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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 87-102, 2009.

A Etnoarqueologia no Brasil: ciência e sociedade


no contexto da redemocratização

Rita Juliana Soares Poloni*

POLONI, R.J.S. A Etnoarqueologia no Brasil: ciência e sociedade no contexto


da redemocratização. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
19: 87-102, 2009.

Resumo: O presente trabalho buscou investigar as perspectivas


teórico-metodológicas empregadas em trabalhos em Etnoarqueologia,
publicados no Brasil a partir da década de 1980. Para tanto foram analisadas
teses e dissertações com o objectivo de delas extrair as metodologias
empregadas e o campo teórico que as embasa, bem como de construir um
quadro representativo da actuação deste campo científico no Brasil.
Percebeu-se o forte embasamento histórico e político dessas pesquisas
bem como sua preferência por abordagens metodológicas e técnicas mais
generalistas na análise dos seus objetos de estudo.

Palavras-chave: Etnoarqueologia – Arqueologia – Teoria – Métodos –


Sociedade – Brasil.

Introdução Abordar um tema que se insere no


contexto científico e social brasileiro é por

E ste artigo tem por objectivos a investi


gação das perspectivas teórico-
metodológicas de alguns textos científicos em
um lado um grande desafio, e por outro,
uma interessante oportunidade de pensar
questões quotidianas de uma nova maneira.
Etnoarqueologia, publicados no Brasil, a partir Por outro lado, investigar as relações entre
da década de 1980, bem como de suas implica- ciência e sociedade, ou ainda, as imbricações
ções sócio-políticas, levando necessariamente à entre as diversas abordagens da Etnoarqueologia
expectativa da construção de um quadro e os objetivos científicos da Arqueologia de
teórico que, sendo estritamente relacionado modo geral, é uma forma de compreender
com as concepções – explicitas ou não – desta não só os horizontes teórico-metodológicos
ciência, presentes nas pesquisas a serem desse campo científico no contexto sócio-
analisadas, teve por objectivo caracterizar este político brasileiro, mas também uma forma
campo científico no contexto do Brasil Con- de buscar ampliar o conhecimento acerca
temporâneo. das relações entre diversas perspectivas de
uma mesma ciência ou desta com
condicionantes sociais e políticos do
(*) Universidade do Algarve, Portugal. contexto no qual seus pesquisadores se
<julianapoloni@hotmail.com> inserem.

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Da definição do tema “indígenas”1 vivas, para daí inferirem conhe-


cimentos de cunho arqueológico, que relacio-
Ao tentar compreender a relação existen- nem a produção artefactual aos diversos
te entre a produção artefatual humana e o contextos nos quais são produzidos.
meio no qual determinada comunidade se Neste ponto o Brasil torna-se um país de
insere ou a relação existente entre esta grande interesse para esse campo de estudo. Por
produção e a geração de conhecimento, possuir, dentro de seu território, centenas de
significado, identidade ou poder para tais comunidades indígenas a viverem em maior ou
comunidades, o trabalho do arqueólogo está menor grau de isolamento em relação à cultura
sempre em alguma medida ligado à analogia. Ocidental, este país se apresenta como potenci-
Como tentar compreender o significado ou al área de interesse para essa disciplina.
função de determinado artefacto sem haver Por outro lado, como a Etnoarqueologia
alguma correlação entre este e outros já mergulha no estudo de grupos étnicos (em sua
conhecidos? Ou, como tentar apreender a relação com a produção material humana), se
importância destes artefactos para as suas vê participante na trama político-social que
comunidades produtoras e/ou consumidoras, envolve tal temática nas sociedades contempo-
ou o contexto social e ideológico nos quais râneas, ou seja, na importância das etnias na
esses mesmos artefactos são produzidos, construção, conservação, e transformação das
reproduzidos, valorizados e divulgados, sem ideias de Nação e na implicância que estas têm
haver nenhuma referência, por menos na discussão da relação dominantes/domina-
generalizável que seja, de contextos em dos, colocando tais estudos em situações
alguma medida semelhantes? diversas de abrangência, enfoque, ou liberdade
É neste ponto que a Etnoarqueologia toma de acção, mediante a situação político-social dos
importância num cenário científico que se abre países nos quais essas pesquisas se desenvolvem.
às possibilidades de conhecer comunidades Em relação a esse contexto, o Brasil é uma
humanas que vivem – ou que já viveram – sob Nação que tem a questão étnica como compo-
contextos sociais e ecológicos largamente nente ideológica de entendimento de sua
diversos do modo de vida Ocidental, criando própria identidade. Fortemente marcada pela
analogias que sirvam não só para o conheci- presença das etnias indígenas, africanas e
mento arqueológico destes próprios povos europeias, esta Nação se vê, desde os tempos
como de outros a respeito dos quais, possam coloniais, chamada a dialogar com estes
servir em alguma medida, de parâmetro universos culturais, e o faz, no decorrer do
comparativo. tempo, sob diferentes perspectivas.
Definida como uma subdisciplina da Particularmente, a partir da década de
Arqueologia, a Etnoarqueologia tem como 1980, quando o Brasil passa a mergulhar no
campo de estudo: contexto da redemocratização pós Ditadura
Militar (1964-1985) tais questões passam a
“(…) la producción, tipología, tomar um novo fôlego e a ser amplamente
distribución, consumo, y descarte de la (re)discutidas não só em âmbito científico, mas
cultura material, con especial referencia também nas esferas políticas e sociais desse país.
a los mecanismos que relacionan Torna-se, então, interessante questionar de
variabilidad y la variación al contexto que forma a Etnoarqueologia, enquanto campo
sociocultural y a la inferencia de los
mecanismos de procesos del cambio
cultura.” (Politis 2002: 68).
(1) Indígena – Termo originário da palavra latina
É esta preocupação com a relação Indigenae – (indu – reforço de in – geno). Adj. Indígena,
do país. Subs. M . indígena, natural do país (Ferreira1996),
existente entre produção material e contexto
ou ainda: Que é originário de determinado país, região ou
sociocultural que leva os Etnoarqueólogos a lugar; ABORÍGINE; NATIVO [Antôn.: alienígena]
se dedicarem ao estudo de comunidades (Aulete; Valente 2007)

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teórico-metodológico da Arqueologia, é Evidentemente, estes trabalhos não


recebida pelo universo científico brasileiro a representam a totalidade daqueles escritos
partir da década de 1980, período em que se dá dentro dos horizontes teóricos desse campo
a redemocratização do Brasil e que se ampliam científico, e nem foi objetivo desta pesquisa
no país as discussões a respeito dos princípios pretender uma abrangência total desses traba-
da Escola Processualista e Contextualista, que lhos durante o período proposto, mas, sendo
estão nas raízes da Etnoarqueologia como um trabalho qualitativo, buscou através da
campo científico, tanto em âmbito nacional análise da amostra escolhida tentar traçar alguns
quanto internacional. encaminhamentos teóricos e metodológicos da
Da mesma forma, torna-se igualmente Etnoarqueologia brasileira nas últimas décadas.
importante acompanhar como esta abordagem Como forma de interpretação das teses e
arqueológica tem tomado dimensão social e dissertações escolhidas, foram utilizados alguns
política na actualidade, ou seja, como tal marcadores ou questões, que serviram de
universo teórico-científico imbrica-se com as orientadores de análise desses trabalhos, ou seja,
questões étnico-sociais que suscita e sua definiram os conteúdos a serem pesquisados no
penetração no seio da sociedade como instru- texto, buscando equiparar os objetos de estudo
mento de questionamentos a respeito do tema. na totalidade das pesquisas estudadas, a fim de
estabelecer comparações entre essas pesquisas, a
respeito das presenças e ausências de enfoque
Dos objetos de estudo nos tópicos escolhidos.
Parte desses marcadores ou questões foram
Como objeto desta pesquisa foram escolhi- extraídos do livro “Ethnoarchaeology in Action”
das sete teses científicas, sendo quatro de (David & Kramer 2001:70), particularmente do
Mestrado e três de Doutorado, escritas entre os terceiro capítulo desse livro, intitulado “Fieldwork
anos de 1993 até 2007. São elas, respectivamen- and Ethics”, e dizem respeito aos aspectos
te, Sem Tekohá não há Tekó: Em Busca de um metodológicos e técnicos do trabalho em
Modelo Etnoarqueológico da Aldeia e da Subsistên- Etnoarqueologia considerados como necessári-
cia Guarani e sua Aplicação a uma Área de os para o desenvolvimento de pesquisas dentro
Domínio no Delta do Rio Jacuí-RS (1993), A desse campo teórico, e que, portanto, deveriam
Produção Cerâmica como Reafirmação de Identida- estar claramente definidos nesses trabalhos.
de Étnica Maxakali: Um Estudo Etnoarqueológico Tais tópicos são assim identificados:
(1999), Cenários da Ocupação Guarani na Calha
do Alto Paraná: um Estudo Etnoarqueológico Contexto da pesquisa
(2001), Organização e Uso do Espaço em duas
Aldeias Xerente: Uma Abordagem Etnoarqueológica 1- Localização e contexto histórico e
(2003), A Tecnologia e seus Significados. Um cultural do grupo estudado.
Estudo da Cerâmica dos Asuriní do Xingu e da Contexto político da pesquisa, incluindo
Cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma Perspectiva situação do pesquisador, condições de financia-
Etnoarqueológica (2000), Etnoarqueologia dos mento e duração do trabalho de campo.
Grafismos Kaigang: Um Modelo para a Compreen- Conhecimentos do investigador, incluindo
são das Sociedades Proto-Jê Meridionais (2001) e Os competências linguísticas, do grupo a ser
caçadores Ceramistas do Sertão Paulista: Um pesquisado e da sua linguagem.
Estudo Etnoarqueológico da Ocupação Kaingang no
Vale do Rio Feio/Aguapeí (2007). A escolha Métodos etnográficos e técnicas
destas pesquisas se deu conforme critérios de
visibilidade quanto à sua divulgação científica, 1- Amostragem do grupo
e clara manifestação de enquadramento dentro a) Estratégias
dos universos teóricos e metodológicos da Número de povoações, famílias ou
Etnoarqueologia. indivíduos

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b) Representação de classes, posições Dentro da perspectiva de análise aqui


sociais, status, papéis ou géneros explicitada, procura-se compreender o conceito
de Processualismo dentro do universo de
2- Métodos de Pesquisa análise dinâmica da produção material humana
a) Observação Participante segundo o que preconiza Binford, ou seja:
Entrevistas
“The behavioral model recognizes that
Questionários
behavior is the dynamics of adaptation.
Outras, incluindo reconstituições e
People draw upon a repertoire of cultural
experiências
background and experience to meet changing
or variable conditions in their environments,
3- Assistentes (remunerados) both social and physical. Our expectations,
a) Qualificações e relacionamento com os then, are for variability in the archaeological
informantes. record to reflect a variety of different kinds of
coping situations. Activities will vary with
4- Informantes the particular adaptive situation of the group
a) Categorias e formas de recompensas. and the character of tasks being performed.
We would therefore expect variability in the
5- Registos archaeological record to reflect these different
a) Materiais escritos, fotografias, registos situations” (Binford 1978:3).
visuais e sonoros, materiais etnográficos, e
outras amostras de material, com informações Assim, para compreender as diferenças
sobre localização e acesso. presentes nos registos arqueológicos é preciso
compreender as complexidades do meio no
A esses tópicos foram acrescentados qual foram gerados, e como esse meio funciona
mais alguns, de minha própria elaboração, como um sistema a busca por novas experiênci-
concernentes aos aspectos teóricos dos as e conhecimentos que aperfeiçoem nossos
trabalhos analisados e que buscaram, além instrumentos de apreensão e de descrição da
de tentar perceber as preferências teóricas realidade, como por exemplo, o trabalho
desses trabalhos, detectar o grau de explicitação etnoarqueológico, são necessários. Essas
e de importância dada a esses aspectos experiências constituirão uma ponte entre a
nessas pesquisas. São eles: produção artefatual humana e os contextos
comportamentais e ecológicos nos quais essa
produção foi gerada. Dessa forma, a abordagem
Contexto teórico
Processualista da Etnoarqueologia buscará,
1- Opções teóricas da Pesquisa através dos registos etnográficos recolhidos pelo
a) Processualismo arqueólogo, evidenciar regularidades interculturais
b) Contextualismo que possam auxiliar na reconstrução do
c) Ambos universos teóricos passado arqueológico humano e buscar cons-
c) Outros universos teóricos tantes nos processos de transformações cultu-
d) Indefinida rais (David & Kramer 2002:23).
Por outro lado, o conceito de Contextualismo
2- Grau de Explicitação Teórica é analisado segundo a definição de Hodder do
a) Explicitação Directa que seja a busca de significado para a produção
b) Explicitação Indirecta artefatual humana, ou seja,
“The practical meaning of an item of
3- Referências Teóricas material culture varies according to the
a) Referências directas context in which it is used although (…) the
b) Referências indirectas use of an item in one context is not independent
c) Ausência de referências of its use in others. (…) The evocative effect

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of a material symbol depends on context and objetivo traçar parâmetros de compreensão que
the same item may be viewed from different constituam uma proposta interpretativa que
contexts at the same time. Each person caracterize de que forma o trabalho em
brings an individual understanding, a Etnoarqueologia se tem desenvolvido no Brasil
particular coping system to the perception no contexto pós a Ditadura Militar, seus
and use of each artefact. (…) Ambiguity is contornos próprios, seus horizontes, seus
thus a necessary and central part of symbolic enfoques, ou seja, busca caracterizar a
process. Without it, individuals could not, Etnoarqueologia pensada e vivida por pesquisa-
from their different standpoints, agree to dores que merecem o mais profundo respeito,
differ, they could not be competent (or não só da Comunidade Científica mas de toda
incompetent) social actors, and they could a sociedade, por aceitarem o desafio de se
not change the social world by changing the envolverem em contextos sociais, culturais,
material world” (Hodder 1985:14-15). políticos e geográficos muito específicos,
profundamente estranhos aos seus próprios, em
Assim, se um símbolo material qualquer
contato com o “Outro”, em busca de respostas
pode ter diferentes significados em contextos
para seus próprios desafios e para os da Ciên-
diversos, se cada pessoa possui um entendimen-
cia, gerando conhecimento, mas também
to particular de cada artefacto, e se essas
fazendo um tipo de Política que busca conhecer
individualidades estão na base de seu próprio
esse “Outro”, não para colonizá-lo, julgá-lo ou
entendimento e definição em relação ao outro,
alijá-lo, mas que busca em seu conhecimento, o
ao seu próprio posicionamento no interior da
compreender de nossa própria humanidade
sociedade e ao poder de transformação da
tanto em seus aspectos múltiplos quanto em
cultura material e imaterial que cada indivíduo
suas semelhanças.
ou grupo exerce no seio da sociedade, então a
busca pela compreensão dos significados
particulares, desse universo simbólico que Dos resultados da pesquisa
recobre cada produção artefatual humana, está
na base do entendimento da própria sociedade
A partir da análise dos textos escolhidos foi
e de seus registos arqueológicos, da mesma
possível traçar algumas características marcantes
forma que as analogias etnográficas em arqueo-
da Etnoarqueologia brasileira contemporânea.
logia tomam importância na medida em que
Assim, nota-se, como primeiro ponto de
estejam focadas nos contextos subjetivos, nos
caracterização desse campo cientifico no Brasil,
significados, que subjazem o processo de
que este percorre caminhos que, aproximando-
produção material humana, buscando compre-
o com intensidade da Etno-História, busca, por
ender suas particularidades e especificidades.
um lado, reconstituir trajectórias históricas e
Cumpre salientar, entretanto, que a
culturais dos povos indígenas estudados,
classificação do conteúdo das teses aqui
enfatizando suas próprias lógicas culturais, seus
analisadas, segundo a conformidade, ou não,
caminhos e opções; mas, por outro, pondo a
com determinado ponto de análise escolhido,
claro interferências, limitações e transforma-
sobretudo no que diz respeito a interpretação do
ções ocorridas a partir do contacto com a
contexto teórico, Processualista ou Contextualista,
sociedade nacional. Sobre as características da
em que são desenvolvidas as pesquisas, é, em
Etnoarqueologia no Brasil, assim nos fala
última análise, fruto da interpretação particular
Politis:
da autora deste trabalho, podendo não ser
condizente com a interpretação que os autores “Esta tendencia busca entender los
das obras aqui analisadas fazem desse trabalho procesos de continuidad y cambio en
em particular ou de sua produção científica de contextos sociales específicos, mediante el uso
modo geral. A análise dos pontos escolhidos complementario de la información etnográfica.
em sua particular interpretação tem antes por Etnohistórica y arqueológica. De esta

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manera se propone que la continuidad complexa que aquela através das quais manifes-
cultural de la secuencia cronológica desde ta-se nossa própria sociedade, embora seja,
tiempos pre-hispánicos hasta el presente, en naturalmente, profundamente diferente do
base a un “marcado conservatismo” no sólo modo de vida ocidental.
en la organización espacial de las aldeas, A respeito da intensidade dos componentes
sino también en la tecnología cerámica, la histórico-culturais na construção dessas teses,
subsistencia y la localización de los percebe-se maior enfase nesse aspecto ao
asentamientos (…). De alguna manera, este comparar a relação entre o número de páginas
tipo de Etnoarqueología está íntimamente totais do texto em si, e as páginas dedicadas a
ligado a lo que podríamos llamar `historia essa temática. Nota-se que mesmo apesar de
indígena´” (Politis 2002:76) variações significativas entre as teses, no que diz
respeito ao item analisado, a presença da
Percebe-se, então, nessas pesquisas um reconstituição histórica e cultural nessas
propósito de produzir uma lógica de continui- pesquisas, é, de modo geral, bastante forte
dade entre história e produção material, (Quadro 1).
enfatizando os componentes de ordem cultural, Por outro lado, se estes trabalhos buscam
religiosa, e de mentalidade como ativos sempre estabelecer estudos relacionados à
condicionantes da forma como se produz a organização espacial das aldeias, à tecnologia
realidade artefatual por esses povos. Assim, a cerâmica, aos meios de subsistência e à localiza-
história e a cultura dos povos está na raiz das ção de assentamentos, como nos alerta Politis
suas escolhas na produção artefatual e na sua (2002), e se verifica na análise das teses escolhi-
caracterização cultural bem como esses mesmos das para este trabalho, é bem verdade também
artefatos constituem materialização e que esses pesquisadores têm a consciência das
reafirmação de sua própria história e cultura. limitações que enfrentam ao optarem fazer
Dessa forma, há uma nítida e manifesta pesquisas em Etnoarqueologia no Brasil.
preocupação em tornar claro ao leitor que essas Frequentemente citam a falta de estudos mais
sociedades possuem suas próprias lógicas e aprofundados a respeito dos povos indígenas
histórias que não são em nada inferiores às da no território brasileiro como uma das dificulda-
sociedade nacional, mas, ao contrário, que por des enfrentadas na execução de seus trabalhos e
detrás dos objetos que produzem, e da sua como uma perspectiva não só a ser alcançada
forma de interferirem no meio circundante, há por seus próprios estudos, mas também como
uma riqueza cultural e uma complexidade objectivo de todos os pesquisadores dessa
cognitiva e significativa em nada menos mesma temática no Brasil (Tabela 1).

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Tabela 1
Temas de pesquisa e sua distribuição
Análise de
Padrão de Análise de Estratégias de
material Grafismos
assentamento cestaria subsistência
cerâmico
1 Sem Tekoha não há Teko
X X
(em busca de um modelo [...])
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X X
sertão paulista: Um estudo[...]

Neste ponto, é possível assinalar uma de sua identidade, sua importância e seus
segunda característica marcante das pesquisas direitos no interior da comunidade nacional.
em Etnoarqueologia no Brasil: a preferência Entretanto, da mesma forma são de imensa
pelos temas dos povos nativos indígenas. A importância para a própria Arqueologia de
totalidade dos trabalhos aqui estudados focam modo geral.
seus estudos em aspectos da cultura material de Entrar em contato com povos que ainda
povos indígenas brasileiros. hoje vivem sob lógicas sociais e culturais, em
Tal preferência justifica-se pelos mais grande parte diversas da cultura homogeneizante
variados motivos, desde motivações de cunho da sociedade Ocidental, cada vez mais globalizada,
pessoal, trabalhos de outros pesquisadores que é ter a oportunidade de estabelecer critérios
despertaram interesse pelo tema, contato com comparativos a respeito da relação entre o
tribos indígenas, interesse em conhecer esses homem e o seu meio circundante, do universo
povos mais profundamente, até questões de ideológico que envolve tal relação e das lógicas
ordem científica, como carência de informa- inerentes aos processos de produção artefatual
ções e pesquisas a respeito de determinado humana que ampliem o campo de visão do
povo ou mesmo questões de cunho político e arqueólogo e que possam propor novas aborda-
social, como a urgência em estudar determina- gens interpretativas do tempo/espaço que
das regiões ou povos a serem perturbados por estudam, novas analogias ampliadoras dos
empreendimentos de infraestrutura a serem múltiplos sentidos, finalidades e funcionalida-
erigidos em seus locais tradicionais de vivência. des dessa produção material.
O fato é que parece evidente que o poder Por outro lado, é possível perceber ainda,
analógico da Etnoarqueologia indígena nativa é como uma terceira característica da
de importância fundamental não só para a Etnoarqueologia brasileira, a tendência de
sociedade brasileira, em seu processo de enquadramento teórico dentro dos horizontes
autoconhecimento, a partir dos povos e etnias científicos do Pós-Processualismo. Muito
que a constituem, mas também para os própri- embora as discussões de ordem teórica, algumas
os povos estudados, através da visibilidade e do vezes, não apareçam claramente definidas nos
poder de penetração desses estudos na reafirmação textos, quer em relação às diversas visões

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teóricas da Arqueologia, quer em relação aos valorização cultural, visibilidade social e


diferentes enquadramentos teóricos específicos actuação política em favor dos povos indígenas
da Etnoarqueologia, e algumas outras vezes em território brasileiro; por outro, é também
sequer estão claramente definidas as opções verdade que tal objetivo se encontra muitas
teóricas adotadas pelo autor no desenvolvimen- vezes com alcance reduzido pelas limitações
to de seu estudo, em inúmeros momentos ao ressaltadas por vários dos autores analisados,
longo dos textos lidos, percebe-se a preocupa- dentre elas: a falta de estudos mais aprofundados
ção dos autores em destacar a importância das e com enfoques mais variados, acerca desses povos.
especificidades culturais e históricas e dos Entretanto, há que se perceber que, se, por
contextos ideacionais, na produção artefatual um lado, o recorrer à Arqueologia, à História e
humana. à Etnologia, é de importância fulcral para o
Em boa parte dos trabalhos há mesmo desenvolvimento de um trabalho em
como objetivo do próprio estudo buscar Etnoarqueologia, por ser esta um campo
compreender relações entre cultura, formas de interdisciplinar, e pela riqueza de informações
pensamento, e a produção material dos povos que tais estudos podem trazer ao Etnoarqueólogo,
estudados, e, muito embora, nem sempre esses aprofundando seus conhecimentos, e amplian-
objetivos sejam claramente alcançados, é do seus olhares acerca do povo que estuda, por
possível perceber que os autores têm preocupa- outro, se torna tarefa de grande complexidade e
ção em discutir a necessidade de ultrapassar a risco, tomar, de textos científicos cuja finalida-
busca por tipologias ou por determinantes de e enfoque estão sob diferentes perspectivas
ecológicos, no estudo da realidade artefatual teóricas, como documentos acerca de escava-
dos povos estudados e de perceber os compo- ções arqueológicas, ou trabalhos de etnologia
nentes de especificidade, de escolha e de realizados em sítios referenciados como sendo
condicionamentos subjetivos no modo de do mesmo povo que é foco de analise da
produzir e de viver dessas comunidades (Tabela 2). pesquisa, informações que possam ser interpre-
Assim, se por um lado, é certo que tais tadas sob a perspectiva teórica e as finalidades
posicionamentos teórico-metodológicos se da Etnoarqueologia.
enquadram dentro dos horizontes e das opções Neste ponto, me refiro à quarta característi-
de construção de uma Etno-História que busca ca desse campo teórico no Brasil: uma ainda

Tabela 2
Enquadramento teórico
Processualista Contextualista Não Definido
1 Sem Tekoha não há Teko
X
(em busca de um modelo [...])
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]

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não total abrangência de trabalhos de campo Por outro lado, a análise dos trabalhos em
feitos efetivamente para o estudo e sob as Etnologia realizados a respeito dos povos cuja
perspectivas da Etnoarqueologia, ou seja, Etnoarqueologia procura-se construir, pode
pesquisas de cunho etnográfico, realizadas sob descrever-nos a cor da vivência desenvolvida
o enfoque teórico Arqueológico, visando por este povo em relação a si próprio e ao meio
observar, compreender e descrever as tramas no qual se insere. Pode esclarecer a respeito de
nas quais se envolve todo o processo de produ- suas crenças, festas, rituais, condicionantes
ção artefatual dos povos a serem pesquisados. sociais, relações de poder e muitos outros
Nota-se que, embora a maioria das pesqui- aspectos, mas raramente o etnólogo tem seu
sas analisadas neste estudo tenham recorrido a olhar voltado para os processos que culminam
trabalho de campo, alguns trabalhos não em produção material, efectivamente. Se é
contaram com esse importante recurso em sua possível, e mesmo certo, que a produção
elaboração, sendo realizados tendo como artefatual desses povos apareça em meio aos
referenciais escavações arqueológicas, ou aspectos analisados nesses trabalhos, este não é
documentos a esse respeito, e pesquisas em o foco de estudo desses pesquisadores, que têm
trabalhos de Etnologia e História Indígena, seu olhar voltado para outras relações e
somente (Tabela 3). aspectos, e tais descrições têm pouca possibili-
Este é por si um dado preocupante porque, dade de constituírem material para analogias
se os documentos provenientes de escavações arqueológicas com a mesma profundidade e
arqueológicas podem fornecer informações a riqueza com que uma descrição etnográfica
respeitos dos artefatos produzidos por esses voltada efectivamente para os processos que
povos, não é possível visualizar os atores a envolvem a produção artefactual desses povos.
produzi-los, seus discursos, seus condicionantes Assim, por um lado se sabe das dificulda-
sociais e culturais, todo o processo que envolve des que envolvem um trabalho de campo a ser
o fazer, o fabricar, o pensar acerca desses realizado em comunidades indígenas nativas: as
artefatos e as múltiplas relações existentes entre enormes distâncias físicas que, às vezes, sepa-
as condicionantes ecológicas e ideacionais que ram o pesquisador dessas comunidades, a
envolvem todo esse processo. acessibilidade a elas, quer seja em âmbito local,

Tabela 3
Recurso ao trabalho de campo
Etnoarqueológico Arqueológico Inexistente
1 Sem Tekoha não há Teko
X
(em busca de um modelo [...])*
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço
X
em duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]

* Esta pesquisa não contou com nenhum tipo de trabalho de campo.

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em relação a própria comunidade, quer seja em na maioria deles há grandes dúvidas a respeito
âmbito Estatal, os abismos culturais e linguísticos desses pontos.
que podem separar o Etnoarqueólogo e o povo Os dados a respeito da amostragem do grupo
a ser estudado, ou até mesmo limitações em escolhido para a pesquisa, as estratégias, o
relação aos financiamentos necessários para número de povoações, famílias ou indivíduos, a
suprir despesas de deslocação e permanência do sua representação de classes, posições sociais,
cientista na área onde inserem-se essas comuni- status, papéis ou géneros, da utilização de
dades. Mas sabe-se também da importância do assistentes, as qualificações e relacionamento
trabalho de campo no desenvolvimento de uma desses com os informantes da comunidade
pesquisa em Etnoarqueologia, um desafio que estudada, bem como conhecimentos do investiga-
está mesmo na origem dessa própria sub- dor, incluindo seus conhecimentos culturais
disciplina: a busca de analogias advindas de acerca do grupo a ser pesquisado e da sua língua.
trabalhos Etnográficos realizados sob uma Raramente essas questões aparecem explicitados
perspectiva Arqueológica. nos textos, enquanto as condições de financia-
Entretanto, por outro lado, não basta que mento e a duração do trabalho de campo, embora
esses trabalhos de campo sejam realizados pelo apareça nos textos, nem sempre são descritas com
Etnoarqueólogo, é preciso que o seu desenvolvi- a clareza e com o destaque que mereceriam.
mento seja rigorosamente descrito e que seja Assim, na análise das pesquisas, podemos
possível “ouvir” no decorrer da leitura do perceber, em parte, suas carências quanto aos
trabalho, os atores a tecerem seus próprios aspectos aqui relacionados. Muito embora os
discursos explicativos acerca do que fazem, de dados estudados só contemplem os itens que
como fazem e de porque fazem seus artefatos, constam ou não dos trabalhos, excluindo seu
de suas opções, de seus condicionantes, de seus grau de clareza, nota-se a falta de atenção dada
próprios motivos e visões a respeito dessa a tais questões (Tabela 4).
produção. É preciso também que se possa Já quanto a descrição do trabalho de
“visualizar” aquilo que o Etnoarqueólogo campo, esta aparece, muitas vezes, confundida
assistiu em seu trabalho de campo, perceber com as interpretações do próprio autor ou de
quando, em que circunstâncias, sob que outros, utilizados como fontes de pesquisa, a
condições, por quem e por que, as atividades respeito dos aspectos analisados no texto. Em
produtivas foram realizadas, deixando claro ao raros trabalhos há uma perfeita clareza com
leitor o que é descrição e o que é interpretação relação às partes do texto que constituem
do pesquisador durante o trabalho de campo. descrição de acções observadas ou discursos
Por fim, também é preciso conhecer esses proferidos pelos informantes ou assistentes que
atores, quem são, a que posições sociais auxiliaram a execução da pesquisa, com devida
pertencem, o tipo de relação que estabeleceram definição dos atores, e dos contextos que
com o pesquisador, que têm com a produção envolvem tais ações ou discursos, ou com a
artefatual de seu povo, e claro, as relações do transcrição literal de declarações, histórias,
próprio pesquisador com esse povo, os motivos diálogos, devidamente identificados e
que o levaram a pesquisá-lo, seu envolvimento contextualizados no texto.
pessoal, seus conhecimentos acerca dele. Tal preocupação é, entretanto, essencial para
Em torno de tal temática é que se insere que o leitor possa, dessa forma, “visualizar” e
uma quinta característica da Etnoarqueologia “ouvir” os atores, e possa perceber não só em
brasileira, apreendida a partir dos textos aqui que ponto começa a interpretação do pesquisa-
analisados: a falta de clareza a respeito dos dor acerca do que viu e ouviu, mas também os
Métodos Etnográficos e da descrição dos condicionantes que envolvem essas descrições e
trabalhos de campo realizados pelos pesquisa- declarações.
dores. Muito embora em alguns poucos Assim, é possível não só dar ao leitor a
trabalhos tais aspectos e procedimentos oportunidade de tecer suas próprias interpreta-
estejam claramente descritos e identificados, ções tendo como base as descrições e declara-

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Tabela 4
Definição do trabalho de campo
Informação sobre a Dados sobre a Informações Dados sobre o
duração do amostragem do sobre língua do financiamen-
trabalho de campo grupo estudado povo estudado to da pesquisa
1 Sem Tekoha não há Teko
(em busca de um modelo [...])*
2 A produção cerâmica como
X
reafirmação de identidade [...]
3 Cenários da ocupação Guarani
X X
na calha do Alto Paraná: [...]
4 Organização e uso do espaço em
X X
duas aldeias Xerente: [...]
5 As tecnologias e seus significa-
X X X X
dos: Um estudo da [...]
6 Etnoarqueologia dos grafismos
X
Kaigang: Um modelo [...]
7 Os caçadores-ceramistas do
X
sertão paulista: Um estudo[...]

* Esta pesquisa não contou com nenhum tipo de trabalho de campo.

ções obtidas em campo, como também perce- desse campo científico no Brasil, uma vez que a
ber, de forma mais clara as percepções e ciência é feita por um grupo específico com
interpretações obtidas pelo pesquisador a partir lógicas próprias; mas que é, por sua vez,
de tais dados. Além disso, passa a ser possível formada por pessoas singulares, com visões
ponderar as circunstâncias nas quais se inserem particularmente únicas da ciência e do mundo.
as ações descritas e as declarações obtidas, bem Princípio que se aplica não só aos investigado-
como perceber em que posição social se res, mas também àqueles que lêem seus escritos
incluem, de forma a gerar dados mais específi- e os interpretam, não significando críticas à
cos, com maior poder interpretativo em relação forma como tal campo científico se desenvolve
às analogias que podem daí surgir. nesse país, tão somente procura caracterizar a
É evidente, entretanto, que tais ausências Etnoarqueologia aqui praticada,dentro das
não inviabilizam o poder explicativo dos proces- possibilidades e opções nas quais se insere não
sos produtivos que constituem objetivos dessas só a Arqueologia, mas toda a sociedade brasilei-
pesquisas e que caracterizam somente a opção ra contemporânea.
por uma perspectiva descritiva mais próxima do
discurso histórico que propriamente etnográfico
ou arqueológico, o que talvez se explica pelo Conclusões: Horizontes científico-sociais da
próprio cariz da arqueologia relacionada com os etnoarqueologia no Brasil (ou da necessidade
grupos indígenas no Brasil, globalizante, buscan- de convertibilidade do outro)
do reconstruir uma trajetória cultural e ecológica
desses povos num tempo/espaço entrecortado Joaquin Herrera Flores, em seu artigo
pela colonização européia da América e pelo intitulado “Colonialismo y violencia. Bases para
surgimento da nação brasileira. una reflexión pos-colonial desde los derechos huma-
Por fim há que se destacar que as ausências nos” (2006), nos alerta acerca da empresa
e permanências no fazer científico da colonizadora Ocidental e de seu método de
Etnoarqueologia brasileira aqui discutidos, não ação em relação aos povos com os quais entra
só não abarcam a totalidade das características em contacto.

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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 87-102, 2009.

Segundo ele, a nossa sociedade produz Ora, os indígenas brasileiros continuam a


diante do “outro”, uma reacção de “backlash”,2 sofrer desses mesmos males ainda hoje. Ao
que possui dois intentos fundamentais: a terem seu modo de vida drasticamente transfor-
construção de uma identidade abstrata, afastada mado a partir da colonização européia da
de quaisquer origens históricas ou políticas América, e seu espaço progressivamente
concretas (ocultar nosso multiculturalismo) e a ocupado por outra cultura radicalmente
invenção de origens identitárias que não se diferente das suas, vêem-se cada vez mais sujeitos
contraponham aos interesses e medos do à necessidade de protestarem, segundo as regras
presente (ocultar a possibilidade de descobrir- estabelecidas pela sociedade dominadora, a fim
mos em nós, o “outro”). de garantirem, segundo as leis do Estado
Esta reação se torna o substrato a partir do Nacional dentro do qual habitam, a posse e o
qual construímos a idéia de nossa superiorida- uso das terras que tradicionalmente ocuparam,
de cultural e encontramos justificativa para a bem como o direito a um tipo de educação
intervenção na demais culturas. Isso porque, na voltado para suas expectativas e necessidades, e
medida em que não nos enxergamos como de viverem segundo suas próprias lógicas e
multiculturais, que não nos vemos no “outro”, crenças.
mas participantes de uma cultura abstracta, não A Etnoarqueologia, como ciência que
compreendemos o modo de vida “deles” e nos busca alcançar conhecimento arqueológico
achamos no direito de interferir em outros através de estudos de cunho etnográfico, não
povos de forma a expandir nossa própria pode se abster do fato de que além de construir
cultura e sufocar suas “estranhas” formas de conhecimentos abstractos a respeito da trajetó-
viver e de pensar. Mesmo que isso signifique ria humana e de sua produção artefatual/
protestos, desespero, doenças e mortes, no cultural, está a tratar de questões que dizem
interior dessas sociedades, estamos prontos a respeito à história e à cultura de povos contem-
pôr em prática nosso aparato “humanitário” porâneos, que podem ter nessas informações,
para curar as feridas que produzimos, e assim, subsídios para a defesa dos direitos que buscam
nos sentimos ainda mais superiores, e não alcançar na sociedade nacional.
somos capazes de compreender a negativa de Neste ponto a Etnoarqueologia brasileira
certos povos em aceitar tantos benefícios que a não tem se posto a parte das urgências das
eles concedemos (Flores 2006:25-26). questões por ela levantadas a respeito dos povos
A respeito dessa questão o autor traça uma indígenas brasileiros, e se mantém fortemente
analogia riquíssima: presente, no decorrer das pesquisas aqui
analisadas, não só para denunciar as situações
“Estamos como aquellos indígenas
de dominação e de colonização sofridas pelos
amazónicos o aquellos esquimales canadienses
povos pesquisados no decorrer de suas históri-
que a causa de las continuas invasiones de sus
as, como as necessidades e reivindicações desses
territórios por occidentales cayeron enfermos de
povos no presente.
males hasta entonces desconocidos por su
Mas novas contingências apontam para o
chamanes. A partir de ahí de nada valían los
alargamento dos horizontes desse campo científi-
conocimientos tradicionales; solo podían curarse
co no Brasil. Outros grupos étnicos, que também
acudiendo a la medicina y a los hospitales de
constituem comunidades em maior e em menor
aquellos que les habíam introducido la
grau afastadas das lógicas culturais da sociedade
enfermedad.” (Flores 2006:26).
ocidental, e que, também possuem grande
potencial científico, na busca de analogias
arqueológicas, bem como grande potencial sócio-
(2) “backlash” – A strong but usu. delayed feeling of político, participantes na trama étnico-cultural
opposition among many people toward a belief or practice,
que constitui o povo brasileiro, tomam cada vez
esp. towards a political or social development (…) a sudden
violent backward movement (Longman Dictionary of mais visibilidade no cenário nacional e despertam
Contemporary English, 1992). a atenção para o estudo de suas trajetórias

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históricas e culturais e para o discutir de suas Acerca disso, fala-nos Solange Schiavetto,
lógicas, visões de mundo e reivindicações. em seu livro “A arqueologia Guarani. Construção e
Em particular, destaca-se a importância das desconstrução da identidade indígena”:
comunidades Quilombolas no alertar para o
“Não se trata de simplesmente
reescrever de uma história que não aponta
desvincular cultura material e grupos
somente para a dominação e a escravidão de
étnicos, dizendo, por exemplo, que os
povos africanos no Brasil, mas também para
Guarani pré-históricos nada têm a ver
formas de luta e de resistência, na tentativa de
com os Guarani conhecidos ou com os
preservação de um modo de vida alternativo às
atuais (…) Tratar-se, ao contrário, de
imposições das elites dominantes.
aceitar a possibilidade de os grupos
Por outro lado, a análise de Joaquín
étnicos serem vistos como entidades
Herrera Flores acerca de nossa visão cultural
homogénea sobre nós mesmos e sobre os dotadas de um carácter situacional e
outros, incapaz de ver os multiculturalismos fluido, repensando as tradições e
presentes em qualquer comunidade humana e subtradições utilizadas na arqueologia
cegos tanto para os nossos defeitos quanto para até o momento” (Schiavetto 2003:101).
as qualidades do “outro” no conviver com Ora, tal questão não abarca somente a
grupos culturais diferentes, toma uma dimen- Cultura Guarani, mas todas as culturas estuda-
são importante em duas vertentes. das cientificamente, bem como a Cultura
Em termos de posicionamento ético, que daqueles que as estudam, e é preciso que
não só desafia cientistas de todas as áreas, mas tenhamos o cuidado de perceber tais questões,
toda a sociedade, a desenvolver um olhar mesmo que elas nos levem a repensar os
polissémico acerca do “outro”, que seja capaz, objetivos de nossos trabalhos, a buscar novas
não só de relativizar nossos próprios princípios vias e novos questionamentos, que nos levem a
e visões acerca do mundo – de perceber que ampliar os olhares e os horizontes dos estudos
não são os únicos possíveis, e que não são que se referem a grupos étnicos em todas as
homogéneos, mesmo no interior da nossa partes do mundo, e em especial, no Brasil.
sociedade – mas também de perceber que os Trata-se de abordar, nos estudos étnicos,
modos de viver diferentes das outras socieda- entre os quais os Etnoarqueológicos, a fluídez
des, não significam que essas sejam inferiores, de todas as culturas, sua não homogeneidade –
exóticas ou desprezíveis, mas que são outras quer interna, quer histórica – e ver a cultura
visões, igualmente válidas e com valor equiparável sob uma perspectiva mais humanizada, mais
às nossas próprias, e que, para além disso, essas atenta a própria natureza humana em seu viés
outras sociedades também não são, elas auto-transformador e por isso mesmo também
próprias, homogéneas, e que há diferenças no transformador do ambiente – quer físico, quer
interior de todos os grupos humanos. social – no qual se insere. Acerca disso ainda
Em termos de posicionamento científico, nos fala Schiavetto:
oferece ao Etnoarqueólogo um desafio e uma
importante crítica: é preciso estar atento para o “Ao definir uma “cultura arqueológi-
fato de que o seu trabalho não deve servir de ca” com base nos traços materiais das
substrato para esse tipo de homogeneização sociedades indígenas, cria-se por meio
cultural e que o olhar desse cientista deve estar da delimitação conceitual, categorias
sempre preparado para observar os povos que imutáveis, seguindo padrões de vida
estuda, não só pela perspectiva das tipologias, social (assentamento, religião, adaptação
dos fósseis-diretores, enfim, das semelhanças e ao meio, confecção de cultura material)
permanências; mas também para perceber as cujas variantes culturais acabam por ser
culturas que estuda, como elementos que são “mascaradas pela busca de uma grande
compostos de pluralidades e que se transfor- nação guarani” (…) Dessa forma, o
mam no tempo. guarani foi, no decorrer da história do

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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 87-102, 2009.

pensamento arqueológico, incessante- Enfim, que tenhamos como horizonte


mente criado por arqueólogos (…)” teórico e social da Etnoarqueologia brasileira, o
(Schiavetto 2003:119). compromisso de contribuirmos, para, nas
palavras de Cornelius Castoriadis, apreendidas
É claro que não se trata de desvalorizar a
por Joaquín Herrera Flores, combater “a
importância das categorias para a Arqueologia e
essencial inconvertibilidade do Outro” (Flores
para o estudo do Homem em sua relação com
seu meio circundante, tanto humano quanto 2006:34), ou seja, superarmos uma visão
natural, tanto quanto também não se trata de estreita das outras culturas, que nos impede de
esquecermos que, em última instância, qual- nos convertermos nos “outros” ou de convertê-
quer estudo é uma construção, uma visão de los em nós mesmos, de percebermos o quanto
um cientista e de uma ciência acerca de seu nenhuma cultura é homogénea ou superior, de
objecto, e que independente da abrangência e quão multicultural e polissémico todos nós
do enfoque escolhido, o discurso que se somos, e como as estranhezas de outras culturas
constrói acerca dele nunca abrangerá a sua se aproximam das nossas próprias, e de, assim,
complexidade por completo. podermos fazer uma ciência mais próxima do
Trata-se, entretanto, de termos a consciên- cotidiano que a inspira e a constitui, quer
cia de que as categorias que escolhemos analisar através de seus agentes, quer através dos seus
nos trabalhos em Arqueologia, e em especial objetos.
nos estudos Etnoarqueológicos, não podem
servir para subjugar as diferenças, ou para
ignorá-las, obrigando o quotidiano estudado a Agradecimentos
forçosamente ser compatível com as categorias
estudadas, quando nos deparamos com situa- O problema central deste artigo relacio-
ções que ponham em questão nossas escolhas e na-se às perspectivas abordadas em minha
classificações, mas de admitirmos que as dissertação de Mestrado, defendida em Maio
teorias, métodos e técnicas que usamos nos de 2008 na Universidade do Algarve, Portu-
trabalhos científicos são somente opções de gal, e resultado de uma cooperação entre esta
análise e ângulos de visão de uma realidade Universidade, através da orientação do Prof.
cuja complexidade nunca poderá ser completa- Dr. Nuno Bicho, e da UNICAMP, através da
mente percebida, e de que não podemos orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu
sujeitar essa complexidade às nossas opções de Funari, aos quais agradeço profundamente
análise quando a realidade nos impõe que pela constante disponibilidade e pelos
nossas opções sejam reavaliadas, ou que importantes direcionamentos nesta minha
simplesmente possamos admitir nossos limites incursão pelos horizontes científicos da
na análise de determinado objeto. Etnoarqueologia.

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Rita Juliana Soares Poloni

POLONI, R.J.S. The Ethnoarchaeology in Brazil: science and society in the context of
the re-democratization. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19:
87-102, 2009.

Abstract: The present work was to investigate the theoretical and


methodological perspectives used in scientific texts in Ethnoarchaeology,
published in Brazil from the decade of 1980. The focus of this study was MA
thesis and PH dissertations, to obtain information on the employed methodologies
and the theoretical field, as well as constructing a picture of penetration of this
scientific field in Brazil. Was possible to realize their strong historic and politic
focus and their preferential treatment for generic methodologies and techniques
in the analysis of their study objects.

Keywords: Archaeology – Ethnoarchaeology – Theory – Methods – Society


– Brazil.

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A Etnoarqueologia no Brasil: ciência e sociedade no contexto da redemocratização.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 87-102, 2009.

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2003 A arqueologia Guarani. Construção e Universidade de São Paulo. Tese de
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2000 A Tecnologia e seus Significados. Um Modelo para a Compreensão das Sociedades
Estudo da Cerâmica dos Asuriní do Proto-Jê Meridionais. Universidade de São
Xingu e da Cestaria dos Kayapó-Xikrin Paulo. Tese de Doutorado.

Recebido para publicação em 28 de fevereiro de 2009.

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