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of a material symbol depends on context and objetivo traçar parâmetros de compreensão que
the same item may be viewed from different constituam uma proposta interpretativa que
contexts at the same time. Each person caracterize de que forma o trabalho em
brings an individual understanding, a Etnoarqueologia se tem desenvolvido no Brasil
particular coping system to the perception no contexto pós a Ditadura Militar, seus
and use of each artefact. (…) Ambiguity is contornos próprios, seus horizontes, seus
thus a necessary and central part of symbolic enfoques, ou seja, busca caracterizar a
process. Without it, individuals could not, Etnoarqueologia pensada e vivida por pesquisa-
from their different standpoints, agree to dores que merecem o mais profundo respeito,
differ, they could not be competent (or não só da Comunidade Científica mas de toda
incompetent) social actors, and they could a sociedade, por aceitarem o desafio de se
not change the social world by changing the envolverem em contextos sociais, culturais,
material world” (Hodder 1985:14-15). políticos e geográficos muito específicos,
profundamente estranhos aos seus próprios, em
Assim, se um símbolo material qualquer
contato com o “Outro”, em busca de respostas
pode ter diferentes significados em contextos
para seus próprios desafios e para os da Ciên-
diversos, se cada pessoa possui um entendimen-
cia, gerando conhecimento, mas também
to particular de cada artefacto, e se essas
fazendo um tipo de Política que busca conhecer
individualidades estão na base de seu próprio
esse “Outro”, não para colonizá-lo, julgá-lo ou
entendimento e definição em relação ao outro,
alijá-lo, mas que busca em seu conhecimento, o
ao seu próprio posicionamento no interior da
compreender de nossa própria humanidade
sociedade e ao poder de transformação da
tanto em seus aspectos múltiplos quanto em
cultura material e imaterial que cada indivíduo
suas semelhanças.
ou grupo exerce no seio da sociedade, então a
busca pela compreensão dos significados
particulares, desse universo simbólico que Dos resultados da pesquisa
recobre cada produção artefatual humana, está
na base do entendimento da própria sociedade
A partir da análise dos textos escolhidos foi
e de seus registos arqueológicos, da mesma
possível traçar algumas características marcantes
forma que as analogias etnográficas em arqueo-
da Etnoarqueologia brasileira contemporânea.
logia tomam importância na medida em que
Assim, nota-se, como primeiro ponto de
estejam focadas nos contextos subjetivos, nos
caracterização desse campo cientifico no Brasil,
significados, que subjazem o processo de
que este percorre caminhos que, aproximando-
produção material humana, buscando compre-
o com intensidade da Etno-História, busca, por
ender suas particularidades e especificidades.
um lado, reconstituir trajectórias históricas e
Cumpre salientar, entretanto, que a
culturais dos povos indígenas estudados,
classificação do conteúdo das teses aqui
enfatizando suas próprias lógicas culturais, seus
analisadas, segundo a conformidade, ou não,
caminhos e opções; mas, por outro, pondo a
com determinado ponto de análise escolhido,
claro interferências, limitações e transforma-
sobretudo no que diz respeito a interpretação do
ções ocorridas a partir do contacto com a
contexto teórico, Processualista ou Contextualista,
sociedade nacional. Sobre as características da
em que são desenvolvidas as pesquisas, é, em
Etnoarqueologia no Brasil, assim nos fala
última análise, fruto da interpretação particular
Politis:
da autora deste trabalho, podendo não ser
condizente com a interpretação que os autores “Esta tendencia busca entender los
das obras aqui analisadas fazem desse trabalho procesos de continuidad y cambio en
em particular ou de sua produção científica de contextos sociales específicos, mediante el uso
modo geral. A análise dos pontos escolhidos complementario de la información etnográfica.
em sua particular interpretação tem antes por Etnohistórica y arqueológica. De esta
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manera se propone que la continuidad complexa que aquela através das quais manifes-
cultural de la secuencia cronológica desde ta-se nossa própria sociedade, embora seja,
tiempos pre-hispánicos hasta el presente, en naturalmente, profundamente diferente do
base a un “marcado conservatismo” no sólo modo de vida ocidental.
en la organización espacial de las aldeas, A respeito da intensidade dos componentes
sino también en la tecnología cerámica, la histórico-culturais na construção dessas teses,
subsistencia y la localización de los percebe-se maior enfase nesse aspecto ao
asentamientos (…). De alguna manera, este comparar a relação entre o número de páginas
tipo de Etnoarqueología está íntimamente totais do texto em si, e as páginas dedicadas a
ligado a lo que podríamos llamar `historia essa temática. Nota-se que mesmo apesar de
indígena´” (Politis 2002:76) variações significativas entre as teses, no que diz
respeito ao item analisado, a presença da
Percebe-se, então, nessas pesquisas um reconstituição histórica e cultural nessas
propósito de produzir uma lógica de continui- pesquisas, é, de modo geral, bastante forte
dade entre história e produção material, (Quadro 1).
enfatizando os componentes de ordem cultural, Por outro lado, se estes trabalhos buscam
religiosa, e de mentalidade como ativos sempre estabelecer estudos relacionados à
condicionantes da forma como se produz a organização espacial das aldeias, à tecnologia
realidade artefatual por esses povos. Assim, a cerâmica, aos meios de subsistência e à localiza-
história e a cultura dos povos está na raiz das ção de assentamentos, como nos alerta Politis
suas escolhas na produção artefatual e na sua (2002), e se verifica na análise das teses escolhi-
caracterização cultural bem como esses mesmos das para este trabalho, é bem verdade também
artefatos constituem materialização e que esses pesquisadores têm a consciência das
reafirmação de sua própria história e cultura. limitações que enfrentam ao optarem fazer
Dessa forma, há uma nítida e manifesta pesquisas em Etnoarqueologia no Brasil.
preocupação em tornar claro ao leitor que essas Frequentemente citam a falta de estudos mais
sociedades possuem suas próprias lógicas e aprofundados a respeito dos povos indígenas
histórias que não são em nada inferiores às da no território brasileiro como uma das dificulda-
sociedade nacional, mas, ao contrário, que por des enfrentadas na execução de seus trabalhos e
detrás dos objetos que produzem, e da sua como uma perspectiva não só a ser alcançada
forma de interferirem no meio circundante, há por seus próprios estudos, mas também como
uma riqueza cultural e uma complexidade objectivo de todos os pesquisadores dessa
cognitiva e significativa em nada menos mesma temática no Brasil (Tabela 1).
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Tabela 1
Temas de pesquisa e sua distribuição
Análise de
Padrão de Análise de Estratégias de
material Grafismos
assentamento cestaria subsistência
cerâmico
1 Sem Tekoha não há Teko
X X
(em busca de um modelo [...])
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X X
sertão paulista: Um estudo[...]
Neste ponto, é possível assinalar uma de sua identidade, sua importância e seus
segunda característica marcante das pesquisas direitos no interior da comunidade nacional.
em Etnoarqueologia no Brasil: a preferência Entretanto, da mesma forma são de imensa
pelos temas dos povos nativos indígenas. A importância para a própria Arqueologia de
totalidade dos trabalhos aqui estudados focam modo geral.
seus estudos em aspectos da cultura material de Entrar em contato com povos que ainda
povos indígenas brasileiros. hoje vivem sob lógicas sociais e culturais, em
Tal preferência justifica-se pelos mais grande parte diversas da cultura homogeneizante
variados motivos, desde motivações de cunho da sociedade Ocidental, cada vez mais globalizada,
pessoal, trabalhos de outros pesquisadores que é ter a oportunidade de estabelecer critérios
despertaram interesse pelo tema, contato com comparativos a respeito da relação entre o
tribos indígenas, interesse em conhecer esses homem e o seu meio circundante, do universo
povos mais profundamente, até questões de ideológico que envolve tal relação e das lógicas
ordem científica, como carência de informa- inerentes aos processos de produção artefatual
ções e pesquisas a respeito de determinado humana que ampliem o campo de visão do
povo ou mesmo questões de cunho político e arqueólogo e que possam propor novas aborda-
social, como a urgência em estudar determina- gens interpretativas do tempo/espaço que
das regiões ou povos a serem perturbados por estudam, novas analogias ampliadoras dos
empreendimentos de infraestrutura a serem múltiplos sentidos, finalidades e funcionalida-
erigidos em seus locais tradicionais de vivência. des dessa produção material.
O fato é que parece evidente que o poder Por outro lado, é possível perceber ainda,
analógico da Etnoarqueologia indígena nativa é como uma terceira característica da
de importância fundamental não só para a Etnoarqueologia brasileira, a tendência de
sociedade brasileira, em seu processo de enquadramento teórico dentro dos horizontes
autoconhecimento, a partir dos povos e etnias científicos do Pós-Processualismo. Muito
que a constituem, mas também para os própri- embora as discussões de ordem teórica, algumas
os povos estudados, através da visibilidade e do vezes, não apareçam claramente definidas nos
poder de penetração desses estudos na reafirmação textos, quer em relação às diversas visões
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Tabela 2
Enquadramento teórico
Processualista Contextualista Não Definido
1 Sem Tekoha não há Teko
X
(em busca de um modelo [...])
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]
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não total abrangência de trabalhos de campo Por outro lado, a análise dos trabalhos em
feitos efetivamente para o estudo e sob as Etnologia realizados a respeito dos povos cuja
perspectivas da Etnoarqueologia, ou seja, Etnoarqueologia procura-se construir, pode
pesquisas de cunho etnográfico, realizadas sob descrever-nos a cor da vivência desenvolvida
o enfoque teórico Arqueológico, visando por este povo em relação a si próprio e ao meio
observar, compreender e descrever as tramas no qual se insere. Pode esclarecer a respeito de
nas quais se envolve todo o processo de produ- suas crenças, festas, rituais, condicionantes
ção artefatual dos povos a serem pesquisados. sociais, relações de poder e muitos outros
Nota-se que, embora a maioria das pesqui- aspectos, mas raramente o etnólogo tem seu
sas analisadas neste estudo tenham recorrido a olhar voltado para os processos que culminam
trabalho de campo, alguns trabalhos não em produção material, efectivamente. Se é
contaram com esse importante recurso em sua possível, e mesmo certo, que a produção
elaboração, sendo realizados tendo como artefatual desses povos apareça em meio aos
referenciais escavações arqueológicas, ou aspectos analisados nesses trabalhos, este não é
documentos a esse respeito, e pesquisas em o foco de estudo desses pesquisadores, que têm
trabalhos de Etnologia e História Indígena, seu olhar voltado para outras relações e
somente (Tabela 3). aspectos, e tais descrições têm pouca possibili-
Este é por si um dado preocupante porque, dade de constituírem material para analogias
se os documentos provenientes de escavações arqueológicas com a mesma profundidade e
arqueológicas podem fornecer informações a riqueza com que uma descrição etnográfica
respeitos dos artefatos produzidos por esses voltada efectivamente para os processos que
povos, não é possível visualizar os atores a envolvem a produção artefactual desses povos.
produzi-los, seus discursos, seus condicionantes Assim, por um lado se sabe das dificulda-
sociais e culturais, todo o processo que envolve des que envolvem um trabalho de campo a ser
o fazer, o fabricar, o pensar acerca desses realizado em comunidades indígenas nativas: as
artefatos e as múltiplas relações existentes entre enormes distâncias físicas que, às vezes, sepa-
as condicionantes ecológicas e ideacionais que ram o pesquisador dessas comunidades, a
envolvem todo esse processo. acessibilidade a elas, quer seja em âmbito local,
Tabela 3
Recurso ao trabalho de campo
Etnoarqueológico Arqueológico Inexistente
1 Sem Tekoha não há Teko
X
(em busca de um modelo [...])*
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]
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em relação a própria comunidade, quer seja em na maioria deles há grandes dúvidas a respeito
âmbito Estatal, os abismos culturais e linguísticos desses pontos.
que podem separar o Etnoarqueólogo e o povo Os dados a respeito da amostragem do grupo
a ser estudado, ou até mesmo limitações em escolhido para a pesquisa, as estratégias, o
relação aos financiamentos necessários para número de povoações, famílias ou indivíduos, a
suprir despesas de deslocação e permanência do sua representação de classes, posições sociais,
cientista na área onde inserem-se essas comuni- status, papéis ou géneros, da utilização de
dades. Mas sabe-se também da importância do assistentes, as qualificações e relacionamento
trabalho de campo no desenvolvimento de uma desses com os informantes da comunidade
pesquisa em Etnoarqueologia, um desafio que estudada, bem como conhecimentos do investiga-
está mesmo na origem dessa própria sub- dor, incluindo seus conhecimentos culturais
disciplina: a busca de analogias advindas de acerca do grupo a ser pesquisado e da sua língua.
trabalhos Etnográficos realizados sob uma Raramente essas questões aparecem explicitados
perspectiva Arqueológica. nos textos, enquanto as condições de financia-
Entretanto, por outro lado, não basta que mento e a duração do trabalho de campo, embora
esses trabalhos de campo sejam realizados pelo apareça nos textos, nem sempre são descritas com
Etnoarqueólogo, é preciso que o seu desenvolvi- a clareza e com o destaque que mereceriam.
mento seja rigorosamente descrito e que seja Assim, na análise das pesquisas, podemos
possível “ouvir” no decorrer da leitura do perceber, em parte, suas carências quanto aos
trabalho, os atores a tecerem seus próprios aspectos aqui relacionados. Muito embora os
discursos explicativos acerca do que fazem, de dados estudados só contemplem os itens que
como fazem e de porque fazem seus artefatos, constam ou não dos trabalhos, excluindo seu
de suas opções, de seus condicionantes, de seus grau de clareza, nota-se a falta de atenção dada
próprios motivos e visões a respeito dessa a tais questões (Tabela 4).
produção. É preciso também que se possa Já quanto a descrição do trabalho de
“visualizar” aquilo que o Etnoarqueólogo campo, esta aparece, muitas vezes, confundida
assistiu em seu trabalho de campo, perceber com as interpretações do próprio autor ou de
quando, em que circunstâncias, sob que outros, utilizados como fontes de pesquisa, a
condições, por quem e por que, as atividades respeito dos aspectos analisados no texto. Em
produtivas foram realizadas, deixando claro ao raros trabalhos há uma perfeita clareza com
leitor o que é descrição e o que é interpretação relação às partes do texto que constituem
do pesquisador durante o trabalho de campo. descrição de acções observadas ou discursos
Por fim, também é preciso conhecer esses proferidos pelos informantes ou assistentes que
atores, quem são, a que posições sociais auxiliaram a execução da pesquisa, com devida
pertencem, o tipo de relação que estabeleceram definição dos atores, e dos contextos que
com o pesquisador, que têm com a produção envolvem tais ações ou discursos, ou com a
artefatual de seu povo, e claro, as relações do transcrição literal de declarações, histórias,
próprio pesquisador com esse povo, os motivos diálogos, devidamente identificados e
que o levaram a pesquisá-lo, seu envolvimento contextualizados no texto.
pessoal, seus conhecimentos acerca dele. Tal preocupação é, entretanto, essencial para
Em torno de tal temática é que se insere que o leitor possa, dessa forma, “visualizar” e
uma quinta característica da Etnoarqueologia “ouvir” os atores, e possa perceber não só em
brasileira, apreendida a partir dos textos aqui que ponto começa a interpretação do pesquisa-
analisados: a falta de clareza a respeito dos dor acerca do que viu e ouviu, mas também os
Métodos Etnográficos e da descrição dos condicionantes que envolvem essas descrições e
trabalhos de campo realizados pelos pesquisa- declarações.
dores. Muito embora em alguns poucos Assim, é possível não só dar ao leitor a
trabalhos tais aspectos e procedimentos oportunidade de tecer suas próprias interpreta-
estejam claramente descritos e identificados, ções tendo como base as descrições e declara-
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Tabela 4
Definição do trabalho de campo
Informação sobre a Dados sobre a Informações Dados sobre o
duração do amostragem do sobre língua do financiamen-
trabalho de campo grupo estudado povo estudado to da pesquisa
1 Sem Tekoha não há Teko
(em busca de um modelo [...])*
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço em
X X
duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]
ções obtidas em campo, como também perce- desse campo científico no Brasil, uma vez que a
ber, de forma mais clara as percepções e ciência é feita por um grupo específico com
interpretações obtidas pelo pesquisador a partir lógicas próprias; mas que é, por sua vez,
de tais dados. Além disso, passa a ser possível formada por pessoas singulares, com visões
ponderar as circunstâncias nas quais se inserem particularmente únicas da ciência e do mundo.
as ações descritas e as declarações obtidas, bem Princípio que se aplica não só aos investigado-
como perceber em que posição social se res, mas também àqueles que lêem seus escritos
incluem, de forma a gerar dados mais específi- e os interpretam, não significando críticas à
cos, com maior poder interpretativo em relação forma como tal campo científico se desenvolve
às analogias que podem daí surgir. nesse país, tão somente procura caracterizar a
É evidente, entretanto, que tais ausências Etnoarqueologia aqui praticada,dentro das
não inviabilizam o poder explicativo dos proces- possibilidades e opções nas quais se insere não
sos produtivos que constituem objetivos dessas só a Arqueologia, mas toda a sociedade brasilei-
pesquisas e que caracterizam somente a opção ra contemporânea.
por uma perspectiva descritiva mais próxima do
discurso histórico que propriamente etnográfico
ou arqueológico, o que talvez se explica pelo Conclusões: Horizontes científico-sociais da
próprio cariz da arqueologia relacionada com os etnoarqueologia no Brasil (ou da necessidade
grupos indígenas no Brasil, globalizante, buscan- de convertibilidade do outro)
do reconstruir uma trajetória cultural e ecológica
desses povos num tempo/espaço entrecortado Joaquin Herrera Flores, em seu artigo
pela colonização européia da América e pelo intitulado “Colonialismo y violencia. Bases para
surgimento da nação brasileira. una reflexión pos-colonial desde los derechos huma-
Por fim há que se destacar que as ausências nos” (2006), nos alerta acerca da empresa
e permanências no fazer científico da colonizadora Ocidental e de seu método de
Etnoarqueologia brasileira aqui discutidos, não ação em relação aos povos com os quais entra
só não abarcam a totalidade das características em contacto.
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históricas e culturais e para o discutir de suas Acerca disso, fala-nos Solange Schiavetto,
lógicas, visões de mundo e reivindicações. em seu livro “A arqueologia Guarani. Construção e
Em particular, destaca-se a importância das desconstrução da identidade indígena”:
comunidades Quilombolas no alertar para o
“Não se trata de simplesmente
reescrever de uma história que não aponta
desvincular cultura material e grupos
somente para a dominação e a escravidão de
étnicos, dizendo, por exemplo, que os
povos africanos no Brasil, mas também para
Guarani pré-históricos nada têm a ver
formas de luta e de resistência, na tentativa de
com os Guarani conhecidos ou com os
preservação de um modo de vida alternativo às
atuais (…) Tratar-se, ao contrário, de
imposições das elites dominantes.
aceitar a possibilidade de os grupos
Por outro lado, a análise de Joaquín
étnicos serem vistos como entidades
Herrera Flores acerca de nossa visão cultural
homogénea sobre nós mesmos e sobre os dotadas de um carácter situacional e
outros, incapaz de ver os multiculturalismos fluido, repensando as tradições e
presentes em qualquer comunidade humana e subtradições utilizadas na arqueologia
cegos tanto para os nossos defeitos quanto para até o momento” (Schiavetto 2003:101).
as qualidades do “outro” no conviver com Ora, tal questão não abarca somente a
grupos culturais diferentes, toma uma dimen- Cultura Guarani, mas todas as culturas estuda-
são importante em duas vertentes. das cientificamente, bem como a Cultura
Em termos de posicionamento ético, que daqueles que as estudam, e é preciso que
não só desafia cientistas de todas as áreas, mas tenhamos o cuidado de perceber tais questões,
toda a sociedade, a desenvolver um olhar mesmo que elas nos levem a repensar os
polissémico acerca do “outro”, que seja capaz, objetivos de nossos trabalhos, a buscar novas
não só de relativizar nossos próprios princípios vias e novos questionamentos, que nos levem a
e visões acerca do mundo – de perceber que ampliar os olhares e os horizontes dos estudos
não são os únicos possíveis, e que não são que se referem a grupos étnicos em todas as
homogéneos, mesmo no interior da nossa partes do mundo, e em especial, no Brasil.
sociedade – mas também de perceber que os Trata-se de abordar, nos estudos étnicos,
modos de viver diferentes das outras socieda- entre os quais os Etnoarqueológicos, a fluídez
des, não significam que essas sejam inferiores, de todas as culturas, sua não homogeneidade –
exóticas ou desprezíveis, mas que são outras quer interna, quer histórica – e ver a cultura
visões, igualmente válidas e com valor equiparável sob uma perspectiva mais humanizada, mais
às nossas próprias, e que, para além disso, essas atenta a própria natureza humana em seu viés
outras sociedades também não são, elas auto-transformador e por isso mesmo também
próprias, homogéneas, e que há diferenças no transformador do ambiente – quer físico, quer
interior de todos os grupos humanos. social – no qual se insere. Acerca disso ainda
Em termos de posicionamento científico, nos fala Schiavetto:
oferece ao Etnoarqueólogo um desafio e uma
importante crítica: é preciso estar atento para o “Ao definir uma “cultura arqueológi-
fato de que o seu trabalho não deve servir de ca” com base nos traços materiais das
substrato para esse tipo de homogeneização sociedades indígenas, cria-se por meio
cultural e que o olhar desse cientista deve estar da delimitação conceitual, categorias
sempre preparado para observar os povos que imutáveis, seguindo padrões de vida
estuda, não só pela perspectiva das tipologias, social (assentamento, religião, adaptação
dos fósseis-diretores, enfim, das semelhanças e ao meio, confecção de cultura material)
permanências; mas também para perceber as cujas variantes culturais acabam por ser
culturas que estuda, como elementos que são “mascaradas pela busca de uma grande
compostos de pluralidades e que se transfor- nação guarani” (…) Dessa forma, o
mam no tempo. guarani foi, no decorrer da história do
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POLONI, R.J.S. The Ethnoarchaeology in Brazil: science and society in the context of
the re-democratization. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19:
87-102, 2009.
Referências bibliográficas
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