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James S. Oliveira
Juliane Guedes
Itelmar de Negreiros Oliveira
Igor Gadelha Soares
Vanessa Sial
Severino Ribeiro da Silva
Sergio Francisco Serafim Monteiro da Silva
“Quem está desperto e consciente diz: sou todo corpo e nada fora dele”
(Also sprach Zarathustra, Os odiadores do Corpo, Friedrich Wilhelm Nietzsche, 1883)1
INTRODUÇÃO
1
Ver Abbagnano (1999, p. 211).
1
Considerações sobre o corpo na arqueologia
Incluir o corpo como objeto de estudo da arqueologia parece-nos uma obviedade. Este,
enquanto um biofato2, constitui, de longa data, mais uma dentre as várias modalidades de
vestígios arqueológicos: trata-se do conjunto de remanescentes do sujeito, do agente social,
daquele ser antes psicossomático, produtor sociobiológico de comportamentos e das próprias
culturas materiais e imateriais. Para incluir este corpo como temática e algo passível de
problematização da pesquisa arqueológica, aliás, objeto-sujeito de inúmeras abordagens na
sociologia do corpo (LE BRETON, 2012), antropologia do corpo (LE BRETON, 2021),
histórias do corpo (DEL PRIORI; AMANTINO, 2011), enfim, de outras ciências humanas
correlacionadas, para além das anatomias, podemos considerar alguns estudos mais centrados.
Na perspectiva arqueológica, o corpo enquanto materialidade pode ser escrito, pensado, pode
ser teorizado como cultura material. Importam os corpos humanos quanto aos seus
significados culturais, como símbolos, artefatos do corpo, meios, metáforas, corporificações
de experiências vividas, corpo-agência, corpo simétrico, corpos-performances, tecnologias do
corpo representadas por culturas materiais extra-somáticas (RAUTMAN, 2000; HAMILAKIS
et al, 2002; JOYCE, 2005; SOFAER, 2006).
[...] empirical nature of the process of knowledge acquisition from the skeleton is not much
different to that applied to other more readily recognisable artefacts, such as pots or flints,
in terms of the recording of objects by measuring, drawing, photographing, identifying and
classifying morphological differences (SHANKS; TILLEY, 1987, p.114 apud SOFAER,
2006, p.88).
2
Entre os campos de pesquisa do corpo na sociologia, Le Breton (2012) propôs o dos imaginários sociais do
corpo que incluem as “teorias” do corpo, abordagens biológicas da corporeidade , diferenças entre os sexos, o
corpo enquanto suporte de valores, o corpo imaginoso do racismo e o corpo “deficiente”
2
Portanto, o corpo humano pode ser um locus primário de investigação, onde
abordagens de base científica compreendem seus remanescentes como fenômenos universais,
concretos e essencialmente biológicos, passíveis de encarceramento sob a égide do discurso
exclusivamente anatomofisiológico: torna-se exclusividade das bioarqueologias do corpo,
usuárias do campo distinto da osteoarqueologia humana (abordagem biomédica). O
procedimento descritivo preliminar da osteoarqueologia tem auxiliado na determinação e
categorização de pessoas através de seus corpos como mulheres ou homens, crianças,
adolescentes ou adultos, entre outros, dentro do tratamento do corpo como espécie, ou
propriamente um objeto (SOFAER, 2006).
Por outro lado, nas últimas décadas, conforme Bynum (1995 apud DIEMLING;
VELTRI, 2009), o corpo estava sendo cada vez mais estudado, através da observação,
discussão e análise, a partir de um olhar sobre o mesmo como um constructo social e
histórico. Pode-se dizer que este tema possui inúmeras potencialidades. A partir delas, como
uma nova plataforma analítica, se podem iniciar investigações sobre o âmago das vivências
sociais. Os estudos do corpo têm se mostrado como uma "lente" analítica poderosa, seja
dispondo este psicossoma em um sentido social, metafórico, fenomenológico ou ao se referir
à sua constituição física.
4
definida como propriocepção, sendo esta uma experiência sentida a partir do posicionamento
corporal que constitui a imagem do corpo e podem ser influenciados por aspectos sociais,
culturais e emocionais.
Binford (1971) quando apresenta o tratamento do corpo como uma das principais
variáveis a serem consideradas no estudo das deposições funerárias, levou em conta a
potencialidade do corpo-esqueleto, considerando que este também conteria informações
sobre as escolhas feitas cotidianamente pelos seres humanos do passado. Assim, esta
discussão se torna também voltada para as inferências culturais feitas pelo grupo. Portanto o
corpo torna-se um registro dos gestos corporificados dos vivos, se transformando primordial
para uma análise comportamental (JOYCE, 2005).
“Pensar através do corpo pode ser similar ao pensar através dos objetos de cultura
material, dentro da produção do conhecimento arqueológico” (SILVA, 2019, p. 194). Neste
mesmo texto de Hamilakis et al (2002), o corpo, como proposto por Sarah Tarlow na
introdução de em Bodies, selves and individuals, pode ser compreendido de variadas formas.
No caso dos corpos dos mortos, estes providenciam aos arqueólogos uma aparente
fundamentação para interpretar as sociedades antigas. Portanto, a busca para compreender
estas sociedades e cada indivíduo que se encontrou inserido no meio social e ambiental é o
principal ou uns dos elementos primordiais para entendermos os grupos humanos do
“passado” e construirmos inferências científicas sobre como estes viviam e como morreram
5
ou, até mesmo, conjecturar sobre as possibilidades relacionadas as suas representações sobre a
morte e se estas refletiam direta ou indiretamente sua vida cotidiana (SILVA, 2019, p.195;
O’SHEA, 1981; MIGNON, 1993).
Como é uma disciplina que faz uso da repetição ao longo do tempo como base para o
reconhecimento das práticas culturalmente inteligíveis, a arqueologia descreve as maneiras
pelas quais diferentes formas de corporificação acabaram sendo historicamente produzidas,
reproduzidas e transformadas. Ao mesmo tempo, profissionais de arqueologia estão cientes
das lacunas que existem entre a materialidade dos vestígios do passado, a experiência humana
e as interpretações arqueológicas que esses traços possibilitam (JOYCE, 2005). Ainda, o
corpo como lugar central na teoria social contemporânea, segundo esta autora, pode ser
abordado enquanto metáfora da sociedade, instrumento de experiência vivida e superfície de
inscrição, isoladamente ou simultâneamente.
Corpos físicos da diáspora africana e seus artefatos: os idés e os dentes modificados dos
escravizados do engenho Jaguaribe, Pernambuco e Marechal Deodoro, Alagoas4
4
Discurso de autoria de James S. Ferreira, de 2023, exclusivo para este capítulo.
6
Estudos arqueológicos em contextos de construções sacras e engenhos do Nordeste
brasileiro são ainda bastante escassos. Os estudos dos sítios Taperaguá-AL e Jaguaribe-PE
(OLIVEIRA, 2011), podem contribuir com as linhas de pesquisa da arqueologia histórica (DE
SOUZA; SYMANSKI, 1988; ALLEN, 2017), funerária e do corpo. Optamos por trabalhar
com a perspectiva do corpo adornado, artefatos do corpo, e dentes modificados (LIRYO, et
al., 2001; SMITH-GUZMÁN, et al., 2020) e adornados, considerando a identidade (DÍAZ-
ANDREU, 2005) e os ritos simbólicos em contexto funerário.
Os métodos e técnicas da bioarqueologia e arqueologia funerária (SILVA, 2014), têm
auxiliado a observar os fenômenos culturais, ritualísticos e religiosos, que se assemelham nos
esqueletos dos indivíduos 03 e 06 do sítio Taperaguá-AL, (FERREIRA,2019-2022; SILVA,
2020) e dos indivíduos 03 e 07 do Engenho Jaguaribe-PE,(OLIVEIRA e SILVA, 2022),
contribuindo com as linhas de pesquisas na arqueologia histórica da diáspora africana de
corpos pretos escravizados do período colonial no Nordeste brasileiro. A arqueologia aqui
está focada no indivíduo, nos estudos direcionados em identificar e analisar os aspectos
bioculturais dos remanescentes, seus adornos e as mudanças dentárias como marcadores de
identidade social, cultural e religiosa.
Assim, a pesquisa é muito significativa para a arqueologia do Nordeste brasileiro, por
possibilitar discussão de dois sítios importantes, um em contexto de igreja e outro de engenho,
ambos do período colonial. As pesquisas nesses sítios tiveram início com o sítio Taperaguá-
AL, pois foi caracterizada uma pulseira, denominada de ide, adorno associado ao braço
esquerdo do individuo 3, de sexo masculino. Mediante análises iniciais, a pusseira poderia ter
sido usada no cotidiano do indivídduo, um possível sacerdote ou um adepto de religião
africana (KARASCH, 1943, p. 247).
Por certo, as pulseiras ides tem a função, a priori, de conexão do indivíduo com a
ancestralidade (MUNANGA, 1994; SANTOS, 2012), no aspecto religioso. É marcador de
identidade, pois todos do grupo se reconhecem entre si, além de decorar o corpo. Para a
sociedade escravista colonial, o ide não passava de um balangandã.
A partir das evidências dos indivíduos do Jaguaribe-PE, resolvemos analisar os dois
sítios em conjunto, a princípio para verificar se todos os indivíduos são de ancestralidade
africana, e se os adornos e as modificações dentárias estão associados a corpos e rostos
decorados e as pulseiras tem um papel religioso e decorativo.
7
Contando com isso, as práticas funerárias (SILVA, 2014) revelam os aspectos do
cotidiano de um grupo ou sociedade, possibilitando observar atributos culturais (AGOSTINE,
1996, 2016), identitários e religiosos (BASTIDE, 2001; SANTOS, 2012; SUSNOW, 2022),
através do rito funerário da tríade estrutural das deposições funerárias corpo, cova e
acompanhamentos, fornecendo dados dos mortos relativos às suas sociedades, mas muito
mais dos vivos que realizaram os rituais funerários, dos quais, os sítios Taperagua-AL e
Jaguaribe-PE, se articulam nessa descrição.
Ademais, pode-se considerar que as implicações sociais, antropológicas e religiosas
das divergências identificadas entre ações e contextos funerários ritualizados e não rituais são
de longo alcance, incluindo a descoberta de um ethos religioso, até então não detectado e
questionando, como os templos do sul do Levante, considerados casas de deuses (SUSNOW,
2022).
9
partir do momento partilhado dos mesmos problemas, para não perder a identidade cultural e
religiosa.
As indumentárias, adornos, pulseiras, manilhas, todos esses nomes são sinônimos de
adornos, confeccionados, criados e pensados por tecnologias artísticas africana, bem antes dos
invasores europeus começarem a se interessar pelas riquezas das nações da África. Desse
jeito, partindo de uma classificação mais assídua – adorno – associada às noções de
estética/valor, é plausível ainda inferir tais artefatos como parte integrante da economia do
prestígio no sistema cultural africano. Ou seja, da promoção de valores relacionados à beleza,
demarcação de posição social, valia de troca, entre outros mais, expressados na carne
(SANTOS, 2020, p. 65)
Dessa maneira, os sítios Taperaguá -AL e Jaguaribe -PE, tem muito a contribuir com
as pesquisas que envolvem remanescentes humanos e as discussões relacionadas ao corpo,
sobretudo, o corpo adornado e modificado, cujo tema se encontra crescente e sendo debatido
em outras áreas de saberes, ao ponto de gerar disciplina obrigatória em alguns programas
acadêmicos. Nesse sentido a remodelação tem uma forma ou características de adorno fixo
transformável, em que os dentes, assim como corpo, tenham a mesma representação de
beleza. (ALT E PICHLER, 1999; GARVEM, 2011).
A compreensão sobre os modos de vida de populações antigas por meio da sua cultura
material tem sido objeto da Arqueologia desde os séculos XVIII e XIX, inicialmente
vinculados a fundamentar formas de imperialismo e dominação entre as populações da
Europa, da África e América. As coleções antropológicas geradas em escavações estão sob a
guarda de instituições de ensino, pesquisa, extensão e em museus e coleções particulares,
5
O texto deste subtítulo do capítulo é de autoria de Juliane Guedes, relacionando-se à sua monografia de
graduação em arqueologia e ao mestrado, ainda em construção.
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representando um material muito importante para a produção do conhecimento arqueológico
sobre a memória e a história da humanidade (CASSMAN et al, 2008).
De acordo com McGowan e LaRoche (1996, p. 4), ossos humanos são alvos de análises
sistemáticas no âmbito dos laboratórios, porém é negligenciado “o metafísico à medida que os
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dados inerentes aos restos mortais humanos se tornam primordiais”. Relacionando a isto, o
famoso antropólogo físico, William Bass (1981) diz que “do ponto de vista de um biólogo que
estuda o esqueleto humano [o re-enterro] é semelhante a queimar os livros em nossas
bibliotecas”.
Para Lima (1994), existem representações simbólicas que permeiam os ossos humanos,
que não podem ser violados, pois existem valores morais e espirituais que cercam os
indivíduos. Sendo assim, havendo uma existência de laços simbólicos que conectam o grupo
com quem já morreu, isso é evidente, segundo Silva (2014), quando nos deparamos com os
adornos e as diferentes posturas corporais dentro dos sepultamentos arqueológicos.
No que tange os ossos humanos, os mesmos contarão histórias sobre seu passado, por
meio da análise sistemática dos mesmos é possível compreender a cultura a qual pertencem
ou pertenceram. Para Silva (2014), ao analisar os remanescentes, há a possibilidade de uma
importante descrição morfológica dos mesmos, quanto ao seu perfil biológico, como também
seu contexto social. Aqui, um “(...) sepultamento é parte de um funeral e um funeral é parte de
um conjunto de rituais pelos quais os vivos relacionam-se com a morte” (SILVA, 2014, p.
50).
O ato de morrer com tudo o que ele implica, se converte sempre em uma
realidade sociocultural. Assim, a morte faz surgir, tanto no plano da
consciência individual, quanto grupal, conjuntos complexos de
representações (SILVA, 2014, p. 37).
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A ciência e a religião entram em conflitos ao se tratar dos remanescentes humanos.
Segundo Lima (1994), “este inflamado conflito ideológico entre religião e ciência, ou entre
moral e ciência, extrapolou os muros acadêmicos”. Os corpos humanos anatomizados, para
estudos científicos, ainda sofrem grande polêmica no que diz respeito às múltiplas formas de
enxergar a morte para cada comunidade envolvida. Lima (1994) também discorre que “em
nome da ciência, a remoção formal de cemitérios para instituições de pesquisa tornou-se uma
prática comum, legítima e inquestionável”. Isso decorre de formas eurocêntricas e
colonialistas de reafirmação póstuma das metrópoles sobre suas colônias, cujos troféus são
rotineiramente expostos nas instituições museais ou abandonados nas suas reservas técnicas.
O interesse nos remanescentes ósseos humanos data desde o século XVIII, no contexto
internacional. No Brasil, as coleções antropológicas se iniciam no século XIX, com a coleta
de remanescentes ósseos em Lagoa Santa pelo naturalista Peter W. Lund, os quais, até 1990,
eram denominados de restos do “Homem de Lagoa Santa”, até as pesquisas de Walter Neves
serem iniciadas na região. A partir de polêmicas, no contexto internacional, que estavam
relacionadas com a presença de remanescentes humanos e sua antiguidade no território
brasileiro, D. Pedro II iniciou uma série de expedições arqueológicas em toda extensão
nacional (SANTOS, 2019).
Souza (2014, apud SANTOS, 2019, p. 73), diz que os estudos bioantropológicos da
segunda metade do século XIX, convergiam para análises puramente antropométricas, com o
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principal objetivo classificar “raças” através de processos analíticos das estruturas ósseas,
para apresentar e documentar a diversidade humana. Neste período, que se estende até o
século XX, pesquisadores da Arqueologia Biológica estavam imersos nos estudos voltados à
anatomia óssea, tendo uma aproximação com as ciências naturais e se afastando de
perspectivas sociais e das humanidades, que também estão presentes na ciência arqueológica.
Nesse aspecto, a arqueologia se constitui cada vez mais uma ciência social aplicada.
Atualmente, existem etnias indígenas (de povos originários) que vivem em regiões
próximas aos sítios arqueológicos, e no contexto estudado, os Kapinawá convivem com esses
sítios, os quais são lugares sagrados, enxergando os sítios com uma ótica divergente a dos
profissionais da Arqueologia, cabendo o(a) pesquisador(a) conciliar suas pesquisas que são
importantes para evidenciar populações que viveram no passado e suas relações ontológicas
com povos que existem nos dias atuais.
Com isso, entendendo a extrema importância da escuta das populações que reivindicam
a cultura material escavada, coletada e analisada por profissionais da Arqueologia, através da
História Oral, serão apresentados alguns fragmentos da entrevista realizada com Dona
Roseana Prachenawá, líder da aldeia Ponta da Várzea, no dia 18 de Agosto de 2019, a partir
de visita técnica ao Sítio Arqueológico Alcobaça, Buíque, Pernambuco.
Ó, sempre quando tem um círculo, é porque morreu gente. Quando tem círculo
morreu gente. Quando ele tem assim a mãozinha, a mãozinha deles, morreu gente.
Quando... tem gente, tem inscritura por ai, que tem a perna, que tem a mão, que tem
a cabeça, então é porque morreu gente ali (Dona Roseane Prachenawá, 2019).
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São a continuação, né? A continuação da nossa vida, continuação de nós. Então nós
não morremos, nós somos donos, nós somos proprietário, nem é porque sou
indígena, vocês também que não é indígena também é proprietário do mundo, né?
Nós somos filho dessa natureza, essa mãe natureza aqui, que é a terra, ela é... ela é
sagrada, ela é sagrada para todos, né? (...) Eu fazendo uma visita dessa, eu tô
favorecendo meus encantos de luz, né? Meus encantos de luz. Essa semana eu com
certeza, eu vou me dar muito bem em tudo que eu for fazer (Dona Roseane
Prachenawá, 2019).
Essa parte aqui eles já escavam, tá vendo? Então isso dá tristeza também, porque a
gente lá sabe o que tiraram daqui? O que já aconteceu aqui? Num sabe se eles
pegaro o... o restos mortais dos nossos antepassados e levaram. Levaram pra um
canto que a gente nem conhece, né? Que a gente não sabe. Mas o bem material pra
gente é muito, mas num é tanto, agora o espiritual disso que a gente tá vendo aqui,
de tudo que a gente tá vendo aqui eles nunca vai escavacar isso aí, porque isso aí
tem... ali tem inscritura rupestre naquela pedra, como é que eles vai tirar aquela
pedra dali? Eles não vão escavacar isso aí, quem tem conhecimento não vai, nem
deixa. Isso aqui é muito forte, espiritualmente, não vai... num vão nem mexer mais
nisso aí (Dona Roseane Prachenawá, 2019).
Assim sendo, através dos fragmentos da entrevista com Dona Roseane Prachenawá, é
pertinente que façamos uma reflexão através da pergunta de Funari e Robrahn (2008), que
questionam “quem se beneficia da pesquisa arqueológica?”. É imprescindível que
profissionais da Arqueologia se questionem constantemente, “Minha pesquisa está retornando
resultados às comunidades envolvidas? Eu realmente procuro saber se existem comunidades
próximas aos sítios que irei escavar? E quais são as relações das mesmas com o referido sítio
arqueológico?”
15
Corpos que fumam: gentes diferentes, cachimbos diferentes6
17
instrumento do corpo no estado de queda e devido ao pecado a alma tem necessidade do
corpo, cujos serviços lhe são indispensáveis (ABBAGNANO, 1998, p.211).
O corpo fez uso de alucinógenos, fumou o tabaco , a paricá e tantas outras ervas
excitantes, como prazer, vício e pecado da alma, faziam parte da vida cotidiana dos povos
indígenas e depois dos europeus. Plantas com substâncias narcóticas promoviam o estupor ou
a letargia, poderiam aliviar ou suprimir a dor, como também logravam ao comportamento
psicodélico com alucinações. Enquanto os cachimbos, eram apenas instrumentos ou artefatos
auxiliares do consumo (SANGIRARDI JR, 1983).
Do termo fumo deriva-se da palavra fumaça, que se inala ao fumar (NAVARRO, 2013,
p.380). A presença e o uso da fumaça remetem a utilização do fogo e da fogueira pelos povos
indígenas, expondo a inalação de ervas sejam consumidas pela queima direta nas fogueiras ou
inspirando com artefatos de fumar pelas vias orais ou nasais (COOPER, 1986, p.105).
O uso ritualístico da fumaça era comum entre os indígenas das Américas. Também
ingerindo substâncias alucinógenas, como o tabaco, e fumando em cachimbos. O cachimbo
era um objeto de profunda adoração, presidia às cerimônias mágicas e religiosas, presentes
nos momentos supremos, nas grandes decisões, na hora de partir para a guerra e na discussão
dos tratados de paz (SANGIRARDI JR, 1983, p.101).
Por volta de 1598, ingleses fumavam tabaco e os cachimbos de cerâmica tinham formatos
de uma pequena concha. Depois de 1617, teve início a fabricação na Holanda, com o inglês
William Baernelts; em seguida, nos dois países, a produção foi expandida em séries de
cachimbos de caulinita (OSWALD,1960, p.1-9). Com esse cenário, na Europa no século
XVII, o tabaco era adorado como “erva santa” e o companheiro de uso das mais diversas
gentes e grupos sociais, desde abastados, como príncipes na corte, pessoas de poucas posses,
como os camponeses nas cabanas, exércitos nas campanhas e até as musas na casa de
escritores. Consumir tabaco tinha várias formas, gestos corporais e significados para o corpo e
a alma, entre eles Fernando Ortiz (1978) descreveu um ritual: “o tabaco é um rito social de
paz e amizade, é o amigo mais constante do soldado e, na guerra, é sempre e em todos os
momentos sua paz". Chamavam na Europa de “erva santa”, usado sob a forma do rapé (pó),
mascando folhas secas, bebendo e fumando com o cachimbo (ORTIZ,1973, p. 266; MELLO
NETO, 1983, p.128 e 132).
A palavra cachimbo encontra-se na África, na língua kimbundu do termo kixima, com o
significado de “tanque de água ou cisterna” (JÚNIOR,1930, p.151). Porém, antes dos
africanos e dos europeus, os cachimbos eram usados pelos povos originários americanos e na
América, o artefato de fumar era chamado de petymbûaba, sendo atribuída a palavra
18
cachimbo da derivação dos termos da língua do tupi antigo, como: catimbó, catimbaba,
catimbaua e catimbu (NAVARRO, 2013, p. 380).
Como resultado de dezenas de intervenções arqueológicas ocorridas em sítios da
Capitania de Pernambuco, do século XVII, poderá conferir a incidência de cachimbos
cerâmicos brancos de caulinita e avermelhados (SILVA, 2015). Quanto as diferenciações
desses artefatos de fumar, deve-se considerar as cores das massas cerâmicas, podendo ser
classificados em cachimbos brancos e avermelhados. Os cachimbos com argilas brancas são
subdivididos em calcárias e não calcárias e diferem das argilas avermelhadas. Encontram-se
subdivididas com referências na plasticidade, na refratariedade e usadas para comparar com as
massas cerâmicas e a queima cerâmica pré-histórica da histórica (SHEPARD, 1985, p.153-
154). Os cachimbos de argilas avermelhadas apresentam-se com mais alto grau de oxidação e
suas massas cerâmicas são constituídas por hematitas e as formas hidratadas de óxido férrico,
goethita e limonita (SHEPARD, 1985, p.16).
No nosso estudo prévio com os artefatos cachimbos procedentes de sítios arqueológicos
da capitania de Pernambuco, estes indicam que gentes consumiam cachimbos: os holandeses
(“europeus”) usavam artefatos de fumar brancos de caulinita, os avermelhados pelos “luso-
brasileiros” e “indígenas” (denominados de “não-europeus”). Pode ser demonstrado que, em
cada grupo, e através do hábito de fumar cachimbo cerâmico, a presença de resistências
culturais e afirmação de identidade social.
Entre os segmentos sociais eram usadas variedades de formas de cachimbos. Para os
cachimbos cerâmicos dos povos originários (“indígenas”) apresentamos o tipo tubular,
descrito por Carlos Ott (1944), como completo com a haste ou só o fornilho para encaixe da
haste na mesma linha horizontal do tubo, podendo ser chamado assim de cachimbo tubular.
(OTT, 1944, p. 30). Para os cachimbos “luso-brasileiros”, este termo é empregado com
referência aos artefatos de fumar produzidos e utilizados pelos indivíduos de origem
portuguesa e brasileira (FERREIRA, 2008, p. 424). Também, encontram-se outros termos,
como “cachimbo de barro”, designado para artefatos de produção colonial e pós-colonial,
inseridos nos contextos de influência europeia e não ameríndias datadas antes da invasão
europeia. Os cachimbos produzidos de argilas vermelhas, encontravam-se geralmente com a
morfologia angular e de haste descartável de origem vegetal, opondo-se aos cachimbos
europeus, também angulares, fabricados de argila branca (de caulinita), inseridos numa rede
global de comércio (ALVES, 2015, p.1101)
O cachimbo surgiu com a funcionalidade de ser um artefato de fumar - para o corpo e do
corpo - e seus elementos morfológicos revelaram-se através de formas e tamanhos. O fumar
19
depende da conexão corpo-cachimbo, essencialmente. Também todos os atributos ligados a
este instrumento, poderão evidenciar a identidade social de determinado segmento cultural e
conferir sua identidade social de gentes diferentes fumando cachimbos diferentes no contexto
colonial pernambucano.
Frente a esse cenário, nos primeiros estudos, era priorizada uma abordagem dos
registros rupestres como um sistema visual de comunicação, pautados nas primeiras propostas
apresentadas por Pessis (2003, p. 56), onde os grafismos rupestres permitiriam “Identificar os
modos como se apresentam diferentes culturas e descobrir os temas mais valorizados”
(PESSIS, 2003, p. 68).
7
Este texto é de autoria de Itelmar de Negreiros Oliveira, 2023.
20
elaboradas novas pesquisas que se propõem construir interpretações sobre gênero e
sexualidade nas sociedades pré-coloniais a partir dos registros rupestres do PNSC, com a
participação do pesquisador Michel Justamand (JUSTAMAND e FUNARI, 2011;
JUSTAMAND, 2012; OLIVEIRA e JUSTAMAND, 2021).
Frente a esse contexto e à luz dessas perspectivas queer e demais teorias críticas aos
padrões eurocêntricos, é fundamental problematizarmos a generificação dos registros
rupestres a partir dos discursos arqueológicos (PAGNOSSI, 2013; RIBEIRO, 2017a;
GONTIJO e SCHAAN, 2017). Podemos destacar alguns estudos que vêm sendo
desenvolvidos nas ciências sociais nas últimas décadas, como as propostas defendidas por
Butler (2003) no âmbito da teoria Queer, nas quais a autora vai defender que a noção de
gênero é uma construção social não universal. Nessa mesma direção, temos as pesquisas das
arqueólogas Margareth Conkey e Janet Spector (1984) que problematizam o fato dos estudos
arqueológicos se sustentarem em um discurso masculinista e falocêntrico para tentar
reconstruir o cotidiano pré-colonial, no qual o macho é o caçador, responsável pelas
atividades mais importantes de subsistência e as fêmeas estão sempre atreladas a um contexto
secundário e “menos importante” (CONKEY; SPECTOR, 1984, p. 04).
21
norma pelas sociedades ocidentais/ocidentalizadas, e que, por sua vez, são impostas sobre
povos em posição de subalternidade (RIBEIRO, 2017b; PAGNOSSI, 2017).
Além disso, precisamos nos conscientizar de que binarismo de gênero mata, que
centenas de milhares de pessoas são agredidas, violentadas e mortas devido a pressuposições
de uma ordem natural do mundo e que determinados discursos arqueológicos, de forma
consciente ou não, tentam corroborar. Mas é possível superá-los, neutralizando as expressões
materiais dessas assimetrias na prática arqueológica, nas relações entre as pessoas e na
projeção desse binarismo ao passado. Trazer os estudos de gênero e Queer para os discursos
arqueológicos é uma forma de ampliar e realçar novos campos de possibilidade de se pensar
sobre o corpo e sobre o desejo entre os povos pré-coloniais.
22
Isso implica em reconhecer a existência de identidades de gênero que vão além das categorias
binárias, considerando a possibilidade de figuras que desafiam os padrões convencionais.
Ao considerarmos o corpo humano também como ecofato10, pois tal conceito está
associado aos processos de transformações de materiais em objetos/artefatos no qual são
atribuídos formas, funções e significados; na materialidade arqueológica construída pelos
vivos para o morto, esse corpo assume também papéis de representações na trama social em
suas relações de pertencimento, tornando-se matéria das instâncias operacionais das práticas
8
Texto elaborado em 2023 por Vanessa Sial.
9
Simon Mays dedicou todo um capítulo para o trabalho arqueológico em cemitérios. Além de evidenciar a
importância de técnicas e protocolos de escavação em sítios com remanescentes humanos, Mays destacou as
sutilezas no olhar arqueológico de modo que o corpo pudesse ser percebido em estreito diálogo com os vivos que
foram partes integrantes das atitudes diante da morte.
10
O ser humano em si mesmo, no contexto arqueológico pois também resultante de um processo da cultura
material. (SILVA, 2014).
23
funerárias. Sendo assim, o corpo também carrega consigo registros da sua existência
psicossomática, sociocultural. Até mesmo a ausência do corpo pode conter uma gama de
significados. Os corpos sejam em vida ou na morte nos contam narrativas, fatos e histórias.
Os estudos cemiteriais, sobretudo as pesquisas acadêmicas que trataram de analisar a morte
no Brasil Oitocentista, evidenciaram como marco político o processo de proibição dos
enterros realizados no interior ou em cemitérios anexos das igrejas católicas para a
implementação do novo modelo de cemitérios, em espaços afastados do convívio cotidiano e
íntimo com os vivos; provocou de forma decisiva uma série de transformações e adaptações
dos costumes fúnebres11.
Foi durante o século XIX, em relação ao corpo humano, na persona do morto, que o
saber médico científico higienista introduziu na sociedade brasileira um novo conceito:
cadáver. Se antes o corpo morto estava em consonância em suas rede de relações humanas,
quando poderia ser tocado, ungido, receber maior tempo nos rituais de práticas funerárias;
esse mesmo corpo, nesse novo conceito de corpo-cadáver passou a ser objeto de medo; pois
esse corpo biológico em processo iminente de decomposição, de acordo com o pensamento
científico da época, seria um potencial risco para a eclosão e contaminação do ar provocando
doenças epidêmicas letais. A chamada Teoria dos Miasmas, que já era uma relevante corrente
de pensamento no final do século XVIII na Europa Ocidental, no Brasil, assumiria seu
protagonismo a partir da consolidação das faculdades de Medicina no Rio de Janeiro e na
Bahia (CASTRO, 2007).
De acordo com o professor Dr. Francisco Carlos Félix Lana, da Escola de Enfermagem
e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em aula magna para o ano letivo de 2015 sobre o tema Determinantes
Sociais de Saúde (DSS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venancio -
(EPSJV/Fiocruz), nos lembrou que o conceito de miasma não foi concebido na modernidade.
Há 2.500 anos, o médico grego Hipócrates explicava o processo saúde-doença por meio do
que ele chamou de Teoria dos Miasmas, que dizia que as doenças são transmitidas pelo ar,
águas e outros locais insalubres. Segundo o professor [Francisco Lana], Hipócrates foi o
primeiro a dar uma explicação racional para as doenças e não considerá-las como um
fenômeno sobrenatural. Ele foi o primeiro a usar a palavra epidemia para diferenciar as
doenças epidêmicas, que nos visitam, das endêmicas, que têm um curso longo de duração 15
[grifos meus]
O professor Dr. Lana ainda nos apontou que os corpos estão diretamente relacionados
aos espaços nos quais os vivos interagem. Em suas palavras “o processo saúde-doença por
meio do que Hipócrates16 denominou-se em Teoria dos Miasmas, dizia que as doenças são
transmitidas pelo ar, águas e outros locais insalubres.” 17 Se a Teoria dos Miasmas, pré-
jun 2023.
13
Campo Santo [ad sanctos apud ecclesiam] - denominação aos cemitérios que receberam bênção solene de
autoridade eclesiástica. O Império do Brasil professava no catolicismo a religião oficial do Estado.
14
Sobre a reforma cemiterial da Corte e o papel decisivo da epidemia de Febre Amarela, recomendo Rodrigues
(1997).
15
Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/acontece-na-epsjv/determinacao-social-da-
saude#:~:text=H%C3%A1%202.500%20anos%2C%20o%20m%C3%A9dico,%C3%A1guas%20e%20outros
%20locais%20insalubres. Acesso em: 09 jun 2023.
16
Hipócrates nasceu em 460 a.C na ilha de Kós ,uma das ilhas gregas do Dodecaneso, localizado no leste do mar
Egeu. Considerado o Pai da Medicina científica. "Sua fama como clínico teria começado em 430-429 a.C. Nesta
época, Atenas sofria com uma peste que assolava a população. A epidemia foi derrotada depois que Hipócrates
mandou acender fogueiras pela cidade. Ele teria feito isso a partir da observação de que os artesãos, obrigados
pelo ofício a se manter perto do fogo, pareciam imunes ao contágio da doença."Disponível em:
https://grupomedcof.com.br/blog/hipocrates-pai-da-medicina/ Acesso em: 10 jun 2023.
17
Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/acontece-na-epsjv/determinacao-social-da-
saude#:~:text=H%C3%A1%202.500%20anos%2C%20o%20m%C3%A9dico,%C3%A1guas%20e%20outros
%20locais%20insalubres. Acesso em: 09 jun 2023.
25
advento Louis Pasteur e suas descobertas sobre a existência de formas de vida microbiológica,
considerava que os odores pútridos se propagavam no ar e que o corpo vivo, ao respirá-los,
contrairia doenças. Deste modo, seja no século XIX ou no século XXI, o corpo que vive em
condições com baixos níveis de DSS, é, por si, fator de risco. O Dr. Lana vai mais longe e
torna explícito para o nosso tempo histórico, ao evidenciar os trabalhos produzidos pelo Dr.
Jaime Breilh, médico epidemiologista equatoriano, cujos trabalhos têm ênfase em relacionar
História Política e Epidemiologia Social. O pensamento de Breilh é pragmático a respeito da
importância não somente na descoberta das causas das doenças epidêmicas; mas sobretudo
enquanto nós seres humanos somos responsáveis e vítimas de como nos relacionamos com o
meio ambiente (biomas) e consequentemente, os níveis de distribuição das doenças
(PEREIRA DE SOUZA et al, 2019).
Sendo assim, os vivos adultos possuem o protagonismo para que esse novo corpo-alma
recebesse o Primeiro Sacramento - Batismo. Quanto antes fosse realizado o ritual, menos
riscos teria essa existência de ser condenada ao Inferno (CASTRO, 2007). Para Castro (2007),
durante o século XIX, em Pernambuco, se utilizava o termo “Innocente” para corpos humanos
do nascimento até por volta dos 4 meses de vida. Se o recém-nascido viesse a falecer, o
destino dessa alma seria o Limbo. O Limbo era na cosmogonia católica um lugar no pós-vida
privilegiado que carregaria consigo somente o Pecado Original cometido por Eva e Adão. Do
ponto de vista biológico o marco dos 4 meses é o período que o corpo humano começa a
desenvolver a capacidade de sustentar seu tronco e cabeça, passando a ter a habilidade de
sentar-se. A partir dessa fase, esse corpo já poderia ser considerado Pagão. O conceito de
18
Na cosmogonia católica, após a morte existem noções de condenação/absolvição dos pecados (Primeiro Juízo)
e a plena crença na promessa da ressurreição do corpo e sua alma no Juízo Final. Temos, portanto, um sistema
específico de práticas funerárias que não se encerram com a morte biológica.
26
infância, de acordo com os Regulamentos do Cemitério Público do Recife eram de óbitos de
até 7 anos de idade. Estes recebiam a denominação de Párvulo. Após essa idade, não há
distinção entre o corpo infantil ao corpo adulto.
Com a finitude desse corpo católico, a alma faria um longo percurso metafísico no pós-
morte em busca de sua salvação. Deste modo, o corpo devoto católico precisava estabelecer
relações de reciprocidades com os vivos, sobretudo fazendo parte de irmandades e confrarias
leigas, com o intuito de garantir o chamado Bem Morrer (QUINTÃO, 1997). Ter uma vida
regrada pelos Sacramentos e em constante vigilância para não cometer pecados e contar com
suas redes de sociabilidade, garantiria que esse corpo-alma não caísse em esquecimento. A
crença católica na imortalidade da alma era uma constante preocupação sobre as incertezas de
uma condenação sumária ao Inferno ou se essa alma passaria a cumprir penas no Purgatório.
Mais do que temer a morte propriamente dita, esse corpo-alma fomentava o medo do Além.
Portanto, era nesse temor que se estreitavam as relações entre os vivos. Criava-se assim, a
expectativa de que os fiéis cuidassem uns dos outros, tanto do corpo pecador como da alma
pecadora (RODRIGUES, 2005).
No artigo de Rodrigues (2022) a autora incluiu a seguinte nota de rodapé: “Na dinâmica
das associações religiosas, as ordens terceiras reuniam membros da elite social desde o
período colonial”. A este respeito, ver Martins (2009).
De acordo com Silva (2014), Saxe (1970) procurou estabelecer relações entre as
práticas funerárias e quais níveis de entrelaçamento com o objetivo de diagnosticar a
complexidade da organização social em um determinado universo cultural. Para Saxe (1970):
Quando os arqueólogos cavam um conjunto de sepulturas não estão escavando somente
indivíduos, mas uma persona social coerente, não somente engajada em relacionamento
entre outra personas sociais, mas que estava de acordo com as regras sociais ditadas com
amplitude no sistema social. (SAXE, 1970, p.4, apud SILVA, 2014, p. 60) [grifos meus]
Silva (2014) percebe em Saxe (1970) que o conceito de Persona Social “ é entendida
como um conjunto de várias identidades como apropriadas para uma dada interação social”.
Para os estudos arqueológicos históricos sobre os cemitérios resultantes das políticas de saúde
pública no Brasil no Segundo Reinado, o corpo é também intangível, pois nem sempre é
possível realizar pesquisas de escavação. Contudo, toda a necrópole como as materialidades
apresentadas em cada jazigo, cada lápide ou mesmo uma cova rasa, são representações de
papéis sociais que dialogam muito mais com os vivos do que com os mortos. Por mais que o
corpo católico em vida no passado reservasse recursos para o seu ritual funerário, o morto
dependia dos vivos para que suas vontades fossem atendidas. Deste modo é pertinente pensar
que o resultado dessa interlocução no imaginário católico é a simbiose que fomenta o
benefício mútuo, tanto dos mortos como dos vivos.
19
No Recife do século XIX os rituais funerários noturnos, os cortejos fúnebres para os enterros, foram proibidos
a partir da regulamentação do Cemitério Público do Bom Jesus da Redenção [Cemitério de Santo Amaro]. No
ano de 2022, em virtude do fenômeno climático que provocou altíssimo índice pluviométrico para o mês de maio
e persistiu até o mês de junho, afetando a capital, toda Zona Metropolitana, municípios vizinhos, Zona da Mata e
Agreste pernambucanos ocorreram 132 mortes. O Instituto de Medicina Legal (IML no mês de maio chegou a
receber mais de 50 corpos em um único dia de plantão para dar os encaminhamentos necessários. O Estado de
Calamidade fez com que o Cemitério de Santo Amaro tivesse seu funcionamento de 24 horas.
Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/07/05/sobe-para-132-numero-de-mortes-
provocadas-pelas-chuvas-em-pe-obitos-sao-confirmados-no-agreste-e-mata-sul.ghtml Acesso em: 10 jun 2023.
28
representações culturais na complexidade de um determinado modo de existir. A paisagem
edificada da cidade do Recife é fruto da colonialidade portuguesa no Recife que se constituiu
ao longo de quatro séculos, desde o Período Colonial e continua a existir/resistir no espaço
urbano do século XXI. O resultado dessa interlocução é a simbiose entre os vivos e os mortos,
bem como a evidenciação dos contrastes estamentais em que esse os corpos ocupam na trama
social.
Foi nessa pesquisa que me deparei com o uso sistemático do ritual do sepultamento
secundário pelo uso dos ossuários nas igrejas com datações nas lápides em menos de uma
década, a contar com a data de inauguração do Cemitério Público do Recife em 1º de março
de 1851. Compreender as dinâmicas para o retorno dos mortos nas igrejas é o atual tema de
minha pesquisa de doutoramento em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Quais performances e personas sociais
estão representadas nesses ossuários das igrejas do Recife Histórico? Como foi possível o
processo desse retorno para os lugares mais sagrados na materialidade terrena católica,
apresentado em quantidade de mortos e sem intervalo de décadas até o tempo presente? Cada
igreja secular, em sua maioria com mais de três séculos de construção, são também cemitérios
arqueológicos. Por que retornar para essas Velhas Igrejas? Esta pergunta é a questão que
levanto em meu projeto de pesquisa. Como as materialidades arqueológicas apresentadas nos
ossuários podem responder quais alegorias os mortos realizam o diálogo com o mundo dos
vivos?
Também cabe-nos questionar se esse retorno dos corpos mortos para as igrejas foi
específico do catolicismo pernambucano ou se tal estratégia também foi pensada em outras
cidades históricas brasileiras. Quais foram suas especificidades no âmbito de uma arqueologia
funerária? Como foi possível tal retorno? Deixo aqui essa provocação acadêmica e espero
instigar novos projetos tratem do tema e ofereçam mais sutilezas da tão complexa relação de
proximidade e reciprocidade entre os vivos e os mortos; pois é na hora da morte que esse
corpo-alma em partilha devocional os contrastes sociais se igualam. Enquanto os ricos
precisam dos pobres do mesmo modo que em vida também os exploravam, os pobres
continuam na fé, mantendo os laços da trama da história social da cultura.
20
Este tema do capítulo foi escrito por Igor Gadelha Soares (bolsista CAPES), em 2023.
30
Remontar o contexto histórico norte-riograndense é possível, tendo em vista a
quantidade de trabalhos produzidos a respeito. A interiorização do Rio Grande do Norte
completou-se entre os séculos XVIII e XIX, motivada em grande parte por atividades
econômicas, tais como a agricultura e a pecuária. Nesse contexto, passaram a ser construídas
casas de fazendas no Seridó Potiguar, que eram habitadas por seus proprietários, agregados,
trabalhadores e escravizados, possivelmente. Nas áreas dessas fazendas eram desenvolvidas
as crias de gado, atividades agrícolas e de manufatura. A partir disto, podemos compreender
que a região habitada passou a existir e a se desenvolver: nascem povoados e cidades através
de concentrações dessas populações advindas do processo de expansão, no qual o comércio
tornou-se um dos principais fatores de sociabilidade entre os sertanejos. Portanto, através da
materialidade produzida e vivenciada por essas populações, podemos entender um pouco mais
sobre as vivências de um passado não tão distante.
Apesar dos avanços nos estudos que compreendem o campo da Arqueologia, há uma
dificuldade de resgate na abordagem pelo pouco que se tem produzido, pois, na Arqueologia
Histórica Potiguar os primeiros trabalhos começam a ser desenvolvidos a partir dos anos
1990. Sendo assim, a quantidade de trabalhos ainda não é expressiva. Podemos dizer que a
maioria das pesquisas acadêmicas adotou uma maior circunscrição na região costeira ou
litorânea. O espaço sertanejo e a ocupação histórica da região semiárida tem sido pouco
abordados, isso, em meio a essa pequena quantidade de trabalhos ligados ao desenvolvimento
da Arqueologia Histórica nas terras potiguares.
Somente no final da década de 2010 e início dos anos 2020 é que surgiram trabalhos
cujo enfoque principal foram os sítios e evidências arqueológicas ligadas a ocupação histórica
no sertão do Rio Grande do Norte. Nesse sentido, podemos citar as dissertações de Oliveira
(2021), intitulada Escravidão e Terras de criar gado em um lugar denominado sertão: uma
arqueologia das moradas de casas e miudezas cotidianas do Seridó Potiguar, séculos XVIII e
XIX; e de Souza (2021), cuja dissertação se chama Sítio Culumins: um olhar sobre o sertão
do Seridó, séculos XVIII e XIX. Além desses trabalhos podemos ainda nos referir ao artigo
produzido por Silva, Souza e Batista (2021), em cujo texto são abordados os dados ligados ao
desenvolvimento de pesquisas arqueológicas desenvolvidas em fazendas instituídas no Seridó
Potiguar, entre os séculos XVIII e XIX.
Os dados que vêm sendo apresentados para essa região, caracteriza e indica diversas
possibilidades de pesquisa e de temáticas associadas, desde os elementos ligados às estruturas
construtivas até aos bens arqueológicos móveis, como cerâmicas utilitárias, faianças e
31
evidências arqueofaunísticas. Para além disso, há dados que vão no mesmo sentido do que o
observado em outras áreas sertanejas no Nordeste do Brasil, em relação à produção e
circulação de bens locais.
Esses espaços de moradias eram construídos nos locais mais altos do sítio, sempre
ficavam próximos de rios ou riachos, lugares que poderiam viabilizar a construção de açudes
para que as necessidades da fazenda fossem supridas. As casas eram construídas com
alicerces de pedras, paredes em que a espessura variava entre 30 a 60 centímetros, tijolos
medindo aproximadamente 20 centímetros, a argamassa utilizada era o barro, areia ou cal. Os
pisos eram compostos por placas de barro, alpendre feito de pedras, os vãos das portas e
janelas eram retos ou em formas de arcos, e vale destacar no caso das casas que também nota-
se a presença de sótãos, nesse caso, o piso é composto com madeira fixados por cravos e
pregos, sustentados por longas e firmes colunas de madeira, geralmente as portas da frente da
residência ficavam posicionadas para setor onde fosse possível visualizar as demais
construções, como: currais, casa de farinha, armazém, fábrica de rapadura. Essa visão era
estratégica para que o fazendeiro observasse tudo que estava acontecendo na sua propriedade
e demonstrar controle (DINIZ, 2008).
32
construção social do indivíduo. No referido projeto, podemos questionar sobre quem são essas
populações sertanejas, de onde vieram, o que produziam e para quem. Essas questões podem
ser solucionadas, em parte, através da cultura material, documentações e História Oral.
Por exemplo, o corpo sertanejo é a expressão material e sociocultural do povo
seridoense, seja por meio do sotaque, gesticulação, modos de produção de queijos e outros
alimentos, as expressões artísticas, entre outras. Fortalecendo o conjunto identitário do corpo
pertencente ao lugar, pouco mencionado no cotidiano, assim como, nos trabalhos
arqueológicos contemporâneos, fazendo-se essencial a busca pelo resgate das raízes
arqueológicas do povo sertanejo, como também, das suas contribuições para o incremento da
Arqueologia Histórica Potiguar.
21
Texto de autoria do doutorando de arqueologia, André Laurentino Silva, do Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia da UFPE.
33
O exercício e as pesquisas nas ciências biomédicas exigem dedicação, prudência e
perícia no trato com um paciente/cliente, e as tomadas de decisões erradas ou um erro médico
pode agravar o quadro, produzir sequelas ou até causar a morte do cliente.
O mesmo corpo adoecido pode ser lido por olhares de outras ciências. Não seria
diferente com a arqueologia. Entretanto, assim como nas biociências e nas ciências
biomédicas, os seus modelos diagnósticos envolvem conhecimentos semiotécnicos próprios,
exigindo dos que se propõem enveredar por esta área, um aprofundamento em conhecimentos
específicos (MAYS, 2018; LAWLER, 2016).
Sob o olhar da Arqueologia da Doença, afirma Larsen (2015), o arqueólogo visa
construir narrativas sobre as doenças, os comportamentos humanos, estilos de vida e origens
dos grupos pretéritos. Ela possibilita, de acordo com Brickley, Ives e Mays (2020), uma
melhor compreensão, o estabelecimento de redes e ao nível de acometimento que as doenças
afetaram os seres humanos individual ou coletivamente, no passado. Assim, é possível inferir
sobre as doenças, a qualidade da vida humana e seu efeito no cotidiano dos nossos
antepassados, ressaltando o efeito anacrônico das interpretações e a individualidade de cada
pesquisador.
Por isso, cabe ao arqueólogo que lida com os remanescentes corpóreos, lembrar que
tomadas de decisões inadequadas, modelos de estudos insuficientes, pouco conhecimento das
ferramentas aplicadas, imperícia, imprudência e negligência podem destruir todo o seu
trabalho, descredibilizá-lo, induzirem à elaboração de inferências e construção de narrativas
inverossímeis.
O estudo do corpo sobre o olhar da arqueologia da doença possibilita o uso de
inúmeras ferramentas, inter-relacionadas às possibilidades apresentadas pelos remanescentes.
Desde os métodos mais tradicionais, osteoscópicos e osteométricos, passando por recursos
utilizados na prática médica, como a imaginologia, a microscopia e a biologia molecular
(ROBERTS; MANCHESTER, 2010; ORTNER; BUIKSTRA, 2019; BRICKLEY; IVES;
MAYS, 2020; CHHEM; BROTHWELL, 2007; MECO, 2021; BROWN; BROWN, 2011).
A existência humana psicossomática, evidencia-se na saúde ou na doença. Por isso, a
análise de remanescentes isolados ou em grupos, devem ser contextualizadas com aspectos
temporais, ambientais, sociais, históricos e culturais, visto que os mesmos nele se inserem
(SILVA, 2018).
Assim, os remanescentes ósseos de que trata este estudo foram resgatados por uma
campanha arqueológica realizada em 2017, coordenada pelo arqueólogo José Aylton Coelho
de Mello e sua equipe, por ocasião do processo de revitalização do Forte Santo Inácio de
34
Loyola (SILVA, 2018), município de Tamandaré, situado na Microrregião da Mata
Meridional Pernambucana (IBGE — INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2023).
Também conhecida como Forte de Tamandaré, a edificação original remonta ao
século XVII, do período da ocupação da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) no
Nordeste, sendo edificado pelos portugueses em 1645. É tombado, pelo Governo do Estado de
Pernambuco, desde 1985, conforme a Lei Estadual n.º 7970/1979. Decreto n.º 6239/1980
(SILVA, 2018)
O Forte Tamandaré é citado em diversos episódios e movimentos da história
pernambucana, como Guerra dos Mascates (1710–11), a Revolução Pernambucana (1817), a
Confederação do Equador (1824), a Guerra dos Cabanos (1832–35) e a Segunda Guerra
Mundial (1939 a 1945). Em suas imediações foi construído um lazareto, utilizado para
quarentena aos recém-chegados do porto próximo e, como local de isolamento para pessoas
acometidas por doenças infectocontagiosas (SILVA, 2022).
Os dois esqueletos humanos, que norteiam estes trabalhos, foram encontrados
inumados, na área externa do terrapleno lateral direito nordeste da fortificação, em uma
deposição simples ― ou primária ― dupla, encontrando-se um deles, a quem denominamos
FSIL — I1, posicionado sob o outro, o FSIL — I2. Eles foram entregues para curadoria e
análises bioarqueológicas, ao Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense — LABIFOR,
ambos com sinais de processos de degradação em campo. Para os estudos, foram consideradas
apenas estruturas anatômicas, devido à escassez de materiais contextuais, e, dentre elas, as
que propiciavam condições para as análises tradicionais ectoscópicas e osteométricas cujo
aprofundamento resultou em nosso trabalho de conclusão de curso (SILVA, 2018) e
dissertação de mestrado (SILVA, 2022) pelo Programa de Pós-Graduação em Arqueologia ―
UFPE.
Os atributos biológicos individualizantes de um esqueleto são para a arqueologia,
conforme White, Black e Folkens (2011), os componentes basilares do trabalho
bioarqueológico. Portanto, sexo anatômico, idade à morte, estatura ou ancestralidade
geográfica dependem de diversos fatores a serem considerados para cada método analítico e
devem atuar como estimativas probabilísticas e não como fatos, seja no estudo das práticas
mortuárias, nas pesquisas sobre doenças e/ou nas análises paleodemográficas.
Desta forma, as análises para as estimativas de sexo anatômico, ressaltando conforme
as inspeções visuais de cinco observadores distintos, em momentos diferentes, considerando-
se os dados obtidos por ocasião das análises para o trabalho de conclusão de curso e
35
extrapolando-os em relação a outros dois obtidos para as análises do mestrado. Baseados nos
descritores propostos por Buikstra e Ubelaker (1994 apud WHITE; FOLKENS, 2005, p. 390),
Krogman, Iscan e Steyn (2012), Mays (2002) e Serrula (2013, p. p. 62, Tab. 2), ambos os
indivíduos FSIL — I1 e I2 foram classificados como pertencentes ao sexo anatômico
masculino.
Em relação à estimativa da idade à morte, foi utilizado o método de inspeção visual
das suturas cranianas, de pelo método de Meindl e Lovejoy (1985). Os dados foram obtidos
em trios de observadores, sendo contrastados com o que havia sido obtido no TCC. Desta
forma, o FSIL — I1 teria uma idade à morte estimada de aproximadamente 45 anos, enquanto
o FSIL — I2, situava-se entre 53 e 56 anos.
Para a projeção da estatura dos indivíduos foram considerados ossos longos
capacitados, seus comprimentos máximos longitudinais e as respectivas médias, considerada a
tabela de Trotter e Gleser (1977) cujos dados são associados ao sexo anatômico e à afinidade
populacional. Assim, o FSIL — I1 poderia ter, em vida uma altura situada entre 1,66 m e
1,67 m, enquanto o FSIL — I2 teria em média, 1,65 m.
A pesquisa de ancestralidade foi melhor aprofundada e discutida na dissertação. Para
as inspeções morfoscópicas e craniométricas foram considerados os métodos apresentados em
Bass (2022) Byers (2016), sendo também acatados os dados obtidos pela tomografia
computadorizada, TC3D— considerados os descritores marcados — os quais foram
analisados pelo programa Ancestrees.
Para a proposição das regiões populacionais a partir das quais o programa pudesse
cruzar dados, foram consideradas as populações afins apresentadas nos resultados das análises
morfoscópicas e morfométricas preliminares. Assim, FSIL — I1 e FSIL — I2 apresentaram
uma provável ancestralidade africana.
Com esses dados em mãos, o conhecimento da semiotécnica clínica e arqueológica,
bem como a história natural das doenças, a pesquisa seguiu os passos indicados pelos
especialistas.
Em relação às regiões do esqueleto indicadas para análise de distribuição das lesões,
por Ortner (2003), Ortner e Buikstra (2019), foram considerados, do esqueleto axial, o
neurocrânio, o viscerocrânio com a mandíbula, sendo observadas remodelações ósseas. A
maxila, bastante porosa, na sua face palatina com perda post mortem dos dentes 1.1; 1.2; 1.7;
2.2 e 2.5 e antemortem do 2.2 e 2.7. Ausência da espinha nasal e remodelações interessantes
na abertura nasal anterior, podendo ser consistente com sindrome nasomaxilar / facies leprosa
36
moderadamente expressa, talvez por não se tratar de uma forma mais agressiva do mal de
Hansen.
Ainda sobre as indicações de Ortner e Buikstra (2019), Ortner (2003) referentes a
distribuição esquelética das lesões do esqueleto axial — o crânio e a mandíbula. Do esqueleto
apendicular foram observadas as extremidades dos membros superiores e a tíbia. Foram
observadas remodelações em muitos elementos ósseos.
O crânio de FSIL-I2 encontrava-se edentado, com generalizada perda dentária
antemortem, o que pode indicar aspectos relacionados aos hábitos nutricionais, higienização
bucal, doenças carenciais, infeções periodontais e/ou sistêmicas, durante a vida desta pessoa.
O palato duro apresentava-se bastante poroso com um interessante espessamento em seu
contorno, corroborando com a proposição de disfunções metabólicas e/ou carenciais
(ORTNER, 2003; ROBERTS; MANCHESTER, 2010; BRICKLEY; IVES; MAYS, 2020).
O esqueleto, que se encontrava em nossa bancada de análise no LABIFOR, não
apresentava as extremidades dos membros inferiores. A tíbia esquerda apresentou sinais de
alteração periosteais, talvez do osso compacto — o que sugeriria análise histomorfométrica
posterior — em seus terços médio e distal, podendo ser compatível com algum processo
infeccioso durante a vida ou podendo estar relacionada à orientação e distribuição irregulares
das fibras colágenas da matriz óssea, ou a um processo de hipervascularização da superfície
tecidual (ORTNER, 2003).
Algumas falanges proximais dos quirodáctilos apresentavam forames expandidos,
bastante frequente em estudos arqueológicos com portadores do Mal de Hansen em sua forma
Wirchoviana (ROBERTS; MANCHESTER, 2010), e porosidade na epífise distal do primeiro
metacarpal esquerdo, podendo estar associado tanto à primeira hipótese, quanto às doenças
articulares.
A necessidade de musealização do material, alguns problemas técnicos no seu
manuseio e o alto custo dificultavam pesquisas biomoleculares que poderiam auxiliar numa
maior compreensão do quadro clínico-arqueológico.
Considerações finais
38
ancestral em analogia com a modernidade colonial. Os estudos atuais sobre gênero e
sexualidade, estabelecem parâmetros críticos consistentes e problematizações capazes de
corrigir os pressupostos de identidades normativas interpretadas sobre os registros rupestres,
considerando as pesquisas construídas a partir de uma leitura exclusivamente binária, onde “
gênero equivale ao sexo, e o sexo é representado por meio de signos interpretados pela ordem
colonial”.
Sob uma perspectiva da arqueologia histórica cemiterial, associada à arqueologia do
corpo, Vanessa Sial, concorda que durante o século XIX, em relação ao corpo humano, na
persona do morto, o saber médico científico higienista introduziu na sociedade brasileira o
conceito de cadáver. Antes, o corpo morto estava dentro de rede de relações humanas, sendo
tocado, ungido, recebendo maior tempo nos rituais funerários. Com o surgimento do corpo-
cadáver, passou a imperar o medo: a decomposição cadavérica, para a teoria dos miasmas,
passou a oferecer risco para a “eclosão e contaminação do ar provocando doenças epidêmicas
letais”. A performance católica no Recife imperial e republicano relativa aos corpos mortos
passou a considerar técnicas de combate ao corpo decomposto de forma a modificar a
geografia da morte em Pernambuco.
O corpo sertanejo, um dos objetos da dissertação de Igor Gadelha é analisado sob a
perspectiva de uma expressão material e sociocultural do povo seridoense. Seriam
importantes os registros do “sotaque, gesticulação, modos de produção de queijos e outros
alimentos, as expressões artísticas, entre outras”. O conjunto identitário do corpo, um corpo
Potiguar, pouco visível na vida cotidiana, assim como nas pesquisas arqueológicas
contemporâneas, necessita de um resgate das “raízes arqueológicas do povo sertanejo, como
também, das suas contribuições para o incremento da Arqueologia Histórica Potiguar”.
Finalmente, para André Laurentino, as concepções sobre o corpo humano e seu lugar
social são constantemente ressignificadas e modificadas em todos os tempos e sociedades.
Ressaltou a importância da abordagem multicomposta, considerando as prerrogativas sociais
de Viana (2015), Mauss (2018) e Breton (2007), incluindo a sua essência biológica, os
contextos histórico, sociopolítico e cultural. O corpo biológico seria moldado a partir de
fatores socioambientais, como alimentação, trabalho, hábitos; e genéticos, como as
probabilidades de expressão ou supressão gênica. Entre os eventos que acometem os corpos
humanos durante as suas existências estão as doenças, deixando sinais, estigmas que, se
analisados corretamente, constituem biomarcadores dos processos envolvidos e resultantes da
sua história natural, sua biohistória. A própria paleopatologia surgiria quando os cientistas,
39
transdisciplinarmente, associaram o conhecimento anatomofisiológico às análises geológicas
e arqueológicas.
O estudo do corpo na arqueologia do Nordeste encontra-se em estágio inicial,
buscando nichos dentro de pesquisas com problemáticas ambientais, metodológicas, ou
pseudoproblemas, com hipóteses ad hoc que ainda expressam a dissociação entre a teoria
arqueológica interpretativa hegemônica da cultura material e a teoria tácita da
osteoarqueologia. A conexão é possível, mas existem alguns obstáculos: o foco ou a pesquisa
básica ou aplicada, centrada no problema do corpo físico, do corpo representado na cultura
material, nas performances sociais do corpo (técnicas corporais) e nos artefatos do e para o
corpo, como os adornos, vestimentas, habitações, embarcações e armas, por exemplo, ainda
aguarda resultados e engajamentos mais satisfatórios por parte de profissionais de
arqueologia; a pluridisciplinaridade representa um risco, considerando a necessidade do uso
de resultados de ciências afins para se estudar o corpo, em especial as prerrogativas
conceituais da própria arqueologia, da sociologia do corpo, antropologia do corpo e história
do corpo; a inobservância da possibilidade de se considerar o corpo como similar ao objeto de
cultura material durante a pesquisa arqueológica.
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