um corpo, o seu, que não é sem gozo. Existe certamente
etapas em seu delírio, mas todo o tempo, embora sob formas variáveis, ele é submetido a uma
forçagem constante, invadido por um gozo intrusivo e anômalo, que chega até a perturbar suas
funções vitais: alimentações, excreções, etc. Entretanto este gozo que, salvo ao final na fase de
restauração, não é para ele prazeroso, mas sofrido, excede largamente seu envelope corporal.
Com efeito, Schreber é categórico sobre dois pontos: É Deus que goza, este Deus que por outro
lado ele nos descreveu não sendo nada mais que uma soma de palavras, um universo de
significantes, digamos o Outro. O sintoma é uma verdade do sujeito que goza, o fenômeno
psicossomático um gozo sem a verdade do sujeito, na psicose identifica que o gozo no lugar do
Outro não se verifica somente nos fatos da experiência. Esta tese está por outro lado
logicamente articulada com toda a construção de Lacan: se a ordem das pulsões que
exteriorizam o gozo está suspensa na negativação da castração, a qual será um efeito do Nome-
do-Pai, e se a forclusão deste nome é causal na psicose, é preciso contar com as anomalias da
regulação do gozo nos sujeitos psicóticos. Estas não se impõem somente na paranóia ou na
esquizofrenia, mas talvez mais espetacularmente ainda, nas crianças ditas autistas.
Seria preciso evidentemente delimitar este conceito, mas digamos as crianças que se
classificam na psicose, sem que sejam paranóicos – porque existem crianças paranóicas.
Estes autistas, todos que deles se ocupam constatam suas desordens pulsionais,
constatam que para eles a ordem regrada dos estádios da libido, a seqüência oral, anal e fálica
não se instauram. Este fato é para nós pensável desde que consideramos com Lacan que esta
ordem é comandada pelo Outro, que é a virada de sua demanda e o enigma de seu desejo que
regram essa seqüência. Nós aí não vemos uma fase evolutiva do corpo mas o efeito da tomada
do organismo na dialética do Outro, e a experiência aqui confirma a tese. Por outro lado, autores
como Margaret Malher ou Donald Melzer – eu tomo aqui dois autores que vocês não suspeitam
terem lido Lacan – tropeçam sobre este fato. Margaret Malher, quando encontra um tolo de seis

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anos com manifestações de erotismo anal que seriam normais num bebê de dois meses não pode
senão apelar a hipotéticas e incompreensíveis perturbações do organismo, que por falta de
serem atestadas, explicam o mistério pelo mistério. Melzer, ele, inventa uma pequena doutrina
bem ao estilo empirista. Ele faz a hipótese, para explicar o auto-erotismo do autista, que existem
talvez crianças que nascem com um sentido – no sentido dos cinco sentidos – que seria tão
prevalente, tão especialmente aguçado, que ele captaria todo o gozo do sujeito e bloquearia a
dialética da sua libido. O ponto comum destas duas teorias, como podem ver, é que elas curto-
circuitam todo recurso ao Outro, logo, ao campo freudiano e que, excluindo também a idéia de
uma escolha primária do sujeito, elas não podem remeter-se senão ao mistério do vivente.
Entretanto, mesmo os casos muito precoces, e onde os fenômenos auto-eróticos são
maciços, deixam perceber a incidência do Outro. Eu tomo por prova dois casos que tem a
vantagem de terem sido descritos fora da nossa formação, e que tem também o mérito, eu
suponho, de serem conhecidos de vocês. Eles são, por um lado o caso Joe de Bettelheim, e por
outro o caso Stanley de Margaret Malher. Ambos tem um traço comum a ligação numa máquina
que poder-se-ia quase chamar uma máquina de fazer viver. Para Joe, um caso absolutamente
exemplar, seu corpo não funciona senão por intermédio de suas máquinas. Para comer, para
evacuar, para dormir, é necessário que ele esteja ligado. Isso não se faz facilmente. Do caso
Stanley conhecemos somente as conseqüências do comportamento, que não chegam ao ponto
de regrar suas funções orgânicas. Margaret Malher descreve-nos dois estados da criança. Um,
no qual ela é completamente amorfa, sustentando-se a duras penas, como um trapo, como uma
coisa colocada no chão, chupando vagamente um pedaço de seu corpo. Isso não ilustraria pois
uma estase do gozo no corpo, um autismo realizado do gozo? Noto entre parêntese que, quando
Freud evoca para a psicose uma libido narcísica, quando ele nos diz que para o psicótico a libido
permanece fixada sobre o eu como corpo próprio, ele antecipa – mas sem dispor da distinção
entre imaginário e real – sobre o que Lacan introduz como estase do gozo, nos limites do corpo.
O outro estado de Stanley é um estado de animação, que alterna com o primeiro. Mas
como ele se anima? Prendendo-se no Outro. Isso se passa de duas maneiras, muito precisamente
descritas pela autora: ou bem ele põe a mão na terapeuta, estabelece um contato físico e tudo se
passa como se esse contato o reanimasse, ou bem ele pronuncia certas palavras que parecem
insuflar-lhe a vida. Esse traço é muito precioso, posto que nos mostra o que é esta máquina
externa, tanto a de Joe quanto a de Stanley a saber o corpo do significante ligado diretamente
ao corpo. E isso é tão verdadeiro que o corpo do terapeuta vale tanto quanto o contato verbal.
É claro que só estes dois exemplos não explicam nada, mas nos indicam, pelo menos, que o

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gozo estranho do autista porta a marca significante, mesmo que seja somente com seu caráter
alternativo, como é também no caso se Schreber.
Eu volto para concluir, por onde comecei. A psicanálise é uma técnica do corpo na
medida onde, pelo trabalho da fala, desloca este elemento mais de gozar que está presente em
tudo aquilo que o sujeito diz e faz. É esse elemento que vos faz dizer: “Que cara legal”! Ou
então: “Que besta”! “Diz-se isso para designar alguma coisa irredutível no sujeito, algo que lhe
é próprio e que impõe, por isso, - positiva ou negativamente - uma certa quota de gozo singular”.
A psicanálise pois, não trabalha para o gozo. Sua operação incide certamente sobre ele, mas
não é para com ele satisfazer o sujeito, para antes para separá-lo dele pois ela se põe como tarefa
“destacar” a causa do desejo. Concebe-se que isso não se faça tão facilmente, e que em todo
caso isso seja uma prova, uma psicanálise. Tanto que ela não poderia chegar a seu termo sem
um lado ético. Não se pode falar de ética sem implicar a idéia de um querer. Na psicanálise é
aquela do “bem dizer”. O bem dizer somente aí satisfaz, diz Lacan. Mas que é que isso faz,
senão um sujeito dividido para com seu gozo, à contra-fantasma, se posso dizer?
Nada assustador então, que ela tenha efeitos de afeto. O inconsciente afeta o corpo, já o
lembrei. Essa afecção fundamental, Lacan a faz repercutir em Télévision numa teoria renovada
dos afetos, no sentido clássico do termo. Ele situa aí três principais: a angústia, a tristeza e “gay
sçavoir”, aos quais se ajuntam, ainda que em menor relevo, tédio e a morosidade. Estes afetos
não são paixões d’alma como dizia S. Tomás, mas eles se ordenam em relação ao corpo afetado.
Em relação a angústia, há muito tempo Lacan nela reconheceu o afeto que remete ao objeto em
sua iminência ou em sua falta. Quanto a tristeza, ele faz dela, depois de Dante e Espinoza, uma
falta, uma falta moral, uma covardia, oposta a virtude do “gay sçavoir”. Ele não hesita, vejam,
a retomar o vocabulário da ética cristã, subvertendo-o com um novo sentido. Esta tristeza de
falta se compreende, parece-me, se vocês à referem a paixão da ignorância – a mais fundamental
talvez – aquela que justamente contraria o dever de bem dizer. Ela é o correlativo afetivo de
uma vontade de nada saber dos efeitos do inconsciente, enquanto que a psicanálise, pelo
contrário, recomenda de fazer passar ao dizer o gozo que o ser suporta e por este fato o separa.
O analisante criará então, diz Lacan, “uma causa de mais de gozo”. Ele criará uma causa como
se cria uma razão, pois ele terá renunciado a criar uma – de causa – da relação sexual. É diferente
de se fazer uma do significante mestre enquanto este coletiviza. O mais de gozar que causa a
divisão do sujeito não funda as belas e boas causas, é irredutivelmente particular, não é ortodoxo
e nem faz grupo. Digamo-lo, ele próprio se autoriza de si mesmo, não do Outro. Uma questão
daí se deduz referente à instituição psicanalítica, que seria de saber se ela não porta às tendências
centrífugas que ameaçam o laço social. Se é ele o culpado de dispersão, o que opor a sua

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anarquia? É seguro que em geral a instituição não oposta “do pai ao pior”. Quando é a
Internacional, se impõe à evidência de remeter-se a um significante Mestre para aparar ao “cada
um por si” do pior, pagando, aliás, para isso o preço de uma segregação entre os que estão e os
que nela não estão.
Na verdade, do pai ao pior, não há escolha exclusiva se há oposição. Pai e pior podem
andar juntos: dito de outra maneira, significante mestre – eu identifico aqui pai e significante
Mestre – e mais de gozar não são antinômicos. Eles o são tão pouco que dependendo da ocasião,
um leva o outro à potência secundária, e eu volto aos kamikazes, pois voltaram a estar na ordem
do dia. Fazer-se explodir pela causa – e pouco importa se trata-se no momento do poder
mulçumano ou de qualquer outro – isso não é conjugar o significante Mestre e a orgia do gozo?
Ora, os discursos estão numa solidariedade de estrutura que faz do discurso do mestre a
condição do discurso do analista. Daí, este se impõe como antídoto, compensação, a qual o
analista se devota, por vezes sem medir sua incidência política.

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