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Pós-graduação em Arqueologia
Departamento de Arqueologia
Resumo
Os remanescentes modificados pelo fogo contam sua própria história revelando seu
passado através de evidências deixadas nos mesmos. O trabalho da Arqueologia é tentar
desvendar e entender essa história através de métodos e técnicas que permitirão uma
melhor interpretação dos grupos humanos que praticavam a queima de seus mortos,
bem como de seu modo de vida. Entre estes métodos está o uso da Etnoarqueologia
como uma “bússola” norteadora das práticas sociais anteriormente registradas assim
como as práticas ainda hoje aplicadas pelas sociedades abordadas. Este trabalho refere-
se a uma reflexão sobre o emprego e potencialidades da união entre a Arqueologia
funerária, Bioarqueologia e Etnoarqueologia, trazendo uma discussão sobre a análise e
interpretação dos ossos queimados encontrados em contexto arqueológico do sitio
arqueológico Alcobaça de Buíque -PE , Peri-Peri, MX91 E MX48 na atual pesquisa em
andamento intimamente ligada aos contextos funerários no Vale do Catimbau.
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Em seu livro “l’homme et la mort” de 1970, o sociólogo Edgar Morin conclui: "Il est
impossible de connaître l'homme sans étudier sa mort, car, peut-être plus que dans la
vie, c'est dans la mort que l'homme se révèle". [“É impossível conhecer o homem sem
lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se
revela”]. A partir deste ponto de vista, entende-se que a morte é um fato biológico que
faz parte do cotidiano das sociedades e consequentemente do seu modo de vida, pois,
além da morte1 está o seu resultado social que está ligada a um conjunto de ações que
interagem diretamente com seus valores e crenças como argumenta O’Shea (1984).
Assim, Barbosa (2013) conclui:
Tendo isto em mente, cabe-se afirmar que a espécie humana é sobretudo social, e vive
em um ambiente social, portanto, não é apenas no âmbito físico (macro, mezzo e
microambiente) que serão estudados como segundo Alarcão (1996), mas também seu
conjunto de ações e ideias que estão ligadas intrinsecamente a estrutura das sociedades
humanas e seus produtos. Neste ambiente social deve levar em consideração a fala de
Morin (1970) e O’shea (1981) que de maneiras diferentes falam de uma morte que não é
só física, mas social, psicológica, etnográfica demarcada histórico e culturalmente.
Ainda olhando para esta perspectiva colocada, tem-se a fala de Parker-Pearson (2008),
que ao tratar da possibilidade dos estudos dos remanescentes humanos, enfatiza que tais
vestígios arqueológicos relacionados a morte seria o resultado das práticas sociais que
nos contam mais sobre a história destes indivíduos, sobretudo, aspectos de suas vidas
apesar de se estar estudando suas mortes.
Pois para estes autores falarem de morte não é apenas falar sobre a falência dos órgãos
de um indivíduo, mas é falar mais de vida e de cotidiano de todos os agentes sociais
dentro de um sistema social, ou seja, os indivíduos que compõe o grupo e de sua
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Cessação da vida do latim mors, mortis, associado ao verbo mori, que significa morrer, tendo raiz no indo europeu
(TORRINHA, 1942:786). (SILVA,S.F.S.M.Terminologias e classificações usadas para descrever sepultamentos
humanos: exemplos e sugestões. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 113-138,2005-2006.).
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interferência no morrer. Porém não se deve de maneira nenhuma esquecer que este é um
relacionamento de mão dupla, pois, o morto por sua vez também interfere e muda a
dinâmica social e a paisagem até o momento de sua morte. Assim, pode-se afirmar que:
Kearnes e Rickards (2017) falam sobre o morrer no âmbito das práticas funerárias, onde
consideram que os sepultamentos são um produto tanto da morte quanto das práticas
tecnologias do cotidiano social, que são consequência dessa dinâmica entre humanidade
e ambientes onde vivem, como também consideram a mesma como um processo de
transição onde os próprios projetos de sepultamento mediado pela tecnologia são
produtos de projeções inventivas em visões que preveem tanto sua viabilidade técnica
quanto os tipos de mundos sociais necessários para sua realização.
Para o entendimento dos diversos processos pelos quais estes grupos de seres humanos
passaram ao longo da vida, os bioarqueólogos focam seus esforços em análises que
revelem não só sobre cada homem e sua interação com o meio natural e artificial, mas
também sobre as interferências culturais que seu grupo teria feito no seu próprio corpo,
reduzindo-o, inumando em urnas ou covas ou mesmo transformando-o em objetos de
cultura material relacionados à ancestralidade por exemplo, associando-o as relações de
status, casamentos, poder e parentesco, entre outros (SANTOS, 2020).
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representações sobre a morte e se estas refletiam direta ou indiretamente em sua vida
cotidiana (O’SHEA, 1981, MIGNON,1993).
A busca por um passado observando os registros e práticas de povos atuantes pode por
sua vez ser dificultosa, pois para se obter a melhor maneira de se trabalhar analogias
eficazes, deve-se ter primeiramente selecionar dentro de um número infinito de
possibilidades analógicas a que oferece melhor solução ao problema pesquisado
conforme a fala de Ascher (1961). Essas estratégias metodológicas incluem a pesquisa
bibliográfica e museográfica, a pesquisa experimental e a pesquisa de campo
etnográfica. (STILES, 1977; GOULD, 1977; HARDIN; MILLS, 2000).
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Além das implicações mencionadas, se deve salientar que quando se trata de aspectos
ligados a morte é importante entender que a formação do registro material é
intimamente ligada a características de produção e as formas de utilização, pois estão
relacionadas diretamente a dinâmica construída a partir não só de subsistência más
também ao universo psicossocial onde este expressa-se no ritual que pode ter diversas
configurações. É de fato importante entender que dentro do contexto das práticas
funerárias podem-se encontrar diversas situações as quais remetem aspectos culturais
distintos e de difícil compreensão, podendo esta estar até dentro de um mesmo contexto.
Com isto, aspectos observáveis nas deposições funerárias como a posição do corpo,
tratamento, recipiente e acompanhamento funerário se tornam indispensáveis no
conjunto de dados a serem analisados, pois suas peculiaridades são o que os definem e
classificam, trazendo à tona uma diversidade de contextos (de violência, canibalização,
sacrificial, funerário, entre outros).
Sabendo então que no contexto funerário esta diversidade pode ser refletida de forma
complexa. Desse modo o grande desafio é entender os diversos processos que são o
resultado de várias formas do pensamento coletivo sobre a morte que por sua vez é
representada em parte pela materialidade do sepultamento (DUDAY, 2009).
Ainda se debruçando sobre o uso desta última com o estudo das práticas funerárias do
passado, percebe-se que estes processos culturais e atenção as etapas destes processos
ocorridos durante os funerais são o principal foco, principalmente quando se faz
necessário o uso da arqueologia experimental para criação de modelos, adotado como
método como sugere Silva (2009). Os dados arqueológicos também são observados,
seguindo a mesma estratégia, sempre atento a busca das tecnologias empregadas pelos
grupos humanos através de aspectos materiais que indiquem aspectos das etapas
ocorridas em sua formação.
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Ainda se tratando do estudo dos vestígios arqueológicos ligados as práticas funerárias e
a caráter de exemplificação, pode-se observar o estudo de Vergne (2007) que faz uma
observação em seu trabalho sobre a complexidade social e ritualística das práticas
funerárias em Xingó, fundamentada no pensamento de Binford (1971). Este autor
decodifica um sistema sociocultural e simbólico do grupo através de categorias
específicas, como por exemplo, o tratamento do corpo que inclui a observação do tempo
e energia para preparação do indivíduo (cálculo da energia dispendida na prática
funerária).
Nessas categorias existem variáveis que devem ser observadas. Uma delas é se houve
cremação. Esta é a prática de queimar o morto, representada no contexto arqueológico
por coleções de ossos humanos queimados, estando fragmentados ou sob a forma de
cinzas que podem ter sido depositadas em urnas cinerárias para posterior deposição
(Bray e Trump, 1970). Trata-se de um dos métodos de redução do corpo realizado
durante ou para sua deposição (inumação em cova, urna, entre outras) também
considerado não apenas como método de redução corpórea mas também de
transformação do mesmo, este está ligado ao universo cosmogônico diretamente e é
descrito por Thompsom (2015).
Entender se houve ou não cremação e qual foi o modo operacioal para sua realização
através dos artefatos e biofatos é um processo complexo onde a bioarqueologia, práticas
funerárias, etnoarqueologia, arqueometria, arqueologia experimental e arqueologia da
paisagem interagem e se complementam em busca da interpretação do contexto
arqueológico. Através das alterações sofridas pelo corpo causadas pelo fogo e por
outras alterações culturais como o uso de pigmento, posição dos remanescentes entre
outros fatores como as praticas de uso do fogo utilizadas por outros grupos
correlacionaveis.
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Consequentemente, deve-se lembrar que a análise de ossos queimados também está
relacionada a um número de técnicas em adição aos objetivos específicos da pesquisa
osteoarqueológica de obter dados demográficos e paleopatológicos, buscando deduzir
evidências pertencentes à tecnologia de cremação e indicações sobre os ritos e rituais
relacionados a essa prática funerária (MC KINLEY, 2002, p. 403).
Ver-se o pensamento de Parker-Pearson (2008), que ainda sugere que o estudo do corpo
no sentido bioantropológico, visando os processos causados pela queima, seria uma
saída para se obter dados suficientes com o objetivo de estabelecermos um diálogo
sobre as práticas funerárias que envolvem o uso do fogo como a cremação. Pois apesar
de seu caráter destrutivo como disse a autora Machado (2006), o corpo não desaparece
completamente nesse processo.
Uma vez associadas todos os dados é possivel discutir sobre os efeitos da ação térmica
consebendo elas como etapas do processo de queima postuma inseridos no ciclo
funerário, como as linhas de fracionamento, cor, retração e quebras causadas pela ação
térmica. Estas caracteristicas auxiliam nas pistas sobre a possibilidade da
intensionalidade de queimar um cadáver quanto as tecnologias empregadas para tal,
onde contudo, viabiliza-se a possibilidade de encontrarmos padrões que auxiliarão na
formação de generalizações com base na formação de modelos tecnológicos; assim
como também a posição de queima, marcas de descanamento e presença de pinturas
nos ossos (UBERLAKER 1989; THOMPSOM, 2015).
Krejci (2011) e Thompsom ( 2015) deixam claro que o ciclo funerário começa com o
tratamento do corpo e vai até a deposição final (o próprio funeral), assim completando
e finalizando o mesmo. Além de que se devem levar em consideração as deposições
funerárias onde em muitos dos casos pode haver pertubações em situ ou desfiguração
dos remanescentes ósseos.
Como exemplo, atraves destes autores é possivel estabelecer uma sequencia possivel
de atos durante a realização de cremações – cadeia operatória da cremação- que
expressam a interação dos vivos com os remanscentes dos corpos dos mortos em cada
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estágio ritual onde se encontram os processos e suas etapas. Contudo, podemos
considerar três momentos diferentes:
Pode-se destacar que apesar do fogo, não ser um tema amplamente explorado
na arqueologia, podendo ser descritos como temá secundarizado por muitos autores, há
um esforço por parte de alguns pesquisadores na busca pelo uso desta colaboração
metodologica.
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O que ocorre na pesquisa iniciada em 2020 sobre as práticas de cremação do sítio
Alcobaça- Buique -PE, e continuada na tese de titulo: Arqueologia da cremação: o uso do
fogo nos rituais funerários entre povos pré coloniais dos Vale do Catimbau onde na pesquisa de
2020 foi possivel observar elementos funerários distintos que apontam para a prática
de cremação secundária, como por exemplo ossos queimados que varia-se entre 300 ºC
a 940 ºC ou como a detecção da presença de quebra óssea como parte do tratamento
dado aos remanescentes humanos, o que se revelou como uma das principais variáveis
analisáveis no caso do sepultamento 1. (DAVOGLIO, 2021).
Estas e outras perguntas deverão ser respondidas, assim como também outros
sítios correlatos. Como os sítios próximos Alcobaça II, Peri -Peri, Mx91 e MX48 com
ossos queimados e ainda não analisados devem ser comparados com os resultados
obtidos e q ainda serão no sítio Alcobaça e ao material etnográfico além dos dados
antropológicos de povos atuais que utilizam tecnologias de queima através do processo
de experimentação de modelos baseados nas informações obtidas.
Uma vez realizado, serão incluídos na pesquisa para que se possa comparar os
resultados entre sítio, a fim de que se possa ser possível entender um pouco mais sobre
o uso do fogo pelos povos que habitaram a região do Vale do Catimbal e que se possa
trazer uma ampla discussão sobre o emprego de tecnologias de combustão.
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relacionadas e contribuído pra a possibilidade de novos projetos patrimoniais ligados ao
Vale do Catimbau e seus sitio arqueológicos incluídos que poderão ser realizados
futuramente, como projetos de conscientização patrimonial e novas pesquisas feitas por
pesquisadores indígenas destas populações a partir da sua ótica.
Referências
. 1996.
BALDUS, H. Bibliografia crítica da Etnologia Brasileira. Ed. São Paulo. V1. 1970.
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SCHIFFER, M. B. Methodological issues in eEthnoarchaeology. In: GOULD, R. E.
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