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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


Biblioteca Central/UFPA-Belém-PA

S612a Simpósio Amazônico de Ciências Sociais (1. : 2022 : Belém, PA).


Anais [do] I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais / Simpósio
Amazônico de Ciências Sociais ; organizadores, Ana Manoela Primo dos
Santos Soares, Elisa Gonçalves Rodrigues, Luana de Nazaré Pinto
Pena, Luciana Gonçalves de Carvalho, Ozian de Sousa Saraiva,
Ravena Araújo Paiva, Thaís de Oliveira Costa, Victor Lean do Rosário ;
revisor, Mário Bezerra da Costa. — Belém : PPGSA/IFCH, 2023.
588 p. : il. color.

Inclui bibliografias

1. Ciências Sociais – Belém (PA) – Congressos. 2. Antropologia –


Belém (PA) – Congressos. 3. Ensino superior – Belém (PA) –
Congressos. I. Soares, Ana Manoela Primo dos Santos; Rodrigues,
Elisa Gonçalves; Pena, Luana de Nazaré Pinto; Carvalho, Luciana
Gonçalves de; Saraiva, Ozian de Sousa; Paiva, Ravena Araújo;
Costa, Thaís de Oliveira; Rosário, Victor Lean do, org. II.Costa, Mário
Bezerra da, rev. III. Universidade Federal do Pará. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós- Graduação em
Sociologia e Antropologia. IV. Título.

CDD 23. ed. – 300.98115


Elaborado por Ingrid Maria Luz Vergolino Zahlouth – CRB-2/582
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
ORGANIZADORES

ORGANIZADORES

ANA MANOELA PRIMO DOS SANTOS SOARES

ELISA GONÇALVES RODRIGUES

LUANA DE NAZARÉ PINTO PENA

LUCIANA GONÇALVES DE CARVALHO

OZIAN DE SOUSA SARAIVA

RAVENA ARAÚJO PAIVA

THAÍS DE OLIVEIRA COSTA

VICTOR LEAN DO ROSÁRIO

REVISOR

MÁRCIO BEZERRA DA COSTA

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ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

A Comissão Organizadora do I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais da


Universidade Federal do Pará - UFPA, abriu chamada para submissão de propostas de
trabalhos em julho de 2022. A chamada convidou alunos de Graduação e Pós-Graduação de
Humanidades a enviarem suas propostas, em formato de resumo expandido, contendo de 1 a 5
páginas, no máximo, sem contar a bibliografia, que deverá ter somente 1 página para compor
as apresentações do evento, bem como estes anais.

O I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais é um evento organizado por discentes e


do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade
Federal do Pará (UFPA). O evento tem como objetivo proporcionar um espaço de debates a
respeito de temas pertinentes à pesquisa, ensino e extensão. O Simpósio Amazônico ocorre de
forma gratuita e online, através de plataformas digitais, e tem como público-alvo discentes de
Graduação e Pós-Graduação das Humanidades, em especial das Ciências Sociais, para o
fomento à pesquisa e ensino da área em seus locus de estudo ou trabalho.

Neste arquivo foi possível reunir mais de 100 trabalhos divididos entre os 9 GTs
proporcionados pela 1ª edição do Simpósio bem como alguns textos de convidados(as) das
Mesas Redondas e das Conferências.

Boa leitura!

A Comissão Organizadora.

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ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
SUMÁRIO

SUMÁRIO

GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS: ARTICULAÇÕES,


DESLOCAMENTOS E PROCESSOS ...................................................................................... 7

GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO............................... 86

GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES: POVOS E


COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO ..... 117

GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS: CULTURA, RITUAIS,


PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES ...................................................................................... 234

GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE: AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA


PESQUISA VIRTUAL........................................................................................................... 284

GT 6 - A CIDADE PRATICADA: ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E


IMAGINÁRIOS ..................................................................................................................... 346

GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES: MORTE, NECRÓPOLES E RITOS...................... 400

GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:


DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS .......................................................................... 447

GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS ........................ 518

MESA REDONDA 2 - VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES ...................................... 564

MESA REDONDA 6 - AS CIÊNCIAS SOCIAIS NA PANDEMIA DA COVID-19 .......... 571

CONFERÊNCIA 7 - ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL: DESAFIOS E


POTENCIALIDADES NA PESQUISA CIENTÍFICA ......................................................... 582

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ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS

GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:


ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS

COORDENADORES:

Drª. Michele Escoura Bueno (UFPA)

Drª. Telma Amaral Gonçalves (UFPA)

Me. Victor Lean do Rosário (UFPA)

7
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 1

APRESENTAÇÃO

Michele Escoura Bueno 1


Telma Amaral Gonçalves2
Victor Lean do Rosário3

As ciências sociais, desde a sua formação enquanto uma ciência moderna,


desenvolveu inúmeras reflexões sobre as instituições, moralidades, economia, religiosidade,
dentre tantas temáticas que reverberam nas variadas literaturas e interpretações. A
antropologia, dentro da tríade das ciências sociais, foi a que iniciou os estudos sobre
sexualidade, corpo, e posteriormente gênero, que, embora negados em um primeiro momento,
ganharam evidências com os estudos de Malinowski, em 1929, com a obra “a vida sexual dos
selvagens”, destacando que a fase erótica da vida sexual não pode ser desligada das
construções entre homem e mulher (MALINOWSKI, 1982).
Além disso, a obra “Sexo e temperamento”, de Margareth Mead, 1935, desencadeou
inúmeras reflexões sobre como a sexualidade opera distintamente nos contextos culturais
específicos. De tal modo, para a autora, tanto os Arapesh, quanto os Mundugumor, quanto os
Tchambuli – povos analisados pela autora na Papua Nova –, possibilitaram refletir que os
processos culturais, e neste caso, o desenvolvimento da sexualidade, está diretamente
relacionado aos contextos em que os sujeitos estão inseridos.
Estas duas pesquisas, clássicas no ambiente antropológico, propuseram reflexões
pertinentes nas distintas formas de perceber, habitar e existir os diversos corpos, expressões
sexuais e de gênero. No contexto contemporâneo, as pesquisas que envolve diversidade

1
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professora Adjunta da Universidade
Federal do Pará. E-mail: escoura@ufpa.br
2
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Professora associada da Universidade Federal
do Pará. E-mail: telmaral@ufpa.br
3
Doutorando e mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Pará. E-mail: victor.rosario@ifch.ufpa.br
8
sexual e gênero versam compreender as maleabilidades dos corpos, pensando as
epistemologias do armário (SEDWICK, 2007), os corpos abjetos, estranhos e marginalizados
(LOURO, 2020), as formas de habitar o espaço e as produções de sociabilidade (VENCATO,
2002), a produção de sujeitos e desejos (FERREIRA, 2006), as diversas performances de
gênero produzidas discursivamente (BUTLER, 2003) e recentemente as reflexões sobre
sexualidades dissidentes dentro de contextos etnicamente diferenciados, como as cidades
interioranas (ROSÁRIO, 2023).
As pesquisas citadas acimas são para elucidar como os estudos de gênero, sexualidade
e corporalidades são multifacetados, complexos e cambiantes, na medida que tentam produzir
interpretações provisórias sobre os sujeitos, discursos, atos, ditos e não ditos dos seus
contextos específicos. Não pretendemos aqui esgotar os estudos sobre a temática, mas apenas
reforçar como a produção científica avançou, auxiliando inclusive na existência destes corpos
dissidentes e tangenciados pela heterossexualidade compulsória.
Por isso, a fim de esboçar reflexões sobre corpos, gênero e sexualidade no Pará,
pautando as especificidades, desejos e sujeitos que operam nas relações sociais, os autores
deste texto organizaram, dentro do I Simpósio Amazônico de Ciências sociais, um grupo de
trabalho intitulado “Gênero, sexualidade e corpos: articulações, processos e deslocamentos”,
que teve por objetivo analisar as produções que envolvem as convenções de gênero,
diversidade sexual e corporeidades nas ciências sociais, cujos desafios, deslocamentos e
abordagens teórico-metodológicas perpassam as diversas dinâmicas sociais.
Neste sentido, o GT propôs, em parceira com inúmeras autoras/es, discutir e debater
os atravessamentos entre gênero, corpo e sexualidade, onde as configurações auxiliaram na
compreensão dos mais diversos contextos. Foram debatidos diversos trabalhos de autoras/es
tanto da graduação, quanto da pós-graduação, pensando nas inúmeras relações e produções de
sujeitos entrelaçados nas temáticas do corpo, gênero e sexualidades.
Deste modo, apresentamos a seguir, de forma sucinta, os trabalhos apresentados nas
três sessões do grupo de trabalho. Iniciamos, com o trabalho intitulado “(Des)construindo
masculinidades(s): reflexões a partir do acompanhamento do grupo reflexivo de
masculinidade da defensoria pública do Estado do Pará em Belém”, das autoras Evelyn Nunes
9
de Sousa e Maria Luzia Miranda Álvares, que visou expor reflexões acerca das possibilidades
e limitações dos grupos reflexivos na desconstrução e reconstrução de masculinidades de
homens autores de violência doméstica contra a mulher. Ao analisar os casos na defensoria
pública do Estado do Pará, as autoras destacaram como as noções de masculinidades
operacionalizavam de acordo com o grupo reflexivo atuava.
O segundo trabalho que destaco é “Entre gênero, violência, raça e circulação de
criança: as crias de família na literatura amazônica”, da Thabata de Farias Silva e Gabriel da
Cunha Melo. As/os autoras/es propuseram refletir sobre a vulnerabilidade e tipos de violência
vivenciadas por crianças que circularam na condição de “crias de família” na Amazônia e são
narradas na literatura regional. Ao destacar os marcadores sociais das diferenças como um
eixo central de análise, as/os autoras/es demonstraram como a literatura amazônica reverbera
as violências que operam com as crianças negras, pobres e de contextos interioranos.
“De vilãs a heroínas Disney: O empoderamento feminino em Malévola (2014) e
Cruella (2021)”, foi o texto escrito pelas autoras Juliana Pereira, Adrienne Cardoso e
Darcylene Domingues. Neste trabalho, as autoras objetivaram, a partir da ótica de gênero, as
representações femininas nos filmes da Disney foram modificadas de vilãs para heroínas.
Logo, as estruturas que transformaram as personagens foram produzidas a medida que as
noções de feminino foram também tensionadas e modificadas na sociedade.
O quarto trabalho é o do autor Marcos Antônio Ângelo da Silva, intitulado “Produções
de sentido sobre processos de envelhecimento a partir do Grindr”. Neste trabalho, a autor
propõe apresentar os sentidos atribuídos pelos interlocutores sobre o envelhecimento que os
atravessam pelas plataformas digitais na busca de parceiros, especialmente o aplicativo
Grindr. Ao propor discussões que envolvem tanto as relações de poder quanto as interações
virtuais e os processos de velhice, Silva destaca como o corpo é o fio condutor deste processo
de envelhecimento e parcerias sexuais.
O quinto trabalho, com o título “A internet como espaço de medo: análise de um caso
de crime virtual e violência contra a mulher em São Luís – MA”, da autora Amanda Ribeiro
Bezerra, que discutiu o impacto da violência de gênero com uma vítima que teve sua vida
modificada e suas relações transformadas. Ao narrar o caso específico de uma mulher que
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sofreu inúmeros abusos, presencialmente e virtualmente, a autora destacou como os espaços
em que a vítima se relacionavam foram transformados e tensionados de inúmeras formas.
“A transfobia e o caminhar de professoras transexuais na cidade de Belém”, do Luís
Gustavo Mendes Monteiro, é o sexto trabalho deste GT, que visou compreender como a
transfobia afeta a vida das professoras trans no percurso escolar, a partir da análise das suas
trajetórias. Ao analisar a educação enquanto um processo social, o autor enfatiza as
problemáticas que circunda as vivências das professoras transexuais, e as formas de combate
à opressão que são desenvolvidas no decorrer do processo educacional.
O trabalho “Representações da violência contra a mulher pelo portal de notícias G1
Pará durante 2015-2020”, das autoras Allyne Samara da Silva de Melo, Dâina Naíny Cunha
Rego e Nelissa Peralta Bezerra. As autoras analisaram os aspectos dos noticiários publicados
no G1 Pará, especialmente os que retratam os casos de violência contra a mulher. Ao ter como
campo de pesquisa estes noticiários, as autoras pontuam como a exposição das vítimas e o
sensacionalismo da reportagem não se sensibiliza com as mulheres violentadas, tornando
secundário as formas de prevenção contra a mulher.
Seguidamente, temos o texto intitulado “Mulheres soberania e segurança alimentar em
tempos de pandemia na comunidade 15 de novembro, região metropolitana de Paulista (PE)”,
das autoras Nayara Fernanda Santos de Sena e Andrea Lorena Butto Zarzar. Neste artigo, as
autoras entrelaçam os estudos de economia solidária e agroecologia, destacando como durante
o tempo pandêmico, as relações foram afetadas, e como forma resistências, inúmeras ações,
especialmente orquestradas por mulheres, foram desenvolvidas a fim de sanar os problemas
da fome.
“Se a gente não tivesse o pé no chão acho que a gente tinha passado fome”: Relato de
mulheres durante a pandemia do COVID-19 na Ilha de Cotijuba, Belém, Pará”, que tem como
autoras Rubia Suzane Antunes dos Santos, Larissa da Conceição Barradas e Lana Cláudia
Macedo da Silva, que objetivou refletir sobre os impactos da pandemia para as mulheres da
Ilha de Cotijuba, e como o cenário pandêmico dificultou ainda mais a vida destas pessoas.
Contudo, foram criadas estratégias micropolíticas de resistência, que reinventaram a vida
destas mulheres neste período.
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O texto “gênero, amor e violência: dispositivo amoroso e o amor no discurso de
mulheres que experienciaram violência conjugal” da Elcione Silva e Silva, destacou as
trajetórias de mulheres que sofreram violências orquestradas pelos seus parceiros. Ao
focalizar na noção de amor romântico, a autora destaca como as mulheres vítimas de
violências experienciam suas vidas após os sofrimentos causados pelos seus parceiros.
Por fim, o artigo com o título “Sentido!? A padronização militar e a desigualdade de
gênero na educação básica”, das autoras Bruna Weyll de Melo e Elis Cristina Fiamengue,
objetivam analisar o Programa Escolas Cívico-militares, destacando divergências e
contradições com a pedagogia da diversidade. Neste caso, as autoras frisam como as noções
militarizadas – produtos do patriarcado – desconsideram as especificidades dos discentes,
especialmente dos corpos dissidentes, produzindo noções de hierarquia e meritocracia que
deslegitimam o ensino aprendizagem de forma horizontalizada e inclusiva.
Tais trabalhos, com suas especificidades, potencialidades e confluências entre si,
tentam minimamente auxiliar um debate amplo, multifacetado e complexo, que viabiliza o
saber de corpos marginais, das diversidades sexuais e múltiplas expressões de gênero. Deste
modo, acreditamos que estes artigos são de suma importância no aprofundamento das análises
científicas sobre diversas formas ser, estar e habitar o mundo.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaio sobre sexualidade e teoria queer. 3 ed.
Belo Horizonte: Autêntica editora, 2020.

MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. 3 ed. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2013.

MEAD, Margareth. Sexo e temperamento. 4 ed. São Paulo: Editora perspectiva, 2000
[1935].

12
ROGERS, Paulo. Os afectos mal-ditos: o indizível das sexualidades camponesas.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade
de Brasília, 2006.

ROSÁRIO, Victor Lean do. “Nesse terreiro tem axé e tem viado”: Experiências
homoafetivas e sexualidade em um terreiro de umbanda no nordeste paraense. Dissertação
(Mestrado). Universidade Federal do Pará: Pará, 2023.

SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, 28, janeiro-junho,


p.19-54, 2007.

VENCATO, Anna Paula. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag


queens em territórios gays na ilha de Santa Catarina. Dissertação (Mestrado). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social. Santa Catarina, 2002.

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GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
TRABALHO HOMENAGEADO COM MENÇÃO HONROSA

(DES)CONSTRUINDO MASCULINIDADE(S): REFLEXÕES A


PARTIR DO ACOMPANHAMENTO DO GRUPO REFLEXIVO DE
MASCULINIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO
PARÁ EM BELÉM

Evelyn Neves de Souza4


Maria Luzia Miranda Álvares5

Durante os anos de 1960 a perspectiva feminista que aponta as experiências materiais


das mulheres como resultado de uma ordem social que organiza os “dois sexos” em
oposição possibilitou a visibilidade de estruturas e relações sistêmicas de poder legitimadas
pela ciência e naturalizadas na ideologia binarista; este entendimento foi também argumento
para a recusa inicial da realização de estudos de masculinidades, cenário que mudou com o
desenvolvimento de uma análise dialética entre as estruturas sociais e sujeitos das relações
intergênero com a denúncia “o pessoal é político” (GIFFIN, 2005, p. 49).
Os estudos sobre masculinidade se estabeleceram como campo científico acadêmico
nos anos de 1970 e 1980 nos países anglo-saxões; neste mesmo período, a partir de teorias
feministas, pós-estruturalistas, estudos étnicos, e do avanço do movimento LGBT, se deram
nos Estados Unidos e Canadá as primeiras experiências com grupos de masculinidade e
atendimento aos homens autores de violência (HAV) promovidos por instituições de
atendimento à mulheres, grupos pró-feministas, instituições de serviço social, saúde mental e
organizações religiosas com o intuito de acrescentar às iniciativas de prevenção à violência
doméstico-familiar a responsabilização dos atos de violência (LIMA; BÜCHELE, 2011, p.
724-725).

4
Graduanda de bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
sevelyn470@gmail.com
5
Professora Associada III (UFPA). Doutora em Ciência Política.

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No Brasil, com os avanços conquistados pela luta das mulheres, os Serviços de
Atendimento Especializado aos homens autores de violência (HAV) foi incluído nas
Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência Doméstica Contra a Mulher por meio do
artigo 35 e 45 da Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada
pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Artigo 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e
promover, no limite das respectivas competências: V – centros de educação e de
reabilitação para os agressores.

Artigo 45. O art. 152 da Lei nº 7210, de 11 de julho de 1984, passa a vigorar com a
seguinte redação: Art.152. Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica
contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do
agressor a programas de recuperação e reeducação.

Em vista disso, este trabalho objetiva expor reflexões acerca das possibilidades e
limitações dos grupos reflexivos na desconstrução e reconstrução de masculinidades de
homens autores de violência doméstica contra a mulher. Reflexões estas que surgiram a
partir da experiência de participação no Programa de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC/UFPA) durante agosto de 2019 à julho de 2021 na pesquisa “ O atendimento aos
homens autores de violência (HAV) e as diretrizes dos Serviços Especializados na Educação
e Responsabilização dos atos de violência doméstica contra a mulher, como diretrizes da
política estadual de enfrentamento no governo de Simão Jatene (2010-2014)” relativa ao
projeto maior “Efetividade das políticas públicas e superação dos entraves na articulação dos
Serviços de Atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no Estado
do Pará” do Grupo de Estudos e Pesquisas ‘Eneida de Moraes’ sobre mulher e relações de
gênero (GEPEM/UFPA), coordenado pela professora e orientadora da pesquisa Drª Maria
Luzia Miranda Álvares.
A pesquisa se utilizou de três momentos metodológicos na construção e análise do
objeto de pesquisa: pesquisa conceitual bibliográfica sobre violência doméstica e familiar
contra a mulher, masculinidades, teorias de gênero e políticas públicas; pesquisa empírica
com observação participativa no grupo reflexivo de masculinidade da Defensoria Pública do
Estado do Pará da Região Metropolitana de Belém; procedimentos de abordagem analítica.

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Iniciando o debate, é importante destacar como gênero e patriarcado são conceitos
que se situam em dimensões distintas e consequentemente não são antagônicos ou
sinônimos. Lia Zanotta (2000), em resposta ao debate político, analítico e intelectual do uso
desses conceitos define “patriarcado” como um termo e estrutura fixa social que remete a
uma relação de poder caracterizada pelo exercício da dominação social masculina e como
“gênero” uma relação entre homens e mulheres que não apresenta uma forma fixa na
histórica e sim uma estrutura sócio simbólica passível de transformações.
Dessa forma podemos entender a violência contra a mulher como um fenômeno
histórico-cultural que permeia e se fundamenta em valores, ideias, crenças, pensamentos e
práticas e como um instrumento de manutenção do sistema de relação de poder Patriarcal. O
ciclo da violência doméstico-familiar contra a mulher é sistematizado em três fases: tensão,
explosão e “lua de mel”. Sua repetição associada às idealizações culturais de padrões
masculinos e relacionais na sociedade faz com que a violência se torne normalizada.
Pierre Bourdieu (1930) aponta como esses princípios de visão e divisão
sexualizantes presentes na sociedade registram simbolicamente propriedades naturais
irrefutáveis que justificam a divisão sexual do trabalho e a atribuição de papéis de gênero.
No tocante ao papel masculino, o autor discorre que a virilidade em seu aspecto ético do vir
(sob a forma de dever-ser) e virtus (sob a forma do “é evidente por si mesma”) refere-se à
conservação e/ou ganho da honra; esta por sua vez é indissociável da virilidade física
caracterizada pelo uso da força e do potencial sexual, sendo esses padrões comportamentais
necessários para a afirmação da masculinidade e do ser um “homem de verdade”.
Essa busca pela virilidade nos guia a outro conceito operacionalizado amplamente
nos estudos de masculinidade(s) e violência, a masculinidade hegemônica. A característica
principal da masculinidade hegemônica é ser um parâmetro ou uma forma “mais honrada”
de ser um homem, fazendo com que haja sempre um posicionamento diante dela
legitimando a dominação masculina. Os estudos de criminologia que incorporaram esse
conceito apontam a relação dos padrões de agressão e a masculinidade hegemônica não
como causa, mas como expressão da busca pela adequação (CONNELL;
MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245-249).
16
Desse modo, é necessário destacar que por se tratar de uma situação relacional a
erradicação da violência doméstico-familiar contra a mulher depende do desejo de mudança
de ambas as partes inseridas, sendo imprescindível o atendimento aos homens autores de
violência (HAV) (SAFFIOTI, 2004, p.62).
Segundo os dados cadastrais da Promotoria de Justiça de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher registrados pelo Ministério Público do Estado do Pará em 2019 e
2020, em sua maioria os homens autores de violência possuem relação de afetividade ou
conjugalidade com a vítima. Se observa também que em geral os autores são companheiros
que coabitavam em residência comum ou conviviam com a vítima; ou são ex-companheiros
com coabitação ou convivência finda. Além disso, os dados mostram que em 50% dos casos
os casais possuem um filho dependente da relação, o que agrava a situação de violência e
dificulta o rompimento do ciclo.
No trabalho de campo com observação participante no Grupo Reflexivo de
Masculinidade da Defensoria Pública do Estado do Pará na Região Metropolitana de Belém,
coordenado pela psicóloga Rosana Lemos Faraon, foi viável observar possibilidades de
mudanças de padrões de comportamento e produção de masculinidades mais saudáveis por
parte dos homens agressores (HAV), as limitações que o método possui frente a resistência à
desconstrução da masculinidade por parte dos atendidos e a efetividade prática desse
método.
O Grupo Reflexivo de Masculinidade da Defensoria Pública atende os homens
autores de violência (HAV) contra mulher que tiveram seus atos definidos no processo penal
como de baixo potencial ofensivo e foram sentenciados em regime aberto sob a condição de
comparecer às atividades psicopedagógicas de acordo com a frequência indicada pelo juiz,
que pode variar entre uma visita a dois anos de presença. Também há aqueles que
comparecem ao grupo durante o processo motivados pelo recebimento de certificados que
podem ser utilizados em suas defesas, enquanto outros vão de forma voluntária.
A partir das visitas foi possível traçar para esta reflexão 3 perfis de respostas à
intervenção psicopedagógica do grupo reflexivo de masculinidade com base nos aspectos

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observados pela bolsista: 1) respostas conciliadoras, 2) respostas relutantes, 3) respostas
tendenciosas.
As respostas conciliadoras foram as mais positivas aos estímulos das atividades
propostas nos encontros. Frequentemente advindas de participantes voluntários e/ou mais
antigos. Foi observado que os homens com respostas mais conciliadoras em seus discursos
demonstravam consciência dos danos causados às vítimas por conta de suas atitudes
machistas e entendimento de sua responsabilidade nas consequências de seus atos violentos
e na mudança dessas situações.
As respostas relutantes muitas vezes foram verbalizadas com a discordância à
imposição da participação do grupo reflexivo, sendo para alguns a presença na dinâmica sem
necessidade porque já sabiam o que tinham feito ou, no caso de participantes de idades mais
avançadas, ineficaz visto que são “esquentados” desse jeito mesmo e são “velhos demais
para aprender”. Os homens com este perfil de resposta também narravam a violência
doméstico-familiar justificando o ato com comportamentos da vítima que teriam os levado a
cometer o crime. Em alguns momentos a honra ou o orgulho eram mencionados.
Aqueles que tiveram respostas tendenciosas no geral demonstraram desconforto em
estar lá, não se concentrando ou participando da atividade, ou mexendo no celular várias
vezes e inquietamente se levantavam ou mudavam de posição sentados na cadeira.
Entretanto, quando tiveram oportunidade de discorrer acerca da masculinidade e cultura
machista alguns se responsabilizaram por estar lá, reproduzindo pequenas frases dos
discursos apresentados em material audiovisual ou ministrados pela psicóloga Rosana
Lemos Faraon.
Em vista dos tipos esquematizados acima podemos entender a partir das respostas
relutantes e tendenciosas observadas no trabalho de campo os limites que os grupos
reflexivos de masculinidades possuem na efetiva prevenção e combate da violência contra a
mulher que, entre tantos aspectos, perpassa a dependência de colaboração do atendido. Na
negação da responsabilidade e na fuga do confronto e da problematização da masculinidade
“tóxica” nota-se a internalização da construção da virilidade e do “homem ideal” . Essa

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experiência também destaca como muitas vezes a mudança de discurso do homem atendido
pode não refletir suas práticas no dia a dia com mulheres.
A partir desse relato houve também uma perspectiva positiva quanto às
possibilidades de mudanças e (des)construção de masculinidade(s) por meio da realização de
atividades psicopedagógicas com os homens autores de violência (HAV), desde que
acompanhadas por profissionais capacitados com conhecimentos em teorias feministas e
estudos de gênero e masculinidades. Pensar a abordagem de dinâmicas e atividades com os
HAVs à luz de uma matriz feminista de gênero para/sobre os homens, conforme Medrado e
Lyra propõe, é fundamental.
Medrado e Lyra (2008) destacam a necessidade da produção de abordagens que
“historiciza[m] as normas” e levam em consideração as influências sociais em contextos
específicos, em contraponto às abordagens que organizam homens e mulheres como eternos
inconciliáveis, sem perspectivas de mudanças relacionais frente à estrutura patriarcal.
Enxergar os homens como aliados e sujeitos que podem produzir mudanças por meio de
“uma leitura que se propõe a definir, problematizar e desconstruir” é um caminho para se
pensar a superação da violência contra a mulher (MEDRADO; LYRA, 2008, p. 832-833).
Diante do que aqui foi apresentado, conclui-se que a realização desses debates com
homens, para homens e sobre homens representa uma intervenção que amplia a
possibilidade de se construir novos repertórios de masculinidades que sejam mais saudáveis
na relação com as mulheres, sobretudo se considerado no processo o potencial de mudança
que caracteriza as relações intergênero.

Palavras-chaves: Masculinidades. Violência doméstico-familiar. Gênero.

REFERÊNCIAS

ÁLVARES, M. L. M. Projeto de Pesquisa: Efetividade das políticas e superação dos


entraves na articulação dos Serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar no Estado do Pará – 2007- 2014 CNPq - Processo: 409572/2016-0
Chamada: Universal 01/2016.
19
BOURDIEU, Pierre, 1930-2020. Uma imagem ampliada. A dominação masculina. São
Paulo: Bertrand Brasil; 16ª edição, p. 17-92, 2020.GIFFIN, Karen. A inserção dos homens
nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Rio de Janeiro: Revista
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de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Rio de Janeiro: Physis Revista de
Saúde Coletiva, 21[2], pp. 724-725, 2011.

MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Por uma matriz feminista de gênero para os sobre
homens e masculinidade. Florianópolis: Estudos Feministas, v. 16, n. 3, 809-840, 2008.

NEVES, Evelyn. Plano de Trabalho: O atendimento aos homens autores de violência


(HAV) e as diretrizes dos Serviços Especializados na Educação e Responsabilização dos
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enfrentamento no governo de Simão Jatene (2010-2014).

PARÁ, Ministério Público do Pará. Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência


Doméstica e Familiar. Relatório de estatística- Lei Maria da Penha 2019. Belém: 2019.

PARÁ, Ministério Público do Pará. Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência


Doméstica e Familiar. Relatório de estatística- Lei Maria da Penha 2020. Belém: 2020.

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu


Abramo, Coleção Brasil Urgente, 2004.

ZANOTTA, Lia Machado. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado


contemporâneo? Brasília: Série Antropologia, 2000.

20
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 1 - DISCURSOS, SABERES E REPRESENTAÇÕES

ENTRE GÊNERO, VIOLÊNCIA, RAÇA E CIRCULAÇÃO DE


CRIANÇAS: AS CRIAS DE FAMÍLIA NA LITERATURA AMAZÔNICA

Thabata de Farias Silva6


Gabriel da Cunha Melo7

Os principais estudos sobre “circulação de crianças” no Brasil foram elaborados pela


Antropóloga Cláudia Fonseca, sendo que um dos mais importantes é apresentado no livro
Caminhos da Adoção (1995). Essa pesquisa constatou que muitas crianças, moradoras de
bairros populares de Porto Alegre, passavam a maior parte da infância ou da juventude em
casas que não eram as dos seus genitores (FONSECA, 1995, p. 14), bem como, outro dado
relevante foi constatar que aproximadamente 50% das mães já haviam dado, em algum
momento, seus filhos para serem criados por outros
Esse trabalho reflete sobre a vulnerabilidade e tipos de violências vivenciadas por
crianças que circularam na condição de “crias de família” na Amazônia e que são narradas na
literatura regional.
As “crias de família” na Amazônia não possuem um estudo vasto. Muito embora
façam parte do nosso cotidiano e podendo ser um tema facilmente localizado entre conversas,
podemos contar apenas com os “achados” empíricos, como bem explicita a pesquisadora
Angélica Motta- Maués: “localizo este tema e sua interpretação entre nós, entre “achados”
empíricos e diálogo com a literatura, buscando iluminar, com isto, os múltiplos espaços em
que se movem os pequenos em seu, por vezes, extenso e intenso vaivém” (MOTTA- MAUÉS,
2004, p. 431).
A sociologia ao estudar a sociedade encarrega-se de realizar um desafio muito
grande, que é dar conta de compreender muitas demandas sociais. Para abarcar uma

6
Doutoranda em Sociologia e Antropologia e Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará
(UFPA), Docente da Universidade do Estado do Pará (UEPA); E-mail: thabatadfs@gmail.com
7
Graduando em Licenciatura Plena em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
gabriel.melo@aluno.uepa.br
21
determinada realidade usam-se diversas estratégias metodológicas de análise para investigar a
ação humana. Sendo assim, a literatura torna-se uma grande aliada para essa compreensão de
mundo, pois é ela quem permite “chegar a conhecer um fenômeno social quando o
compreende como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos”
(FARIAS, 2014, p. 5).
Nesse sentindo, buscou-se no presente trabalho realizar uma análise sociológica do
conto da autora paraense Maria Lúcia Medeiros intitulado Velas. Por quem? e que possui o
mesmo nome do livro publicado no ano de 1990 em Belém do Pará.
O conto aqui analisado tem como registro temporal o século XX e remete a memória
da pequena, já senhora, que por muitos anos viveu com a mesma família como cria. Uma das
características desse conto é o uso da palavra Fatal entranhada em todo o texto. O conto já
inicia com a frase “Fatal foi teres chegado de manhãzinha” (MEDEIROS, 1990, p. 11), como
um alerta ao que ainda está por vir. A autora repete por nove vezes a palavra Fatal em todo o
conto, sobressaltando nossos olhos para aquela realidade social. No dicionário significa dizer
que é algo que não pode ser evitado, foi determinado pelo destino.
Nesse conto a autora demonstra com precisão o cotidiano de uma menina que ao
chegar à Belém, por meio de um barco, aportado talvez no Ver- o – Peso, uma das maiores
feiras ao ar livre do Brasil e um dos cartões postais da capital paraense. Sendo possível
interpretar quando a autora diz que a cidade se espreguiçava diante dos olhos de sono daquela
menina, o cheiro do café e o cheiro das frutas, o abafado cheiro das roupas suadas a
entranhar na tua descrença a resina, o último cheiro do abraço que deixaras dias atrás entre
o espanto e a euforia (MEDEIROS, 1990, p. 11).
A menina é descrita como uma criança pobre sendo possível comparar as suas roupas
encardidas com as das velas coloridas dos barcos que aportavam. Tecido esse que mal podia
cobrir-lhe de maneira digna, demonstrando tamanha condição social de pobreza e
vulnerabilidade estava aquela menina. Ela caminha até o casarão e mais uma vez uma
fatalidade se anuncia fatal foi pensares que ofereciam vida nova (MEDEIROS, 1990, p. 11).
A expectativa da cria de família é que tenha a possibilidade de mudança de vida, mas a vida
que lhe aguardava era de trabalho doméstico e servidão aos patrões.
22
Quando a menina chega, a família ainda dorme. Soube logo que “havia menino, que
havia menina, um doutor e sua mulher a quem devias servir, branca e alta mulher”
(MEDEIROS, 1990, p. 11). Nesse trecho é possível compreender que se trata de uma família
de classe alta e com características divergentes da maioria da população na época. O objetivo
da chegada da menina também fica evidente que é servir a essa família. A servidão sendo uma
característica de poder racial: “devias servir, branca e alta mulher” (MEDEIROS, 1990, p.
11).
A autora começa a descrever o cotidiano da menina “Fatal foi teres ignorado os
deveres tantos que ressoavam nas campainhas do casarão inteiro e pudeste rir, sorrir e te
alegrar tantas eram as correrias, o leiteiro, o padeiro, o telefone...” (MEDEIROS, 1990, p.
11), na sua tenra infância tinha diversos deveres e acreditava estar brincando, correndo pelo
casarão “ora num pé, ora no outro”. Ela ouvia “Ó pequena” e corria pelas escadas:

(...) era hora de retirar o urinol de porcelana com a urina da branca senhora que ficou
roxa um dia porque te pegou dizendo “pera lá que eu vou tirá o mijo da mulhé” e ela
te trancou e quase te esmagou na porta para que consertasse a língua, Ó pequena!
Terias que dizer ‘fazer o meus serviço, cumprir minha obrigação’ aprendeste logo
sem compreender. (MEDEIROS, 1990, p. 12)

O não cumprimento dos deveres dessa personagem levava a uma punição, retratada
no texto por meio de diversos tipos de violência. A violência física, como pode-se perceber
nesse trecho apresentado anteriormente e a violência sexual, pois trata-se de uma servidão a
todos os membros da família em diversas necessidades, inclusive sexuais:

Nem tinhas cor definida nem peitos tinha, só os carocinhos que doíam e que a
cozinheira te ensinou apertar dois caroços de milho e dar pro galo para que não
crescessem tanto. Mas cresceram e logo o doutor, e logo o menino, horário estranho,
pesada hora, apertavam também, bolinavam, teu corpo ereto, tua cabeça baixa,
coração aos pulos. Virou hábito deles, ficou pra costume, nem ousaste compreender,
só aprender, Ó pequena! (MEDEIROS, 1990, p.12)

A mudança dos seios, do corpo, mas a cabeça sempre baixa, mostrando a condição
de submissão ou vergonha dessa personagem. A sua cor, nem definida era, tendo uma forte
relação com a miscigenação. O colonizado é marcado pela cor da pele, pois a servidão parte
de uma classificação racial da população e das novas identidades raciais dos colonizados
(QUIJANO, 2005, p. 120).
23
O reflexo dessa realidade pode ser encontrado em dados de pesquisas realizadas no
Brasil como o Atlas da violência 2018 que apontou uma diminuição percentual de casos de
estupros contra mulheres brancas no período de 2011 à 2014. Entretanto, houve um
crescimento entre vítimas que se identificaram como parda em uma variação de 4,5%,
envolvendo 45,3% dos casos (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2018, p. 64). Como explica
TAVARES DOS SANTOS & TEIXEIRA (2013) a relação do romance e sociedade,
juntamente com o poder e a violência, pode expor e explica várias dimensões da sociedade
contemporânea.
As “crias de família”, são, na maioria dos casos, meninas do interior dos estados
brasileiros que são criadas por outras famílias nas capitais, para realizarem o trabalho
doméstico como forma de “troca” por vestuário, alimentação e principalmente “uma
oportunidade na vida”. Elas são crianças e adolescentes que realizam os trabalhos domésticos
na casa dos seus pais/patrões em troca de uma vida “melhor”. Haja vista que, ao sair de suas
localidades rurais e estar na cidade é um privilégio para poucos.
O trabalho doméstico e a servidão desenvolvidos pela cria já era enxergada como
necessária para a família do conto de Maria Lúcia Medeiros: “Com pouco já ninguém podia
passar sem ti sendo pedaço deles, cria, cachorro fiel, Ó boa pequena!”, passando de geração
para geração:

(...) com pouco já morria o doutor, já envelhecia a senhora, já casava a menina agora
já era mulher branca e já trocava de mão e de patrão, pois a menina agora já era a
mulher branca e perfumada que também enchia de urina o urinol de porcelana.
(MEDEIROS, Maria Lúcia, 1999, p. 12)

A vida dessa menina passa muito depressa. Aceitar a sua condição de forma branda e
mansa foi fatal aos olhos da autora. Ao final do conto descobrimos que a narradora,
possivelmente é uma cigana: “Diante da mão espalmada, retomo do meu ofício e aceito ler
teu destino, mas te adianto, não vejo mais – pesada hora – rastro sequer da fortuna, perdeu-
se a do coração”. A vida daquela menina foi servir aquela família, ela não criou a sua vida,
sua história, seu futuro... Ser cria foi fatal ao ponto de terem roubado a linha da vida
(MEDEIROS, 1990, p. 13).

24
Saindo da ficção e entrando na realidade social amazônica, nada muda, pois o
registro literário chega muito próximo da trajetória de vida de meninas que ainda saem de
suas casas no interior do Estado para viver em uma condição de servidão, subalternidade e
gratidão para com a família que a recebe. Chegam em alguns momentos justificar a violência
sexual, violência física e verbal sofrida, pois foi a única saída encontrada para fugir das áreas
rurais com a ausência de saúde, educação e alimentação adequada.

Palavras-chaves: Gênero. Violência. Raça. Crias. Infância. Literatura. Amazônia.

REFERÊNCIAS

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006.
FARIAS, Thabata Santos de. A circulação de crianças em duas gerações de uma família
rural no município de Viseu- Pa. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Belém, 2014.
FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez editora, 1995.
GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do Romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3ªed.1990.
MEEDEIROS. Maria Lúcia. Velas, por quem? Belém: Cultural Cejup, 1990.
MOTTA- MAUÉS, Maria Angélica. “Na casa da mãe”, “Na casa do pai” – Anotações (de
uma antropóloga e avó) em torno da circulação de crianças”. Revista de Antropologia, São
Paulo, v.47. nº 2, 2004.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A


colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.
Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
TAVARES-DOS-SANTOS José-Vicente & TEIXEIRA, Alex Niche. Figurações da
Violência: uma apresentação enigmática. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 15, no 34,
set./dez. 2013, p. 14-25.

25
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 1 - DISCURSOS, SABERES E REPRESENTAÇÕES

DE VILÃS A HEROÍNAS DISNEY: O EMPODERAMENTO FEMININO EM


MALÉVOLA (2014) E CRUELLA (2021)

Juliana Avila Pereira 8


Adrienne Peixoto Cardoso9
Darcylene Pereira Domingues10

Historicamente um aspecto que denomina o nosso mundo é o de mudança. Cada


sociedade, indivíduo ou produto está em um constante processo de modificação, pois nada na
História é congelado. Dito isso, a companhia cinematográfica The Walt Disney Company
hoje é mundialmente consagrada e respeitada no campo cinematográfico por suas animações
de grande qualidade, esta marca foi fundada em 1923 pelos irmãos empresários Walt e Roy
Disney (inicialmente nomeada de Disney Brothers), cujas primeiras intenções eram voltadas
para pequenas produções animadas. Porém, em 1937, a Disney lançou o seu primeiro longa-
metragem intitulado A Branca de Neve e os Sete Anões o qual foi um grande sucesso para o
período, tendo em vista seu teor inovador por se tratar do primeiro longa animado da História,
o primeiro filme estadunidense com um álbum de trilha sonora (característica que veio a se
tornar uma marca registrada do estúdio), bem como toda a profundidade técnica investida na
produção deste filme, levando cerca de três anos para ficar pronto.
Além de Branca de Neve e os Sete Anões ser o primeiro filme animado da Disney, ele
também inaugura a categoria de Princesas Disney, uma das principais marcas desta empresa.
A Branca de Neve é um arquétipo de princesa em que vários elementos foram transpassados
para as demais personagens femininas e seus contos nos filmes subsequentes desta categoria
feitos pelo estúdio, como Cinderela (1950) e A Bela Adormecida (1959). Nestas produções

8
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail:
Jul.av49@gmail.com
9
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail:
adriiswalker@hotmail.com
10
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail:
darcylenedomingues@gmail.com
26
temos alguns tópicos que se repetem, são enredos simples e que contém mensagens de
bondade e maldade nitidamente delineados, mas detalhadamente temos personagens que se
repetem, como a figura da princesa com notória beleza e passividade, a figura do príncipe
herói e forte e a vilã cuja inveja, poder e ganância lhe condena ao final infeliz.
Porém, estes discursos fílmicos não são mais política e economicamente condizentes
com os valores feministas em voga no tempo presente. Deste modo, não é surpreendente que
os produtos cinematográficos Disney acompanhassem o fluxo social refletindo em suas
produções estas alterações. Assim, em 2014 a empresa apostou em recontar uma de suas
estórias clássicas, A Bela Adormecida, a partir da ótica da então vilã, Malévola,
transformando esta personagem empoderada deste o desenho animado, em uma heroína do
estúdio. No mesmo caminho, em Cruella (2021), percebemos uma reconstrução a partir do
empoderamento feminino de mais uma emblemática vilã Disney.
Neste sentido, através da ótica de gênero é possível analisarmos de que modo ocorrem
as representações do feminino (em especial o feminino-vilão) em ambas as produções
anteriormente citadas. Segundo Judith Butler (2021) o conceito de gênero corresponde a um
“fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto
relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente
convergentes” (2021, p. 32-33). Ademais, as categorias de masculino e feminino se referem a
dimensões culturais da vida e que assumem diferentes formas no curso histórico da sociedade,
variando em seus significados e configurações (BUTLER, 2021).
As produções cinematográficas são produtos de grande popularidade e impacto no
tempo presente, tendo em vista o foco nas grandes massas como consumidores destas obras
culturais. O cinema é ressaltado enquanto um grande veículo midiático e existindo como um
agente social, revolucionando a arte, desde o modo de produção até a forma de disseminação
de seus produtos (KORNIS, 1992, p. 237). Deste modo, é valido destacar a relação intrínseca
entre o cinema e a sociedade em que o mesmo está situado, sendo uma relação de interlocução
entre estes dois espectros. Em outras palavras, o cinema e, em decorrência, as produções
fílmicas, são produtos da sociedade em que estão inseridos, produzindo uma dada visão sobre
este mesmo mundo (VALIM, 2012). Assim, segundo Marissa F. Farahbod (2016):
27
O estudo do corpo feminino em diferentes contextos tem estado no centro de
muitas teorias feministas, projetos e, uma vez que o cinema é principalmente uma
arte visual, o estudo feminista de um filme exigiria a análise da representação de suas
personagens femininas tanto individualmente quanto no contexto de um determinado
filme (FARAHBOD, 2016, p. 65).

A relação da Disney a suas personagens femininas foi pautada em uma ótica dualista
no que Amy Davis (2007) classifica como “Anos Clássicos” (Filmes da Disney 1937–1967),
sendo a protagonista, no geral, uma personagem bela, meiga, inocente e dependente de uma
figura masculina, enquanto a personagem antagonista é marcada pela falta de beleza (não
sendo desejada pelos demais personagens), franca, esperta e totalmente independente. Este
padrão, conforme Brianna Gutiérrez (2017, p.37), é associado aos momentos sócio-históricos
da época de produção de cada filme, tendo em mente a relação recíproca entre cinema e
sociedade. Tanto A Bela Adormecida (1959) e 101 Dálmatas (1961) são filmes
contextualizados no pós-guerra e em meio a Guerra Fria, refletindo na tela os medos de uma
convulsão social e eminente caos global. Assim, como resposta sintomática:

Os Estados Unidos olharam para a estrutura da família e o papel da mulher nela


como símbolo materno e doméstico e “como fonte de estabilidade social e
prosperidade”. Essa ansiedade e medo sobre armas nucleares e bombas ataques
levaram o público a temer a saídada mulher de casa, destruindo assim a estabilidade
da família, e essencialmente virando as normas sociais do avesso. Homens brancos
e brancos conservadores as mulheres começaram a reafirmar e reafirmar o papel da
mulher no lar como esposa e mãe. Portanto, não é de surpreender que esse medo e
ansiedade sobre as mulheres rompendo com a tradição expectativas de gênero é
refletida na mídia. Esses filmes da Disney retratam personagens femininas como
seres domésticos. Esses filmes são voltados para crianças, a próxima geração. Foi
importante moldar a próxima geração de mulheres para serem donas de casa e
esposas como suas mães para manter a estabilidade social em tempos de caos
(GUTIÉRREZ,2017, p. 37).

Ainda conforme Brianna Gutiérrez (2017, p. 92) existem dois tipos de figuras
femininas nos filmes Disney: as tradicionais e as não-tradicionais. As tradicionais seriam
personagens essencialmente passivas, bondosas e que almejam um relacionamento
heteronormativo como vislumbre de felicidade eterna. Já, as não-tradicionais são as figuras
cujas características de poder, perspicácia, inteligência, determinação e independência são
28
evidenciadas em sua construção. Dentro da categoria não-tradicional ainda existe outra
subdivisão entre figuras positivas e negativas. O feminino não-tradicional negativo é
representado nas vilãs das animações datadas de 1950 à 2000, enquanto o feminino não-
tradicional positivo encontra-se nas heroínas das animações de 1995 à 2013 (podendo incluir
os filmes posteriores).
Nesta perspectiva, quando enfocamos Malévola na produção A Bela Adormecida
(1959), tal personagem corresponde ao arquétipo de não-tradicional negativa, tendo em vista
sua motivação de maldade inata, grande poder e independência, bem como seu final trágico.
Entretanto, seis décadas mais tarde, esta mesma personagem teve sua estória, até então oculta,
revelada no live-action Malévola (2014). Neste longa temos uma personagem complexa e
mais humanizada, existindo razões que justificam seus atos de maldade, mostrando-nos ações
mergulhadas em contextos, substituindo um discurso fatalista de “bem” e “mal” inerte. Uma
releitura de feminino atrativo economicamente no tempo presente para o não-tradicional
positivo, na medida em que Malévola assume traços de independência, poder, sinceridade e
empoderamento e possui um final feliz em sua estória.
Por sua vez, dando seguimento as releituras de vilãs no tempo presente, o filme
Cruella (2021), mais recente live-action dos estúdios Disney, pretendeu contar a estória de
origem de uma das mais emblemáticas vilãs da História do cinema, Cruella De Vil, e a
contextualizou no universo mais caótico e explosivo artisticamente do século XX: Londres da
década de 1970, em meio a revolução punk rock inglesa. Somos apresentados a uma Cruella
como narradora de sua vida, conhecendo seu passado desde seu nascimento como Estella
(uma identidade/alter ego amigável, atrapalhada e neutro) até sua transformação para Cruella
De Vil, uma figura esfuziante, intimidadora e empoderada. Muito diferente de Cruella da
animação de 1961 que tem possui um desejo fracassado de parecer glamurosa e termina a
estória em humilhação pública, a versão de 2021 é protagonizada por Emma Stone (cuja
beleza é reconhecida mundialmente), além a da narrativa valorizar seus traços de ambição,
criatividade/genialidade, rebeldia, franqueza, configurando esta figura no tempo presente
como uma anti-heroína empoderada e aclamada socialmente.

29
Dito isso, é perceptível o amoldamento das produções cinematográficas a sociedade
em que a mesma está imersa. Assim, as questões de gênero são noções presentes na
cinematografia inspiradas nos contos de fada, desde os desenhos animados até as produções
live-actions. Através de ótica de gênero, é possível compreender as diferentes transformações
das personagens femininas (em destaque as personagens apresentadas inicialmente como
vilãs) no percurso de tempo que compreendem as produções dos estúdios Disney.
Sendo assim, tanto Malévola quanto Cruella das versões animadas enquadram-se na
categoria de personagem não-tradicional negativa quando enfocamos a animação pois esta
personagem “age sobre suas próprias decisões e está determinada a realizar seus objetivos”
(GUTIÉRREZ, 2017, p. 106). Porém, esta versão fatalista hoje não é mais economicamente
rentável, tendo em vista a gradativa mudança do papel social cotidiano das mulheres na
contemporaneidade, sendo o feminino parte integrante do mercado de trabalho. Deste modo,
por conta desta mudança na sociedade, afirma Amy Davis afirma (2007): “Enquanto as
heroínas fortes são uma tendência crescente na animação da Disney deste período posterior,
as mulheres más estão se tornando um fenômeno cada vez mais raro” (DAVIS, 2007, p. 214).
Portanto, as produções fílmicas são veículos de expressões artísticas, culturais,
políticas e ideológicas que tem como finalidade uma expressão formativa político-
pedagógico. Deste modo, no século passado traços como poder, inteligência e independência
eram conferidos a vilãs para ensinar como mulheres não deveriam ser através da paulatina
representação dos papéis de gênero dicotômicas, sendo a mulher passiva, doce e dona de casa
que, ao ser altruísta e sem individualidade, alcança um final feliz para si através do amor
romântico, enquanto figuras poderosas, independentes e que preconizam concluir seus
objetivos estão destinadas a ruína e finais solitários.
A luz do exposto, é notável como ambas as narrativas diferem em suas propostas,
mesmo que estejam ambientadas nos mesmos universos. Em A Bela Adormecida (1959) e 101
Dálmatas (1961) observamos como os papéis de gênero são reforçados nos personagens,
garantindo um final feliz para aqueles que se submetem e um trágico final para Malévola e
Cruella que subverte as normas de gênero. Porém, através da influência externa e dos
discursos feministas que impactam a sociedade contemporânea, tal panorama transformou-se
30
e em Malévola (2014) e Cruella (2021) temos a releitura duas personagens fortes,
independentes e empoderadas, que, atualmente, tornam ambas figuras inspiradoras para as
mulheres e meninas.

Palavras-chave: Malévola. Cruella. Empoderamento.

REFERÊNCIAS

101 DÁLMATAS. Diração Wolfgang Reitherman, Hamilton S. Luske e Clyde Geronimi.


Produção Walt Disney. Estados Unidos: Walt Disney Studios, 1961. 82 min.
A BELA ADORMECIDA. Direção Clyde Geronimi. Produção Walt Disney. Estados
Unidos: Walt Disney Studios, 1959. 78 min.
BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução Renato
Aguiar. – 21ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
CRUELLA. Direção Craig Gillespie. Produção Andrew Gunn, Kristin Burr, Marc Platt.
Estados Unidos: Walt Disney Studios. 2021. 136 min.
DAVIS, Amy. Good Girls and Wicked Witches: Women in Disney's Feature Animation.
New Barnet: John Libbey Publishing Ltd, 2007.
FARAHBOD, Marissa Francisco. From hag to heroine: the evolution of the female villain in
disney’s Frozen and Maleficent. 2016. 135f. Thesis (Department of Gender Studies) -
Memorial University of Newfoundland.
GUTIÉRREZ, B. P. Breaking the Glass Slipper: Analyzing Female Figures’: Roles in
Disney Animated Cinema from 1950-2013. 2017. 164f. Honors Theses (Honors in the
Gender, Sexuality, and Women’s Studies Program) – Union College.
KORNIS, M. A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, pp. 237-250.
MALÉVOLA. Direção Robert Stromberg. Produção Joe Roth. Estados Unidos: Walt Disney
Studios, 2014. 99 min.
VALIM, A. B. História e Cinema. in: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (org.). Novos
domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

31
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 2 - GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRODUÇÃO DE SUJEITOS E RELAÇÕES

PRODUÇÕES DE SENTIDOS SOBRE PROCESSOS DE


ENVELHECIMENTO A PARTIR DO GRINDR

Marcos Antonio Ângelo da Silva11

A expansão das tecnologias alcançou proporções inimagináveis tanto para seus


usuários como para seus criadores, o algoritmo domina nossas vidas e dita as regras de
sociabilidade nos campos online e off-line. Assim, este texto busca apresentar os resultados
de minha pesquisa de mestrado que refletiu sobre a trama atual que esboça a sociedade
digital em que vivemos, entrelaçando e (re) desenhando conceitos, experiências e vivências
de homens gays que utilizam plataformas digitais na busca por amor, amizade e sexo, sejam
eles virtuais ou reais.
Diante de tal cenário, refleti sobre os limites e vantagens que as tecnologias causam
em nossas vidas e, para isso, vislumbrei como objetivo geral da pesquisa: analisar os
sentidos atribuídos pelos interlocutores quanto aos processos de envelhecimento que os
atravessam quando da utilização de ferramentas digitais na busca por parceiros; e
específicos, compreender como estes sujeitos constroem o entendimento e noção de
envelhecimento, considerando os diferentes fatores que envolvem a construção do conceito
de envelhecer no contexto virtual; analisar as dinâmicas e configurações de poder envolvidas
nas interações sociais realizadas virtualmente no Grindr; e identificar os principais aspectos
que contribuem para o entendimento do que é ser gay nas plataformas digitais e quais
implicações essas performances geram nas interações online e off-line.
O presente trabalho, portanto, propõe discussões que envolvem, neste sentido,
reflexões sobre as relações de poder envolvidas nas interações virtuais, as configurações
atuais sobre o entendimento e sentido dos processos de envelhecimento neste mundo tão
veloz, onde o efêmero e o líquido são condições para se estar atualizado, e ainda sobre
sexualidade dentro das plataformas virtuais, tão cheias de exigências e requisitos para se

11
Mestre em Sociologia, Universidade Federal do Piauí-UFPI. E-mail: marcosantonioangelo12@gmail.com.
32
conseguir alguém, mesmo que para apenas uma conversa ou amizade virtual. Para
compreendermos as questões levantadas foi necessário fazer uso do pensamento de nomes
como Bauman (2007/2011), Foucault (1987/1988), Goldenberg (2014), Miskolci (2017),
Sibilia (2008), e outros que deram suporte à construção dos fios que emaranham esta rede
que buscamos decifrar.
O campo da pesquisa é o Grindr, onde foi criado um perfil público e aberto com o
intuito de selecionar os possíveis participantes da pesquisa, no chat do próprio aplicativo
desenvolvi conversas com usuários do app onde foram expostas angústias, frustações e
expectativas relacionadas à utilização dele. Nesse sentido, o Grindr como ferramenta
tecnológica de sociabilidade proporciona uma maior possibilidade de interação entre sujeitos
de diferentes culturas, regiões e diferentes condições, para além destas facilidades,
oportuniza ainda a disseminação de práticas preconceituosas, recriando no ambiente virtual
situações enfrentadas por muitos homens gays na sua vida real.
Apresento aqui com base nas falas dos interlocutores as noções e sentidos dados por
eles aos temas que compreendem os usos e atribuições de ferramentas virtuais, mídias
digitais, poder, sexualidade e processos de envelhecimento. Atualmente somos reféns das
mídias digitais e de todas as formas que a tecnologia nos possibilita de facilidades para o
nosso dia a dia e não é novidade que a internet hoje adentra nossas vidas em todos os
campos, bem como proporciona e auxilia a vida em diferentes campos.
Para os interlocutores da pesquisa, usuários do Grindr, essa ferramenta virtual
apresenta características que aproximam pessoas de diferentes contextos e experiências de
vida, possibilitando uma maior facilidade de encontrar um parceiro para namoro, sexo casual
ou amizade. Alicerçado nas reflexões dos interlocutores pude compreender que esses
veículos de comunicação são vistos como ferramentas que precarizam as relações humanas
em vários sentidos, objetificando e descartando as pessoas quando estas não atingem os
ideais solicitados pelos usuários do app. Vale ressaltar ainda, em relação ao uso de mídias
digitais, que estas exigem uma velocidade e rapidez nas interações de forma que, quem as
utiliza, deve adequar-se a essas exigências acompanhando o tempo virtual que não condiz
com a realidade off-line, e que exigem também a exposição exagerada da imagem visual,
33
inclusive dando maior visibilidade para aqueles que mais expõem seus modos de vida, sendo
consequentemente mais acessados, recebendo mais likes, e mais compartilhamentos de seus
perfis.
No caso específico do Grindr, os interlocutores confirmam que essas formas de
socialização virtuais criam oportunidades e, por isso, são usadas com frequência para se
fazer novas amizades, bem como, para buscar parceiros para sexo casual sem compromisso.
Sobre as relações de poder exposta nas falas dos entrevistados particularmente fui levado a
refletir muito sobre a apresentação do contexto virtual como exposto por um dos
interlocutores que denominou as interações sócio virtuais como um microcosmo de nossas
experiências exteriores ao ambiente online. Refletir sobre as dinâmicas de poder que
conectam estes usuários nas redes, de certa forma, reproduz o que vivenciamos em nossas
práticas off-line.
Diante das considerações dos entrevistados, pude notar o quanto as trocas e
interações configuram essas afinidades que envolvem como descrito pelos próprios
interlocutores, relações carregadas de possibilidades, que vão além da reprodução de papéis
de gênero, concebidos tal qual a heteronormatividade coloca para a sociedade.
No ambiente virtual os sujeitos agem e performam papéis que lhe agradam e
satisfazem sem se importar com as imposições sociais. Essa segurança que é necessária para
participar das interações virtuais faz com que os sujeitos, em suas buscas, se aceitem como
são, apesar de, por vezes, serem recebidos de forma fria ou indiferente, tomem ação e
“cacem” seus possíveis parceiros sem ligar para questões como a de estereótipos que
fetichizam e enquadram os indivíduos nas categorias de objeto e mercadoria. São essas
nuances que possibilitam a esses mesmos sujeitos se aventurarem nas conexões virtuais em
busca de sexo despretensioso, que, por vezes, pode rolar ou não, construir amizades afetivo
sexuais, ou mesmo se encaixar em um determinado gosto ou desejo.
Os interlocutores da pesquisa também ressaltam a importância de se utilizarem da
imagem para apresentar seus atributos em seus perfis, bem como lançam mão da
possibilidade de descrição de suas características, utilizando como possibilidade o texto.
Não menos importante que os outros fatores que corroboram com a dinâmica de poder
34
virtual, os interlocutores da pesquisa possuem um fator a mais que possibilita uma possível
interação com os demais usuários do app: o fato de serem considerados “maduros” imprime
uma condição favorável para eles, visto que muitos outros usuários procuram por perfis de
homens com características como essas.
Quando as conexões virtuais se voltam para a temática da sexualidade, é possível
observar diferentes fatores recebendo uma maior visibilidade e uma nova roupagem. Um
aspecto muito ressaltado pelos interlocutores da pesquisa é a questão dos fetiches, o que
coloca estes usuários em evidência e os torna objeto de desejos de outros frequentadores do
app. Dessa forma, as teias entrelaçadas nas conexões virtuais dão a estes indivíduos
oportunidades de performar suas sexualidades para além dos padrões social e virtual
impostos, quebrando barreiras e os tão indicados estereótipos exigidos na busca por
parceiros virtuais.
O padrão do “supermacho”, do gay perfeito “inatingível” é desconsiderado pelo que
infringem a norma e que, independentemente de seus corpos abjetos, envelhecidos,
“anormais”, e sua idade, utilizam o espaço digital como ferramenta de sociabilidade e
caçada amorosa, sexual ou apenas para amizade. Os entrevistados indicam haver nas
possibilidades virtuais oportunidades de flutuações e diversificação de papéis, não se
enquadrando em apenas uma performance, dando a eles a chance que melhor se adequar às
expectativas e desejos dos demais usuários do app.
O entendimento comum de envelhecimento desenha a imagem da pessoa neste
processo como um ser no fim de sua existência. Para além dessa noção, encaram o indivíduo
em processo de envelhecimento como alguém que não tem desejos ou interesses sexuais.
Estes homens enquanto gays são duplamente oprimidos e passam a ser vistos com muito
mais desrespeito e discriminação, no entanto, percebemos nas falas dos interlocutores que,
apesar da idade, não imprimem condição alguma para atuação ou prática sexual; encontram-
se em plena atividade sexual, inclusive exibindo performances que muitas vezes não são tão
comuns entre os demais usuários do app.
Ser um homem gay “maduro” tem seus privilégios, existe a questão do desejo, do
perfil de homem que aparenta seriedade, amadurecimento, mas também traz consigo muitas
35
ponderações. Confesso que me surpreendi com a percepção deles sobre suas experiências e
vivencias virtuais, pois não percebi neles o peso da identidade socialmente constituída do
velho no contexto das interações digitais. Para os interlocutores a rede é mais um espaço de
sociabilidade que utilizam para caçar seus possíveis paqueras, sendo suas investidas envoltas
de sutilezas e artifícios que, dependendo do caso, os ajudam no êxito da busca.
Neste sentido, compreendo que os jogos virtuais não diferem ou colocam em
patamares diferentes seus utilizadores, tal qual em uma paquera off-line. Os homens, que
entrevistei, com idades entre 40 e 52 anos são sujeitos que buscam apresentar uma boa
aparência, utilizam-se das fotografias como facilitadora de interações, têm atitude e vão em
busca de seus possíveis parceiros, não possuem receio ou medo de expor suas preferências e
gostos, e assumem, por sua conta e risco, o estereótipo do homem “maduro” para seu bem
ou mal. Buscar entender os atravessamentos oportunizados por estes homens usuários do
Grindr sobre seus processos de envelhecimento me fez entender muito mais sobre as
singularidades que envolvem a construção do envelhecimento.
Socialmente somos moldados e enquadrados em determinadas categorias de acordo
com o momento em que vivemos, estamos envelhecendo em um mundo virtual, que nos
impõe um novo modo de vida e formas de sociabilidades que para estes mesmo sujeitos
poderiam ser inimagináveis em sua adolescência. Compreendi com as reflexões e análises
das falas dos interlocutores que cada processo é único e atravessado por nossas
subjetividades e personalidades. Adentrar o mundo das tecnologias e se valer de mídias
digitais como é o Grindr apenas faz desses homens sujeitos de seu tempo, que utilizam as
ferramentas tecnológicas para quaisquer das funcionalidades que elas se propõem ajudar,
como é o caso do app em questão.
Envelhecer, no contexto digital, apresenta novas formas de viver esse período da vida
que, longe de tornar o indivíduo um ser inútil, oportuniza uma infinidade de possibilidades
para que qualquer um aprenda ou desenvolva o que desejar, seja o desejo de aprender uma
nova língua, ser um digital influencer, criar conteúdo em diferentes plataformas, criar um
perfil em uma rede social ou app de relacionamento para interagir com outras pessoas e
assim aproveitar o que as tecnologias nos dão a oportunidade de usufruir.
36
Os sentidos construídos pelos indivíduos sobre seus processos de envelhecimento
não me permitem, portanto, concluir de forma precisa quais aspectos e similitudes envolvem
a construção do que é envelhecer no contexto virtual, pois cada indivíduo tem um processo
específico que o envolve e faz viver experiências únicas sobre envelhecimento, poder,
sexualidade e o uso de mídias digitais que podem, por vezes, ter um sentido próprio para o
sujeito e não atingir com a mesma sensibilidade outro indivíduo.
É inapropriado, portanto, que se conclua com base em uma única pesquisa um
processo que todo dia tem novas variáveis, envolve outras categorias, e abrange uma
infinidade de situações, experiências e vivencias tão singulares e intimas. Não ouso concluir
a pesquisa fincando os sentidos que meus interlocutores dão aos seus processos de
envelhecimento, pois compreendo que cada um diante de suas singularidades e
subjetividades entende suas experiências da forma que melhor lhe convém e se adequa às
suas perspectivas e compreensões de vida. Apresento aqui (in) conclusões sobre estes
processos que do ponto de vista da pesquisa reflete e analisa características e similaridades
que envolvem esses interlocutores nas teias da vida virtual e assim apresentam suas noções
sobre o que é envelhecer neste contexto que atravessa suas sociabilidades online.
Assim, os sentidos construídos por estes indivíduos sobre seus processos de
envelhecimento não me permitem concluir de forma precisa quais aspectos e similitudes
envolvem a construção do que é envelhecer no contexto virtual, pois cada indivíduo tem um
processo específico que o envolve e faz viver experiências únicas sobre envelhecimento,
poder, sexualidade e o uso de mídias digitais que podem por vezes ter um sentido próprio
para cada sujeito.

Palavras-chaves: Processos de Envelhecimento. Gay. Sociabilidades.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2011.

37
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Janeiro: Zahar, 2007.

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HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência; Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª


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https://www.youtube.com/watch?v=FElA_WATipQ. Acesso em 26.01.2022.

38
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 2 - GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRODUÇÃO DE SUJEITOS E RELAÇÕES

A INTERNET COMO ESPAÇO DE MEDO: ANÁLISE DE UM CASO DE


CRIME VIRTUAL E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM SÃO
LUÍS-MA

Amanda Ribeiro Bezerra12

Nosso texto tem por objetivo discutir o impacto da violência de gênero na vivência de
uma vítima de violência e como, no decorrer de um ano de reiterados pedidos de medidas
protetivas, teve suas relações sociais e espaciais modificadas em razão do medo. Esta pesquisa
é resultado do trabalho de mestrado que teve como base dados obtidos junto à Delegacia da
Mulher de São Luís e à 2ª Vara Especial de Combate à Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher, no período de 2008 a 2019. Apesar dos mais de 4 mil processos consultados,
nos atentaremos a apenas um caso analisado, abordando a perspectiva da vítima ante à
violência sofrida, a partir de seus relatos pessoais e em boletins de ocorrência.
Para isso, a metodologia utilizada, de abordagem qualitativa (GIL, 2019), considera os
pressupostos de Bardin (1977), que propõe a sistematização dos dados a partir da análise de
conteúdo. O artigo apresenta, brevemente, o conceito de lugar para a geografia e a influência
do medo, convergindo para a análise das relações sociais e espaciais da vítima de violência,
de como a experiência de violência, a perseguição pelo agressor e as reiteradas tentativas de
renovação de medidas protetivas impactou suas vivências cotidianas, sua mobilidade espacial
e sua relação com os lugares.
Inicialmente, consideramos a perspectiva de gênero, que revela que a violência de
gênero e contra a mulher está relacionada à construção social e cultural acerca dos papéis
masculinos e femininos, cuja associação do feminino à fragilidade e submissão as expõe a
situações de abusos, motivados pelas expressões de desigualdades pautados na condição de

12
Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UEPG), Doutoranda em Geografia pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: amandaribeirob@hotmail.com
39
sexo (SAFFIOTI, 1969; BANDEIRA, 2014; FEDERICI, 2021). Essas violências,
naturalizadas na sociedade ocidental, são, ainda, transpassadas pelas múltiplas dimensões
identitárias, como a classe social, cor da pele, religião, sexualidade e entre outros, impactando
com grande alcance um vasto grupo de mulheres.
Em um texto publicado originalmente em 1991, Doreen Massey (2000) sustenta que o
uso dos espaços pelas mulheres é permeado por elementos representativos que influenciam
em suas experiências cotidianas, modificando suas relações com os lugares. De acordo
com Yi-Fu Tuan (2012) no lugar se manifestarão os laços afetivos dos seres humanos, embora
com diferenças de intensidade, sutileza e modos de expressão, fazendo com que o que lhe é
familiar e reconhecível esteja atrelado a uma identidade incorporada e significada a ele.
Isso significa que o lugar assumirá inúmeras formas, variando em amplitude
emocional e intensidade, fazendo com que a vida cotidiana se materialize no lugar, portanto
se é um conceito difuso, é concreto enquanto experiência pessoal. Logo, as micro atitudes, os
pequenos acontecimentos da vida cotidiana, ou as chamadas cenas efêmeras, vistas como
superficiais, darão consistência ao lugar. Assim, para cada indivíduo ou grupo, os lugares
terão múltiplos simbolismos. Todavia, em razão do tempo e de novas experiências os lugares
mudam, pois estão conectados aos eventos que ocorrem nessa ligação, levando pessoas que
sofreram situações traumáticas, como violências, a repensar um lugar que antes lhe
significava alegria, segurança e conforto.
Nesse sentido o medo terá impacto fundamental na apreensão dos lugares. O medo da
violência e do crime influenciam as formas de compreender e vivenciar os espaços nas
relações cotidianas, justificando mudanças de comportamentos, de deslocamentos, de
habitação e mesmo de uso de tecnologias de exclusão social (CALDEIRA, 2003). Seja em
razão de violências que ocorreram consigo mesmo, ou motivado por incessantes notícias
criminais em telejornais e redes sociais, indivíduos e grupos passarão a ter seus olhares sobre
os espaços transformados. Considerando as condições sociais pertencentes ao gênero,
raça/etnia, classe social, sexualidade, geração, religião e entre outros que, geralmente, se
encontram interseccionadas, o medo convergirá para impactos nas vivências pessoais
cotidianas.
40
Em São Luís, Maranhão, uma denúncia de violência contra a mulher realizada em
2017 se destacou ante às demais. Era o caso de uma jovem que estava sofrendo constantes
ataques virtuais de seu ex-namorado, que não se contentava com o fim do relacionamento e
demonstrava ciúmes da vítima por ter seguido a vida sem ele. Em seus relatos, a jovem
declarava que já havia morado em duas cidades brasileiras antes de se mudar para São Luís:
na primeira, havia morado com o então namorado até as primeiras violências reais
(psicológica, moral e física) e, na segunda, no intuito de fugir do ex-namorado e das
agressões, passou a ser perseguida virtualmente, termo conhecido como cyberstalking, e
sofrer outras violências online, como cyberbullying e divulgação de suas imagens pessoais e
íntimas pelo agressor em redes sociais de grande popularidade.
O que entendemos por cyberbullying é a utilização de redes sociais para realizar
comentários depreciativos e com apologia à violência ou à autodestruição; e o cyberstalking
ou perseguição virtual, caracterizada pela obsessão que um indivíduo tem de outro e passa a
persegui-lo (nas redes sociais ou presencialmente) de forma contínua, entretanto, pelos relatos
da vítima, observamos o predomínio de outros tipos de violências virtuais, como a sextorção,
que é a ameaça de divulgar imagens íntimas para forçar alguém a fazer algo, geralmente
usados como forma de humilhação, vingança ou extorsão financeira; e a pornografia de
vingança, quando o ex-parceiro ameaça ou divulga imagens íntimas da vítima em sites e em
redes sociais sem o consentimento dela (BRASIL, 2012; 2014).
O processo analisado, em que a vítima solicitava medidas protetivas já estava em seu
2º ano de renovação e, mesmo criando novos perfis em redes sociais, o autor dos crimes
encontrava seus dados de usuário, a hackeava e expunha suas fotos e vídeos e, por vezes,
realizava postagens declarando que a jovem era profissional do sexo e cobrava determinado
valor, informação que podia ser vista tanto por desconhecidos como por familiares, amigos e
colegas de trabalho. À época, a justiça agia em conformidade com as Leis nº.11.340/2006 (Lei
Maria da Penha, que tipificava a violência como psicológica), nº. 12.737/2012 (Lei Carolina
Dieckmann, que tipificava criminalmente os delitos informáticos) e nº. 12.965/2014 (Marco
Civil da Internet).

41
Entretanto, mesmo com as medidas tomadas junto à justiça, o autor dos crimes fazia
uso das facilidades da internet para continuar com as práticas violentas, criando contas
anônimas, e-mails falsos, e utilizando VPN (rede virtual privada), tendo o tráfego de dados
privado criptografado e disfarçando a identidade online do usuário, impedindo seu
reconhecimento. Essas violências constantes geravam na vítima e em suas relações afetivas e
amorosas diversas consequências, passando a incidir de forma crônica na sua saúde física,
emocional e psíquica e na conjuntura pessoal, social, familiar e espacial. Além de ter se
mudado duas vezes para não ser reconhecida nos locais que frequentava, a jovem revelava
como não se sentia mais segura nos ambientes virtuais e reais, em um sentimento constante de
medo, insegurança, desamparo e indignação.
Seus relatos, colhidos como comprovação de que as violências e agressões sofridas
continuavam e era necessário a renovação das medidas protetivas, demonstravam não apenas
a necessidade de atualização do poder de justiça e proteção às novas práticas de crimes
cibernéticos, mas, também, como as experiências das violências, mesmo online, impactava
em suas vivências cotidianas, sua mobilidade espacial e sua relação com os lugares. A jovem
afirmava que sofria com a repressão social de conhecidos e desconhecidos, online ou offline, e
tinha que se isolar em casa por determinado período até que os vazamentos de fotos e vídeos
não estivessem mais em foco.
Suas escolhas e liberdades individuais, seus relacionamentos amorosos e suas relações
trabalhistas, familiares e afetivas sofreram o impacto dos crimes perpetrados contra ela,
revelando sofrer com ataques de ansiedade e, por vezes, com ideias suicidas. O trauma que a
acompanhava exprimia o medo de que pudesse sofrer novos ataques, não apenas pelo ex-
companheiro, mas por desconhecidos que, olhando as fotos e vídeos publicados, podiam
salvar o conteúdo e divulgá-los a qualquer momento, reavivando sequelas cujos impactos na
sua vida cotidiana transcendiam o mundo online.
Por terem, como consequência, uma espécie de linchamento moral às mulheres
vítimas, que são constantemente atacadas e julgadas, os crimes virtuais têm um paralelismo
com os casos reais de “violências domésticas” (LINS, 2017), em razão do alcance e impacto
na vida psicoemocional e socioespacial das vítimas. A partir do momento que mulheres são
42
culpadas e responsabilizadas pelas violências e inseguranças que sofrem, tem-se o
estabelecimento de normas sociais que implicam que mulheres devem abdicar de sua total
liberdade em razão de sua preservação, criando-se assunções que se refletirão em seu
cotidiano.
O assédio, a perseguição, ameaça e o vazamento de conteúdos íntimos, como fotos e
vídeos, são capazes de gerar sequelas na vida cotidiana e nas relações afetivas e amorosas das
mulheres vítimas, impactando no uso de espaços reais. Assim, para as vítimas de violências,
virtuais ou concretas, a construção dos lugares e suas relações socioespaciais são
transformadas, de modo que nos diferentes espaços, as violências perpetradas contra as
mulheres incidirão em diferentes formas de usos e apreensões dos lugares, levando a
mudanças comportamentais, influenciadas pelos sentimentos de medo, indignação, ansiedade,
desespero e entre outros.
Desta forma, o cyberbullying, cyberstalking e o vazamento de conteúdos íntimos,
como fotos e vídeos, entre outros crimes cibernéticos são capazes de gerar impactos na vida e
nas relações afetivas e amorosas das mulheres vítimas, impactando no uso de espaços reais.
Tais violências, quando perpetradas contra mulheres que são atravessadas por características
identitárias como raça/etnia, classe social, sexualidade, geração, localização geográfica e
outras são capazes de produzir traumas e sequelas que se unam às interseccionalidades e
preconceitos já vividos por aquelas que estão às margens das relações sociais, modificando
seus atos e usos dos lugares.

Palavras-chaves: Crime virtual. Mulher. Relações socioespaciais.

REFERÊNCIAS

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investigação. In: Rev. Sociedade e Estado, v.29, n.2, p.449-469, Mai./Ago. Brasília: UNB,
2014.

BARDIN, Lawrence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 1977.

43
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doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: DOU, 2006.

BRASIL. Lei nº. 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de
delitos informáticos. Brasília, DF: DOU, 2012.

BRASIL. Lei nº. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e
deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: DOU, 2014.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo. São Paulo: Editora 34; EdUSP, 2003.

FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo. São
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GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2019.
LINS, B. A. “Ih, vazou!”: pensando gênero, sexualidade, violência e internet nos debates
sobre “pornografia de vingança”. In: Cadernos De Campo, São Paulo, 25(25), p. 246-266,
2017.

MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antonio (org.). O espaço da
diferença. Campinas: Papirus, 2000.

SAFFIOTI, Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade. São Paulo:


Livraria Quatro Artes Editora, 1969.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.


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44
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 2 - GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRODUÇÃO DE SUJEITOS E RELAÇÕES

A TRANSFOBIA E O CAMINHAR DE PROFESSORAS


TRANSEXUAIS NA CIDADE DE BELÉM

Luís Gustavo Mendes Monteiro13

O presente estudo busca trazer à tona um tema bastante atual e pertinente, pois a
questão de gênero, principalmente relacionado à transexualidade, é um fator de exclusão
social e educacional. Este estudo iniciou no mergulho do tema transexualidade aliado ao
direito penal, na construção do Trabalho de Conclusão de Curso, em Bacharelado em Direito.
A partir desta pesquisa inicial, verificou-se que um dos fatores que levam mulheres
transexuais e travestis para o mundo do crime e da prostituição é o fato de as mesmas não
terem oportunidades satisfatórias no ambiente escolar.
Mulheres transexuais e travestis, desde muito novas são expulsas de suas residências,
devido a não aceitação da sua identidade de gênero e sexualidade, por parte de seus
familiares. Sobre isso, Benevides e Nogueira (2020) reforçam que 13 anos é a média de idade
que tais sujeitas são expulsas de suas casas. Assim, diante dessa situação, a maioria delas
encontra na prostituição e no mundo do crime as únicas formas de sobrevivência. Entretanto,
apesar dessa obscuridade e da invisibilidade que mulheres transexuais e travestis sofrem em
nossa sociedade, também é possível identificar histórias diferentes das reforçadas pelo
imaginário social, onde tais sujeitas conseguiram ultrapassar os preconceitos e a transfobia
presentes em nossa sociedade, por meio da educação, chegando a ocupar cargos docentes em
escolas e até universidades.
Apesar desse caminho ser trilhado por poucas sujeitas, é cabível a nós, pesquisadores,
apresentarmos à sociedade outros caminhos possíveis para mulheres transexuais e travestis

13
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Formação de Professores e Práticas
Pedagógicas/2021 – PPGED, Universidade do Estado do Pará (UEPA. E-mail: gustavomendes1@live.com
45
para que sejam dadas a elas oportunidades de diálogo sobre suas experiências e, quem sabe,
incentivar outras pessoas que se identifiquem com suas trajetórias e histórias de vida.
No Estado do Pará, dados apontam que apenas 15% de estudantes trans e travestis
conseguem concluir o ensino fundamental e 10% o ensino médio (G1 PARÁ, 2013). Esse
abandono do ambiente escolar ocorre, principalmente, pelas constantes violências acometidas
contra elas, seja pelos estudantes ou pelos funcionários, tornando este espaço hostil e perigoso
para essas mulheres, devido ao reforço e reprodução da heterossexualidade (BENTO, 2011).
Diante dessas circunstâncias apresentadas até aqui, busca-se investigar: como a
transfobia atravessa o percurso formativo de professoras transexuais, a partir do olhar de suas
vivências e experiências, desde a educação básica, perpassando sua formação acadêmica e em
seu cotidiano profissional no ambiente escolar? Quanto à delimitação do objeto, busca-se a
compreensão da transfobia no percurso formativo de professoras transexuais, também a partir
do olhar de suas vivências e experiências, da educação básica até sua prática profissional
como docente, na cidade de Belém.
Quanto ao objetivo geral, tal pesquisa visa, compreender manifestações da transfobia
na vida escolar, na formação superior e no cotidiano de atuação profissional como docentes, a
partir do olhar de suas vivências e experiências. Bem como, tem como objetivos específicos:
analisar a transfobia na trajetória escolar básica de professoras trans; discutir a transfobia na
formação acadêmica das mesmas; e interpretar como elas são tratadas no cotidiano escolar em
sua prática docente.
Quanto à metodologia, será utilizada a abordagem qualitativa, por compreendê-la
como essencial ao processo de reflexão e análise da realidade (OLIVEIRA, 2013). Dentre tal
abordagem, utilizar-se-á como aporte o método da Fenomenologia Social, de Schutz (1979)
para buscar compreender a presença da transfobia na vida escolar e profissional, a partir de
suas experiências de vida, trazendo à tona uma experiência real e significativa. Para a reunião
dos dados será utilizada a entrevista narrativa, com professoras transexuais da cidade de
Belém, que na perspectiva de Weller e Zardo (2013, p. 133), “o ato de rememorar e a narração
da experiência vivenciada de forma sequencial permitem acessar as perspectivas particulares
de sujeitos de forma natural”. E, como método de análise de tais entrevistas, será utilizado o
46
método documentário, que segundo Weller e Otte (2014) busca-se analisar em profundidade
as entrevistas narrativas, elaborando modelos teóricos sobre a trajetória dos indivíduos
pertencentes a grupos e condições sociais específicas, como no caso das professoras
transexuais. Neste trabalho utilizar-se-á como referencial teórico alguns autores que dialogam
sobre o tema a seguir: Louro (2008), Benevides e Nogueira (2020), Andrade (2019) e
Bortolini (2020).
A educação, enquanto processo social e coletivo sempre esteve situado histórico e
socialmente. Entretanto, as discussões entre educação e gênero vem entrando em um campo
de disputa que ultrapassam as políticas públicas educacionais (LIMA; NASCIMENTO;
MARCONDES, 2022). Principalmente, devido questões sobre gênero serem apresentadas de
maneira errônea, onde são divulgadas, por religiosos e políticos conservadores, que o diálogo
na escola sobre identidade de gênero é uma ideologia para doutrinar os estudantes. Contra
essa situação, Bortolini (2020) explica que dialogar sobre gênero na escola é convidar à
reflexão, ao pensamento crítico, fazendo-nos questionar sobre aquilo que parece óbvio,
construindo uma perspectiva autônoma para além das ideologias que nos foram ensinadas
desde nossas infâncias.
A escola é uma das principais instituições na formação da vida do ser humano. Por
meio da educação, podemos buscar novas possibilidades e perspectivas futuras. Entretanto,
estudantes transexuais e travestis não possuem as mesmas condições de permanência que um
aluno heterossexual, pois a discriminação e o preconceito fazem parte do cotidiano escolar
das mesmas, seja pelos alunos ou funcionários da escola. Sobre isso, Louro (2008, p. 87)
completa que há uma punição para todos aqueles desviantes do padrão estabelecido e que
experimentarão o desprezo ou a subordinação e que, “provavelmente, serão rotulados (e
isolados) como ‘minorias’. Talvez sejam suportados, desde que encontrem seus guetos e
permaneçam circulando nesses espaços restritos”.
Diante dessa realidade que tenta tornar invisíveis sujeitas transgêneras, existem
aquelas que conseguem resistir a tais atrocidades cometidas contra elas e buscar formas, por
meio da educação, de mudar a sua realidade. E é nessa perspectiva que busco apresentar casos
de professoras transexuais que conseguiram ultrapassar o “cistema”, na cidade de Belém e
47
autoafirmar que o lugar dessas pessoas pode ser longe da prostituição, servindo também de
modelo para que outras pessoas possam se encorajar e buscar outros caminhos e outras
possibilidades por meio da educação, como é o caso da primeira professora Doutora travesti
do Brasil, Luma Andrade.
Apesar de Luma ser a primeira professora Doutora travesti, ainda há um
questionamento por parte dela, pois outras ainda não conseguiram chegar nesse lugar de
pertencimento, onde ela reflete “por que elas não estão chegando nesses lugares? O que está
acontecendo? Percebe-se que isso não é motivo de alegria. Não é motivo de celebração. É
motivo de reflexão” (ANDRADE, 2019, p. 338).
É preciso evidenciarmos as experiências de vida de professoras transexuais para que
possamos apresentá-las à sociedade e tentar retirar o Brasil do ranking mundial dos países que
mais assassinam pessoas trans (BENEVIDES e NOGUEIRA, 2020) e que se utilizam do
discurso de ódio e intolerância para decidir quem deve ou não viver. Além disso, é preciso
também dialogar sobre conceitos relacionados à gênero, orientação sexual e identidades, pois
o imaginário social ainda é pouco conhecedor sobre as diferenças existentes acerca destes.
Trazer à tona o tema da transexualidade aliado a educação é urgente e mais do que
necessário, pois precisamos refletir que pessoas transgêneras existem e merecem ter
condições de uma vida digna e protegida sob a égide dos direitos humanos. A educação pode
transformar vidas, e todos merecem e podem ser agentes dessa transformação, independente
da sua sexualidade ou identidade de gênero. Outrossim, esta pesquisa tornar-se-á pioneira
para a Universidade do Estado do Pará no diálogo sobre o tema, tendo em vista que ainda não
há, nos últimos dez anos, nenhuma dissertação a respeito publicada.
A temática transexualidade, ainda causa bastante inquietação ao ser trazida ao debate,
devido vivermos em um país extremamente intolerante e preconceituoso. Aliar tal tema ao
contexto educacional traz ainda maiores inquietações, por preexistir no imaginário social que
a escola não é lugar de pessoas transgêneras, sendo a prostituição o único local de
pertencimento.
Diante desse preconceito estabelecido, busca-se trazer nesta pesquisa de Mestrado,
casos de professoras transexuais que conseguiram ultrapassar o “cistema”, enfrentando um
48
modelo educacional “cisheteronormativo” e conseguindo chegar até a docência, na cidade de
Belém. Essa pesquisa vai mostrar como as suas trajetórias de vida ficaram marcadas por esses
lugares e pelas pessoas que por suas vidas passaram. Mais do que apenas apresentá-las, a
intenção de resgatar tais memórias e em diálogo com autores sobre a temática é buscar
promover uma reflexão aos futuros leitores que repensem suas atitudes e práticas e que
aprendam a respeitar a diversidade sexual e identidade de gênero do próximo.
Precisamos mudar as estatísticas no Estado do Pará oportunizando que mulheres
transgêneras tenham acesso à escola, mas além disso, tenham condições de permanecerem em
tais espaços de maneira satisfatória e sem preconceito. Outro ponto é a necessidade de
promover o diálogo sobre o tema além da academia para que possamos retirar o Brasil do
ranking mundial dos países que mais assassinam pessoas transgêneras. E, por meio da
educação, acredito que esta seja uma possibilidade de buscar novas e valiosas possibilidades
para a vida dessas pessoas.

Palavras-chaves: Educação. Transexualidade. Professoras Transexuais.

REFERÊNCIAS

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possibilidade de existência de uma travesti no ambiente escolar. RECIIS – Revista
Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 13, n.
2, p. 330-339, abr./jun. 2019.

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educação: reflexões iniciais. In: PIMENTEL, A; MALCHER, N (orgs). Diálogos
interdisciplinares em saúde.1ª ed. – Belém: UFPA/ IFCH/ PPGP/ NUFEN. 269p. p. 217-236

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contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA,
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BENTO, B. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos


Feministas, v. 19, p. 549-559, 2011.

49
BORTOLINI, A. Pode falar sobre gênero na escola? In: PINHEIRO, D.; REIS, C. (orgs).
Quando LGBTs invadem a escola e o mundo do trabalho. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2020,
p. 13-43.

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Publicado em 17 de maio de 2013. Disponível em:
http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/05/para-e-o-estado-com-conselho-glbt-mais-
avancado-do-
brasil.html#:~:text=Criado%20por%20decreto%20estadual%20em,a%20favor%20da%20caus
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LIMA, A. R. C. de; NASCIMENTO, C. C. C. de; MARCONDES, M. M (orgs.). Dossiê das


desigualdades [recurso eletrônico]. 1. ed. Natal: SEDIS-UFRN, 2022.

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reimp. Belo Horizonte: Autêntico, 2008.

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Exemplificação a partir de um estudo com gestoras de instituições públicas. Civitas - Revista
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https://doi.org/10.15448/1984-7289.2014.2.17150. Acesso em: 12 Julho 2022.

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metodológicos e exemplificação. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade,
Salvador, v. 22, n. 40, p. 131-143, jul/dez 2013.

50
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 3 - DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA, VIOLÊNCIA E DESIGUALDADES

REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PELO PORTAL DE


NOTÍCIAS G1 PARÁ DURANTE 2015-2020

Allyne Samara da Silva de Melo14


Dâina Naíny Cunha do Rego15
Nelissa Peralta Bezerra16

Em 07 de agosto de 2006, o Governo Federal brasileiro sancionou a Lei Maria da


Penha e 2015 foi sancionada a Lei do Feminicídio, ambas criadas para proteger a mulher em
situação de violência e para o combate da violência contra as mulheres em razão do gênero.
Não obstante, pode-se observar nos dados que serão apresentados neste trabalho, como esses
crimes se mantiveram até a atualidade, os quais ganharam maior atenção pelos casos
ocorridos durante o isolamento social em 2020. Com isso, os casos de violência contra a
mulher vieram a ter maior notoriedade pela mídia, a qual enquanto veículo de informação,
intérprete e mediadora do debate público, tornou-se ainda mais relevante para a
conscientização e combate dessa violência. Em vista disso, na contemporaneidade é
importante observar a função jornalística dos portais virtuais de notícias, assim como sua
forma de produzir as matérias e os possíveis efeitos disso sobre a opinião pública.
Nesse sentido, o presente trabalho realiza a análise de alguns aspectos das notícias
publicadas pelo portal de notícia G1 Pará que retratam casos de violência contra a mulher
durante os anos de 2015 e 2020. Totalizando 37 matérias, as notícias foram selecionadas pelo
método de amostragem por acessibilidade e analisados por meio da estatística descritiva.
Objetivando investigar a forma como esses crimes foram retratados pelo Portal, a fim de
verificar se houve mudanças nesses aspectos após cinco anos de criação da Lei de
Feminicídio (Lei n° 13.104/2015) e quatorze anos da Lei Maria da Penha (Lei n°
11.340/2006).
14
Graduanda, UFPA. E-mail: ally.cs1999@gmail.com
15
Graduanda, UFPA. E-mail: nainy.dn@gmail.com
16
Doutora, UFPA. E-mail: nelissapb@ufpa.br
51
Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de um questionário produzido no
Google Forms, com perguntas estruturadas a partir da técnica de pesquisa de Survey, as quais
eram 07 perguntas objetivas, 03 dicotômicas e 08 de múltipla escolha com a opção “outro”,
totalizando 18 perguntas. As perguntas foram construídas com variáveis cruzadas escolhidas
com base nos objetivos específicos, os quais foram selecionados ao longo da pesquisa
bibliográfica para o trabalho. O questionário, pelo caráter da amostra, foi autoaplicado pelas
autoras às matérias.
Segundo o portal de notícias G1 Pará, os municípios em que ocorreram os crimes de
violência contra a mulher durante os anos de 2015 e 2020 na amostra total de trinta e sete (37)
matérias, foram: Abaetetuba, Ananindeua, Barcarena, Belém, Canaã dos Carajás, Marabá,
Marituba, Oriximiná, Paragominas, Parauapebas, Placas, Salinópolis, São Francisco do Pará,
Santa Izabel do Pará, Santarém, Tailândia e Tucuruí. Nos dezessete (17) municípios
considerados para a análise do índice de violência por cada 100.000 habitantes, chamou-se
atenção para o fato dos menores índices pertencerem a cidades mais próximas à Belém ou a
cidades mais desenvolvidas no setor industrial.
Sobre o tipo de violência sofrida, o feminicídio foi o tipo mais frequente de violência,
representando 42% dos casos na análise. Em seguida, a violência física representou 33%,
enquanto a violência psicológica 18% e a violência sexual, 7%. Além dos casos de ocorrência
simultânea das violências, nos quais se considerou apenas uma por escolha metodológica.
Acerca do tipo de relação com o agressor, 49% das matérias apresentaram o marido ou
companheiro conjugal como autor da agressão, 27% apontaram o ex-marido ou ex-
companheiro como agressor, em 14% dos casos o autor foi desconhecido, em 3% dos casos os
agressores foram outros. Em relação ao local da agressão, o ambiente doméstico é o
predominante, representado com 63% do percentual dos casos, a via pública representa 31% e
outros locais totalizaram 3% dos casos.
Nas notícias utilizadas, os desfechos dos crimes de 2015 e 2020 diferem entre si, no
segundo no ano de 2020, 57% dos agressores foram presos, 22 pontos percentuais a mais que
em 2015. Os desfechos dos crimes com o agressor denunciado totalizaram 43% nos dois anos.
A hospitalização da vítima foi de 29% em 2020, 16 pontos percentuais em maior registro que
52
em 2015 e os desfechos que resultaram na morte da vítima foram de 57% em 2020, com 5
pontos percentuais a mais que em 2015.
Sobre o comportamento da mídia na divulgação das notícias, é perceptível que os
casos nos quais a explicação/justificativa do portal para os crimes foram ciúme ou
embriaguez, apenas 3% das matérias informavam os meios de denúncia. E nos casos em que
as matérias explicavam que o agressor não aceitou o término do relacionamento, o percentual
que apontava para algum tipo de exposição excessiva da imagem da vítima foi de 33% e o
percentual da divulgação dos meios de denúncia contidos nas matérias para casos com essa
justificativa também foi de 3%. Entretanto, quando motivo do crime não constava na redação
do texto, houve a exposição da vítima e a descrição de meios de denúncia em 67% desses
casos, como se a falta de mais informações para a notícia deixasse um espaço que poderia ser
preenchido com outras informações secundárias.
Portanto, a relação entre a exposição das vítimas e o ano da publicação dessas matérias
evidencia como o portal de notícias G1 Pará não apresentou nenhuma mudança significativa
em cinco anos de promulgação da lei contra o feminicídio. O portal continua disseminando
narrativas problemáticas quanto aos casos de violência contra a mulher, seja pela falta de
informações relevantes ou adições de outras informações que nada contribuem para o
combate e para compreensão do leitor quanto às causas dessa violência. Embora isolado ao
contexto, alguns dados podem até remeter ao contrário disso, pois não evidenciam a
superficialidade com a qual esses casos são noticiados, como na tabela a seguir:

Tabela 1 – Índice de exposição das vítimas de violência contra a mulher em 2015 e 2020.

Houve exposição da Não Sim Total Geral


vítima?

2015 65.22% 34.78% 100.00%

2020 71.43% 28.57% 100.00%

Fonte: elaborado pelas autoras Allyne Melo e Dâina Cunha (2022).

53
Quanto ao discurso adotado pela mídia, este nem sempre é com o objetivo de
conscientizar sobre o problema social da violência contra a mulher, mas frequentemente se
detém em apenas informar de maneira objetiva, até espetacularizada, sobre esses casos,
demonstrando maior interesse em capturar a atenção de quem consome essas matérias. É
possível perceber que essa narrativa adotada não é recente, pois verificando as matérias com
cinco anos de diferença é notório que o padrão se repete. Consequentemente, isso alerta
acerca responsabilidade social da mídia, tendo em vista, segundo Silva (2019), que a mídia na
sociedade atual

Tem uma força imensa, pois influencia desde o que vestir, o que comprar, o que
falar, até sobre que opinião o indivíduo pensa sobre determinado assunto. Mais do
que informar, o papel da mídia é formar cidadãos conscientes, culturalmente e no
modo de pensar e agir (SILVA, et al. p. 3, 2019).

Pois que a violência contra a mulher em razão do gênero é um problema em todo


Brasil, isso não é um dado novo, a novidade é que houve a percepção de que a pandemia
gerada pela Covid-19 desencadeou um surto de violência contra mulheres no mundo todo. O
cenário que se desenhou nesses últimos anos no Brasil, parece revelar que o isolamento
social, assim como medidas de pressão econômica, aumentou a tensão na vida doméstica.
Todavia, é importantíssimo lembrar que a negligência do Estado Brasileiro com essa violência
é histórica, enquanto o isolamento social é um fenômeno recente, por isso é necessário cautela
ao analisar os dados da violência, mas evidentemente, sem ignorar a possibilidade de
potencialização da violência contra mulheres.
Dessa forma, é importante enfatizar que a desigualdade nas relações de gênero tem
desdobramentos históricos e adapta-se de maneiras diversas em cada contexto social, político
e cultural. E durante as crises sociais se acentua por diversos fatores, mas principalmente
porque as opressões não deixam de existir em cenários caóticos, contrário a isso,
aprofundam-se. Como aponta o boletim realizado denominado “Pandemia, violência contra
as mulheres e a ameaça que vem dos números”, as consequências para mulheres e meninas

54
durante situações de extrema ruptura social, passam a vir acompanhadas com os duros
contornos da violência de gênero (PASINATO; COLARES, 2020).
Outro ponto, é que no Brasil, assim como em muitos países colonizados, os
colonizadores ao exportarem hábitos e criarem condições específicas de vida, trouxeram
consigo uma forte influência jesuíta e com isso circunscreveram um espaço de liberdade
bastante restrito às mulheres. Como argumenta Essy (2017):

O pater famílias expressava o poder indiscutível de vida e morte do homem sobre


todos os membros da família, da qual ele era a única pessoa plena de direitos, de
acordo com a lei. Essa ideia prevaleceu rigorosamente por alguns séculos (ESSY,
2017).

Uma das características mais fortes e que garantem a continuidade do patriarcado é a


capacidade de criar uma narrativa em que a desigualdade entre mulheres e homens seja vista
como natural. O espaço público com suas leis possui muitas limitações ao adentrar no espaço
privado e delimitar uma fronteira clara entre um e outro. É o que argumenta Pateman (1970)
ao dizer que o apelo à ideia de natureza do patriarcado o torna “o mais intenso e mais
profundamente enraizado de todos aqueles que se agrupam em volta das velhas instituições e
costumes e as protegem” (PATEMAN, 1970, p. 62).
Com isso, evidencia-se que no Brasil há uma história arraigada de violência praticada
contra mulheres, justificada pelo Estado com a alegação de poder do homem sobre os
interesses que até pouco tempo eram considerados privados. Mas embora tenham sido criados
instrumentos legais, a família, a casa e o que remete ao ambiente doméstico, ainda são
socialmente entendidos como parte dos interesses privados e específicos que devem ser
tratados pelos próprios indivíduos, longe da intervenção do Estado e seus direcionamentos
normativos. E essa dificuldade em delimitar o espaço público pode ser vista como subterfúgio
para interpretar o espaço privado como extensão dos poderes masculinos. Sendo essa
interpretação, viabilizada principalmente a partir dos mecanismos sociais de oficialização de
narrativas na sociedade contemporânea, como a imprensa virtual através das matérias
jornalísticas.
Por fim, partindo das informações analisadas, verifica-se que a maioria das vítimas
paraenses que sofreram feminicídio ou violência física, sofreram agressões em ambiente
55
doméstico e tiveram como principais agressores companheiros ou ex-companheiros. No
entanto, nota-se que aumentaram os números de agressores punidos, o que provavelmente é
resultado da implementação das leis específicas de combate à violência contra a mulher.
Apesar disso, é alarmante que mais da metade dos casos dos anos de 2015 e 2020 tenham
terminado com a morte das vítimas, mesmo com a diferença do cenário pandêmico em 2020.
O trabalho também evidencia que as notícias divulgadas pelo G1 Pará, demonstram que a
mídia ainda expõe excessivamente as mulheres em situação de violência, aborda o tema de
forma superficial, no entanto, dificilmente divulga os meios de denúncia.
Portanto, os dados das notícias ilustram como o portal G1 Pará não tem cumprido com
sua responsabilidade social, mas compactuado explicitamente para a disseminação da
violência contra a mulher. Seja a partir da exposição da vítima, abordando o tema de forma
objetiva e até espetacularizado, ao invés de conscientizar o leitor, até sutilmente ao não
divulgar os meios de denúncia para que mulheres em situação de violência possam denunciar
as agressões. Em síntese, é possível afirmar que a mídia tem contribuído para a perpetuação
de uma cultura violenta e antidemocrática.

Palavras-chave: Violência contra a mulher. Desigualdade de gênero. Discurso midiático.

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BRASIL. Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015.

DIAS, A. O perfil das vítimas de feminicídio na Região Metropolitana de Belém do Pará


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56
2006 a 2015. Anais do V Encontro Amazônico sobre Mulheres e Relações de Gêneros. Pará:
Belém, 2020.

ESSY, D. A evolução histórica da violência contra a mulher no cenário brasileiro: do


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Conteúdo Jurídico, Brasília: DF. 2017.

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Kalicia Rodrigues. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Pará: Belém, 2019.

PATEMAN, C. Críticas feministas à dicotomia público/privado. 1970.

PASINATO, W.; COLARES, E. Pandemia, violência contra as mulheres e a ameaça que


vem dos números. Boletim Lua Nova/Instituto Patrícia Galvão. 2020.

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57
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 3 - DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA, VIOLÊNCIA E DESIGUALDADES

MULHERES SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR EM


TEMPOS DE PANDEMIA NA COMUNIDADE 15 DE NOVEMBRO,
REGIÃO METROPOLITANA DE PAULISTA (PE)

Nayara Fernanda Santos de Sena17


Andrea Lorena Butto Zarzar18

A Soberania e Segurança Alimentar em tempos de Pandemia, é o tema central do


projeto de pesquisa, envolvendo mulheres de comunidades periféricas da Região
Metropolitana do Recife como a ocupação Comunidade 15 de Novembro, localizada na
cidade de Paulista (PE). O intuito é desenvolver pesquisa-ação a partir de grandes eixos de
atuação: a economia solidária, e a agroecologia; incluindo aí a atuação nos quintais produtivos
e em espaços coletivos voltados para a prática da agroecologia.
As ações da agroecologia que são objetivo de atuação da pesquisa-ação, foram
antecedidas de uma iniciativa da Marcha Mundial das Mulheres em parceria com o clube de
Mães de Paratibe - o Projeto Germinando Território, que promoveu oficinas, mutirões,
intercâmbios de aprendizagem com outras comunidades e movimentos, além de proporcionar
a participação em feiras livres, distribuição de água, reaproveitamento de materiais reciclados,
plantio de bananeiras, oficinas e outras vivências.
Essas iniciativas prévias e a atuação conjunta dessas organizações e das instituições e
movimentos envolvidas na pesquisa-ação, contribuem para o fortalecimento coletivo das
mulheres da Comunidade 15 de Novembro, com a troca de saberes e cooperação ativa para o
desenvolvimento das ações iniciais de planejamento, visita aos quintais produtivos e para a
implantação da horta comunitária e o desenvolvimento de atividades voltadas para o

17
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail:
nayarafss@gmail.com
18
Professora Drª. do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE),
Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: alzarzar@hotmail.com
58
fortalecimento da agroecologia e dos processos auto organizativos das mulheres a partir do
feminismo na comunidade.
As mulheres da comunidade vivenciam uma realidade marcada pela pobreza; dentre
aquelas que participaram da pesquisa a partir da análise dos seus quintais, a maioria possui
renda bem inferior a 600 reais mensais (maioria ganha entre 200 a 100 reais/mês), apenas uma
delas consegue ter uma renda de 1.000 reais em alguns meses do ano, porque desenvolve
atividades de produção de sabão e ministra aulas sobre produção de sabão, atividade
incentivada e desenvolvida através dos movimentos sociais presentes no território.
A participante mais nova, possui 22 anos e a mais velha 64, indicando uma variedade
de faixa etária interessada no desenvolvimento de afazeres agroecológicos e feministas;
havendo uma troca de saberes das mais novas (aprendizes) com as mais velhas (guardiãs),
quanto o inverso. As ocupações destas mulheres, em sua maioria são de “donas de casa”, ou
seja: trabalhos domésticos, de cuidados e a reciclagem, não possuindo nenhum outro trabalho
formal, mais desenvolvem atividades complementares como produção de sabão para
comercialização, auxiliar de serviços gerais, e produção de salgados para venda; e trabalhos
informais quando aparecem.
Dentre essas lutas de resistência para sobrevivência, renda irregular e abaixo do
necessário para suprir as necessidades básicas, as mulheres despendem cuidados para casas
com um mínimo de 2 e um máximo de 9 dependentes, gerando para muitas uma sobrecarga de
trabalhos e esforços diários. Considerando este período de pandemia, ainda mais crítico para
mulheres negras e de periferias, como é o caso destas, todas revelaram ter tomado suas
vacinas, mas relatam a dificuldade de ter acesso ao sistema de saúde devido à falta de
endereço regularizado pelos correios. Uma realidade comum às mulheres que vivem na
comunidade.
Para transformar esta vivência marcada pela exclusão socioeconômica, esforços de
caráter coletivo vêm sendo desenvolvidos para fortalecer iniciativas feministas e
agroecológicas das mulheres da comunidade 15 de Novembro, através de uma iniciativa da
Marcha Mundial das Mulheres núcleo Paulista e Recife (PE), contou com a parceria do

59
coletivo de estudantes do curso de ciências sociais: o Movimento de Apoio Periférico, já
atuantes na comunidade.
A Marcha Mundial das Mulheres tem um núcleo em Paulista, com atuação frequente
já há alguns anos na Comunidade 15 de Novembro e realiza encontros semanais, atua na área
da segurança alimentar com a distribuição de cestas básicas, e realiza atividades de
conscientização e formação feminista por meio de oficinas temáticas. O Movimento de Apoio
Periférico, é um coletivo presente na comunidade desde o início da pandemia em 2020, e
participa dos encontros semanais promovidos pela Marcha Mundial das Mulheres com ações
voltadas para a recreação das crianças e também na segurança alimentar com a distribuição de
cestas básicas.
A Cooperativa Batalha transforma Reciclagem em Vida, foi criada pelas mulheres da
comunidade 15 de Novembro para desenvolver atividade de reciclagem de resíduos sólidos.
Uma iniciativa que surgiu a partir do coletivo e ajuda muitas delas a garantir seu sustento. Foi
a partir da constituição da cooperativa que muitas conseguiram o acesso ao auxílio Brasil,
tendo em vista que os seus direitos vêm sendo boicotados e retirados pelo atual governo do
país, e que este tem uma grande culpabilização da falta de acesso aos direitos básicos de
mulheres periféricas por todo o Brasil.
Além da cooperativa, os encontros semanais para debates diversos, de questões sociais
e feministas, são base para a reflexão crítica das mulheres e das suas realidades; e também os
mutirões e a construção da sementeira coletiva, vem dando uma perspectiva de geração de
renda e de aprendizagens agroecológicas das plantas medicinais, condimentares e frutíferas
para que as mulheres pensam e realizam melhores perspectivas de sobrevivência e coloquem
em prática os aprendizados.
Os resultados da pesquisa indicam que as mulheres desenvolvem atividades de
trabalho em todos os cômodos da casa, bem como nos quintais, em áreas internas e externas
da comunidade, enquanto os homens não desenvolvem atividades em quase nenhum local de
suas casas e nem nos quintais e entorno. Os cuidados criam sobrecarga para as mulheres que
cuidam dos afazeres domésticos, da alimentação e saúde da família, a partir dos seus quintais.

60
Participam ainda de atividades e projetos comunitários como os encontros e eventos
cotidianos sob a iniciativa da Marcha Mundial de Mulheres de Paulista. Estes encontros são
base de uma construção de movimentos sociais presentes na comunidade e da predisposição
das mulheres em aprenderem e participarem de uma luta coletiva e feminista, para melhoria
de suas condições; dispondo cuidados e trabalhos diretos e indiretos a seus familiares, na luta
pela sobrevivência e melhor qualidade de vida.
Tendo a soberania e a segurança alimentar, como umas das base do desenvolvimento
da pesquisa-ação no território da 15 de Novembro, a implementação da sementeira coletiva e
os cuidados com os quintais, pautados na agroecologia, viabilizam uma mudança de
perspectiva de produção de alimentos, medicamentos e alternativas sustentáveis e naturais aos
problemas sociais enfrentados por elas, e representam um meio alternativo de conseguir uma
renda, através do plantio de mudas de plantas medicinais e condimentares para produção de
mudas e vendas futuras em feiras naturais e agroecológicas.
A iniciativa de cuidar de uma sede comunitária, as trocas de conhecimento e de plantas
e a união para atividades e oficinas, já demonstram como estas alternativas desviantes, já
acontecem dentro da Comunidade 15 de Novembro. Os dados coletados revelam uma ampla
variedade de plantas medicinais, indicam também uma importante diversidade de árvores
frutíferas, condimentares e ornamentais no território da 15 de novembro.
Identificou-se entre as mulheres, práticas agrícolas associadas a conhecimentos
tradicionais que envolvem a constituição de uma rede de medicinas populares utilizadas pelas
mulheres, a exemplo do preparo de chás, lambedores e remédios naturais produzidos a partir
de ervas e outras plantas medicinais. As partes das plantas utilizadas e seus efeitos são
aprendidas através da experiência e troca entre mulheres, estão muito associadas ao
aprendizado com mães, vizinhas e outras mulheres e ao seu lugar de origem ou a dos seus
grupos domésticos (sejam elas nascidas na cidade ou no campo).
A partir de relações solidárias, seja na forma de obtenção da maioria das plantas e
ervas medicinais a partir dos seus quintais, as mulheres acessam conhecimentos e trocas de
saberes sobre os usos, dosagem, relatos de cura, hábitos da planta, forma de preparo, parte
utilizada, cuidados com as plantas, onde e como adquiri; revelando um amplo aprendizado
61
entre mulheres, mães, vizinhas, amigas e familiares, sobre as plantas e como este “campo” de
cultivo, vem sendo implementado nas periferias das cidades metropolitanas Brasil afora, e
como estas práticas vêm sendo consideradas um meio de garantir renda mas que é gestada a
partir de uma economia não monetária, baseada na troca e na solidariedade.
As oficinas, mutirões e atividades articuladas junto às mulheres, promovem
aprendizados e partilhas que tem o intuito de provocar mudanças voluntárias e novas
perspectivas de vida para as mulheres envolvidas, diante das inúmeras desigualdades sociais e
econômicas às quais elas estão submetidas. Dentro destes, projetos de resistência, às plantas
medicinais se mostraram como grandes aliadas agroecológicas para num futuro próximo
angariar mecanismos ecofeministas e agroecológicos para garantir a segurança e soberania
alimentar das mulheres da Comunidade 15 de Novembro e suas famílias; levando em
consideração a importância das medicinas populares, nesta construção de alternativas
sustentáveis.
Essas questões acerca da medicina popular através dos saberes das mulheres pelas
plantas medicinais na comunidade, traz uma reflexão acerca de como esta perspectiva de
medicina, vai no caminho contrário da medicina considerada “tradicional”, revelando um
outro modo de cuidar-se e de lidar com estas plantas; revela também, outros modos de pensar
essas plantas, como pela ótica de cura, da religiosidade, e da ciência, dando uma
multiplicidade de usos e sentidos sociais.
Assim, esta pesquisa-ação considera todos os aspectos encontrados na comunidade,
essenciais para seu desenvolvimento e para a continuidade de um trabalho já começado antes
pela Marcha Mundial das Mulheres, núcleo Paulista, o projeto Germinando Território e outros
movimentos e pessoas atuantes no território. As construções coletivas, feministas e
agroecológicas, considerando temas como o cuidado, soberania e segurança alimentar,
negritude e políticas públicas destinados para mulheres de comunidades periféricas, vêm
tecendo sua trajetória diariamente na comunidade 15 de novembro e pretende continuar de
modo efetivo suas ações e pesquisas com objetivo de modificar conscientemente e pelas
mulheres a realidade deste território, através da pesquisa-ação e dos movimentos de mulheres.

62
Palavras-chave: Mulheres periféricas. Agroecologia. Feminismo.

REFERÊNCIAS

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64
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 3 - DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA, VIOLÊNCIA E DESIGUALDADES

“SE A GENTE NÃO TIVESSE PÉ NO CHÃO ACHO QUE A GENTE


TINHA PASSADO ATÉ FOME”: RELATOS DE MULHERES
DURANTE A PANDEMIA DO COVID19 NA ILHA DE COTIJUBA,
BELÉM, PARÁ

Rubia Suzane Antunes dos Santos19


Larissa da Conceição Barradas20
Lana Claudia Macedo da Silva21

Parece haver consenso entre os estudiosos do tema que a pandemia da COVID19 afeta
todas as categorias da sociedade: homens e mulheres, pobres e ricos. Mas, certamente, as mais
afetadas pelas suas consequências (sejam de saúde, econômicas, sanitárias ou sociais) possui
classe, gênero e cor bem determinados. São as mulheres, especialmente as negras, pobres e de
camada popular. Essas mulheres, geralmente, estão mais predispostas à sobrecarga de
trabalho, aumento da violência doméstica e restrição de acesso aos serviços públicos.
Sabe-se que em todos os períodos de crise as mulheres sempre arcaram com
consequências mais severas do que a população em geral, porém as consequências vinham
depois, para mitigar os estragos. Nesse sentido, compreendemos que pautar esse tema
enquanto o problema ainda está em curso pode contribuir para pensar as estratégias e propor
caminhos para evitar um impacto tão grande, ou seja, estimular políticas que garantam os
direitos das mulheres.
Além disso, a Amazônia secularmente vem sendo vista como um espaço vazio,
homogêneo, portanto, como um espaço de riquezas naturais que deveria ser ocupado. Todo
esse processo histórico não leva em consideração os diferentes povos existentes por aqui.
Etnias que já existiam antes da colonização e a formação de quilombos e comunidades deram

19
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará.
E-mail: rubia.santos@aluno.uepa.br
20
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará.
E-mail: larissa.barradas@aluno.uepa.br
21
Doutora em Ciências Sociais, Professora adjunta IV da Universidade do Estado do Pará.
E-mail: lanacmacedos@gmail.com
65
a Amazônia a forma que conhecemos hoje (BECKER, 1991). E, quando falamos de mulheres
ribeirinhas os impactos desse novo contexto mundial revela que a mulher amazônica tem as
suas particularidades e os desafios não os mesmos para todos/as.
Essa pesquisa, que faz parte das ações afirmativas aprovadas no edital de Iniciação
Científica da Universidade do Estado do Pará, objetiva trazer reflexões dos impactos da
pandemia para as mulheres da Ilha de Cotijuba, Belém, a partir das atividades em campo
executadas no Movimento de Mulheres das Ilhas de Belém – MMIB. A presente pesquisa
encontra-se em fase de conclusão e tem como abordagem metodológica a pesquisa qualitativa,
pois “ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças,
dos valores e das atitudes” (MINAYO, p. 21, 1999).
Realizou-se, inicialmente, revisão bibliográfica sobre as seguintes categorias: gênero,
feminismo, mulher ribeirinha, Amazônia. Em seguida, realizou-se trabalho de campo no
MMIB, local da pesquisa. Foram realizadas vinte e duas (22) entrevistas com mulheres do
MMIB, entre associadas e membros da gestão atual. Sendo dezesseis (16) entrevistas
gravadas (com anuência das entrevistadas) e transcritas na íntegra e seis (06) entrevistas por
meio de Formulário Google, por conta da indisponibilidade da entrevistada em nos receber
presencialmente. Utilizamos pseudônimos de mulheres cientistas brasileiras no intuito de
valorizar as mulheres cientistas, além de resguardar as identidades das mulheres entrevistadas.
Dentre os dados coletados temos os dados gerais das nossas entrevistadas, que serão
apresentados em seguida.
A pesquisa foi realizada com 22 mulheres com faixa etária de 22 a 72 anos, sendo 40%
das mulheres na idade de 53 a 62 anos, 22,7% de 22 a 35 anos, 27,7% de 43 a 52 anos e
9,09% de 63 a 72 anos de idade. Grande parte se considera parda (40,9%); 77,2% dessas
mulheres possuem filhos e 54% delas estão solteiras. Referente a naturalidade
aproximadamente 81% das entrevistadas são paraenses, os outros 19% são divididos em
Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. 31,8% das entrevistadas possuem o ensino
médio completo e outras 31,8% ensino superior completo. Porém, dessas últimas, poucas
atuam na área da graduação que possuem (9,09%). Aproximadamente 59% das entrevistadas
trabalham com empreendedorismo voltado ao turismo na ilha.
66
Já quando adentramos em questionamentos mais qualitativos trazemos o recorte de
gênero para a Amazônia, e as consequências da pandemia do COVID19 se tornam mais
acentuadas. Ao serem inqueridas sobre os impactos e desafios da pandemia muitos pontos
sobressaem, como por exemplo, a falta de alimento e emprego:

Foi! Ixi! Se a gente não tivesse pé no chão acho que a gente tinha passado até fome
... é porque a gente tinha nossas fruta, tinha verdura que a gente tinha era muito no
quintal, a gente estragou tudo. A gente plantava ... essa época a gente tava
trabalhando mesmo no sítio, que eu entreguei a pousada pra elas [as filhas], aí elas
tavam trabalhando na pousada e nós fomo prum sítio, trabalhar [...] Porque elas não
tinham pra quem vender e a gente não tinha também, ninguém podia sair, passamos
quatro meses trancado que a gente nem se via, era só através de telefone. Aí meu
marido que já é aposentado era que ele recebia todo mês e ia buscar pra gente poder
tá...(JULIANA BORGES, 65 anos, empreendedora, 2022).

A interlocutora acima é proprietária de uma das maiores pousadas, localizada em uma


das praias mais frequentadas da ilha. E, diante da pandemia revela que quase passou fome. O
local ficou quatro meses fechado, sem nenhum turista. Nesse período foi a aposentadoria do
marido que garantiu a existência do grupo familiar.
Sobre a fala, é interessante pontuar que, mulheres pertencentes a comunidades
tradicionais têm uma organização cultural e política marcante que constituem suas vidas e é
passada de geração em geração historicamente e socialmente. Silva (2014) revela, a partir dos
relatos das mulheres ribeirinhas, que é corriqueiro elas carregarem vinte litros de água na
cabeça, o que exige um esforço físico imenso dessas mulheres. No entanto, na divisão de
tarefas entre homens e mulheres na comunidade, as mulheres exercem atividades pesadas
assim como os homens e ao serem questionadas sobre essas atividades, elas afirmam
imediatamente que faz parte do seu serviço doméstico. A complexidade das relações sociais
estabelecidas nas comunidades tradicionais configura também as relações de gênero.
Uma das mulheres que trabalhava como diarista relatou o drama de ter que trabalhar
até durante o momento mais delicado da pandemia, mesmo sendo do grupo considerado de
risco por problemas de saúde. Para ela ficar em casa não foi uma opção. Ela diz:

Eu trabalhava, na casa de família lá...então assim eu trabalhei direto, não parei de


trabalhar na pandemia quando ela tava no auge mesmo, eu não parei de trabalhar, eu
vim para de trabalhar quando eu deixei o trabalho lá e vim pra cá, mas dizer assim
‘ah, no auge da pandemia você tava isolada?’ não, não fiquei isolada, continuei
67
trabalhando mesmo eu sendo do...do grupo de risco, eu tenho depre ...eu tenho
pressão alta então era... era mais fácil pegar a doença e... assim, ficar mal né, por
causa da...da pressão. Mas eu num... graças a Deus, não peguei a... a covid...
(BERTHA LUTZ, 54 anos, diarista).

Há ainda quem se reporte necessidade de criatividade e inovação profissional diante


das incertezas da Covid19:
Na realidade quando comecei a trabalhar na praia eu montei em plena pandemia...
inaugurei em plena pandemia, quer dizer foi um desafio muito grande pra mim e pro
meu esposo né ...ficamos ali, fecha, vem, não vem... fez praia, abre a praia... então tá
sendo um desafio muito grande e a gente conseguiu né, ficar segurando aguentando,
pra prosseguir em frente. (CAROLINA DE JESUS, 56 anos, comerciante).

Outro aspecto elencado foi a dificuldade de locomoção na ilha e o acesso ao


continente:

Na pandemia ficou muito deserto, a gente ficou muito preso, tinha... outra, antes da
pandemia a gente podia ir e vir, sabe, aqui, livre e teve períodos aqui que teve o
lockdown, é... final de semana não saia barco, a gente ficou preso, praticamente, na
ilha. [...] Então é essa foi a mudança, a dificuldade da gente ficar preso aqui e ter que
sair, a diferença. (DJAMILA RIBEIRO, 45 anos, empreendedora).

Difícil, bastante difícil porque, o material que eu uso eu tinha que comprar lá em
Belém e teve um momento que não se podia atravessar...ai parou, parei... a gente tá
voltando ao normal agora né... você pode atravessar, comprar o material, pra
trabalhar... meu trabalho é de costureira né, e eu faço, os artesanatos, paninhos
decorados...então esse é o meu trabalho, e devido a pandemia foi bastante difícil,
teve que parar tudo, ai a gente ficou só com a renda do meu marido né, que é fixo,
salário...ai ficou só com a renda dele. (MIRLA CISNE, 57 anos, costureira).

Nota-se pelas falas acima que as mulheres ribeirinhas adotaram diferentes estratégias,
individuais e coletivas, para superação dos desafios impostos pela crise sanitária. Destacamos
o empreendedorismo como atividade presente em mais da metade das entrevistadas (59%),
coadunando com as ações propostas pelo MMIB voltadas para esse setor. E, contrastando com
estudos que apontam para a forte presença da mulher na agricultura em comunidades
ribeirinhas (SILVA, 2014).
Ademais, acreditamos que é importante fazer todas as críticas necessárias a crescente
disseminação da ideia de empreendedorismo ou bioeconomia (que está em alta em algumas
regiões na Amazônia). Pois, segundo Carmo et al. (2021, p. 19), “do ponto de vista da relação
conflituosa entre capital e trabalho [...], entende-se que o empreendedorismo consiste em uma
68
ideologia depositária de uma racionalidade neoliberal”. Desse modo, essas mulheres
acreditam serem as “patroas”, se auto intitulam empreendedoras, no entanto, não possuem
nenhuma garantia trabalhista, trabalham de forma exacerbada para a garantia de renda e a
pandemia mostrou, por meio dos relatos, que esse foi o setor mais afetado.
Destacamos ainda, que nenhuma interlocutora fez referência às campanhas de
segurança alimentar enquanto política de proteção social em contexto pandêmico por parte do
poder público local, estadual ou federal, ou seja, ao que tudo indica foi o MMIB que cumpriu
esse papel na região, o que revela o protagonismo do movimento de mulheres:

é o... no tempo de pandemia foi um tempo bem complicado tanto pro MMIB como
pra mim, e aí quando veio a pandemia eu fiquei muito preocupada como elas iam se
manter, em questão até da própria população, aí a gente... [...] fez algumas
campanhas para arrecadar alimentos e... kits de higiene, máscara [...], álcool em gel,
algumas cestas básicas pra algumas pessoas aqui da ilha também...associados
(MARIZA PEIRANO, 26 anos, Turismóloga).

As questões de gênero que envolvem a Amazônia, principalmente os elementos


culturais, sociais e políticos, precisam ser estudadas de forma aprofundada, histórica e crítica,
no sentido de evidenciar as especificidades, não esquecendo da totalidade que a determina.
Compreender não somente as diferenças que envolvem o comportamento das mulheres
ribeirinhas e/ou pertencentes as comunidades tradicionais, mas também como funciona as
relações sociais estabelecidas por essas populações e de que modo essas relações vão
determinar os papéis desempenhado pelas mulheres na comunidade.
Destacamos que a realidade amazônica não é homogênea, a mesma concepção se dá
quando pensamos as mulheres amazônicas, elas são diversas, são ribeirinhas, indígenas,
quilombolas, periféricas, entre outras. Temos consciência da multiplicidade, dinamicidade e
diversidade dessas mulheres e sabemos que relacionado ao debate de gênero, elas não têm a
mesma leitura de outras mulheres feministas. As relações sociais estabelecidas no interior da
comunidade é que ditam as regras de como os comportamentos de cada grupo será.
Ressaltamos também, que as discussões realizadas anteriormente não são estanques,
prontas e acabadas, como se a realidade dessas mulheres fosse somente essa e que a trajetória
delas não pode ser transformada. Pelo contrário, reforçamos que o nosso debate se centra na
compreensão da complexidade de vivências dessas mulheres, por isso a importância de
69
compreender o debate teórico que está sendo traçado sobre as mulheres que vivenciam a
realidade amazônica no sentido de reforçá-lo ou confrontá-lo, se necessário, apresentando
outras formas de relações sociais.
Ao falamos de mulheres ribeirinhas sabemos que elas também são frentes de
resistência na luta pela defesa do meio ambiente, da sua cultura, da sua comunidade e do seu
direito de existir enquanto mulheres. Por isso, a importância dos movimentos sociais,
sobretudo os movimentos de mulheres, como é o caso do MMIB, que há vinte anos vem se
construindo enquanto um movimento feito de mulheres para mulheres, mas não somente isso,
como um movimento preocupado com o desenvolvimento da comunidade, da ilha e das
pessoas que participam direta e indiretamente desse processo.

Palavras-chaves: Gênero. Mulher Ribeirinha. Amazônia.

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70
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de janeiro de 2021. Acesso em: 06 de setembro de 2022. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/01/brasil-e-o-pais-que-pior-lidou-com-a
pandemia-aponta-estudo-que-analisou-98-governos.shtml.

71
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 3 - DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA, VIOLÊNCIA E DESIGUALDADES

GÊNERO, AMOR E VIOLÊNCIA: DISPOSITIVO AMOROSO E O


AMOR NO DISCURSO DE MULHERES QUE EXPERIENCIARAM
VIOLÊNCIA CONJUGAL

Elcione da Silva e Silva22

Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado a qual tem como objetivo investigar
trajetórias de mulheres que tiveram em seus percursos experiências de violência de gênero
perpetrada por seus parceiros íntimos. O amor é um elemento presente nos discursos dessas
mulheres e é atravessado por diversas emoções e conflitos dentro das relações. Nesse sentido,
propõem-se uma discussão sobre os dispositivos amorosos e a relação com o ideal do amor
romântico que faz parte das relações heterossexuais e, como o amor é apresentado no discurso
de mulheres que foram vítimas de violência conjugal.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com a utilização do método “Narrativa de Vida”
desenvolvida por Bertaux (2010) com a utilização da técnica de entrevistas narrativas. Trago
fragmentos narrativos de seis mulheres vítimas de violência, entre 22 e 41 anos, paraenses,
com diferentes percursos de vida, com as quais se conduziu uma entrevista narrativa
individual acerca de sua trajetória. Aqui, será desenvolvido um aspecto presente em suas
narrativas: o afetivo. Como se apresenta os discursos sobre amor, paixão e a relação com a
manutenção do relacionamento carregado de violências.
Amaral Gonçalves (2011) ressalta que o amor é tema cujo alcance ultrapassa os limites
das relações amorosas em si e permite pensar a própria sociedade, em seus diversos aspectos.
O gênero como categoria analítica é fundamental para esta discussão, autoras feministas têm
intensificado as análises a respeitos da relação entre os sujeitos homem e mulher e as várias
conflitualidades e desejos presentes nesses processos. O gênero é um dos fatores estruturantes
da nossa sociedade, assim, tornar-se pessoa significa tornar-se homem ou mulher, num

22
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, UFPA.
E-mail: elcionesilvas2@gmail.com
72
binarismo (ZANELLO, 2018). Gayle Rubin (1975) discorre que “a organização social do
sexo baseia–se no gênero, na obrigatoriedade do heterossexismo e na repressão da
sexualidade da mulher” e, toda sociedade tem um sistema de sexo/gênero que organiza
socialmente a sexualidade. Nesse sentido, o gênero diz respeito à divisão sexual imposta
socialmente, que transforma a fêmea em mulher e o macho em homem. A noção de gênero foi
fundamental, pois rejeita o determinismo biológico atribuído a noção de sexo e diferença
sexual, portanto, é constituinte da identidade dos sujeitos, assim como a etnia e a classe.
Assumindo essa perspectiva “admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são
constituídas pelos gêneros e são também, constituintes de gênero. Essas práticas e instituições
fabricam os sujeitos” (LOURO 1998).
A identidade de gênero não é algo estático e fixo, mas trata-se de uma identidade
construída historicamente, uma “identidade construída por uma repetição estilizada de atos”
que vai aos poucos se cristalizando e produzindo a aparência de substância (BUTLER, 2003).
E essa repetição não é espontânea, se dá através de scripts culturais que já existem antes de
nascermos e são mantidos pelas práticas sociais, ou seja, o modo como agir, pensar, sentir,
etc., para ser considerado um homem ou uma mulher (ZANELLO, 2018).
Portanto, se ser uma pessoa em nossa sociedade é ser homem ou ser mulher (cis,
heterossexual, monogâmico) isso implica dizer quem há mecanismo que afirmam e
reproduzem, nesse sentido, há as tecnologias de gênero (LAURETIS, 1984). Teresa da
Lauretis (1984) discorre que é preciso separar gênero da diferença sexual, e entende o gênero
como produto de várias tecnologias que se desenvolvem por meio da linguagem e de práticas
discursivas que são implementadas pela pedagogia, medicina, economia, etc, e se apoiam nas
instituições do Estado. Portanto, somos todos interpelados pelo gênero. O sujeito além de ser
“engendrado” nas relações de gênero, também é nas relações de classe e de raça (LAURETIS,
1984). De acordo com Zanello (2018), os principais exemplos de tecnologias de gêneros
atualmente são as mídias, ou seja, o cinema, os desenhos, as músicas, as propagandas e
revistas. E além de interpelar performances, as tecnologias de gênero se constituem numa
“pedagogia dos afetos, numa colonização afetiva” (ZANELLO, 2018).

73
Zanello (2018) explicita através de exemplificações de desenhos, revistas e
propagandas como as mulheres são representadas e direcionadas a serem aquelas que buscam
o amor, que buscam um relacionamento amoroso, naturalizando a ideia de que o sonho de
toda a mulher é casar. A autora aponta o dispositivo amoroso como um fator importante para
os processos de subjetivação das mulheres e também um dos principais fatores de
“desempoderamento” das mulheres. O dispositivo amoroso e o materno são caminhos
privilegiados de subjetivação das mulheres, enquanto que para os homens são os dispositivos
da eficácia. “Os homens aprendem a amar muitas coisas enquanto as mulheres aprendem a
amar os homens”, nesse sentido, são as mulheres que aprendem a se responsabilizar pela
manutenção dos relacionamentos (ZANELLO, 2018).
As transformações sociais e políticas e a consolidação do capitalismo trouxeram novas
concepções sobre a união conjugal, a família, o casamento, o ideal de amor romântico. Com
relação ao amor romântico, Zanello afirma que seria um amor corrompido pelas relações de
poder, pois estimula uma dependência psicológica das mulheres, já que numa relação
heterossexual são as mulheres as que mais investem afetivamente nas relações (ZANELLO, p.
84).
Dias e Machado (2011) ao analisar os estudos que associam amor e violência apontam
que é a cultura que determina o que incomoda ou não numa relação e o que são consideradas
práticas abusivas ou violentas, e ainda supõem que as representações acerca do amor e das
relações amorosas podem influenciar a perpetração da violência e assim, constituir um fator
que mantém as vítimas nas relações abusivas (DIAS e MACHADO, 2011).
Diversos fatores contribuem para uma mulher continuar num relacionamento no qual o
parceiro tem atitudes violentas dentre eles estão o medo de novas agressões e até a morte, a
esperança que o agressor mude, o medo de perder a guarda dos filhos, a dependência afetiva e
econômica (BANDEIRA, 2014). As representações sociais do que é ser homem e mulher, o
papel que devem desempenhar na constituição da família naturalizam comportamentos
violentos, portanto, mascaram muitas violências.
Quando a ideia de amor é apresentada nos discursos das mulheres entrevistadas vem
decorrente de uma reflexão e de uma mudança conceitual, o qual não esteve sempre presente e
74
que se refaz ao analisar a experiência com a violência. É importante ressaltar que as mulheres
entrevistadas romperam com a relação. Denise 23 expõem:

“pra mim amor era aquilo que eu vivia, uma coisa intensa, de briga, ah, briga que
vira tudo depois já tá se beijando e se perdoa... eu criei uma concepção daquilo de
amor, hoje em dia eu vejo que o amor não é isso, hoje em dia eu vejo que para eu
estar com uma pessoa não precisa a gente brigar, não precisa estar naquele
vendaval, é uma coisa natural, tá bem, tá junto, de sentar de conversar e se
respeitar...” (Denise, 29 anos)

Apresenta-se predominantemente o discurso sobre um “amor companheiro”, um amor


que acontece gradualmente: “amor é uma coisa que a gente constrói no dia a dia, com
respeito, companheirismo (Cristina, 40 anos), “Amor é cuidado [...] quando é amor a pessoa
cuida, senta, tem paciência, conversa...” (Karla, 40 anos), “o amor é compreensão” (Lorena,
29 anos). E quando é narrada a experiência do amor vivido, é tido como um “amor paixão”
cheio de emoções, tensões, conflitos, ciúmes, etc. O ciúme foi relacionado como uma
expressão do amor “tinha ciúme [...] eu achava que isso era cuidado, que era amor, que era
carinho mesmo, de cuidado mesmo...” (Karla, 40 anos), “Ele tinha um ciúme obsessivo e tu
acha quando o cara demonstra ciúme assim... que isso é cuidado” (Lorena, 29 anos).
É perceptível a idealização do amor romântico, de viver um amor e para o amor: “eu
tava na fase de fazer vestibular aí eu larguei tudo para viver o amor que eu pensava que seria
o amor da minha vida, larguei meu trabalho...” (Cristina, 40 anos). Em outro relato: “eu
queria ter a minha família, queria ter minhas coisas, mas aí eu investi tudo, eu botei tudo... a
minha confiança, o meu amor, no meu marido, no pai do meu filho e eu queria aquilo e hoje
eu vejo que eu pensava que ele ia me fazer feliz” (Denise, 40 anos). Investir no
relacionamento demandou que algumas mulheres deixassem de estudar, de trabalhar, de ter
outras relações, “parei de estudar, parei de trabalhar porque eu confiei nele” (Ângela, 41
anos).
O amor e o relacionamento como um objetivo de vida, um sonho que ao se concretizar
não existe como se espera, pois, demanda sacrifícios por parte das mulheres para manter. Ter
um relacionamento custou outras coisas para essas mulheres, o que conduziu a dependências

23
Para preservar a identidade das mulheres entrevistadas, os nomes são fictícios.
75
em vários níveis. A dependência emocional, financeira e os filhos foram os principais motivos
para permanecem no relacionamento. E quando juntam todos esses fatores a relação se
estende por mais tempo.
Há a crença de que o companheiro vá mudar e que isso depende dela, se esforçar mais,
ser uma companheira melhor, ser mais paciente, “ainda fiquei ali porque queria ajudar, eu
achava que podia ajudar, que eu podia transformar ele” (Karla, 40 anos). Isto é inerente à
socialização feminina tradicional que induz mulher a acreditar que necessita de um
companheiro e quando ela consegue enfrentar todas as dificuldades e decide romper, o
companheiro inicia um jogo emocional, muitas vezes jogando sobre elas a responsabilidades
das atitudes dele: “ele vinha, e dizia eu briguei contigo sabe porque? porque tu fez isso, a
culpa é tua, se tu não fizer isso, eu não vou brigar contigo”(Denise, 40 anos). A culpa é um
sentimento presente nos relatos, e isso se dá principalmente pela responsabilização das
mulheres pela relação e pelo bem estar da relação. “eu ficava me culpando, aí eu dizia: Será
que sou eu mesmo?” (Karla, 40 anos), em outro relato: “eu me sentia muito culpada, porque
eu ficava me perguntando... mas porque ele fez isso comigo? Porque comigo? porque eu era
muito boa pra ele, sabe... eu era muito boa pra ele, eu realmente me dedicava ao
relacionamento, eu me dedicava a nós” (Paula, 22 anos).
Os discursos em torno do amor se apresentam como: (1) Um amor romântico, que é
idealizado. Que nasce das expectativas criada em torno relação, na ideia de “largar tudo por
amor”, do “sonho de casar”, e na crença de que o casamento é pra sempre. (2) Um amor
apaixonado. Que é cheio de tensões, conflitos e ciúmes. E que demanda dependência pela
falta de controle dos sentimentos, “eu fiquei louca por ele”, “sentia uma coisa intensa”. (3)
Um amor companheiro. Essa ideia vem a partir da reflexão das experiências que tiveram.
A partir das experiências com a violência perpetrada por alguém que elas amavam, e
como consequências desse desencanto relatam a descrença no amor e em se relacionar de
novo pelo receio de viver outra vez um relacionamento violento. Aquelas que tiveram outras
relações se dizem muito cautelosas. Há contradições e complexidades que marcaram os
discursos dessas mulheres e revelam uma visão mais crítica do que é o amor e um
relacionamento amoroso, ao mesmo tempo em que é carregado de descontentamentos.
76
A opressão das mulheres encontra no amor um de seus fundamentos, aponta Lagarde
(2011). O dispositivo amoroso como constituinte da subjetividade das mulheres resulta do
adoecimento de muitas mulheres (ZANELLO, 2018). É importante o aprofundamento nos
estudos que propõem refletir sobre a ideia de amor que é construído em nossa sociedade
relacionado às violências que as mulheres sofrem nos relacionamentos amorosos. Identificar
os mecanismos e tecnologias de gênero que reforçam a violência contra as mulheres. É
preciso trazer novas perspectivas sobre o amor, da maneira como Bell Hooks discorre: o amor
é um ato de vontade e implica em escolha. Para ela, amar é um ato político, que, dentre várias
coisas, tem o poder de curar.

Palavras-chaves: Dispositivo amoroso, Mulheres, Violência.

REFERÊNCIAS

AMARAL GONÇALVES, Telma. Falando de amor: discursos sobre o amor e práticas


amorosas na contemporaneidade. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Belém: UFPA/PPGCS,
2011.
____________________ “O nosso amor a gente inventa”: discursos e práticas amorosas
homo e heterossexuais. Revista Percursos. Florianópolis, v.15., n.28, p. 337-353.jan./jun.
2014.
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de
investigação. Sociedade e Estado, Brasília. V. 29, n. 2, p. 449-469, ago. 2014.
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São
Paulo: Elefante, 2020. 272 p.

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo”. In: LOURO,
G. L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001,
p. 151-172.

BUTLER. J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

77
DIAS, A. R. C. & MACHADO, C. (2011). Amor e violência na intimidade: da essência à
construção social. Psicologia & Sociedade, 23(3), 496-505
DIAS, A.R.; MACHADO, C; GONÇALVES, R.A; MANITA, C. (2012). Repertórios sobre o
amor e as relações de intimidade de mulheres vítimas de violência: Amar e ser
violentomente? Análise psicológica, 1-2, pp, 143-159.
LAGARDE, M. Lagarde, Marcela 2008. Amor y sexualidad, una mirada feminista.
Universidad Melendez Pelayo. Madrid.

LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa


(org.). Pensamento Feminista. Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
2019.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis: Vozes, 1998.
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Recife:
SOS Corpo, 1993.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: BUARQUE DE
HOLANDA, Heloísa (org.). Pensamento Feminista. Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2019.
ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de subjetivação.
2018.

78
GT 1 - GÊNEROS, SEXUALIDADES E CORPOS:
ARTICULAÇÕES, DESLOCAMENTOS E PROCESSOS
SESSÃO 3 - DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA, VIOLÊNCIA E DESIGUALDADES

SENTIDO!? A PADRONIZAÇÃO MILITAR E A DESIGUALDADE DE


GÊNERO NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Bruna Weyll de Melo24


Elis Cristina Fiamengue25

Este resumo é originado do projeto de pesquisa em desenvolvimento no programa de


mestrado profissional em educação e tem como base temática a relação conflituosa entre a
promoção da diversidade e o processo de militarização como projeto político de educação em
implantação no Brasil e é motivada pela contradição entre as alternativas que se apresentam
de maneira hegemônica e as reais necessidades educacionais, econômicas, políticas e culturais
da maioria da população no país. Por isso, essa pesquisa tem relevância para o conjunto da
sociedade brasileira, visto que a educação, sobretudo a educação pública, é um elemento
definidor da socialização comum de um povo.
A problemática aqui levantada é, portanto: qual propósito deve servir a educação
básica? O objeto de estudo, por sua vez, é o processo de naturalização da desigualdade de
gênero imposto pela militarização das escolas em contraposição a valorização da diversidade
proposta pelo feminismo enquanto movimento político e pedagógico.
O objetivo geral deste trabalho é analisar o Programa Escolas Cívico-Militares
(PECIM) apontando divergências entre o processo de militarização e a promoção de uma
pedagogia da diversidade. A metodologia aqui desenvolvida é de uma revisão bibliográfica de
artigos que tratam especificamente do tema da militarização em diálogo com autoras do
campo da epistemologia feminista, do movimento negro e do debate sobre gênero e educação.
A proposta para essa pesquisa surgiu a partir de uma experiência profissional de
estágio no Colégio da Polícia Militar de Ilhéus/BA entre os anos 2018 e 2019, proporcionado
pelo programa do governo do estado da Bahia “Partiu Estágio” e que inspirou posterior

24
Mestranda em Educação (PPGE), licenciada em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC). E-mail: weyllbruna@gmail.com
25
Professora Doutora docente do Departamento de Educação (DCIE), Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC). E-mail: eliscf@gmail.com
79
projeto de iniciação científica, e visa contribuir com subsídios para políticas educacionais, que
se traduz nos debates em torno de projetos de sociedades.
O Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 201926, que envolve o Ministério da
Educação e da Defesa, institui o PECIM enquanto uma das principais políticas públicas do
governo federal para a educação, ampliando de maneira nunca vista, a já conhecida
experiência das escolas militares para o conjunto da sociedade civil, com o objetivo de
contribuir na redução da violência e no aumento do pertencimento escolar. O Pecim elege
como territórios prioritários regiões com situações de vulnerabilidade social e baixos Índices
de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), com fins também de reduzir a evasão,
repetência e abandono escolar. Por isso, quando falamos da militarização das escolas estamos
falando de todo um território militarizado, onde a “disciplina” e a “segurança” que vêm junto
com a administração militar vão muito além dos muros da escola.
Já antes da PECIM, os colégios militares e militarizados chamavam atenção de
estudiosos da área de educação, ainda que a produção teórica sobre o tema até este momento
esteja escassa. Soares & Benevides (2015) fizeram um estudo intitulado “Diferencial de
desempenho de alunos das escolas militares: o caso das escolas públicas do Ceará”, em que
trazem informações sobre escolas tradicionais já criadas em ordenamentos militares e
demonstram que esse diferencial não diz respeito só a proposta pedagógica e/ou
administrativa das mesmas, mas também ao processo de seleção a que são submetidos os/as
estudantes.
O decreto 10.004/2019 que institui o PECIM tem como princípios a promoção da
qualidade da educação básica, priorizando territórios e sujeitos em situação de vulnerabilidade
social, o desenvolvimento de um ambiente escolar adequado a partir de uma “gestão de
excelência”, o fortalecimento dos valores humanos e cívicos, bem como a indicação de “boas
práticas” e a igualdade de acesso. E como objetivos, destacamos, a redução da evasão escolar,
repetência e abandono, com ênfase no acesso, permanência, na aprendizagem e equidade e na
redução da violência.

26
http://escolacivicomilitar.mec.gov.br/images/pdf/legislacao/decreto_n10004_de_5_de_setembro_de_2019_dou
_pecim.pdf, último acesso em 11 de agosto de 2022
80
Porém, ainda em abril de 2019, antes mesmo da publicação deste decreto, a Comissão
de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da Câmara
Legislativa do Distrito Federal produziu um relatório intitulado “Militarização Das Escolas
Públicas: Análise do Desempenho Escolar, Disciplina, Segurança e Aspectos Legais”, em que
a autora explicita algumas das principais contradições desse processo de militarização.
Segundo Silva (2019) a militarização das escolas é uma barreira para autonomia
pedagógica e de gestão, uma vez que ficam submetidas a regras elaboradas por profissionais
que não passaram por formação pedagógica adequada. Outras questões levantadas no
documento são o aporte de recursos que recebem essas escolas em detrimento das escolas
básicas, uma vez que vêm de fontes provenientes também das Secretarias de Segurança
Pública e taxas “voluntárias” que são cobradas dos responsáveis e “a exclusão das discussões
sobre identidade de gênero nas escolas, contrariando, inclusive, pesquisas científicas
mundialmente reconhecidas” (SILVA, 2019, p.18).
Também em 2019, Grupos de pesquisadores ligados a Associação de Pesquisa e Pós-
graduação em Psicologia (ANPPEP), que se dedicam ao tema da construção de valores morais
e sociais em diversos sujeitos, produziram uma carta chamada “Escolas cívico-militares:
seriam uma boa alternativa para a educação em valores sociais e morais?” que problematiza
os efeitos da militarização para uma educação em valores morais e sociais, declaram a escola
como um espaço importante e privilegiado para esse exercício e defendem uma educação em
valores democrática, cidadã, que promova a autonomia, a laicidade e a liberdade de
consciência.
No mesmo ano, a Revista Brasileira de Política e Administração da Educação
produziu um dossiê sobre o tema em que destacamos o editorial que evidencia como o
processo de militarização das escolas públicas se identifica com o processo da própria
organização da sociedade que tem a desigualdade social como componente basilar em que o
“Estado Democrático de Direito, jamais se comprometeu, de fato, com a própria democracia”
(SANTOS, et. al, 2016, 582).
Alves e Pitanguy (1984) frisam o feminismo como um processo de transformação, que
ressurge num momento histórico em que outros movimentos de libertação denunciam a
81
existência de formas de opressão que tem bases econômicas, mas não se limitam a esta. Dessa
forma o feminismo busca repensar e recriar identidades sob uma ótica em que o indivíduo,
seja ele homem, mulher, criança, etc. não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e
onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua
globalidade, contribuindo para a elevação do nível de consciência humana. Reafirmamos que
a desigualdade de gênero é um processo histórico, econômico, cultural e quando tratamos
deste conceito “nos referimos a relações de poder, privilégio ou hierarquias sociais criadas a
partir das diferenças percebidas entre homens e mulheres” (LINS et.al. 2016, 16), aspectos
estereotipados em um regimento militar, que separa homens e mulheres desde o fardamento
específico.
Ainda que não haja nada específico em torno da abordagem crítica feminista em
relação aos colégios militarizados e a militarização, em si, autoras como Lélia Gonzalez
(1988), Helleith Saffioti (2013), Patricia Hill Collins (2015) e Nilma Lino Gomes (2018) nos
ajudam a fundamentar uma perspectiva feminista e anti racista em torno da questão.
“O extremismo estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo
alternativo de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento o
mundo não foi mais o mesmo” (GONZALEZ, 1988, p. 13). Pensar alternativas à militarização
não é só possível, como uma necessidade, em uma sociedade onde a persistência da divisão
sexual do trabalho é condição para o estabelecimento do patriarcado, que significa
literalmente autoridade do pai (pater [pai] e arkhe [origem e comando]), mas que
historicamente foi ganhando outros contornos e hoje podemos defini-lo como sistema de
exploração-dominação que concentra o poder econômico, político e militar na mão dos
homens. No caso de uma sociedade racista, na mão de homens brancos.
O patriarcado, portanto, atua como um conjunto de relações sociais complexas em que
a dominação das mulheres se expressa por meio de uma hierarquia que torna subalternas as
representações construídas socialmente como femininas e que articula bases materiais e
simbólicas que foram incorporadas ao modo de produção capitalista e são materializadas em
padrões morais e sociais dos grupos dominantes. Para Saffioti (2013), o gênero, a classe social
e a raça/etnia são subestruturas de um “nó/novelo” formado a partir da conjunção patriarcado-
82
racismo-capitalismo onde a noção de poder ajuda a explicitar as mediações decorrentes dessa
complexa relação. O desenvolvimento do feminismo nos levou a perceber que o que parecem
ser categorias universais que representam todos os homens e mulheres são, na verdade,
desmascaradas como sendo aplicadas somente a um pequeno grupo (homens e mulheres
brancos) e que torna necessária a construção de novos padrões de pensamentos e ações
(Collins, 2016, p. 16).
Toda sociedade precisa se reproduzir e as escolas cumprem esse papel
institucionalmente. Uma problemática histórica levantada por Zaidman (2009) que é atual na
vida de qualquer ser social é se a escola é um fator de emancipação ou de manutenção das
relações de dominação. A constatação de que a educação é um ato político (Freire, 1987) deve
levar em consideração as estruturas sociais de classe, racistas e patriarcais. A realidade
brasileira chama atenção para a naturalização da opressão, em especial, da violência contra as
mulheres, em que as principais vítimas são jovens negras, principal público das escolas
básicas e é evidente como a transformação das escolas em “cívico-militares” não vem
acompanhada de um compromisso com a alteração desta realidade, se não com sua
manutenção.
Com isso deseja-se expor a indissociabilidade do debate proposto com o atual
contexto que é característico de uma ofensiva neoliberal e conservadora que busca
implementar um projeto cada vez mais autoritário de educação, que vem ganhando espaço,
sobretudo, a partir de 2015 com a retirada das metas sobre gênero e diversidade sexual no
enraizamento do Plano Nacional de Educação, mas que historicamente sempre existiu e vem
sendo reforçado com a proposta de militarização do ensino, em que segundo matéria
publicada dia 29 de março de 2019 no jornal The Intercept27, e que vem sendo constatada
pelos nossos estudos, as meninas são mais penalizadas por esse tipo de regimento escolar.
A opção militarista, portanto, é o reforço do caráter regulador da escola, que por sua
vez reproduz uma monocultura educacional de produção de “não existências”, onde o
universalismo e a proposta de “equidade” invisibiliza e exclui a diversidade racial, sexual,

27
Disponível em: < https://theintercept.com/2019/03/28/subversiva-colegio-militar/ > Acesso 12 ago. 2022.

83
cultural e de gênero, o que segundo Gomes (2018, p. 51) tem relação com o “tipo de racismo
desenvolvido no contexto histórico brasileiro que se afirma via sua própria negação”.
Espera-se com essa pesquisa contribuir com a identificação da essência de algumas
questões aqui apresentadas e com subsídios que auxiliem professores, estudantes,
pesquisadores e sociedade em geral em análises, reflexões e elaborações de práticas
pedagógicas e políticas públicas que se orientem a partir da promoção da diversidade cultural
e do combate às desigualdades sociais, como fundamento da cidadania e o incentivo a uma
participação democrática mais efetiva, sobretudo de jovens mulheres, em suas realidades
educacionais, políticas, culturais e sociais.

Palavras-chaves: Educação. Feminismo. Escola Cívico-Militar.

REFERÊNCIAS

BENEVIDES, Alessandra de Araújo; SOARES, Ricardo Brito. Diferencial de desempenho


de alunos das escolas militares: o caso das escolas públicas do Ceará. Nova econ. 30 (1),
Jan-Apr 2020

COLLINS, Patricia Hill. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como
categorias de análise e conexão. in MORENO, Renata. Reflexões e práticas de
transformação feminista. São Paulo: SOF, 2015.

DIS, et. al. Escolas cívico-militares: seriam uma boa alternativa para a educação em
valores sociais e morais? Disponível em: < https://www.fe.unicamp.br/pf-
fe/noticia/5912/escolas_civicomilitares_carta_principios_.pdf > Acesso 12 ago. 2022.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-americano. Caderno de formação
política do círculo Palmarino n. 1. 2011.

LINS, Beatriz Accioly; MACHADO, Bernardo Fonseca; ESCOURA; Michele. Diferentes,


não desiguais: a questão de gênero na escola. 1º ed. São Paulo: Reviravolta, 2016.

84
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. 3. ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2013.

SANTOS, Catarina de Almeida; ALVES, Miriam Fábia; MOCARZEL, Marcelo;


MOEHLECKE, Sabrina. Militarização das escolas públicas no Brasil: um debate
necessário. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - v. 35, n. 3, p. 580 -
591, mai./ago. 2019.

SILVA, Gabriela Torres. Militarização Das Escolas Públicas: Análise do Desempenho


Escolar, Disciplina, Segurança e Aspectos Legais. Câmara Legislativa do Distrito Federal,
abril, 2019.

ZAIDMAN, Claude. Educação e Socialização. In. HIRATA, Helena... [et al.] (orgs.).
Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. pgs.80 a 85.

85
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO

GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE
CONSERVADORISMO

COORDENADORES:

Me. Alef Monteiro (USP)

Dr. Cleonardo Maurício Júnior (UFPE)

Drª. Taíssa Tavernard de Luca (UEPA | UFPA)

Thaís de Oliveira Costa (UFPA)

86
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADOISMO
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT
TRABALHO HOMENAGEADO COM MENÇÃO HONROSA

A PAJELANÇA QUILOMBOLA: EXPERIÊNCIAS ETNOGRÁFICAS


NA COMUNIDADE BENEVIDES, EM AURORA DO PARÁ

Adão Souza Borges28

Para a compreensão da Amazônia é imprescindível compreender a polifonia religiosa


da região, uma vez que as expressões religiosas estão em toda parte, representadas através de
símbolos, ritos e performances, que se manifestam na relação dos sujeitos amazônidas nos
diversos ecossistemas da região. Dessa forma, busco compreender a expressão religiosa numa
comunidade quilombola, localizada em Aurora do Pará, denominada pela comunidade
Pajelança Quilombola, que se desenvolve na comunidade quilombola-ribeirinha Benevides,
em Aurora do Pará-PA, lócus da minha pesquisa de campo desde 2019, quando ingressei no
curso de doutorado do PPGSA (UFPA). Ressalto que o contato com os moradores de
Benevides, acontece cotidianamente, uma vez que atuo como professor naquela comunidade e
a pesquisa torna-se um desafio na compreensão das relações sociais na mesma, inclusive suas
expressões religiosas.
No decorrer da pesquisa, utilizo-me da etnografia, enquanto recurso teórico-
metodológico, onde o contexto local, a linguagem e a eficácia das ações sociais, formam
corpo de um texto etnográfico, conforme aponta Marisa Peirano (2014), quando discorre
sobre os parâmetros a serem considerados na contemporaneidade.

i) consideram a comunicação no contexto da situação (cf. Malinowski); ii)


transformam, de maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na
pesquisa de campo, transformando experiência em texto; e iii) detectam a eficácia
social das ações de forma analítica (PEIRANO, 2014, p. 386).

Trilhando nas orientações da autora, busco compreender a linguagem local do

28
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará.
87
interlocutor da pesquisa, o Sr. Bonifácio, legitimado pajé da comunidade, com o qual partilho
relações de amizade, desde quando iniciei minha investigação naquela comunidade, a partir
de usos e conservação de plantas de curas na comunidade quilombola em estudo. Minha
interação na comunidade vem favorecendo a coleta de narrativas e a percepção de que a
medicina praticada pelo Sr. Bonifácio ultrapassa a cura de doenças físicas e espirituais, mas
emaranha-se, formando uma religiosidade híbrida, onde a proteção do território e a política
étnica se associam à expressão religiosa quilombola, através de suas divindades locais, que se
imbricam ao catolicismo, à umbanda e à pajelança cabocla.
Voltei a campo em 2021, ao encontro do Sr. Bonifácio, em Benevides, em busca de
continuar nossa conversa, que tinha sido paralisada por um ser minúsculo, o vírus SARS-
Cov-2, que não tem nenhum encanto.
Atravessei a ponte. De lá, observei que o pajé se encontrava no rio, banhando-se em
festa com os seus netos, e que após os meus acenos, caminhou para a sua casa, acenando-me
para acompanhá-lo. Nas saudações, informou-me que havia mudado para a área urbana da
comunidade, em razão das reformas naquele local. O convite para entrar fez-me cruzar a rua
ao sagrado. Na sala da casa, divido por cortinas de tecidos, estava instalado seu terreiro, dessa
vez, denominado de “banca”, cercado pelas imagens de suas divindades, perfumes, oferendas,
velas e faixas de tecidos.
Aconchegando-me em uma cadeira, defronte das imagens e acobertando-me por um
rosário de São Francisco, o pajé fez o ritual de amizade, entre mim, ele e as divindades. Ao
iniciar a entrevista, obtive a narrativa que transcrevo a seguir:

Desde quando eu nasci, minha missão é na medicina já. Já tava funcionando, com
oito anos eu comecei a conhecer, afastar, tirar um remediozinho. Já tava
conhecendo um quebranto, um maligno outro, e tudo isso eu tava butano pra
frente, em de ... e já no dezesseis ano foi quando eu arriei caboco e tô em cima
dessa terra curando um bocado de gente, graças ao meu bom Deus, com a
medicina. Sou querido do povo geral, quase do país todo. Eu me considero um
médium, porque eu já fui chamado em dois hospital só que eu não foi... não
trabalhei no hospital por causa da leitura, né... mais eu já fui chamado aqui em
Concórdia, São Miguel, eu fui chamado pra trabaiá, me davo combustível e eu
disse num quero porque num conheço a leitura. Tenho conhecimento da medicina,
mas pra tirar uma receita assim, né, tem de escrever. Todo santo dia, vem gente
procurar essa medicina aqui, graças a Deus, estou trabalhando bem. No meu
terreiro eu trabalho com São Jorge, que é meu guia mesmo, né... Seu Zé Pilintro,

88
que é acompanhado, são três guias fortes que eu tenho e Nossa Senhora da
Conceição, tenho minha missão com ela. Meu filho, os encantado tem muitos...
tem muitos, não tem diferença dos encantados é muito. Tem seu Tranca Rua,
Rompe Mata, tem Jurema, Sereia. Todos são encantado, tem os senhor Índio Pena
Verde, da Aldeia dos Índios, tem o Frecheiro, Os encante é assim, mexeu com
encante, ele vem. Os daqui vez em quando tô chamando eles aqui. Aqui, na minha
região, quem redige minhas forças tão tudo aqui. Os encantados se transforma na
mesmas coisas que tô falando, começou desde o começo do mundo, já vem de lá.
A semente já vem de lá, essa semente vai, trabalha, trabalha, trabalha até nas
alturas que Deus quer, aí morre, e já tem outra semente e não para... isso é uma
semente que Deus deixou na terra direto, né... olha a dona América, tinha reforço
do começo do tempo, gente do final da escravatura ela conseguiu ver também.
Olha dos tempos atrás, que eu tinha avô, avó, tio, tudo trabalhavo nessa linha. Eles
aparece quando dá na idade deles descer, não desce todo tempo, né. Eles descem
sim, os antigos, dos primeiro tempo que já foi, como tô falando, na realidade, eles
desce sim, desce no terreiro, vem conversa, vem fazer algum trabalho deles, né... e
vem pra visitar a comunidade, os castanhais, a mata e os rios e os garapé daqui. É
só eu arrear e fazer o cantio, cantar, puxar os encante, se tiverem de frente, eles
descem também, por exempro, eles tenhum a força pra afastar um espírito maligno
de uma pessoa, qualquer coisa, um malefício pra curar. Todos eles tem a missão
pra descer pra curar, como o tio da minha mãe, que é o Mané Siqueiro, que era o
primeiro curador que tinha né, ele era o enfermeiro-médico, tinha meu avô, tem o
meu mestre Zé Maria de Almeida, e eles curam. O espiritismo deles cura. Se eles
chegar a descer e se te tiver uma pessoa, com qualquer probrema, o espírito vem
falar e curar. Depois que curar, eles vão embora. Todos eles trabalhavo. O meu
pai, aqui acolá. Ele me protege. Se a qualquer hora eu me alembrar dele, eu sinto
que está me dando força. São negros, eles todos são negros, trabalhavo muita
medicina, minha mãe era parteira. Morreu numa idade boa e aí deixou muita bença
de parteira... Tem muita gente que tem filhos e filhas, que passou pelas mão dela,
e assim vai o negócio, né... Agora, pra dizer assim, eu vô arriar caboco, aqui onde
tô, não é apropriado pra eu arrear caboco e depois, outra coisa, eu tô ajeitando lá
minha casa, é o tempo que eu vô arrear, fazer uns trabalho lá de caboco, se Deus
quiser. Eu trabalho, agora assim, só na mesa de banca. A mesa de banca é assim,
você chegou nós vamos fazer nossa reza, fazer o passe e aí ver o que é que tem na
pessoa, né... daí nós vamos passar a medicina, qual é a medicina que vai combater
aquele sofrimento da criatura, né... igualmente como que tá aqui a banca, né
Chegou aqui, eu olho a pessoa, já vou dividir o que é o sofrimento dele. (Sr.
Bonifácio, 15/12/2021. Entrevista em sua casa, Comunidade Benevides).

O interlocutor estrutura a sua narrativa a partir de fatos religiosos, dentro de um


contexto quilombola, apresentando a sua trajetória mediúnica, a partir do seu poder de
diagnosticar quebrantos, ainda na infância, até o ritual de passagem aos dezesseis anos – esse
ritual de passagem ao sacerdócio da pajelança. É a partir desse momento que o Sr. Bonifácio
relatava sua prática existencial de manejos religiosos, que agrega a Umbanda, o Candomblé, a
Pajelança e o Cristianismo Popular, que abarcam a identidade quilombola e a territorialidade,
a partir da linguagem. Essa construção lúdica, favorece-me pensar o conceito de bricolagem

89
onde “ o pensamento mítico é a expressão auxiliada por um repertório cuja composição é
heteróclita” (Lévi-Strauss, 1989, p. 32). Dessa forma, compreendo a pajelança quilombola,
enquanto composição de expressões afro-caboclas religiosas, políticas e ecológicas, que
acontecem na comunidade em estudo, que se agrega à linguagem, para ressemantizar o termo
quilombola, como um pertencimento étnico do povo de Benevides. É a linguagem também a
responsável pela descida das entidades, que se encontram no fundo dos ares, dos rios e das
matas, e que, quando evocadas, descem e fazem suas incorporações no pajé, quando
chamadas através do cantio.
O cantio é um ritual, uma música, utilizada nas evocações no terreiro, para que os
orixás ou entidades locais desçam, no momento do “arriar caboco”. No decorrer dessas
invocações é que os encantados descem. Para o Sr. Bonifácio, descem de acordo com o
chamado – ou os que se encontram no seu tempo de descida. É o caso dos seus parentes (avó,
mãe, pai, tio e seu mestre), que ele apresenta como entidades encantadas, que se apresentam
na mesma hierarquia que os orixás e os encantados da pajelança, visto que, quando
incorporados, promovem a cura e aconselham. Essa prática de prestar culto aos ancestrais era
comum em África Central, especificamente no Congo. Segundo Jonh K. Thornton (2012):

As grandes divindades territoriais dividiam o espaço religioso com os ancestrais, cuja


esfera de atuação era sobre seus descendentes em vez de regiões e territórios inteiros.
Cavazzi notou que que em regiões umbundo, os túmulos, centro dos cultos
dedicados aos ancestrais, eram localizados distantes das áreas habitadas [...]. Cuidar
de ancestrais era algo tipicamente familiar, com descendentes formando o grupo que
se dedicava a cuidar deles. Em troca, receberiam boa sorte e saúde, mas, se fossem
negligentes, doenças e má sorte (THORNTON, 2012, p. 90).

Dessa forma, encontramos a tradição de que no panteão das divindades religiosas, a


parentalidade fosse incluída, enquanto parte da sobrenaturalidade cuidadora dos vivos, mas
quando esquecidas, também poderiam puni-los. Portanto, busca-se, nessa tradição, a
compreensão de que em Benevides, os parentes do senhor Bonifácio façam parte dos mitos
sagrados da comunidade.
Segundo o Pajé, seus familiares encantados possuem genealogias africanas – “são

90
negros, eles todos são negros, trabalhavo muita medicina”. Sua vida enquanto humanos,
trabalham a medicina terapêutica do corpo e do espírito, como, por exemplo, sua mãe, que era
uma negra, que partejava, conforme enfatiza o interlocutor, para mencionar que seus parentes
tinham vínculo com a medicina da pajelança, e que traziam “bênçãos”. Essas bênçãos
narradas por Bonifácio é um recurso linguístico cristão, que remete à cura.
Merece ênfase a narrativa do Sr. Bonifácio, ao associar a atuação dos encantados locais
à proteção do território – “vem pra visitar a comunidade, os castanhais, a mata e os rios e os
garapé daqui”. Ou seja, os encantados locais protegem a comunidade, à medida que a
urbanização, a dendeicultura e as fazendas ameaçam os ecossistemas e os modos de vida
local, contrapondo a afirmação identitária, que acontece no âmbito sociopolítico, cultural e
jurídico da população quilombola. Dessa forma, destaco que a religiosidade expressa no
terreiro do Sr. Bonifácio é uma pajelança quilombola.
A pajelança quilombola tem na sua composição práticas religiosas indígenas,
católicas e afrodescendentes (umbanda), que se desenvolvem a partir dessa bricolagem
religiosa e está ligada a uma identidade que é resultado de uma ressemantização
identitária, que tem a ver com a construção do termo quilombola (que liga o território à
política), ao mesmo tempo em que efetua a cura, a partir das entidades locais que, por sua
vez, encontram-se nas mesmas posições hierárquicas que as outras entidades sobrenaturais
incorporadas no pajé, como os encantados de contextos regionais (por exemplo, o rei
Sabá); e os parentes locais, que praticavam a pajelança no passado, como o avô, o pai, a
mãe, o tio do pajé, que descem no terreiro para a prática de cura ou para fazerem
aconselhamentos e proteção ao território. Essas entidades sagradas são consideradas
guardiões da comunidade, das matas e dos igarapés quilombola.

Palavras-chave: Pajelança Quilombola. Religiosidade híbrida. Territorialidade.

REFERÊNCIAS

BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Pará (séculos XVII –XIX). 2. ed.
Belém: Paka-Tatu, 2012.
91
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo
Amazonas. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1955. (Coleção Brasiliana).

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Medicinas populares e "pajelança cabocla" na Amazônia In:


ALVES, P.C.; MINAYO, M.C.S. (Orgs.). Saúde e doença: um olhar antropológico [online].
Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.

MILLER, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WC24b3nzp98. Acesso em: 20 set. 2022.

PEIRANO, Marisa. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.


20, n. 42, 2014.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução:Tânia Pellegrini. Campinas:


Papirus, 1989.

THORNTON, Jonh K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a


1700. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.

92
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
SESSÃO 1 - RELIGIÃO E CONSERVADORISMOS

A IDENTIDADE POLÍTICA DO TAMBOR DE MINA NA AMAZÔNIA:


POSSÍVEIS MEIOS DE RESISTÊNCIA CONTRA A BARBÁRIE
BOLSONARISTA

Arlindo Figueiredo do Rosário Júnior29

O tambor de mina na Amazônia sofre, desde sua gênese, repressão de governos


despóticos sem ter meios de construir uma autoafirmação por ser uma religião minoritária.
Diante do governo de Jair Messias Bolsonaro30, as religiões de matriz africana demandam,
com urgência, de esclarecimentos acerca de uma identidade política como forma de
resistência.
Observando a hegemonia do cristianismo nas pautas governamentais brasileiras e
entendendo a ameaça de uma possível barbárie semelhante a Auschwitz, surge a perquirição:
estudando a identidade política do tambor de mina na Amazônia, quais caminhos podem ser
percorridos para a desconstrução de um possível holocausto arquitetado no governo Bolsonaro?
Conhecer a identidade política do tambor de mina na Amazônia, bem como pensar
meios de superação da barbárie que o sistema político de Jair Messias Bolsonaro possivelmente
vem implementando, significa fortalecer a luta que vários segmentos considerados
minoritários têm com este governo. Beneficiando-se do crescimento substancial da massa
evangélica, Jair Messias Bolsonaro criou estratégias de fortalecimento de ideias
conservadoras que pudessem exterminar culturas e identidades de povos que não tem voz e
nem supremacia dentro do parlamento brasileiro ao fundamentalismo religioso bolsonarista.
Tal resistência feminina no Brasil remete a mesma luta das precursoras do Tambor de mina no
Maranhão e no Pará.
29
Graduado em Ciências da Religião pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (Curitiba-PR). E-
mail: ajuniordeode@yahoo.com.br
30
Presidente eleito para governar o Brasil no período de 2018 a 2022.
93
As motivações para realizar esta pesquisa nasceram a partir da leitura de uma
monografia31 onde a autora apresenta um estudo sobre uma possível resistência feminina
frente ao fundamentalismo religioso bolsonarista. Tal resistência feminina no Brasil remete a
mesmaluta das precursoras do Tambor de mina no Maranhão e no Pará.
A razão pelo qual este estudo se projetou, reside na possibilidade de empoderamento da
identidade política da religiosidade afro amazônica, mais precisamente o Tambor de mina. Foi
a partir de experiencias e práticas do cotidiano de terreiro entremeadas às inspirações filosóficas
que despertou uma investigação teórica mais apurada.
A especulação teórica que este estudo tem se configura através do aprimoramento de
ideias já estudadas por pesquisadores do tambor de mina, além de criar incentivo para novas
investigações que fortaleça a luta contra governos racistas e ditatoriais que possam afetar o
tambor de mina na Amazônia e no Brasil.
A importância teórica que concerne a referida questão pode ser observada na proposta
de incentivo ao debate político entre as comunidades do tambor de mina na Amazônia, bem
como o alvitre de novas pesquisas que enriqueça a formação política da comunidade mineira 4.
A importância prática desta investigação tem a finalidade de suscitar ideias e ações de cunho
político que possam melhorar a vida social dos adeptos do tambor de mina, criando meios de
empoderamento e autonomia da base social dessas comunidades de tradição afro-religiosas na
Amazônia.
Estudar a identidade política do tambor de mina na Amazônia e apresentar meios de
resistência e eliminação dos mais variados problemas impostos pela política racista do governo
de Jair Bolsonaro. Outras metas a serem atingidas são:
• Conhecer as possíveis características que compõem a identidade
políticada religião de matriz africana denominada Tambor de mina.
• Estudar as formas de opressão e aniquilamento do tambor de

31
MACHADO, Aline Campos. Fundamentalismo Religioso no Governo Bolsonaro: as implicações de um
governo sexista para a (re)existência das mulheres brasileiras. Monografia. Faculdade Ciências da Educação
e Saúde – FACES. Centro Universitário de Brasília Brasília – DF. Dezembro de 2019. Disponível em: <chrome-
extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/prefix/13886/1/213
63891.pdf> Acesso em 15 de julho de 2020.
94
minaatravés das ações do governo Bolsonaro.
• Possíveis semelhanças entre as ações da política bolsonarista e o
ahistória do Nazifascismo na Europa.
• Apontar possíveis meios de empoderamento da religião
denominadaTambor de mina tradicional presente na Amazônia.

Após conhecer possíveis características da identidade política do tambor de mina na


Amazônia, é pertinente conhecer uma das maiores formas de barbárie ocorrida na história da
humanidade. Entende-se por Nazifascismo, a doutrina política que surgiu e se desenvolveu na
Itália e Alemanha entre o começo início de 1920 até o final da Segunda Guerra Mundial. Tal
doutrina ganhou o nome de nazismo na Alemanha e teve como principal representante Adolf
Hitler. Na Itália, ganhou o nome de fascismo e teve Benito Mussolini como líder. Esta pesquisa
arrima-se no estudo da barbárie histórica imposta por Hitler na Alemanha e uma possível
similitude com o atual senário imposto pelo governo de Jair Messias Bolsonaro e vivido pelo
Tambor de mina Amazônia.
O genocídio comandado por Adolf Hitler configura um dos maiores acontecimentos
vituperiosos da história do século XX. As feridas que o Holocausto deixou induz o Homem a
comparar histórias para que não se repita o mesmo erro: a barbárie (Finkelstein 2006. p. 18-
19). Na filosofia de Hanna Arendt, a política não configura artifício de se obter objetivos. Para
a filósofa, a política possui “dignidade própria e equivalente”, pois é no âmbito público que o
ser humano deve ser visto enquanto pessoa humana (ARENDT, 2002).
Na obra “Origens do totalitarismo”, a ideia de Nazismo se equipara ao terrorismo e a
opressão. Para Arendt (1991, p. 26), “a diferença entre as ditaduras modernas e as tiranias” está
no uso do terror não como meio de “extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como
instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes”, como no regime
ditatorial de Hitler, quando o terrorismo foi implantado contra judeus. Assim, a ideia de
nazismo para Arendt (1991) preconiza o despotismo na escolha das vítimas, apesar dos
discursos ideológicos. (ARENDT, 1991 p. 26).
Barbosa, Machado & Miranda (2021) apontam um estudo do governo de Jair Messias
Bolsonaro como um movimento político de viés totalitário. Neste trabalho, os autores expõem
95
os atos e declarações que marcaram os últimos anos e que apontam para a configuração do
Bolsonarismo como um movimento com características totalitárias (Barbosa, Machado &
Miranda 2021, p. 12).

No governo Bolsonaro, a Amazônia tem grande destaque entre os assuntos que mais
causaram reações de oposição da sociedade civil em âmbito nacional e internacional, além de
grandiosas discussões no Congresso Nacional e ações judiciais no Supremo Tribunal Federal
que, mesmo com suas limitações, devido a precaução de interferência entre os poderes, ainda
se observa resistência a certas atitudes contrárias à postura do presidente Bolsonaro. (RAMOS
2021, p. 287).

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, as comunidades


tradicionais presentes na Amazônia sofrem com a implementação de uma política totalitária,
mas estas comunidades oferecem resistências que resulta na criação de mecanismos de
sobrevivência numa conjuntura desumana. Após um estudo aprofundado, podemos contribuir
com possíveis meios de resistências contra a barbárie bolsonarista, sofrida por adeptos do
tambor de mina na região amazônica.
Após um estudo sobre a identidade política do tambor de mina na Amazônia, pôde-se
apresentar como resultado três caminhos que podem ser percorridos para a desconstrução de
um possível holocausto arquitetado no governo Bolsonaro.

O primeiro caminho corresponde à organização de chapas para concorrerem a pleitos


eleitorais, podendo assumir cadeiras nos poderes legislativos e executivos que são lugares
onde se tomam decisões que influenciam na tradição e preservação da identidade do tambor
de mina na Amazônia. O segundo caminho corresponde ao incentivo de curso de formação
política e social para as comunidades tradicionais, independente do grau de escolaridade. Esta
é uma estratégia a longo prazo que consiste em inúmeros momentos de formação, capacitação,
aperfeiçoamento do conhecimento em todas as áreas das ciências humanas. A terceira
estratégia consiste na implementação de metas para se obter uma educação emancipatória como
propõe Adorno (1995) paraque se acabe a barbárie vivia em uma sociedade religiosa.

96
Palavras-chaves: Resistência. Identidade política. Tambor de mina.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo,


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Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BARBOSA, L. M.; Machado, D. M.; Miranda, J. I. de R. Contribuições para o debatesobre o


Bolsonarismo enquanto movimento político totalitário. Publ. UEPG Appl. Soc. Sci., Ponta
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Tradição. (Dissertação de Mestrado). Recife: UFPE, 2003.

PRENDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião.

REVISTA USP, São Paulo, n.46, p. 52-65, junho/agosto 2000.

Ramos, A. Amazônia sob Bolsonaro. AISTHESIS Nº 70. Instituto de Estética - Pontifícia


Universidad Católica de Chile: 2021, p. 287-310. Disponívelem:
https://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S071871812021000200287&script=sci_arttext&tlng=en
> Acesso em 13/05/2022.

SILVEIRA, Diego Omar da. RODRIGUES, Donizete & PANTOJA, Vanda.


Expressões religiosas identitária na Amazônia: um debate em aberto. V. 11 N 1 (2022) –

97
p. 1 a 13. Revista Relegens Thréskeia. UFPR. Curitiba- PR: 2022. Disponível em:
<https://revistas.ufpr.br/relegens/article/view/86656 > Acesso em 19/07/2022.

VERGOLINO, Anaíza. O Tambor das Flores. São Paulo: UNICAMP, 1976. (Dissertação de
Mestrado.

98
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
SESSÃO 1 - RELIGIÃO E CONSERVADORISMOS

A FÉ QUE MOVE MONTANHAS: BOLSONARO E A ASCENSÃO


DA FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA

Ricardo e Silva Martins32

O presente artigo busca discutir a partir de revisões bibliográficas e levantamento de


dados como a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) ascendeu ao poder tendo como esteira o
resultado das eleições de 2018. O presidente Jair Messias Bolsonaro é um político experiente
com mais de 30 anos de vida pública. Membro do centro fisiológico do congresso durante 28
anos, deixou o cargo para concorrer (e posteriormente assumir) a Presidência da República
em 2019. Durante as quase três décadas em que ocupou uma cadeira no legislativo, Bolsonaro
exercitou a forma com a qual a velha política era feita no planalto. Durante a campanha de
2018, não demorou até que os evangélicos fossem alcançados pela tática governista do militar
da reserva. Associando estratégia digital e discurso ultraconservador, antissistema e populista,
Bolsonaro saiu vitorioso no pleito daquele ano.
Com pouco tempo de propaganda partidária, baixo orçamento e um nome pouco
conhecido, o então Deputado Federal, articulou com certa facilidade sua imagem à sensação
de renovação política. O apoio dos evangélicos foi obtido graças à uma série de acenos às
supostas convergências ideológicas entre o candidato, os parlamentares e à população auto
identificada com a defesa intransigente dos valores da “família brasileira”. A campanha de
Bolsonaro foi bem-sucedida em interpretar os anseios desta população à época. Utilizando as
redes sociais como ferramenta principal de campanha, Jair Bolsonaro fez uma série de
inserções nas mídias no intuito de associar o nome do Presidenciável Fernando Haddad ao
fantasma do Comunismo, à pedofilia e ao suposto interesse da esquerda em criminalizar a
Religião Evangélica. Produzindo um clima de insegurança no público conservador e
colocando-se como o único capaz de vencê-los nesta espécie de guerra do bem contra o mal.
Jair Messias explorou à exaustão o papel de salvador, aquele que resgataria a imagem e a
honra do país, consumida por escândalos de corrupção.
O tom messiânico foi potencializado pelo sobrenome Messias, dado a ele pela Mãe
Olinda Bolsonaro, em virtude de uma gestação de risco. No plano de governo da chapa

32
Mestrando em Ciências Sociais – PUCRS. E-mail: ricardo.m004@edu.pucrs.br
99
Bolsonaro-Mourão, na capa a frase que foi amplamente utilizada: “Conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará JOÃO 8: 32”.

Bispo Edir Macedo, missionário R. R. Soares, apóstolo Estevam Hernandes, pastor


Silas Malafaia, bispo Valdemiro Santiago, pastora Damares Alves, apóstolo Rina,
pastor Marco Feliciano, apóstola Valnice Milhomens, pastora Cassiane. O que essas
lideranças religiosas, destacadas por mídias brasileiras, têm em comum? São
pentecostais, o segmento religioso cristão que mais se expandiu, numérica e
geograficamente, no Brasil nas últimas décadas. Hoje, compreender o
pentecostalismo é imprescindível para quem se interessa pelas dinâmicas
socioculturais e políticas que envolvem o país. (CUNHA, 2019, p. 24).

Bolsonaro foi bem-sucedido em sua estratégia de cooptar o concorrido recorte da


população identificada com a doutrina evangélica. Hoje a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE) conta com 20% do congresso.33 Segundo o site Congresso em Foco a bancada
evangélica votou alinhada com o governo Bolsonaro em 89% das votações nominais no
período 02/2019 – 02/2020. No mesmo período a taxa média de votações em consonância
com o governo foi de 76%’ o que representa um aumento de 17% quando comparado ao
recorte evangélico do congresso. Isso pode ser explicado pelo interesse presente em parte dos
parlamentares de legislar em causa própria e na divisão de cargos. Com o crescimento da
bancada cresce junto ao chefe do Executivo a premência de bem relacionar-se com os
deputados. Tendo em vista a relevância, a capacidade de articulação e pressão exercida pelos
numerosos congressistas.
Não foi durante a gestão Bolsonaro que a bancada evangélica surgiu, mas foi no
período compreendido entre 2018 e 2022 que os parlamentares passaram de figuras satélites
da política, trabalhando nos gabinetes através de grupos de pressão e Lobby e foram alçados à
um local de destaque, fazendo parte do centro do poder político. Neste período, a bancada
evangélica além de crescer, passou a ocupar outros espaços, em função da sua proximidade
com o Presidente Jair Bolsonaro. Ocupando cargos que passavam pelo de Ministro de Estado,
até uma cadeira na mais alta corte do País, na figura do “terrivelmente evangélico” Ministro
do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça.
Edir Macedo, líder da terceira maior congregação do Brasil e Bispo da Igreja
Universal do Reino de Deus foi um pertinaz opositor de Lula durante as campanhas de 89, 94
e 98. Neste período apoiou todos aqueles que se opunham à sua candidatura. Edir utilizou à
época como método de campanha argumentos próximos daqueles empregados por Bolsonaro
no pleito de 2018. As declarações de Edir davam conta da suposta intenção de Lula fechar as

33
105 Deputados e 15 Senadores.
100
Igrejas, criminalizando e inviabilizando o exercício da fé proferida pela Igreja Universal e
seus seguidores. Dizia também que Lula, caso eleito, poderia liberar o aborto, o uso de drogas
e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Valores inversamente proporcionais aos apontados
como corretos pelo líder da IURDTV. Segundo o IBGE no levantamento de 2010 a Igreja
Universal do Reino de Deus contava com aproximadamente 2 milhões de fiéis. Nesse sentido
é razoável afirmar que o vínculo Igreja/Estado nunca foi desfeito no país. Apesar dos esforços
empregados a partir de 1889 com a Proclamação da República e que foram mantidos com
algumas modificações na Constituição Federal de 1988. (EMMERICK, 2010).
Tendo em vista que a comunidade evangélica é organizada burocraticamente, é
comum vê-los como um grupo Político/Econômico, influente e organizado. Ainda assim, é
difícil encontrar pautas unificadoras entre os milhões de fiéis. Muitas das movimentações,
falas e atitudes do Presidente são duramente criticadas por importantes lideranças da
congregação. A aprovação do Governo Bolsonaro também oscilou para baixo no decorrer do
mandato.
Porque não há como combinar Deus com ódio, com elogio à tortura e a torturadores
e com as ameaças a seus opositores como fazem Bolsonaro e seus filhos. Nos textos
sagrados judaico-cristãos, Deus revela sua natureza como “amor” e como
“misericórdia”. O “bolsonarismo” conduz uma política como confrontação com os
opositores, sem diálogo com o Congresso, política entendida como um conflito, de
viés fascista. Isso não tem nada a ver com o Deus-amor e o Deus-misericórdia.
Consequentemente propaga e legitima, a partir de cima, uma verdadeira cultura da
violência, permitindo que cada cidadão possa possuir até quatro armas. A arma não
é um brinquedo para o jardim a infância, mas um instrumento para matar ou se
defender mutilando ou matando o outro. (Leonardo Boff)

Apesar de manter-se ocupando a cadeira do Executivo Nacional, Bolsonaro enfrentou


dificuldades na manutenção da imagem de “Messias” que vinha sendo trabalhada
intensamente pela sua equipe de marketing digital. Após dois anos de pandemia e uma série
de declarações controversas, o Presidente viu sua popularidade despencar em todos os
recortes da população, inclusive no reduto de eleitores tidos como fiéis, que durante a
campanha de 2018 eram parte da base de sustentação da sua candidatura.
Porém não foi somente a imagem do político que sofreu com desgaste nos últimos
anos. Desde que tomou posse em 2019, Jair Bolsonaro tem atacado as instituições
republicanas buscando o descrédito do processo eleitoral e dos órgãos acessórios à exemplo
das investidas contra o Tribunal Superior Eleitoral e seus presidentes de turno. Com índices
de aprovação em tendência de queda, Bolsonaro precisou fazer uma série de acordos com o
centrão para conseguir se manter no cargo. Os prejuízos à Democracia brasileira ainda estão
sendo precificados.
101
À exemplo da Democracia Norte Americana, a República Brasileira vem sendo
testada, e sabotada por dentro (LEVITSKY-ZIBLATT, 2018). Bolsonaro foi responsável por
tensionar os limites das instituições e de forma gradativa, conduziu o país para uma sensação
de normalidade. Fazendo acordos espúrios, criminalizando a oposição, investindo verba
pública no intuito de afagar sua base de apoio e loteando as estatais. O Presidente foi
responsável por agravar a crise econômica em que o País está imerso desde 2014. Ao
realinhar Igreja e Política, Bolsonaro fez com que o país desse um grande salto para trás.
Pautas que deveriam ser votadas são barradas pela Bancada Evangélica no Congresso. Cargos
que deveriam ser de incumbência técnica foram distribuídos com critério ideológico. E verbas
destinadas a Saúde, Ciência e Educação foram desviadas para inflar programas sociais em
busca de melhorar a imagem e a aprovação do Presidente. Não importando para ele, se
mesmo após o fim do seu mandato o país estará imerso em uma crise inédita, envolvendo
praticamente todos as esferas da república. A gestão de Bolsonaro é caracterizada pela mera
sede de poder, e por criar uma corrente de opinião que mesmo após o fim do seu governo,
trabalhe em prol das ideias por ele personificadas (Arendt, Hanna, 2000).

Palavras-chaves: Jair Bolsonaro. Democracia. Bancada Evangélica.

REFERÊNCIAS

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BÍBLIA SAGRADA. Letra Grande. Trad. João Ferreira de Almeida. Nova Almeida
Atualizada. 3ª ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.

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2019. Disponível em: https://leonardoboff.org/2019/03/25/a-blasfemia-de-jair-bolsonaro-que-
deus-acima-de-todos Acesso em: 20 julho 2022.

BOLSONARO, Jair Messias. O caminho da prosperidade: proposta de Plano de Governo.


[S. l.]: [BOLSONARO 2018], 2018. Disponível em:
https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/28000061
4517/proposta_1534284632231.pdf. Acesso em: 26 jul. 2022.

CUNHA, Magali. A hegemonia pentecostal no Brasil: como os evangélicos pentecostais


passaram a dominar importantes espaços na política, no mercado e nas mídias. Cult: revista
brasileira de cultura, São Paulo, v. 22, n. 252, p. 24-27, dez. 2019.

LEVITSKY, Steven- ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro:


Zahar, 2018.

102
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
SESSÃO 1 - RELIGIÃO E CONSERVADORISMOS

FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E A PROPAGANDA POLÍTICA


EXTREMISTA DIGITAL: UMA ANÁLISE SOBRE O IMPACTO DO
CONSERVADORISMO NAS MÍDIAS SOCIAIS

Thyffane Tayana Martins da Rocha34

O presente resumo tem como objetivo a divulgação do processo de execução do


projeto de pesquisa “Perfeição de meios, depreciação de fins: propaganda política digital e
influenciadores da nova direita” tendo como metodologia o mapeamento e análise de
conteúdos distribuídos por influenciadores do que se pode entender como a nova direita
radical brasileira, por canais de comunicação e propagação tais como Youtube e Twitter,
buscando compreender os contextos sociohistóricos das dinâmicas que perpassam tais
processos. Para além do caráter empírico, buscou-se também traçar um panorama
epistemológico em relação à formação e à amplificação da atual “personalidade autoritária”
brasileira, usando como principal referencial teórico as contribuições feitas por Theodor W.
Adorno em seus estudos sobre a personalidade autoritária e sobre os principais aspectos do
novo radicalismo de direita.
No contexto atual, as dimensões que têm se destacado nas publicações da extrema
direita brasileira são o anticientificismo e o irracionalismo, disfarçados sob um
pseudointelectualismo. Os resultados alcançados com a pesquisa indicam que o caráter
destrutivo e niilista dessa propaganda ultradireitista revela profunda aversão à ideia de social
– o que é próprio da mentalidade neoliberal contemporânea, conforme argumenta Wendy
Brown.
Neste sentido, a estratégia do discurso consiste em usar aspectos religiosos como o
meio principal de difusão de ideias totalitárias. Grande parte da rigidez e estereotipia,
presentes na mentalidade neofascista, vem sendo construída pela instrumentalização dos
valores religiosos que estão sendo convertidos em mera violência contra os membros de
outros grupos sociais. Brown (2019) afirma que a defesa de opiniões preconceituosas
(racistas, homofóbicas e misóginas) está sendo inserida dentro do que ela chama de “esfera
pessoal protegida”, ou seja, sendo justificada como liberdade de expressão, especialmente

34
Graduanda em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará. Email: Thyffane.rocha@ifch.ufpa.br
103
dentro do campo religioso (“liberdade” de manifestar “crenças” em espaços públicos). Em um
dos vídeos analisados do canal “questione-se”, é possível a identificação do discurso vindo
desse ideal de liberdade, o influenciador em questão chega a questionar a nocividade de seu
conteúdo, alegando que “apenas apoia o governo de Jair Bolsonaro, a pátria, a moral cristã e a
família” (AMA, 2021).
Nota-se que atualmente, a religião não é mais uma parte inerente e fundamental da
vida dos sujeitos, foi relegada à esfera do lazer e do entretenimento, as pessoas vão na igreja
apenas nas horas vagas e não possuem crenças firmes em todos os conceitos de sua religião,
mas selecionam alguns dos dogmas a seu bel prazer enquanto rejeitam outros. Segundo
Adorno (2019), as crenças das pessoas perdem seu significado e se convertem em meras
fórmulas a serem seguidas por hábito, sem reflexão íntima nem verdade subjetiva, a religião
se torna assim convencionalizada. A religião convencionalizada é marcada principalmente
pela rigidez e intolerância, de acordo com o sociólogo alemão, e tende a se alinhar a posturas
etnocêntricas que manifestam aversão pelos indivíduos que têm ideais diferentes.
Outro aspecto central que o autor em questão denota é que a religião
convencionalizada é enxergada pelos indivíduos potencialmente fascistas de forma utilitária,
apenas como mantendora da ordem e status quo. Como no exemplo de um vídeo de Renato
Barros, onde o influenciador faz críticas à postura “progressista” do Papa Francisco, por este,
segundo ele, “não pregar os valores corretos do conservadorismo religioso” (PAPA, 2021).
Adorno (2019) postula que o indivíduo que enxerga na religião apenas algo a que deve
se submeter em vista de amenizar seus próprios excessos ou conseguir vantagens (prestígio na
sociedade moral) poderia facilmente trocar a religião por qualquer ordem de autoridade, como
por exemplo um governo ou líder fascista; o autor define o fascismo como uma secularização
das hierarquias religiosas. Sendo assim, portanto, acreditar na religião seletivamente,
rigidamente e enxergá-la de forma utilitária retiraria seu valor moral de ser e alimentaria um
certo cinismo que pode ser transformado em projeção nos inimigos, quando o indivíduo
enxerga no outro a materialização de sua própria descrença latente. Como pode ser
constatado no vídeo em que Valeria Bernardo, na tentativa de cooptar um maior número de
seguidores, afirma que seu canal seria uma forma de proteção e movimento contrário a
“perseguições satanistas, vindas de ferramentas como a mídia, a cultura, a música, a política,
as CPIs, os inquéritos ilegais e o futebol” (CASAGRANDE..., 2021). E no vídeo já citado de
Renato Barros, que acredita no que ele chama de “agenda globalista”, que tem o objetivo de
reconfigurar a sociedade com ideologias anti família e anticristã (AMA, 2021).
De acordo com Brown (2019), a tradição religiosa também se nega a aceitar a
104
diversidade social em nome de um projeto de homogeneização moral e acaba atuando como
uma grande perpetuadora de desigualdades de classe. A negação das diferenças sociais
(minorias) e a normalização de hierarquias sociais (sejam de gênero, raça ou classe) acabam
por tornar um cenário antidemocrático (marcado por tratamentos politicamente desiguais para
os cidadãos) bastante plausível e aceitável sob o ponto de vista de indivíduos que focam
apenas em sua própria vida concreta.
Além disso, a ideologia que legitima as desigualdades alavanca a força dos
insatisfeitos e apartados de benefícios sociais contra a democracia e por meios questionáveis.
Os influenciadores se aproveitavam do descontentamento (medos, ressentimentos) de porções
da população e evidenciam a construção da imagem do inimigo como ‘força do mal’, a ser
erradicada pelo movimento, essas forças do mal são nomeadas por grupos, notadamente
grupos com viés progressistas como o caso da comunidade LGBTQIA+, comunistas, radicais
de esquerda, intelectuais, cientistas, artistas, negros, mulheres e indígenas.
Comparando a situação política do Brasil atual em relação à situação política dos
Estados Unidos no período em que Adorno escreveu seus textos, onde a propaganda era feita
através do rádio e de panfletos e utilizavam-se, disfarçadamente, de aspectos religiosos para
destilarem suas mensagens manipuladoras e autoritárias, é possível notar que hoje, em tempos
de novas tecnologias de comunicação, os influenciadores de direita se fazem cada vez mais
onipresentes, através das redes sociais, mas ainda com as mesmas ideologias de antes.
Exemplos como os citados tornam evidente a falta de compromisso com o teor dos
conteúdos compartilhados e consequentemente com a qualidade do conteúdo oferecido, visto
que o que realmente importa são os números exponenciais, que são refletidos nas interações e
quantidade de vídeos publicados, além do número de inscritos nos canais, afinal estes são
monetizados, gerando retorno financeiro para os influenciadores, deixando claro que não há
uma base teórica consistente nesse tipo de discurso. Porém tem sido com esses ideais que a
democracia brasileira vem sendo deteriorada aos poucos, não apenas com atitudes
antidemocráticas do presidente e de seus apoiadores políticos e religiosos individualmente,
mas com a massiva ajuda dos meios digitais.
Diante do exposto, conclui-se que as propagandas políticas digitais de extrema direita
são usadas para fins de manipulação, o que resulta na perda de empatia, no aumento da
intolerância e da falta de informação - além de impactar negativamente a estrutura
democrática da sociedade brasileira.
É urgente a organização de um movimento em contraposição ao lema “Pátria acima de
tudo, Deus acima de todos” e incentivar manifestações políticas e sociais no desenvolvimento
mais pleno possível de um ideal igualitário da maioria, com a participação de todos aqueles
105
que, individualmente e/ou coletivamente sentem o ruir de seus direitos. Tornando-se
necessário o desenvolvimento de formas de desestimular a propagação desses ideais tão
perigosos para a democracia brasileira. Nesse sentido, a utilização de recursos digitais
contrários aos ideais reacionários amplamente divulgados nos vídeos em questão, é um
contraponto que precisa ser mais bem discutido por todos.
Adorno ressalta que o radicalismo de direita não é um mecanismo meramente
psicológico ou ideológico, ele tem bases políticas e econômicas concretas, e que se torna
necessário contrapor o uso da força da razão, tendo em vista que o futuro da nova direita
depende, em última instância, da resistência da esquerda.

Palavras-chaves: Conservadorismo. Fundamentalismo religioso. Propaganda política digital.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a Personalidade Autoritária. Trad. Virgínia Helena


Ferreira da Costa, Francisco Lopez Toledo Corrêa, Carlos Henrique Pissardo. São Paulo:
Editora UNESP, 2019.

ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo radicalismo de direita. Trad. Felipe Catalani.


São Paulo: Editora UNESP, 2020.

BROWN, Wendy L. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política


antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, outubro de 2019.

AMA A LIBERDADE? ENTÃO VEJA ESTE VIDEO! A TIRANIA GLOBAL


CHEGANDO. Canal: questione-se, Youtube, 2021. Disponível em:
https://youtu.be/AD4j8bHclSw. Acesso em: 8 ago. 2022.

PAPA FRANCISCO SE POSICIONA E CHOCA O MUNDO. Canal: questione-se, Youtube,


2021. Disponível em: https://youtu.be/0xZmluVJKqc. Acesso em: 8 ago. 2022.

CASAGRANDE – DEUS NÃO É TÃO BOM ASSIM. Canal: Valeria Bernardo - Deep State,
Youtube, 2021. Disponível em: https://youtu.be/8rJEZxAiBck. Acesso em: 8 ago. 2022.

106
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
SESSÃO 2 - RELIGIÃO, DIVERSIDADE E ARENAS PÚBLICAS

MEMÓRIAS SAGRADAS: A INVISIBILIZAÇÃO DA UMBANDA NOS


ESPAÇOS OFICIALIZADOS PELA PERSPECTIVA MUSEOLÓGICA E
PATRIMONIAL

Inia Bernadete Pantoja Costa35

Desde muito cedo somos bombardeados de informações por todos os lados, nosso
arcabouço cultural é formado por diversos meios, entretanto devemos perceber que nossas
referências são eurocêntricas, nossa educação é voltada para a cultura branca, entretanto este
cenário não reflete a realidade da população brasileira, e muito menos a população na região
amazônica.
Diante dessa realidade, percebendo a falta de representatividade das populações negras, e
principalmente de referências acerca da Umbanda dentro dos museus do centro histórico de
Belém e na Museologia a problematização em relação a estas memórias destes grupos,
também formadoresda cultura nacional é urgente.
Neste Trabalho, estudo a Tenda de Umbanda Luz do Oriente (TULO), localizada no
bairro da Cidade Nova III, na cidade de Ananindeua na região metropolitana de Belém, no
estado do Pará, em funcionamento desde 2002, sendo zelado pela mãe de Santo Matenta.
Foi realizado com visitas ao Terreiro citado, sendo realizada uma entrevista
semiestruturada com a mãe de Santo responsável, registros fotográficos e levantamento de
dados dentro dos Museuslocalizados no centro histórico da cidade de Belém.
O seguinte trabalho aborda a Umbanda e suas memórias tendo como ponto de partida a
TULO; os seus silenciamentos no contexto afro-amazônicos dentro dos museus, na
Museologia e como este patrimônio é retratado (ou não) nos espaços oficializados; as formas
de apagamentos sofridas pelos seus praticantes sobre o olhar da Museologia, refletindo acerca
do seu potencial museológico, tendo como ponto de partida a memória. As formas de
manutenção deste saber diante das violências sofridas pelos seus adeptos. Importante
salientar também a relevância social de estudos acerca da memória pois:

35
Bacharela em Museologia formada pela Universidade Federal do Pará. Mestranda do Programa de Pós-
graduação em Ciências do Patrimônio Cultural pela Universidade Federal do Pará. E-mail:
iniacosta@outlook.com
107
O direito à Memória é enquadrado no rol dos Direitos Difusos, que têm por
princípio atingir a todos os indivíduos da nação, coletivamente, sem distinção,
ainda que não seja reivindicado. Portanto, é um direito que não pode ser garantido
apenas a uma parcela da sociedade, mas a todos os indivíduos que a compõem.
(CUNHA, 2017. p. 78)

A partir desta afirmativa de Cunha, percebemos a urgência na problematização de


questões acerca da memória, principalmente nas memórias de práticas de religiões afro-
brasileira.
Diante do atual cenário brasileiro, percebemos que se torna cada vez mais urgente as
discussões sobre grupos historicamente silenciados, como os praticantes de religiões
historicamente silenciadas, como é o caso da Umbanda. A problematização de como essas
memórias são retratadas, como seus adeptos lidam com elas, como uma prática com
referências indígenas e negras resiste na contemporaneidade diante de diversas pressões e
tensões sociais.
Em um país o qual mesmo sua maioria sendo negra, a representatividade desta
população em diversas áreas é ínfima, faz-se necessário ações afirmativas em relação a esta
demanda. Importante para promover o acesso à história, e às culturas negras e indígenas,
visando valorizar e reconhecer suas práticas.
Tendo em vista que as questões raciais no Brasil ainda precisam ser muito discutidas,
não poderia deixar de ser problematizado o racismo estrutural em nossa sociedade e como ele
se apresenta dentro dos espaços oficializados, e como a falta de representatividade negra
reflete o racismo.
A oralidade negra durante muito tempo foi excluída pela comunidade intelectual, antes
mesmo de ser entendida. Foi vista como uma coisa e não como relatos relevantes do povo.
Esta ideia equivocada é consequência de preconceitos com as classes mais baixas, pois para a
academia fontes orais apresentam a tendência de distorções, entretanto fontes escritas estão
passíveis de sofrerem com as mesmas distorções ao mesmo nível que as fontes orais, mas
como a escrita possui a chancela do domínio intelectual branco, sua veracidade é aceita mais
facilmente.
A não escuta da tradição oral é um reflexo da invizibilização da população negra e
pobre, a história oficial nos mostra quem protagoniza os fatos. O saber acadêmico, com sua
escrita rebuscada e geralmente de difícil entendimento até mesmo para os próprios
acadêmicos, afasta a comunidade além dos muros das Universidades. O academicismo por
parte de alguns professores/alunos é mais uma maneira de manter o conhecimento dentro da
academia, e não digo que não devemos buscar por referências ou escrever tecnicamente, mas
108
quando essa fala atingir pessoas que não são da área, devemos fazer uma linguagem acessível,
afinal o conhecimento acadêmico deveria chegar para todas as pessoas da sociedade e não
ficar restrito a uma elite intelectual.

Enquanto as memórias escritas de políticos ou de líderes dos trabalhadores são


usualmente creditadas até prova em contrário, elas são tão distantes de alguns
aspectos do evento que relatam como são muitas entrevistas históricas, e somente
escondem sua dependência ao tempo assumindo a forma imutável de um “texto”.
Por outro lado, narradores orais têm dentro de suas culturas certas ajudas para a
memória. Muitas histórias são contadas repetidas vezes ou discutidas com
membros da comunidade; a narrativa formalizada, mesmo a métrica, pode ajudar a
preservar uma versão textual de um evento (PORTELLI,1997, p. 33).

É preciso refletir que racismo vai muito além de ofensas diretas relacionadas a cor da
sua pele, pois é um sistema estruturado o qual nega explicita ou implicitamente diversos
direitos motivados pela sua raça. Vale salientar que o genocídio da população negra é real,
mesmo que não seja veiculado nas mesmas proporções que outras mortes, pois percebemos
uma comoção seletiva. Vidas negras não importam para o Estado Brasileiro, e o mesmo
contribui para serem ceifadas e a manutenção do silêncio acerca do assunto permanece.

Silenciamento e apagamento de memórias também são formas de genocídio, matar


uma cultura também é matar aos poucos seu povo, a morte simbólica e física é o que vem
acontecendo ao longo de décadas com as populações indígenas e negras, a invisibilização
destas culturas é comum em vários espaços, como por exemplo, nos museus.

O reconhecimento da invisibilidade, no âmbito dos museus e da museologia, das


questões étnico-raciais ou da sua visibilidade pelo lado negativo, voltado para
situações de escravidão e/ou submissão, tem sido tema de pesquisas e debates em
fóruns da área. No entanto, a explicitação da necessidade de aplicação de políticas
de ações afirmativas é um fato relativamente novo. Durante um longo período, foi
marcante a invisibilidade do negro na instituição museu, responsável oficialmente
pelos registros da memória e da história nacional, tanto no Brasil, como nos demais
países colonizados, porém os movimentos sociais lutaram para que as imagens dos
povos africanos e de seus descendentes, não fossem resumidas somente às
representações de um passado escravista, se assim, que sejam destacadas as lutas
contra o sistema (FREITAS,2005, p. 06)

Durante este trabalho foi nítido perceber a falta de representatividade de memórias


negras, e principalmente dentro do recorte acerca da religiosidade. Focando a invisibilização
da Umbanda tendo como ponto de partida a vivência de Mãe Matenta, zeladora da Tenda de
Umbanda Luz do Oriente, podemos perceber um pouco da dinâmica dentro do terreiro,
entender como ocorre a transmissão de conhecimento através da oralidade, sendo ferramenta
de resistência destas memórias silenciadas, as quais não encontramos nos espaços

109
oficializados ou quando encontramos sua representação, na maioria das vezes é feita de forma
estereotipada.
Dentro deste cenário os museus deveriam montar estratégias para a diminuição dessa
desigualdade em relação a representação negra. Entretanto, o que encontramos ainda na maior
parte dos casos, especialmente aqui em Belém, são narrativas as quais fortalecem estereótipos
que reduzem a população negra a escravidão e evidencia o colonizador branco, exaltando a
figura europeia como salvadora e omitindo todo o genocídio causado por eles.
Diante disto vimos como o racismo pode se manifestar de diversas formas pelo fato de
ser estrutural, e uma delas é no apagamento da representatividade negra na sociedade. Refletir
que o genocídio negro acontece com a morte do corpo e com o silêncio de nossas vozes e na
negação de nossa ancestralidade.

Palavras-chave: Memória. Umbanda. Patrimônio

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
CUNHA, Marcelo. Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e da
diásporanegra em exposições. Tese de doutorado em história – PUC-SP, 2006, p. 68-88.
CUNHA, Marcelo. Museus, MeMórias e culturas afro-brasileiras. Revista do Centro de
Pesquisa e Formação. Nº 5. 2017.
DE DEUS, Zélia Amador. O corpo negro como marca identitária na diáspora africana,
2011.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto história. São Paulo,
1997.
FREITAS, Joseania. Ações afirmativas museológicas no museu afro-brasileiro-UFBA: um
processo em construção. MAST Colloquia vol 12. Rio de Janeiro, 2010.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado.São Paulo: Perspectiva, 2017.
GRADA, Kilomba. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano, 2019.

110
GT 2 - RELIGIOSIDADES EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO
SESSÃO 2 - RELIGIÃO, DIVERSIDADE E ARENAS PÚBLICAS

O VALOR E A PERCEPÇÃO DA DIVERSIDADE DE PESSOAS


RELIGIOSAS E NÃO RELIGIOSAS36

Lucas Ramos da Cunha37

A pesquisa de iniciação científica tem mapeado os termos e as categorias utilizadas


por pessoas comuns quando estimuladas a pensar temas tido controversos no debate público
que envolvem a diversidade religiosa, política, sexual e racial brasileira. No contexto atual de
reconfiguração do secularismo, fortemente marcado pela renovada presença pública e política
das religiões, a pesquisa tem tentado apreender como o pluralismo religioso e a diversidade
étnica, racial e de gênero se fazem presentes no imaginário dos grupos pesquisados e como
são traduzidos na forma de frases, falas, argumentos e posicionamentos políticos. Os conflitos
inerentes à expansão da diversidade religiosa, a emergência de noções intolerantes acerca de
questões que envolvem minorias étnicas, religiosas e sexuais, tem sublinhado a cartografia do
imaginário pesquisado, nesta tentativa de mapear o lugar da diversidade em suas percepções e
valores.
O projeto temático apoiado pela FAPESP “Religião, Direito e Secularismo: a
reconfiguração do repertório cívico brasileiro” (2015/024975) produziu uma série de
entrevistas por meio da metodologia de “grupos focais” que sevem de material de
investigação para a presente pesquisa de iniciação cientifica. Realizadas no circuito que cobre
as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, as entrevistas trabalham as opiniões e
posicionamentos de pessoas comuns quanto a temas como “aborto”, “casamento
homoafetivo”, “cotas raciais”, políticas públicas como “bolsa família”, “política nacional” e
“violência urbana”. Na tentativa de aferir o peso das variáveis filiação religiosa, classe de
renda, idade, escolaridade e pertencimento político para as opiniões emitidas, a pesquisa tem
codificado as entrevistas no interior do software de análise de discurso ATLAS TI sob os

36
Pesquisa de iniciação científica financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Processo número 2022/03458-7. A quem agradeço o apoio. Sem ele, jamais poderia me dedicar exclusivamente
aos meus estudos ou ainda pensar em iniciar uma carreira acadêmica. Agradeço ainda a Paula Montero,
orientadora dessa pesquisa. As trocas e a confiança que de maneira frequente deposita na minha pessoa têm
tornado essa pesquisa cada vez mais possível.
37
Graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Email: ramoslucasdacunha@usp.br
111
códigos “Percepção de Autoridade”, “Percepção Ética – Família/Trabalho/Vida boa”,
“Percepção de Diversidade – Sexual/Étnica/Deficiência” e “Percepção de Estado”.
O mesmo projeto temático, concluído recentemente, demonstrou como o crescimento
demográfico e a expansão do poder político e social das organizações evangélicas e
pentecostais, acompanhados do declínio da influência católica, colocaram em xeque o “pacto
de laicidade” que vigorava, até então, na república brasileira, fundado na ideologia do
sincretismo e nas práticas de assimilação e inviabilização das diferenças mobilizadas pela
gramática da nação. O ideal pluralista de sociedade, idealizado pela Constituição de 1988,
constitui o pano de fundo normativo de um processo no qual as diferenças religiosas, raciais,
étnicas e de gênero começaram, ao mesmo tempo, a se constituir enquanto identidades
públicas e disputar reconhecimento e visibilidade social.
Alguns dos resultados do projeto demonstraram ainda que as dinâmicas políticas e
culturais que, no Brasil, desdobram-se no marco da nova Constituição são mais complexas e
vão muito além do problema da expansão evangélica, do declínio da hegemonia católica e do
problema do secularismo. Entendendo que o crescimento da população evangélica é parte de
uma transformação mais ampla e profunda da sociedade brasileira e das próprias organizações
religiosas, a presente pesquisa tem tentado mapear como pessoas religiosas e não religiosas
olham, a partir de suas experiências cotidianas, para a diversidade racial e de gênero e como
pensam a convivência das diferenças na vida social.
A “Constituição cidadã”, como ficou conhecida a Constituição de 1988, alterou o
modo histórico de regular as relações entre raças, etnias, sexos e religiões no seio da nação,
até então demarcadas, explicita e/ou implicitamente, na chave ideológica do assimilacionismo
sincrético e do secularismo de fundo cristão. O catolicismo funcionou, até muito
recentemente, como uma “religião civil” (CASANOVA, 1994) capaz de criar um solo comum
para a emergência e construção dos atores políticos e de organizar hierarquicamente as
diferenças no interior de uma nação imaginada (DROGEERS, 1987). Esse quadro, no entanto,
foi e vem sendo remodelado pelas profundas transformações enfrentadas, nas últimas
décadas, pela sociedade brasileira. Além disso, seus reflexos têm transparecido, de diferentes
formas, na experiência cotidiana e na construção da consciência de grupos e de indivíduos.
Isso porque o processo que vivencia o país é atravessado pelo dualismo existente entre a
produção de uma convivência comum das formas plurais e dialógicas de vida e a escalada de
disputas que, por vezes, traduzem-se em manifestações de intolerância (BURITY, 2008).

112
O visível declínio da hegemonia católica, contudo, vem sendo seguido pela crescente
visibilidade do fenômeno neopentecostal protestante, cuja conduta pragmática e prosélita, tem
ensejado ferrenhas disputas por conquista de espaços em diferentes esferas da sociedade. Essa
reconfiguração do plano religioso no país é expressa não só́ no aumento do número de
parlamentares declaradamente evangélicos, mas também na quantidade de canais e emissoras
de TV que veiculam programação de conteúdo religioso pentecostal. Acompanhado a esse
movimento, uma nova retorica incorporou-se ao novo paradigma de relacionamento com a
vida pública dos evangélicos. Se antes, entre a base de fiéis, a preocupação “mor” era com o
mundo espiritual e a conduta necessária para o alcance da salvação no pós-morte, agora os
holofotes da atenção se voltam para as possibilidades de ascensão econômica e social,
motivados pela retorica das “teorias da prosperidade”, vocalizadas reiteradamente por bispos
e pastores (MARIANO, 2014 [1999]). Em outras palavras, os principais pontos de atenção
dos grupos neopentecostais deixaram o plano espiritual, extramundano38, da experiência com
o sagrado, em um segundo plano, enquanto voltaram seus esforços nos últimos anos para as
formas de alcance e intervenção no campo material da realidade e das relações sociais.
Esse “avanço” neopentecostal sobre o espaço público, por meio das disputas já
citadas, não só produzem novas visibilidades como também se propõe formar e moldar
opinião no âmbito da sociedade como um todo (MONTERO; SILVA; SALES, 2018). O
processo de “publicização” do segmento tem evidenciado a mecânica desse fenômeno, uma
vez que é inegável a renovada presença de atores religiosos nos diferentes meios de
comunicação do país nos últimos anos. A escolha por tornar pública uma face até então
entendida como privada, é parte de um novo jeito de se “fazer religião” no país e ainda tem
revelado uma reorganização nas dinâmicas das instituições religiosas. Nesse novo “modo”,
produzir visibilidade pública é mais do que ampliar as chances de expansão de um público
religioso, é incidir e disputar a moral e os valores de toda uma nação, mesmo quando não
totalmente religiosa. Resta saber, e é o que se está́ em discussão nessa pesquisa, se o referente
religioso tem afetado de maneira decisiva a percepção que a pessoas têm da diversidade de
valores e condutas.
A crise atravessada, nos últimos 50 anos, pela igreja católica, está associada, em parte,
às dinâmicas de sucesso dos neopentecostais. A resistência por parte das lideranças católicas,

38
Os conceitos “intramundano” e “extramundano”, usados neste trabalho, tomaram o sentido proposto pelo
sociólogo Max Weber, no qual, o primeiro se refere a uma religiosidade mais racional onde a realidade material
do “mundo” é passível de intervenção e apropriação, enquanto o segundo diz respeito a moralidades religiosas
que se preservam na ideia de que “as coisas de Deus”, da relação com a espiritualidade e com o sagrado devem-
se manter distante das “coisas do Mundo”.
113
e a sua própria dificuldade em ocupar setores eficientes para a estratégia dos evangélicos,
como a mídia, ajuda a figurar algumas das razões do seu declínio. Além disso, a instituição
católica “cuja logica predominante é a da absorção hierarquizante das diferenças sob a égide
da unidade institucional, reproduzindo a supremacia dos estratos dirigentes” (SOARES, 2019,
pp, 96), apresentou-se frágil, dada as suas próprias condições, na busca pela ampliação de seu
quadro de padres e arcebispos, dificuldade esta não enfrentada por pentecostais na formação
de pastores e missionários. A chave, entretanto, sempre esteve na exploração das relações e
conquistas intramundanas, vistas como não possíveis entre as vertentes católicas – tradicional
e progressista, percursora das teorias da libertação -, mas que manuseadas com eficiência por
neopentecostais da “nova geração”. Do outro lado dessa ponte, na experiência cotidiana do
fieis, para onde os olhos dessa pesquisa se volta, têm sido de interesse perceber como a nova
dinâmica do plano religioso no país, da atividade publicitaria de conteúdo neopentecostal nas
mídias, das possibilidades do professar a esperança e de se posicionar diante das coisas
intramundanas, têm sido assimiladas na forma de valores por parte dos grupos entrevistados.
Ao consagrar o modelo de uma sociedade pluralista em seu preâmbulo, a Constituição
brasileira de 1988 ampliou o espaço para a ressonância de demandas pela emergência
paulatina de novas agendas políticas voltadas para as questões da diversidade, e,
correlatamente, de novos desenhos e ferramentas institucionais habilitados a implementá-los.
De forma paralela, o conjunto da sociedade tem experimentados o já́ descrito processo de
reorganização do campo religioso e social, no qual onde o tema da tolerância e da diversidade
se tornaram mais presentes. Essa reconfiguração tem suscitado novas formas de tensão e
conflitos de valores que se estendem para a experiência cotidiana e para a vida das famílias.
Por isso, essa investigação tem tratado de observar entre os grupos pesquisados, como essas
ambivalências morais se manifestam, seja na avaliação dos comportamentos percebidos como
desviantes, seja nas representações da vida social que os valores religiosos ensejam.
Essa pesquisa tem analisado, portanto, como e se, o paradigma pluralista ecoou no
plano das experiências cotidianas de distintos segmentos sociais em função de seus
pertencimentos em termos de renda, idade, religião, escolaridade e posição política. No
espírito proposto por Connolly (1995), tratamos de explorar os sentidos, o alcance e as
configurações das “imaginações pluralistas” presentes na experiência social quando ela exige
a convivência entre diferentes formas de ver o mundo. Por imaginações pluralistas entende-se
o conjunto de repertórios imagéticos e verbais à disposição a fim do estabelecimento de
interações comunicativas direcionadas a estabilizar situacionalmente relações de identidade

114
ou diferença intra e extra grupal. Em outras palavras, o peso de pertencimentos religiosos ou
condição material de renda e escolaridade, têm sido avaliados da maneira como se refletem
nas identidades e imaginações dos entrevistados tais como são expressas no decorrer de cada
entrevista em particular.
Em fase de desenvolvimento, a pesquisa tem como resultados preliminares a definição
dos códigos descritos acima para investigação do problema em questão. A codificação parcial
das entrevistas realizadas no âmbito da cidade de São Paulo e que se referem a pessoas
pertencentes às classes de renda D e E de faixa etária que cobre 44-55 anos, têm mostrado
que, a despeito da filiação religiosa ou da falta dela, a instituição “família” figura o ponto alto
de uma autoridade aparentemente inegociável. Questões entendidas como “públicas” como a
violência urbana e a desigualdade racial brasileira, só passam a ocupar tal posição em suas
percepções a medida que as relações cotidianas colocam esses temas em contato direto com
os próprios entrevistados. Os relacionamentos homoafetivos oferecem ameaça direta àquela
que entendida como autoridade primeira: a família. Por isso a necessidade de não os tolerar,
pelo menos não publicamente.
Parcialmente, podemos concluir que no imaginário até aqui analisado, o valor a
determinadas problemáticas públicas é conferido em vistas o grau de interação que os
entrevistados possuem com dado problema em suas experiências cotidianas. O pertencimento
a determinada classe de renda e as implicações que ele deriva, parece afetar de maneira
decisiva a maneira com a qual pessoas pensam o mundo e as relações que ele enseja. A
exposição à violência urbana coloca problemas como a criminalidade na ordem do dia quando
o assunto são as atribuições do Estado. Já a falta de relacionamento com os debates correntes
na academia e na mídia escrita acerca das relações raciais, coloca tal problemática como
secundária numa agenda estatal. A instituição ‘família”, aparentemente presente de maneira
onipresente na experiência dos entrevistados, é autoridade suprema cujas atribuições
extrapolam os próprios poderes do Estado. A diversidade sexual parece ocupar um lugar de
desafeto justamente porque a amaça. Categorias religiosas, como a passagem bíblica de “adão
e eva”, são recorrentemente mobilizadas para justificar tais posicionamentos. O único
entrevistado do grupo até aqui analisado que declara não pertencer a qualquer religião
demonstrou percepções próximas, quando não iguais, daqueles declaradamente cristãos. O
que confirmaria a literatura que aponta para a eficiência neopentecostal no que se refere à
incidência dos valores religiosos na adoção de determinados imaginários por parte também de
pessoas que não mantêm vínculos formais com instituições pentecostais.

115
Palavras-chaves: Diversidade. Neopentecostais. Intolerância. Imaginário.

REFERÊNCIAS

BURITY, Joanildo Albuquerque. Religião, Politica e Cultura. São Paulo: Tempo Social
[online]. 2008, v. 20, n. 2, pp. 83-113.
CASANOVA, Jose. Public Religions in the Modern World. Chicago, The University of
Chicago Press, 1994
CONNOLLY, William. The Ethos of Pluralization. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1995
DROGEERS, André́ . A religiosidade mínima brasileira. Religião & Sociedade, n. 14 v 02,
pp. 62-86. 1987
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São
Paulo: Edições Loyola, 2014 (1999).
MONTERO, Paula, SILVA, Aramis Luis e SALES, Lilian. Fazer Religião em Público:
encenações religiosas e influência pública. Horizontes Antropológicos [online]. 2018, v. 24,
n. 52, pp. 131-164.
SOARES, Luiz Eduardo. Revoluções no Campo Religioso. São Paulo: Novos Estudo
CEBRAP, v. 38, n 01, pp. 85 – 107. 2019.

116
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO

GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E


IDENTIDADES: POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS,
QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO

COORDENADORES:

Me. Ana Manoela Primo dos Santos Soares (UFPA)

Dr. David Júnior de Souza Silva (UNIFAP)

Me. Ravena Araújo Paiva (UFPA)

Dr. Tadeu Lopes Machado (UNIFAP)

117
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 3

APRESENTAÇÃO

Ana Manoela Primo dos Santos Soares39


David Júnior de Souza Silva40
Ravena Araújo Paiva 41
Tadeu Lopes Machado 42

Um dos objetivos do GT 3 é pensar a relação entre os territórios tradicionais dentro da


região amazônica na interface com conflitos socioambientais gerados por projetos de
expansão capitalista. Historicamente a Amazônia brasileira é alvo de inúmeras investidas
nacionais e internacionais numa tentativa explícita de apropriação de suas terras e riquezas.
Dentro desse projeto de dominação está embutida a ideia de que a Amazônia é um território
com grandes potencialidades, sobretudo, em termos de matéria-prima, mas que precisa ser
necessariamente desenvolvido para sair do seu lugar de atraso (PORTO GONÇALVES,
2008). A implantação desses projetos de desenvolvimento provoca o confronto entre lógicas
diferenciadas de apropriação e percepção do território, como dos grupos empresariais
executores desses projetos e as comunidades impactadas, resvalando para a incidência de
conflitos.
A sessão 1 intitulada Conflitos, apropriações da natureza e desigualdade contou
com trabalhos que refletiram sobre as dinâmicas de dominação de territórios tradicionais e a
consequente ação de defesa e resistência empreendidas pelos povos que vivem nesses lugares.
Das pesquisas apresentadas nesta sessão apenas duas foram encaminhadas para publicação.
O trabalho A questão hídrica nas comunidades tradicionais e nas cidades existentes
na foz do Rio Amazonas faz uma reflexão, a partir da ecologia política, sobre os sentidos,
disputas e apropriações da água. Partindo da compreensão que a água é também um território,
os autores refletem sobre os sentidos atribuídos a partir de lugares sociais distintos, como os
das comunidades tradicionais que a compreendem também como elemento da sociabilidade e

39
Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal
do Pará. E-mail: anamanoelakaripuna@gmail.com
40
Docente da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Doutorado em Geografia – UFG. E-mail:
david@unifap.br
41
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará,
Mestra em Sociologia – UFRGS. E-mail: ravesociologia@gmail.com
42
Docente Adjunto da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Doutorado em Sociologia e Antropologia –
UFPA. E-mail: tlopesm@hotmail.com
118
de grupos promotores de ações desenvolvimentistas que enxergam a água como recurso a ser
explorado. O trabalho chama a atenção ainda para as assimetrias de poder na relação com esse
bem comum, pontuando que as consequências do modelo de desenvolvimento em voga geram
consequências ambientais que são desigualmente distribuídas: os grupos mais vulneráveis são
os principais atingidos.
O texto Mudanças legislativas e retrocessos socioambientais: Uma análise sobre a lei
da biodiversidade e o conhecimento tradicional associado traz a contribuição do Direito para
pensar as dinâmicas de poder envolvendo o conhecimento tradicional de povos e
comunidades tradicionais a partir da execução da Lei da Biodiversidade (Lei 13.123/2015),
evidenciando que esse instrumento jurídico não dá conta da dinamicidade do conhecimento
tradicional, bem como afasta os povos das tomadas de decisões por divergir sobre as
diretrizes internacionais do consentimento prévio informado.
Outro objetivo do GT 3 é pensar as diversas possibilidades e consequências
relacionadas aos conflitos e as mobilizações advindas da ocupação e constituição dos
territórios Amazônicos por comunidades indígenas e quilombolas. Refletindo-se sobre a
garantia da terra e as formas de existência e resistências destas populações organizou-se a
sessão 2, intitulada Territórios, conflitos e ação política. Contando com trabalhos escritos por
pesquisadores quilombolas e pesquisadores aliados dos povos originários.
O texto Comunidades quilombolas, reconhecimento e titulação dos territórios após a
promulgação da Constituição Federal de 1988, é realizada por pesquisador quilombola, que
traz reflexões sobre como os direitos a propriedade definitiva da terra são negadas as
comunidades de quilombo e como estas estão reivindicando seus direitos em reparação a
segregação e marginalização que foram submetidas. Analisando-se ações judiciais relativas
aos processos de reconhecimento, certificação e titulação das propriedades definitivas dos
territórios destas comunidades. Assim como, analisasse avanços e perspectivas, quanto aos
desdobramentos das decisões do Superior Tribunal Federal (STF) sobre a ADI 3239/2004.
A pesquisa Ancestralidade no processo de titulação do território quilombola e no
reconhecimento do ser negro-índio é realizada por autora quilombola, que apresenta
memórias materiais e imateriais sobre as raízes indígena e negra dos moradores de seu
território de origem, o quilombo Itamoari, em Cachoeira do Piriá, estado do Pará, Brasil. Tais
memórias são tecidas e acionadas a partir de relações com familiares próximos, como seu pai
Manoel Caldas dos Carmo e sua avó Pituca. Apresentando também, a partir de documentos a
história de Itamoari.

119
O texto Interação executivo-judiciário nos processos decisórios de demarcação de
terras indígenas no Pará trata-se de uma pesquisa que tem por objetivo analisar as formas de
interação entre o Poder Executivo Federal e o STF em relação aos procedimentos de
demarcação de terras indígenas no estado do Pará entre os anos de 2000 e 2022.
No trabalho Conflitos pela Terra no Alto Rio Guamá os autores analisaram conflitos
vivenciados pelos Tembé-Tenetehara na Terra Indígena Alto Rio Guamá no estado do Pará.
Conflitos estes, contra colonos, fazendeiros e posseiros, em defesa de seu território. Os
pesquisadores a partir de uma metodologia socioantropológica defendem que os conflitos
territoriais podem ser compreendidos como uma modalidade de organização que visa
assegurar o acesso à terra. Completando que, também são por meio dos conflitos que os povos
indígenas vêm garantido a sua existência como povos etnicamente diferenciados.
Na pesquisa A guerra contra os Mebêngôkre-Kayapó – Reflexões sobre a guerra na
Terra Indígena Las Casas, os autores apresentaram análises em torno da problemática da
guerra contra os Mebêngôkre-Kayapó que habitam a T.I. Las Casas, na área Tocantins-Xingu,
na região Sudeste do estado Pará. Os pesquisadores discutiram sobre como a guerra é algo
inerente a este povo originário e como os conflitos ocasionados pelos não indígenas
impactaram sua história da colonização à neocolonização da região Amazônica.
Na pesquisa Impactos de la colonización territorial sobre el pueblo Pijao del Tolima,
Colombia (Siglos XIX y XX) o autor trata sobre como este povo indígena e seus territórios
foram afetados pela colonização e pelo pensamento capitalista moderno. Discutindo-se as
resistências e as concepções que os Pijao têm sobre o significado de território.
A terceira sessão de discussões do GT 3 se ateve ao debate sobre as dinâmicas
vivenciadas por povos e comunidades tradicionais em interface com as temáticas de gênero,
infância, juventude e educação. Esse conjunto de elementos trabalhados no decorrer das
discussões trouxe questões sobre problemáticas, conquistas, direitos e reflexões sobre o
protagonismo feminino em comunidades tradicionais.
No trabalho intitulado As feiras agroecológicas e o protagonismo das mulheres da
Floresta Nacional de Tefé as autoras analisam duas questões centrais: a importância da
comercialização de produtos agroecológicos e sustentáveis, e a organização autônoma das
“mulheres da floresta” em suas feiras como parte da conquista de sua independência
financeira. A partir desses elementos, as autoras defendem a importância da relação entre a
agroecologia e o feminismo, como formas de fortalecer a sustentabilidade e os saberes

120
tradicionais, bem como apontam uma saída para a redução da miséria e pobreza a partir da
aliança solidária entre as mulheres da Flona.
Os autores do trabalho Atuação de uma liderança feminina ribeirinha na defesa
territorial e ambiental de sua comunidade: comunidade Nova Esperança, Rio Araguari,
Amapá, Amazônia Setentrional Brasileira, dão ênfase na atuação de uma mulher, liderança
comunitária, em sua luta pelo direito territorial e ambiental. Desse modo, é tecida uma
discussão em torno da ecologia política, do meio ambiente e do gênero, fazendo um diálogo
entre o ecofeminismo e a relação entre natureza e mulher. Desse modo, é apontada
importância do protagonismo feminino na reivindicação e conquista de direitos por
comunidades tradicionais e ribeirinhas.
Já o trabalho intitulado A relação corpo-território: uma análise a partir do 2º
Encontro Nacional das Mulheres Atingidas por Barragens, os autores apontam os
movimentos de resistência e insurgentes que foram desencadeados com a execução de grades
projetos na Amazônia, principalmente as barragens. Dentro desses movimentos as autoras
destacam o papel fundamental das mulheres, aprofundando uma análise sobre a relação
corpórea que o universo feminino constrói com o seu território.
O texto As “brigonas” do Pirocaba: protagonismo de mulheres, grandes projetos e
ação pública em uma comunidade da Amazônia traz uma análise que busca compreender o
envolvimento de mulheres na luta e em defesa do território na comunidade de Pirocaba,
município de Abaetetuba-PA. O trabalho conta com uma reflexão sobre as motivações para
que tais mulheres assumissem o papel de protagonistas na reivindicação por seus direitos.
Em As identidades coletivas e seu poder de mobilização: uma experiência do médio
Mearim maranhense, a autora provoca uma reflexão sobre a realidade das quebradeiras de
coco babaçu no Mearim maranhense, a relação das mulheres nas organizações representativas
e as mobilizações presentes para garantir seus direitos à terra, ao plantio, aos “babaçuais
livres”. A partir de descrições de identidades coletivas, a autora transmite em seu texto uma
complexa rede de cooperação e de resistência.
O trabalho Por uma outra escola possível na floresta: saberes, corporalidade e
experiências no brincar das crianças do Igapó-Açu-AM a autora coloca em discussão uma
reflexão sobre o brincar e a construção de conhecimento das crianças de Igapó-Açu, no
Estado do Amazonas. Para tanto, a autora utiliza a possibilidade da produção de
conhecimento em perspectiva com a corporalidade, entendendo o brincar como um verdadeiro
ato de conhecimento e transformação de si próprio.

121
Por último, nesta sessão do GT3, o texto Escola e reprodução social de populações
tradicionais amazônicas conduz um entendimento sobre o papel da escola nas comunidades
tradicionais. A reflexão dos autores vai no sentido de perceber quais as contribuições,
desafios e perspectiva das escolas implantadas em contextos tradicionais, sendo que é uma
instituição do Estado e, em muitos casos, se constitui como uma aliada de projetos que não
esboçam a necessidade da comunidade onde está instalada. Ao final, os autores refletem:
como construir uma escola que esteja à serviço da comunidade em que atua?
O último objetivo do GT 3 foi pensar a relação entre lutas por direitos, políticas
públicas e territorialidades, debate realizado em sua quarta sessão. A colonização passada e
contemporânea tem gerado fragmentação de territórios indígenas e mudanças profundas e
traumáticas em suas territorialidades e modos de vida. O ativismo político indígena recente
tem construído e realizado diferentes estratégias para abrandar os danos já causados, proteger-
se de novas violências e reconstruir dimensões da vida social atacadas pela colonização. Nesta
sessão do GT, foram apresentados trabalhados que escrutinam formas coloniais de
desestruturação de territorialidade e modo de vida indígena, e trabalhos que elaboram
estratégias de enfrentamento a estes efeitos, como a elaboração comunitária de cartografias
sociais, a elaboração de podcasts para comunicação da visão de mundo e demandas políticas
de comunidades tradicionais, e a defesa do direito à educação superior para comunidades
tradicionais.
O trabalho que abre esta seção intitula-se A luta pela Mãe-Terra e pelos direitos
humanos: Uma análise da ação política indígena na Jornada Sangue Indígena Nenhuma
Gota a Mais (2019), é uma reflexão sobre o conteúdo do podcast intitulado Jornada Sangue
Indígena: Nenhuma Gota a Mais (2019), produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB) em parceria com a Mídia NINJA. Em seus discursos, as lideranças indígenas
participantes do podcast tecem críticas ao sistema econômico capitalista, apontado como o
principal responsável pelo genocídio dos povos originários e pela crise climática. O texto
destaca a especificidade de atuação política indígena, marcada pelo equilíbrio entre a
dimensão burocrático-jurídica da estrutura estatal moderna e o caráter mitológico-narrativo da
cosmopolítica indígena.
O segundo trabalho apresentado intitula-se A cartografia social na aldeia Açaizal do
povo Munduruku a serviço do bem viver e da educação escolar indígena, e discorre sobre a
elaboração cartográfica da Aldeia Açaizal, localizada no município de Santarém, Pará,
baseada na metodologia da pesquisa-ação participativa. A cartografia foi realizada mediante

122
produção de croquis desenhados pelos moradores da aldeia e especialmente pelos alunos da
Escola Indígena Dom Pedro II. O resultado foi a elaboração do Atlas Social da Aldeia
Açaizal, uma ferramenta educacional destinada a ser utilizada na educação escolar indígena,
em que os Munduruku expressaram elementos de seu modo de vida, visão de mundo e
território, bem como denunciaram conflitos existentes com monocultura e latifúndio.
O terceiro trabalho O trinômio FAB/Missão/Índio no Tumucumaque e a constituição
de novas territorialidades em território Yana, em meados do século XX, trata de
transformações no modo de vida e na territorialidade do povo indígena Yana, ocasionadas
pela imposição da Força Aérea Brasileira (FAB) e da missão Franciscana em seu território a
partir da década de 1950. Os Yanas são antepassados comuns dos atuais povos indígenas que
vivem no Parque do Tumucumaque e Paru D’Este. O Projeto Trinômio FAB/Missão/Índio foi
uma iniciativa que envolveu os militares da Força Aérea Brasileira e missionários
franciscanos na construção de um posto militar na fronteira do Brasil com as Guianas. Os
indígenas foram recrutados como mão-de-obra para a construção, em troca de acesso a saúde
e educação oferecida pelos franciscanos. Como se pode imaginar, a intervenção sobre
territorialidade e modo de vida dos indígenas foi gigantesca.
O penúltimo trabalho desta sessão, intitulado Racismo no quilombo? Demandas e
desafios estruturais no interior da Amazônia paraense, reflete sobre como o racismo
estrutural interfere na vida cotidiana do quilombo Joana Peres, localizado no Município de
Baião, Pará, produzindo desigualdades relacionais e episódios de discriminação. Uma das
explicações levantadas pelo autor é o fato de a comunidade ser formada por pessoas de pele
negra e de pele branca. As pessoas de pele branca não vivenciam na pele o racismo, e como
consequência disso não valorizam as expressões culturais negras do quilombo. Expressões
como o Carimbó e o Samba de Cacete, por conta disso, estão desaparecendo do quilombo.
Finalizando esta seção, o trabalho Desafios e resistência no processo formativo de
estudantes indígenas da Universidade Federal do Pará desde olhar da Associação dos Povos
Indígenas Estudantes na Universidade Federal do Pará, é dedicado a realizar uma reflexão
sobre a atuação da APYEUFPA. Os autores demonstram como a APYEUFPA tem diálogo
direto com a administração geral da universidade e atua para garantir a permanência dos
estudantes indígenas e lutando contra o racismo. A associação organiza também eventos onde
os indígenas partilham realidades de suas aldeias e as maneiras de produzir ciência na
universidade a partir de sua diversidade cultural.

123
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
PRIMEIRO TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

RACISMO NO QUILOMBO? DEMANDAS E DESAFIOS


ESTRUTURAIS NO INTERIOR DA AMAZÔNIA PARAENSE

Leônidas Ribeiro Pixuna Neto43

Neste ensaio, busco discutir algumas problemáticas socioculturais que venho


identificando/vivenciando na minha experiência enquanto quilombola e pesquisador
antropólogo do Museu Goeldi, dentro do quilombo Joana Peres, Município de Baião, situado
na região do Baixo Tocantins, Amazônia Paraense. A proposta geral é refletir sobre como o
contínuo apagamento de aspectos da cultura negra nas manifestações artísticas, culturais e
educacionais, é efeito do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019). Assim, este trabalho busca
identificar e debater especificamente como o racismo cotidiano (KILOMBA, 2009) se articula
na vida do quilombo, produzindo desigualdades socioculturais. Para realizar a reflexão,
apresento alguns dados preliminares gerados na pesquisa, com base em narrativas produzidas
no quilombo. Com base em memórias coletivas afrodiaspóricas, que situam os nossos
tempos-espaços enquanto sujeitos quilombolas, realizo a crítica inicial sobre entendimentos e
significados em disputa que evidenciam a problemática do racismo na comunidade em foco.
Historicamente, Baião foi colonizado pelo Português Antônio Baião, em 17 de maio
de 1831. Tendo a maioria das comunidades reconhecidas quilombolas, Baião abriga a
comunidade quilombola Joana Peres, segundo II distrito do Município, e uma de suas
primeiras comunidades. Esse distrito foi colonizado pela portuguesa Joana Pires44, tendo, na
mesma década, recebido este nome em homenagem à colonizadora, que ao longo de sua
jornada de colonização recebeu grande posse de propriedade territorial do governo da
província do Grão-Pará e navegou para essa região tocantina, trazendo em seus navios grupos
de africanos escravizados de outros estados para ser mão-de-obra na exploração dos recursos
naturais, vegetais e minerais desta região (RAMOS, 2009).

43
Mestrando em Diversidade Sociocultural – PPGDS pelo (Museu Paraense Emilio Goeldi/ CAPES), Graduado
em Ciências Sociais (UFPA). E-mail: pixunaneto@gmail.com
44
É o nome da Comunidade descrito como Joana Peres, retirado a letra “i” do nome da colonizadora, incluído a
letra “e” em Peres pelos moradores.
124
A caça e a pesca foram às bases econômicas fundamentais para manter a subsistência
dos negros. Nesse processo, surgiram os quilombos. Geralmente, eles eram construídos
distantes das fazendas por estratégia de fuga, para não serem capturados pelos feitores,
sempre com articulação entre negros escravizados, indígenas, roceiros e taberneiros. Após
anos de resistência, e com o processo de abolição, os negros começaram a organizar suas
comunidades e lutar contra a estrutura do racismo e valorizar suas identidades étnico-raciais,
assim como, a busca por titulações dos territórios enquanto quilombo. A partir desse
momento, os afro-brasileiros potencializaram lutas e movimentos sociais pela garantia dos
direitos e a preservação das religiosidades, crenças e culturas afro-brasileiras. Nesse sentido, o
movimento negro é um marco importante pela busca da cidadania e participação na vida
pública (GOMES, 2015).
Conforme a literatura histórica e socioantropológica evidenciam, as comunidades
quilombolas constituem fortes espaços de resistência diante de diferentes violências racistas
ao longo da história do Brasil, desde a chegada de pessoas africanas escravizadas. O efeito
dessa história se manifesta até os dias de hoje, em pleno século XXI, gerando uma série de
problemáticas que precisam ser enfrentadas (SANTOS, 2015). Nesse sentido, o espaço da
Comunidade constitui um importante contexto de circulação de discursos e práticas que
colocam em pauta a questão racial. Entretanto, apesar da importância e dos avanços do debate
empreendido pelo movimento negro no Brasil, o que tenho observado como morador e
pesquisador do quilombo Joana Peres é um retrocesso em relação às conquistas do
movimento negro brasileiro. Assim como em muitos contextos brasileiros, a aceitação da
comunidade Joana Peres como quilombola não foi algo simples. Após essa conquista, outros
desafios têm sido colocados, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, e início do
século XXI, práticas culturais tradicionais afro-brasileiras têm cada vez mais sido esquecidas
e colocadas de lado em Joana Peres.
Uma das hipóteses que justificam essa realidade é o fato de a comunidade quilombola
ser formada por pessoas de cor branca e de cor preta. O fato de grupos terem a pele branca,
possivelmente, os levam a não vivenciar o racismo, e, portanto, a não perceberem
experiências de racismo e a não valorizarem a cultura negra no quilombo Joana Peres. Esse
processo que não é sem motivo e que suspeito se tratar de formas de manifestações do
racismo estrutural na comunidade, me leva a questionar, por exemplo, como aspectos da
cultura e identidade negra como o Samba de Cacete e prática do Carimbó foram
desaparecendo deste quilombo. Certamente, migrações de pessoas brancas, motivadas pelas

125
políticas desenvolvimentistas de grandes projetos como a construção de barragens e a abertura
da BR 422 que interliga Cametá a Tucuruí, dentro da espacialidade territorial de Joana Peres,
referente às décadas de 70 e 80, geraram impacto na cultura local.
Com esses deslocamentos de grupos brancos, outras culturas foram impostas e sendo
desenvolvidas nos quilombos mediante as práticas de religiões evangélicas, católicas e outros
movimentos socioculturais. Esse avanço de outras culturas de matriz européia branca sobre
espaços quilombolas tem gerado de modo crescente o que Grada Kilomba (2019) chama de
racismo cotidiano. Esse racismo, que se dá nas práticas cotidianas mais capilares, tem
desencadeado exclusões e mascarado as desigualdades raciais, as quais mantém o branco em
posições de dominação social em detrimento do negro, nas posições inferiores, sendo
reproduzidos esses papeis sociais no contexto do quilombo (SENA, SILVA, SOUZA, 2021).
Por esse motivo, o presente estudo busca entender como o racismo se faz presente e se
perpetua no contexto do quilombo Joana Peres.
Conforme menciono ao longo do ensaio, muitas das problemáticas que atravessam
minha comunidade são causadas pelos diferentes racismos que a permeiam. Atualmente,
muitos autores têm chamado esses racismos sob um nome geral, o conhecido racismo
estrutural. Embora meu enfoque seja no racismo cotidiano, acho necessário pontuar algumas
questões sobre os racismos que estruturam diferentes esferas da sociedade brasileira.
Dessa forma, entendo que o racismo estrutural é descrito como efeitos macrossociais
de discriminações raciais que colocam os negros (as) sob aspectos de marginalizações e
estigmas a partir da cor, religiões, aparências e forjada na subjetividade branca, que reproduz
exclusões de pessoas negras nas estruturas sociais, políticas e culturais. No racismo
institucional, podemos observar que implica em classificações que operam nas reproduções
das desigualdades raciais no controle das instituições por sujeitos brancos com suas regras,
preferências e valores da branquidade. Assim, a prática de racismo nas instituições ocorre
como forma de biopolítica no controle dos corpos negros, como processo de exclusões e
segregações raciais. O racismo cotidiano ocorre na construção da diferença racial, através de
gestos, depreciações, narrativas, comportamentos, olhares e discursos explícitos e implícitos
que colocam os negros sob condições de inferioridades, desonra, incapacidades e
comparações animalistas. Racismo ambiental é um conceito utilizado para descrever a
injustiça ambiental em contexto negro e indígena. Refere-se a como comunidades
quilombolas, negras e indígenas, que são sistematicamente submetidas a situações de
degradações ambientais, sociais, culturais e territoriais.

126
A presença de religiões evangélicas e católicas impactou nos valores da cultura negra,
reproduzindo narrativas e marginalizações de crenças e credos afro-brasileiros. No quilombo,
existem apenas religiões de matriz judaico-cristã. Assim, a cultura branca dominante foi
imposta aos quilombolas, os quais internalizaram essas crenças e práticas religiosas
(SANTOS, 2015). Essas instituições mantiveram-se presentes no território de Joana Peres
contribuindo forçosamente para negação das culturas negras, assim, as tradições culturais dos
quilombolas são apenas lembradas por lideranças de mais idade, refletindo no processo de
esquecimento social. Argumento que isso faz parte de uma necromemória (CAMILO, 2020),
quando vemos e deixamos morrer nossas histórias e culturas afro-brasileiras por uma política
de embranquecimento da população brasileira.
A pesquisa, de natureza etnográfica, se baseia na estratégia da observação
participante, aliada ao diário de campo, tendo como enfoque alguns colaboradores no
quilombo Joana Peres. Ao compreender meu lugar social de homem negro, quilombola, e
intelectual orgânico e morador do Quilombo Joana Peres, tenho também atuado na
perspectiva da participação observante (PERUZZO, 2017). A Participação Observante
implica um compromisso político com os sujeitos envolvidos na investigação, tendo em vista
as partilhas públicas encenadas no decorrer do estudo. Assim, no contexto do Quilombo,
tenho estabelecido momentos de diálogos abertos em experiências cotidianas, com base nas
quais produzo meus diários de campo.
Nessa etapa da pesquisa, ainda tenho realizado poucas entrevistas, dando atenção à
observação participante, aliada a participação observante. Com os resultados preliminares,
destaco alguns índices que apontam como a experiência racial é construída e significada no
Quilombo Joana Peres. Por exemplo, falas que caracterizam os sujeitos do quilombo como
moreno/pardo, “não é tão preto assim”, constituem indícios de alguns tipos de racismo
presentes nas falas de moradores brancos e negros da comunidade. Outro exemplo pontual,
mas muito importante, é como alguns moradores do quilombo dão significado à palavra
quilombo, relacionando-a a algo diabólico. Interpreto que essa noção de “diabólico” decorre
de discursos e entendimentos que partem das igrejas que constituem a região. Não temos, por
exemplo, nenhum culto religioso de matriz africana ou indígena em nosso quilombo. Outro
índice de racismo cotidiano que compareceu neste momento inicial do estudo, foi o modo
depreciativo como a mulher e menina negra têm sido tratadas em relação aos seus corpos,
sobretudo, o cabelo crespo, quando são chamadas de “cabelo seco” e outros modos
depreciativos e que se associam a “feio”, “sujo” e “duro”, causando danos psicológicos nas

127
mulheres quilombolas. Nesse sentido, na sociedade brasileira se impõe uma cultura do cabelo
liso, onde se valoriza os aspectos da branquidade e a estética eurocêntrica, os quais se
reproduzem no quilombo através das novelas, escolas e redes sociais. Além disso, no futebol
também tenho observado o racismo cooptando sutilmente práticas que se baseiam em piadas e
brincadeiras que envolvem comparações da cor da pele e aspectos físicos de pessoas negras.
Embora, o contexto da pesquisa seja no lugar de resistência como o quilombo, o racismo
permanece como tecnologia de poder estruturado pelas instituições que se fazem presente no
munícipio de Baião.
Tendo em vista, que a análise dos dados gerados em campo terá como base os
significados produzidos pelos sujeitos quilombolas envolvidos no estudo, esses dados iniciais
revelam como o racismo cotidiano, assim como outras formas de racismos, encontram nas
práticas discursivas de modos não apenas de nomear, mas de construir a realidade social local
com base na depreciação dos sujeitos negros quilombolas, impactando no apagamento de
nossas histórias, ancestralidades e valores afro-brasileiros.

Palavra-chave: Raça, Racismo, Quilombo, Relações Étnico-Raciais.

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128
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129
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SEGUNDO TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

DESAFIOS E RESISTÊNCIA NO PROCESSO FORMATIVO DE


ESTUDANTES INDÍGENAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
DESDE OLHAR DA ASSOCIAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
ESTUDANTES NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

Elaine Bruno Lima45


Antônio José Marinho Aguiar Neto46
Ignacio Gabriel San Martin Araya47

Brasil possui a maior diversidade sociocultural do mundo, segundo estudos realizados


pelo IBGE em 2010, são 274 idiomas pertencentes a 305 grupos étnicos. A história destes
povos tem sido marcada pela violência, a começar pelos processos de colonização ocorridos
no século XV, nos quais foi imposto um modelo de vida no qual a escravidão e a punição das
expressões culturais e movimentos de resistência levaram ao genocídio de uma população
crescente que chegou a mais de 5 milhões antes da chegada dos colonizadores (Brasil, 2002).
Até o século XX, as políticas públicas geradas pelos governos tinham um tom
assistencialista, visando impor um sistema religioso, o que levou a uma crise cultural e
socioeconômica, causando um grande massacre indígena e altas taxas de mortalidade devido a
doenças contagiosas (Brasil, 2002).
A Constituição Federal de 1988 é um marco no qual o Estado reconhece os plenos
direitos dos povos indígenas, dando lugar ao respeito e reconhecimento de sua organização
social, costumes, línguas, crenças e direitos territoriais.
O contexto da formação do Brasil se baseia nas disparidades socioeconômicas e na
concentração da renda nas mãos de poucos. O panorama de negros e indígenas tem sido
historicamente moldado por desigualdades que os colocam em condições de subsistência em
relação aos brancos. Iniciativas institucionais acompanhadas da participação de movimentos

45
Indígena Estudante no Curso de Graduação de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Integrante da Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Universidade Federal do Pará,
bblaine09@gmail.com
46
Indígena Estudante no curso de graduação em Comunicação Social- Jornalismo, Instituto de Letras e
Comunicação, Integrante da Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Universidade Federal do Pará,
netto.rionegro@gmail.com
47
Psicólogo, Estudante de Mestrado Antropologia e Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
i.sanmartin.araya@gmail.com
130
sociais foram necessárias para reduzir as discrepâncias na sociedade (BRAGA e MARINHO,
2022). Segundo Gabriel Braga e Denise Cardoso (2022), quando olhamos para a educação, os
reflexos das desigualdades sociais se refletem no acesso desproporcional ao ensino superior
por parte desses grupos.
Os intelectuais indígenas apontam para a necessidade de preparação dos povos
indígenas desde muito jovens dentro do campo político e do movimento indígena, onde a
educação é vista como uma ferramenta potencial para transformar o estado (MUNDURUKU,
2012; FERNANDES, 2018). Isto se deve à negligência do Estado no descumprimento dos
direitos indígenas garantidos na Constituição, além da reprodução de visões disseminadas na
esfera científica na sociedade brasileira que colocam os povos indígenas como sinônimo de
"atraso", sem cultura e com necessidade de inclusão na sociedade moderna (BRAGA e
CARDOSO, 2022, p. 364).
Gabriel Braga e Denise Cardoso (2022, p. 365) assinalam que o Movimento Indígena
começou nos anos 2000, o debate sobre a inclusão de estudantes indígenas no ensino superior
em cursos de graduação e pós-graduação. Destacando o surgimento de cotas etno-raciais
como meio de reparação histórica para estes grupos, que são vulneráveis às desigualdades
sociais, e que são cruciais para reverter a exclusão passada das populações negras e indígenas.
Para Edimar Fernandes (2018, p. 39), apesar de alguns pesquisadores realizarem
pesquisas sobre o tema do protagonismo indígena, "há poucos trabalhos produzidos sobre este
protagonismo na luta pelo acesso e permanência no ensino superior". Esta proposta de
pesquisa visa acrescentar aos estudos que buscam destacar o protagonismo dos estudantes
indígenas nas universidades federais, especificamente na UFPA.
Até 2012, quando foi promulgada a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), às ações
afirmativas não tinham regulamentação legal, o que significa que até aquele ano as
universidades tinham autonomia para implementar e escolher as ações utilizadas em suas
seleções (FERNANDES, 2018, p. 49). Enquanto isso, na Universidade Federal do Pará
(UFPA), a admissão de estudantes indígenas tornou-se efetiva através da Resolução nº
3689/2009 do Conselho Universitário, que foi implementada nos anos seguintes, 2010, e
garantiu a reserva de duas vagas em todos os cursos de graduação da instituição através de um
Processo Especial de Seleção - PSE (BRAGA, NETO e CARDOSO, 2022, p. 99).
Em diferentes contextos, as ações afirmativas assumiram formas tais como: ações
voluntárias, ações obrigatórias ou uma estratégia mista; programas governamentais ou
privados; leis e diretrizes para decisões legais ou agências de defesa e regulamentação. Em

131
que seu público-alvo variava de acordo com as situações existentes e incluía grupos tais como
minorias étnicas e raciais e mulheres. Entre as ações afirmativas mais conhecidas está o
sistema de cotas, que visa estabelecer um certo número ou porcentagem a ser ocupada em
uma área específica por grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer proporcionalmente ou não, e
de forma mais ou menos flexível (MOEHLECKE, 2012).
Gabriel Braga e Antônio Neto (2022. p. 100), estudantes indígenas da UFPA, mostram
que após o acesso à universidade, começa uma nova etapa na vida cotidiana desses atores, os
vários confrontos para a conclusão do curso de graduação. Entre esses confrontos, o racismo e
a permanência dos estudantes se destacam como elementos cruciais para que esses estudantes
continuem e terminam seus cursos.
Desde sua criação, a APYEUFPA tem sido estruturalmente organizada através do
Conselho Executivo e do Conselho Fiscal. Foi dirigida por quatro presidentes eleitos em
assembléias ordinárias, três delas mulheres indígenas e uma por um homem indígena.
FERNANDES apresenta a constituição desses líderes à frente da organização no período de
2011 a 2015, sendo: Edimar Kaingang (2011-2013); Juma Xipaia (2014); Eliene Baré (2015-
2018) com o maior tempo de gestão da organização. Em 2018, as estruturas foram renovadas
em uma nova assembleia ordinária que elegeu Virginia Arapaso para liderar a organização
estudantil indígena, permanecendo no cargo até 2020.
Em sua trajetória, a APYEUFPA tem mantido uma relação direta com a Reitoria da
universidade através do diálogo para garantir o direito de permanência dos estudantes
indígenas. Além disso, para mostrar a este ambiente social universitário que os indígenas são
capazes de estar ao seu lado, desconstruindo tudo o que já foi escrito por não indígenas,
sempre lutando, principalmente contra o racismo, que é o principal fator que dificulta a
interação e permanência dos estudantes. Diversidade e inclusão são alcançadas através da
participação em eventos que trazem os temas indígenas como uma agenda, onde os próprios
indígenas falam da realidade vivida em suas comunidades ou aldeias, mostrando a diversidade
cultural que existe entre os povos nativos e que eles são capazes de produzir ciência que luta
por sua inclusão e permanência no espaço acadêmico, sem deixar de ser o que realmente são,
e acrescentando para tentar mitigar a desigualdade que existe no padrão da sociedade
brasileira.
Entre as tarefas que o autor do texto e os colaboradores da organização são: a
articulação política, a facilitação de processos de bolsas de estudo e ajuda de emergência, a
rede de apoio através de um espaço de estudo e encaminhamento para outros projetos e

132
programas de apoio destinados à população indígena, e a geração de um projeto como a casa
do estudante indígena que continua a lutar para chegar à frente. Uma cronologia dos
principais eventos da associação: em 2017, uma sala foi habilitada como sede da
APYEUFPA; em 2018, foi dado apoio político ao DCE plancha, com a participação de um
representante indígena na organização política; no mesmo ano, o governo de Jair Bolsonaro
começou a desmantelar as políticas afirmativas; Em 2020, a pandemia começou e aumentou
ainda mais a crise sobre a permanência dos estudantes indígenas na universidade. Esta
dinâmica continuou em 2020 e até meados de 2021, no segundo semestre daquele ano a
presença é retomada, e a associação move um espaço para o intercâmbio de conhecimento e
ação política.
Finalmente, é importante mencionar que o cargo de presidente foi ocupado apenas
uma vez por um homem, e esta posição está agora nas mãos da liderança política das
mulheres indígenas, o que permitiu à APYEUFPA tornar-se uma referência em termos de
organização política.

Palavras-chaves: Povos Indígenas. Educação Superior. Ações Afirmativas.

REFERÊNCIAS

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por indígenas discentes na graduação da Universidade Federal do Pará. 2022.

BRAGA, Gabriel Silva; NETO, Antônio José Marinho Aguiar; CARDOSO, Denise
Machado. Indígenas Intelectuais e a Pós-Graduação: Um Desafio Para as Universidades
Brasileiras. Revista Zabelê-Discentes PPGANT/UFPI, v. 3, n. 1, p. 95-112, 2022.

BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à


saúde dos povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde, Funasa; 2002.

FERNANDES, Edimar Antônio. Políticas afirmativas para povos indígenas–sob o olhar


dos protagonistas. 2018. Tese de Doutorado. Tese de Doutorado em Antropologia,
Universidade Federal do Pará, Belém.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. IBGE Disponível:
http://www.ibge.gov.br/home/.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de


pesquisa, p. 197-217, 2002.

MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-


1990). São Paulo: Paulinas, 2012.

133
NEVES, Clarissa Baeta; RAIZER, Leandro; FACHINETTO, Rochele. Acesso, expansão e
equidade na educação superior: novos desafios para a política educacional brasileira.
Sociologias, Porto Alegre, ano 9, n. 17, p. 124-157, jan.-jun. 2007.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Problemas de qualificação de pessoal para novas formas
de ação indigenista. In: BARROSO-HOFFMANN, M. (Orgs.). Estado e povos indígenas no
Brasil: bases para uma nova Política Indigenista. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002. p. 83-94.

134
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 1 - CONFLITOS, APROPRIAÇÕES DA NATUREZA E DESIGUALDADE

A QUESTÃO HÍDRICA NAS COMUNIDADES TRADICIONAIS E NAS CIDADES


EXISTENTES NA FOZ DO RIO AMAZONAS

Aline Gabrielle Cardoso do Rosário48


David Junior de Souza Silva49

A proposta desta pesquisa é iniciar uma reflexão sociológica sobre o sentido social
da água nas dinâmicas sociais da Amazônia. Antecipadamente, podemos dizer que a água
aparece como território, como espaço sagrado, como comunicação, como recurso natural e
como mercadoria. Sendo diversos os seus sentidos e os atores sociais que convergem sua
ação para ela, a água se torna centro de inúmeros conflitos sociais na Amazônia.
Nesta pesquisa, consideramos as formas da ecologia política do sofrimento hídrico
na Cidade de Breves, no Estado do Pará e nas comunidades do Estado do Amapá, assim
como as implicações presentes nessa problemática, a precarização da água, esta como direito
humano e como direito à moradia. A Ecologia Política, conforme está definida no texto
Ecologia Política do Ailton Krenak, tem como objetivo a reestruturação da relação entre
seres coletivos e vida orgânica, mostrando a desigualdade do poder que afeta essa relação do
ser/natureza, estimulando a individualização. Além disso, busca mostrar que esses
problemas ambientais decorrentes do desenvolvimento desenfreado, não atingem todos os
indivíduos de forma igual. Os mais prejudicados são as populações vulneráveis que
necessitam desses recursos naturais, que padecem com a falta dos meios hídricos. Já o
sofrimento hídrico, conceituado no artigo Ecología Política del Sufrimento Hídrico dos
autores Óscar A. Castillo Oropeza e Jorge A. Hernández Gamboa, é o modo que os
indivíduos reagem com a retirada abrupta de seus meios hídricos e as consequências que eles
presenciam com a falta desses meios no dia a dia, devido as transformações feitas nos
Territórios por conta de interesses e ações político-econômicas que afetam toda uma
população. A desigualdade sobre as populações menos favorecidas, onde o recurso como a

48
Discente de Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Integrante do
Núcleo de Estudos sobre Etnopolítica e Territorialidades na Amazônia – NETTA/UNIFAP. E-mail:
gabrielle123styles@gmail.com
49
Professor da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre
Etnopolítica e Territorialidades na Amazônia – NETTA/UNIFAP. E-mail: davi_rosendo@live.com

135
água acaba se tornando uma raridade, o descaso com as centrais de abastecimento, a falta de
canalização que não abrange todos os habitantes, poluição dos rios e a escassez de água
potável são apenas alguns dos problemas presentes nesse conceito.
Após definir essas características, podemos observar exemplos desses conceitos,
analisando as entrevistas realizadas com liderança ribeirinha e quilombola, do Estado do
Amapá, e também com a liderança do Movimento Social pelo Direito à Água, da cidade de
Breves no Pará, onde existe, de modo geral, a precarização da água para consumo diário
dessa população. A falta de saneamento básico torna esse consumo ainda mais impróprio,
como é o caso da comunidade ribeirinha Nova Esperança, localizada em Ferreira Gomes, no
Estado do Amapá, que nunca teve acesso à água potável, e a alternativa que eles possuíam
para atender essas necessidades sempre foi feita através do Rio Araguari. As condições se
agravaram com a chegada das hidrelétricas, visto que após alguns exames se teve a
confirmação da contaminação da água, o que a tornou totalmente inadequada para o uso. A
partir dessa ocorrência, a comunidade passou a depender do poço artesiano de um dos
moradores, porém, algumas pessoas têm dificuldades para conseguir pegar essa água devido
à distância. No ano de 2019, por volta do mês de outubro houve um acordo da FUNASA e
da prefeitura para finalmente criar um sistema de tratamento que se chamaria Salta Z, mas
nunca foi executado pela parte da Prefeitura e apenas foi disponibilizado o equipamento pela
FUNASA. Os moradores conseguiram por meios legítimos a eleição de um vereador
Ribeirinho, que acabou dando voz ativa para os residentes dessa região, com o intuito de
alcançar melhorias para suas problemáticas.
Esse cenário não se modifica mesmo que algumas localidades possuam o próprio
sistema de abastecimento de água. Essa é a realidade da população do Quilombo do Curiaú,
localizado no Estado do Amapá, especificamente no município de Macapá, que mesmo
tendo duas centrais de abastecimento fornecidas pela CAESA, à água que na maioria das
vezes nem chega para todos os moradores, é precária. Isso ocorre por conta que essas duas
centrais de abastecimento, desde que foram criadas na década de 90, nunca mais tiveram
uma manutenção, estão defasadas, e por consequência deixa a comunidade sem amparo. E
com o crescimento da população nessa área a água acaba sendo ainda mais escassa, fazendo
com que esses moradores corram atrás de água em igarapés e no lago intermitente.
A forma como os indivíduos são levados a correr atrás de outros meios para obter
essa água, mostra a ineficiência dos órgãos responsáveis para o fornecimento adequado que
auxilie as necessidades que são de extrema urgência. Um último exemplo relacionando a

136
essa problemática seria a situação da Cidade de Breves, na qual apenas 10% do Território
possui um abastecimento normal, sendo que esse fornecimento dura somente duas ou três
horas por dia. A água vem de forma inadequada, não recebe o tratamento necessário, e
ainda, por cima é retirada de poços e entregue através do sistema da companhia de
saneamento do Estado do Pará. A situação fica ainda pior, pois encontram-se bairros no qual
o sistema de canalização é inexistente, caracterizando uma incoerência uma vez que ali
existem cerca de 60 mil habitantes. Com essa falta de água o recurso encontrado pelas
pessoas surge através da água da chuva, dos poços, dos Igarapés e do rio, sendo que esta
muita das vezes é considerada questionável. Em contrapartida, a zona rural vivencia uma
realidade instável, a captação da água é feita, também, pelos rios e poços, visto que não há
nenhum sistema de fornecimento operando.
Então, como podemos perceber a questão do sofrimento hídrico se faz muito presente
na realidade das populações que estão vulneráveis as transformações negativas consequentes
desse poder individualista. As autoridades que deveriam amparar essas comunidades, que
deveriam oferecer o básico para esses indivíduos, fecham os olhos e não priorizam os
problemas que esses moradores vivenciam todos os dias. Não há, na maioria das vezes,
visibilidade para que esses habitantes consigam de forma adequada o recurso básico que é a
água, buscando outros caminhos, como foi citado no decorrer do texto, para consegui-la. A
água que deveria ser direito de toda a sociedade acaba não sendo a realidade dessas
comunidades e cidades que sofrem com a falta dela.

Palavras-chave: Ecologia Política. Sofrimento Hídrico. Comunidades Tradicionais.

REFERÊNCIAS

OROPEZA, Óscar A. Castillo; GAMBOA, Jorge A. Hernández. Ecología política del


sufrimiento hídrico: El caso del Aeropuerto Internacional Felipe Ángeles y el Frente de
Pueblos Originarios por la Defensa del Agua. Editora: Casa Abierta al tiempo, 23/11/2020.
KRENAK, Ailton. Ecologia Política. Editora: Ethnoscientia, 17/08/2018.

137
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 1 - CONFLITOS, APROPRIAÇÕES DA NATUREZA E DESIGUALDADE

MUDANÇAS LEGISLATIVAS E RETROCESSOS


SOCIOAMBIENTAIS: UMA ANÁLISE SOBRE A LEI DA
BIODIVERSIDADE E O CONHECIMENTO TRADICIONAL
ASSOCIADO

Roberta Carolina Araujo dos Reis50


Igor de Souza Borges51

O Brasil possui um potencial enorme em diversas áreas da produção e conhecimento


com a presença de seus recursos naturais e sua extensão territorial, cita-se a possibilidade de
explorar campos como a medicina, estética, farmácia, além da própria alimentação. Em
conjunto com esse patrimônio genético, há a forma de manuseio do mesmo, onde será o
grande diferencial para abrir possibilidades de transformar a matéria em um produto que
atenderá as necessidades humanas.
A história brasileira demonstra que se obtém uma presença marcante de grupos étnicos
nos espaços, que construíram um modo de vida diferenciado, baseado em tradição e uma
relação com a natureza única, construindo em conjunto com suas comunidades sabedoria
sobre a manipulação da biodiversidade encontrada na natureza, assim estabelecendo seu
conhecimento tradicional que como afirma Diegues “é definido como o conjunto de saberes e
saber-fazer a respeito do mundo natural, sobrenatural, transmitido oralmente de geração em
geração” (DIEGUES, 2001, p. 30). Os CTA, como é abreviado, engloba todo tipo de técnica,
tendo como foco a caça, a pesca, propriedades medicinais, farmacêuticas entre outros.
O grande problema a ser enfrentado é que por ser um conhecimento único, é
extremamente visado por grandes empresas, cuja intenção é transformá-lo em mercadoria, o
que pode gerar casos de biopirataria, por exemplo, que é uma atividade que engloba a
obtenção do recurso genético e do CTA sem observar as legislações, violando direito dos
grupos étnicos no processo (SANTILLI, 2005).

50
Pós-graduanda em Direito Agroambiental pelo Cesupa. Mestranda em Direito na linha de pesquisa Direitos
Fundamentais e Meio Ambiente no PPGD/UFPA. Advogada, robertacarolinareis@gmail.com
51
Especialista em Direito Agroambiental pelo CESUPA. Mestrando em Direito pelo PPGD/UFPA. Advogado,
iigor.sborges@hotmail.com
138
A titularidade do conhecimento tradicional é pertencente aos povos indígenas ou
comunidades que o tenham produzido, no entanto, se faz necessário questionar se a Lei
13.123/2015, possibilita que isso seja garantido através da exigibilidade jurídica de sua
autorização para o acesso do mesmo.
Nesse sentido, a pesquisa busca responder o seguinte problema: a promulgação da Lei
13.123/2015, conhecida como Lei da Biodiversidade, trouxe avanço de garantia de direitos
em relação à necessidade de autorização sobre o acesso ao conhecimento tradicional
associado?
Para refletir sobre essa temática, adotou-se como método dedutivo, a análise
bibliográfica qualitativa e quantitativa no que diz respeito às pesquisas realizadas usando a
legislação atual sobre a temática e o debate sobre o tema.
O que se constata é que o conhecimento tradicional possui o seu aspecto dinâmico,
assim não se pode considerar que a sua produção seja estática, deve se considerar diversos
fatores. Nesta conjuntura, faz-se necessário encontrar um regime jurídico que seja suis generis
para lidar com a titularidade coletiva desse bem aos grupos étnicos que lhe pertence, um
regime que tutela a relação dos direitos territoriais e direitos culturais, que seja efetivo para a
garantia da proteção desse conhecimento tradicional. (SANTILLI, 2005)
Quando se tenta implantar qualquer noção de que esse conhecimento tradicional é uma
mercadoria, isso viola os princípios constitucionais e os firmados em tratados internacionais
para a proteção do direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais.
Primeiramente, a legislação nova diminuiu o papel do órgão chamado Conselho de
Gestão de Patrimônio Genético, nas atuais diretrizes, se coloca em foco apenas atos
declaratórios, ao momento que há um formulário disponível mediante o Sistema Nacional de
Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SISGEN,
eletronicamente, para que o indivíduo interessado em realizar atividade com interesse
econômico preencha o mesmo, e em cada caso específico exigirá outros tipos de documentos,
em conformidade com o decreto n. 8.772/16 a partir do seu art. 20.
Houve a diminuição do papel do Conselho, uma vez que no modelo antigo
desenvolvido pela medida provisória o mesmo tinha a atribuição de observar sobre a
autorização das atividades, atualmente isso se vê enfraquecido, pois o órgão apenas atesta a
regularidade do acesso, com emissão automática de comprovante de cadastro, estando isso
regulamentado pelo Decreto n. 8.772/16, inciso IV do art. 6, combinado com o art. 12 da Lei
n. 13.123/15 e com os artigos 22 e 23 do Decreto n. 8.772/16.

139
A legislação atual apesar de em seu art. 8 parágrafo primeiro, reconhecer o direito de
participar da tomada de decisão sobre os temas relacionados ao patrimônio genético e
conhecimento tradicional associado aos povos e comunidades tradicionais, ela não traz mais
consigo a palavra “decidir” em que estava presente no instrumento de mesmo número da
antiga medida provisória. Outro ponto é que no art. 9, inciso II da MP 2.186-16/2001,
reservou aos povos e comunidades tradicionais o direito de impedir terceiros não autorizados
a realizar atividades, enquanto que na legislação atual tal direito foi suprimido nos seus
escritos, tendo que recorrer às diretrizes internacionais sobre o tema.
Além disso, um dos pontos mais drásticos da nova legislação é que exige apenas em
casos específicos o consentimento livre prévio e informado, existindo circunstâncias em que
ele será dispensado, sem qualquer base jurídica para tal.
A lei 13.123/15, pode-se dizer que criou um sistema de classificação de
conhecimento que nunca foi fomentado em qualquer outro lugar, essa fez uma diferenciação
de dois tipos de conhecimento tradicional, os que obtém uma origem identificável e os que
não possuem identificação clara (MOREIRA, CONDE, 2017). A partir da criação desse
modelo que a legislação separou quais precisam de demonstração da autorização dos povos e
comunidades e quais seriam dispensados.
Outrossim, outro ponto a ser destacado são os meios de comprovação da realização
de consulta e autorização desses sujeitos que a norma fixou. Em seu art. 9, afirma que
considera como esses meios: a) assinatura de termo de consentimento prévio; b) o registro
audiovisual do consentimento; c) o parecer do órgão oficial competente; d) a adesão na forma
prevista em protocolo comunitário.
Como pode se constatar a chamada Lei da Biodiversidade diverge sobre as diretrizes
internacionais do consentimento prévio informado a partir de duas frentes, a criação de
excludentes da autorização e a aprovação de meios de prova que não colocam o povo ou a
comunidade tradicional como sujeito ativo na tomada de decisão.
A Convenção 169 da OIT prevê em seu art. 6.1, “a”, que a consulta aos povos e
comunidades deverão ser sobre todas as medidas que os afetem e principalmente deve se
usado a suas próprias instituições representativas, o que aqui nesse caso já encontra total
divergência com a Lei atual, uma vez que essa permite outros tipos de comprovação a
autorização sem ser o respeito a autonomia dos povos em decidir como querem ser
consultados, cita-se como principal exemplo o item c, onde que um órgão competente emitirá
parecer.

140
Ressalta-se que qualquer órgão que tenha como objetivo a proteção do direito desses
indivíduos não deve nunca interferir em seu poder de decisão, a sua atividade nesse quesito é
complementar e não se colocará como acima das vontades daqueles.
A CDB, o destaca o papel das comunidades e a necessidade de seu consentimento
para todos os recursos genéticos que estão sobre tutela dessas. No seu preâmbulo já reconhece
o papel desses sujeitos e a necessidade de repartir benefícios entre estes, como apontado, o
art. 8, j destaca a obrigatoriedade da legislação nacional de respeitar, preservar e manter o
conhecimento e práticas das populações indígenas e comunidades tradicionais e
principalmente ampliar a sua participação. No seu art. 15 destaca a autorização dos sujeitos
que obtém a tutela do recurso genético devem conceder ou não para o acesso dos mesmos.
Aqui em conjunto com a Convenção 169, já se permite ver que adotar medidas de
exceção para não precisar do consentimento prévio informado é totalmente ir em direção
contrária a esses tratados internacionais. Está claro que adotar casos excludentes de
autorização é um atentado aos parâmetros estabelecidos internacionalmente, logo, o sistema
de classificação de conhecimento tradicionais onde diferencia-os entre os que tem origem
identificável e os que não tem é entendido como uma violação aos direitos dos povos e
comunidades.
Portanto, verifica-se que a Lei 13.123/2015 não está de acordo com a afirmação dos
direitos dos povos e comunidades e sua titularidade quanto aos conhecimentos tradicionais,
uma vez que relativiza seu poder de participação tanto em conferir sua anuência para o acesso
deste, quanto coloca em vigor uma legislação prejudicial aos mesmos sem antes consultá-los
da maneira correta, podendo aumentar os riscos de biopirataria desse conhecimento. Deste
modo, sendo imprescindível a revisão desse instrumento jurídico.

Palavras-chaves: Conhecimento Tradicional associado. Retrocesso. Lei da Biodiversidade

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. Promulga a Convenção sobre


Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992, 1998.
Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2519.htm>.

BRASIL. Lei 13.123, de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art.


225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o

141
Artigo 15 e os §§ 3o e 4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica,
promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao
patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e
sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga
a Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências, 2015.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13123.htm.

DIEGUES, Antonio Carlos. ARRUDA, Rinaldo S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade


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Paulo: Instituto Socioambiental. 2003.

SANTILLI, Juliana. Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade: elementos


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VARELLA, Marcelo Dias (organizadores). Diversidade Biológica e Conhecimentos


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SANTILLI, Juliana; A biodiversidade e as Comunidades Tradicionais in BESUSAN, Nurit


(org.) Seria Melhor Ladrilhar? Biodiversidade como, para que, porquê. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: Instituto Socioambiental, 2002.

142
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

COMUNIDADES QUILOMBOLAS, RECONHECIMENTO E


TITULAÇÃO DOS TERRITÓRIOS APÓS A PROMULGAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Domingos do Carmo Ferreira Ribeiro52

Historicamente, os negros no Brasil foram negados os direitos a propriedade


definitivamente de terra, para que pudesse trabalhar, plantar, criar, e cuidar de suas famílias
com dignidade. De se organizar comunitariamente, praticar suas culturas e fortalecer suas
identidades. Em decorrência de um longo período de escravidão vivida neste país, e mesmo
após a “abolição” formalmente em 1888, há mais de um século, as comunidades quilombolas
vem reivindicando seus direitos em reparação a segregação e marginalização que foram
submetidos.
Essa realidade foi vivenciada em grande escala, principalmente na Amazônia, e nos
dias atuais os conflitos envolvendo as populações tradicionais versus os interesses capitalistas
ainda persistem. Como quilombola e pertencente ao Quilombo da Comunidade de Joana
Peres, no município de Baião, Estado do Pará. Onde possui atualmente, 450 famílias, desde
muito cedo ouvia histórias contadas por meus pais, avós e cidadãos da Vila, que o latifúndio
por nome Lázaro Barbosa, tentou expulsá-los de seus territórios na década de 70, alegando ter
comprado do comerciante Mundico Arara. Sabendo que esta não possuía documentação e que
tinha poder e influências políticas a seu favor, ameaçou retirar a comunidade de seu território.
Mas os comunitários resistiram e ganharam a questão.
A Constituição Federal de 1988, que resulta das reivindicações dos movimentos
sociais, o Brasil vem passando por processos de redemocratização, reconhecendo os direitos
iguais perante a lei das populações tradicionais. O art. 68 das Ações Constitucionais
Transitórias (ADCT) e o decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, são os principais
instrumentos legais do país que tratam dos processos administrativos para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade definitiva das terras

52
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará –
UFPA/PPGSA, Licenciado em Ciências Sociais pela universidade Federal do Pará – UFPA/PARFOR, e-mail:
professordomingosdocar@gmail.com
143
ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. Assim como assegura as
manifestações culturais populares, indígena, afrobrasileiro e tribal.
Nesse sentido, o presente trabalho analisa ações judiciais relativas aos processos de
reconhecimento, certificação e titulação das propriedades definitivas dos territórios das
comunidades remanescentes de quilombo, avanços e perspectivas, quanto ao desdobramento
das decisões do STF sobre a ADI 3239/2004 e o cenário atual. Assim, o trabalho se
caracteriza como uma pesquisa bibliográfica, baseada em livros, artigos científicos, ensaios
acadêmicos e documentos sobre a temática. Para Fonseca (2002), esse tipo de análise baseia-
se em referência estudada por outros pesquisadores, reconhecidos na comunidade científica.
Solazzi e Wolkmer, em sua análise, até 2003, foram publicados no Diário Oficial da
União (DOU), 17 Comunidades remanescentes de quilombo, ao final do o governo do FHC,
onde 11 foram tituladas e certificadas, e 06 tituladas Pela Fundação Cultural Palmares. Um
quantitativo irrelevante para a demanda do país, uma vez que, haviam se passado nove anos
da aprovação da carta magna de 1988, não deixando dúvida, a falta de interesse do poder
público em reconhecer os direitos cidadãos.
Outro marco importante na luta contra a desigualdade social e racista é a provação do
Decreto 4.887, de 20 de dezembro de 2003, decretado pelo ex-presidente Lula, que
regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades do quilombo de que trata o
art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Esse decreto possibilitou
agilidade nos processos das demandas quilombolas, de acordo com Solazzi e Wolkmer (2016,
p. 36). “entre 2003 a 2015, sob a égide do Decreto nº 4.887/2003, havia um total de 2.474
Comunidades Remanescentes de Quilombos Certificadas (CRQs) que, retiradas as 17 já
tituladas anteriormente, totalizam 2.457 CRQs.”
É notório a crescente significativa concernente o reconhecimento e certificação das
Comunidades Remanescentes quilombolas quanto à posse de seus territórios em um curto
período, menos de dois anos assim que o decreto 4.887/2003 entrou em vigor, comparando ao
ano de 2002 onde foi realizado o mesmo levantamento, houve acréscimo de 2457 CRQs
certificadas. No entanto, no ano seguinte, em 2004, o Partido da Frente Parlamentar (PFL),
hoje democrata (DEM), ajuizou no STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, (ADI
3239).
Segundo Priorte, a declaração da inconstitucionalidade do decreto 4.887/20003, do
ministro Cezar Peluso, alega falta de parâmetros legais para concretude do mesmo, pois o

144
congresso nacional não legislou de forma a explicitar o sentido do texto constitucional. Para o
autor, o voto do magistrado, contrária a filosofia do Estado enquanto garantidor dos direitos
dos cidadãos: “De acordo com a posição adotada em seu voto, seria o próprio Estado o agente
que, a despeito de estar obrigado a buscar a superação das opressões raciais por determinação
constitucional, estaria negando aos quilombolas acesso ao direito já garantido na
Constituição, sem que ao menos exista uma perspectiva temporal para a realização do direito
à terra" (PRIORTE, 2016)
De acordo com Leme (2018), a retomada no julgamento do artigo 4.887/2003 quanto a
ADI 3239/2004 é realizada em 2017, pelos dez ministros que ainda não haviam se
manifestados os seus votos, começando pelo magistrado Dias Toffoli e o último a dar seu
parecer foi à ministra Cármen Lúcia. Totalizando oito votos favoráveis à constitucionalidade
do decreto, três votaram pela parcial procedência da ADI e um pela total procedência da ação,
ou seja, totalizando oito votos a quatro. Deste modo, fica assegurado constitucionalmente o
decreto 4.887/2003, garantido assim, por força de lei os direitos ao reconhecimento,
demarcação, certificação e titulação dos territórios das comunidades quilombolas, e cabe ao
estado através de órgão competente expedir.
Desse modo, o período de maior elevação à certificação dos territórios das
comunidades quilombolas aconteceu entre o período de 2003 a 2015, em decorrência do
decreto 4.887/2003, que entrou em vigor, totalizando 2.457 comunidades. A referida lei
agilizou o processo administrativo para identificação e titulação, que trata o art. 68 ADCT.
Dentre outras questões, delega poderes ao INCRA a realizar esses procedimentos, e a
Fundação Cultural Palmares supervisionar. E ampliou a identificação quanto remanescente de
quilombo principalmente pela autoidentificação, podendo a própria comunidade interessada
se identificar como tal.
Todavia, a inconstitucionalidade do decreto 4.887/2003, tem afetado negativamente as
ações que tramitam no judiciário brasileiro concernente às questões inerentes às demandas das
comunidades. Ainda que a magistrada Rosa Weber, a AGU e a PGR tenham se posicionado a
favor da constitucionalidade do decreto. De acordo com Lemes e Rodrigues (2017), sobre os
levantamentos que realizaram: A partir da análise das ações judiciais, verificou-se que as
maiorias das decisões não utilizam o Dec. 4887/03 como elemento de fundamentação para
reconhecer ou negar as territorialidades quilombolas. Dos 141 processos que compõem o
universo da amostra, 64 utilizam o diploma legal na motivação dos julgados, enquanto 77

145
decisões, ao discutirem os direitos territoriais quilombolas sequer fazem referência ao
instrumento regulador desse direito no ordenamento interno.

Portanto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, impetrada em 2004 pelo


Partido da Frente Parlamentar PFL, hoje os democratas (DEM), integrantes atualmente da
bancada ruralista, entraram com o pedido de anulação do art. 4.887/2003, junto ao STF, com
o voto em 2012 do ministro Cezar Peluso a favor da ADI, e posicionamento da Ministra Rosa
Weber em 2015 contra, até o momento eram os únicos a votar. Influenciou-se negativamente
as ações que foram julgadas e indeferidas, e muitas delas nem sequer mencionaram o decreto
4.887/03 a respeito do processo de reconhecimento e titulação dos territórios. Há esse período
de 2015 a 2018, esse último se refere às decisões dos demais ministros, pouco avançou nas
questões em debate.
Neste sentido, somente em dois mil e dezoito os demais ministros posicionaram a
maioria dos votos contra a procedência da ADI 3239/2004, e todos foram enfáticos em seus
pareceres em reconhecer a importância do decreto 4.887/03, art. 68 ADCT como ferramenta
na reparação da escravatura, no combate a discriminação racial, a valorização das
manifestações culturais e principalmente a garantia da propriedade definitiva, no entanto,
ressalto a importância de mantermos mobilizados e atuantes na busca pela concretização dos
direitos das Comunidades de Remanescente Quilombo. Existem muitos pedidos de
certificação e principalmente de titulação de territórios engavetados, outros nem sequer
conseguiram realizar o estudo antropológico que é feito em parceria com o INCRA, por falta
de logística e de interesse do atual governo.
De acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2020, levantamento feito para enfrentamento da convid-19, foram detectadas 5.972
“localidades quilombolas” em todo o Brasil, desse universo, 404 Territórios Quilombolas são
oficialmente delimitados e definidos em setores censitários. O projeto “Achados e Perdidos”53
divulgou que, desde 2004 a Fundação Cultural Palmares certificou 2.803 territórios
quilombolas. No mesmo período, foram abertos 295 processos de titulação junto ao INCRA,
dentre esses, apenas 41 foram concluídos, uma fatia de 13% do total. Nesse cenário, entende-
se a urgência de política pública na questão da demarcação, reconhecimento e titulação dos
territórios das comunidades quilombolas, uma vez que existem muitas comunidades que não

53
Achados e Perdidos é uma plataforma que reúne milhares de pedidos de acesso à informação de cidadãos e as
respostas da administração pública feita via Lei de Acesso à Informação (LAI). O projeto é realizado pela ONG
Transparência Brasil e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e recebe financiamento
integral da Ford.
146
fazem parte do banco de dados do INCRA e que precisa ser realizado o Relatório Técnico de
Identificação Delimitação (RTID).
Segundo Achados e Perdidos, dados fornecidos pela Fundação Cultural Palmares
(FCP), o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, apresenta em seus dois primeiros
anos de mandato 2019-2020, o menor índice de resolução dos processos e execução de RTID,
certificação e titulação, dos Territórios quilombolas. Desde 2003 quando foi iniciada a série,
esse é o pior resultado. De acordo com esse estudo, a taxa de resolutividade de processos de
certificação caiu de 45% em 2018, último ano do governo Temer, para 25% em 2019 e 11%
em 2020, o mais baixo da história comparado aos governos anteriores.54
Por conseguinte, os anos de 2019 e 2020, primeiro biênio do governo em vigência,
estudos têm mostrado que houve um retrocesso no que diz respeita a garantia dos direitos das
comunidades quilombolas e indígenas, uma vez que as estatísticas apresentam a menor taxa
de resolução das demandas quilombola, pois as demarcações, certificação e titulação das
comunidades tradicionais, contraria o viés ideológico de seu governo que é dar prioridade ao
agronegócio. Mesmo diante do cenário atípico de distanciamento por conta da covid-19, os
processos engavetados deveriam apresentar aceleração, no entanto, houve queda também.

Palavras-chaves: Territórios. Certificação. Direito e perspectiva.

REFERÊNCIAS

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enfrentamento à covid-19 - Nota técnica. Disponível em:
<https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_do_territorio/tipologias_do_territorio/base_de_infor
macoes_sobre_os_povos_indigenas_e_quilombolas/indigenas_e_quilombolas_2019/Notas_T
ecnicas_Base_indigenas_e_quilombolas_20200520.pdf.> Acesso em: 26. set. 2022.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:

54
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147
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LEMES, João Vitor Martins; RODRIGUES, Bárbara Luiza Ribeiro. Do Quilombo ao Fórum:
Demandas das Comunidades Quilombolas no Judiciário Brasileiro. R. Fac. Dir. UFG, v. 41,
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PRIOSTE, Fernando Gallardo Vieira. Quilombolas, Luta, Por Terra e Questões Raciais no
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SOLAZZI, José Luís; WOLKMER, Antônio Carlos. Interpretação Constitucional, Pluralismo


Jurídico e a Questão Quilombola: Uma Abordagem Descolonial e Intercultural do Decreto Nº
4.887/2003 E DA ADI 3239. Ed. PUC, Goiás, 2016.

148
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

ANCESTRALIDADE NO PROCESSO DE TITULAÇÃO DO


TERRITÓRIO QUILOMBOLA E NO RECONHECIMENTO DO SER
NEGRO-ÍNDIO

Maria Madalena dos Santos do Carmo55

Este trabalho56 tem como objetivo enfatizar as memórias sobre “ser negro-índio”, as
quais auxiliaram na criação da Associação Centro Comunitário de Itamoari (CCI) do quilombo
Itamoari, Cachoeira do Piriá, estado do Pará, Brasil, a partir de uma análise histórico-
antropológica. Entendendo que a história para titulação do território quilombola envolve as
relações entre negros e indígenas em Itamoari, atualmente, muito do que desenvolvemos
enquanto quilombolas também parte da nossa origem indígena, tornando difícil diferenciar o
que “é de negro e o que é indígena”, prova disso são as práticas e saberes do próprio
quilombo, como a caça e pesca, a umbanda e organização social (liderança comunitária, pajé
parteira).Porém, aos olhos do Estado nosso reconhecimento enquanto “ser negro-índio” muitas
vezes é silenciado, e o silenciamento desencadeia o esquecimento de nossas origens e, por
consequência, o apagamento de nossos diretos. Neste sentido, o presente trabalha tem como
base teórica o conceito da Escrevivência, elaborado por Conceição Evaristo, pois é uma escrita
que pretende trazer voz aos silenciamentos impostos ao corpo-negro. (DUARTE, 2020)
Desta forma, este trabalho enfatiza a fala do meu pai Manoel Caldas do Carmo, o Nel,
61 anos, vice-presidente da Associação CCI e liderança de Itamoari e participante ativo no
processo de reconhecimento enquanto quilombola e, logo, na titulação do território
quilombola Itamoari. O reconhecimento enquanto quilombola é um dos relatos emocionados
proferido por ele. Segundo meu pai, ao ler no dicionário a palavra “mocambo”, o mesmo
nome referido ao quilombo Itamoari na década de 1980, ele observou a semelhança em suas
práticas e, além disso, mocambo também se considera como quilombo e a ideia de terra e

55
Quilombola de Itamoari. Professora mediadora no Sistema Educacional Interativo (SEI/SEDUC PARÁ).
Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA-Campus Bragança).
Mestranda em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (PPGDS/MPEG). E-mail:
kilomba96@gmail.com
56
Este trabalho faz parte da dissertação em construção intitulada “Bença, bisa Pituca: memórias da mãe velha e
seu reflexo na categoria "negro-índio" no quilombo Itamoari-PA”, que versa sobre as memórias dos quilombolas
de Itamoari sobre a minha bisavó Maria Petroníla Lima, a vó Pituca, liderança que contribuiu com a organização
social e cultural do quilombo, ajudando na criação de uma identidade afroindígena que denominamos de negro-
índio
149
trabalho comunitário eram ações realizadas dentro de Itamoari desde sua fundação. Mesmo
que na época a palavra mocambo recebesse uma definição pejorativa de “o lugar do preto do
mocambo de Itamoari”, era este o nome que iria reforçar a identidade negra de Itamoari.
Meu pai conta que “descobriu que tinha esse direito” desde a época dos antigos de Itamoari,
principalmente, da época de tio Marcos, Dionísio e Pituca, que eram lideranças comunitárias, e
delimitavam onde se localizava o quilombo argumentando que nesse território somente
“parentes” poderiam morar.
Tal reconhecimento de identidade negra quilombola se aproxima da conceitualização da
Etnização das comunidades afrodescendentes na Colômbia, elaborada pelo antropólogo
Eduardo Restrepo (2013), quem pontua que em inícios da década de 1990, na Colômbia houve
um marco jurídico e político, a partir da mudança da Constituição em 1991 e da lei 70 de
1993, acontecendo também transformações dos princípios da inteligibilidade e do imaginário
político sobre o ‘negro’ na Colômbia. O autor ainda nos coloca a pensar no exercício
particular de representação dentro do que nomeia de “política da diferença”. Desta forma,
pensar a etnização das comunidades negras consiste em processar a ideia da formação de um
sujeito e algumas subjetividades em nome da existência de um grupo étnico.
Enquanto no Brasil, a definição de “quilombo” perpassou por diversas
definições, pensadas a partir do crescente número de reivindicações de titulação de território
quilombola na década de 1990, após a redemocratização do Brasil, e com a aprovação do
artigo 68, do ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz: “Aos remanescentes
das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” .No livro Mato, Palhoça e
pilão, de Adelmir Fiabani (2012), o autor pontua algumas discussões realizadas sobre as
visões da antropologia sobre o quilombo, trazendo o alargamento das conceituações do termo
“quilombo”, para assim tentar abranger mais grupos de comunidades rurais, já que após a
aprovação do artigo 68 obtiveram uma pequena participação em sua constituição, devido o
estreitamento de tal conceito na época voltado para os termos históricos, correspondendo,
somente, ao agrupamento de escravizados fugitivos em decorrência da escravidão. Assim,
somente eram reconhecidos enquanto quilombolas, os grupos que correspondiam a esta última
definição. Entretanto, muitos dos indivíduos desses grupos não existiam mais, o que fez com
que o termo “quilombo” ganhasse ampliação e passasse a considerar também os grupos
remanescentes de quilombo, caracterizados pelo uso coletivo da terra e de herança, entre

150
outros casos de comunidades negras rurais que antigamente eram fazendas ou eram senzalas
etc.
Desta forma, considera-se de grande relevância analisar minuciosamente os
aspectos etnográficos e históricos que foram levados em consideração para registrar a história
de Itamoari enquanto território quilombola, entre eles, meu pai destaca a importância da
oralidade e do conhecimento dos nossos ancestrais como Euzebia do Carmo e o tio Marcos do
Carmo, que na década de 1990 contaram sobre a memória de seus antepassados, das terras que
consideravam parte de Itamoari e além de apresentar documentos, como a certidão de
nascimento de um morador de Itamoari que comprova que o povo quilombola já residia
naquelas terras há mais de cem anos. Outra prova material que corroborou na luta pelo título a
terra se remete a árvore genealógica, dividida em quatro folhas A4 construída pelo meu pai a
partir de conversas com tia Euzebia desde o início da década de 1990, a história do esconderijo
Escuta, o planejamento de itens contendo máquina de arroz, motor gerador de energia, creche
escolar, entre outros, que esperavam conseguir após a entrega do título da terra. A criação da
Associação Centro Comunitário de Itamoari (CCI), fundada em 08 de junho de 1997, também
foi outro elemento fundamental que contribuiu para a produção do relatório, provando a
existência do quilombo de Itamoari, feito pelo historiador professor Flavio Gomes, o qual cita
as peculiaridades do quilombo Itamoari no contexto da região Gurupi (1997), ajudando na
obtenção do título da terra, em 1997.
A emoção do meu pai se volta para este sentido, de preservar esta memória de nossos
ancestrais. Em muitos momentos ele comenta emocionado como foi tal processo,
lembrando da figura do tio Marcos, liderança de Itamoari já falecido e um dos precursores de
grande importância na titulação da terra. Ele rememorou a luta que tiveram neste processo e
lamentou pelas dificuldades enfrentadas hoje pela comunidade, que continua em um
andamento obsoleto, sem energia elétrica e com uma economia ainda pouco desenvolvida,
sem falar da desvalorização dos mais velhos na nossa história enquanto quilombola. O que é
preciso fazer, segundo ele, é um processo de revitalização e recuperação de alguns
documentos produzidos por ele, como o Estatuto da comunidade escrito em 2000, a árvore
genealógica de Itamoari e a placa assentada no porto do quilombo com informações da nossa
terra, como a data de titulação e o recado que “a terra não foi e nem será objeto de venda”.
Todos os elementos citados são importantes para a nova geração quilombola de Itamoari
entender o processo de luta e sua história, principalmente, voltada para a preservação dos
recursos naturais e da coletividade.

151
Outro item de grande relevância são os contatos e entrevistas com pessoas
das proximidades, como os chefes de postos indígenas que visitam as aldeias Tenetehar da
região do Gurupi e paravam frequentemente em Itamoari para descansar durante suas
viagens descendo o rio Gurupi, com destino a Viseu ou Boa Vista do Gurupi, bem como com
os pesquisadores que efetuaram seus trabalhos em Itamoari. Entre estas pessoas destaco
Chico Potiguar, chefe do Posto Indígena na aldeia Canindé, e a antropóloga Sara Alonso, que
foram grandes parceiros das lideranças de Itamoari no processo de titulação da terra,
principalmente a Sara Alonso, que construiu sua tese sobre o quilombo Itamoari, em 2004.
Eles orientavam sobre quais entidades procurar em Belém e sobre seus direitos enquanto povo
quilombola, principalmente em relação ao Estado que, em qualquer momento, poderia
reivindicar a terra, acaso não tivesse dono, tendo em vista que a região do Gurupi, desde o
século XIX, é historicamente conhecida como a Região do Ouro. Além disso, a
desapropriação da Gleba Cidapar, na década de 1980, fez com que a questão da terra perpasse
pelo controle do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pois eram terras
que pertenciam ao governo federal e não governo do estado, segundo meu pai.
A música também fez parte durante o processo de titulação da terra, surgindo
como reconhecimento de nossas raízes, de origem negra e indígena. Inicialmente, as
músicas construídas pela professora Maria do Carmo Diniz Franco, em conjunto com
integrantes da comunidade como Francisco da Piedade (Tio Chicão), Luiz do Carmo (tio
Canela) e Lindalva, composições nas quais “a professora Do Carmo escrevia os versos e a
gente colocava o ritmo”, como o povo do Itamoari recorda, foram feitas com o objetivo de
receber os pesquisadores que chegavam ao quilombo para fazer observações de campo para
construção do relatório de comprovação de território quilombola. Na música “Nesta
comunidade que se chama Itamoari”, composta pela professora Maria do Carmo Diniz Franco
e integrantes quilombolas, notamos a presença da trajetória dos primeiros fundadores de
quilombo, com destaque para Dionísio e Petroníla, a Pituca, casal formado pelas raízes negras
e indígenas. Por sua vez, a música intitulada “Raça negra”, percebe-se o relato da importância
da terra como usufruto e parte dos povos negros e indígenas. Ambas as músicas recordam da
importância da terra, mas, além disso, memoram a importância dos antigos do quilombo na
ideia de coletividade e ancestralidade, no nosso caso, negra e indígena.
Meu pai, Manoel Caldas, conta sobre suas raízes, que tem sangue indígena tanto da parte
do pai dele Manoel Simões do quilombo Itamoari, como da mãe dele Maria Caldas
do quilombo Bela Aurora. Sabem que no Itamoari temos a ancestralidade indígena a partir

152
da figura de Pituca e a ancestralidade negra a partir da figura de Dionísio, mas devido nossa
‘cor’ ser negra, o título do território aconteceria com menos complicações a partir
do reconhecimento enquanto comunidade negra rural.
O relatório do I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Pará, realizado no dia 06
a 09 de maio de 1998, pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e
pela Secretaria de Estado e Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM), em Belém,
pontua algumas questões sobre os direitos quilombolas e o processo de titulação de terra.
Entre os pontos destacados, a quinta definição nomeada de “Terra de índio pode ser terra
de quilombo?”, aborda considerações fundamentais que podemos relacionar com a questão
da ancestralidade negra e indígena de Itamoari. O próprio documento coloca que “nos Estados
Unidos tem uma figura jurídica de ‘black-indian’. Aqui não existe essa figura jurídica “Preto-
Índio”, ou “Índio-Preto”, mas temos ‘terra de preto’ que é vivida como ‘terra de índio’ e ‘terra
de índio’ que é vivida como ‘terra de preto” (RELATÓRIO I ENCONTRO DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DO PARÁ, 1998, p. 32-33)
Desta forma, percebemos que, nós quilombolas de Itamoari, temos noção de nossa
ancestralidade indígena e negra, seja por meio da influência de nossos ancestrais, seja através
de nossas práticas e saberes, entretanto, passamos a considerar somente um lado de nossa
história enquanto oficial, para que assim o Estado pudesse conceder o título da terra. Mesmo
com todas as discussões em torno do termo “quilombo”, ainda hoje é uma questão que precisa
ser debatida, na medida em que as comunidades vão conhecendo sua história. Em Itamoari, a
expressão negro e índio é cunhada, principalmente, quando recordamos da história de nossos
antepassados que eram indígenas, entretanto, quando nos apresentamos em órgãos oficiais
somente um lado de nossa ancestralidade é acatada, sobretudo, partindo da nossa cor negra.
Logo, na medida em nossas histórias estão sendo recontadas por nós mesmos, se
torna essencial refazer uma leitura de quem nós somos e como consideramo-nos, sem
esquecer nenhum lado de nossa história.

Palavras-chaves: Quilombo Itamoari. Território quilombola. Ancestralidade.

REFERÊNCIAS

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153
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FIABINI, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades


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GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (Sécs.
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Fontes Orais:

Entrevista com Manoel Caldas do Carmo, 61 anos, realizada em 19 de maio de 2021, entrevistadora
Maria Madalena dos Santos do Carmo, Alto Bonito, Cachoeira do Piriá, PA

154
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

INTERAÇÃO EXECUTIVO – JUDICIÁRIO NOS PROCESSOS


DECISÓRIOS DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO PARÁ

Gabriel Creão de Oliveira57

O artigo visa analisar as formas de interação entre o Poder Executivo Federal e o


Supremo Tribunal Federal em relação aos procedimentos de demarcação de terras indígenas
do estado do Pará entre 2000 – 2022.
Hoje, o processo de reconhecimento de terras indígenas segue o disposto no decreto
1.775/96, que, em suma, começa com a confecção de um relatório técnico multidisciplinar
aprovado pela FUNAI com prazo para manifestação de interessados, depois segue com a
delimitação da área por portaria do Ministro da Justiça (Executivo) e posteriormente a
homologação da demarcação por decreto presidencial, além de outras etapas de operação para
retirada de ocupantes.
Assim, as arenas decisórias da matéria, tanto pela atribuição constitucional, quanto
pelo histórico de tratamento da demanda, são o Executivo (pela delimitação de TI’s,
homologação da demarcação e ainda decretos que estipulam/alteram o procedimento) e o
Judiciário (que possui competência para interpretar normas constitucionais e legais, como os
decretos que regulamentam o processo de deliberação e a eventual anulação/revisão da
demarcação) – daí porque o foco do trabalho é a deliberação nessas instituições e sua
interação.
Há extensa pesquisa sobre demarcação de terras indígenas nas áreas de História
(quanto à reconstrução e origem dos conflitos), Antropologia (sobre o desenvolvimento
cultural e social dos povos indígenas) e Direito (quanto às Leis e interpretações jurídicas
envolvidas na disputa) e outros.
Na Ciência Política, há estudos que investigam fatores processuais, econômicos e
contextuais que influenciam nos procedimentos demarcatórios de terras indígenas, indicando
fatores que contribuem para sua facilitação/conclusão (como mobilização e atos de protesto
indígena e atuação política de aliados) e outros que induzem no retardamento/dificultam a

57
Mestrando, Programa de Pós graduação em Ciência Política/UFPA, gabrielcreao@hotmail.com.
155
demarcação (como judicialização dos processos demarcatórios, mudanças normativas
infraconstitucionais) (SOARES et al, 2021).
O presente trabalho, por sua vez, dialoga com a literatura ao se debruçar sobre os
conflitos dentro dos espaços institucionais ou, mais especificamente, sobre a relação entre o
executivo e o judiciário na demarcação das terras.
O uso de terras indígenas sempre foi um ponto sensível desde o Brasil colônia,
quando não existia distinção de tratamento de terras indígenas e terras da união, ocorrendo
apenas ocupação e extermínio de povos tradicionais, por todo território brasileiro. A ocupação
do solo no interior da Amazônia por civis e pela estrutura do Estado com implementação de
órgãos e instituições, veio a ocorrer de maneira mais profunda, direcionada e deliberada nos
governos militares dos anos 1960 e seguintes, em virtude da Política de Desenvolvimento
Nacional (PINTO e LOUREIRO, 2005).
A estratégia adotada consistia em oferecer vantagens fiscais a grandes grupos
econômicos nacionais e internacionais para fazer investimentos de implementação de parques
industriais e estímulo a exploração agrícola e mineral e com isso estimular a migração interna
de povos de outras localidades brasileiras para a região (ALBERT, 1995).
O objetivo declarado discursivamente pelo governo era ocupar Amazônia para evitar
perda de territórios próximo a fronteiras e ainda movimentos separatistas de populações não
integradas à sociedade civil, o que se traduz no jargão “Integrar para não entregar”. Esse
incentivo trouxe não apenas grandes indústrias e populações nordestinas e sudestinas para
trabalhar licitamente nos parques industriais e nas grandes obras promovidas pelo governo
(Rodovia Santarém-Cuiabá, Hidrelétrica de Tucuruí, p. ex.), como também outros agentes
com práticas ilícitas, como os garimpeiros, e os “grileiros”, que falsificavam documentos de
propriedades cedidas para “vendê- los” a terceiros de boa-fé (PINTO e LOUREIRO, 2005).
Nesse processo de ocupação por meio de incentivos indiretos (fiscais e empresariais),
não houve regulamentação efetiva quanto às áreas passiveis de ocupação ou não, nem quanto
à forma que seria realizada, e ainda ausência de fiscalização efetiva, o que resultou em
ocupação desregular das terras amazônicas (PINTO e LOUREIRO, 2005).
A ocupação, exploração e (re)venda de terras ocorria em diversos tipos de territórios,
entre os quais de ribeirinhos, seringueiros, indígenas, e outros, inclusive em terras proibidas
de exploração, e gerava conflitos sociais com cometimentos de diversos crimes a essas
comunidades, como desaparecimento e assassinato de agentes políticos, bem como
desmatamento e outros danos ambientais (ALBERT, 1995).

156
O Estado Brasileiro, por meio da Constituição de 1988, seguindo a lógica do Estatuto
do Índio de 1973 e atendendo à pressões sociais e de organizações internacionais que
clamavam pela solução dos conflitos, trouxe uma garantia de reconhecimento das terras
indígenas e direitos originários sobre elas de maneira mais sólida em seu artigo 231,
entretanto não houve regulamentação definitiva da matéria – estipulando requisitos e critérios
para demarcação.
Diferente da política adotada por outros países como os EUA, na qual ocorreu cessão
da propriedade direta das terras aos indígenas, no Brasil, a propriedade ficou com a União,
cedida exclusivamente aos indígenas originários, com delimitação por meio de decretos do
executivo, sendo a gestão da terra subordinada à Funai, com impedimento de exploração
mineral ou vegetal – o que acaba por atrelar, legal e politicamente, a questão indígena a
preservação do meio ambiente.
A falta da presença efetiva do Estado nas localidades indígenas permitiu (e até hoje
permite) um cenário quase anárquico de conflito, uma vez que, em havendo ausência de
aparato policial e entidades públicas, muitos fazendeiros grileiros e até comunidades
tradicionais usam meios privados (milícias) para defesa – de forma que, apesar da política de
reconhecimento das terras indígenas por meio legal, o cumprimento e o respeito delimitação
foi escasso (ALBERT, 1995).
O caso Raposa Terra do Sol, conflito de terras entre indígenas e produtores rurais do
norte do estado de Roraima, de 2005, é representativo da situação. À época, houve
reconhecimento de terras indígenas por decreto do presidente Luis Inácio Lula da Silva
atendendo a Parecer Técnico elaborado pela Funai e a solicitações de comunidades indígenas,
e atores aliados – igreja católica, professores universitários – determinação a retirada de
outras populações (produtores rurais) dessas Terras Indígenas. Entretanto houve resistência de
organizações de produtores rurais agrícolas, alegando que ocupavam as terras de maneira
permanente desde décadas antes, além de associações de indígenas favoráveis à não
demarcação, em virtude do interesse em exploração mineral (SECCHI, DE SOUZA
COELHO e PIRES, 2019).
Houve conflitos armados, sequestro de atores políticos e muito clamor social e
desgaste político, de modo que o STF suspendeu as operações de desocupação e,
posteriormente, determinou indenização aos produtores pela União, em virtude de perdas de
propriedades produtivas.

157
Até hoje, assim como nesse caso, as poucas garantias legais que garantem a defesa
dos direitos de indígenas e comunidades tradicionais são constantemente questionadas e
violadas política, voltando reiteradamente à discussão nos espaços institucionais.
Associado a este movimento, o Governo Bolsonaro constantemente profere
declarações indicando que não cumprirá decisões do STF sobre demarcação de terras
indígenas que forem contra interesse de mineradoras, além de atrasar processos
demarcatórios, o que gera clima de instabilidade política entre poderes.
O Judiciário, por sua vez, atua como um dos únicos espaços institucionais em que se
reconhecem direitos de indígenas, dando indicativos de que atenderá ao interesse das
populações tradicionais em casos como o do Recurso Extraordinário que versa sobre o marco
temporal de ocupação de terra indígena – recurso que possui repercussão geral, ou seja, pode
ser replicado para outros conflitos de mesma natureza.
Por este motivo cabe a investigação sobre o modo de interação entre esses espaços
institucionais pelos quais os conflitos perpassam, para contribuir com a discussão de fundo
sobre em quais arenas decisórias a pauta possui maior benefícios e favorecimentos.
Para isso, se construirá um banco de dados referente às terras indígenas homologadas
e demarcadas no período de 2000 a 2022, no Estado do Pará, identificando-se área demarcada,
ano de homologação, Presidente da República que homologou, se houve judicialização pós-
homologação e qual proponente da ação, bem como outros dados pertinentes, como eventuais
atores políticos envolvidos. Após, haverá interpretação e análise de dados (CERVI, 2017).
Serão usados dados secundários, ou seja, baseada em fontes já criadas. As fontes
serão os processos de demarcação presentes nas plataformas do Governo Federal, mais
especificamente os de geoprocessamento e mapas da FUNAI, disponíveis em
“https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas/geoprocessamento-e-mapas” e de
outros bancos de dados que surgirem, além de dados encontrados em processos judiciais.
Será possível identificar os padrões de quantidade de terras indígenas (por área total
e por procedimento/requisição) homologadas por governo e, assim, será possível estipular
relações sobre, por exemplo, se a mudança de governo influenciou na facilitação para o
reconhecimento de terras indígenas, se há grupos de interesse aliados a governos que
influenciem nas decisões, se o judiciário tem sido agente garantidor de direitos indígenas ou
não e ainda, outras conclusões que vierem a surgir no decorrer da pesquisa.
As formas de interação a que se refere são as relativas ao conteúdo decisório de atos
(decretos e decisões) sobre demarcação de terras indígenas, podendo-se observar a diferença

158
de tratamento da matéria entre o executivo e o judiciário e ainda, obviamente, como foco de
pesquisa sobre a relação entre estes.
Como hipótese de resultado da pesquisa, tem-se que a forma de interação entre Poder
Executivo Federal e o Supremo Tribunal Federal quanto a conteúdo decisório foi
preponderante de manutenção de homologação pelo STF em todo período. Tais resultados
podem indicar elementos avaliativos sobre o retardamento da demarcação e ainda dialogar
com a literatura sobre o papel do Judicário na garantia de que o território indígena foi
juridicamente reconhecido, apesar da atuação de outros grupos de interesses (mineradoras e
ruralistas).
Como resultados secundários, será possível identificar (1) se o ocupante do cargo de
Presidente da República exerce influência sobre a quantidade de terras indígenas
homologadas por ano, e ainda (2) se o padrão de judicialização (ações judiciais protocoladas)
de grupos de interesse mudou no período.
Espera-se contribuir para a discussão mais ampla sobre os papéis e padrões de
comportamento institucionais que envolvem o conflito de territórios indígenas, com foco na
interação entre o Poder Executivo Federal e o Supremo Tribunal Federal em relação aos
procedimentos de demarcação de terras indígenas do Estado do Pará entre 2000 – 2022.

Palavras-chaves: Terras Indígenas. Executivo. Judiciário

REFERÊNCIAS
ALBERT, Bruce. Terras indígenas, política ambiental e geopolítica militar no
desenvolvimento da Amazônia: a propósito do caso Yanomami. Amazônia: a fronteira
agrícola, v. 20, p. 37-58, 1991.

CERVI, Emerson. Manual de métodos quantitativos para iniciantes em Ciência Política.


Curitiba: CPOP, 2017.

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na


Amazônia. Estudos avançados, v. 19, p. 77-98, 2005.
https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas/geoprocessamento-e-mapas
https://terrasindigenas.org.br/

MANZOLLI, Bruno et al. A legalidade da produção de ouro no Brasil. Belo Horizonte.


Editora IGC/UFMG. 2021

SECCHI, Leonardo; DE SOUZA COELHO, Fernando; PIRES, Valdemir. Políticas públicas:


conceitos, casos práticos, questões de concursos. Cengage Learning Edições Ltda., 2019.

159
SOARES, Leonardo Barros et al. Fatores explicativos das demarcações de terras indígenas:
uma revisão de literatura. BIB-Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, n. 96, 2021.

160
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

CONFLITOS PELA TERRA NO ALTO RIO GUAMÁ

Cristiane Modesto do Nascimento58


Rafael Rabelo Ferreira da Silva59

A partir dos movimentos dos povos originários contrários à lógica capitalista imposta
pelo estado brasileiro sob a Amazônia, este estudo tem por objetivo: analisar alguns dos
vários conflitos vivenciados pelos Tembé-Tenetehara do Alto Rio Guamá (TIARG-PA)
contra colonos, fazendeiros e posseiros em defesa de seu território.
A perspectiva estrutural acerca do conflito na Amazônia empreendida por Almeida
(1991), será adotada neste trabalho como “objeto” de análise. Almeida aduz que os conflitos
territoriais “passaram representar, ainda que de maneira paradoxal, uma modalidade de
organização e uma via para assegurar o acesso às terras disponíveis e o domínio de posse das
já consolidadas (pg.10) para os povos originários.
No entanto, pretende-se fugir das visões essencialistas que cercam esse conceito,
principalmente no contexto das lutas por terra, e situá-lo como parte das discussões
socioantropológicas que está imerso no universo das relações sociais.
A pesquisa de caráter bibliográfico, se concentrou nas produções já existentes sobre o
tema em análise, considerando teorias, informações e interpretações clássicas e
contemporâneas incluindo escritos os escritos de ALONSO (1996), Lobo (2016), Jordy Filho
(2016) além de matérias de jornais, revistas, artigos em periódicos, etc.
Os Tembé, ramificação do povo Tenetehara, encontram-se divididos em sete áreas
indígenas no Estado do Pará, sendo duas áreas em processo de reconhecimento: Marakaxi e
Jeju Areal e cinco Terras Homologadas: Alto Turiaçu, Tembé, Turé-Mariquita I, Turé-
Mariquita II e Alto Rio Guamá (TIARG), foco de análises do presente estudo.

58
Licenciada em Ciências Sociais (UFPA), Mestranda em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável
(UFPA/EMBRAPA), sircmodesto@gmail.com
59
Bacharel em Ciências Biológicas (UFRA), Especialista em Sustentabilidade e Políticas Públicas, Mestrando
em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável (UFPA/EMBRAPA), r.rabeloferreira@gmail.com.
161
FIGURA 1: MAPA POLÍTICO DA TI
FONTE: FUNAI

FONTE: FUNAI, 2016

Os Tembé da TIARG são divididos internamente por “Tembé do Gurupi”, situados às


margens esquerdas do Gurupi, e os “Tembé do Guamá”, aldeados às margens direita do Rio
Guamá. Essa divisão interna se originou a partir dos diferentes processos históricos
vivenciados pelos dois grupos, cuja trajetória, assim como a de outros grupos, é marcada
pelos impactos sofridos, incialmente pelos processos de colonização e em seguida “pelas
frentes de expansão que causou profundas modificações, política e culturais, nessas
sociedades” (ASSIS, 2013).
Os Tembé do Guamá em detrimento aos Tembé do Gurupi foram os mais afetados pelas
lutas em defesa do seu território. A situação fronteiriça em que eles estão situados, próximo às
cidades de Capitão Poço e Garrafão do Norte, contribuiu ao longo dos anos para a invasão de
suas terras por parte de posseiros, com diferentes objetivos. As atividades de subsistência do
povo Tembé do Guamá foram prejudicadas pelas explorações em seu território por parte dos
não indígenas, sendo, por vezes, autorizadas pelos poderes Municipal, Estadual e/ou Federal.

162
Os conflitos pela terra marcam a história dos Tembé do Alto Rio Guamá, que vivem em
luta constante para manter sua permanência física, cultural e social dentro de seu território. Os
primeiros registros de conflitos diretos entre esse povo e os não indígenas datam do século
XIX em decorrência do contato entre os Tembé e regatões que os exploravam. Em, 1861 sete
Tembé mataram nove regionais, os agentes do estado, responsáveis por investigar o caso
acabaram tomando nove crianças Tembé as enviando para o município de Vizeu, dessa forma
os Tenetehara fugiram para outras áreas abandonando o seu território.
No decorrer da interação envolvendo esse grupo e os não indígenas vários outros
conflitos, ocorreram, principalmente em decorrência da disputa pela terra. No entanto, foi a
partir dos projetos implantados pelo Regime Militar (1964-1985) para a região amazônica que
esses conflitos se intensificaram. Os planos de colonização e políticas de incentivos fiscais
para a referida região incidiu na concentração de grandes extensões de terras agrícolas nas
mãos de fazendeiros, tanto a “microrregião” localizadas em torno da Reserva indígena, quanto
a própria reserva, foram afetadas por tais projetos. Esses fatos acabaram transformando o
meio rural paraense num palco de múltiplas tensões sociais, cuja violência resultante,
expressa numa estatística trágica de conflitos e mortes nas disputas pela terra (ALONSO,
1996, p.40).
Em 1970 ocorreu “a maior invasão das terras dos Tembé” (NEVES E CARDOSO,
2015, p.13). Diversos agentes sociais, adentraram no território indígena instaurando suas
propriedades, casas, roças, fazendas, etc. A Fundação Nacional do Índio passou a negociar
com os próprios invasores, a sua retirada de dentro da, território Tembé. Em 1974, há a
criação da Fazenda “Irmãos Coragem” de Mejer Kabacznik, com aproximadamente 11 mil
hectares, que abriu uma estrada de 24 km de extensão dentro da reserva para ligar sua fazenda
à vila do Livramento, no município de Nova Esperança do Piriá “cortando” o território ao
meio. Três anos após a criação da Fazenda, em 1977, é dado início à “Operação Guamá”
proposta pela FUNAI com o objetivo de retirar os posseiros da área da RIARG. No entanto
em 1978, a sugere lotear a área invadida concedendo as terras aos posseiros, (LOBO, 2016).
A FUNAI abandona os planos de lotear área indígena em 1979, implementando uma
ação de reintegração de posse das áreas da RIARG que se encontravam sob o domínio dos
invasores, o que gerou mais conflitos entre posseiros e os Tembé, já que os não indígenas se
recusaram a saírem das áreas em que estavam assentados. Os conflitos em questão foram
incentivados por diversos políticos locais “defendendo” os posseiros, visando transformá-los
em seus possíveis eleitores.

163
Já na segunda metade da década de 1980, um novo conflito entre os Tembé e os não
indígenas ocorreu após a confirmação de que os policiais que deveriam fiscalizar e impedir a
retirada ilegal de madeira da reserva estavam ajudando os posseiros a desviar madeira do
território. Dessa forma, o grupo indígena incendiou o alojamento dos policiais localizado no
Pau de Remo, e em seguida explodem a ponte que ligava a estrada a fazenda no novo vilarejo,
sendo reconstruída pouco tempo depois por meio de autorização estatal concedida ao
proprietário da fazenda, Mejer Kabazcnick, que ia extrapolando aos poucos os limites da
fazenda dentro do terrirtório Tembé (JORDY FILHO, 2016).
Em 1988, Jader Barbalho, na condição de Ministro da Reforma Agrária, estabelece duas
portarias interministeriais aduzindo a criação de Vilas agrícolas e o desmembramento da
RIARG em duas colônias, Colônia Indígena Canindé e Colônia Indígena Tembé, e a faixa
central da reserva ficaria a disposição para o assentamento de colonos. As medidas, recebidas
com forte protestos pelos Tembé, ocasionou a perda de 25% de seu território, que fora
invadido por colonos e posseiros, mesmo que as decisões tenham sido revogadas em 1990,
muitos dos invasores permaneceram na região que compreendia a RIARG, atrasando todo o
processo de homologação da Terra Indígena (TI), que só foi completada em 1993, passando a
ser a TIARG.
Em 1996 foi decretada pela justiça a retomada de posse da área que correspondia a
Fazenda Irmãos Coragem dentro da TI pelos Tembé, muitos colonos foram expropriados da
região, no entanto, outros invasores, ainda em janeiro do mesmo ano, voltaram a se acomodar
na TI. Em abril ocorreu uma grande apreensão de madeira que havia sido roubada da área
indígena, a carga, no entanto foi liberada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) no dia seguinte, dessa forma, os Tembé, insatisfeitos
com tal decisão, optaram por queimar toda a madeira que ainda estava apreendida.
Em maio do mesmo ano, setenta e sete homens do povo Tembé foram mantidos reféns
durante três dias, na Vila do Livramento por diversos agentes sociais da região. A situação
ocorreu após a apreensão de madeira que estava sendo retirada de forma ilegal por posseiros
dentro da TIARG. O grupo de setenta e sete e mais três funcionários da FUNAI se dirigiram
até a Vila, localizado à 6 quilômetros da TI, afim de retomarem a madeira apreendida, já que
segundo os Tembé, era recorrente o “sumiço” de carga apreendida pelos órgãos responsáveis
e nenhuma satisfação era fornecida aos Tembé.
No retorno do Livramento os Tembé foram surpreendidos por um grupo de colonos que
cercaram seus carros, os Tembé foram obrigados a se renderem, entregados armas, carros e

164
equipamentos, sendo presos pelos colonos, primeiramente, em uma das celas da delegacia do
vilarejo, e a noite, transportando-os de dez em dez para um galpão. As vítimas relataram a
Jordy Filho (2016), que à medida que seus companheiros eram levados o desespero dos que
ficavam era acentuado, pois acreditavam que estes estavam sendo levados “para a morte”.
Tudo foi presenciado e cumpliciado por vários agentes sociais, polícia, políticos,
colonos, mídia todos coniventes com a situação e apesar da FUNAI acompanhar desde o
primeiro momento de prisão a negociação para libertarem os Tembé, a intervenção efetiva
com negociação das autoridades e órgãos indigenistas veio somente após três dias, quando os
setenta e sete, foram liberados e puderam retornar para a TIARG.
Em 2014 os Tembé conseguiram retomar a posse da fazenda Irmãos Coragem,
denominada tradicionalmente pelos Tembé como “Fazenda Mejer”, a qual simbolizou por
décadas a fronteira que separava os Tembé do Guamá e os do Gurupi, além do palco de
grandes conflitos, principalmente armado entre indígenas e colonos na luta pela Terra, como o
que ocorreu em 2014 no processo de retomada, apesar da autorização da posse da terra ser
concedida aos Tembé pela justiça ainda na década de 1990. Havia um conflito de interesses
pouco falado entre o fazendeiro Mejer e o Estado e isso impossibilitou os Tembé de
retomarem a área da fazenda que cortava seu território, sendo possível somente depois de
aproximadamente quatro décadas. As retomadas são consideradas como novos processos de
resistência dos povos indígenas fazendo parte das novas “formas contemporâneas de atuação
política indígena” na luta pelo seu território (ALARCOM, 2019).
É importante frisar que o contato envolvendo os Tembé do Guamá e os não indígenas
causou vários impactos negativos na cultura desse povo, que muitas vezes eram tolhidos, por
meio da violência, ao tentarem exercer suas práticas culturais, gerando os primeiros conflitos
entre esses dois segmentos sociais. Atualmente tais conflitos são oriundos, principalmente, da
má distribuição de terras e pela falta de uma reforma agrária que possui um amplo movimento
contrário à sua efetivação protagonizado por diversos atores sociais, incluindo o capital
estrangeiro, que veem nas terras tradicionalmente ocupadas, verdadeiras fontes de lucros,
diferentemente dos indígenas onde “a necessidade de não restringir a terra somente à sua
dimensão econômica, mas entendê-la como um território e espaço de produção da existência,
identidade, interpelações e pluralidade” impera (STEDILE, 2013, p.16). No entanto, é
também por meio dos conflitos que os povos indígenas vêm garantindo a sua existência como
povos etnicamente diferenciados ao longo dos 500 anos.

165
Palavras-chaves: Tembé-Tenetehera. Conflitos Territoriais. Alto Rio Guamá

REFERÊNCIAS

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agrícola 20 anos depois. 2ª Ed. Belém: CEJUP: Museu Emílio Goeldi, 1992.

ALARCON, D. F. O retorno da terra: as retomadas na aldeia tupinambá da Serra do


Padeiro, Sul da Bahia. São Paulo: Elefante, 2019.

ALONSO, S. Os Tembé de Guamá: processo de construção da cultura e identidade


Tembé. DE FOLHAS Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal
do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 1996.

ASSIS, E. C. Os Tembé-Tenetehara, a educação escolar indígena e os territórios


etnoeducacionais. Rev. Teoria e Prática da Educação, v. 16, n. 2, p. 81-87, Maio/Agosto de
2013.

JORDY FILHO, Nassif Ricci. Narrativas orais Tembé-Tenetehara: percursos etnográficos,


memórias e resistências. Dissertação (Mestrado acadêmico em Ciências da Comunicação)
Programa de pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia. Universidade Federal do
Pará. Belém, 2013.

LOBO, Rodrigo Gomes. Naturezas esfumaçadas: os Tembé e o mercado de crédito de


carbono. Rodrigo Gomes Lobo; orientadora: Marta Rosa Amoroso. – São Paulo, 2016.

NEVES, Ivânia dos Santos; CARDOSO, Ana Shirley Penaforte. Patrimônio Cultural
Tembé-Tenetehara: terra indígena alto rio Guamá / Ivânia dos Santos Neves, Ana Shirley
Penaforte Cardoso. – Belém: IPHAN-PA, 2015.

STÉDILE, J. P.; ESTEVAM, D. A questão agrária no Brasil: o debate na década de 2000.


[s.l.] Editora Expressão Popular, 2013, p. 7-38.

166
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

A GUERRA CONTRA OS MEBÊNGÔKRE-KAYAPO – REFLEXÕES SOBRE A


GUERRA NA TERRA INDÍGENA LAS CASAS

Alberto da Silva Amaral60


Claudia Leonor Lopez Gárces61

O presente trabalho tem como objetivo apresentar os resultados da pesquisa de


Iniciação Cientifica que desenvolvemos no Museu Paraense Emílio Goeldi 2020-2021 onde
buscamos apresentar algumas hipóteses em torno da problemática da guerra contra os Povos
Mebêngôkre-Kayapó. Imergimos na bibliografia consultada para analisar a questão da Guerra
entre os Mëbêngôkre-Kayapó no território Las Casas, povo indígena falante de uma língua do
tronco macro Jê. Que nas palavras da antropóloga Juliana Melo: “Os Kayapó da Terra
Indígena Las Casas são classificados como Kayapó Setentrionais ou do Norte, que habitam a
área etnográfica denominada Tocantins-Xigu”. Este território está situado na região Sudeste
do Pará, abrangendo os municípios de Redenção, Pau D’arco e Floresta do Araguaia, região
fortemente marcada pelos conflitos fundiários, uma triste realidade no Estado do Pará. Por
esta razão, busco refletir a temática da Guerra neste processo de neocolonização da
Amazônia, ressaltando que este problema não é da ordem do agora, como veremos, essa
situação ocorre desde o processo de colonização do Brasil em especial na Amazônia. A partir
do levantamento bibliográfico e documental, com abordagem qualitativa, e enfoque histórico
e socioantropológico, buscamos compreender como a guerra impactou na história desse povo
em relação a esse território.
O presente trabalho teve objetivos centrais a Guerra neocolonial contra os
Mebêngôkre do território indígena Las Casa, onde a questão da Guerra se faz presente na
constituição deste território indígena, ao gerar impactos na sociabilidade dos Mebêngôkre,
resultando na invisibilidade, silenciamento e até mesmo o aniquilamento dos povos Indígenas
Mebêngôkre, que habitaram no território Las Casas.

60
Graduado em Geografia e Graduando em Sociologia, Universidade Estácio, albertoamaral@gmail.com
61
Doutora em Antropologia, Museu Paraense Emílio Goeldi, clapez@museu-goeldi.br
167
Por esta razões buscamos compreender como esta problemática se desenvolveu ao
longo da História da Terra Indígena Las Casas a partir de uma perspectiva histórica, no
entanto, procurei fugir da história enquanto processo linear que alcançaria um fim idealizado,
nos moldes do pensamento hegeliano. Para isso recorri ao pensamento de Foucault que
trabalha a questão das contingências que formam o presente, num questionar constante sobre
a proveniência e emergência dos acontecimentos históricos.
O primeiro contato desse povo com os não indígenas foi em torno de 1860, através de
trocas de objetos e marcado por constantes conflitos entre os indígenas e colonos. Uma vez
que, para os colonos, os indígenas eram como uma verdadeira peste que deveria ser
erradicada, pois até o século XX esta situação constitui uma rede infinita de ataques e contra-
ataques. (LEA, 2012). Do mesmo modo que evocamos as reflexões de CHAVES (2016),
quem nos apresenta em sua dissertação que a Guerra é uma questão inerente aos povos
Mebêngôkre-Kayapó, sobretudo se imaginarmos que um de seus povos ancestrais foi
dizimado na mesma região que está situado a TI Las Casas.
Este cenário de ataque contra os povos indígenas, podemos afirmar que está imbricado
com a História do Brasil e esses conflitos não são apenas história do passado. Infelizmente
estes conflitos ainda estão presentes em nossa história que cada vez mais é escrita pela dor e
pela luta dos povos indígenas. Para exemplificarmos esta violência e miséria basta olharmos
para a situação dos povos Guarani e Kaiowa e a constante luta desses povos na tentativa de
recuperar os que lhe foi tomado pela ganância do homem “branco”. E esta luta, guardadas as
devidas proporções, não difere entre os Mêbêngôkre-Kayapó do TI Las Casas.
Notemos que no Brasil, mesmo com os avanços nas demarcações das terras indígenas,
principalmente nas décadas de 1990 e 2000, é incontestável a emergência da ampliação das
áreas demarcadas. Percebemos que, com o avanço do tempo, as mortes e os conflitos entre
indígenas e fazendeiros, mineradores, grileiros e outros grandes empreendimentos tem
marcado a história dos Povos Indígenas na Amazônia. Como bem sabemos essa questão não é
diferente em Las Casas, pois este território, ao longo toda sua história, tem marcas dos
conflitos com os fazendeiros daquela região.
É importante ressaltarmos que a Região Norte do Brasil, além de concentrar o maior
número de Terras Indígenas, também reúne o maior número de incidências registradas de
conflitos, uma vez que é grande o interesse do Poder Estatal em repassar setores da economia
para o Poder privado, sobretudo no setor da mineração. Em várias terras indígenas podemos
perceber os conflitos de interesse econômico, através de entradas ilegais de madeireiros e

168
garimpeiros, coerção e coptação dos líderes indígenas, chegando a situações extremas de
assassinatos. Portanto, mesmo com aprimoramento das bases legais de proteção aos povos
indígenas, é perceptível que os conflitos de interesse econômico permaneceram gerando
novas vítimas.
Percebemos que essas noções até aqui apresentadas dialogam com as nossas
inquietações propostas neste trabalho, pois ao analisarmos a questão dos Mẽbêngôkre-Kayapó
na TI Las Casas, notamos uma forte relação com o ocorrido no início do século XX, quando
os Irã Amrãnhs foram dizimados, mas permanecendo este episódio triste na memória dos
Kayapó que tempos depois lutaram para terem seu território reconhecido, como bem nos
mostra Juliana Melo em seus escritos. Mas mesmo após o reconhecimento de Las Casas como
terra indígena, a tensão é grande, dado os conflitos fundiários que naquela região existem e
marcam mais um episódio dos conflitos na Amazônia.
Um pensamento que corrobora essas reflexões é do pensador Pierre Clastres, uma vez
que, em “Arqueologia da Violência” (2004), se propõe a investigar a questão indígena e nos
apresenta conceitos fundamentais para as nossas reflexões em torno da guerra nas sociedades
indígenas. Para Clastres o poder separado destas sociedades parece negar o estatuto do
Estado, em que somente alguns indivíduos são dotados de poder, ao contrário das sociedades
indígenas onde a figura do líder passa a ser a de um interlocutor, mas que não resguarda um
poder maior que seus semelhantes. Clastres nesse momento se aproxima do pensamento de
Levi-Strauss, sobretudo dos escritos de “Antropologia Estrutural II”, onde o autor acredita na
necessidade da manutenção do grupo. Esta não é garantida somente pela população, mas
também por seus líderes. É dever do líder ser um porta voz deus pares e estabelecer a
permanência desta unidade com o grupo. O ponto de vista do líder só será ouvido na medida
em que ele exprimiu o ponto de vista como totalidade (CLASTRES, 2004). Para o autor, essas
sociedades são sem Estado e sem classes, não havendo um indivíduo dotado de maior poder
que outro. Ela se faz sem o Estado, porque o recusam, não o querem, fogem dele, fuga dos
poderes.
Manuela Carneiro da Cunha para nos ajudar a compreender o etnocídio a partir da
época do Brasil-Colônia e Império. Desde os primeiros contatos com os povos indígenas no
Brasil sua humanidade não foi questionada (CUNHA, 2009: 181). Vistos como “argila
moldável”, “tábula rasa”, “página em branco.”, foram os primeiros relatos da antropofagia e
guerra que conferiam os acordes finais do que se diria dos ameríndios desde então: Ausência
de fé, lei ou rei. Manuela C. da Cunha conclui que assim formou-se o “lastro de uma

169
concepção dos brasileiros que avançaria no tempo. A questão territorial passou a ter um
fundamental papel nessa história, pois foi ao longo do século XIX que fortes interesses
econômicos, atrelados as expansões globais do capitalismo e o fortalecimento dos
conhecimentos científicos, combinaram para legitimar as confluências de violências contra os
povos indígenas. E foi durante este período em que a família Real portuguesa estava no
Brasil, que Dom João VI emitiu ordem de extermínio (o antigo mecanismo das guerras justas)
contra os índios bravios, bugres (povos de língua Jê) que habitavam os chamados sertões. A
legitimação indigenista do Império, segundo Manuela Carneiro da Cunha (2009:158), marcou
um empobrecimento e estreitamento do debate em relação aos povos indígenas.
No entanto, não podemos deixar de perceber no Brasil o papel do genocídio indígena
no processo de aniquilação dos povos indígenas e isto não ocorre apenas em terras
Mebêngôkre, uma vez que, desde o início do século XX, a documentação analisada nos revela
que as demandas por justiça reparativa não deram espaço como se deveria para que se
pudesse compreender o Etnocídio dos povos indígenas. Ressaltando que, para aqueles que
vivenciaram ou vivenciam com os constantes ataques dentro desse tempo-espaço, essas
agressões contra a fisicalidade das pessoas, baseadas na concepção de indivíduo, a sugestão
para refletirmos sobre outras violências que escapem a esse mundo, soa como desrespeitosa e
fria. No nosso ponto de vista, trata-se de aceitarmos o peso envolvido em conviver
cotidianamente com essas imagens da “matéria humana”. A constante sensação de que a cada
palavra escrita ou reflexão deixamos escapar a “totalidade” dos fatos, não rendendo o digno
tributo àqueles que foram massacrados impunemente.
O etnocídio define-se como “destruição sistemática dos modos de vida e pensamento
de povos diferentes daqueles que empreendem tal destruição”, aponta não apenas para a
destruição física dos homens, mas para a destruição da cultura” (CLASTRES, 2004:83).
Diante dessas reflexões de Clastres é que relacionamos este conceito ao processo de
Exterminio dos Irã Ãmrahn, uma vez que, não houve apenas o genocídio (eliminação total – a
morte em massa), mas sim o desaparecimento de uma cultura, por isso a importância da TI
Las Lasas, pois vimos que desde o início do século XX, os conflitos fundiários na região
geram um impacto direto entre os indígenas que habitam aquela região. Percebendo que não
existe diferença entre o Estado-Bárbaro do Estado-Civilizado e seria está a “capacidade
etnocida dos aparelhos estatais”. Fortalecendo esta argumentação não poderíamos deixar de
fora dessa análise as reflexões que Viveiros de Castro (2016) faz sobre essa questão.

170
Percebendo a ausência do Estado e a interferência do homem branco como elemento
chave para esta Guerra, do mesmo modo que os “Maus-encontros” entre os indígenas e não
indígenas propiciam esse aniquilamento. Ao reiterarmos essas colocações, o Mau-encontro
enquanto possibilidade de experimentar uma posição de diferença com o perigo palpável de
um ponto sem retorno, se apresentaria como um perigo recorrente nos mundos ameríndios,
dada a característica panamericana da abertura à diferença. Viveiros de Castro associou o
Mau-encontro a algumas das agências características da inimizade ameríndia (mortos,
espíritos) vistas como “germes de Estado” que nos relatos indígenas desencadeariam “quase-
eventos” capazes de transformar irrevogavelmente humanos em não-humanos. Essas imagens
personificadas dos infortúnios retirados das cosmopolíticas ameríndias e dotadas de afecções
perigosas (raivas, tristeza, saudade) foram associadas aos brancos desde o primeiro convívio
mais íntimo e estabelecido com muitos povos indígenas.
Observando que não apenas o etnocídio esteja imbricado nessa questão, mas também,
o genocídio dos Povos Indígenas, em particular do povo Irã Amrãnh, no qual o impacto da
aniquilação desse povo reverbera até hoje sobre os Kayapó do TI de Las Casas. A separação
analítica etnocídio/genocídio, enquanto tradução de mundos distintos, enfrenta elementos de
grande aderência em nosso pensamento, levando-nos à ilusão de concretude de uma separação
abstrata. Ressaltamos que o maior propulsor desses conflitos na região estudada está
diretamente ligado a questão do território, deste modo atualizando a noção de etnocídio que
melhor se enquadra para nossas investigações, pois não podemos permitir que tal noção seja
vista como a perda da cultura, a partir de uma visão da aculturação, pelo contrário, o nosso
objetivo é atualizar o conceito de etnocidio.
Importante ressaltar que as principais violações de direitos humanos sofridas por
povos indígenas, populações quilombolas e tradicionais, e no nosso caso os indígenas do TI
Las Casas, frequentemente estão relacionadas com atos de destruição, parcial ou integral, dos
ambientes ecológicos, da terra, onde residem tais grupos. A retirada forçada desses povos de
suas localidades de origem está ligada invariavelmente à eliminação das condições de
continuarem a viver naquele local, seja pela contaminação de água de rios, acidificação do
solo, contágio epidemiológico, restrição ou extinção de biodiversidade local, dentre outros.
Quando esses coletivos e povos não são exterminados diretamente, seja no que tange a sua
dimensão física ou no aspecto de sua especificidade cultural, do seu modo de vida e de
pensamento próprio, a empresa de brutal violência se volta para a separação imediata deles e
de seus territórios. Este tipo de violência, no caso da Amazônia, é inseparável daquela ligada

171
aos processos de genocídio e etnocídio. Percebemos desde o início de nossa imersão em torno
das análises aqui propostas que a Guerra e seus efeitos (do Genocídio ao Etnocídio) são
heranças no processo colonizador que atinge esses povos até os dias atuais.

Palavras-chave: Guerra. Etnocídio. Mebêngôkre-Kayapó.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Manuela Carneira da: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosacnaify
Editora, 2009.

CHAVES, Carlos Eduardo: NAS TRILHAS Irã Ãmrãnh – Sobre História e cultura material
Mebêngôkre. Dissertação de (Mestrado em Antropologia) Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Pará. 2016.

CLASTRES, Pierre: Arqueologia da Violência. Cosac Naify. São Paulo. 2004.

LEA, V. R. Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis: Os Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil


Central. São Paulo: Edusp, Fapes: 2012.

MELO, Juliana. Relatório Circunstanciado de Identificação e delimitação da terra indígena


Las Casas. Acessado em 23/11/2020. Disponível em
https://www.academia.edu/25116453/RELAT%C3%93RIO_CIRCUNSTANCIADO_DE_ID
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A REIVENÇÃO DA SOCIEDADE: Cotidiano e Território entre os Mebengokré (caiapó) de


Las Casas. Dissertação de mestrado (Antropologia Social) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina, 2004. Acessado em 23/11/2020.
Disponível em. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/88036

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de


antropologia. São Paulo: Cosac Naify. 2002.

172
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 2 - TERRITÓRIO, CONFLITOS E AÇÃO POLÍTICA

IMPACTOS DE LA COLONIZACIÓN TERRITORIAL SOBRE EL


PUEBLO PIJAO DEL TOLIMA, COLOMBIA (SIGLOS XIX Y XX)

Andrés Felipe Ortiz Gordillo62

El pueblo Pijao es un grupo indígena habitante originario del valle central del río
Magdalena, en Colombia. Desde inicios del siglo XVI, cuando llegan a estos territorios los
invasores europeos, fue una de las comunidades indígenas más afectadas por la conquista y la
colonización, hasta el punto de ser considerada, hasta la década de 1940, como extinta. Desde
el inicio de la invasión sus territorios fueron objeto de disputa, no solo en lo que refiere a su
integración en los circuitos económico-productivos del Nuevo Reino de Granada (sobre todo
a partir del siglo XVII cuando ya se había consolidado la reducción militar de los Pijaos), sino
también en la configuración de nuevas mentalidades sobre el significado de los territorios,
proclives ahora a las dinámicas del naciente mercado mundial y la consolidación del
capitalismo como modelo socioeconómico, político y cultural.
Es a partir del siglo XIX que se consolida el proceso de colonización productivista del
departamento del Tolima, sobre todo a partir de la “colonización cafetera 63”, proceso a través
del cual se insertan estos territorios a las lógicas de la producción global capitalista. Es en este
contexto que consideramos pertinente el análisis sobre las formas como se da el proceso de
colonización (físico y simbólico) del territorio Pijao, en específico en el departamento del
Tolima y el municipio de San Antonio (sur occidente del Tolima), con el fin de entender los
procesos de re-existencia que, desde la década de 1970, vienen agenciando los Pijaos
habitantes de este municipio en su fase actual de lucha, a la cual denominamos como el
proceso de Recuperación de Ima, la Madre tierra Pijao. Este análisis nos permite comprender

62
Investigador y educador popular, altercomunicador, candidato a doctor del PPGSA-UFPA (PA, Brasil),
magíster en Estudios Sociales, investigador del Proyecto CEIS. Integrante del Grupo de Investigación Rastro
Urbano de la Unibagué. Este resumen hace parte de la investigación titulada: “Pueblo Pijao y recuperación de
Ima. Ocupaciones, expulsiones y re-existencia territoriales del pueblo Pijao en el Resguardo Indígena San
Antonio de Calarma (Tolima, Colombia)”, que el autor viene desarrollando en el Doctorado en Sociología y
Antropología (PPGSA) de la Universidad Federal de Pará, Brasil. Contacto: andresfortizg@yahoo.es.
63
Se podría también nombrar como “la colonización antioqueña” en el sentido de reconocer que muchos de los
colonizadores del centro occidente del país fueron antioqueños. Pero esta circunstancia desconocería que otros
actores regionales también participaron del proceso de colonización. Preferimos la denominación “colonización
cafetera” por el énfasis que tiene en el proceso productivo en torno al cultivo del café, que es el centro del
análisis y el factor productivo al que están ligados los territorios de referencia del estudio.
173
cómo se configuró el proceso de territorialización moderno-colonial en la región del Tolima
grande, y los impactos que tuvo sobre los indígenas Pijaos, quienes fueron despojados tanto
de sus territorios como de los saberes asociados a él.
El abordaje metodológico se realiza a través de la revisión documental de tipo
interpretativo, teniendo en cuenta variables geográficas y temporales. Se realiza un rastreo de
documentos sobre la conquista y colonización en los departamentos del centro de Colombia,
focalizando la búsqueda en el departamento del Tolima y el municipio de San Antonio de
Calarma (entre los siglos XVI a XX), ya que es allí donde se ubica el grupo de referencia
estudiado. En paralelo, se identifican documentos relacionados con el proceso de
“colonización cafetera”, ya que se identifica que es a través de este proceso que se insertan los
territorios estudiados en las dinámicas socioeconómicas y culturales de la economía global y
del desarrollo capitalista, a partir del siglo XIX.
San Antonio de Calarma es un municipio ubicado en el suroccidente del departamento
del Tolima (Colombia). Desde su fundación (1915) hizo parte del entramado económico y
productivo generado por el cultivo de café en el centro occidente de Colombia. En este
sentido, el municipio se inserta en las lógicas productivas de la macro región sociocultural
conocida como el “eje cafetero”64, que sostuvo la economía nacional desde finales del siglo
XIX –cuando se pasó de 60.000 a más 600.000 sacos de café al año, según la Federación
Nacional de Cafeteros (S.f.)–, hasta finales de la década de 1980, cuando el mercado cafetero
mundial entra en crisis por el desmonte del sistema de cuotas de exportación establecidas por
la Organización Internacional del Café (OIC), en beneficio de compañías transnacionales que
entran a regular el mercado cafetero mundial (PEREZGROVAS Y CELIS, 2002).
Hacia finales del siglo XIX y principios del XX, la naciente bonanza cafetera requirió
de nuevas tierras para el cultivo. Surge en ese periodo la colonización de territorios en el
centro occidente colombiano, principalmente de lo que hoy se conoce como el sur del
departamento de Antioquia y los actuales departamentos de Caldas, Risaralda, Quindío. De
este circuito productivo también hace parte todo el occidente del departamento del Tolima y
el oriente del Valle del Cauca. A este proceso se le conoce genéricamente como “la
colonización cafetera”, que fue fundamental –aunque no exclusivamente– promovida por
colonos antioqueños y se concentró en el café, que era acompañado por otros cultivos para el

64
No debe confundirse con la macro región “Tolima grande”, de la cual hacen parte los departamentos
del Tolima y Huila, que corresponde al imaginario social creado a partir de la división administrativa conocida
en el siglo XIX como el Estado Soberano del Tolima (1861-1886). Ubicamos a San Antonio en este énfasis del
“eje cafetero” queriendo resaltar la incidencia del cultivo del café en el desarrollo de la región.
174
comercio local (frijol, caña de azúcar, cacao, yuca, maíz, plátano), siembra de pancoger y
ganadería, que es otro los renglones productivos importantes de la región.
Según Palacios (2009) el café llega al departamento del Tolima después de 1870,
producto de su posicionamiento como centralidad agro-productiva nacional, con su
consecuente expansión territorial:

del noroeste cundinamarqués pasó al suroeste y atravesó el Magdalena para arraigar


en los confines del sur de Tolima. (…) El café valoriza las tierras a lo largo del [Río]
Magdalena donde aparecen nuevos puertos y centros comerciales, y finalmente,
articula una red de empresas comerciales y financieras sobre la base de las cuales se
desarrollará en el siglo XX la alta burguesía empresarial (p. 121-122).
Esta colonización, además de transformar las bases de la economía del país
insertándolo en las dinámicas del naciente mercado global, constituyó nuevos referentes
socioculturales, políticos e institucionales, dando como resultado la “cultura cafetera” que
definió buena parte de la identidad colombiana a lo largo del siglo XX. Palacios (2009) señala
que el café, como producto insignia, incidió en aspectos claves del desarrollo nacional como
la infraestructura del transporte, el ingreso de divisas e ingresos fiscales, la consolidación de
la industria y la generación de empleo (p. 31).
El avance de la industria cafetera en Colombia tuvo impactos tanto en la propiedad
como en la concepción cultural sobre la tierra. La configuración del proceso de
territorialización y los complejos engranajes socioculturales que se generan en a partir del
proceso de colonización, trae consigo un sistema de relaciones y conflictos que exige
transformaciones sobre la manera como se entiende la espacialidad en disputa. Palacios
(2009) señala, por ejemplo, que en lo que refiere a los resguardos indígenas “se trató de un
proceso súbito y sin transición en que una mayoría de cultivadores pobres [entre ellos,
indígenas empobrecidos] fueron desalojados de sus tierras por gamonales y comerciantes que
las adquirieron a vil precio” (p. 224).
A partir de la segunda mitad del siglo XIX fueron las haciendas cafeteras las que
dominaban el panorama productivo en Colombia. Las grandes haciendas ubicadas en el
occidente del departamento de Cundinamarca, en algunos municipios de Santander, el
suroccidente antioqueño y en el municipio de Chaparral, en el sur del Tolima (del cual hacía
parte el municipio de San Antonio hasta su secesión en 1915) definieron la consolidación y la
ruta de expansión cafetera en este periodo, para dar paso, hacia finales del siglo XIX e inicios
del XX, a la dinámica del minifundio, como resultado del proceso colonizador que amplió la
frontera agrícola nacional (PALACIOS, 2009, p. 58-59). El departamento del Tolima estuvo,
pues, en el centro del desarrollo de la industria agrícola colombiana, y participó de las
175
diferentes dinámicas que ella impuso en cuestiones como la organización y usufructo de la
fuerza laboral, los sistemas de ocupación de la tierra y la conflictividad social.
Al tiempo que avanzaba el desarrollo agrícola industrial, comenzaron a posicionarse
en las comunidades y los sujetos nuevas concepciones sobre el territorio. En el caso de
territorios con presencia indígena, de ser espacios sagrados, de ser diosa y madre para las
comunidades, el territorio pasó a ser “tierra” en tanto recurso susceptible de ser explotado en
sus capacidades productivas bajo las lógicas del capital, de la rentabilidad y del mercado que
se venía posicionando como sistema rector de la expansión del pensamiento moderno
capitalista. Así, mientras para el colono “la tierra es factor de producción, tal y como lo define
la economía política”, para los indígenas en general “la tierra es la madre, fuente de la vida,
un concepto donde el hombre es un ser de la naturaleza” (ROJAS, 2000, p. 70).
Aquí se evidencia que la colonización productivista de los territorios no supone
solamente su ocupación físico-productiva. Al proceso de colonización lo acompaña un ethos
que, para el caso de la colonización cafetera, se ha denominado como el “ethos del hacha, el
esfuerzo y el logro” (PALACIOS, 2009, p. 274). Si bien la colonización se debe mirar como
un proceso social con características colectivas en lo que refiere a la migración y a los
mecanismos culturales de apropiación territorial, el sentido de este proceso era
fundamentalmente privatizador y lucrativo, por cuanto se enajena la propiedad de la tierra
para hacerla productiva. En lo que refiere a los procesos de territorialización producto de la
colonización, lo que se evidencia es un proceso en el que se hace imperiosa la necesidad de
luchar contra la naturaleza para hacerla rentable.
Está visto que los conflictos territoriales no se pueden entender solo en clave de la
propiedad, control y dominio del espacio geográfico, y de las disputas económicas y políticas
que allí se presentan. Se deben incluir también tensiones onto-epistémicas propias de los
conflictos de territorialización (ESCOBAR, 2015), sobre todo cuando se trata de territorios
con presencia de comunidades étnicas, como en el caso del Tolima, ya que allí subsisten
formas particulares de pensamiento en las que el territorio no se entiende solo en sus
posibilidades materiales sino, también, como un escenario relacional, de carácter colectivo,
que está compuesto “por todo el lugar necesario e indispensable donde hombres y mujeres,
jóvenes y adultos, crean y recrean sus vidas. Es un espacio de vida donde se garantiza la
supervivencia étnica, histórica y cultural” (ESCOBAR, 2015, p. 32).
En esta lógica, para los Pijaos el territorio es un ser (Ima) en el que se resumen las
fuerzas del mundo de su cosmogonía: de lo caliente (el mundo de arriba), de lo frío (el mundo

176
de abajo) y de lo seco (la capa media o mundo seco que es donde habitan los humanos junto
con los “hermanos menores”: plantas, animales, joke).

Las concepciones sobre el territorio difieren entre los diferentes grupos humanos.
Mientras la modernidad colonial impone una visión productivista y rentista de “la tierra”, para
los indígenas Pijaos el territorio es un ser, Ima (la Madre tierra Pijao), que participa del
sistema de relaciones sobre las cuales se consolida la vida territorial y se establecen los
principios sobre los cuales se deben basar estas relaciones. Se debe destacar que el proceso de
colonización productivista del territorio Pijao, dado a través de la “colonización cafetera”
como dispositivo económico-productivo y sociocultural, llevó a la transformación de las
concepciones que los Pijaos tenían sobre el territorio y posibilitó su integración forzada a las
dinámicas de la sociedad moderna-colonial que agenció el proyecto republicano en Colombia.
Es importante señalar que los estudios antropológicos actuales debaten las múltiples
concepciones existentes sobre el territorio y la naturaleza, situándolas en un espectro analítico
que, según Escobar (2010), tiende a organizarse entre posiciones esencialistas y
constructivistas. Así, mientras hay un pensamiento que asume el territorio como una
exterioridad al humano: “una noción esencialista de la naturaleza-territorio como salvaje y por
fuera del dominio humano [que] la convierte en objeto de dominación” (MARTÍNEZ
CITADO POR ESCOBAR, 2010, p. 141), en el campo constructivista se acepta que el sujeto
humano está constituido también por el espacio-ambiente que habita (territorio-naturaleza),
dándose una interrelación en la que a la naturaleza se le entiende también como sujeto,
superando aquella disyuntiva moderna entre “el sujeto y el objeto del conocimiento”, tal como
lo explica Escobar (2010, p. 142).
Frente a este debate, el proceso actual de re-existencia Pijao se ubica en la perspectiva
constructivista, y se dirige hacia la reivindicación de los seres y existencias –no humanos–
que, según su cosmogonía propia, cohabitan el territorio con los humanos, orientan su camino
y contribuyen en el sostenimiento del equilibrio entre las fuerzas frías y calientes que
confluyen en el mundo.

Palavras-chaves: Pueblo Pijao (Colombia), Colonización cafetera, Territorios indígenas.

177
REFERÊNCIAS

CATAÑO, G. (2012) El café en la sociedad colombiana. Revista de Economía Institucional,


vol. 14, núm. 27, 2012, pp. 255-272. Bogotá: Universidad Externado de Colombia.
Recuperado de: https://www.redalyc.org/pdf/419/41924701012.pdf.

ESCOBAR, A. (2010) Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vidas, redes. Bogotá:


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ESCOBAR, A. (2015) Territorios de diferencia: la ontología política de los derechos al


territorio. En: Cuadernos de antropología social, No. 41, p. 25-38. Recuperado de:
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Recuperado de: https://bit.ly/3tdkQAt.

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política. México, D.F.: El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos.

PEREZGROVAS, V. Y CELIS, F. (2002) La crisis del café: causas, consecuencias y


estrategias de respuesta. Grupo Chorlavi. Recuperado de:
https://www.eldis.org/document/A30335.

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historia. Revista de Economía institucional, vol. 14(27), segundo semestre, p. 241-254.
Recuperado de: http://www.scielo.org.co/pdf/rei/v14n27/v14n27a11.pdf.

ROJAS, J. M. (2000) Ocupación y recuperación de los territorios indígenas en Colombia.


En: Revista Análisis Político, No. 41, Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.
Recuperado de: https://revistas.unal.edu.co/index.php/anpol/article/view/80009.

VASCO, L. G. (2008) Quintín Lame: Resistencia y liberación. En: Tabula Rasa. No.9: 371-
383, Bogotá – Colombia, julio-diciembre 2008. Recuperado de:
http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a18.pdf.

178
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

AS FEIRAS AGROECOLÓGICAS E O PROTAGONISMO DAS


MULHERES DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ

Marcela da Silva Barbosa65


Rita de Cássia Fraga Machado66

Este presente trabalho traz um pequeno recorte sobre a vida das mulheres da Floresta
Nacional de Tefé e o trabalho com feiras agroecológicas. Essas mulheres têm resistido e
protagonizado lutas pelo direito de participar. São exemplos de resistência, emancipação e
protagonismo feminino em meio à floresta. Por meio de um intenso trabalho de formação e
educação, elas têm lutado pelo direito de participar dos espaços importantes da comunidade.
Metodologicamente, o trabalho se baseou na pesquisa bibliográfica de autores com
obras sobre as mulheres da Flona.
No presente trabalho analisaremos as feiras agroecológicas realizadas pelas mulheres
da Flona como parte do seu protagonismo, essas mulheres vivem nas suas comunidades
dentro de uma Unidade de Conservação gerenciada pelo ICMbio. Esta análise é necessária
sobre a organização dessas mulheres, sobre como se deu esse processo, no sentido de que as
feiras proporcionaram parte da independência financeira delas, pelo menos no período antes
da pandemia da Covid-19.
De acordo como Machado, Balbino e Oler (2021), o projeto teve como objetivo
promover e organizar feiras agroecológicas que viabilizassem uma alternativa de
comercialização da produção das agricultoras da região de Tefé em pequena escala e por
grupos produtivos. Além disso, visava proporcionar às produtoras da agricultura familiar uma
oportunidade de produção agroecológica e sustentável. Também buscou oferecer espaços de
aprendizagens interdisciplinares, com palestras e oficinas relacionadas ao tema central desse
projeto, almejando a socialização das produtoras rurais com o centro acadêmico e demais
instituições parceiras.

65
Marcela da Silva Barbosa é licenciada em Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas – CEST-
UEA. Mestranda do Programa de Pós-Graducação em Educação da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA). Bolsista da CAPES. E-mail: miguel261016@gmail.com.
66
Professora de Filosofia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), no campus Tefé, é subcoordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEA. Tem diversas produções nas áreas de Estudos
Feministas, Educação e Mulheres. E-mail: rmachado@uea.edu.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7385-3771

179
E quando falamos das mulheres da FLONA, é importante ressaltar a identidade dessas
mulheres, quem são essas mulheres? E neste sentido quando denominamos “mulheres da
floresta” é um termo usado por elas próprias, elas se sentem parte da floresta e da
comunidade.
E nestes termos a comunidade cumpre esse papel de organização na vida dessas
mulheres, Zygmunt Bauman, em sua obra Comunidade: a busca por segurança no mundo
atual. Nela, o autor fala da necessidade de voltarmos ao verdadeiro ideal de comunidade, em
meio a uma sociedade marcada pelo individualismo e pela falta de solidariedade entre as
pessoas. A comunidade apresentada por Bauman seria o lugar ou o espaço da segurança e da
participação plena dos indivíduos. Em muitas comunidades ribeirinhas na Amazônia, esse
ideal de comunidade descrito por Bauman ainda se faz presente. São comunidades nas quais
se constata uma relação de respeito e harmonia entre os seres humanos e destes com a
natureza. Essa é a relação típica do caboclo ribeirinho, caracterizada assim por Loureiro:

A cultura de mundo rural de predominância ribeirinha constitui-se na expressão


aceita como a mais representativa da cultura amazônica, que quanto aos seus traços
de originalidade, seja como produto da acumulação de experiências sociais e da
criatividade de seus habitantes. Aquela em que podem ser percebidas, mais
fortemente, as raízes indígenas e caboclas tipificadoras de sua originalidade,
florescentes ainda em nossos dias [...] O que se percebe é que as circunstâncias da
vida amazônica vêm regulando peculiares relações entre os homens e o meio, tanto
no diz respeito aos fins práticos da produção, circulação e consumo, assim como
vêm dando origem a um processo dominantemente oralizado uma linha clara e
precisa [...] Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui esses
bens, mas também os transfigura. (LOUREIRO, 2015, p. 77-80).

É comum aos povos da floresta a relação de cuidado e respeito para com a natureza.
Os caboclos necessitam dos rios, dos lagos, dos igarapés, das matas e dos animais para a sua
sobrevivência. Desse modo, as mulheres e os homens ribeirinhas compreendem que a floresta
é parte constituinte de seus corpos e da sua própria existência. Mais do que um elemento
material, eles a concebem como uma entidade espiritual que precisa ser respeitada em sua
sacralidade. Por isso, as narrativas e as histórias orais que são contadas de geração em geração
apresentam seres espirituais que habitam e protegem os rios, matas e animais. Tais narrativas
educam as crianças e os jovens no respeito e na boa relação com o meio ambiente desde os
primeiros momentos de suas vidas.
E quando perguntamos a elas, qual o sentido dessa mulher da floresta e da
comunidade:

180
“Me identifico, sim! Porque a gente vive da floresta, do plantio da
gente, né? E cultiva e planta, para plantar, para colher as plantas que
a gente planta, a floresta 07faz parte da gente e plantamos em
comunidade” (Janete 06/07/2022)
E nestas teias de relações criadas entre as mulheres cria-se a relação entre a
agroecologia e o feminismo pode ser importante para o bem-viver dos povos da floresta, pois:
“A agroecologia e o feminismo destacam a importância dos saberes e práticas tradicionais.
Estimula os diálogos e trocas de experiências entre as agricultoras, buscando a valorização do
conhecimento local” (MACHADO; BALBINO; OLER, 2021, p. 312). Como vimos
anteriormente, as mulheres da Flona desde muito cedo aprenderam e aprendem a cultivar a
terra de forma sustentável. São elas as responsáveis muitas vezes pela redução do impacto da
miséria e da pobreza em suas famílias e comunidades. Esse cuidado para com a família se
estende também para com o meio ambiente.

Imagem 1 – Feira Agroecológica na UEA

Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2019

Na imagem acima, temos a realização de uma feira nas dependências da Universidade


do Estado do Amazonas, na cidade de Tefé, estado do Amazonas. Esse é um aspecto
interessante, pois, como metodologia, o projeto propunha a realização do trabalho conjunto
entre as agricultoras da Flona e as instituições parceiras. E isso de fato se concretizou. Desse
modo, antes da execução das feiras, havia toda uma preparação e uma organização para o
bom funcionamento das feiras.
E ainda nesta perspectiva a fala das próprias mulheres, traz essa importância do
contato e a força feminina umas das outras, e como diz Janete em sua fala:

181
Quando a gente se reuni é bom, porque todo mundo vai se ver de
novo, já faz muito tempo que ninguém se reuniu, todo mundo está
espalhado, aí quando se ajunta todo mundo se conhece de novo, se
ver, se abraça. (Janete, 06/07/2022)
E essa importância da organização e o se reunir com as outras mulheres da
comunidade, também é um espaço de acolhimento, um espaço político e de troca. É um
espaço para além da organização. E no projeto das feiras, como diz Machado, Balbino e Oler
(2021) destaca-se a troca de saberes proporcionada pelo projeto, além do dinheiro arrecadado.
A troca de saberes foi muito significativa tanto para as mulheres rurais quanto para os
parceiros e para o público que interagiam diretamente com elas, por meio das feiras, oficinas,
palestras e reuniões, garantindo a possibilidade de participação, inclusive da comunidade
consumidora, e também eram discutidos diversos assuntos de interesse, como o modo de
produção agroecológica e assuntos relacionados à política e à saúde, dentre outros.

Imagem 2 – Mulheres da Flona apresentando sementes e ervas

Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2019

Na imagem acima, vemos as mulheres da Flona compartilhando a venda dos seus


produtos com seus maridos e filhos, concretizando, assim, a participação de todos em torno
das feiras agroecológicas. Desse modo, podemos afirmar que as feiras se configuraram como
um espaço por excelência do protagonismo feminino, à medida que abriram espaço para a
inclusão de todos em torno de um projeto em comum. De acordo com Machado, Balbino e
Oler (2021), a realização das feiras agroecológicas pelo projeto e a partilha de saberes entre os
grupos de mulheres resultam na construção de uma comunidade ecológica que, aos poucos,
pode mudar os hábitos de uma sociedade pela adoção de práticas e de consumo sustentáveis,
além de possibilitar a inserção das mulheres em espaços de participação e saberes, como a
universidade.
182
Concluindo este trabalho percebe-se que diante desse cenário de exploração e negação
dos direitos, as mulheres têm resistido e promovido lutas pela concretização desses direitos.
Os direitos conquistados ao longo da história não foram outorgados, mas foram fruto dessas
lutas que continuam em tempos atuais, na medida em que presenciamos um cenário de
negligência, exploração e desrespeito em relação às mulheres.
E as mulheres da floresta, exercem sua autonomia dentro dos espaços da comunidade
e fora dela, as feiras de produtos agroecológicos, é apenas uma parte da organização dessas
mulheres, que são protagonistas das suas próprias vidas e juntas com suas manas da
comunidade, seguem fazendo esse movimento do protagonismo dentro da comunidade.

Palavras-chaves: Protagonismo feminino. Feiras agroecológicas. Participação.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad: Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: Uma poética do imaginário. 5. ed.
Manaus: Editora Valer, 2015.

MACHADO, Rita de Cássia Fraga; BALBINO, Luyandria Farias; OLER, Juliana Rodrigues.
Feiras agroecológicas: mulheres amazônicas fortalecendo trocas e saberes. Revista Ed.
Popular, Uberlândia-MG, v. 20 n.2, p. 307-319, maio/ago. 2021.

HOOKS, bell. Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Elefante:
2021.

183
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

A ATUAÇÃO DE UMA LIDERANÇA FEMININA RIBEIRINHA


NA DEFESA TERRITORIAL E AMBIENTAL DE SUA COMUNIDADE:
COMUNIDADE NOVA ESPERANÇA, RIO ARAGUARI, AMAPÁ,
AMAZÔNIA SETENTRIONAL BRASILEIRA

Keveny Vaz Schleicher67


David Junior de Souza Silva68

A comunidade ribeirinha Nova Esperança, localizada no Município de Ferreira


Gomes, no Estado do Amapá, é uma das comunidades ribeirinhas que estão às margens do
Rio Araguari. Com um modo de vida semelhante às demais comunidades presentes na região,
a comunidade Nova Esperança, composta por cerca de quarenta famílias, que fazem de sua
própria pesca, agricultura e caça seu sustento. Além disso, a relação de troca entre as famílias
ribeirinhas é característica presente na comunidade. A ação de compartilhamento do que se
pesca, caça ou produz, como a farinha e o pescado, faz parte do cotidiano das famílias
ribeirinhas que ali vivem.
Dessa forma, as relações comerciais, que são poucas, na comunidade, estão
relacionadas também à subsistência dessas famílias, pois as poucas comercializações feitas
pelas famílias se dão através do resultado de uma pesca mais abundante, ou da quantidade
abastada da farinha produzida, que sobrando à necessidade de consumo da comunidade, é
vendido por essas famílias que buscam através dessas pequenas comercializações, a obtenção
de itens não encontrados na comunidade.
Portanto, a comunidade Nova Esperança divide com as demais comunidades
ribeirinhas da região um modo de vida tradicional, que traz na sua organização uma vivência
humilde. No entanto, para além da tradicionalidade, questões sociopolíticas e ambientais vêm
também ocupando espaço significativo nas pautas que se debruçam às famílias ribeirinhas ao
longo da região Norte do País, logo, não sendo diferente na vivência e no território da
comunidade aqui tratada. A comunidade Nova Esperança vem enfrentando verdadeiros
desafios relacionados aos impactos ambientais provocados por empresas exploradoras

67
Graduanda, Universidade Federal do Amapá, Kevenyvaz@gmail.com
68
Doutor, Universidade federal do Amapá, davi_rosendo@live.com
184
instaladas na região e que atacam diretamente os recursos naturais que baseiam a vida dessas
famílias que habitam a região.
Há muitos estudos que compreendem e denunciam a magnitude dos impactos
ambientais ali presentes, somado à violência sofrida pelas famílias ribeirinhas que diariamente
veem os recursos de sua subsistência cada vez mais escassos ou agressivamente poluídos.
Com base nessas asserções, cabe a importância de compreender de maneira mais acentuada
como a Comunidade Nova Esperança vem se mobilizando acerca da defesa do seu território e
também dos recursos naturais que os sustentam, mas que hoje encontram-se ameaçados.
As ações políticas que compõem as mobilizações na Comunidade Nova Esperança
partem da luta de uma liderança feminina local pelo direito territorial e ambiental de sua
comunidade. Essa liderança participa da associação dos moradores, criada por ela e
integrantes da sua família desde 2014, onde vem lutando nos últimos anos pelos direitos de
assistência às famílias da comunidade, como também da proteção dos recursos ambientais da
região.
O objetivo desse estudo, ainda em desenvolvimento, é compreender as características
que estruturam e dão ênfase à importância da atuação dessa liderançaa na sua comunidade, a
Nova Esperança, além de compreender os desafios sociais e ambientais pelo que a líder Marta
vem reivindicando mediado pela Ecologia Política, bem como pelas questões de Gênero.
O objetivo desse estudo, que ainda está em desenvolvimento, é compreender as
características que estruturam e dão ênfase à importância da atuação dessa liderança feminina
na sua comunidade, além de compreender os desafios sociais e ambientais pelo que a líder
vem reivindicando mediado pela Ecologia Política, bem como pelas questões de Gênero.
Através de entrevistas por meio de telefone com a líder, foram coletadas informações sobre as
dinâmicas cotidianas da comunidade, como das adversidades enfrentadas pela mesma.
O próximo passo no desenvolvimento dessa pesquisa consiste no estudo etnográfico
feito através das visitas presenciais à comunidade, buscando utilizar metodologias dentro do
campo teórico, como por exemplo a literatura de OLIVEIRA (1996), Olhar, Ouvir, Escrever,
que propõe um debate minucioso acerca das etapas que constituem a pesquisa empírica,
ligada intrinsecamente às reflexões etnográficas.
As perspectivas do desenvolvimento dessa pesquisa etnográfica pousam sobre
conceitos que envolvem a ecologia política, o meio ambiente, bem como pautas ambientais
que se debruçam aos recortes de gênero, como a atuação feminina no processo de participação
e intervenção no campo da política e da ecologia, que nesse contexto, caminham juntos.

185
Literaturas como O Ecofeminismo e a Relação entre Natureza e Mulher, da filósofa Débora
Aymoré, que faz uma abordagem acerca da relação entre a mulher e a natureza, conceituando
movimentos políticos como o ecologismo e o ecofeminismo, propondo uma crítica acerca da
importância dessa relação para a intervenção dos progressivos ataques que os recursos
naturais vem sofrendo pelo lixo industrial e dejetos químicos provocados pelo
desenvolvimento de grandes empresas voltadas para a exploração capitalista desenfreada das
riquezas naturais.
Assim, a Filósofa conceitua o ecologismo como um instrumento político que se
contrapõe à essa exploração ambiental agressiva, de forma que em suas várias vertentes, a
ecologia se concentra na importância da proteção da biosfera, ultrapassando a ideia de
preocupação voltada à vida humana somente.
Concomitante à esses conceitos, Aymoré aborda portanto o movimento político
ecofeminista como uma prática do ecologismo, acentuando sua abordagem dentro das
problemáticas ambientais, onde embasa as relações de gênero, bem como da dominação
masculina que estrutura e reforça o capitalismo explorador, para apontar o reflexo dessa
dominação no corpo feminino e também na natureza: Assim, a abordagem ecofeminista parte
deste pano de fundo, considerando a escolha de industrialização desenfreada, de aceleração da
produção e de destruição ambiental, com seus impactos na existência, na subsistência, e na
sobrevivência humana” (AYMORÉ, 2020, p. 08).
Nesse leque de autores que se propõe aos debates que envolvem ecologia e política,
podemos citar Andrew Heywood, na obra Ideologias Políticas: do feminismo ao
multiculturalismo, onde o autor determina como a partir dos anos 60, novas formas de
feminismos surgiriam, agora com mais recortes – sociais e raciais – sob um vasto campo de
discursos e influências.
Dentro dessas vertentes tão importantes surgidas a partir dos anos 60 no feminismo,
Heywood, no capítulo Ecofeminsmo retoma esse movimento de ocupação feminina dentro do
campo social e teórico-científico para falar da atuação da mulher na ecologia: “A ideia de que
o feminismo oferece uma abordagem diferenciada e valiosa das questões ecológicas cresceu a
tal ponto que o ecofeminismo evoluiu para uma das mais importantes escolas filosóficas do
pensamento ambientalista.” (HEYWOOD, 1962, P. 65). Portanto, a ideia de que o domínio da
natureza, bem como se seus recursos estariam sob um domínio masculino, assim como as
mulheres, faria crescer, portanto, a importância do debate de gênero dentro do campo
ecológico.

186
Atualmente, há diversas linhas de pesquisa que se debruçam sobre esses estudos
nos campos da ecologia política, território e também de gênero, dentro de perspectivas e
vivencias de comunidades tradicionais. A doutora e pesquisadora em Ciência Política, Tatiana
Oliveira faz uma leitura (eco)feminista sobre os reflexos de megaprojetos e o território de
comunidades tradicionais. OLIVEIRA reuniu mulheres amazônidas para falar sobre a
Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerários (CFEM), compensação
essa que seria para reparar os danos nas comunidades do sudeste paraense, causados pelo
grande projeto da extração de minério na região.
Durante as reuniões, a autora presenciou nos relatos do cotidiano dessas
comunidades, bem como das mulheres com a extração de minério, as relações de poder
vinculadas às pautas raciais e de gênero que dominam as experiências vividas na região. Nas
cidades amazônicas, essas relações de dominação limitam as mulheres à uma constante
insegurança da mulher nas ruas, limitam-na também ao trabalho doméstico e as colocam em
contato direto, a partir das demandas domésticas, com a água contaminada pelo minério.
Nessa perspectiva, as pesquisadoras Celia Regina Congilio e Iara Fernandes dos
Reis tratam da acumulação capitalista na Amazônia em uma abordagem a partir dos grandes
projetos. No terceiro capítulo, Celia Congilio e Fernanda Reis abordam os conflitos com a
implantação do Programa Grande Carajás (PGC), que foi criado para a exploração de minério
de ferro em Carajás, no sudeste do Pará. Mostram, portanto, que através de mobilizações,
conflitos e ocupações os moradores atingidos pela instalação dos grandes projetos capitalistas
na Amazônia: extração, desmatamento, o agronegócio, buscaram fazer ouvir suas vozes sobre
os sentimentos de abandono pela parte do Estado.
Esse projeto extrativista tão crescente na Amazônia retira de maneira
completamente abrupta os habitantes de seu território, os colocam em situações de extrema
vulnerabilidade econômica e sanitária, visto que as promessas tanto estatais (que compactuam
com as empresas privadas chegadas na região) quanto das indústrias não trabalham sequer
para uma realocação dessas populações localizadas no Sudeste do Pará.
A atuação de mulheres ribeirinhas como lideranças de suas comunidades tem sido
um verdadeiro divisor de águas no debate e na reivindicação pelos direitos aos seus territórios
e a proteção ambiental. Participam de plenárias, chapas, reuniões com o poder público e na
participação também de projetos vinculados a instituições de pesquisas, como as
universidades e institutos federais, focando nas possibilidades de reversão desse cenário de
violência, pobreza e subalternização vivida por essas comunidades tradicionais.

187
Conclui-se até aqui que os diálogos e ações dessas mulheres são exemplos da
trajetória de luta feminina na Amazônia, que se define pela conexão entre luta, corpo e
natureza. A voz das mulheres amazônidas à frente de denúncia das explorações desenfreadas
dos recursos de seus territórios, da desvalorização do trabalho feminino e da dominação
exercida pelo projeto de exploração amazônico sobre os corpos femininos é de extrema
importância para que esse cenário tão problemático faça surgir novas perspectivas de
reflexões e debates.

Palavras-chaves: Amazônia. Ecologia. Política.

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. Revista


de Antropologia, Vol. 39, No. 1 (1996), pp. 13-37.

AYMORÉ, Débora. O Ecofeminismo e a Relação entre Natureza e Mulher. Fênix - Revista


de História e Estudos Culturais, Vol. 17 n. 1, p. 176-191, Maio, 2020.

HEYWOOD, Andrew. Ideologias Políticas: do feminismo ao multiculturalismo. 2° edição.


São Paulo: Editora Ática, 1962.

OLIVEIRA, Tatiana. Uma leitura (eco)feminista sobre a CFEM. In: Tatiane Oliveira,
Mulheres Amazônidas: ecofeminismo, mineração e economias populares. Brasília: Instituto
de Estudos Socioeconômicos – INESC, 2021. p.12-31.

CONGILIO, Celia Regina; REIS, Iara Fernandes. A acumulação capitalista na Amazônia:


uma abordagem a partir dos grandes projetos. In: Tatiane Oliveira, Mulheres
Amazônidas: ecofeminismo, mineração e economias populares. Brasília: Instituto de Estudos
Socioeconômicos – INESC, 2021. p. 62-87.

188
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

A RELAÇÃO CORPO-TERRITÓRIO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO 2°


ENCONTRO NACIONAL DAS MULHERES ATINGIDAS POR
BARRAGENS

Marília Geovana de Oliveira Lisboa69


Alan Nunes Araújo70

As políticas de transformação territorial implantadas na Amazônia, principalmente


a partir da década de 1960 e sob regime ditatorial, traziam à tona o discurso integracionista
da economia nacional, dando espaço e criando subterfúgios para espoliação dos recursos
naturais e transposição de realidades alheias sobre a região, provocando fluxos migratórios
intensos, construção de estruturas de suporte aos grandes projetos e desterritorialização de
comunidades diversas que já habitavam a Amazônia e tinham configurações sociais
próprias.

A perspectiva de ampliação do aproveitamento Hidroelétrico regional tem se


constituído uma preocupação constante das organizações e movimentos sociais
locais e regionais. Os dados e as lições do passado recente impõem a necessidade
de cautela, isto porque a relação entre estes aproveitamentos hidrelétricos. E as
populações regionais representam ainda e cada vez mais um aspecto repleto de
contradições e no horizonte próximo de difícil conciliação. Os impactos
populacionais rurais de urbanos, ambientais e territoriais decorrentes tornaram
polêmicas essas grandes obras de infraestrutura energética. (ROCHA, 2013, p.198)

Diante da transformação drástica imposta pela lógica capitalista na Amazônia,


movimentos contra hegemônicos iniciaram seus trabalhos de resistência, questionamento e
ação interna visando a defesa frente às violações aos direitos humanos causados pelo novo
modelo de gestão territorial.
A escolha pelo relato das mulheres que compõem o movimento advém da
percepção no tocante a perspectiva do gênero dentro dos impactos e conflitos
socioambientais. Neste aspecto, a composição do Movimento dos Atingidos por Barragens
- MAB é de aproximadamente 60% de jovens e mulheres. Neste sentido, uma manifestação

69
Licenciada em Geografia pela Universidade do Estado do Pará -UEPA. Mestranda do programa de
pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Pará - PPGEO-UFPA. E-mail:
marilia.lisboa@ifch.ufpa.br.
70
Professor da Faculdade de Geografia e Cartografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia –
Universidade Federal do Pará. E-mail:alanaraujo@ufpa.br.

189
da importância do debate é o trabalho de base realizado para o reconhecimento da
identidade de mulher atingida e participante do processo contra hegemônico.
O processo de debate, construção e engajamento da mulher nos movimentos
voltados para a ação nos conflitos socioambientais levanta discussões em espaços de
pesquisa, principalmente na função social da universidade no desenvolvimento de trabalhos
e teorias voltadas a esta conjuntura, para construção de conceitos e visibilidade destas
populações.
Uma breve análise proposta neste resumo é a relação do conceito de Corpo-
território aliado aos trabalhos de base desenvolvido pelo setor feminino do MAB, em suas
documentações e debates realizados em encontros, com destaque neste resumo para o
último encontro nacional das mulheres atingidas por barragens, realizado de forma remota,
em 24 de abril de 2021.
O conceito de Corpo Território é entendido a partir da construção das lutas frente a
lógica do capital e os impactos causados diretamente nas comunidades locais, a dimensão
da opressão estruturada pelas questões de gênero.

El concepto de cuerpo-territorio deviene del acumulado de las luchas


comunitarias. Interpela, la conexión entre la opresión perpetuada por un sistema
capitalista y patriarcal hacia las mujeres en todas las dimensiones y hacia los
territorios. Es decir, que las mujeres son víctimas de opresión y violencia no
solamente en relación con el territorio que defienden, sino con su mismo cuerpo,
el cual viene siendo sistemáticamente explotado y violentado. (JUBILEO SUR/
AMÉRICAS, 2020, p. 28)

O poder decisório para construção de barragens, principalmente na Amazônia, não


passa apenas pelo que é prescrito pelo equilíbrio nos Estudos de Impacto Ambiental ou
Estudos de Impacto Ambiental preconizados em lei (EIA/RIMA), mas também por
processos políticos, incluindo a ação de organizações não-governamentais desde
associações populares dos atingidos até organizações internacionais ambientais
(FEARNSIDE, 2015). Neste sentido, os impactos socioambientais são causados não
somente aos territórios, como aos corpos contidos nele que vivem e se relacionam, neste
aspecto, a via campesina reconhece a urgência do debate relacionado ao gênero e prática a
interseccionalidade71 nos seus trabalhos de base.

Quando uma mulher é afetada por um grande projeto, a sua participação e


construção da resistência da comunidade perpassa pela construção da sua identidade como

71
Referência utilizada para entender os diversos marcadores sociais como raça, classe e gênero como
relacionados e como influenciam na vivência em sociedade e opressões sofridas, sistematizado pela primeira vez
pela socióloga estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw.
190
atingida, como o grande projeto e as violências estruturantes afetam o seu corpo, como é
importante para a movimentação do coletivo, dada a sua relação íntima com o território e as
relações que estão contidas.
No encontro nacional das mulheres atingidas por barragens, realizado em 2021, a
questão do gênero foi pauta principal nas falas proferidas, a origem dos conflitos
socioambientais em que o MAB está inserido e os contextos que o cercam, a fala analisada
neste resumo será a de uma das coordenadoras nacionais do MAB, Ivanei Dalla Costa.
Num balanço geral realizado acerca do trabalho de enfrentamento ao modelo
energético, desde o início das atividades do MAB, as mulheres estavam presentes, em um
primeiro momento fornecendo a condição para os homens participarem, através da função
histórica de cuidado da casa e família.
Nos anos 1990, com o processo de privatização do setor energético nacional, a
construção do movimento teve de passar por uma reinvenção, a unificação nacional foi
necessária e incentivou o fortalecimento da participação das mulheres.
O aperfeiçoamento dos estudos do setor energético e elétrico foi aprofundado e
com isso os trabalhos de base de debate acerca de como as mulheres são atingidas por este
modelo, neste processo levou a afirmação e provocação da análise e a luta das mulheres
atingidas.
A questão estrutural foi a primeira a ser destacada, afirmando que o modelo
energético nacional é patrimonialista, reconhece o título de propriedade, onde a casa vai ser
atingida está em sua maioria no nome dos homens, onde as mulheres são excluídas deste
processo.
Com a chegada das barragens, as mulheres são as que mais sofrem com a perda
dos laços familiares, laços com a comunidade em que vivem, onde fica mais claro a divisão
do espaço público e espaço privado, aonde os homens vão para a parte pública das lutas e
negociações, enquanto as mulheres ficam no privado da casa e filhos, há uma perda do
espaço de trabalho existente, equipamentos básicos de atendimento a família como postos
de saúde, escolas.
Estudo realizados em espaços acadêmicos também foram citados, em que
destacam o aumento da prostituição de mulheres e crianças nestas regiões (FIGUEIREDO,
SARAIVA, 2018), com a ida de muitos trabalhadores para as áreas de construção, a
indústria da prostituição se instala, como um mecanismo para legitimar a acomodação dos
operários nas obras, retratados atualmente em Rondônia e em Belo Monte.

191
Outras questões que são violações de direitos, é o deslocamento forçado dessas
mulheres e suas famílias, onde são forçadas a pagar tarifas altas. Na medida em que os
estudos foram sendo publicados, as denúncias públicas foram feitas acerca destas
violências.
As falas proferidas no encontro nacional das mulheres atingidas por barragens, os
materiais publicados pelo MAB e os estudos acerca da problemática do modelo energético
e os impactos socioambientais são importantes para entender o processo de construção da
luta do movimento, o trabalho de base que é desenvolvido e como o processo de
reconhecimento da identidade da mulher enquanto atingida foi e está sendo realizado nestes
espaços.
Uma nova perspectiva é colocada em destaque, que é a análise dos impactos a
partir dos corpos das mulheres. Que territórios e processo de defesa estes corpos delimitam
e participam? Como estes são violentados e discriminados de forma sistemática e como se
manifesta no modelo patrimonialista, patriarcal, racista e classista do modelo energético
internacional, que tem sua ação no Brasil? Questionamentos esses que reafirmam a
necessidade de compreender, frente ao exposto neste trabalho a relação corpo-território vis-
à-vis o impacto das barragens e as discussões de gênero inerentes a este complexo processo
que vai além de uma estrutura física, que são as barragens, em meio a natureza.

Palavras-chaves: Mulheres, Corpo- Território, Barragens.

REFERÊNCIAS

MAB, COLETIVO NACIONAL DE COMUNICAÇÃO DO. Mab 30 Anos De Lutas: A


Força Dos Atingidos E Atingidas. 2021.

COSTA, Ivanei Dalla. In: 2° ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES DO MAB.


2021. Remoto via Zoom.

FEARNSIDE, Philip M. Impactos ambientais e sociais de barragens hidrelétricas na


Amazônia brasileira: As implicações para a indústria de alumínio. Hidrelétricas na
Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes
Obras, v. 2, p. 261-288, 2015.

FIGUEREDO, A. C. P., & Saraiva, L. J. C. (2018). A prostituição em grande projetos na


Amazônia: O impacto do grande capital nos fluxos de mão de obra na UHE Belo
Monte. Nova Revista Amazônica.

192
INSTITUTO PACS. Mulheres-territórios: Mapeando conflitos, afetos e resistências.
2021.

ROCHA, G.M. A construção da usina hidrelétrica belo monte e a dinâmica


populacional e urbana de altamira (PA) In: ARAGÓN, L, E (org.) MIGRAÇÃO
INTERNA NA PAN AMAZÔNIA- Belém: NAEA, 2013.

REDE TRASNFORMAÇÃO E RED JUBILEO SUR/ AMÉRICAS. La situación de género


relacionado a los procesos presupuestarios y las políticas macroeconómicas. Managua,
2021.

193
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

AS “BRIGONAS” DO PIROCABA: PROTAGONISMO DE


MULHERES, GRANDES PROJETOS E AÇÃO PÚBLICA EM UMA
COMUNIDADE DA AMAZÔNIA

Fernanda Lemos de Oliveira72


Maria José da Silva Aquino Teisserenc73

O objetivo deste trabalho é compreender como, através de que parcerias e face a quais
desafios, se desenvolve e se afirma a implicação de mulheres na luta em defesa de um
território. Um território de conscientização do trabalho feminino na comunidade do Pirocaba,
localizada no município de Abaetetuba-Pará. A análise empreendida foca sobretudo as
motivações e inquietações das mulheres em relação com a desigualdade e invisibilidade de
seu trabalho no território. Inquietações e motivações traduzidas em uma conscientização que
levaram essas mulheres a se sentirem parte vital na dinâmica comunitária, levando-as a
organizarem mobilizações cujos fins envolveram não somente a busca de reconhecimento
delas próprias, mas a assumirem o protagonismo nas lutas em defesa de seu território.
O território no qual se desenvolve a dinâmica analisada acolhe a comunidade do
Pirocaba, em Abaetetuba-Pará. Nos últimos anos, a localidade vem sofrendo ameaças por
parte de uma multinacional, a empresa americana Cargill, à frente de um projeto de
construção de um Terminal Portuário de Uso Privado (TUP), no Urubuéua, uma das ilhas do
município de Abaetetuba. Identificado como uma ameaça objetiva à permanência da
comunidade do Pirocaba em seu território e as implicações de ordem econômica, social e
cultural, mobilizações passaram a ocorrer tendo por objetivo a defesa do território. Nessas
mobilizações, emerge a crescente participação das mulheres nas decisões relativas ao
desenvolvimento e ao planejamento territorial do Pirocaba.
O método de abordagem apresentado para pesquisa é qualitativo, pois um estudo de
caso que recorre à história oral, considerando as trajetórias, reconstruídas com informações
obtidas em entrevistas concedidas por duas lideranças da comunidade, Daiane Araújo e
Daniela Araújo. As entrevistas, gravadas em áudio, foram realizadas em 2019 e 2022

72
Graduada em Geografia e mestranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará,
fernandalemos920@gmail.com.
73
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará.
mjaq@uol.com.br.
194
respectivamente, utilizando-se um roteiro com perguntas semiestruturadas. Embora a
utilização do recurso da entrevista seja recente um acompanhamento das dinâmicas do
Pirocaba remontam a 2018 e durante os anos de 2020 e 2021, em razão de restrições impostas
pela Covid, as visitas se tornaram menos regulares, mas não foram interrompidas. Com isso
foi possível observar diretamente momentos importantes das mobilizações. Além disso,
convém referir como meio de obtenção de informações o permanente contato com as
lideranças da comunidade através das redes sociais.
Até aqui os dados obtidos permitem perceber que uma situação socioterritorial tensa
se estabelece entre a comunidade do Pirocaba e a multinacional Cargill. Conflitos se
configuram entre a corporação e as populações locais uma vez evidenciados usos e
apropriações confrontantes do território. Nesse sentido consideramos o território em ação,
cuja “presença desses conflitos cria uma situação que pode beneficiar à compreensão da
maneira pela qual o território da ação local se torna o território onde se pretende o
desenvolvimento sustentável” (TEISSERENC e TEISSERENC, 2014, p. 100). Com uma ação
local pautada no engajamento dos atores, com destaque para as mulheres lideranças da
comunidade, cria-se estratégias político-econômicas, levando à produção de novos territórios
que se definem na capacidade de responder também a efeitos da globalização (ARAÚJO,
2018).
Neste primeiro momento, identificamos o processo de conscientização do trabalho
feminino na comunidade como importante ferramenta para organização interna do Pirocaba.
Esse processo de conscientização se desenvolveu através de várias formações proporcionadas
pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), entre cujos
resultados destaca-se a “Caderneta Agroecológica”. Um instrumento no qual durante um mês
as mulheres anotaram o consumo, troca e venda de sua produção. A partir dessa experiência
foram conquistadas mais autonomia e conscientização quanto ao papel vital das mulheres na
vida comunitária, como relata Daiane Araújo, entrevista em 2022:

Uma das coisas que fez assim, que fortalecesse muito ainda as mulheres, foi a
questão da caderneta agroecológica, que a gente começou a trabalhar com elas e isso
fez elas enxergassem o trabalho delas, porque até para elas o trabalho delas era
invisibilizado. Porque elas enxergavam como uma ajuda, como uma coisa que era
normal e que elas faziam a muito tempo e como ninguém via elas, meio que elas não
se viam também. Mas a partir da Caderneta Agroecológica elas começaram a ver o
quanto elas produziam e a partir daí elas foram entender o quanto elas eram
importantes, teve umas que diziam assim “égua, eu fui ver que eu colaboro dentro
de casa mais que o meu próprio marido” e a partir daí elas enxergaram o quanto elas
eram importantes e isso fez até com que elas produzissem mais.

195
Apesar de não se atribuir o devido valor o trabalho das mulheres, principalmente no
trabalho doméstico, este gera um valor novo, ainda que não gere mais valor (ou mais valia),
este é parte do valor da força de trabalho (IASI, 2011, p. 140) e, no caso das mulheres do
Pirocaba, além do trabalho doméstico, estas ainda se dedicam à pesca, ao agroextrativismo, ao
artesanato, configurando assim vidas pessoais marcadas pelo desempenho de múltiplas
funções e por uma condição subalterna imposta em uma sociedade que, a partir de diferenças
naturais, cria desigualdades culturais, produz uma ideologia, naturalizando a ocupação de um
lugar determinado, e desfavorável, no sistema de produção e reprodução social (DUARTE,
2014).
Mas, de acordo com Duarte (2014, p. 100) identifica que “as mulheres trabalhadoras
rurais passam a identificar o processo de opressão em que estão inseridas e criam
organizações específicas com o intuito de criar espaços de diálogo e práticas políticas para
transformação do que está posto”. Logo, com o crescente debate da importância da mulher e
do seu trabalho na comunidade, estas tomaram à frente da organização interna dos espaços de
deliberação, antes ocupado na sua maioria por homens. No caso do Pirocaba, identificamos
mulheres como líderes na organização das ações da comunidade, pautadas no debate acerca
da valorização do trabalho agroextrativista, de demandas especifica das mulheres nos espaços
políticos e na luta territorial. Nesse sentido consideramos a perspectiva de Daniela Araújo, em
entrevista de 2019:

Por um acaso os homens que já foram representantes do Sindicato, do assentamento,


presidente não sei das quantas, não conseguiram o que a gente conseguiu, mobilizar
uma associação, fazer uma organização em relação ao enfrentamento dos grandes
projetos e com isso conseguisse fazer inúmeras outras coisas... A gente conseguiu
fazer o protocolo da nossa comunidade, e hoje eu falo assim se você for aqui nas
casas da comunidade vocês vão ouvir das pessoas que isso partiu de nós, primeiro
das brigonas porque logo no começo foi assim, mas hoje se algo acontece é as
brigonas que tem que resolver.

Trata-se, portanto, de uma dinâmica envolvendo mulheres que assumem um papel


político central para a Comunidade do Pirocaba, ocupando espaços importantes de decisão.
Além de mães e donas de casa, essas mulheres, como refere Federici (2021, p. 185): “São as
mulheres, sobretudo na América Latina, que hoje lideram a luta por um ambiente ecológico
seguro; são elas que estão à frente da reprodução de suas famílias e conhecem bem as
consequências do envenenamento da terra e das águas para o futuro de suas comunidades”. O
que está ocorrendo no Pirocaba conforta o ponto de vista de Federici.
Evidentemente, a participação de parceiros externos à comunidade é considerável.
Para a organização interna, a Comunidade do Pirocaba contou com o apoio da FASE, que

196
atuou no processo de conscientização dos direitos das comunidade agroextrativista,
desenvolvendo formações sobre a importância da luta por justiça ambiental, defesa de bens
comuns, direitos territoriais, autonomia econômica e política para as mulheres, além da
consolidação de mecanismos e redes de comercialização justa e solidária, e no fortalecimento
de instâncias de controle social e espaços de construção da agroecologia.
Diante de todo o processo de conscientização das mulheres sobre seu trabalho e sua
importância dentro da comunidade, estas se tornaram lideranças no processo de luta contra a
Cargill, e a partir desse movimento dirigido pelas mulheres, houve a articulação em redes de
apoio para o enfrentamento: acionando outras comunidades ameaçadas, sociedade civil
organizada, ONGs, sindicatos e outros atores. Juntos, esses atores hoje reivindicam a
transparência no processo de implantação do TUP e a consideração das consequências
nefastas para a natureza e para as chamadas populações tradicionais, além de exigirem a
aplicação da Lei de consulta prévia livre e informada às comunidades tradicionais. Na
entrevista com Daiane Araújo (2022, agosto, dia 6), é ressaltada a importância do processo de
luta territorial iniciado pelas mulheres na comunidade:

Esse enfrentamento sempre foi muito puxado por mulheres, foi a partir delas que
começou, não que os homens não tenham sua parcela de contribuição, mas sempre
foi muito das mulheres, a partir da Dani e da Dilmara, elas que iniciaram isso e a
partir delas outras mulheres se sentiram seguras e empoderadas para fazer esse
mesmo caminho, mas foi a partir delas, porque se elas não estivessem lá dando a
cara a tapa e dizer que queriam falar, hoje acho que a gente não tinha isso dentro do
território.

Pois, com a mobilização interna da Comunidade iniciada pelas mulheres, houve


diversas reuniões e assembleia geral dos moradores para a construção do Protocolo de
Consulta Prévia Livre e Informada do Pirocaba (PCPLI), elaborado pela Associação dos
Agroextrativistas, Pescadores e Artesãos do Pirocaba (ASAPAP), em parceria com a FASE e
com o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Pará e outras entidades. Esse
documento foi lançado em 2018.
Além do Protocolo de Consulta Prévia Livre e Informada do Pirocaba (2018), a
comunidade também organizou seu Plano de Gestão Territorial (PGT) do Território
Agroextrativista Pirocaba, lançado neste ano de 2022, no dia 28 de maio, em uma assembleia
geral para aprovação, ocorrida no centro comunitário Nossa Senhora de Nazaré.
Para as lideranças da comunidade, o Pirocaba é mais que uma localidade ou um
simples ponto de moradia, significa bem mais para todos que vivem ali, como diz Daniela,
liderança feminina da comunidade, em entrevista em 2019:

197
Assim, hoje para mim na nossa organização, o Pirocaba não só é um modelo de
organização e resistência não só pra nós como pra outras comunidades e é assim
como gosto de falar, um modelo de vida, é aquilo que a gente se reconhece e que
precisa desse espaço para sobreviver, então ele é um meio de vida, meio de
resistência, meio de sobrevivência, porque nossa organização tá mobilizada para a
permanência no território.

Trata-se de um território reivindicado, é material e imaterial ao mesmo tempo e a


reinvidicação coletiva das comunidades acompanha-se de uma ação coletiva autônoma,
espaço de referência para a construção de sua identidade com escolhas e controle efetivo do
bem comum, com a capacidade de controlar seu destino coletivo (TEISSERENC e
TEISSERENC, 2014).
A relação com o território é bem mais que um simples morar, é um bem viver, uma
relação entre existência. E toda articulação interna criada nesta Comunidade, além de colocar
seu modo de vida como prioridade, também incluíram a valorização do trabalho das mulheres
como parte importante do processo de resistência, contribuindo para a imersão de atrizes
políticos fundamentais no processo de uma luta que se configura como uma ação pública
territorial e ambiental bastante marcada pelo protagonismo das mulheres.

Palavras-chaves: Pirocaba. Protagonismo feminino. Grandes Projetos na Amazônia.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Isaac Fonseca (2018). “Sociologia da ação local e territorial”. In ARAUJO,


Isaac Fonseca. Território da ação local: uma experiência amazônica de vida associativa.
Curitiba: CRV (P. 31-47).

DUARTE, Emmy Lyra. Movimento de mulheres trabalhadoras da paraíba (MMT/PB):


mobilização social, trabalho e relações de gênero. Dissertação (Mestrado em Geografia) -
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba (PPGG/UFPB). João
Pessoa, 2014.

FEDERICI, Silva, 1942 – O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e


feminismo, volume 1/Silva Federici; tradução Heci Regina Candiani. – 1. Ed. São Paulo:
Boitempo, 2021.
IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre a conscientização e emancipação. – 2.ed. – São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

TEISSERENC, Pierre; TEISSERENC, Maria José da SA. Território de ação local e de


desenvolvimento sustentável: efeitos da reivindicação socioambiental nas ciências
sociais. Sociologia & Antropologia, v. 4, p. 97-125, 2014.

198
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

POR UMA OUTRA ESCOLA POSSÍVEL NA FLORESTA:


SABERES, CORPORALIDADES E EXPERIÊNCIAS NO BRINCAR
DAS CRIANÇAS DO IGAPÓ-AÇU/AM

Lia Mandelsberg Monteiro74

Esta pesquisa parte de uma investigação com as crianças do Igapó Açu/AM sobre as
suas experiências, corporalidades e produção de saberes durante o brincar. Temos
experienciado e analisado seus brincares, buscando compreender como se dá a produção de
conhecimento destas crianças enquanto brincam e de que maneira o corpo está envolvido neste
processo - dentro e fora da escola. Primeiramente, projetamos que os resultados dessa
investigação oportunizassem a incorporação dessas formas próprias da criança em produzir
conhecimento (aprender, ensinar, conhecer, sentir, experimentar, criar) nos processos de
ensino-aprendizagem da Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Igapó-Açu
(Escola Igapó-Açu). A Escola tem investido desde sua criação na elaboração de uma
metodologia própria que corresponda às necessidades e desejos de seus sujeitos. Hoje, já com
a pesquisa em curso, temos percebido que um estudo acerca do modo como as crianças vivem,
apreendem a realidade e se expressam, podem, além de balizar ações educativas, nos
apresentar pistas para refletirmos sobre as diferentes formas de produção de conhecimento na
contemporaneidade. Para além de conhecer o repertório de brincadeiras das crianças do Igapó-
Açu, temos investigado o modo específico pelo qual estas crianças operam o conhecimento,
nas suas mais diversas experiências ao brincar, sustentando a ideia de que o brincar é um ato
de conhecimento em si.
Até a década de 70 os estudos sobre a infância, ainda amparados por dicotomias da
modernidade, se deram no campo das ciências naturais. Durante um longo tempo da história
das ciências as crianças foram vistas como seres sem cultura, coligadas à ideia de natureza e
encaradas como um “vir a ser” em direção a adultez. Foi por considerá-las como projetos de
adultos que se justificou todo o investimento na direção de civilizá-las. Para esta pesquisa

74
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciência Humanas (PPGICH),
Universidade do Estado do Amazonas (UEA), liamandelsberg@gmail.com.br
199
temos nos amparado nos chamados Novos Estudos da Infância, campo interdisciplinar que
surge nos anos 80 num movimento crítico a tais produções científicas sobre a infância
desenvolvidas ao longo do século XX.
Uma das críticas apresentadas por autores deste campo (BUSS-SIMÃO 2007; 2012;
PROUT, 2010; BARBOSA, 2014; 2016; NUNES, 1999; 2003; PIRES, 2010) tratam de
enfatizar a importância do diálogo entre as temáticas da infância e do corpo, evitando que
sejam estudadas separadamente. Para eles, é na experiência corporal das crianças que
podemos encontrar chaves para (r)estabelecer relações e superar velhas dicotomias que ainda
permeiam os estudos da infância. Estudos interdisciplinares sobre, para e com crianças
mostram-se imprescindíveis para promover necessárias mudanças de paradigma na educação,
na antropologia e na própria concepção de conhecimento. Assim, a proposta desta pesquisa
busca as “vozes” das crianças, nas suas diversas nuances e formas, como fonte primária de
pistas para pensarmos uma educação que comporte outrasepistemologias.
Nesse sentido, Cunha (2007) traz importantes reflexões acerca das relações e
distanciamentos entre os conhecimentos científicos e os saberes tradicionais. A autora aponta
que diferentes formas de conhecimento operam com diferentes unidades, amparando assim,
uma investigação atenta às unidades por quais operam as crianças - para além de suas ideias
- tais como os cheiros, os gostos, os gestos e as sensações que compõem sua experiência. Ao
nos debruçarmos sobre a experiência lúdica das crianças do Igapó-Açu/AM temos observado
que o brincar se dá na fricção entre corpo, cultura e natureza. Tal constatação nos convoca,
ainda mais, para o estudo acerca da corporalidade – e das concepções de corpo - destas
crianças. Para tanto, temos nos nutrido nas férteis contribuições de antropólogos(as) como
Barreto (2021) e Stolze (2002) que apresentam concepções de corpo em cosmologias não-
ocidentais75.
Nestas, o corpo não existe independente da cultura, tampouco da natureza; o corpo só
existe em relação a algo do mundo, além de ser passível de transformação e composto de
elementos visíveis e invisíveis. O corpo no brincar das crianças do Igapó-Açu está
intimamente ligado à natureza e essa intimidade parece pautar suas percepções e
entendimentos de mundo. Em um dos encontros da pesquisa, um aluno nos ofertou a
seguinte questão: “Como a natureza se comunica com os animais, será o vento um tipo de
linguagem?” Sob uma visão reducionista, tal questionamento poderia ser alocado somente
no âmbito da natureza. Porém, ao elaborar tal pergunta, esta criança, que experimenta o
75
Aqui me refiro a pesquisa de Doutorado de João Paulo Barreto realizada com seu próprio povo Yepamahsã, e
ao artigo de Stolze no qual compartilha parte da pesquisa realizada com o povo Juruna.
200
corpo de maneira rica e diversa no rio, na variedade de sons de pássaros, nas diferentes
texturas das árvores que sobe, nas histórias da floresta que ouve de seus familiares, nos
animais caçados e frutas que experimenta, no aprendizado da arte de remar, flechar, construir
casas e canoas, nos revela que cultura e natureza não estão separadas nos seus modos de
pensar, sentir e perceber.
Os sujeitos desta pesquisa, crianças dos ciclos fundamentais 1 e 2 alunas da Escola
Igapó-Açu, são moradores de duas comunidades ribeirinhas na floresta Amazônica
permeadas de conflitos entre si. São Sebastião do Igapó-Açu/AM está dentro dos limites de
uma Unidade de Conservação (UC), enquanto Nova Geração/AM é considerada entorno da
UC, portanto, são regimentadas por diferentes legislações. Enquanto Nova Geração é uma
comunidade de pescadores extrativistas, São Sebastião do Igapó-Açu tem se adaptado
melhor as diretrizes do plano de gestão da UC, com modos de vida que tem a conservação
como prioridade. Ambas estão localizadas a beira da BR-319, rodovia que nos últimos 20
anos tem sido alvo de disputas e conflitos políticos e sociais para que seja autorizada ou
inviabilizada sua repavimentação. Já o Rio Igapó-Açu separa as duas comunidades,
localizadas à margem esquerda e direita do rio, e também as une, na abundância do que
compartilham, como os peixes para alimentação ou suas águas para tráfego, banhos e
brincadeiras.
Desta mesma forma, a Escola Igapó-Açu é motivo de conflitos e união. A escola
simboliza um longo processo coletivo de lutas e conquistas por uma educação de qualidade
para filhos e filhas dos moradores de ambos os lados do rio, mas também carrega em sua
história conflitos e resistências diante das propostas diferenciadas que surgiram na sua
criação. Assim, na delimitação do campo nos deparamos com questões identitárias relevantes
à pesquisa. Áreas como a Antropologia da Criança e a Sociologia da Infância têm defendido
que estudos sobre crianças devem estar atrelados à seus agenciamentos no interior de suas
culturas; ao investigarem a produção simbólica e a agência das crianças em contextos sociais
diversos, as reconhecem como sujeitos de direitos, agentes sociais e produtoras de cultura. O
reconhecimento de tal singularidade e complexidade da criança, atrelada aos seus contextos,
permite conceber como plurais as crianças, as infâncias e as culturas infantis.
Sob tal perspectiva, estes estudos indicam que faz-se necessário buscarmos
metodologias que permitam a realização de pesquisas não apenas sobre as crianças, mas
também para e principalmente com crianças. Nesse sentido, para esta pesquisa buscamos
eleger uma abordagem metodológica que nos permitisse operar com procedimentos variados,

201
idealizando forjar métodos que nos aproximassem daexperiência do brincar, experiência que,
até hoje, melhor permitiu à pesquisadora conhecer profundamente as crianças. Mestres
brincantes76 afirmam de diferentes maneiras que legitimar o brincar é uma maneira de
estabelecer relações horizontais com as crianças e assim respeitar suas formas específicas de
ser.
Optamos, portanto, por uma metodologia participativa com abordagem qualitativa,
composta por: (1) encontros de brincar na escola, (2) encontros de brincar fora da escola e
(3) rodas de conversa. Nos encontros de brincar na escola, temos proposto atividades como
dança, desenhos, pintura, poesia e música na Escola Igapó-Açu, com foco nos processos
criativos, na interlinguagem e na experienciação de poéticas individuais e coletivas; nos
encontros de brincar fora da escola, são realizadas proposições de brincadeiras que partem
tanto da pesquisadora quanto das crianças; os encontros acontecem no cotidiano, ora
agendados, ora espontâneamente; nas rodas de conversa compartilhamos temáticas e
problemáticas da pesquisa visando que as concepções de corpo das crianças e suas
experiências no brincar possam ser expressas por suas próprias vozes e termos.
A partir do entendimento da brincadeira como linguagem e da metodologia
empregada na pesquisa, tem sido possível estabelecer conexões do brincar com o universo
artístico, entendido nas suas diversas linguagens. Nas atividades dos encontros de brincar na
escola temos visto que as crianças operam por uma lógica semelhante, senão a mesma,
daquela encontrada no brincar espontâneo. Nestes encontros, os materiais (tinta, pincel,
sucata) e os procedimentos (massagens, toques corporais, ou criação de movimentos, ritmos
e melodias) do universo artístico geraram, a princípio, certo estranhamento ou timidez nas
crianças. No entanto, após alguns encontros, já podemos vê-las operar os materiais e
procedimentos com mais desenvoltura e ânimo. Assim, temos investigado aproximações em
seus modos de operar ao “fazer arte” e ao brincar, através do caráter multilinguístico,
criativo, investigativo e sensível expressados em ambas as experiências. Estudos
interdisciplinares que têm investigado as crianças nos seus diversos aspectos, a
reconhecem como sujeito social distinto do adulto. Trata-se, portanto, do universo da
alteridade as pesquisas com crianças; e o que marca essa diferença entre adultos e crianças é
expresso, essencialmente, pelos usos das linguagens. Temos olhado, para o brincar, sob esta
perspectiva.(CARVALHO, 2007).

76
Tais como Roque Antonio Juaquim, Mestre Faria, Lydia Hortélio, Renata Meireles, Levindo Carvalho, entre
outros, - alguns dos quais tivemos o prazer da convivência.
202
Por fim, para pensarmos a escola destas crianças, trazemos à tona parâmetros que
definem a educação do campo, uma vez que a Escola Igapó-Açu pode ser amparada por tal
legislação. Tais parâmetros, organizados em Diretrizes77 são resultado de lutas sociais pela
legitimação das pessoas que vivem no campo como sujeitos de direitos. Estando a favor de
parcelas menos favorecidas da sociedade, tais parâmetros orientam uma educação contra-
hegemônica. Assim, a partir do diálogo entre os temas corpo, brincar, cultura, natureza e
educação, temos elaborado que uma escola protagonizada pelas crianças estaria de acordo
com a legislação brasileira e com os mais recentes estudos sobre a infância, corroborando
com um movimento decolonial urgente, principalmente tratando-se de uma educação
pensada para os povos da floresta.
Essa pesquisa tem permitido compreendermos que as crianças têm um modo singular
de ser e conhecer que é expressa na linguagem do brincar, modo específico de apreensão do
mundo, expressão de si e relação com o outro. Tem sido também possível estabelecer
conexões entre a linguagem do brincar e as linguagens artísticas tanto pelas unidades com
que operam quanto por seus procedimentos.
Desta forma, temos encontrado pistas para encararmos o brincar e a arte como
valiosas estratégias metodológicas para uma escola que busca: o protagonismo dos sujeitos a
quem se destina; uma aproximação às linguagens da infância para pautar seus modos de
fazer; a admissão de uma posição de alteridade e de não opressão, enquanto adultos, em
relação às crianças; e uma verdadeira educação da sensibilidade. Temos defendido que o
aprendizado é sempre pelo corpo, e nas sociedades que vivem próximas a natureza esse
entendimento torna-se mais explícito. Uma compreensão de corpo complexa, que admite os
afetos, as sensações, os sentimentos e as experiências como componentes do conhecimento e
da produção de sentidos, aponta tanto para sua importância no terreno da educação, no que
diz respeito a uma compreensão de infância mais próxima à experiência de ser criança no
mundo, quanto para a urgente admissão da existência de outras epistemologias para se
pensar a produção de conhecimento na atualidade.

Palavras-Chave: Brincar. Corpo. Experiência.

77
Resolução CNE/CEB n. 1, de 3 de abril de 2002 que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo aponta a obrigatoreidade do oferecimento de uma educação de qualidade para todos e
todas (1) no lugar onde se vive, (2) com participação de seus sujeitos e (3) vinculada à cultura e às
problemáticas do cotidiano daqueles a quem se destina.

203
REFERÊNCIAS

BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Culturas infantis: contribuições e reflexões. Curitiba:


Rev. Diálogo Educ., v. 14, n. 43, p. 645-667, set./dez. 2014.

BARRETO João Paulo Lima. Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e
o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. Amazonas:
2021.

BONDÍA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista


Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.

BUSS-SIMÃO, Márcia. Antropologia da Criança: Uma revisão da literatura de um


campo em construção. Rio de Janeiro: Revista Teias, 2009.

CARVALHO, Levindo Diniz. Imagens da Infância: Brincadeira, Brinquedo e Cultura.


Belo Horizonte: 2007.

CUNHA, Manuela Carneiro. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber


científico São Paulo: Revista USP, n.75, p. 76-84, setembro/novembro 2007.

COSTA, Lucinete Gadelha da (Org.). Tecendo Reflexões sobre Educação no contexto


amazônico. Manaus: Editora UEA, 2021.

LIMA, Tania Stolze. 2002. “O que é um corpo?”. Religião e Sociedade. Disponível em:
https://silo.tips/download/que-e-um-corpo-1-tania-stolze-lima.

NARVAEZ, Nohely Guzmán. Esta carretera nos atraviesa”: indigenous girls’ body-
territory mapping in the emergence of Chinese capital in the Bolivian Amazon. Tese
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NUNES, Ângela. Brincando de Ser Criança. Contribuições da etnologia indígena


brasileira à antropologia da infância. (Tese de Doutorado) Lisboa: 2003.

PIRES, Flávia. O que as crianças podem fazer pela antropologia? Rev: Horizontes
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PROUT, Alan. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa,


v.40, n.14.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de


identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e
identidade, no 34, p. 287-324, 200.

204
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

AS IDENTIDADES COLETIVAS E SEU PODER DE


MOBILIZAÇÃO: UMA EXPERIENCIA DO MÉDIO MEARIM
MARANHENSE

Francisca Gárdina dos Santos Lima78

Os conflitos sociais foram acontecimentos que entrelaçaram a vida de muitos


trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu do Médio Mearim maranhense, sobretudo
na década de 1980. Juntos identificaram quem eram os seus inimigos e buscaram a estratégia
de resistir coletivamente. A resistência cotidiana é informal e muitas vezes dissimulada, ou
seja, os atos de resistência também se dão de forma sutil e disfarçada (SCOTT, 2011). Foi
dessa maneira que em muitos momentos esses agentes agiram.
As formas de resistência desses agentes sociais foram elementares para a conquista da
terra e do território livre. A ideia de resistência é um modo alternativo de conceber a história
humana (SAID,1993). Nesse sentido a elaboração identitária adquirida no processo dos
conflitos lhes direcionaram para uma construção coletiva. São questões que perpassaram os
limites de uma atribuição identitária pura e simplesmente pela ocupação profissional.
O território livre ultrapassa a compreensão de aquisição da terra, apenas. Os agentes
sociais que conversei para a construção desse trabalho trouxeram em suas narrativas esse
termo para afirmar suas identidades, seus modos de vida, suas relações sociais, suas
expressões religiosas, suas relações de sustentabilidade tanto econômicas quanto ambientais.
Enfatizaram exatamente a importância da preservação dos babaçuais, assim como suas áreas
de reservas ambientais, rios, lagos e lagoas, compreendendo que são elementos que compõem
seu território e devem ser elementos de uso comum.
O acionamento de uma identidade coletiva foi uma estratégia política que reafirmou
a concepção de luta em comunidade. Havia um coletivo reivindicando por pautas em comum,
o que ganha dimensão de força e poder, nesse sentido busquei a contribuição de Bourdieu
(2004, p.163) quando diz que “as relações objetivas de poder tendem a se reproduzir nas

78
Mestra em Cartografia Social e Política da Amazônia pela UEMA. Especialização em Educação do Campo
pela UFMA e Graduada em Licenciatura em Educação do Campo pelo IFMA. Desenvolve pesquisas sobre
questões étnicos raciais e conflitos agrários em comunidades quilombolas. E-mail: fgardinama@gmail.com

205
relações de poder simbólico”. O grupo que se uniu por pautas em comum passa a ser
reconhecido pelo poder político que carregava, e a luta deixa de ser compreendida (sobretudo
pelos antagonistas) como algo individualizado e de enfrentamento físico. Como nos disse
nossa interlocutora, quilombola e liderança comunitária: “Sim, nós luta pelo território, nós
luta pelo babaçu livre, pelas políticas públicas que é várias coisas, mas pra isso tudo a gente
precisa tá unido, tá junto” Dona Florismar Veloso (Dodó), 03 de fevereiro de 2020.
É nesse contexto que fortalece a compreensão identitária, não a individual, mas sim
coletiva, Bauman (2005) nos chama atenção para compreender tanto a identidade quanto o
pertencimento como algo flexível, propenso a mudanças de acordo com as experiencias
vividas e experimentadas dos agentes sociais. Os trabalhadores e quebradeiras vivenciaram na
luta pela terra e livre acesso aos babaçuais, situações dinâmicas que exigiam mudanças de
comportamentos e de estratégias para o enfrentamento como podemos perceber na fala de
nossa interlocutora que é uma mulher quilombola.
o conflito começou aqui em 2007. Do broque79 a gente escutava o trator derrubando
tudo, a comunidade aqui se juntou, todo mundo aqui foi botar roça nessa área, nesse
tempo começou o conflito que passou os 3 meses. Nós cozinhava aí, o Helcir ficava
mais nós aqui pra ir deixar o comer e os outros ficava rodiando lá os que tava
brocando pra qualquer coisa era pra avisar. (Dona Zenaide Maria da Conceição, 02
de fevereiro de 2020).

Ao iniciar essa descrição me reportei sobre as identidades coletivas desses agentes


que surge daquele contexto que vivenciaram intensos conflitos e nota-se que Dona Zenaide
está narrando sobre um conflito que passaram em 2007, ou seja, o auge ocorreu em 1980, mas
inúmeras comunidades tradicionais no Maranhão continuaram sendo alvo de interesses dos
fazendeiros e com isso os conflitos permaneceram.
Destaca-se inclusive, segundo dados do último caderno da CPT- Comissão Pastoral
da Terra de 2021 o aumento da violência no campo, que se assentou consideravelmente desde
o impeachment da presidenta Dilma Rousseff no ano de 2016 e vem se intensificando com
governo do atual presidente da república.
Em 2021, as 1.242 violências por terra no Brasil envolveram 164.782 famílias,
número inferior ao registrado em 2020. Os 304 conflitos pela água atingiram 56.135
famílias e aproximadamente 224 mil pessoas. Os assassinatos somaram 35, um
aumento de 75% em relação a 2020, quando 20 pessoas foram mortas. A maior parte
das vítimas (10) era de indígenas, seguidos por sem-terra (9), posseiros (6 vítimas),
quilombolas (3 vítimas), quebradeiras de coco de babaçu e assentados (2 vítimas
cada), pequenos proprietários (2 vítimas). (CADERNO DE CONFLITOS NO
CAMPO-CPT, p. 28, 2022.)

79
Limpeza de área feito com foice e facão para fazer roça.
206
Trago essa relação para refletirmos sobre a necessidade de permanência nesse
processo de resistência que se fortalece pelas afirmações identitárias desses povos e sobretudo
compreendendo agem seus antagonistas. Barth (2000) nos ajuda a pensar sobre as identidades
étnicas, principalmente quando expressa que a identidade é fortalecida nas fronteiras, e
entenda-se aqui fronteiras sociais e não físicas.
Destaco a identidade construída das mulheres quebradeiras de coco babaçu que
reivindicavam naquele contexto o livre acesso aos babaçuais numa perspectiva de garantia
também do fator econômico, relacionado, por exemplo, as pautas de reconhecimento e
valorização do trabalho e emancipação das mulheres no contexto das relações de gênero.
Essas mulheres eram estigmatizadas pois tinham uma profissão compreendida de forma
individualizada, e só passaram a ser reconhecidas como coletivo, fonte de poder político
quando acionada essa existência coletiva. A luta pelo livre acesso aos babaçuais foi intensa,
mobilizou mulheres de vários municípios da região do Mearim, mas também de outras regiões
do Maranhão assim como de outros estados:
Em decorrência, o mundo das quebradeiras revela-se agora política e
economicamente construído e a sua abrangência transcende as fronteiras fixadas
pelas divisões político-administrativas. Sua existência coletiva, por outro lado, não
se confunde, necessariamente, com as áreas ocorrência dos babaçuais. O movimento
das quebradeiras não existe em todos os lugares em que há babaçuais. A nova
identidade emerge em sua plenitude onde foram construídas condições efetivas para
tal, senão vejamos: conquista da terra, autonomia no processo produtivo e do local
de moradia, formas de ação político-organizativas, que asseguram o livre acesso aos
babaçuais, consciência ambiental aguçada e capacidade mobilizatória permanente
como pré-requisito para êxito das iniciativas cooperativistas. (ALMEIDA, 2019,
p.69)

Nesse contexto criaram a ASSEMA em maio de 1989, com atuação a princípio em


quatro municípios: Lago do Junco, Lima Campos, Esperantinópolis e São Luis Gonzaga. Em
1989 fundou-se também a AMTR - Associação das Trabalhadoras Rurais. Esta associação
tinha participação de mulheres de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues. A criação da
AMTR80 é resultado de processos vivenciados por essas mulheres em experiências de
organização coletiva em suas comunidades como o clube de mães e a participação na pastoral
da criança como lideranças comunitárias. A luta pelo livre acesso aos babaçuais foi uma de
suas principais pautas.
Contudo, ainda assim o babaçu se mantinha “preso”, pois os fazendeiros permaneciam
com suas práticas de impedir a coleta dentro das suas pastagens. Por diversas vezes as

80
Para um estudo mais aprofundado sobre a organização coletiva das quebradeiras de coco ver: Silva, Linalva
Cunha Cardoso. Quebradeiras de coco babaçu, organização e mobilização política no Lago do Junco e Lago dos
Rodrigues, região do Médio Mearim (MA): a experiência na fábrica de sabonete. São Luís, 2018. Disponível em:
https://www.ppgcspa.uema.br/?cat=4
207
quebradeiras insistiam em coletar o coco nestas áreas mesmo sabendo que podiam ser
expulsas a pinholadas81. Diante desses acontecimentos as quebradeiras e trabalhadores rurais
apresentaram mais uma forma de resistência que não se deu em uma reação de violência
física, mas uma estratégia política e econômica, como podemos ver:
O cerceamento dos tradicionais direitos à coleta do coco babaçu, pela ampliação das
pastagens formadas, por empresas agropecuárias, impeliu o movimento dos
trabalhadores para a defesa dos babaçuais e para reivindicações que assegurassem o
livre acesso a eles. Para tanto os trabalhadores rurais objetivaram organizar o
processo de comercialização e processamento da amêndoa de babaçu, rivalizando
com os circuitos de compras montados pelos denominados “usineiros” e “patrões”,
os quais até então monopolizaram a compra de amêndoas. Este esforço resultou na
formação de quatro cooperativas de trabalhadores e trabalhadoras agroextrativistas,
a partir de 1990, que conjugam as atividades de plantio e coleta. (ALMEIDA,2019,
p. 88)

Com o cooperativismo aflorando no Mearim no começo dos anos 1990, apresentando-


se como uma alternativa de geração de renda, valorização da força de trabalho e a unificação
na luta, sobretudo pelo babaçu livre, os trabalhadores e quebradeiras de coco tiveram maior
autonomia e liberdade para desenvolver a atividade que tradicionalmente já realizavam. Neste
âmbito que foram discutidas as criações das cooperativas dos produtores agroextrativistas nos
respectivos municípios que estiveram nos conflitos de luta pela terra: Lago do Junco, Lima
Campos, Esperantinópolis e São Luis Gonzaga. A metodologia consistia em valores não
apenas monetários, mas de solidariedade, respeito e valorização da força de trabalho das
pessoas.
Esse movimento estava embasado em princípios do comércio justo82 e solidário, tendo
como centralidade do processo as pessoas, e não apenas o lucro, valorizando os saberes
tradicionais que acompanhavam os produtos, assim como suas lutas e histórias. Embasados
nesses princípios que se opõe ao modelo capitalista de produção as cooperativas foram
criadas para contribuir na vida das pessoas em vários aspectos: sociais, ambientais,
econômicos, produtivos e educativos.

81
Um grande chicote feito de couro curtido do boi, usado para auxiliar na condução dos rebanhos em mudanças
de pastagens, condução ao curral, deslocamentos em geral dos animais e foi usado também para assustar as
quebradeiras de coco nesse período em que os conflitos foram mais intensos. Esse instrumento é usado pelo
vaqueiro, homem encarregado de cuidar dos afazeres das fazendas, inclusive expulsar as quebradeiras das áreas
da fazenda.
82
Para conhecer mais sobre esse assunto voltado as relações de comercio justo realizado pelas cooperativas do
Médio Mearim, especificamente a COPPALJ, ver in: FALCO, Tania Carla Bendazoli de. Autonomia e
participação no comércio justo: a experiência da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de
Lago do Junco COPPALJ. Dissertação de mestrado, disponível em:
https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/3343

208
A cooperativa reunia pessoas sócias de várias comunidades que estiveram envolvidas
nos processos das lutas. Ainda no processo de discussão sobre a criação do sistema de
cooperativas, foi oferecido curso de formação para os agentes sociais serem os próprios
protagonistas na cooperativa como descreveu nossa interlocutora, mulher, quebradeira de
coco, quilombola, e liderança comunitária, Dona Geralcina:
Aí nos anos 90 foi que veio os cursos para cantineiro vieram procurar umas pessoas,
que ia ter uma cooperativa e ia ter uma Cantina aqui no Santarém outra na Santana
no Veloso no Azedo. Aí me escolheram para fazer esses cursos de cantineiro aí eu
fiz esse curso foi o tempo que botaram essa cantina aqui ai eu fiquei trabalhando, sei
que dessas cooperativas acabou tudo, só tem essa lá do Lago do Junco. (Dona
Geralcina, 01 de fevereiro de 2020)

A cantina a qual se refere a agente social é posto de coleta das amêndoas de babaçu,
ficam situadas nas comunidades de abrangência das cooperativas. É nesse local que chegam
as mercadorias que saem da cooperativa e onde ocorre as trocas de amêndoas que os sócios e
não sócios comercializam durante semana. As amêndoas são levadas para a cooperativa e lá
são processadas e transformadas em óleo de babaçu. O cantineiro ou a cantineira recebe
formação para exercer a função, pois será a pessoa responsável para mediar esses processos
da comercialização, bem como fazer anotações e prestação de contas nas reuniões e
assembleias que acontecem de acordo com o planejamento da cooperativa. Como enfatizou
Dona Geralcina, apenas duas das quatro cooperativas que foram fundadas naquele momento
estão funcionando, respectivamente: Lago do Junco- COPPALJ e Esperantinópolis –
COOPAESP. A COPPALJ inclusive conseguiu a certificação com o selo de produto
orgânico83, sendo um produto comercializado tanto no mercado nacional como internacional.
De forma breve me propus fazer uma descrição das identidades coletivas que se
constituíram ao longo do processo de luta pela terra e livre acesso aos babaçuais na região do
Médio Mearim, mais especificamente em quatro municípios: São Luís Gonzaga, Lago do
Junco, Esperantinópolis e Lima Campos. Essas identidades representaram uma força política
e níveis de organização que ganharam visibilidade de órgãos do estado, sobretudo aqueles que
por vezes omitiam suas pautas. A capacidade mobilizatória emergente desse processo
possibilita ir para além da luta pela terra e babaçuais livres, mas se somam a luta por outros
direitos básicos como moradia, educação e saúde nesse “chão” conquistado por esses agentes
sociais.

Palavras- Chave: Identidades coletivas. Conflitos. Territórios livres.

83
Pela IBD- Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural
209
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras Tradicionalmente Ocupadas: Processos de


Territorialização e Movimentos Sociais. R. B. Estudos Urbanos e Regionais V. 6, N. 1/Maio
2004. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/102/86, acesso em 01 de
outubro de 2021.

_____________Quebradeiras de coco babaçu: um século de mobilizações e lutas.


Repertório de fontes documentais e arquivísticas, dispositivos legais e ações coletivas (1915-
2018). SPRANDEL. Marcia Anita-coautora. Manaus: UEA Edições/PNCSA, 2019.

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:


Contra Capa Livraria, 2000.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004

Conflitos no Campo Brasil 2021. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino. CPT
Nacional, Goiania, 2022. Disponível em:
https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14271&catid=41&m=0
acesso em 06 de outubro de 2022.

SCOTT. James C. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência


Política, nº 5. pp. 217-243. Brasília, janeiro-julho de 2011.

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo- SP: Ed schwarcz ltda, 1993.

210
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 3 - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: GÊNERO, INFÂNCIA, JUVENTUDE E
EDUCAÇÃO

ESCOLA E REPRODUÇÃO SOCIAL


DE POPULAÇÕES TRADICIONAIS AMAZÔNICAS

Anselmo Gonçalves da Silva84


Fátima Cristina da Silva85

As escolas em territórios tradicionais amazônicos são um elemento novo no processo


de reprodução social das populações. O forjar da “tradicionalidade” sempre implicou intensa
relação entre gerações, onde a transferência de memória coletiva e cultura sempre ocorreram
com forte contribuição da oralidade e das práticas cotidianas – esse conjunto é
inovadoramente afetado pela institucionalidade escola para essa geração juvenil amazônica.
Disto decorrem aspectos positivos, negativos e oportunidades. Se o fato de a escola ter
chegado a quase todas as comunidades pode ser considerado um avanço, sua baixa qualidade
e suas características alheias a territorialidade são um desafio para o desenvolvimento
sustentável e a qualidade da reprodução social de populações tradicionais. Mas, afinal, quais
seriam os efeitos negativos destas escolas no contexto apresentado? Quais seriam as
potencialidades da escola? Para discutir esta problemática abordaremos a relação da escola
em áreas de populações tradicionais com a manutenção de desigualdades, o que consideramos
ser problemático em relação a escola atual e alguns encaminhamentos para desenvolver
soluções.
Uma das características comuns da diversidade de populações tradicionais extrativistas
da Amazônia é sua posição marginal de um lado ausente da linha abissal que separa o que
existe e o que é feito como inexistente para a sociedade nacional (Santos, 2009). Uma prova
disso foi a forma como o desenvolvimentismo avançou sobre territórios tradicionais para se
apropriar do que considerava ser um vazio, como o caso dos seringueiros no Acre. Para
muitos sujeitos e atores sociais brasileiros a Amazônia ainda é um vazio - um lugar de gente
inexistente. Uma das principais formas de deter o poder de definir o que existe e o inexistente
é o domínio do conhecimento que é considerado legítimo – ele é representado pela
epistemologia moderna, e pelas instituições de “conhecer”, como a universidade e a escola.
Manter por séculos as populações tradicionais amazônicas sem acesso ao conhecimento

84
Doutorando em Estudos Contemporâneos, Universidade de Coimbra. Professor, Instituto Federal do Acre
(IFAC). E-mail: anselmo.silva@ifac.edu.br
85
Doutoranda em Território, Risco e Políticas Públicas, Universidade de Coimbra. E-mail:
floresta.cristina@gmail.com
211
hegemônico e à suas instituições foi um dos principais meios de manutenção da invisibilidade
e inexistência; ao mesmo tempo que, a oferta de educação formal como realizado na
atualidade, pode ser um processo de colonização cultural e epistemológica a alterar
drasticamente a configuração sociocultural dessas populações, suas relações com o território e
sua ontologia (e, portanto, seu projeto de futuro) – um verdadeiro epistemicídio normalizado
(Santos & Meneses, 2010). Essa inclusão, educativa, pode contribuir para promover a
manutenção da subalternidade dessas populações nas sociedades nacionais, ao tempo em que
contribui para decompor projetos de desenvolvimento alternativos, como o representado pelas
Reservas Extrativistas.
Quando a escola chega a esses territórios, na perspectiva de inclusão dessas
populações, ela porta um conjunto de características que promovem a manutenção da
desigualdade entre o universo local/tradicional e o externo/altero – agindo colonialmente.
Primeiro, a escola ignora os conhecimentos tradicionais (os conteúdos do universo local),
trazendo apenas o conhecimento de fora (ontologia e epistemologia moderna); segundo, a
escola ignora as potencialidades e características do território, omitindo-se ante as
problemáticas locais e seus perfis de desenvolvimento vocacionais, inserindo os sujeitos no
mundo moderno externo a partir da cidade, do trabalho e da relação capital/consumo; terceiro,
a escola retira a nova geração de sua dinâmica de convívio com a geração antecessora (família
e comunidade), das práticas de manejo e reprodução no território, o que interfere
drasticamente do (no) perfil ativo de prática de intervenção produtiva sobre as bases do
território – em substituição, têm-se a sala de aula, a disciplina, o professor, dentre outros;
quarto, considerando a baixa disponibilidade de recursos (internet, equipamentos, docentes,
dentre outros), a escola quase sempre é inferior em qualidade à urbana, inserindo os jovens no
mundo externo/moderno também em posição desigual.
Além desses aspectos negativos, a escola, inegavelmente, produz também impactos
positivos – embora não sejam estes os objetos deste texto. O que se deseja chamar a atenção
aqui é para a necessidade de uma nova fase na política pública de educação na Amazônia,
para sustentabilidade da reprodução social de populações tradicionais extrativistas (não
indígenas). Se os indígenas já têm sua educação diferenciada, é hora das populações
tradicionais extrativistas em Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento
Sustentável, em Florestas Nacionais e Estaduais, ribeirinhos em áreas da Secretaria do
Patrimônio da União, dentre outas populações diferenciadas, também terem. Essa não é uma
discussão nova, na pauta do movimento seringueiro e do Conselho Nacional das Populações

212
Extrativistas (CNS) o tema de uma educação diferenciada e libertária sempre esteve presente;
mas, é preciso avançar e gerar corpo nessa discussão, de modo que se desenvolva e
implemente soluções que modifiquem a política pública de educação para essas populações.
Neste bojo, citamos alguns pontos que pensamos ser essenciais: Primeiro, é preciso
modelar uma política diferenciada de educação que modifique as institucionalidades – não é
possível que a educação para populações tradicionais esteja nos mesmos compartimentos
organizacionais que a “educação rural”. É preciso desenvolver e institucionalizar uma área
organizacional e técnico-científica de “educação na floresta”, a semelhança do que ocorre
com a “educação indígena”. Segundo, é preciso remodelar o que entendemos por escola neste
contexto específico – promovendo a configuração de uma institucionalidade que seja capaz
de, principalmente: a) desenvolver conhecimentos para e com as populações, a partir de suas
dinâmicas de vida, economia, cultura e organização; b) assumir a territorialidade tradicional,
suas oportunidades de desenvolvimento e problemáticas, como ponto de partida para a
atividade educativa. Precisa-se assim conceber e gerar uma nova “escola da floresta
amazônica” – uma escola para sustentabilidade dessas populações e territórios. Nesta escola,
deve-se priorizar a prática, o território, a família e a comunidade (Silva & Silva, 2022).
Terceiro, é preciso uma política de formação de professores das comunidades tradicionais -
uma nova licenciatura que se desenvolva a semelhança das licenciaturas de educação no
campo, mas seria aqui uma licenciatura específica, uma licenciatura em educação na floresta.
O vazio da formação de professores para escolas em territórios tradicionais deve ser abraçado
por Institutos e Universidades Públicas da Amazônia.
Por fim, reafirmamos que é necessário começar um novo ciclo, que promova a
emergência de uma pedagogia da floresta (Silva, 2021), cujos protagonistas sejam as
populações tradicionais extrativistas da Amazônia – de fato e de direito – desde o espaço
físico até a formação de professores/as. Com institucionalidades vivas, críticas e conscientes
do contexto socioterritorial. Uma escola para produzir conhecimentos relevantes aos sujeitos e
não a reprodução de informações impostas pelo modelo padronizado. Pensar em uma
educação como uma proposta política, caminhando para o que faz parte da vida das
juventudes, valorizando cultura e costumes, preservando a história. Então? Como seria essa
escola? Se é para e com essas populações que precisamos construir, como podemos escrever
sobre isso sem elas? Um novo ciclo necessita ser iniciado ou continuado com tudo o que vem
sendo construído, de forma coletiva e participativa. Vamos? Fica um chamado para a
comunidade científica e sociedade civil organizada: A chuva de ideias já transbordou e as

213
populações tradicionais extrativistas querem o sol a brilhar, trazendo a escola que tanto
almejam conquistar.

Palavras-chaves: Amazônia. Escola. Jovens.

REFERÊNCIAS

DA SILVA, F. C. Introdução à Pedagogia da Floresta: abrindo caminhos para a fusão de


conhecimentos, saberes e práticas. Cabo dos Trabalhos, No. 26. CES: 2021. Disponível em:
https://cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n26/documentos/05_Cristina_da_Silva.pdf Acesso em:
ago.2022.

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: SANTOS, B. S.; MENEZES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul, p. 23-72.
Coimbra: Edições Almedina, 2009.

SILVA, A. G., DA SILVA, F. C. Da Educação Rural à “Educação na Floresta”: um chamado


para a geração de uma escola Amazônica. In: SOARES, A.M. (Org.). Métodos e práticas
pedagógicas: estudos, reflexões e perspectivas 4. Ponta Grossa: Aya editora, 2022. p. 162 –
183. Disponível em: https://ayaeditora.com.br/wp-content/uploads/Livros/L171C13.pdf
Acesso em ago.2022.

214
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 4 - POLÍTICAS PÚBLICAS, TERRITORIALIDADE E LUTA POR DIREITOS

A LUTA PELA MÃE-TERRA E PELOS DIREITOS HUMANOS:


UMA ANÁLISE DA AÇÃO POLÍTICA INDÍGENA NA JORNADA
SANGUE INDÍGENA NENHUMA GOTA A MAIS (2019)

Edilene Batista Mastub86


Júlia Otero dos Santos87

Este resumo é fruto de um dos trabalhos que elaborei como bolsista PIBIC
(FAPESPA), parte do plano de trabalho Lutas pela T/terra e pela vida: uma análise da ação
política ameríndia no Antropoceno, que teve início em outubro de 2021, e está presente no
projeto Cosmopolíticas da T/terra, ambos coordenados pela professora Júlia Otero (FACS,
PPGA). Este trabalho é um resumo do conteúdo do podcast intitulado Jornada Sangue
Indígena: Nenhuma Gota a Mais (2019), produzido pela APIB88 em parceria com a Mídia
NINJA89, em que produzi a transcrição de todos os seus onze episódios, disponíveis na
plataforma Spotify, a partir dos
quais escrevi o presente resumo.
O podcast acompanhou a delegação indígena que compõem a Jornada de mesmo
nome, ao longo de sua passagem pela Europa, que percorreu 12 países em 35 dias, em que
tinham como alguns de seus principais objetivos denunciar às organizações e instituições
internacionais, os desrespeitos e ataques aos direitos humanos que vinham sofrendo no
Brasil, bem como o ataque ao meio ambiente com o avanço de atividades extrativistas legais
e ilegais, que ameaçam a sobrevivência dos biomas brasileiros, e em conseguinte dos
próprios povos indígenas que dependem das florestas de pé para reproduzir sua cultura e
modos de vida.
Já no primeiro episódio, é evidenciada por Sônia Guajajara e Dinamam Tuxá a
existência de uma relação indissociável entre, de um lado, a luta dos movimentos indígenas
pelo direito à vida e à terra e, de outro, a proteção do meio ambiente. Essa relação é uma das
questões fundamentais suscitadas durante a Jornada, a exemplo da entrega de uma carta ao
Papa Francisco, na qual as organizações indígenas denunciavam o ataque aos seus direitos, e

86
Graduanda em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, edleene18@gmail.com.
87
Professora doutora, Universidade Federal do Pará, juliaotero@ufpa.com.
88
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
89
Narrativas Independentes Jornalismo e Ação
215
à destruição exponencial da floresta amazônica desde o início do governo Bolsonaro, bem
como a participação em marchas públicas em defesa da Amazônia, como a ocorrida em
Turim, na Itália e a participação em conferências climáticas, como a realizada na Suécia.
Além de reuniões com representantes das causas ambientais, a exemplo da participação da
delegação indígena em um painel público do Partido Verde alemão, reconhecido pela defesa
de pautas ambientais, durante sua passagem pela Alemanha.
Os relatos acerca da indissociabilidade entre essas lutas reflete dois pontos
principais: a própria relação desses povos com a terra, de acordo com sua cosmologia, e a
construção intercultural dos discursos do movimento indígena, através da síntese simbólico-
política, como bem aponta Bruce Albert (2014), cuja característica é o intercâmbio
simbólico entre o mundo indígena e o mundo não indígena, em prol do maior alcance e
qualidade de transmissão de suas mensagens e pautas, e da ampliação das condições de
diálogo com os mais variados grupos não indígenas. Entretanto, vale ressaltar que as
agendas da Jornada foram construídas e executadas de modo a garantir o máximo de
protagonismo da delegação indígena, composta por lideranças e representantes de
organizações sociais da causa indígena, – como a APIB, COIAB90, APOINME91, dentre
outras – em que se buscou prezar pelo diálogo e construção de redes de apoio e
solidariedade à luta indígena, sem abrir mão desse protagonismo.
Desse modo, são construídas novas redes dialógicas sem que haja um apagamento
de sua cosmopolítica nesses diálogos com o outro, a síntese político simbólica se dá a partir
da aceitação da ideia de que a cosmologia e a forma como os povos indígenas constroem e
fazem sua política, não precisa estar em consenso com os moldes ocidentais da filosofia e
política modernas, de maneira a criar alianças a partir do não consenso e da diferença de
seus entendimentos acerca da terra, da política, do cosmos, etc.
Ademais, a discussão acerca da formação de alianças, sem o comprometimento do
protagonismo indígena em suas lutas, foi levantada durante uma das mais importantes
agendas da Jornada, ocorrida no Vaticano, em que foi promovido o encontro da delegação
com membros do alto clero da igreja católica, inclusive com o próprio sumo pontífice, Papa
Francisco, com o qual tiveram um diálogo direto, além de terem entregado uma carta
denunciando formalmente todos os ataques do governo Bolsonaro aos direitos indígenas e
ambientais. Tal agenda teve resultados exitosos, tendo em vista a declaração de apoio do
Papa à luta indígena, e predisposição para formação de alianças e cooperação com o
90
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
91
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
216
movimento, pela defesa de suas causas ainda que respeitando a demanda pelo protagonismo
desses povos em sua luta.
Dentre outros temas presentes nos discursos das lideranças indígenas durante a
Jornada, está a crítica sistemática à então formulação do acordo de livre comércio entre o
Mercosul e a União Europeia, cuja adesão dos países europeus e vigência representariam um
grave risco à vida dos povos indígenas e à vida de seus territórios. Isso porque a isenção de
tarifas de exportação de produtos da América do Sul à Europa, proposta pelo acordo,
causaria um aumento exponencial de atividades comerciais em terras indígenas, em especial
as do ramo do agronegócio e mineração, que além de gerarem um provável aumento das
áreas de conflito, são extremamente nocivas para os territórios e meio ambiente. Por isso, a
delegação indígena demanda de políticos e empresários responsáveis pela formulação do
acordo, que haja uma reformulação deste, com a inclusão de cláusulas que determinem
como pré-requisito fundamental, para qualquer empreendimento no Brasil, a conformidade e
respeito aos direitos indígenas. E ainda sinalizam que o não cumprimento dessa demanda e a
assinatura do acordo na sua então formulação, representaria uma grave violação dos direitos
humanos.
Desse modo, a comissão da Jornada reiterou em suas agendas pela Europa, que esse
acordo de livre comércio afetaria diretamente a vida das comunidades indígenas e de toda a
humanidade. Pois, segundo eles, o acordo alimentaria um ciclo de atividades econômicas
predatórias, que destroem em massa o ecossistema através do desmatamento de grandes
áreas, uso de agrotóxicos, contaminação das águas, contribuindo, assim, para a
intensificação das mudanças climáticas, e ameaça a vida dos povos indígenas, que são os
maiores responsáveis pela proteção e pelo equilíbrio ecológico das florestas e biomas em
que vivem. Como relata Sônia Guajajara, durante um dos episódios do podcast Jornada
Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais (APIB, Mídia NINJA, 2019): “[...] nós indígenas
somos 5% da população mundial, e somente esses 5% conseguem proteger 82% da
biodiversidade que ainda resta.”
A importância desses povos se dá graças a seus modos de vida, sua sociabilidade e
cosmologia que seguem o princípio que associa seus corpos e suas vidas ao território,
enquanto mãe-terra que é fonte de vida. Essas características que compõem as estruturas das
sociedades ameríndias, manifestam-se no que Kelly e Matos (2019) denominam como
política da consideração, a qual tem como princípio fundamental de suas ações, a
importância de agir tendo o outro em mente, seja esse outro humano ou não. Nesse sentido,

217
é de suma importância destacar o forte papel das mulheres indígenas como protagonistas nas
agendas políticas e discursos proferidos ao longo da jornada, destacando a atuação de
Angela Kaxuyana, Célia Xakriabá, Nara Baré e Sônia Guajajara, membros da comissão, e
figuras responsáveis por algumas das falas mais emblemáticas de todas as ações pela
Europa, transmitindo seus conhecimentos ancestrais, em especial os referentes a “cura” da
terra e da humanidade, do veneno que os contamina, referindo-se a uma analogia feita ao
sistema capitalista, e as atividades predatórias nocivas a qualquer forma de vida.
Com base nestes princípios, é possível entender sua demanda pelo reconhecimento
do crime de “ecocídio” como um crime contra a humanidade, perante o parlamento
norueguês, em cumprimento de sua agenda política pelo país. Uma vez que as lideranças
indígenas ao longo de suas ações políticas pela Europa, afirmam de diferentes formas que a
terra é um ser vivo, mas não somente, é a “mãe-terra” que é fonte de vida e alimento para
seus filhos, em muito inspirado nas pautas das próprias mulheres indígenas, por isso as
violências e explorações dirigidas ao seu solo, devem ser consideradas crimes contra a
Terra, e seu ecossistema.
Sendo assim, as lideranças indígenas em seus discursos traçam duras críticas não
somente ao acordo em questão, mas ao próprio sistema econômico capitalista, por meio de
uma crítica xamânica da economia política da natureza (ALBERT, 1995) através do uso das
narrativas proféticas sobre o fim do mundo, expressando suas subjetividades como
ferramentas de luta e resistência, como afirma Ailton Krenak (2019), e a fim de mobilizar os
interlocutores não-indígenas. Ademais, o modelo de produção de mercadorias e consumo
indiscriminado promovidos pelo sistema capitalista, são apontados pela delegação indígena
como um dos principais responsáveis pelo atual cenário de genocídio dos povos originários,
que lutam em defesa de suas terras e pelo combate à crise climática.
Todavia, o sistema capitalista e os acordos internacionais de comércio não são os
únicos apontados como responsáveis pelo genocídio dos povos indígenas e crise ambiental
no Brasil. Os discursos políticos dos membros da Jornada, deixam bem claro o papel central
que a atual conjuntura política, caracterizada pela ascensão de ideais antidemocráticos,
anticientificistas e racistas fomentados pelo atual representante do poder executivo, têm
como potencializadores dessas problemáticas. A delegação da Jornada denunciou o
presidente Jair Bolsonaro por comandar explicitamente, um projeto de desmonte das
instituições e políticas indigenistas e ambientais, inviabilizando os processos de demarcação
das terras indígenas, retirando financiamentos dessas instituições, e facilitando a aprovação

218
de projetos de garimpo e produção agropecuária em terras indígenas que deveriam ser
demarcadas. Não à toa, a delegação nomeia o presidente em seus discursos, como “inimigo
número um” dos povos indígenas e da mãe-terra.
Outrossim, vale ressaltar as características das atividades e ações políticas realizadas
pela delegação ao longo da Jornada pela Europa, as quais evidenciaram algumas
particularidades do fazer político do movimento indígena. Essas atividades evidenciaram um
forte equilíbrio em seus discursos e atividades políticas, entre o caráter jurídico e
burocrático, da filosofia política moderna, e o caráter mitológico e narrativo próprio da
filosofia e cosmopolítica ameríndia, que preza pela narrativa dos mitos, mas, sobretudo, pelo
saber escutar, do levar o “o outro em consideração” (KELLY e MATOS, 2019), e que leva a
multiplicidade dos mundos e existências em consideração (STENGERS apud SZTUTMAN,
2019). Esse equilíbrio intercultural é observado na agenda cumprida pela delegação no
decorrer de sua passagem pela Europa, onde houve reuniões em grandes parlamentos,
entrega de cartas formais de denúncia, em que eles demonstravam amplos conhecimentos
jurídicos acerca do funcionamento dos acordos e de seus direitos.
Não obstante, também houve outras ações políticas, que envolviam um contexto de
maior proximidade com os interlocutores, a exemplo da elaboração de grandes rodas de
conversa com ativistas, membros da sociedade civil, e comunidade acadêmica, além da
realização de cantos. Outra forma de ação política nesse sentido, foi a promoção de refeições
com aliados, etc. Tais intervenções políticas, foram capazes de aproximar mais a delegação
indígena de seus interlocutores, criando mais conexões para que suas narrativas e demandas
pudessem ter visibilidade, além de possibilitar a conquista de novas alianças e aliados na
luta indígena pela terra.
E por quê não pensar na própria iniciativa da APIB em criar o podcast aqui
analisado, como mais uma de suas formas de fazer política através de vias político-
simbólicas interculturais?, ao transmitir a mensagem que o movimento indígena quer passar
para a própria juventude indígena, que será o futuro de suas lutas atuais, e para o maior
número de interlocutores não-indígenas possível, por meio de uma ferramenta atual de
comunicação, que é o formato dos podcasts, ocupando seu espaço nas plataformas digitais
onde também vêm uma possibilidade de difundir suas narrativas que convidam a
humanidade a buscar a transformação de suas formas de pensar e viver. Bem como é um
novo espaço para expor suas denúncias contra todo o ataque que sofrem pelo Estado
brasileiro, e pela institucionalização da economia de mercado global.

219
A forma de conhecer o jogo político ocidental e suas categorias, de acordo com Kelly
e Matos (2019), é uma maneira de exercer a prática do xamanismo, entender a linguagem do
“outro” para poder estabelecer diálogo, negociações etc. Além de ser a forma como
executam a chefia indígena, que assim como aponta Clastres (1962), tem como uma de suas
principais características o poder não-coercitivo, ou melhor o exercício do poder enquanto
“influência” sobre o outro (KELLY e MATOS, 2019).
Portanto, é possível observar nos discursos das lideranças indígenas, a importância
da “insistência do cosmos na política” (Stengers apud, Sztutman, 2019), em suma, da
cosmopolítica enquanto uma ação de resistência, tanto quanto uma ferramenta para a
diplomacia cosmopolítica, viabilizadora do intercâmbio intercultural. Ademais, foi possível
inferir a importância do poder não coercitivo da influência sobre os interlocutores não
indígenas, responsável por garantir o diálogo com os diferentes grupos com os quais tiveram
contato. Sendo essas características, elementos essenciais da ação política indígena da
Jornada Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais, e para a eficácia de sua influência sobre os
processos de negociação, construção de alianças, diálogos e acordos conquistados, dentro do
contexto da Era do Antropoceno.

Palavras-chaves: Ação política indígena. Território. Antropoceno.

REFERÊNCIAS

ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: Uma crítica xamânica da economia
da natureza. Série Antropologia. Brasília, n. 174, p. 2-33, 1995.

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de campo Malinowskiano. Campos, Paraná; v. 15, n. 1, p. 129-144, 2014.

CLASTRES, Pierre. 2003a [1962]. Troca e poder: filosofia da chefia indígena. In: A
sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify.
Pp. 45-63.

JORNADA SANGUE INDÍGENA: NENHUMA GOTA A MAIS. Brasil, APIB, Mídia


NINJA, 2019. Plataforma online do Spotify.

KELLY, Jose Antonio e MATOS, Marcos. 2019. Política da consideração: ação e


influência nas terras baixas da América do Sul. Mana 25(2): p.391-426.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

220
SZTUTMAN, Renato. 2019. Um acontecimento cosmopolítico: O manifesto de
Kopenawa e a proposta de Stengers. Mundo Amazónico, 10(1): 83-105.

221
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 4 - POLÍTICAS PÚBLICAS, TERRITORIALIDADE E LUTA POR DIREITOS

A CARTOGRAFIA SOCIAL NA ALDEIA AÇAIZAL DO POVO


MUNDURUKU A SERVIÇO DO BEM VIVER E DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA

Hellen Regina Martins Rocha92

A cartografia social constitui-se um instrumento da ciência cartográfica que pode


suprir a demanda da obtenção de conhecimento através das relações sociais, utilizando-se de
uma metodologia baseada em fundamentos da pesquisa-ação participativa, ao a qual
sedimenta suas bases no território como elemento fundamental da pesquisa, mantendo-se
como um diagnóstico de participação ativa dos próprios comunitários. Tendo como objetivo
discutir uma elaboração cartográfica da Aldeia Açaizal (localizada no Planalto Santareno, no
km 35 da rodovia PA-370, no município de Santarém) baseada na metodologia da pesquisa-
ação participativa, com envolvimento ativo dos próprios comunitários. Cabe destacar que essa
participação é muito importante devido, a construção de projetos que possuem junto com a
escola em parceria com a comunidade indígena que escola está inserida.
A valorização de uma cultura, deve ser motivada ensinada desde a educação infantil,
trazendo para seu projeto político pedagógico, vivências, e os símbolos daquela comunidade
indígena, não se fechando apenas no conteúdo da grade curricular de ensino, repassada pela
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) respeitando a cultura e identidade cultural de cada
povo.
Destaca-se que a Educação Escolar Indígena (EEI) diz respeito à uma educação
projetada para os indígenas de acordo com as especificidades de cada povo. Nesses moldes,
entende-se que as escolas devam ter suas ações educacionais pautadas no respeito à
diversidade cultural e à valorização de identidades étnicas. Conforme Acosta (2016), “por esta
razão, uma das tarefas fundamentais reside no diálogo permanente e construtivo de saberes e
conhecimentos ancestrais com a parte mais avançada do pensamento universal” (ACOSTA,
2016, p. 23).

92
Doutoranda em Antropologia – PPGSA/UFPA. E-mail: hellenreginamartinsrocha@gmail.com
222
A pesquisa, até o ponto em que foi desenvolvida, demonstrou que o povo indígena da
aldeia Açaizal possui conhecimentos importantes a serem partilhados entre eles e com a
sociedade não indígena tendo um vasto conhecimento que ainda necessita ser explorado.
Apesar de terem os seus direitos negados de diferentes formas, esse povo procura manter suas
tradições e relações, inclusive com a natureza, no sentido de conquistar uma vida plena. As
relações e a vida plena que buscam se relacionam à sabedoria indígena do povo Munduruku e
dá significado ao Bem Viver na Aldeia Açaizal, na elaboração cartográfica.
Para Costa (2010), a cartografia social é uma ferramenta da ciência cartográfica que
visa transformar e planejar os aspectos sociais étnicos, de modo a realizar o mapeamento e o
registro de costumes, linguagem, paisagem, entre outras referências sobre determinado povo.
Essa ferramenta se apropria, dessas informações para ajudar em assuntos comunitários dos
quais participam os diferentes atores sociais, oferecendo aporte informativo que, de maneira
conceitual e metodológica, permite a construção integral de dado território e se apropriando
de instrumentos técnicos e vivenciais.
Dessa forma, a cartografia social surge como um instrumento que pode suprir a
demanda da obtenção de conhecimento através das relações sociais, utilizando-se de uma
metodologia baseada em fundamentos da pesquisa-ação participativa, a qual sedimenta suas
bases no território como elemento fundamental da pesquisa, mantendo-se como um
diagnóstico de participação ativa dos próprios comunitários.
Como base na região do Baixo Tapajós, percebe-se que a dimensão política dos
processos de territorialização dos povos indígenas, está ligada diretamente à apropriação de
território pelos grupos étnicos e à defesa de um modo de vida que, porventura, se mostra
conflitante com as normativas das unidades de conservação, bem como, de maneira
institucional, com as atividades econômicas de exploração intensiva e devastação dos de
recursos naturais.
Três são os momentos importantes nesse processo de territorialização encontrados no
Caderno Nova Cartografia da Amazônia de 2015. O primeiro momento diz respeito às
comunidades ribeirinhas localizadas às margens dos rios Tapajós e Arapiuns que recebem
apoio de instituições formalizadas legalmente, as quais sejam: Sindicato dos Trabalhadores
Rurais (STR), Igreja Católica e Ministério Público Federal (MPF). Tais instituições,
mobilizam-se em prol da criação da Resex Tapajós-Arapiuns, objetivando a proteção de seus
territórios que estavam ameaçados pela presença de madeireiras e pequenas mineradoras.

223
O segundo momento compreende essa demanda com base na autoafirmação das
famílias da comunidade de Taquara. Como consequência positiva, houve a adesão da
comunidade ao movimento indígena e, assim, outras comunidades passaram a se reconhecer
como tal. Além disso, o houve ainda como resultado o “I Encontro dos Povos Indígenas do
rio Tapajós”, nos dias 31/12/1999 e 1/1/2000, na comunidade de Jauarituba.
O Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA), criado em 2000, hoje
representa 52 aldeias dos povos Apiaká, Arapium, Arara Vermelha, Borary, Cara Preta,
Cumaruara, Jaraqui, Maytapu, Munduruku, Tapajó, Tupaiu e Tupinambá, nos municípios de
Aveiro, Belterra e Santarém. A partir de então, este Conselho se constituiu como principal
representação política de mobilização indígena do Baixo Tapajós e passou, a organizar
juridicamente as ações do movimento no plano dos direitos indígenas frente à Funai e a outros
órgãos públicos.
Com base nesse contexto percebe-se que os povos de origem amazônica têm suas
relações sociais estabelecidas conforme as peculiaridades de sua cultura local, a qual está sob
influência do clima, do território e das heranças culturais que sobreviveram através dos anos,
entre outros exemplos. Entende-se, assim, que a Amazônia, uma floresta equatorial localizada
na América do Sul, cuja dimensão alcança sete milhões de km², tem influência notória na vida
cotidiana daqueles que nela residem.
Dessa forma, verificam-se, diversas questões que giram em torno da territorialização
do povo indígena Munduruku da aldeia Açaizal. Por exemplo, os problemas referentes à falta
de identificação das etnias, do espaço ocupado, das linguagens peculiares e da própria
manutenção dos costumes tradicionais, que vêm sofrendo transformações decorrentes das
investidas do avanço tecnológico e a da presença do não indígena no território ocupado pelos
povos tradicionais.
Tratar a questão do território e do meio ambiente da aldeia Açaizal no currículo EI é
de suma importância, pois não há como entender o espaço no qual se vive, em suas
peculiaridades, sem perceber os elementos sociais que o cercam. Nesse sentido, Santos (1977)
propõe que a categoria formação econômica e social se mostra adequada para ajudar a
formulação de uma teoria válida do espaço, embora não seja possível falar de uma lei
separada do desenvolvimento das formações espaciais, mas sim de uma formação
socioespacial.
Em vista disso, foram realizadas algumas entrevistas e a produção de croquis
desenhados pelos moradores, pelas lideranças e pelos alunos da Escola Indígena Dom Pedro

224
II. , também conhecida como Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental
Dom Pedro II A intenção foi elaborar um produto educacional, que ficou denominado “Atlas
Social da Aldeia Açaizal”, no qual o povo Munduruku pudesse registrar o seu modo de vida,
as suas crenças e a organização do seu espaço territorial, bem como registrar os conflitos
existentes entre eles e os invasores plantadores da monocultura de soja na Região do Oeste do
Pará.
Acerca da contribuição desta pesquisa, é importante destacar, além do material
didático produzido, e que ficará à disposição dos professores e alunos da referida escola, o
registro daquele território ancestral pela comunidade da aldeia Açaizal. Nesse sentido, o Atlas
Social da Aldeia Açaizal serve como um documento, no qual, através de suas falas,
observações e apontamentos do sobre o seu modo de vida, percebe-se seu o pertencimento
local do povo Munduruku, mas também serve como denúncia da invasão sistemática que vem
sendo implementada pelo agronegócio na terra indígena.
A cartografia social da aldeia Açaizal aborda, inicialmente, informações acerca do
Território Indígena Munduruku. Este território, abrange quatro aldeias, dentre as quais
Ipaupixuna, Amparador, São Francisco da Cavada e Açaizal. A cartografia social se apresenta
como um instrumento de resistência e mobilização dos povos indígenas e se faz, de grande
relevância em problemáticas de demarcação de terras na região do Baixo Tapajós.
As edificações são fundamentais dentro da aldeia. No que se refere ao cemitério, por
exemplo, pode-se dizer que é o meio pelo qual os moradores mantêm vivas as lembranças dos
entes queridos e o modo como se relacionam com esses entes. A casa do cacique, conforme
informado, é o ambiente onde os integrantes da comunidade recorrem para esclarecer dúvidas,
informar e organizar reuniões, assim como para e saber o que está ocorrendo na aldeia. A
Escola Indígena Dom Pedro II é o local onde os alunos têm acesso à educação formal, bem
como mantêm contato com o Munduruku, a sua língua materna. A mencionada farmácia
tradicional permite a comercialização, e/ou até doações em alguns casos, de medicamentos
naturais que auxiliam a cura de várias doenças.
Os indígenas da aldeia açaizal ainda sofrem os impactos da colonização europeia. Um
desses impactos refere-se à maneira pela qual a educação era imposta aos povos indígenas
àquela época. A EEI, para os integrantes da aldeia, faz parte do movimento de afirmação ética
do povo Munduruku no que diz respeito ao desafio de manterem vivos suas línguas, seus
saberes e suas práticas tradicionais.

225
Para finalizar, é importante destacar que a luta pelo território indígena está ancorada à
educação indígena. Tanto o território e seu uso pleno, quanto uma educação que respeite o
modo de vida indígena são direitos dos povos indígenas. A EI é um direito constitucional, tal
como está registrado no Plano de Gestão e Uso do Território Indígena Munduruku do Planalto
(PGUTIMP, 2020).

Palavras-chaves: Povo Munduruku. Bem Viver, Educação Escolar Indígena, Cartografia social.

REFERÊNCIAS

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M., org. Um convite à utopia [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2016. Um convite à
utopia collection, vol. 1, pp. 203-233. ISBN: 978-85-7879-488-0. Available from: doi:
10.7476/9788578794880.0006. Also available in ePUB from:
http://books.scielo.org/id/kcdz2/epub/sousa-9788578794880.epub.

ACOSTA, A. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Ed.
Elefante. Segunda Repreensão. 2015

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. LDBEN/1996. 1996.

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Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 11.

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paranaense. Curitiba, Paraná: 2010.

NASCIMENTO, Nádia Socorro Fialho; VIEIRA, Judith Costa; RÊGO, Gilson de Jesus.
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NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA (NCSA). Território Indígena


Munduruku do Planalto Santareno. Coordenado por Alfredo Berno de Almeida. – Manaus:
UEA-Edições, 2015. Disponível em: < http://novacartografiasocial.com.br/download/01-
territorio-indigena-mundukuru-do-planalto-santareno/ >. Acesso em 01 de set. de 2020.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia:
uma perspectiva processual da fronteira. ACENO, v.1, n.1. 2014. p.23-48.

PEIXOTO, Rodrigo Correa. ARENZ,Karl.FIGUEREIDO, Kércia. O Movimento Indígena


no Baixo Tapajós: etnogênese, território, Estado e conflito. Novos Cadernos NAEA • v. 15
n. 2 • p. 279-313 dez. 2012.

PGUTIMP. Plano de Gestão e Uso do Território Indígena Munduruku do Planalto.


Santarém. 2020. 27p.
226
SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método.
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SANTOS, Renato Emerson dos. Disputas Cartográficas e Lutas Sociais: Sobre Representação
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TEXEIRA, Barbara Eleonora Santos; HERRERA, José Antonio; TERRA, Ademir. As


dinâmicas territoriais do capital agrícola na Amazônia e resistência campesina: os
diferentes usos do território na comunidade indígena de Açaizal em Santarém-Pará.
Geosul, v.33, n. 69. 2018. p.165-188.

227
GT 3 - TERRITÓRIOS, CONFLITOS, DIREITOS E IDENTIDADES:
POVOS E COMUNIDADES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, TRADICIONAIS E DO CAMPO
SESSÃO 4 - POLÍTICAS PÚBLICAS, TERRITORIALIDADE E LUTA POR DIREITOS

O TRINÔMIO FAB/MISSÃO/ÍNDIO NO TUMUCUMAQUE E A


CONSTITUIÇÃO DE NOVAS TERRITORIALIDADES EM
TERRITÓRIO YANA, EM MEADOS DO SÉCULO XX

Vítor Nazareno da Mata Martins93

O Projeto Trinômio FAB/Missão/Índio foi uma iniciativa que envolveu os militares da


Força Aérea Brasileira, os missionários franciscanos e os povos indígenas na construção de
um posto militar avançado e uma missão religiosa próximos à fronteira política setentrional
brasileira, com países guianenses, no final dos anos 1950, para estimular a ocupação da região
e servir, também, no apoio sanitário e no tratamento da saúde dos povos indígenas, que
tinham dificuldade de conseguir esses serviços por conta da distância que viviam das
principais sedes municipais localizadas no Baixo Amazonas.
Os Yanas94 correspondem aos antepassados em comum de mais ou menos quarenta
povos indígenas diferentes que habitam as Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Paru
D’Este e áreas adjacentes, que se localizam no noroeste do Estado do Pará. São cerca de três
mil habitantes que falam línguas e dialetos da família linguística Karib, em sua maioria,
havendo casos isolados de outros que falam Tupi e Arawak95, cuja presença no território
guianense antecede a dos colonizadores há pelo menos 6 mil anos a.C.
O Tumucumaque apresentou, por muito tempo, uma dinâmica populacional própria na
qual os povos originários estavam habituados a se comunicarem por via terrestre e fluvial com
indivíduos que transitavam por toda a porção leste do escudo guianense e, por isso mesmo,
haviam de manterem relações mais aprofundadas, com quem os oferecessem maiores

93
Mestre em História pela UFPA e Doutorando em História Social da Amazônia do Programa de Pós-Graduação
em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará - PPHist/UFPA. E-mail:
vitormatamartins@gmail.com
94
GRUPIONI, 2015.
95
Essas informações sobre a história indígena do noroeste paraense foram obtidas através de oficinas de
diagnósticos realizadas entre os Tiriyó, os Kaxuyana, os Wayana e os Aparai no âmbito dos estudos realizados
para a criação de um Plano de Gestão territorial e Ambiental – PGTA, ocorridas entre 2007 a 2014, que tinha
como objetivo elaborar um documento coletivo e participativo que pudesse ser utilizado para dialogar com a
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, criada pelo Decreto 7.747,
de 05/06/2012. Participaram desse trabalho coletivo e participativo, as comunidades locais, lideranças indígenas
e associações como a Associação dos Povos Indígenas Wayana Apalai – APIWA e a Associação dos Povos
Indígenas Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana – APITIKATXI, com o apoio dos assessores do Instituto de Pesquisa e
Formação Indígena – Iepé, através do Programa Tumucumaque/Iepé e o apoio da Fundação Nacional do Índio –
FUNAI.
228
vantagens ao passarem por suas terras, e isso foi legado aos povos atuais pela tradição.
Qualquer grupo de pessoas que intentasse atravessar as serras do Acari ou Tumucumaque
deveria saber que estava sendo acompanhados por Tiriyó, Kaxuyana e outros por onde
passassem.
Frei Protásio Frikel96, baseado na experiência e na convivência com essas duas etnias
há pelo menos uma década, comprovou que, não havia lugar que eles não conhecessem ou
notassem qualquer movimentação desconhecida e, sobre o emaranhado de estradas, que eles
conheciam e dominavam com habilidade, comentou que “[...] Tôda aquela paisagem do
Tumucumaque é atravessada por inúmeras trilhas e estradas. Sem guia indígena será difícil
não errar. Por nos julgarmos com bastante experiência em viagens na mata, tentamos viajar
sôzinhos e, pela teimosia, perdemos vários dias, pois não acertamos [...]”.
O território Yana, no qual foram instaladas a pista de pouso e a Missão está no centro
de uma rede de caminhos terrestres e fluviais de longas datas, por onde transitavam, por
séculos, grupos de viajantes indígenas de toda a Ilha das Guianas. Frei Protásio dizia que “[...]
em todas aquelas regiões, os caminhos realmente emendam, desde a região rio-branquina até
o Jari-Oiapoque. É desnecessário dizer que, onde os rios são navegáveis, também se usam
canoas para essas viagens. [...]”, havendo a possibilidade da utilização de um ou de outro
dependendo da necessidade, carga transportada ou navegabilidade.
Essa rede fluvial e terrestre servia como elo de ligação entre aldeias, roças, áreas de
extração de produtos vegetais, áreas de caça, lagoas de boa pesca, locais sagrados e seus
centros cerimoniais das margens do rio amazonas, ao sul, à costa atlântica das Guianas, para
além da fronteira política administrativa brasileira ao norte. Os rios e igarapés funcionavam
como verdadeiros corredores culturais por onde passavam produtos e pessoas numa intensa
rede de trocas, que se constituía num rico emaranhado de topónimos e fluviônimos presentes
na tradição local expressando a territorialidade indígena.
Com a chegada dos colonizadores, a dinâmica populacional dos guianenses começou a
sofrer alterações especialmente nas margens dos rios, que era, densamente ocupadas, e na
medida que seu território começou a sofrer intervenções mais efetivas e duradouras, os mais
antigos habitantes começaram a buscar refúgio mata adentro, e os que conseguiram
sobreviver, não voltaram mais. A territorialidade indígena passou por transformações diante

96
Frei Protásio foi um missionário franciscano que, atuando pela Prelazia de Santarém, e posteriormente, pela de
Óbidos, se tornou um dos principais responsáveis pela aproximação e intermediação entre o Estado brasileiro e
os povos indígenas do alto curso dos rios Trombetas, Paru de Oeste e Paru de Leste, nos anos 1940 e 1960.
(MARTINS, 2013)
229
da criação de novos territórios coloniais sob valores epistemológicos alheios aos deles e,
quase desapareceu diante da força avassaladora imposta pelos invasores, quando estes
começaram a estabelecer seus próprios limites territoriais e constituírem sua territorialidade,
em detrimento da estabelecida anteriormente.
A lógica da territorialidade colonizadora européia imposta na Ilha das Guianas, e mais
precisamente na sua porção sudeste, que corresponde à Amazônia setentrional, região que
interessa esta pesquisa, aliou interesses temporais e espirituais desde o período colonial,
atuando conjuntamente por séculos, passando por todo o período do Império brasileiro, até
ganhar encaminhamento próprios, no século XIX, após a Proclamação da República. Naquela
época, com o fim do regime do padroado no Brasil, tanto a Igreja Católica quanto o Estado
brasileiro passaram a definirem suas próprias formas de atuação na região amazônica sobre a
qual possuíam territórios definidos, mas territorialidade frágil.
Nesta pesquisa, as análises são feitas sobre a constituição da territorialidade indígena,
que é a mais antiga, e a trajetória das territorialidades católica e do Estado brasileiro na
Amazônia, a partir da implantação do Projeto Trinômio FAB/Missão/Índio. Trata-se de uma
pesquisa de História do Tempo Presente partindo de estudo bibliográfico e análise documental
envolvendo a História Oral, a análise da memória, estudos sobre cultura material, e conceitos
de território, territorialidade, identidade e pertencimento.
A pesquisa se trata de uma de História o Tempo Presente 97 por possibilitar a
proximidade temporal, com o objeto analisado, para se compreender melhor a realidade
estudada, contando com o auxílio inclusive dos atores sociais que fizeram parte da história,
mesmo havendo desafios quanto a sua legitimação como campo de estudo. Os estudos
bibliográficos e documentais são acompanhados pela História Oral98 e a análise da memória99
dos sujeitos que participaram na implantação ou desenvolvimento do Projeto Trinômio ou
tiveram suas vidas influenciadas por ele. A pesquisa se desenvolve incorporando novos
elementos na abordagem do passado (Cultura material, história oral, memória, territorialidade
e identidade, etc.), que nos últimos anos ampliou debates com gerações inteiras de
historiadores que conduziam suas pesquisas em consonância com orientações teóricas e
metodológicas tradicionais (bibliografia e documentação). Entres esses elementos, estão
questões relativas ao papel da linguagem na escrita e interpretação da narrativa da história, a
utilização de novas fontes, como a cultura material, além da quebra de paradigmas que

97
FERREIRA, 2000.
98
MEIHY, 2012.
99
ASSMANN, 2011; BRECIANI; NAXARA, 2001.
230
representou a história vista de baixo100 e o conjunto de novas abordagens sobre a sociedade
que se desenvolveram a partir dela.
A história vista de baixo, a microanálise e a história do cotidiano são exemplos dessas
transformações que marcaram a historiografia ocidental nas últimas décadas, e abriram espaço
para que estudos sobre a história indígena baseada na documentação produzida, entre os anos
1950 e 1970, por Protásio Frikel e outros especialistas, junto aos Tiriyó e os Kaxuyana,
surgissem entre frestas da historiografia tradicional, e ecoassem entre os próprios indígenas
dessas etnias de certa forma que eles próprios começaram a escrever a sua própria história. 101
Nesse sentido, a convergência da história indígena e do indigenismo com a história
política da Amazônia, proporcionada pelo projeto Trinômio no Tumucumaque tem permitido
que se observe e analise como indígenas, militares e missionários vivenciaram e negociaram
entre si, numa escala local, a implantação de um programa do governo central, que primava
pela integração regional, desenvolvimento econômico e racionalização na natureza, que já
havia avançado pelo centro-oeste brasileiro, desde os anos 1930.
No Projeto Trinômio FAB/Missão/Índio, cada instituição envolvida e seus respectivos
agentes tinham seus próprios interesses, que confluíram a partir das alternativas que uns
ofereceram aos outros, na época da implantação. Os militares estavam alinhados à ideologia
integradora, de modernização e de fortalecimento do Estado Nacional em regiões limítrofes
do território ocupado, atendendo a demandas internacionais promovidas pelo contexto
bipolarizado, herança do do Pós-Guerra; e, os missionários conciliavam o antigo interesse de
criação de uma missão naquela região à necessidade de imposição de barreiras que
contivessem o avanço protestante pelas fronteiras do Brasil com as colônias 102 e países das
Guianas.
Os indígenas, que mantinham relação milenares com a região foram solicitados pelo
conhecimento que possuíam sobre seu território103 e, também, para trabalharem na
manutenção das pistas de pouso, em troca da assistência médica-hospitalar e educacional, que
o Estado e os missionários os ofereceriam.
O estabelecimento do Trinômio, marcou o início de um novo momento da história
indígena no Tumucumaque, no qual foram dados os primeiros passos para a constituição da

100
THOMPSON, 1987; SHARPE, 1992.
101
CABRERA, 2006.
102
A Guiana se tornou independente em 1966; o Suriname permaneceu colônia holandesa até 1975; enquanto a
Guiana Francesa permanece até os dias atuais sendo um departamento ultramarino francês.
103
GALLOIS, 2007
231
territorialidade brasileira104 e eclesiástica católica105, sobre o antigo território indigena. Do
período colonial ao repúblicano, aquela região sofreu intervenções de missionários
franciscanos e de expedicionários e comissões demarcatórias, que gradativamente, levaram
de maneira esporádica106 novos marcadores identitários para aquela região, mas, em nenhum
dos outros casos experimentados anteriormente, a intervenção sobre a dinâmica territorial e os
costumes dos povos foi tão expressiva, como a que começou a ser proposta em meados do
século XX.
A constituição de novas territorialidades em território indígena, no noroeste paraense,
após a implantação do projeto Trinômio, sobretudo com a instalação da Missão franciscana e
a criação de um sistema educacional levou até os povos indígenas locais um novo sistema
educacional, com estrutura própria e valores estranhos aos transmitidos de pai para filho nas
aldeias, somada a criação de novas rotinas, horários, dieta alimentar e forma de administrar o
tempo desencadeou em mudanças significativas na antiga territorialidade indígena.
Mas, contrariando expectativas aculturativas consideradas irreversíveis pelos
primeiros estudiosos dos povos indígenas das Guianas, boa parte dos costumes e formas de
lidar com a cosmologia local resistem, de maneira que os próprios educadores adaptaram suas
formas de ensinar baseados na experiência inculturativa dos sujeitos envolvidos. Além disso,
vale mencionar que a dinamização do movimento indígena na região, com a criação de
associações representativas e, também, com a produção de um Plano de Gestão Territorial e
Ambiental (PGTA), que contou com a participação de Caciques e Assembleias, demonstram
como o protagonismo indigena tem crescido e amadurecido no noroeste paraense.

Palavras-chave: Trinômio FAB/Missão/Índio; Territorialidades; Tumucumaque.

REFERÊNCIAS

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BRECIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.); Memória e (res)sentimento: indagações


sobre uma questão sensível. . Campinas. Editora da Unicamp, 2001.

104
SOUZA, 1995; HAESBAERT, 2020.
105
CORRÊA, 2005; SACK, 1986.
106
Os antropólogos Rubens Caixeta Queiroz e Luisa Girardi, quando analisaram a dinâmica espaço temporal
vivenciada pelos povos Kaxuyana e os contatos interétnicos mantidos com sujeitos não-índios, desde a última
metade do século XIX, perceberam que o processo de distanciamento e aproximação se assemelhava ao
“movimento de maré”. Esse “movimento de maré” fora proposto por Fausto e Heckenberger (2007), quando
estes analisaram o processo de desterritorialização e reterritorialização de povos indígenas. (QUEIROZ;
GIRARDI, 2012).
232
CABRERA, Miguel Ángel. Presentación. Más allá de la historia social. Revista Ayer, Nº
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233
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES

GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:


CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES

COORDENADORES:

Dr. Hélio Figueiredo da Serra Netto (FCG)

Dr. Manoel Moraes (UEPA | UFPA)

Me. Ozian de Sousa Saraiva (UFPA)

234
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 4

APRESENTAÇÃO

Hélio Figueiredo da Serra Netto107


Manoel Ribeiro de Moraes Júnior108
Ozian de Sousa Saraiva109

A história humana sempre foi arcada por um excedente significativo em suas práticas
sociais e, portanto, em suas expressões materiais. Este excedente significativo expressa um
cognitivismo humano que sempre encarna a sua semântica ao ambiente e à época de sua
existência. É claro que o fato do cognitivismo humano presente em suas expressões não
garante uma certeira explicação sobre o sentido das ações humanas, mas nos faz pensar como
que este ente da bioesfera luta indissociadamente pela vida e pela explicação do mundo.
Um horizonte dos muitos estudos na área das ciências sociais se verga em
compreender a humanidade como criadora/produtora de modulações de sentido da vida,
circunscrita em múltiplas possibilidades de organização, compreensão, expressão,
memorialização, adaptação, criação, celebração, ritualização e materialização de modos
específicos de vida. Estes módulos sócio-culturais organizados numa totalidade humana,
deixam rastros importantíssimos que podem falar a outros humanos sobre a natureza, as
possibilidades de vida em ambientes específicos, sobre os dilemas da existência humana etc.
Partindo destas considerações elementares, a larga diversidade de ambientes e culturas
amazônicas exige a todas/os as/os pesquisadoras/es das humanidades investigações
interdisciplinares, locais e interconectivas. Não é por menos. O fato da antropização na
Amazônia que acontece por mais de doze séculos, deflagrou modos de vida capazes de
múltiplas formas de linguagem, organização sócio-ambiental e expressões cosmopolíticas. O
fato de existir mais de duzentas línguas amazônicas, tecidas majoritariamente em eras pré-
colombianas, é um forte indício que há uma larga ontologização de vidas neste bioma capazes
de responder à importantes questões sobre remédios, alimentação, preservação ambiental etc.

107
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Docente auxiliar do Instituto Estadual Carlos
Gomes. E-mail: ranehelio@gmail.com
108
Doutor Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Docente Adjunto IV da Universidade
do Estado do Pará (UEPA) e Docente Colaborador no PPGSA da Universidade Federal do Pará. E-mail:
manoelmoraes@uepa.br
109
Doutorando em Ciências Sociais – Antropologia pelo PPGSA da Universidade Federal do Pará. Docente
Efetivo do Instituto Estadual Carlos Gomes. E-mail: ozian.saraiva@gmail.com
235
As transmutações étnicas ocorridas em períodos pós-coloniais não estancaram estes
modos de existência que provocam diálogos substanciais entre os desafios do presente com os
saberes ancestrais. E a grande contribuição que os saberes ancestrais emprestam ao nosso
presente é que a modalidade ontológica das narrativas e dos modos sócio-culturais de vida
associam fauna, flora, humanos, mundo mineral, seres celestes etc, como um coletivo vivo,
orgânico – sem arrefecer as situações existentes de tensões e conflitos. Essa diagramação
hipotética do imaginário amazônico ainda é bastante viva por meios de línguas, mitos, rituais,
festas etc. Para todos os povos humanos, a língua é a plataforma espiritual das práticas
coletivas para a organização social, relação com mundo e compreensão da vida. Toda língua é
parte de uma profunda autoidentidade socioambiental. E por meio das práticas significativas
de diversos grupos sociais, é que se pode compreender o conhecimento humano local, logo,
os seus respectivos modos de compreender e se relacionar com a natureza.
Por isso, o Grupo de Trabalho (GT 04) “Interseções sociais e antropológicas: cultura,
rituais, patrimônio e festividades” promoveram exposições e diálogo com pesquisas que
versem sobre aspectos socioculturais e antropológicos, abrangendo tópicos e temas tais como:
a) festividades religiosas; b) biografias; c) patrimônios; d) simbolismos; e) imaginários; f)
rituais.
O trabalho “A Biocultarilade e seus múltiplos sentidos nos rituais Ka'apor”,
apresentado pela Mestra Taynara Portal e pela Doutora Flávia Lucas, é resultado de
identificação e compreensão de 35 elementos bioculturais presentes em rituais Ka’apor. Os 35
elementos estão relacionados a três rituais de passagem do povo, sendo a sua principal
cerimônia denominada festa da nominação, onde as crianças Ka’apor são apresentadas como
um novo individuo da sociedade Ka’apor. São inúmeros os momentos ritualísticos presentes
na nominação Ka’apor e assemelham-se ao rito de batismo do catolicismo. Com a presença de
missionários no comando dos ritos de batismo católico junto ao povo, a nominação de
“batizado” foi sendo assimilada. Muitos Ka’apor foram de fato batizados por missionários
que estiveram presentes em algumas comunidades, esse encontro deixou recorrentes vestígios
que estão inscritos no ritual de nominação. Os guardas relataram nas entrevistas que, o mês de
outubro tem sido a época para a realização do rito, pois é nesse período que começam a
coletar o akaju (“caju da roça” ou “da aldeia”), que é diferente do akaju’i (“caju do mato”),
coletado entre janeiro e março. Este fruto tem sido escolhido para o preparo da bebida a ser
distribuída durante a festa por conta do período estacional de amadurecimento dos cajueiros
domésticos. Também relatam que além do akaju, costuma-se preparar a bebida de mandiaka

236
(mandiocaba) ou de pako (banana) que passam por um período de mupururuk (período de
mistura, de fermentação) antes de serem preparadas.
O trabalho do mestrando Daniel Pinto, “Tradição e modernidade na religiosidade
Amazônica”, teve como objetivo o de analisar o desenvolvimento de uma religiosidade no
contexto amazônico, particularmente em sua face mais urbana, mais calcada no indivíduo e
genericamente identificada como uma religiosidade do self, de busca individual. O núcleo
central de discussão deste texto terá como fio condutor uma análise literária comparativa entre
dois artigos que retratam dois modelos opostos de religiosidade em diferentes espaços na
região amazônica: uma cultura religiosa citadina, mais cosmopolita e contemporânea descrita
por Daniela Cordovil (2015) em sua análise sobre a expansão dos movimentos esotéricos na
cidade de Belém; e outra, em texto já clássico de Heraldo Maués (2005) sobre o catolicismo
popular praticado por comunidades tradicionais.
A pesquisa do Mestre Jeferson de Souza “O ritual do chá cigano: diálogos inter-
religiosos na ordem mística templo de oríon da cidade de Manaus”, enfocou a realização de
um estudo etnográfico sobre as experiências de vida dos grupos de bruxaria da cidade de
Manaus o Clã Ixanaki; a Ordem Mística Templo de Oríon (OMTO); e a Tradição Trina
Essência (TTE). Enquanto no Clã Ixanaki analisaremos os elementos formadores da
identidade mágica e ritualística do grupo, tendo como base as vivências e experiências dos
membros que fazem ou fizeram parte do Clã. Na Ordem Mística Templo de Oríon, além de
descrever e analisar um pouco sobre a história do grupo que está permeada de conflitos e
tensões, também iremos destacar a questão do legado familiar que se tornou uma marca
própria do grupo e também iremos analisar o ritual do Chá Cigano como um diálogo inter-
religioso que virou uma tradição do grupo. Por fim, na Tradição Trina Essência iremos nos
ater na perspectiva da musicalidade que é algo bastante presente nos rituais do grupo, pois
alguns integrantes são músicos e cantores da cidade de Manaus, e são eles que fazem parte do
que vão chamar de OCA das bruxas e é por meio da OCA que iremos investigar os laços de
amizades envolvidos nesse processo.
A pesquisa das Mestra Tayná Lima e Mestra Karlene Andrade, “O culto às princesas
turcas no Pará: a partir da tradição mina-jejê-nagô”, versou acerca do culto e rituais no que se
refere às princesas turcas, Herondina, Mariana e Jarina, na religião de matriz africana do
Tambor de Mina no Pará/Amazônia. Nas religiões de presenças africanas o rito às divindades
vinculadas à natureza e de encantados, estão cada vez mais sendo discutido, sobretudo sobre o
processo de encantamento de figuras históricas que viveram no mundo real, e que depois se

237
encantaram. De acordo com os sacerdotes afro-paraenses, o Tambor de Mina é uma religião
que nasceu nas terras do antigo estado denominado de Grão-Pará. Sendo a religião que cultua
Orixás, Voduns, Encantados e Caboclos, em que há a presença de elementos africanos,
indígenas e europeus. Assim, é uma prática religiosa dividida entre famílias de Divindades, de
Encantados e de Caboclos, que formam o Panteão cultuado.
A Graduanda Viviam Carvalho, a Graduanda Hanna Nascimento e o Graduando Taulo
Cardoso, apresentaram a pesquisa intitulada “O consumo do tecnobrega pelos discentes da
UFPA: uma análise sobre a valorização musical regional” que teve como núcleo central a
análise e identificação das principais dimensões em que as festas de aparelhagem permeiam
os cenários econômicos e socioculturais dos estudantes da Universidade Federal do Pará
(UFPA), a qual foi o ambiente usado para coleta de dados e os discentes da instituição foram
nosso objeto de estudo para o levantamento de dados da pesquisa. A primeira hipótese aponta
que a “amostra coletada do total de alunos da UFPA valoriza a cultura local”. A segunda
hipótese é que a “violência influencia negativamente na frequência dos alunos nas festas de
aparelhagem”. Já terceira e última hipótese levantada sugere que “as festas de aparelhagem
tendem a ocorrer nas periferias e são mais frequentadas por pessoas de baixa renda”.
A bacharel Elen Jaqueline Santos compartilhou a pesquisa com o título “Os Hippies de
Santarém-PA: memórias de uma trajetória musical. O trabalho teve o intuito de dar maior
visibilidade e reconhecimento aos grupos musicais da cidade de Santarém, entendendo que
eles constituem referências da história da música no Pará, já que a música é uma das formas
de expressão artística mais marcantes na construção da identidade cultural de um povo, e em
Santarém, no Estado do Pará, a música se destaca no contexto cultural e grande parte de seu
acervo musical se caracteriza pela exaltação de suas paisagens, gastronomia, mitos regionais e
ainda, pelo famoso som de bolero.
O trabalho da mestranda Wanessa Grigoletto que recebeu o título “Círio: outubro em
homenagens” destacou entre outros pontos, como podemos pensar que a corda ganha aspecto
de sacralidade, porque os fiéis vão desenvolvendo uma relação muito próxima com ela, indo
para além de ser um simples objeto, no momento da procissão. Cita, Mircea Eliade (1992)
mostrando uma definição sobre a manifestação de sagrado em objetos que aparentemente não
se enquadram no caráter sagrado. Buscou evidenciar o Círio de Nazaré como uma grande
festividade, rica em rituais que envolvem toda a cidade no mês de outubro e que tem vários
aspectos atrelados à religiosidade, à cultura e à tradição do catolicismo em Belém.

238
Paula Lima e Célia Regina Amorim compartilharam o trabalho “Narrativas orais sobre
a Festa do Gambá: fé e cidadania na comunidade de Pinhel – Pará – Brasil”. O artigo tem
como ambiente a Amazônia brasileira, mais especificamente o território de Pinhel, antiga
missão de São José de Maitapus, comunidade indígena localizada na margem esquerda do rio
Tapajós, em terreno elevado no município de Aveiro (VAZ FILHO, 2010, p. 83), no Estado
do Pará, no Norte do país. Segundo as autoras, foi esse povo que trouxe para o presente a
Festa do Gambá, um festejo a São Benedito que sobrevive há mais de 300 anos. Destacam
que essa festividade não tem relação alguma com o animal silvestre que possui o mesmo
nome, mas sim, faz referência a um tambor de madeira oca com pele de animal retesado que
dá o tom às folias. O texto tem por objetivo compreender como se constroem as narrativas
orais sobre a Festa do Gambá de Pinhel, trazendo para o trabalho os conceitos de narração e
experiência de Walter Benjamin.
A graduanda Rafaela Aimê da Silva Barbosa, por meio da pesquisa "Mestres do
Anani": relatos e construlões de identidades nas práticas de carimbó no município de
Ananindeua/PA”, deu enfoque a vários aspectos que compõe a estrutura cultural do carimbó,
como a musicalidade, dança, mas também há a transmissão de saberes orais, a construção de
identidades, que forma um sentimento de pertencimento e de inspirações para vidas, nesse
contexto, o trabalho apresentado trata-se de uma nova abordagem da pesquisa realizada em
2018 para o Trabalho de Conclusão de curso, em ciências sociais, sobre Mestres de Carimbó
do município de Ananindeua130, nesta abordagem especificamente Mestre Luis Pontes e
Mestre Alexandre, afim de conhecer suas experiências em torno do carimbó e de como se dá
o processo da construção de uma identidade cultural no município de Ananindeua Portanto, as
teorias e questões que envolvem a cultura, a identidade e as relações sociais são importantes
para o desenvolvimento de debates dentro das ciências sociais, especificamente na
antropologia e essa iniciativa de estar perto dos mestres de carimbó de Ananindeua faz com
que este município seja também um foco de estudo, pois seus atores culturais também estão
contribuindo para a salvaguarda do carimbó, pois são os “sinais vivos da vida social dos
sujeitos que fazem o folclore”.

REFERÊNCIAS

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LEVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Rio de Janeiro: Zahar, 2021,


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WILSON, Eduard O. O sentido da existência humana. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.

240
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

A BIOCULTURALIDADE E SEUS MÚTIPLOS SENTIDOS NOS


RITUAIS KA’APOR

Taynara Morais Portal110


Flávia Cristina Araújo Lucas111

Historicamente nos rituais indígenas recorrem a utilização das plantas ou animais em


seus rituais de cura ou festejos tradicionais, o que suscita o interesse por uma análise sobre o
tema dos elementos bioculturais. Neste presente trabalho, aborda-se diferentes utilizações da
bioculturalidade Ka’apor em tratar do uso de espécies da flora e fauna para o uso no
tratamento de doenças, causadas por condições físicas ou espirituais, assim como a confecção
de objetos usados nos rituais Ka’apor. O tema que associa bioculturalidade e religião, busca
analisar os conhecimentos tradicionais sob a perspectiva dos sistemas tradicionais de cura,
que utilizam dos recursos vegetais e animais nativos dos indígenas Ka’apor, além de
apresentar as ameaças a esses recursos pela perda de territórios e a ressignificação de alguns
elementos nos usos dos rituais religiosos, assim como a ressignificação de alguns elementos
no uso dos rituais religiosos. Para o desenvolvimento deste trabalho, recorreu-se à pesquisa
bibliografia e documental que aborda o tema, por meio de fontes secundárias. A pesquisa
também possui caráter etnográfico, realizada por meio de atividades de etnomapeamento com
os guardas de autodefesa Ka’apor, onde foi possível realizar identificação de diversas
espécies, além da sistematização dos dados coletados e a compreensão sobre a
bioculturalidade e seus diversos sentidos nos rituais Ka’apor.
De acordo com Ribeiro (1974) os Ka’apor foram contactados há cerca de 300 anos
provavelmente na região que abrange o nordeste do estado do Pará, mais precisamente na
Amazônia entre o baixo Tocantins e o Xingu no final do século XVII e início do século
XVIII. Devido aos conflitos com outros grupos indígenas e com a população da região, foram
obrigados a iniciar um processo de migração até chegar ao território atual no Maranhão. Os
Ka’apor vivem na Terra Indígena Alto Turiaçu a qual faz parte da Amazônia Oriental,
110
Mestranda em Ciências da religião, Universidade do Estado do Pará, tayportal@gmail.com.
111
Doutora em Ciências Biológicas, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, professora no
Mestrado/Doutorado Acadêmico em Ciências Ambientais em Rede Bionorte e Ciências da Religião no Programa
de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará – UEPA, copaldoc@yahoo.com.br.
241
abrangendo parte do Estado do Maranhão. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA,
2015) a Terra Indígena Alto Turiaçu é a maior do noroeste do Maranhão, encontrando-se
regularizada e homologada pelo Decreto n° 88.002 de 1982 e somando uma população de
1.500 indígenas, divididos em aldeias e áreas de proteção localizadas no limite do território
Ka’apor.
O lócus da presente pesquisa concentrou-se na atividade de Etnomapeamento dos
Guarda de Autodefesa Ka’apor na T.I Alto Turiaçu – MA, ocorrido no mês de maio e junho
de 2022. Os guardas Ka’apor desenvolvem papéis fundamentais de cuidado e proteção do
território Ka’apor. Para a seleção do público-alvo, optou-se pelo modelo de entrevistas
semiestruturadas permitindo uma relação mais flexível entre entrevistador e entrevistado. Para
Rodrigues (2007) a abordagem garante maior compreensão e detalhamentos acerca dos
questionamentos que vão surgindo. Foram elaboradas cinco perguntas que versavam a
respeito das espécies da fauna e da flora encontrados na atividade de campo. As perguntas
foram aplicadas com os guarda de autodefesa Ka’apor nos momentos que realizavam
atividades de etnomapeamento no seu território. Essa atividade consistia em identificar
elementos bioculturais e relacionar aos rituais Ka’apor, bem como sua importância para a
cultura, significado religioso, espiritual e seus usos.
Foi realizada busca bibliográfica a fim de identificar estudos sobre o tema e, para tal,
foram selecionados os seguintes marcadores: bioculturalidade, rituais e práticas tradicionais
indígenas. Essas referências se apresentam como estar livros, teses, artigos, sites, revistas,
vídeo, enfim, tudo que possa contribuir para um primeiro contato com o objeto de estudo
investigado. (CERVO; BERVIAN, 2002, p. 76). Outro método utilizado foi a pesquisa
documental, que segundo Gil (1999), é muito semelhante à pesquisa bibliográfica, porém a
diferença essencial entre ambas está na natureza das fontes: enquanto a bibliográfica se utiliza
fundamentalmente das contribuições de diversos autores, a documental vale-se de materiais
que não receberam, ainda, um tratamento analítico, podendo ser reelaboradas de acordo com
os objetos da pesquisa.
Com base na pesquisa textual, foram elaboradas questões norteadoras para a pesquisa
e após a etapa partiu-se para as atividades de campo, coleta e tabulação dos dados, análise e
interpretação dos resultados.
Para Barrera Bassols (2015) a bioculturalidade é uma práxis de conhecimentos nas
sociedades tradicionais onde expressão uma dupla sabedoria pessoal ou individual e
comunitária ou coletiva. Através de um complexo conhecimento da vida na floresta, um saber

242
que transita de forma local, coletivo, sendo transmitida de geração para geração e
intrinsecamente ligado às suas necessidades. Nos escritos de Ribeiro (1974) os Ka’apor
continuavam conservando seus sistemas próprios de relação ao seu território, como a
utilização de técnicas específicas ligadas aos fazeres e aos saberes tradicionais, como a
construção de casas, roças, de quintais, à produção de seus artefatos, indumentárias, adornos,
utensílios diversos e instrumentos musicais; elementos essenciais de uso em atividades de
subsistência, doméstico, pessoal e ritual confeccionados com elementos da natureza. Posto
isso, destaca-se a importância das relações de troca entre os Ka’apor e a floresta, é relevante
citar que a extensão do realizado in loco contribui diretamente para reconhecimento dos
elementos da floresta, assim como da sua religiosidade justamente pela apropriação do espaço
e sua religação a um ambiente, sendo um campo de conhecimento sobre seus recursos
naturais e da sua religiosidade, onde todos os envolvidos aprenderam e repassaram os saberes
bioculturais relacionados a suas práticas religiosas.
Após a identificação e levantamento pelo etnomapeamento das espécies, foi elaborado
um banco de dados com o nome de: plantas, vegetais ou animais utilizados em rituais
Ka’apor. Detalhando-se em quais celebrações usam determinada de espécie de animais ou
plantas, seus modos de caçar ou cultivar, de utilização, coleta, armazenamento,
processamento, modo(s) de preparo/aplicação/administração exemplos (artefatos,
indumentarias, instrumentos musicais, chás e banhos) da (s) parte(s) usada(s); assim como
indicações terapêuticas; outros usos; e categoria de doença (sistema corporal).
Os resultados identificaram 35 elementos bioculturais nos rituais Ka’apor e além de
descrever seus significados e como esses orientam e representam marcos para as atividades
ritualísticas. Os 35 elementos estão relacionados à três rituais de passagem do povo, sendo a
sua principal cerimônia denominada festa da nominação, onde as crianças Ka’apor são
apresentadas como um novo individuo da sociedade Ka’apor. São inúmeros os momentos
ritualísticos presentes na nominação Ka’apor e assemelham-se ao rito de batismo do
catolicismo. Com a presença de missionários no comando dos ritos de batismo católico junto
ao povo, a nominação de “batizado” foi sendo assimilada (RIBEIRO, 1996, p.163). Muitos
Ka’apor foram de fato batizados por missionários que estiveram presentes em algumas
comunidades, esse encontro deixou recorrentes vestígios que estão inscritos no ritual de
nominação. Os guardas relataram nas entrevistas que, o mês de outubro tem sido a época para
a realização do rito, pois é nesse período que começam a coletar o akaju (“caju da roça” ou
“da aldeia”), que é diferente do akaju’i (“caju do mato”), coletado entre janeiro e março. Este

243
fruto tem sido escolhido para o preparo da bebida a ser distribuída durante a festa por conta
do período estacional de amadurecimento dos cajueiros domésticos. Também relatam que
além do akaju, costuma-se preparar a bebida de mandiaka (mandiocaba) ou de pako (banana)
que passam por um período de mupururuk (período de mistura, de fermentação) antes de
serem preparadas.
Outros elementos foram identificados durante a pesquisa, com o uso do cigarro de
tauari Ka’apor sob a ótica do patrimônio biocultural, entendendo-o como elemento de
categoria de ordem física e espiritual nos ritos Ka’apor. O seu preparo e uso são parte das
totalidades culturais e sociais e como afirmações simbólicas de indivíduos ou coletividades.
No dia a dia da aldeia se costuma usar papel de seda ou folhas de caderno para fumar, o tauari
é buscado apenas em momentos que antecedem suas celebrações ou rituais.
Outro elemento de uso nos rituais de iniciação e de passagem como a festa da menina
moça Ka’apor, é a esteira podendo ser feita de folhas de babaçu ou de guarumã. De acordo
com Andrade (2009), ela é usada para sentar as mães e seus filhos pequenos, que aguardam
suas madrinhas e padrinhos. As esteiras são trançadas com folhas de babaçu. As meninas que
passaram pelo resguardo da primeira menstruação ficam dispostas em uma única esteira
grande.
No total foram identificadas 21 espécies de plantas, as mais citadas foram o caju,
banana e mandioca e 14 espécies de animais, sendo a arara e o gavião rei os mais citados.
Ficou evidente na realização da atividade o quanto as espécies da fauna e da flora possuem
relações altamente especificas e de estreitamento cultural e sócio-ecológico com o
lugar/ecossistema no qual estão inseridos. Foram observados novos elementos bioculturais
coletados no etnomapeamento, eles foram incorporados ou ressignificados, reforçando a
manutenção das narrativas da memória biocultural Ka’apor.
Por fim, criamos um banco de dados para identificação desses elementos bioculturais,
cujos nomes das espécies foram identificados na língua Ka’apor, em português e com seu
nome científico quando possível de identifica-los, contendo os nomes dos objetos bioculturais
associados aos rituais, principalmente os que estão ligados ao ritual da nominação. Essas
espécies constitui um complexo valor cosmológico, de saberes bioculturais e práticas
tradicionais como os rituais, valores que consolidam historicamente os Ka’apor na sua forma
específica de se relacionar com a floresta.

Palavras-chaves: Ka’apor. Bioculturalidade. Religião.

244
REFERÊNCIAS

CERVO, A. L. BERVIAN, P. A Metodologia científica. São Paulo, SP: Prentice Hall, 2002.

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Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa ka‘apor. Dissertação
de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências sociais, Departamento de
antropologia da Universidade Federal do Pará, 2009.

RIBEIRO, Darcy & RIBEIRO, Berta G. Arte plumária dos índios Kaapor. Rio de
Janeiro: ed. dos Autores/Arte Médica, 1957.

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RODRIGUES, J. S. C. Estudo Etnobotânico das Plantas Aromáticas e Medicinais. Curso


Teórico-Prático, p. 168–174, 2007.

TOLEDO, V. M.; BARRERA-BASSOLS, N. A memória biocultural: a importância ecológica


das sabedorias tradicionais. 1a ed. Rio de Janeiro, RJ, 2015.

245
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 1 - CULTURAS, RITUAIS E FESTAS

TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA RELIGIOSIDADE AMAZÔNICA

Daniel Silva Pinto112

O presente trabalho é derivado de pesquisa de caráter dissertativo. O objetivo geral de


tal pesquisa é analisar o desenvolvimento de uma religiosidade no contexto amazônico,
particularmente em sua face mais urbana, mais calcada no indivíduo e genericamente
identificada como uma religiosidade do self, de busca individual. O núcleo central de
discussão deste texto terá como fio condutor uma análise literária comparativa entre dois
artigos que retratam dois modelos opostos de religiosidade em diferentes espaços na região
amazônica: uma cultura religiosa citadina, mais cosmopolita e contemporânea descrita por
Daniela Cordovil (2015) em sua análise sobre a expansão dos movimentos esotéricos na
cidade de Belém; e outra, em texto já clássico de Heraldo Maués (2005) sobre o catolicismo
popular praticado por comunidades tradicionais.
Busco discutir esta religiosidade de busca, no contexto socioantropológico amazônico,
levando-se em consideração a importância deste tipo de religiosidade para a compreensão das
dinâmicas de transformação do campo religioso amazônico em suas configurações atuais. O
estudo da religiosidade centrada na busca pessoal, neste trabalho, parte da premissa de que as
crenças e práticas religiosas informadas por este tipo de religiosidade centrada mais no
indivíduo, se reproduz com muito mais força e velocidade nos grandes centros urbanos da
região.
Sobre expressões mais individualistas de religiosidade na Amazônia, temos como
referência o trabalho de Daniela Cordovil acerca das religiões da Nova Era em Belém (2015).
Inicialmente a autora, em seu texto, aponta as principais características deste segmento
religioso, dando ênfase ao individualismo, ao forte trânsito religioso de seus adeptos e o
consequente baixo grau de institucionalização dos mesmos, aspectos visto por este trabalho
como estruturais deste modelo de religiosidade.
Segundo a autora, de forma geral, o trânsito esotérico é estimulado pela mentalidade
generalizada de praticantes desta religiosidade, que não veem barreiras ou impedimentos entre
suas práticas e crenças espiritualistas e suas ligações com as tradições católicas hegemônicas

112
Mestre em Ciências da Religião, UEPA, Mestrando em Sociologia e Antropologia, UFPA
danielkardec7240@gmail.com.
246
em Belém, como participar do Círio de Nossa Senhora, tradicional festa católica paraense,
denotando o caráter ecumênico e tolerante deste gênero de religiosidade. O traço
individualista e subjetivista generalizado está em sua condição de reproduzirem sua
religiosidade “enquanto buscadores, que transitam por espaços, grupos e sistemas de
conhecimento” (CORDOVIL, 2017, p. 139). E o trânsito intenso, comum a praticantes desse
gênero de religiosidade/espiritualidade só poderia resultar em um subcampo simbólico
caracterizado pela fluidez e hibridismo de seus conteúdos, do qual seus adeptos se servem
para compor, de forma personalista, seu próprio rol de crenças e conhecimentos, amalgamas
ou colagens entre sistemas abertos e dinâmicos de (rituais, cosmogonias, cosmologias,
técnicas, etc.) (CORDOVIL, 2015).
Os vínculos identitários dos praticantes esotéricos diferem daqueles forjados em
comunidades naturais, ou seja, aqueles forjados no campo familiar, na comunidade da
vizinhança ou em uma comunidade fundada por laços confessionais tradicionais, pois são
menos sólidos, mais fluidos e duram enquanto o interesse individual pelo grupo e seu corpo
de conhecimentos simbólicos e ritualísticos subsiste. Portanto, apesar da forte emotividade
que alimenta e reforça os vínculos identitários entre os membros dos muitos grupos
neoesotéricos, este sentimento tribalista que anima estas pequenas comunidades, não anula o
componente individualista, que está na base da origem de suas filiações ou integração a elas.
Pois, além da característica fluida e relativamente transitória típica daqueles que circulam por
este subcampo religioso, a gênese do ingresso a este tipo de religiosidade – e isto é o mais
importante - se processa, de maneira quase unânime, através do interesse voluntário e pessoal
dos indivíduos, que prevalece, ao que parece, como um habitus religioso imperante neste
subcampo. São trajetórias permeadas por filiações, desfiliações ou mesmo o retorno a uma
antiga fé, evidenciando por meio deste comportamento a qualidade típica de buscadores ou
peregrinos espirituais dos que circulam pelos espaços deste circuito neoesotérico,
compartilhando experiências e conhecimentos deste universo religioso, que se expande em
ritmo veloz pelos grandes centros urbanos do país (MAGNANI, 2011).
Novas camadas de sentidos devem ser acessadas, estabelecendo níveis mais altos de
discussão e problematização do avanço de práticas e visões de mundo religiosas de feições
individualistas, como um traço inegável da modernidade religiosa, que não pode ser
negligenciado por pesquisadores preocupados com os rumos e desenvolvimentos futuros da
religiosidade na Amazônia.

247
O estudo de Maués sobre o religioso rural amazônico (2005), em contraposição ao
estudo de Cordovil (2015) relativo às novas religiosidades que florescem na região
metropolitana de Belém, justifica uma análise comparativa que evidencia a diversidade
sociocultural amazônica, buscando com isso criar novos ângulos e perspectivas de análise
sobre o futuro da religiosidade amazônica neste início de século.
Maués (2005), em seu texto, ao retratar a religiosidade de uma comunidade tradicional
de pescadores em uma das sub-regiões (Região do Salgado)113 que compõem a área territorial
do Estado do Pará, faz uma consideração inicial, de caráter generalizante, sobre a cultura
religiosa do caboclo amazônico. O autor observa que, apesar de apresentar grande
diversidade, enriquecida ainda mais pelos mitos e crenças de diversas etnias indígenas, o
cosmo religioso destas populações apresenta um substrato ou background em comum de
crenças e práticas.
Este substrato em comum, de acordo com Maués, é informado por um tipo de
catolicismo popular, centrado na “crença e no culto dos santos” (Maués, 2005, p. 260), prática
típica do catolicismo popular representada em todas as regiões brasileiras. Na Amazônia, a
cultura católica é mesclada à um conjunto de práticas e crenças oriundas do universo mítico-
religioso tradicional da região, denominado por Maués como “pajelança rural ou de origem
rural (cabocla)” (2005, p. 262), geradas pela crença fundamental nas entidades conhecidas
como encantados e os locais que habitam. Estas crenças e práticas, como observa Maués, são
incorporadas pelo caboclo amazônico ao ponto de, por processos de bricolagem ou
justaposição, não chegarem a comprometer ou no limite anular suas identidades católicas,
uma vez que elas fazem parte do catolicismo popular peculiar praticado na Amazônia
(MAUÉS, 2005).
Levando-se em consideração o cenário amazônico constituído pela miríade de
comunidades tradicionais espalhadas por seu vasto território, intercalado por muitos vazios
demográficos, um hipotético cenário de limitada oferta e circulação de bens simbólicos
(restrito ao patrimônio de conhecimentos e símbolos tradicionais historicamente enraizadas e
compartilhadas por tais comunidades), é um cenário muito distante ao de onde florescem
formas mais individualistas e menos apegadas à uma tradição religiosa.
A religiosidade pautada por uma bricolagem mítico-religiosa realizada pelos povos
tradicionais da Amazônia - com sua fusão de santos católicos e encantados, escalonados em
uma hierarquia sagrada de “santos no alto e os encantados no fundo” (Maués, 2005, p. 268) -,
113
“pequena povoação de pescadores denominada Itapuá, pertencente ao município de Vigia, na região do
Salgado” (Maués, 2005, p. 259).
248
é de qualidade visceralmente coletiva, no sentido de uma experiência comunitária
profundamente enraizada. As experiências coletivas destas populações, e as concepções e
visões de mundo que as alimentam, são reiteradamente reproduzidas e reforçadas em sua
eficácia simbólica, seja de forma periódica, pelo calendário de festas aos santos católicos, ou
pela prática cotidiana dos “rituais xamanísticos, dos quais os mais notáveis são as sessões de
cura” (Maués, 2005, p. 268). Desta forma, as festas, os ritos e as práticas do caboclo
amazônico reforçam os elos entre as experiências afetivas, vividas e sentidas,
tradicionalmente de forma coletiva através destes eventos, e a sua particular identidade
confessional católica. Temos uma cultura estruturada em um hibridismo ou formas de
bricolagem fortemente enraizadas na tradição e pouco afeita à inovações simbólicas.
A aptidão socialmente elaborada para a bricolagem religiosa114, conceito da
socióloga Danielle Hervieu-Léger (2015), é fundamental para o entendimento da discussão
que travamos aqui. Os processos de bricolagem das populações tradicionais da Amazônia
parecem restrita ao conjunto de concepções, já mencionadas acima, de larga tradição e
profundas raízes culturais constituídas ao longo da história e dos modos de vida destas
populações. A circulação dos seus mitos cosmogônicos e de suas teogonias, bem como das
crenças oriundas de sua particular identidade católica restringe-se, mas não de forma absoluta,
aos espaços de suas pequenas comunidades disseminadas, muitas em estado de isolamento,
pela imensa amplidão da planície Amazônica. Esta restrita aptidão ou habilidade social para a
produção de um tipo de bricolagem moderna do caboclo, e seu consequente tradicionalismo
religioso, transparece na força de sua identidade católica que eclipsa a possibilidade da
existência de outras identidades, como por exemplo, ligadas à crença nos encantados ou
caruanas. Assim, Maués aponta a exclusividade na identificação ao catolicismo, mesmo entre
os caboclos-pajés: “Não existe, por outro lado, uma identidade ‘pajeística’, ou qualquer coisa
semelhante, como existem as identidades “espírita” ou “umbandista”, por exemplo. Os
praticantes da pajelança, inclusive os pajés, identificam-se como católicos” (2005, p. 269). O
contraste com as aptidões de determinados grupos urbanos para a bricolagem religiosa é
nítido, pois grupos neoesotéricos, por exemplo, como indicados por Cordovil (2015)
fomentam entre si um intenso trânsito e fusões entre crenças e práticas das mais diversas
tradições, autóctones ou estrangeiras.
É provavelmente muito limitada, dado o grau de enraizamento cultural das populações
rurais amazônicas e o relativo isolamento cultural das mesmas, a possibilidade de
114
De acordo com a autora (2015), diferentes tipos de bricolagem são condicionados por variáveis sociais como
ambiente social, classe, sexo e geração.
249
florescimento de um ambiente cultural que favoreça o desenvolvimento de habilidades para a
inovação religiosa por meio de processos coletivos. E menos ainda por processos
individualizados de bricolagem, aptidão fundamental para a constituição de uma identidade
religiosa não confessional ou de caráter individualista, nos moldes de uma religiosidade
moderna.
É provável que variáveis socioculturais tenham direta relação na elaboração dos tipos
de bricolagem realizados por populações tradicionais. Neste ponto, o recurso à divisão destes
processos simbólicos em pré-modernos e modernos (CAMURÇA, 2011) me parece útil. O
modelo de bricolagem realizado pelo caboclo amazônico é constituído exclusivamente de
elementos provindos de tradições religiosas a muito assentadas e incorporadas em seu
repertório cultural, indicando uma paisagem cultural de lenta transformação em seus aspectos
estruturais. É neste sentido que classificamos a bricolagem religiosa destas populações como
pré-modernas, isto é, em sentidos contrários à modernidade religiosa. Quando admitem a
introdução em larga escala de novos elementos em sua cosmologia e práticas, são de religiões
historicamente instituídas e, portanto, tradicionais do campo religioso brasileiro, como as
correntes evangélicas pentecostais, identificadas no estudo de Moraes e Rodrigues (2018)
sobre o fenômeno denominado pelos autores de pentecostalismo caboclo. Este
tradicionalismo religioso, por sua vez, condiciona a forma da identidade religiosa do caboclo
da região. Sua identificação ao catolicismo não o faz reconhecer a natureza híbrida de suas
crenças e práticas, “combatida pela Igreja Católica na Amazônia desde o período colonial”
(Maués, 2005, p. 271).
Por fim, diante dos argumentos expostos acima, podemos estabelecer esta dicotomia
urbano-rural de expressão do fenômeno religioso na Amazônia, por meio, principalmente, dos
diferentes ambientes socioculturais onde se desenvolvem modelos ou padrões divergentes de
religiosidade. Podemos notar que os recursos culturais disponíveis àqueles residentes em
grandes centros urbanos são nitidamente superiores em diversidade e circulação, às enraizadas
e tradicionais formas de conhecimento religioso reproduzidas em espaços caracterizados pela
baixa densidade e trânsito populacional. Nestes espaços, teríamos um mercado de bens
simbólico-religiosos, com circulação e volume destes bens, restrito, ao contrário do ambiente
urbano.

Palavras-chaves: Individualismo. Tradicional. Moderno

250
REFERÊNCIAS

PIERUCCI, Marcelo A. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In:


TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). As Religiões no Brasil: continuidades e
rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p.35-48.

CORDOVIL, Daniela. Religiões de Nova Era em Belém, Pará: entre o cosmopolitismo e a


identidade local. REVER, ano 15, n.1, Jan/Jun 2015. pp. 126-143.

HERVIEU-LÉGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. 2. ed.


Petrópolis: Vozes, 2015.
MAGNANI, José G. C. O circuito neo-esotérico. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES,
Renata (orgs.). As Religiões no Brasil: continuidades e rupturas. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
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MAUÉS, Raimundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico:


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Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001, pp. 253-272.

RODRIGUES, Donizete. JÚNIOR, Manoel R. de Moraes. A pentecostalização de povos


tradicionais na Amazônia: aspectos conceituais para uma antropologia de identidades
religiosas. Horizonte. Belo Horizonte, v. 16, n. 50, 900-918, maio/ago. 2018.

251
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 1 - CULTURAS, RITUAIS E FESTAS

O RITUAL DO CHÁ CIGANO: DIÁLOGOS INTER-RELIGIOSOS NA


ORDEM MÍSTICA TEMPLO DE ORÍON DA CIDADE DE MANAUS

Jeferson Bastos de Souza115

Este resumo é um recorte da pesquisa que desenvolvo no mestrado que tem como
objetivo a realização de um estudo etnográfico sobre as experiências de vida dos grupos de
bruxaria da cidade de Manaus o Clã Ixanaki; a Ordem Mística Templo de Oríon (OMTO); e a
Tradição Trina Essência (TTE). Enquanto que no Clã Ixanaki analisaremos os elementos
formadores da identidade mágica e ritualística do grupo, tendo como base as vivências e
experiências dos membros que fazem ou fizeram parte do Clã. Na Ordem Mística Templo de
Oríon, além de descrever e analisar um pouco sobre a história do grupo que está permeada de
conflitos e tensões, também iremos destacar a questão do legado familiar que se tornou uma
marca própria do grupo e também iremos analisar o ritual do Chá Cigano como um diálogo
inter-religioso que virou uma tradição do grupo. Por fim, na Tradição Trina Essência iremos
nos ater na perspectiva da musicalidade que é algo bastante presente nos rituais do grupo, pois
alguns integrantes são músicos e cantores da cidade de Manaus, e são eles que fazem parte do
que vão chamar de OCA das bruxas e é por meio da OCA que iremos investigar os laços de
amizades envolvidos nesse processo.
Dessa forma, por essa pesquisa conectar fenômenos e agenciamentos, alinhar os
processos ritualísticos de três diferentes grupos e conectar as relações que estão em volta,
contextualizando e propiciando para que as expressões próprias dos grupos pesquisados e suas
movimentações, bem como de seus integrantes, conduzam os caminhos teóricos-
metodológicos desse trabalho. Por este motivo que a etnografia multi-situada proposta por
Georg Marcus (2001) tem bastante relação com este estudo, tendo em vista o aspecto
processual e artesanal das dinâmicas, individuais e coletivas, que são mobilizadas pelas
experiências dos grupos. Solicitando assim que seja feito um trabalho de rastreamento das
conexões poéticas e políticas engendradas por esses movimentos.

115
Performer. Artista-Pesquisador do Diretório de Pesquisa Tabihuni (UEA/CNPq). Mestrando do Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas
(PPGICH/UEA). Formação Pedagógica em Artes Visuais (Centro Universitário Leonardo da Vinci). Bacharel
em Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
252
Foram os afetos e o corpo como aprendizagem de ser afetado (LATOUR, 1999, p. 47)
que mediaram os percursos metodológicos desta investigação no mestrado, pois a bagagem
que carrego de todos esses anos vivenciando, estuando, ritualizando, influenciaram
fortemente no desenvolvimento e amadurecimento desse trabalho, bem como permitiu
também o acesso aos conhecimentos corpóreos (TAYLOR, 2013, p. 32) de um
Bruxo/Pagão/Sacerdote. Por meio de uma relação de confiança, de cumplicidade, de respeito
e admiração com os colaboradores e interlocutores dessa pesquisa que consegui tecer o
desdobramento das minhas análises. As horas de conversas, as participações nos rituais, a
troca, o diálogo simétrico e o intercâmbio que foram realizados através de eventos e oficinas,
foram cruciais para o desenvolvimento desse trabalho. O afeto se dá por intermédio do corpo,
então ser um pesquisador/iniciado e ter as experiências individuais e coletivas como base
metodológica é o que torna esse estudo, uma pesquisa performática, pautada principalmente
na perspectiva da Antropologia da Performance que é um campo teórico e também
metodológico.
Nesse sentido, houve então a necessidade de abrir o leque que a própria Antropologia
da Performance no Brasil proporciona, caminhando por duas direções. A primeira, de uma
tradição dramatúrgica de Victor Turner e Richard Schechner com autores específicos
(CAVALCANTI, 2014, 2020); (DAWSEY, 2005, 2006, 2007, 2014, 2013, 2016);
(SCHECHNER, 2012, 2013); (LYRA, 2010, 2013, 2014, 2020) e (GONÇALVES, 2017,
2019, 2021). A segunda, da tradição ligadas a uma abordagem performática da linguagem
advinda de Richard Bauman e Charles Briggs com as autoras (LANGDON, 1996, 2007, 2016,
2020) e (HARTMAN, 2011, 2020). Para sintetizar, como ressalta Regina Muller (2000) a
performance é uma teoria incorporada no corpo (p.17) desse modo, tanto o corpo como o
afeto serão indicadores fundamentais para pensar os alinhamentos e tessitura deste trabalho.
Próximo do segundo semestre de 2022, realizamos duas oficinas voltadas para a arte,
no intuito de oferecer um pouco do que vivenciamos sendo artistas e também na busca por
tentar se aproximar cada vez mais dos integrantes que fazem parte desses grupos. A primeira
oficina teve como tema “Seguir Sendo: criando um corpo entre histórias&palavras”
ministrado por uma colega do mestrado com tive uma profunda relação de amizade e troca
sincera e genuína. A segunda oficina teve como tema “A poesia do corpo em cena” ministrada
pela atriz e preparadora corporal Viviane Palandi que também faz parte do Diretório de
Pesquisa Tabihuni (UEA/CNPq). Após a realização das oficinas constatei que o que irá

253
diferenciar as concepções que cada grupo tem a respeito da bruxaria é principalmente o
discurso.

Pensando nos tempos, locais e espaços em que comumente são realizados os rituais
desses grupos que estão inseridos em contexto urbano, o campo da Antropologia Urbana
(MAGNANI, 1996, 2002; VELHO, 2011; MONTES, 2012) também fundamenta grande
parte desse trabalho, ajudando a pensar no estudo da sociedade moderno-contemporânea ou
sociedades complexas e nos deslocamentos e cruzamentos fronteiriços de práticas,
ritualidades e religiosidades que agenciam ações, moldam identidades e promovem
questionamentos sobre o fluxo social.
A Ordem Mística Templo de Oríon tem seis anos de existência, atuando e
dinamizando suas práticas na cidade, o grupo tem hoje mais de 40 membros divididos entre
neófitos, dedicantes e sacerdotes, que são os graus que o membro é incentivado a galgar
durante seu treinamento mágico e sacerdotal. Dentro do grupo mãe, a Ordem Mística Templo
de Oríon, existem quatro subgrupos denominados de Covens – Coven Wyverns de Ethnes;
Coven Azi Dahaka; Coven Tsara Da Chuvani e Coven Filhos de Arcádia - fica por conta de
cada coven realizar seus respectivos rituais, bem como as aulas e demais atividades que
concerne ao subgrupo. É por meio dos rituais de Sabbath que todos os Covens do grupo mãe
se reúnem e se encontram para celebrarem juntos as mudanças de estações e seus picos, bem
como alguns outros rituais que são realizados pelo Coven Wyverns de Ethnes que geralmente
são abertos para os outros membros da Ordem Mística Templo de Oríon, que é o ritual de
Lúcifer, o ritual para Lilith e também o ritual do Chá Cigano.
Na Ordem Mística Templo de Oríon se tem também um grupo de estudos voltados
para a perspectiva afro-religiosa que se chama Círculo de Estudos Afros. Esse grupo de
estudos é apenas para fins de reflexão, debate, discussão, tendo em vista que muitos membros
dos covens da Ordem, além de serem bruxos e Pagãos, também são iniciados em religiões
afro, como o candomblé e a umbanda e também no culto de Ifá, dessa forma, por meio desse
círculo de estudos se torna possível agregar outros membros que desejam conhecer e aprender
um pouco sobre as religiões de matriz africana. e assim manter esse diálogo e
intercambiamento de conhecimentos dos próprios sujeitos e adeptos desses movimentos. Esse
processo é uma forma de “difundir” os estudos relacionados a essa vertente religiosa que faz
parte do repertorio de alguns membros, pois um fato muito relevante que irá acontecer é a
migração de pessoas adeptas das religiões afro para a bruxaria e vice-versa.

254
O Chá Cigano é um ritual oferecido pela Ordem Mística Templo de Oríon há quatro
anos, ritual esse que já virou tradição do grupo. Um dos membros, líder do coven Tsara Da
Chuvani, da Ordem é o médium principal do desenvolvimento desse ritual, pois foi por meio
de uma das entidades que ele incorpora, a Dona Sete Saias, que o Chá Cigano se firmou. Em
um processo de troca e de “pacto” entre um dos membros da Ordem e essa entidade que o
Chá Cigano se firmou e todos os anos acontece esse ritual. Nessa noite, todos os membros da
Ordem Mística Templo de Oríon são convidados, bem como a comunidade externa, os
integrantes que têm passagem pelas religiões afro-religiosas e fizeram seu desenvolvimento
mediúnico e recebem espíritos, nessa noite incorporam suas entidades para que participem da
celebração. Um banquete é servido, assim como bebidas diversas, os espíritos presentes
interagem com as pessoas e todo um processo de relações e comunitas é estabelecido nessa
dinâmica. Na metade da noite acontece então o ritual do Chá Cigano propriamente dito, pois é
nesse momento que todos são convidados a tomar o Chá que foi abençoado pelos espíritos
presentes, cada participante vai até a entidade e essa oferece um pouco do Chá e também um
alimento desejando uma vida próspera para cada um, e ao ingerir a bebida o participante
precisa visualizar o seu sucesso e sua tão almejada prosperidade, seja ela financeira, na saúde
ou em qualquer âmbito de sua vida. Após o ritual a festa continua.
O ritual do Chá Cigano não é uma festa tradicional de terreiro, nem se configura como
uma “gira”, mas uma festa para celebrar a presença desses espíritos que mantem uma relação
de amabilidade mútua com os integrantes que fazem parte de ambos os universos, a bruxaria e
as religiões de matriz africana. Pois, se tem uma coisa que faz parte da vida de qualquer
bruxa, é a relação de reciprocidade, de afeto e proximidade com espíritos.
Esse diálogo inter-religioso promovido pelo Chá Cigano demonstra uma possibilidade
de outras e novas atuações das próprias religiões no que concerne a prática de seus adeptos,
bem como a forma como se veem mutuamente. Em um exercício de uma comunicação
dialógica (TEIXEIRA, 2003, p. 23) de distintas vertentes e perspectivas religiosas se torna
possível tecer pontes e pensar na produção de ações e discursos não-violentos, pautados pelo
respeito, reconhecimento e acolhimento de práticas outras que solicitam a reconfiguração do
nosso olhar. Como afirma Teixeira (2003, p. 23) a “conversação” inter-religiosa é uma
realidade não só possível como fundamental no momento presente. O autor escreveu esse
texto em 2003 e ainda hoje, dezoito anos depois, em meio a tanto retrocessos de discursos e
práticas de ódio, essa conversação inter-religiosa se torna urgente e realça práticas sociais que
surgem como um horizonte possível para tecer essas interlocuções.

255
O diálogo favorece um novo aprendizado. Na medida em que é vivido em
profundidade, os interlocutores saem enriquecidos pela aquisição dos valores positivos que
animam as tradições em questão. E a própria fé dinamizada e mesmo purificada. (TEIXEIRA,
2003, p. 32). Nessa esteira do autor, o ritual do Chá Cigano se torna assim resultado desse
diálogo inter-religioso onde as pessoas envolvidas mesmo pertencendo a tradições religiosas
distintas se comunicam e se relacionam com a mais sincera e profunda amabilidade. O
espírito dialogal desse ritual reitera a dinâmica da cooperação e colaboração, da escuta do
outro, da sensibilidade espiritual e da aprendizagem dos processos que moldam as identidades
dessas tradições e suas religiosidades. Como Teixeira (2003, p. 29) destaca “O diálogo deve
ser pontuado pela ‘hermenêutica da diferença” e não pela “lógica da assimilação”. É
justamente a diferença que deve ser a ponte e o marcador para o diálogo das diferentes
perspectivas de atuações religiosas.
Pensando nesse sentido, outro ponto que também merece atenção é a marginalização
ao qual tanto a bruxaria quanto as religiões de matriz africanas sofrem pelo senso comum, que
atrelam as práticas e concepções dessas vertentes a meros estereótipos e reproduções
pejorativas, desse modo, ambos os universos aqui destacados por meio do constante esforço,
trabalho e resistência seguem vivos e atuantes produzindo cultura, arte e agenciamentos
políticos.
Religião e magia não são duas coisas distintas, com se tentou no debate antropológico
durante muito tempo fazer essa separação, elas estão interligadas e conectadas. Tanto a bruxa
(neo)Pagã dos grupos que pesquisamos, quanto as religiões afro-religiosas fazem magia,
inclusive, é a prática da magia e do feitiço, como constato em nossa pesquisa, que suscita o
entendimento e a conclusão por parte das bruxas e bruxos em associar o fenômeno da
bruxaria a outras vertentes religiosas. Portanto, essas constatações abrem para o debate e a
reflexão crítica, cujo terreno tem se mostrado como um campo fértil para investigações
analíticas, tendo as pluralidades como eixos centrais.

Palavras-Chaves: Ordem Mística Templo de Oríon; Ritual; Chá Cigano.

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257
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 1 - CULTURAS, RITUAIS E FESTAS

O CULTO AS PRINCESAS TURCAS NO PARÁ: A PARTIR DA


TRADIÇÃO MINA-JEJÊ-NAGÔ

Tayná do Socorro da Silva Lima116


Karlene da Silva Andrade117

O presente trabalho versa acerca do culto e rituais no que se refere às princesas turcas,
Herondina, Mariana e Jarina, na religião de matriz africana do Tambor de Mina no
Pará/Amazônia. Nas religiões de presenças africanas o rito às divindades vinculadas à
natureza e de encantados, estão cada vez mais sendo discutido, sobretudo sobre o processo de
encantamento de figuras históricas que viveram no mundo real, e que depois se encantaram.
De acordo com os sacerdotes afro-paraenses, o Tambor de Mina é uma religião que nasceu
nas terras do antigo estado denominado de Grão-Pará. Sendo a religião que cultua Orixás,
Voduns, Encantados e Caboclos, em que há a presença de elementos africanos, indígenas e
europeus. Assim, é uma prática religiosa dividida entre famílias de Divindades, de
Encantados e de Caboclos, que formam o Panteão cultuado.
Para esta discussão são acionados os conceitos de vida social amazônica a partir de
João de Jesus Paes Loureiro (2015), em que o real e o imaginário andam em sintonia. Ainda
as obras de Eduardo Galvão (1955) e de Raymundo Heraldo Maués (1990) que norteiam
sobre a vida religiosa na Amazônia, sobretudo sobre o homem amazônico e os aspectos
sobrenaturais vinculados a elementos na natureza, principalmente em relação de influências
da pajelança. Contextualiza-se o panorama das práticas afrorreligiosas no Pará, a partir de
produções de Cordovil (2012), Vergolino (1976), Luca (2010), Mundicarmo Ferretti (2004) e
Sérgio Ferretti (2009).
Trazemos uma parte etnográfica feita a partir de visitas ao terreiro denominado de
Casa Grande de Mina-Jejê-Nagô, de Mãe Rosângela de Abê Manjá e Huevy Esteves Brasil de
Toy Lissá, trabalho de campo feito por Tayná Lima. Na Casa de santo pesquisada as
divindades são paramentadas semelhantes a matriz do candomblé, principalmente em relação
a utilização do fio de miçangas sobre o rosto, denominado de Filar, que serve para cobrir o
rosto das divindades femininas, características estas herdadas de Pai Jorge de Itaci do Terreiro

116
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA na Universidade Federal da Bahia –
UFBA. taynassilvalima@gmail.com .
117
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA na Universidade Federal da Bahia –
UFBA. karlenesilvaandrade@gmail.com
258
de Iemanjá, casa de Tambor de Mina, do Maranhão. Onde percebe-se adaptações de ritos
candomblecistas. Outra herança do terreiro de São Luís é a presença de homens também
paramentados ao incorporarem com divindades femininas, fato este que não se observava na
Casa das Minas Jeje de São Luís.
Essas três encantadas, anteriomente citadas, são denominadas como princesas por
representarem uma nobreza advinda da Turquia, logo ambas seriam irmãs e filhas do Rei
desse país. Ao adentrarem a encantaria amazônica passaram pelo processo de encantamento,
que seria um processo de passar para outro plano sem ter a experiência da morte. Na maioria
das vezes não se encontra a matéria, assim, o corpo desaparece misteriosamente. No estado do
Pará é comum se utilizar a expressão que se “encantou”, como sinônimo de sumiço. A filha
mais velha, conhecida como Cabocla Herondina ou Dona Herondina, de acordo com alguns
sacerdotes paraenses, foi a que mais se identificou com elementos da cultura amazônica. Do
seu lugar de origem, ela já conhecia as ervas e seus segredos, aprimorando seu saber na
Encantaria Amazônica, por isso que muitos dizem que se “ajureimou”, termo utilizado dentro
da religião para se referir a encantados indígenas. É como se essas princesas assumissem
várias personalidades dependendo da influência de cada casa (PARÁ, 2020).
Certa vez no terreiro em Castanhal-PA, quando o sacerdote Clebson Silveira
incorporou com a encantada Herondina, na cabeça desse pai de santo esta encantada veio com
semblante muito sério, sem sorrisos ou qualquer tipo de brincadeira, e no momento após a
incorporação ela cruzou os braços para trás. Intrigada com tal personalidade para uma
princesa, eu Tayná, perguntei ao sacerdote quando este estava “puro” (desincorporado), o
motivo dela apresentar essas ações e ele me respondeu: que “na cabeça dele, ela foi
‘assentada’/’feita’ na linha vermelha e como escrava de Exu”, trazendo essa seriedade de
quem faz e desfaz “trabalhos” considerados “pesados ou demandas”, como por exemplo,
limpeza de energia de inveja, doenças, mortes, desfazendo assim o que pode causar ou já está
causando malefícios de várias ordens as pessoas. Nos perguntamos, Exú então traria suas
próprias caracteristicas para Herondina, já que tal entidade é conhecida por ser dono dos
caminhos e vem como aquele que desfaz até o que não pode ser desfeito, encruzilhadas de
vida e morte.
Já a encantada Mariana, conhecida por Bela Turca, considerada como a segunda filha
do Rei da Turquia, pode vim em determinadas pessoas como “Arara encantadeira” ou
parteira, esta que remete mais a prática da linha de cura ou também chamada de linha de Pena
- não há tambor, se bate palma e pode se usar a pena; e Maracá- ouriço com semente dentro,

259
instrumento de cura sonoro referente ao som do Macará produzido, instrumento musical
mágico de origem indígena-, mais cultuada na Umbanda paraense ou como a princesa da
Turquia vinculada a linha de nobres marinheiros.
Existem diversas informações acerca do processo de encante de Mariana, uma delas se
refere à Praia dos Lençóis, localizada no estado do Maranhão. De acordo com a mitologia, a
cabocla Mariana teria feito morada no mar, à espera da chegada de seu Pai, Toy Darçalã, o
então rei da Turquia. Contudo, dentre as três princesas turcas, a única que não se ajureimou e
não assumiu marcas da tradição caboclo-indígena foi Mariana, a que mais carrega
características de princesa Turca.
Mariana dentre as três é a mais cultuada no estado do Pará, e conhecida até mesmo por
quem não têm nenhuma ligação com as religiões de presenças africanas. Ela é muito citada
em letras de músicas de carimbó, estilo musical próprio do estado do Pará (HUERTAS,
2014), fazendo referência a encantada Mariana e a divindade do mar, Iemanjá, em relação ao
grande festejo em homenagem a Iemanjá que ocorre no distrito de Icoaraci-PA, festividade
esta que reúne um grande número de afrorreligiosos no local.
A última filha do rei da Turquia é a Princesa/Cabocla Jarina ou Toya Jarina, a que
teria sofrido mais com a ausência do pai, por ser a filha mais nova. Foi a única que ficou à
espera da chegada de seu pai, Toy Darçalã. Ele e Jarina ficaram hospedados no Palácio de
Dom Sebastião, dono da encantaria da Praia dos Lençóis. Por este fato de morar nas terras da
encantaria de Dom Rei Sebastião é que em algumas doutrinas se refere a Jarina como filha de
Rei Sebastião, por esta ter sido acolhida por ele. Jarina apresenta também uma dualidade em
suas características, nas imagens feitas como vultos (imagem materializada em tamanho
realista e feita de gesso), ela é representada como mulher jovem de pele preta, com cabelos
pretos e lisos, compara-se a traços originários indígenas. (PARÁ, 2020).
Ainda, foi assistindo na Casa Grande de Mina-Jejê-Nagô, de Mãe Rosangela e Pai
Huevy, a maior comemoração feita a dois encantados do terreiro, a cabocla Mariana e o João
Cigano, em que são homenageados ambos com características da Umbanda paraense. O que
reflete a uma das marcas mais importantes do local de culto, ao transitar por outras vertentes
religiosas de forma aparentemente harmoniosa. Deste modo, é possível refletir como abordar
temáticas da região norte de forma que outras pessoas compreendessem esse universo sagrado
e imaginário amazônico.
De acordo com João de Jesus Paes Loureiro (2015):
Na Amazônia as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mitos,
personificam suas ideias e as coisas que admiram [...]. Explicam os filhos ilegítimos

260
pela paternidade do boto; os meandros que na floresta fazem os homens se perderem
pela ação do curupira; as tempestades pela reação enraivecida da mãe-do-vento etc
(PAES LOUREIRO, 2015, p. 121).

Para Paes Loureiro (ibidem) é como se a vida social na Amazônia se organizasse em


torno de uma linguagem poética anterior aos tempos históricos, fluindo de forma espontânea
como os fluxos que têm as águas de um rio. Dessa forma, o escritor destaca que na vida local
a mitologia reaparece como a linguagem própria de uma fábula que une elementos de um
processo naturalizado, levada pelos sentidos, pela imaginação e pela descoberta das coisas.
Nesse procedimento de uma verdadeira metafísica poética o impossível torna-se
possível, o incrível apresenta-se crível, o sobrenatural resulta em natural. Quer dizer,
um estado poético que evola do devaneio de livro expansão do imaginário (PAES
LOUREIRO, 2015, p. 122).

E é neste contexto em que o impossível se torna possível que surge o culto em


homenagem a essas princesas da Turquia, onde de forma misteriosa são encantadas nas
“águas do Pará”, ou seja, adentram a encantaria amazônica. Deste modo, elas não passam pelo
processo de morte, são encantadas, passando de um plano real ao plano espiritual.Tal história
nos ajuda a pensar sobre os significados de vida e morte, e como essa relação dada como tão
natural da concepção humana pode adquirir outras possibilidades dentro de uma determinada
perspectiva religiosa.

Palavras-chaves: Princesas Turcas. Cultos Afro-paraenses. Tradição Mina-Jeje-Nagô.

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Paulo: Fonte Editorial, 2014. 142 p. (Religiões afro-brasileiras). ISBN: 978-85-66480-89-4.

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262
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RIUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 2 - CULTURAS E SIMBOLISMOS

O CONSUMO DO TECNOBREGA PELOS DISCENTES DA UFPA:


UMA ANÁLISE SOBRE A VALORIZAÇÃO MUSICAL REGIONAL

Vivian Sanches de Carvalho118


Hanna Tamires Leal Nascimento119
Taulo Italo Soares Cardoso120

Na década de 1950 as primeiras ideias de aparelhagem sonora começaram a surgir.


Segundo Lima (2015), a construção da aparelhagem teve início na utilização dos alto-falantes
para a divulgação de propagandas e, em seguida, para as transmissões de músicas na cidade
de Belém. Dito isto, observa-se que com a modernização, a aparelhagem tornou-se relevante
para a relação de sociabilidade paraense, culminando em grandes eventos locais, nomeados
como “Festas de Aparelhagem”, que tiveram suas marcas consolidadas pelo Dj's.
A estética do ambiente frequentado e das roupas e acessórios usados pelos festeiros,
também tiveram predominância na cultura, havendo mudanças com o passar dos anos
(COSTA, 2021). Para Fernandez (2020), essas relações fazem da cultura do tecnobrega um
patrimônio imaterial e atemporal. Essa manifestação sociocultural se alastrou pelas periferias
de Belém, migrou para centros urbanos e alcançou status internacional, a ponto de se propor o
reconhecimento de sua importância como Patrimônio Cultural através de Projeto de Lei No
485/2021, demonstrando como eventos considerados periféricos há mais de 60 anos,
atualmente se manifestam nas interações socioculturais, econômicas e políticas que permeiam
os diversos públicos, ambientes e faixa etária diversificada.
Esse estudo teve como núcleo central a análise e identificação das principais
dimensões em que as festas de aparelhagem permeiam os cenários econômicos e
socioculturais dos estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA), a qual foi o ambiente
usado para coleta de dados e os discentes da instituição foram nosso objeto de estudo para o
levantamento de dados da pesquisa. A primeira hipótese aponta que a “amostra coletada do
total de alunos da UFPA valoriza a cultura local”. A segunda hipótese é que a “violência

118
Discente de licenciatura em Ciências Sociais, UFPA, viviancarvalho.vc17@gmail.com.
119
Discente de licenciatura em Ciências Sociais, UFPA, hannatamires247@gmail.com.
120
Discente de licenciatura em Ciências Sociais, UFPA, tauloufpacs@gmail.com.
263
influencia negativamente na frequência dos alunos nas festas de aparelhagem”. Já terceira e
última hipótese levantada sugere que “as festas de aparelhagem tendem a ocorrer nas
periferias e são mais frequentadas por pessoas de baixa renda”.
Essa pesquisa foi realizada de maneira quantitativa, em razão não só de analisar o
perfil dos estudantes da UFPA e dimensionar sobre seus gostos, preferências, consumo e
percepções sobre os gêneros musicais regionais, principalmente, avaliar uma amostra de
frequentantes e não frequentantes das festas de aparelhagem.
A fase final de aplicação da pesquisa quantitativa foi realizada por meio da plataforma
“Google Forms” (Programa de criação de formulários e pesquisas on-line). O formulário foi
compartilhado on-line nas plataformas de mídias sociais como Facebook, WhatsApp,
Instagram e durou um período de 4 dias, entre o dia 14/07 ao dia 18/07, totalizando 190
pessoas entrevistadas. Posteriormente, todas as análises dos dados para constatar as hipóteses
foram feitas com base no programa Excel, em planilha dinâmica. O questionário de entrevista
foi construído com um total 17 perguntas de múltipla escolha, o qual pode-se dividir em 4
âmbitos de análise e dimensionamento de dados. De início, variáveis para verificar o perfil
dos estudantes da UFPA foram: autodeclaração de cor/raça; gênero; faixa de idade; cotista ou
não e, por fim, campo do conhecimento/curso.
No que refere ao gosto e preferência musical, as variáveis foram construídas com
finalidade de uma observação comparativa entre os gêneros musicais mais populares por meio
de alternativas como “gosto muito", “gosto pouco” e “não gosto”, especialmente para
avaliação das hipóteses, sobre a predileção dos estudantes sobre os gêneros musicais regionais
de Belém do Pará. Também foi planejado observar a percepção dos estudantes, frequentantes
e não frequentantes, sobre a valorização do Tecnomelody, por alternativas como “uma
manifestação popular de alta ou pouca relevância cultural”, além de considerar a parcela que
julga como “uma manifestação que desvaloriza a cultura paraense”, e sua aderência de
determinadas classes sociais, por exemplo, avaliar se os espaços de aparelhagem são
“frequentados por pessoas de classe média alta ou baixa”, tal como “frequentados por todas as
classes”. Por fim, para dimensionar, de forma gradiente, a percepção dos estudantes em
relação a segurança nas festas de aparelhagem, por meio de variáveis como “muito perigoso”,
“pouco perigoso”, "muito seguro” e “pouco seguro”.
No mapeamento de consumo e dinâmica dos eventos regionais, foi pensado em
variáveis que apresentassem a visão do público que frequenta as festas de aparelhagem sobre
o vestuário e consumo de bebidas. No âmbito avaliar as marcas de vestuários mais utilizadas,

264
foi oferecido nas alternativas do formulário, determinadas marcas de roupas e acessórios
consumidos, como “Pitbull” “Lacoste” “Adidas” “Nike” e “Kenner”, o dimensionamento da
frequência do consumo dessas marcas foi colocado por meio de alternativas como “Muito
usadas” e “Pouco usadas” nas festas de aparelhagem. Ademais, para dimensionar qual o
consumo e, preferencialmente, os tipos de bebidas nestes locais, foi colocado também com
base nos relatos da pesquisa, as variáveis de “alto consumo” e “pouco consumo”, dos tipos de
bebidas como, por exemplo, “cervejas”, “uísques”, “destiladas” e “Sucos”.
Assim, partindo inicialmente da hipótese de que os estudantes da UFPA frequentam as
festas de aparelhagem por valorizarem a cultura local e, com base nos dados coletados pelo
formulário, podemos agrupar o universo pesquisado em duas partes: primeiro, os que “já
foram a festa de aparelhagem” (agrupamento dos frequentantes que foram uma ou mais vezes
para festas de aparelhagem) e “Nunca foram a festa de aparelhagem”; com isso, fazendo o
cruzamento e contagem da variável “Você acha que, atualmente, o Tecnomelody é a maior
expressão artística musical paraense?” (alternativas sim ou não). Dessa forma, obteremos o
resultado amostral comparativo de 115 dos entrevistados que já foram a festa de aparelhagem
e sinalizam que o Tecnomelody é a maior expressão artística musical paraense, enquanto
apenas 75 dos entrevistados que nunca foram a festa de aparelhagem sinalizam,
paralelamente, que não consideram o tecnomelody como a maior expressão artística musical
paraense.
Ademais, para verificar a hipótese de valorização do tecnomelody pelos estudantes
frequentantes, o universo de pesquisa de frequentantes e não frequentantes das festas
deaparelhagem em variáveis de já foram a festa “mais de uma vez”, “uma vez” e "nenhuma
vez” relacionando com as variáveis que consideram o tecnomelody como “uma manifestação
popular de alta ou pouca relevância cultural” e “uma manifestação que desvaloriza a cultura
paraense”. Com base num total de 190 entrevistados, a maior parcela de 71 dos entrevistados
que frequentaram as festas “mais de uma vez”, juntamente com 40 entrevistados foram
somente uma vez e 64 nunca foram em uma festa de aparelhagem, isto é, uma soma de 175
entrevistados, entre frequentantes e não frequentantes, consideram o Tecnomelody como
“uma manifestação popular de alta relevância cultural”, enquanto somente 15 entrevistados,
frequentantes e não frequentantes, consideram o tecnomelody como “uma manifestação de
pouca relevância cultural ou que desvaloriza a cultura paraense”. Diante disso, podemos
sinalizar que grande parcela dos estudantes da UFPA entrevistados consideram o
tecnomelody como “uma manifestação popular de alta relevância cultural”.

265
Em segunda análise, ao observar as respostas dos entrevistados sobre as percepções
deles da segurança nas festas de aparelhagem (em “SEGURO” ou “PERIGOSO”), juntamente
com a frequência de ida à essas festas (em “Nunca foi”, “Foi uma vez” e “Foi mais de uma
vez”) que independente do quanto os estudantes frequentam os eventos, no geral, eles veem
tais espaços como mais perigosos do que seguros.
Por exemplo, agregando os dados em duas categorias primárias de “seguro” ou
“perigoso”, juntamente com as duas variáveis totais de: “já foram as festas de aparelhagem"
(tanto de estudantes que já foram as festas “uma vez” e “mais de uma vez”), a qual representa
um total de 115 entrevistados e os que “nunca foram as festas de aparelhagem”, representando
um total de 75 entrevistados. Observou-se que um total de 82 entrevistados consideram as
festas de aparelhagem como “SEGURO”, em comparação com um total de 108 entrevistados
que consideram as festas de aparelhagem como “PERIGOSO”. Dessa forma, a hipótese de
que a percepção dos estudantes acerca da violência nesses eventos influência na ida aos
mesmos não é ratificada.
No que se refere à terceira hipótese, não foi possível verificar se as festas de
aparelhagem tendem a ocorrer nas periferias e são mais frequentadas por pessoas de baixa
renda, pois, para confirmá-la de forma consistente, seriam necessários dados como a faixa de
renda dos entrevistados, o bairro onde eles participaram ou sabem que ocorrem festas de
aparelhagem e o bairro onde eles próprios moram, para que assim se tentasse relacionar a
frequência de participação com a renda e com as áreas geográficas.
Ainda em relação a renda, a questão colocada aos entrevistados foi sobre a percepção
deles das classes sociais que frequentam os eventos de Tecnomelody e, apesar de a pergunta
ter sido criada a partir da hipótese anteriormente citada, a questão não retornou informações
relacionáveis e sim opiniões, tornando as respostas descritivas sobre a ideia que os
entrevistados têm desses eventos e não explicativas sobre uma relação causal entre frequência
e renda, como se pretendia a princípio. Nesse contexto, a variável cotas se torna o único
indicador coletado utilizável para fazer especulações acerca da relação entre frequência nas
festas e renda, considerando o pressuposto de que os cotistas estão em situações de
desigualdades sociais (por renda, sistema de ensino ou raça/cor) e, ainda, que a maioria deles
está diretamente em situações de desigualdade econômica (de renda ou sistema de ensino).
Quando se contabilizou dentre todos os entrevistados os que já foram mais de uma vez
às festas de aparelhagem, os cotistas representaram 70% do total e os não cotistas foram
somente 30%. No segundo caso, quando se analisou somente o grupo dos cotistas, 46% deles

266
foram mais de uma vez e 19% já foram uma vez, o que soma 65% de cotistas que já foram em
festas de aparelhagem, contra 35% que nunca foram. Com isso, fica visível uma correlação
entre as cotas e a frequência de ida às festas e, por conseguinte, um indicativo de correlação
entre renda e frequência de ida às festas.
Em suma, somente a primeira das três hipóteses da pesquisa foi confirmada: a maioria
dos entrevistados, independente da frequência em que vão às festas de aparelhagem (mas
especialmente aqueles que mais frequentam), consideram o Tecnomelody uma manifestação
popular de alta relevância cultural; ou seja, a frequência de ida e a valorização desses eventos
estão correlacionados. Ademais, a segunda hipótese não foi comprovada sendo, inclusive,
contrariada pelos dados, os quais demonstram que, no geral, os estudantes consideram as
festas de aparelhagem mais perigosas do que seguras. Por fim, a terceira hipótese não pôde
ser testada devido à ausência de dados, não sendo possível concluir se as festas de
aparelhagem tendem a ocorrer nas periferias (no sentido geográfico do termo); entretanto,
realizou-se uma associação entre as rendas e as cotas dos entrevistados e, em seguida, entre os
cotistas e frequência de ida às festas, indicando uma provável relação entre renda e frequência
que deve ser melhor analisada posteriormente.

Palavras-chaves: Música regional. Tecnomelody. UFPA.

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267
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 2 - CULTURAS E SIMBOLISMOS

OS HIPPIES DE SANTARÉM- PA: MEMÓRIAS DE UMA


TRAJETÓRIA MUSICAL

Elen Jaqueline da Silva Santos121

A música é uma das formas de expressão artística mais marcantes na construção da


identidade cultural de um povo. Em Santarém no estado do Pará, a música se destaca no
contexto cultural da cidade, e grande parte de seu acervo musical se caracteriza pela exaltação
de suas paisagens, gastronomia, mitos regionais e, ainda, pelo famoso som de bolero. Neste
contexto o presente artigo resulta de uma pesquisa cujo intuito foi dar maior visibilidade e
reconhecimento aos grupos musicais da cidade de Santarém, entendendo que eles constituem
referências da história da música no Pará.
Os relatos biográficos de pessoas que vivenciam ou vivenciaram o cenário musical
em Santarém tornaram-se as principais pistas para reconstituição história da música local.
Dessa maneira, o registro de vivências, experiências, sentimentos e histórias pessoais a partir
do compartilhamento de memórias individuais veio a assumir um papel preponderante na
pesquisa, uma vez que davam acesso a memórias coletivas. Considerando, pois, que “o
objetivo do pesquisador é compreender a vida do indivíduo dentro da própria sociedade em
que vive” (GOLDENBERG, 2004, p. 21), dediquei-me a ouvir os relatos pessoais de músicos
atuantes em diferentes períodos, em Santarém.
Nesses contextos, a memória é definida como uma base de dados a partir da qual se
pode treinar cada vez mais especialistas em diversas formas expressivas como fala, escrita,
rituais e cantos, as quais constituem base da memória cultural de um povo. A memória é uma
peça fundamental na musicalidade. De acordo com Maurice Halbwachs (1992), nossas
memórias são de suma importância para o processo da comunicação humana. Poderíamos
dizer também que sem memória não poderíamos fazer música. Para constatarmos isto,
contemplemos, por um instante, as múltiplas maneiras em que mobilizamos nossas memórias
na produção de uma canção.

121
Bacharela em Antropologia, Universidade Federal do Oeste do Pará, elenjaqueline2009@hotmail.com.
268
O objetivo geral deste trabalho foi identificar aspectos da história musical de Santarém
a partir de memórias individuais e coletivas. Os objetivos específicos foram: registrar as
trajetórias individuais de quatro artistas selecionados dentre um conjunto; analisar aspectos da
produção musical desses artistas; entender como, em suas trajetórias pessoais,
contribuíram/contribuem para a história musical de Santarém.
Quanto aos aspectos metodológicos da pesquisa apoiei-me em Goldenberg (2004, p.
21), quando cita que “para Boas, o que constitui o ‘gênio próprio’ de um povo repousa sobre
as experiências individuais e, portanto, o objetivo do pesquisador é compreender a vida do
indivíduo dentro da própria sociedade em que vive”.
Diante do exposto, ir até aos músicos, portanto, passou a ser minha meta, e isso
exigiria realizar pesquisa de campo, a qual foi sistematizada pelos seguintes procedimentos:
coleta e reunião de material sobre grupos musicais que fazem parte da memória e história da
música santarena; identificação e contato com pessoas chave para conceder entrevistas sobre
o tema abordado na pesquisa; seleção de protagonistas e interlocutores principais; elaboração
de roteiros de observação e entrevista; realização das entrevistas não estruturadas; transcrição
de entrevistas; reprodução de fotos, músicas e gravações de acervos particulares dos
entrevistados.
Os resultados surgem através dos relatos de três participantes do conjunto musical
Os Hippies, os quais se mostraram receptivos à realização de entrevistas versando sobre suas
trajetórias pessoais e a trajetória da própria música santarena. São eles: Odilson Matos,
intérprete, compositor e poeta, que atualmente exerce a profissão de advogado. É esposo de
Ivone Picanço, poetisa e intérprete, além de educadora. Ambos foram amigos e parceiros de
trabalho de Ray Brito, que faleceu em 2018. Bastante conhecidos como grandes intérpretes no
cenário musical da região, os três ocupam/ocuparam cadeiras na Academia de Letras e Artes
de Santarém. Atualmente, Odilson e Ivone não vivem da música, mas ainda fazem
apresentações em eventos aclamados, como as Festividades de Nossa Senhora da Conceição e
aniversários da cidade de Santarém.
Odilson Guimarães Matos Rodrigues apresentou em seu discurso que a cultura e a
música regional são intrinsecamente conectadas. Em sua visão, a música santarena está
inteiramente ligada a outros aspectos da cultura local, constituindo uma forma de expressão
do sentimento sobre todas as coisas, de maneira entrelaçada. Ou seja, a musicalidade está
presente em todas as dimensões da vida cultural da cidade e da região, representando seu
povo, na visão do músico.

269
As narrativas de Odilson trazem à intimidade renomados artistas locais, pessoas que
compartilham sua luta em prol da valorização e da ampliação da difusão da cultura regional;
por isso, estão intimamente ligadas à sua própria memória individual, atuando sobre ela como
fator de influência e referência. Ademais, Odilson considera-as destaques na história de
Santarém. Um exemplo da representatividade local das parcerias musicais do artista é sua
mais famosa interpretação, escrita pelo Maestro Wilson Fonseca, que lhe ofereceu uma das
obras mais apreciadas na cidade de Santarém, a música Terra Querida.

Falando do passado, menciona que em 1970 existiam muitas bandas e conjuntos


musicais em Santarém, incluindo “Os Hippies de Santarém”, do qual ele e amigos fizeram
parte entre os anos de 1963 e 1988. Segundo ele, os incentivos às artes eram muito maiores,
na época, e estimularam a formação de aproximadamente dezesseis conjuntos musicais, que
tocavam nas noites de finais de semana nos clubes da cidade. Com Os Hippies, ele viajou
pelas cidades mais próximas da região de Santarém, em um ônibus que estampa a capa de um
dos discos de vinil do conjunto musical, intitulado “Canção da Minha Saudade”.

O segundo participante da pesquisa e ex-integrante da banda Os Hippies, Ray Brito,


solicitou que a entrevista fosse transcrita literalmente. Um recorte de sua fala se dá da
seguinte maneira:

Eu já tinha cantado em todas as bandas que tinham em Santarém, antes de eu entrar


n’Os Hippies. Então, eu fui convidado pelo Odilson Matos para integrar como um
dos principais. Eu tocava, na época, nos Apaches, que é a Quinta Dimensão hoje.
Como eu tava sabendo dos maiores sucessos da época, que tocavam nas rádios, as
músicas eu sabia todas. Entrei na banda ensaiando essas músicas novas, diferentes, e
aí cresceu mais do que já tinha crescido. E aí fui convidado pra gravar o primeiro
disco com Os Hippies, aquele com o nome de Terra Querida, primeiro LP. Foi o
maior sucesso, e Os Hippies estouraram de ponta a ponta no Brasil. A gente viajava
muito, a gente saía do avião e entrava no ônibus, saía do ônibus e entrava no barco.
Então, era muito show que a gente fazia, e Os Hippies ficaram “bala” mesmo. E
depois a gente arranjou um empresário, que foi o Edinaldo Mota, que ficou 15 anos
como nosso empresário. As músicas d’Os Hippies viraram sucesso no Brasil.
Solidão foi uma das músicas mais tocadas, foi a música mais tocada do disco, os
jovens da época todos dançavam. Depois disso, nós gravamos mais um LP e mais
dois compactos. Eu gravei uns 5 discos com Os Hippies, e todos os discos d’Os
Hippies foram sucesso. Daí foi a época que eu saí d’Os Hippies, naquela vontade de
ser um cantor solista. E eu consegui porque eu já gravei 37 discos, então eu acho
que eu venci!

A entrevista com Ivone Picanço indicou alguns aspectos relevantes. Em 1972, Ivone
ainda era adolescente quando foi chamada para integrar o grupo Os Hippies, que pertencia a
Odilson Matos. Pioneira, ela conta que foi a primeira mulher negra a compor um grupo
musical e, em sua condição de gênero, sofreu bastante em um universo essencialmente

270
masculino. Ela relembra que, naquele período, os músicos eram considerados pessoas de má
índole, “bandidos”. A burocracia que existia na época também lhe traz más lembranças: a
cada seis meses a carteirinha de músico deveria ser atualizada para comprovar essa condição
perante a Polícia Federal, que, segundo ela, “estava sempre fazendo fiscalizações” nos
espaços em que os músicos se apresentavam.

Este relato corrobora ao fato de que ao longo da história política do Brasil, a música
tem sido veículo de protesto, mobilização e denúncia, seja de abusos por parte de agentes
governamentais, seja de crimes ambientais, seja ainda da severa desigualdade social que
aflige o país. Napolitano (2007), por exemplo, defende em seu livro Síncope das Ideias que a
identidade musical das favelas urbanas se construiu, em muito, por força do “samba do
morro”, que fez frente à MPB e à bossa nova, cujas origens sociais foram outras. O “samba do
morro” mencionado pelo autor tratava principalmente sobre o contexto social em que os
moradores das favelas viviam. Pobres e socialmente excluídos do que a elite dispunha nas
cidades, os músicos “do morro” criaram um estilo de samba que se popularizou na sociedade
brasileira, contribuindo para a construção da identidade das favelas.

A participação no conjunto musical Os Hippies contribuiu para o sucesso de Ivone,


que se tornou uma cantora muito admirada pelo sentimento que coloca em suas
interpretações. Sem dúvida, ela também contribuiu para a inspiração de muitas mulheres e
para a trajetória do conjunto, que era, de fato, o mais famoso e mais visado da cidade naquela
época, pois era chamado para quase todos os bailes que aconteciam nos fins de semana.

A pesquisa permitiu compreender que a primeira premissa é de que a música constitui


uma forma de expressão dotada de notável poder de produzir e fixar representações da vida
social, produzindo também memórias em profunda conexão com identidades sociais
(HALBWACHS, 1992). Neste sentido, acompanho a afirmação de Blacking (2007, p. 204):

Isto não significa que toda a atividade musical possa ou deva ser reduzida a uma
variedade de atividade social e interpretada de maneira intercambiável com qualquer
outro conjunto de instituições. No fundo, a música é o aspecto mais importante do
fazer musical, não somente para quem a estuda, mas também para aqueles que
participam dela. Este é o caráter especial das atividades musicais que é sociológica e
antropologicamente problemático, mais que as características que elas têm em
comum com outras atividades sociais.

Buscou-se, por meio de entrevistas semiestruturadas, entender como, em suas


trajetórias pessoais, contribuíram/contribuem para a história musical de Santarém. Neste
texto, então, priorizei mostrar características da cultura musical santarena, percorrendo os
271
relatos e arquivos cedidos pelos entrevistados. Suas vidas privadas influenciam a
compreensão das múltiplas faces da cultura santarena, em suas contínuas transformações ao
longo do tempo.

Palavras-chaves: Música. Memória. Santarém.

REFERÊNCIAS

BLAKING, J. Música, cultura e experiência. Cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 201-
218, 2007.

GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa em ciências


sociais. Rio de Janeiro: Record, 2011.

HALBWACHS, M. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: La Haye; Mouton, 1976.

NAPOLITANO, M. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira.


São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

272
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 3 - PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES

CÍRIO: OUTUBRO EM HOMENAGENS

Wanessa de Lima Grigoletto122

Falar sobre uma das maiores festas religiosas do mundo é se envolver em uma
atmosfera que está além do conhecer, mas do experienciar uma energia que envolve todos que
dela participam de forma direta ou indiretamente. O Círio de Nazaré é essa manifestação
religiosa ocorre em vários municípios do estado do Pará como em Vigia, Acará, Curuçá,
Parauapebas, São João de Pirabas, entre outros, segundo IPHAN (2014), mas o mais
conhecido popularmente é o que acontece em Belém do Pará, realizado no segundo domingo
de outubro, o qual em dezembro de 2013 foi declarado patrimônio Cultural da Humanidade
pela UNESCO e no dia 11 de novembro de 2021 teve seu título de Patrimônio Cultural do
Brasil revalidado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2014).
Instituído em 1793 em Belém do Pará, até 1882, o Círio tinha sua saída do Palácio do
Governo. Somente em 1882, que o bispo Dom Macedo Costa estabeleceu que a partida do
Círio fosse da Catedral da Sé à Praça Santuário que fica em frente à Basílica de Nazaré, em
Belém (CÍRIO de Nazaré, Wikipédia).
Esse trajeto rememora ao mito do achado da imagem da santa pelo caboclo Plácido,
que aconteceu às margens do igarapé Murutucu, em 1700, em que a imagem foi encontrada
em uma bifurcação de uma árvore de taperebá, e ao levá-la para sua casa, ela retornava,
misteriosamente ao seu local de achado. Essa situação teria se repetido por algumas vezes,
chamando a atenção do governador, que decidiu levar a imagem para o Palácio do Governo, e
de novo ela retornou para o lugar de origem. Essas fugas fizeram com que Plácido construísse
uma pequena ermida na local e grande parte da população passou a visitar tornando-se
devotos da Santa (IPHAN, 2006).
Essa devoção foi se intensificando e atraindo cada vez mais pessoas que vinham para
cultuar a imagem de Nossa Senhora de Nazaré sacralizando aquele lugar, fazendo assim, com
que a festa a Nossa Senhora de Nazaré ganhasse uma dimensão cada vez maior, foi então que

122
Administradora. Graduada em Administração (UNAMA-PA). MBA em Gestão com Pessoas
(UNICESUMAR). Especialização em Docência da Educação Superior (UNAMA-PA). Mestranda em Ciências
da Religião do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPGCR-UEPA). Atriz do Grupo de teatro
da Unipop. wanessadlgrigoletto@gmail.com.
273
a igreja começou a ajudar na melhor estruturação e divulgação da devoção a Nossa Senhora
de Nazaré.
Hoje o Círio não se resume apenas a uma procissão, atualmente existem outras
romarias e procissões que acontecem antes e depois da festa principal, durante a quadra
nazarena que são 15 dias que se seguem após o Círio de Nazaré. Ao todo são 13 procissões e
romarias para homenagear Nossa Senhora de Nazaré, os fiéis saem caminhando, dirigindo
motos, carros, bicicletas e barcos, percorrendo avenidas e rios paraenses (G1, 2019).
Há também outros eventos que compõem esse tempo de Círio, são eventos culturais
realizados nessa época dos quais temos: o Auto do Círio, que acontece na sexta-feira que
antecede ao Círio, é uma peça teatral itinerante construída por atores e não atores, realizada
pela escola de Teatro e Dança da Ufpa (BRIGIDA, 2008); Tem a festa da Chiquita, esta
dirigida pela comunidade LGBTQIA+, é um evento que acontecia na Praça da República,
logo após a passagem da procissão da Trasladação, mas nos últimos anos teve sua realização
em outros lugares e no ano de 2021, devido à pandemia, a festa aconteceu no Memorial dos
Povos, com um número reduzido de participantes e seguindo os protocolos de medidas
sanitárias ao combate a covid-19 (PORTAL AMAZÔNIA, 2021); Tem também a Ode ao
Círio que acontece na quinta-feira que antecede ao Círio, é um teatro de rua realizado pelo
Grupo de Teatro da Unipop junto com pessoas, acima de 18 anos, que se inscrevam para
participar da montagem que acontece na frente da instituição Universidade Popular –
UNIPOP.
Todos esses eventos fazem parte da cultura paraense nesse período em que o Círio de
Nazaré envolve toda a sociedade, seja de forma religiosa, cultural ou comercial. Essa grande
festa que reúne sagrado e profano num mesmo plano, nos fazendo pensar qual é o espaço que
cada um toma dentro deste grande evento que envolve milhares de pessoas, a saber que:

… a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”,


possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do
mundo”, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade
e portanto a relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira
orientação, porque o “ponto fixo” já não goza de um estatuto ontológico único;
aparece e desaparece segundo as necessidades diárias. A bem dizer, já não há
“Mundo”, há apenas fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa de uma
infinidade de “lugares” mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado
pelas obrigações de toda existência integrada numa sociedade industrial (ELIADE,
1992 p. 18).

274
Dessa forma o sagrado e o profano são vivenciados em determinados pontos da
cidade, não convergindo nos mesmos horários de realização de cada evento, mas todos
voltados para o momento Círio de Nazaré.
A festa do Círio é recheada de muitas simbologias ligadas à fé tendo alguns elementos
que foram criados para auxiliar no decorrer da procissão e outros para que o promesseiro
pudesse pagar suas promessas, como os carros dos milagres que recolhem objetos em forma
de agradecimento por uma graça alcançada pelo romeiro. Temos alguns pagadores de
promessas que levam consigo seus objetos de miriti, cera, parafina, barro entre outros, durante
o percurso da procissão e, que trazendo para uma análise de TEIXEIRA et al, (2010, p. 122)
“o ex-voto constitui expressão religiosa, artística e cultural caracterizada pela prática de
oferendas aos santos como forma de agradecimento pelas promessas alcançadas” como o
pagamento de uma dívida que foi contraída no ato do pedido. Tem aqueles, também, que vão
segurando na corda que é atrelada à berlinda, onde carrega a imagem de Nossa Senhora de
Nazaré, a fim de puxá-la durante todo o percurso do Círio.
A corda que é um símbolo que liga o devoto a Nossa Senhora, no momento da
procissão do Círio e, segundo relato, ela é um dos elementos mais característicos na procissão
do Círio, possuindo 800 metros de comprimento é dividida ao meio para ficarem duas cordas,
uma para a Trasladação que acontece no sábado à noite e uma para o domingo de manhã, no
Círio (IPHAN, 2014).
A corda surge em 1855, quando a berlinda, na época, puxada por carro de bois ficou
presa no atoleiro, devido as fortes chuvas tradicionais nessa região e recorrentes nesse período
de final de ano. Então, os fiéis que acompanhavam a procissão, tiveram a ideia de puxar o
carro com a imagem da Santa com uma corda. Desde então se tornou tradição conduzir a
berlinda com a corda e é neste símbolo de fé, que muitos devotos pagam promessas por
graças alcançadas (ARQUIDIOCESE DE BELÉM, 2020).
A corda tinha seu propósito inicial, mas com o passar do tempo, ela foi ganhando um
novo propósito de estar na procissão, porém não era bem-visto pela igreja, pois ela não era
considerada um objeto sagrado e por esse motivo, a igreja já tentou tirá-la da procissão várias
vezes, seja por interdição total, ou por desatá-la da Berlinda alegando que ela atrasa o
andamento da procissão.
Desse modo, podemos pensar que a corda ganha outro aspecto de sacralidade, porque
os fiéis vão desenvolvendo uma relação muito próxima com ela que vai para além de ser um
simples objeto, no momento da procissão. Eliade (1992) nos mostra uma definição sobre a

275
manifestação de sagrado em objetos que aparentemente não se enquadram no caráter sagrado,
ele diz que “Manifestando o sagrado, um objeto qualquer se torna outra coisa e, contudo,
continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente” (p. 13).
Assim, buscaremos evidenciar o Círio de Nazaré como essa grande festividade rica em
rituais que envolvem toda a cidade no mês de outubro e que tem vários aspectos atrelados à
religiosidade, a cultura e a tradição do catolicismo em Belém. Esta pesquisa será construída
de forma etnográfica e bibliográfica respeitando as possíveis restrições causadas pela
pandemia da Covid-19 que ainda está presente no país. O referido trabalho é um
desdobramento de uma pesquisa para a dissertação de mestrado no PPGCR/UEPA.

Palavras-chaves: Círio de Nazaré. Cultura Paraense. Religião.

REFERÊNCIAS

BRIGIDA, Miguel Santa. O auto do círio: festa, fé e espetacularidade. Textos escolhidos de


cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v5, n1, p.53-48, 2008.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes, - 1ª.ed. – São Paulo:
Martins Fontes Editora Ltda, 1992.

G1 – Pará – Belém. Círio de Nazaré 2019: Confira a programação completa das romarias.
Disponível em: <https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/10/11/cirio-de-nazare-2019-
confira-a-programacao-completa-das-romarias.ghtml.> Acesso em 08/08/2022.

IPHAN, Círio de Nossa Senhora de Nazaré - Belém (PA). 2014. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/55.> Acesso em 09/01/2021.

______. Dossiê Círio de Nazaré. Vol. I. Belém, 2006.

PORTAL AMAZÔNIA. Do sagrado ao profano, conheça a Festa da Chiquita. 2021.


Disponível em: <https://portalamazonia.com/estados/para/do-sagrado-ao-profano-conheca-a-
festa-da-chiquita.> Acesso em 08/08/2022.

TEIXEIRA, L. C., Cavalcante, M. M., Barreira, K. S., Aguiar, A. C., Gonçalves, S. D., &
Aquino, E. C. (2010). O corpo em estado de graça: ex-votos, testemunho e subjetividade.
Psicologia & Sociedade, 22(1), 121-129.

SITE DA ARQUIDIOCESE DE BELÉM, Como será o Círio de Nazaré 2020. Disponível


em: <https://arquidiocesedebelem.com.br/como-sera-o-cirio-de-nazare-2020/.> Acesso em
08/08/2022.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre (2020). Círio de Nazaré. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%ADrio_de_Nazar%C3%A9.> Acesso em 08/08/2022.
276
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 3 - PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES

NARRATIVAS ORAIS SOBRE A FESTA DO GAMBÁ: FÉ E


CIDADANIA NA COMUNIDADE DE PINHEL, PARÁ, BRASIL.

Paula Maryse Hoyos Lima


Célia Regina Trindade Chagas Amorim

A vida de quem mora na Amazônia sempre foi atravessada por muitos conflitos,
disputas por territórios e também pelo silenciamento forçado imposto aos povos originários.
Fora dos grandes centros mais urbanos como Belém, Manaus ou Santarém, num ambiente que
possui léguas de solidão e dispersão entre as casas e as pequenas cidades (Paes Loureiro,
2001, p. 77) o protagonista da comunicação é o processo conhecido como narração. Longe
do ambiente instagramável123 imposto pelas cidades maiores, é no bate-papo, na conversa
entre familiares e comunitários que essa forma artesanal de comunicação, onde reside o puro
em si (Benjamin, 1987, p. 205), que sobrevivem costumes, crenças e muitas histórias sobre os
amazônidas.
O artigo tem como ambiente a Amazônia brasileira, mais especificamente o território
de Pinhel, antiga missão de São José de Maitapus, comunidade indígena localizada na
margem esquerda do rio Tapajós, em terreno elevado, no município de Aveiro (Vaz Filho,
2010, p. 83), no Estado do Pará, no Norte do país. Vaz Filho (2010) nos diz que o começo de
Pinhel veio dos índios Cara Preta, Apiaká e bugres124 e que esses povos formavam uma só
aldeia: os Maytapu.
Foi esse povo que trouxe para o presente a Festa do Gambá, um festejo a São Benedito
que sobrevive há mais de 300 anos. Essa festividade não tem relação alguma com o animal
silvestre que possui o mesmo nome, mas sim faz referência a um tambor de madeira oca com
pele de animal retesado que dá o tom às folias. O objetivo do artigo é compreender como se
constroem as narrativas orais sobre a Festa do Gambá de Pinhel, trazendo para o trabalho os
conceitos de narração e experiência de Walter Benjamin.
Para acessar nossos interlocutores, percorremos o caminho metodológico da entrevista
narrativa proposta por Jovchelovitch e Bauer (2002), levando em consideração a crescente
consciência do papel que o contar histórias desempenha na conformação de fenômenos

123
O termo é uma derivação popular da rede social “Instagram” e faz referência a tudo aquilo que pode fazer
sucesso nas redes, criar vínculo e agregar valor estético.
124
Vaz Filho, 2010, p. 86
277
sociais (p. 90). Para a coleta de dados, utilizamos um gravador digital e caderno de campo
para anotação das impressões.
A primeira parte do artigo traz a apresentação de nossos interlocutores e narra a Festa
do Gambá. Vamos apresentar Dona Eunice, Florenice, Seu Roselino, Elivany e Florêncio
Vaz, todos ex-moradores de Pinhel que tive a oportunidade de conversar e que mantêm
residência fixa em Santarém, cidade de médio porte da região Oeste do Pará, que fica distante
12h de viagem de barco de Pinhel. Após isso, narraremos a Festa trazendo a descrição das
etapas dos ritos e exibindo imagens que ambientam o leitor.
Em seguida, na segunda parte, faremos uma conexão entre os relatos sobre a Festa, os
conceitos benjaminianos e a obra de Gagnebin (2013) sobre Walter Benjamin. Além disso,
Kopenawa (2015) vai trazer para a discussão os conceitos que abraçam a narração e através
da cosmovisão yanomami vamos dialogar com Vaz Filho (2010; 2013) e Harris (2006) sobre
a Amazônia. Amaral (1998) e Canclini (1983) apresentarão os sentidos de festejar, levando
em consideração o processo de apagamento das histórias ribeirinhas que levou esses povos a
manter uma forma artesanal de comunicação, construindo um repertório particular de histórias
que os conectam com o passado e também com constituem como sujeitos. O centro do
argumento se dá em torno da importância do papel dos narradores, pessoas responsáveis pela
transmissão oralizada de histórias e que se tornaram personagens importantes da história de
Pinhel.
A costura desses conceitos se dará com a transcrição de trechos da entrevista narrativa
utilizada como metodologia para o trabalho, pois “através das narrativas, as pessoas lembram
o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações
para isso” (Jovchelovitch; Bauer, 2002, p. 91). Os relatos nos envolverão no ambiente da
Festa e nas memórias dos antepassados de nossos interlocutores.
Dentro de Pinhel são as pessoas mais idosas que se apresentam como narradores
principais e que compartilham com as gerações mais jovens histórias, saberes e também
ensinamentos morais. A rememoração do passado é o que torna possível a construção de um
presente que acessa as esperanças deixadas no passado e que se manifesta no sentimento de
coletividade e cidadania que a Festa provoca nos interlocutores.

Palavras-chaves: Gambá de Pinhel. Narração. Festa.

278
REFERÊNCIAS

AMARAL, C. M. P. R. Festa à Brasileira: significados do festejar no país que não é sério.


Tese de doutorado em Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras escolhidas, Volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

CANCLINI, Néstor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense,


1983.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:


Perspectiva, 2013.

HARRIS, Mark. Presente ambivalente: uma maneira amazônica de estar no tempo. In:
ADAMS, Cristina et alli (orgs.). Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e
invisibilidade. São Paulo: Annablume/FAPESP, p. 81-108, 2006.

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.


Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Revista Novos Estudos, 79, p. 71-94, 2007.

SANTOS, M. Há cidadãos neste país? In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS,
Liana. Milton Santos: O espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação
Ulysses Guimarães, 2011. (p. 82-94).

VAZ FILHO, Florêncio. A emergência étnica de povos indígenas no baixo Rio Tapajós,
Amazônia. Tese de Doutorado em Ciências Sociais – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2010.

_____________________; CARVALHO, Luciana Gonçalves de (Ed). Isso tudo é


encantado. Ufopa: Santarém, 2013.

279
GT 4 - INTERSEÇÕES SOCIAIS E ANTROPOLÓGICAS:
CULTURA, RITUAIS, PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES
SESSÃO 3 - PATRIMÔNIO E FESTIVIDADES

“MESTRES DO ANANI”: RELATOS E CONSTRUÇÕES DE


IDENTIDADES NAS PRÁTICAS DE CARIMBÓ NO MUNICÍPIO DE
ANANINDEUA/PA

Rafaela Aimê da Silva Barbosa125

O carimbó é uma manifestação da cultura paraense que se dá da mescla dos elementos


das culturas indígenas e africanas, o ritmo é um tipo de expressão que conta a história de um
povo e na gênese de sua manifestação, geralmente era produzido por pessoas que residiam na
área rural ou no litoral paraense, por isso muitas das músicas produzidas, contava/conta a
relação do homem com o natureza, seu jeito de se relacionar com pessoas, animais, seres
encantados, além de mostrar o cotidiano do trabalho, fora do contexto da grande cidade.

No contexto desta manifestação, está inserido vários aspectos que compõe a estrutura
cultural, como a musicalidade, dança, mas também há a transmissão de saberes orais, a
construção de identidades, que forma um sentimento de pertencimento e de inspirações para
vidas, nesse contexto, o trabalho apresentado trata-se de uma nova abordagem da pesquisa
realizada em 2018 para o Trabalho de Conclusão de curso, em ciências sociais, sobre Mestres
de Carimbó do município de Ananindeua 126, nesta abordagem especificamente Mestre Luis
Pontes e Mestre Alexandre, afim de conhecer suas experiências em torno do carimbó e de
como se dá o processo da construção de uma identidade cultural no município de Ananindeua.

Na pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa, pois, foi examinada baseada na


compreensão dos significados, tendo os dados coletados através de observação participante,
com entrevista semiestruturada, tendo intervenções discretas a fim de colher os dados
necessários para a pesquisa, as entrevistas foram marcadas antecipadamente com os mestres,
tendo poucas dificuldades de encontrar um dia que os mestres tivessem disponibilidade, os
encontros realizados no Ponto de Cultura Mayaná, localizado no conjunto Julia Seffer, em
Ananindeua. Foi utilizado para debate autores das ciências sociais, tendo os relatos dos

125
Graduação em Ciências Sociais, UNAMA, rafaaimee01@gmail.com.
126
Município de Ananindeua, este fica localizado na Região Norte do Brasil, no Estado do Pará na região
metropolitana de Belém, sendo o segundo município mais populoso do Estado do Pará, tendo sua criação feita
em 3 de janeiro de 1944.
280
mestres como fonte principal, já que pretendemos conhecer os Mestres e suas relações com o
município de Ananindeua, assunto que ainda é escasso de produções acadêmicas.

O contexto de Ananindeua em relação ao carimbó ainda é pouco explorado, isso


observou-se na falta de pesquisas bibliografias sobre os grupos, sobre o movimento, sobre as
relações e impactos que o carimbó tem no município e existe alguns motivos para que isso
aconteça, tendo em uma delas a influência que Belém e alguns municípios do litoral ocupam
na história do carimbó, são nesses lugares que nomes como Chico Braga 127, Verequete128
surgiram e tiveram mais visibilidades. Antonio Reginaldo Nunes Silveira, fundador do Grupo
Folclórico Amazônia, que já atua a 33 anos na região metropolitana, sendo considerado o
grupo mais antigo do município de Ananindeua, comentou em entrevista como se deu por
muito tempo a relação da cultura com o município, e que a formação de identidade ainda está
sendo construída e pensada.

“Eu assim, senti mais essa aproximação de trabalho para a visibilidade dos trabalhos
culturais em Ananindeua recentemente, depois de mais de 20 anos trabalhando, e aí
que já nasceram outros focos, de outros grupos foram criados e ai ajudou mais a
difundir, mas olha, se você durante muito tempo fosse fazer pesquisa aqui em
Ananindeua, poucos iam te falar do grupo Amazônia, porque poucos realmente
conheciam, agora se você fosse em Belém, você ia ter referência do grupo
Amazônia. Primeiro porque, desse projeto PREAMAR a gente não ficou de fora de
nenhuma programação do Governo do Estado” (Entrevista realizada em 26 de
novembro de 2018).

Sendo assim, o Carimbó se apresenta como uma complexa rede de relações na


sociedade, o ritmo produz sentidos e também pode, a partir de sua expressão entender a esfera
política, social da região/cidade que está envolvido, Mestre Alexandre, por exemplo, natural
de Quatipuru, residente de Ananindeua a 40 anos relatou que começou a ouvir músicas que
cantavam sobre os bichos, sobre histórias do mato lá no “seu lugar” e que a relação com a
manifestação está inserida em vários aspectos de sua vida, compreender esses sentidos dentro
da sua realidade é se manter e/ou conhecer a sua própria história, pois “ é sempre fundamental
entender os sentidos que uma realidade cultural faz para aqueles que a vivem” (SANTOS,
2006)

127
Francisco Paula Monteiro Braga, o mestre Chico Braga, é natural da cidade de Magalhães Barata, porém
morou na ilha de Maiandeua desde seus 10 anos de idade, diferente dos outros mestres só gravou seu primeiro
CD em 2011, porém também influenciou e influencia muitos “tocadores de carimbó”.
128
Augusto Gomes Rodrigues, o mestre Verequete, nasceu na cidade de Quatipuru, atuava com o carimbó em
Belém na década de 70 e 80, com o grupo chamado “O Uirapuru”, lançou 10 discos e 4 CDs, o que possibilitou
sua ampla divulgação na cidade.

281
“Eu sou Carpinteiro né, tô desempregado, muitas vezes o carimbó que me ajuda no
meu pão, o carimbó que me ajuda as vezes, então pra mim hoje, eu tenho o carimbó
um carinho especial, o que eu puder fazer eu faço por essa arte maravilhosa que é o
nosso carimbó, viu? O carimbó ele é pra mim tudo hoje, é a arte, a cultura, é um
trabalho, é um movimento, e faz parte da minha vida hoje” (Entrevista realizada em
5 de outubro de 2018)

Acrescentando a este discurso sobre a influência que as culturas têm na formação de


identidade, Cardoso de Oliveira, antropólogo de grande referência em torno da questão da
identidade, começa uma de seus discursões trazendo alguns questionamentos, um deles diz “O
que significa a uma pessoa ou a um grupo ter sua identidade reconhecida?” (CARDOSO
2006) essa pergunta se faz entrar na reflexão de que esse reconhecimento, que é adquirido por
meio de respeito, carisma, ancestralidade, pode se transformar em algo jurídico, trazendo para
o âmbito de preservação, difusão e autoestima dos fazedores da cultura popular. O Carimbó
ter sido reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro, pelo IPHAN, em 11 setembro de
2014, por exemplo, é um fato de que o reconhecimento está relacionado tanto para “os
outros” quanto para nós, considerando que a manifestação nem sempre teve o status social de
uma “boa música” que é difundida e ouvida no estado, porém, quando há incentivo e o devido
reconhecimento dá ao carimbó “nova cara”.

O incentivo por parte dos órgãos públicos proporciona que mais pessoas tenham
contato com o ritmo, fazendo com que se conheça os grupos e mestres que atuam e que
influenciam a dinâmica da cidade, pois esses atores conseguem mover as estruturas dos
locais, influenciando na economia, segurança pública, educação e as mídias são um canal
importante que ajudam a legitimar e a divulgar conceitos, tendências, que é também de grande
importância para os agentes culturais, Mestre Luis Pontes residente em Ananindeua a 20 anos
e é reconhecido como Mestre desde 2015, relatou a importância de fazer com que o carimbó
como patrimônio e toda a dimensão que ele pode ter nas relações em sociedade se torne real:

“Agora o Carimbó como patrimônio cultural imaterial brasileiro, ele não tem que
ficar só nesse rotulo, eu vejo que nós precisamos aproveitar esse momento, pra gente
realmente se fazer mais amplo, a gente realmente tem que ter um grupo em cada
esquina, entendeu? Tem que incentivar através das escolas, as escolas estarem
aproveitando esse momento então... então eu vejo que não tem que ficar só no
rotulo, o carimbó imaterial brasileiro, do Brasil agora, mas não tem que ficar só no
rotulo, nós temos que nos organizar, enquanto grupos, enquanto músicos, estar
cobrando das autoridades competentes, a gente tem que tá, é, divulgando nos órgãos
da mídia, eles teriam que estar se abrindo mais, entendeu?”(Entrevista realizada em
27 de Setembro de 2018).

Esses relatos nos faz acreditar que os seus saberes e suas vivências podem ser fontes
de várias analises e de várias formas para se entender o próprio cotidiano e as questões que a
envolve, seja socialmente ou politicamente, pois observamos as possibilidades de discutir as
282
suas “ formas identitárias”: “Considerando a sua dimensão iconográfica e emblemática, o
carimbó pode ser identificado em muitas narrativas identitárias reproduzidas por diversos
sujeitos e coletividades, assim como pelos meios comunicacionais.” (FARO DE LIMA;
CHAGAS JR, 2013).

Portanto, as teorias e questões que envolvem a cultura, a identidade e as relações


sociais são importantes para o desenvolvimento de debates dentro das ciências sociais,
especificamente na antropologia e essa iniciativa de estar perto dos mestres de carimbó de
Ananindeua faz com que este município seja também um foco de estudo, pois seus atores
culturais também estão contribuindo para a salvaguarda do carimbó, pois são os “sinais vivos
da vida social dos sujeitos que fazem o folclore”.

Palavras-chaves: Carimbó. Identidade. Mestres de Carimbó.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO RODRIGUES, Carlos. O que é Folclore. São Paulo: Editora Brasiliense.

CARDOSO de Oliveira, Roberto. Caminhos da Identidade: Ensaios sobre etnicidade e


multiculturalismo. São Paulo: Editora Unesp; Brasilia: Paralelo 15. 2006.

COSTA, Tony Leão da. Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e
modernidade na formação da “MPB” no Pará (anos 1960-1970) / p.152- 191.

DE LIMA, Andrey Faro; CHAGAS JR, Edgar M. Da “origem” á “perda”: o jogo identitário
do carimbó. 1ed.Santarém: UFOPA, 2013.

FUSCALDO HUERTAS, Bruna Muriel. O carimbó: cultura tradicional paraense, patrimônio


imaterial do Brasil. Revista CPC, São Paulo, n.18 p.81-105, dez.2014/abril 2015.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura, São Paulo: Brasiliense, 2006.

283
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL

GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE: AS CIÊNCIAS


SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL

COORDENADORES:

Drª. Lara Roberta Rodrigues Facioli (UFPR)

Luana de Nazaré Pinto Pena (UFPA)

Dr. Rodrigo Fessel Sega (UNESPAR)

284
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

QUANDO A COVID-19 PERPASSA A ANTROPOLOGIA: ALGUNS


APONTAMENTOS ACERCA DO FAZER PESQUISA ONLINE
SOBRE EXPERIÊNCIAS DE ADOECIMENTO POR SARS-COV-
2129

Geissy dos Reis Ferreira de Oliveira130

Uma tela de celular aberta no WhatsApp. Às vezes acontecia de usar o WhatsApp Web
na tela do computador. De telas, textos e áudios no aplicativo que aconteceu minha pesquisa
de mestrado pelo PPGA-UFPB, que buscou atender seu objetivo central, o de apreender
narrativas de adoecimento por Covid-19 entre mulheres domiciliadas na cidade de João
Pessoa/PB, aprender sobre o modo como viveram e vivem a doença (a Covid-19) – se a
pensamos como uma doença comprida (FRANCH; FLEISCHER, 2015) –, viveram e vivem
em meio à pandemia de Sars-Cov-2.
Desde cedo, no curso dessa experiência pandêmica, antropólogas e antropólogos ao
redor do mundo se perguntaram e traçaram estratégias sobre o modo como atuar nesse
cenário, tendo em vista um enfrentamento à pandemia (DAS, 2020; MALUF, 2020) e se
moveram nessa direção. Esse desafio, o de fazer uma “antropologia em tempo real”, nos
termos da Sônia Maluf (2020), segue mobilizando parte da produção antropológica.
Envoltos no fazer antropológico em meio à pandemia, novos desafios éticos e
metodológicos se interpõem à prática antropológica. Antropólogas e antropólogos, campos e
sujeitos de pesquisa, e por que não, a própria Antropologia, veem-se atravessados de distintas
formas pela pandemia de Covid-19. Em meio ao lockdown, distanciamento social e medidas
preventivas de contenção da circulação do vírus, metodologias, campos e pesquisas inteiras
são revistas, tendo em vista o risco de infecção pelo Sars-Cov-2. Nesse momento, a Internet,
para a qual abordagens etnográficas há muito vêm sendo estabelecidas (HINE, 2000, 2020),
se apresenta como alternativa a pesquisas etnográficas inicialmente projetadas para serem
feitas na presença física. Dito isso, a própria realocação da pesquisa, do espaço offline para o

129
Texto extraído, agora com algumas modificações, do capítulo um da minha dissertação de mestrado
defendida neste ano de 2022.
130
Cientista Social, Antropóloga e doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em
Antropologia da Universidade Federal da Paraíba, e-mail: geissykreis@gmail.com.
285
online, vem integrar os desafios trazidos aqui, ainda mais se levarmos em conta a associação,
ainda corrente, do fazer antropológico com a etnografia, e desta com estar presente
fisicamente em um campo de pesquisa bem delimitado (HINE, 2020).
Caberia então à antropologia, tal como argumenta Hine (2020), se adaptar a essa nova
forma de se estar junto/próximo, uma vez que, para a autora, o objetivo da pesquisa
antropológica, junto a pessoas e grupos humanos, seria o de “seguir conexões”, e não
necessariamente delimitar um campo de pesquisa específico e focar nele. Argumento que
remete à opção metodológica de Sônia Maluf (2021), de, nesse cenário pandêmico que se
coloca, passar a observar o mundo também pela internet, através das telas do celular e
computador e, desse modo, por meio de “interações mediadas” pela internet, produzir
conhecimento antropológico.
Logo, os desafios na produção de antropologias não são puramente de ordem interna à
própria ciência, mas dizem respeito também às diversas facetas da realidade sócio-histórico-
cultural brasileira. E que também a Antropologia, ela mesma, vê-se constantemente
atravessada por essa realidade, o que fica ainda mais evidente nesse contexto de pandemia, a
exemplo da grande virada para a antropologia na internet e para a internet (HINE, 2020).
Atravessamentos, no entanto, que não podem ser entendidos como de mão única, uma vez que
a Antropologia constantemente produz conhecimento sobre múltiplas localidades, eventos,
agrupamentos humanos e não-humanos, tanto online como offline, a partir dos quais o Brasil é
também pensado, e por vezes, essas mesmas produções de conhecimento antropológicas
engendram, ou servem de base para o desenvolvimento de políticas públicas, endereçadas à
garantia da cidadania.
À feitura antropológica na internet pela qual enveredei, mediada por uma rede social
acessada por dispositivos eletrônicos, soma-se o fato de que, além de artesanal (MARTINS,
2013), é caseira, por ser feita em casa, durante o ano de 2021, distante da presença física. Ao
longo deste fazer, percebo que aderir às recomendações de segurança da OMS não esgota as
questões da Antropologia com pesquisas que se querem presenciais em meio a uma pandemia,
cujo número de mortes ultrapassou a quantidade de 600 mil pessoas só no nosso país.
Consequência da ausência de uma resposta de enfrentamento à Covid-19, no plano do
governo federal, que além de se faltar ao enfrentamento, persiste no boicote a medidas
preventivas protagonizadas por estados da federação (MALUF, 2021).
Além das questões metodológicas, as mais evidentes, que essa situação implica,
questões éticas são também revistas, recolocadas e refletidas no marco da pandemia. Como

286
sabemos, a ética em pesquisa, na ciência antropológica, requer soluções tão diversas quanto a
diversidade de contextos e situações de pesquisa com os quais nos deparamos. Por isso, a
pandemia da Covid-19 chacoalha ética, metodológica e teoricamente nossa disciplina. A
ponto de ver-se, ela própria, contaminada pela Covid-19.
Até aquele momento, no início do ano de 2021, ainda não havia me feito a pergunta se
seria ético fazer campo presencial. O risco à vida posto pela pandemia de Covid-19 trouxe
esta entre tantas perguntas de difícil resolução ao nosso fazer. Pesquisar à “distância” e
somente na distância física, a priori, suplantou este dilema ético. E assim o fiz num primeiro
momento.
Contactei mulheres que sequer tinha visto antes disso, muito menos conhecido ou
conversado qualquer coisa. Todas mulheres que adoeceram por Covid-19, residentes em João
Pessoa/PB, componentes das classes médias urbanas, autodeclaradas brancas, à exceção de
uma delas que se autodeclara parda, e com ensino superior. E sim, eu era uma completa
estranha, não fosse a intermediação da minha orientadora de pesquisa e demais pessoas
próximas a mim. Eu era então a conhecida de alguém, a orientanda de Mónica, a amiga da
Juliana, a colega de trabalho da Raquel, a co-orientanda do João.
Pelo WhatsApp, então, nos conhecemos, e pelo WhatsApp seguimos conversando;
trocando mensagens de texto e áudio. Mas o que acontece quando o campo se abre ao
presencial? Essa abertura ocorreu justamente quando uma das interlocutoras de pesquisa me
disse que há um certo tempo estava indo se exercitar no campus I da UFPB, localizado no
bairro Castelo Branco, o mesmo bairro onde eu moro. Da minha casa até lá, levo cerca de oito
minutos caminhando. E foi quando sugeri a ela, então, que a gente fizesse algumas fotografias
nesse momento em que ela estaria no campus, ressaltando a possibilidade de uma resposta
negativa.
Encontro que ocorreu na forma de uma caminhada experimental para a feitura do
ensaio fotográfico. No campus nos encontramos então, e sem que necessariamente falássemos
a respeito, a gestão do risco de infecção era uma constante. Estávamos com máscara PFF2,
álcool 70% à mão e em momento nenhum nos abraçamos, o cumprimento e a despedida
foram feitos sem toque. Nos deparamos com novas dinâmicas de pesquisa, elaboradas em
contexto de pandemia. Se riscos e ética em pesquisa guardam uma relação de
complementaridade entre si, nessa empreitada, essa mais nova questão ética girava em torno
do risco de infecção, com a qual lidamos com um manejo negociado e conjunto do risco.

287
De volta ao online, enviar foto frente e verso da minha carteirinha de associada da
ABA, pelo WhatsApp, foi outra ação que tomei visando a ética na pesquisa. Julguei
importante dar a ver minha vinculação com a Associação Brasileira de Antropologia, da qual
dizia fazer parte como mestranda em antropologia pela UFPB. Tão logo contactava as
interlocutoras, enviava as imagens e mandava áudios longuíssimos me apresentando,
apresentando a pesquisa, e, certamente, perguntando do interesse em compor a pesquisa.
Nesses áudios, aludia sempre à pessoa mediadora do contato, “foi tal pessoa quem me passou
seu número”, e em seguida falava da minha relação com a pessoa, “é uma amiga querida”, ou
“ela é minha orientadora desde a graduação, e segue sendo agora, no mestrado”, ou “é uma
colega de trabalho de que gosto muito”.
Muitas vezes, ainda, optava por falar logo nesse início, de estratégias de restituição,
convidando-as a uma reflexão conjunta. Aludia para a minha pesquisa em antropologia, como
uma pesquisa que se queria ética, por vezes fazendo referência ao código de ética da ABA, e
informando sempre o direito de que elas dispunham de interromper a pesquisa a qualquer
tempo.
Com a exceção desse único encontro etnográfico, em copresença com Ruanna, toda a
pesquisa acessou o WhatsApp como médium. Desprovida de vinculação institucional afora o
programa de pós-graduação, a pesquisa contou com os afetos como vínculo. A pesquisadora
que conhece alguém que conhece alguém. Sem situações do campo para onde olhar, a não ser
a tela do celular com mensagens de texto e de áudio em sua grande maioria, me perguntava de
que modo a passagem do olhar e ouvir (OLIVEIRA, 1996), ao ouvir somente, impacta o
métier do/a antropólogo/a, numa pesquisa duplamente afetada pela pandemia de Covid-19, já
que acontece neste momento pandêmico e tem, como mote, um recorte sobre a própria
pandemia, o adoecimento por Sars-Cov-2.
Da ideia inicial de fazer uma etnografia parte online e parte presencial, fui me
deslocando e cada vez mais sendo deslocada da etnografia para a realização de entrevistas, e
do offline para o online, à medida em que a pandemia ia se extremando com o passar das
semanas e dos meses. Me senti impelida à escuta mais do que ao olhar etnográfico
(OLIVEIRA, 1996). Em termos teórico-metodológicos, pensei as entrevistas com Jean-
Claude Kauffman (2013) quando propõe a entrevista compreensiva, que tem por objetivo
romper com a hierarquia entre entrevistador/a e entrevistado/a.
Kauffman faz diversas considerações sobre o quão é necessário que haja envolvimento
do/a pesquisador/a para que também o/a entrevistado/a possa se envolver. Já ao final do texto,

288
o autor coloca em questão a atualidade de seu guia para a pesquisa de campo para quem vai
fazer “pesquisa na tela” (p. 93), ou seja, mediada pela internet, no lugar de fazer entrevista
estando fisicamente presente. E ele próprio conclui que o princípio da entrevista
compreensiva pode sim ser adaptado, mas que algumas questões de ordem prática vão
depender de como utilizamos a internet. Por fim, afirma que seria um erro nos abstermos de
fazer pesquisa online, e que novos métodos devem ser elaborados, e rápido.
Parti então da noção de entrevista compreensiva, mas também das experiências
prévias de pesquisa, da vontade e disposição para ser afetada (SAADA, 2005), e de uma
espécie de saber coletivo sobre fazer pesquisa de campo, que ronda esta ciência. E com a tela
do WhatsApp aberta no celular, ou computador, estava eu fazendo pesquisa. Percebi nesse
processo, num paralelo com Kauffman, que a temporalidade de uma interlocução no
WhatsApp é outra, o tempo fim da entrevista não é delimitado, os silêncios da/o
pesquisadora/o podem vir a significar desinteresse, a conversa não é um bate e volta como
quando a entrevista acontece na presença e as pessoas estão ali dedicadas somente a isto. Do
que decorre o tempo de resposta ser geralmente maior. Percebi ainda, que a demonstração de
interesse e envolvimento do/a pesquisador/a, neste contexto, parece estar posta também no
tempo que levamos para responder e novamente propor questões aos/às interlocutores/as,
tempo que, acredito, é interessante que seja rápido ou ao menos não muito demorado, visto
que podem significar desinteresse, já que, por ocorrer via WhatsApp, incorpora sua lógica de
funcionamento.
Nos deparamos, até aqui, com questões de compartilhamento, ética e metodologia na
ciência antropológica. Processos que permeiam todo o fazer pesquisa e que vivem se
transversalizando, por mais que, para fins analíticos, muitas vezes pinçamos e alocamos cada
qual num determinado lugar. Processos que, ao longo do meu fazer, se viram revisitados em
decorrência do contexto pandêmico em que nos encontramos, a exemplo da própria virada da
pesquisa quase inteiramente ao online, e das muitas novas dinâmicas que se seguem se
interpondo ao exercício antropológico. A partir do que me pergunto, quais destes dispositivos
permanecerão em tal alinho com a nossa disciplina, e que outros novos irão se estabelecer,
neste cenário em que também a Antropologia é perpassada pela pandemia de Covid-19.

Palavras-chave: Covid-19. Metodologia de pesquisa. Antropologia da Saúde.

289
Referências

DAS, Veena. Encarando a Covid-19: Meu lugar sem esperança ou desespero. Dilemas:
Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Reflexões na Pandemia, Rio de Janeiro,
n. 26, p. 01-08, 2020.

FLEISCHER, Soraya; FRANCH, Mónica. Uma dor que não passa: aportes
teóricometodológicos de uma antropologia das doenças compridas. Política & Trabalho:
Revista de Ciências Sociais, João Pessoa, v. 1, n. 42, p. 13-28, 2015.

HINE, Christine. Etnografia Virtual. Coleção Nuevas Tecnologias y Sociedad, Edittorial


UOC, 2000.

HINE, Christine. A internet 3E: uma internet incorporada, corporificada e cotidiana.


Cadernos de Campo, v. 29, n. 2, 2020. p. e181370. Disponível em: https://bit.ly/3bFcFHa.
Acesso em: 28 mar. 2021.

KAUFMANN, Jean-Claude. A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo.


Petrópolis, RJ: Vozes; Maceió, AL: Edufal, 2013.

MALUF, Sônia Weidner. Antropologia em tempo real: urgências etnográficas na pandemia.


2020. Disponível em: https://brasilplural.paginas.ufsc.br/antropologia-na-pandemia/. Acesso
em: 17 set. 2020.

MALUF, Sônia Weidner. Janelas sobre a cidade pandêmica: desigualdades, políticas e


resistências. Revista TOMO, São Cristóvão, n. 38, p. 251-285, jan./jun. 2021.

MARTINS, José de Souza. O artesanato intelectual na sociologia. Revista Brasileira de


Sociologia, Aracaju, v. 1, p. 13-48, jul./dez. 2013.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de


Antropologia, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 13-37, 1996.

FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 13, p. 155-161,
2005.

290
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 1 - PESQUISA COM MÍDIAS DIGITAIS: DILEMAS E DESAFIOS

A NETNOGRAFIA COMO RECURSO À PESQUISA ETNOGRÁFICA

Luana Rosa da Silva131


Adriany Vanessa Souza da Silva de Lima132
Fernanda Valli Nummer133

Diante das transformações tecnológicas e da Pandemia de Covid-19, acompanhamos o


surgimento de novas metodologias de investigação na Antropologia que têm tido impactos
sobre as formas tradicionais de interação entre pesquisadores e interlocutores. Dessa maneira,
observa-se que vem surgindo novos métodos de pesquisas em campo que nos permite dar
continuidade na análise de novos âmbitos culturais das convivências humanas, como por
exemplo a “Netnografia”. Termo esse amplamente divulgado por Kozinets (2014): “a
netnografia é uma pesquisa observacional participante baseada em trabalho de campo online”
(p.61-62), a qual utiliza de comunicações mediadas por recursos tecnológicos como fonte de
dados para chegar à determinada compreensão e interpretação etnográfica de um
acontecimento cultural. A netnografia, tem sido considerada por muitos pesquisadores como
“Etnografia Virtual”, agora desenvolvida como um modo de investigação e estudo de relações
sociais dentro dos ciberespaços, advindo dos impactos na forma de se fazer e viver culturas
que a transformação tecnológica tem efetuado. Para este texto foi realizado pesquisa
bibliográfica, e vamos apresentar alguns conceitos fundamentais para esclarecer essas
questões.
Citando o famoso texto de Mariza Peirano, começamos com o pressuposto de que
“Etnografia não é método” (2014). Logo a etnografia está diretamente ligada a antropologia, e
acaba sendo a pesquisa empírica do fazer antropológico. Para Peirano (2008), tratar a
etnografia como um método antropológico, menospreza o significado que ela tem visto que a
etnografia não é um método, porque método é a forma que se faz algo, é o padrão da
realização da pesquisa, e na etnografia, os antropólogos devem sempre adequar e inovar as
formas de etnografar. Para Peirano "somos todos inventores e inovadores. A antropologia é

131
Graduanda do curso de Ciências Sociais, UFPA, rosaluana016@gmail.com
132
Graduanda do curso de Ciências Sociais, UFPA, adrianylima.2014@gmail.com.
133
Doutora em Antropologia Social, UFPA, fernandanummer@gmail.com.

291
resultado de uma permanente recombinação intelectual" (2014). Antropólogos que vão a
campo precisam se adequar ao contexto que irão se inserir, a diversidade cultural e costumes
de vida tendem a necessitar de uma nova elaboração de estudo para cada grupo que servirá de
“objeto”.
Na perspectiva de Magnani (2009) a etnografia é uma prática e experiência
fundamental, pois é uma maneira excepcional de lidar, em que o pesquisador se conecta com
ao universo dos pesquisados e compartilha suas perspectivas de vida, introduzidas até onde
seja possível, tendo essa relação de troca para ter um novo entendimento, ou pelo menos uma
informação mais atual e não previsível já desenvolvida anteriormente. Sendo assim, para
Magnani, o objetivo da etnografia é compreender o outro, e os outros sujeitos que serão
pesquisados nos termos deles.
Já na vista de Oliveira (1996), a etnografia acaba se construindo como pesquisa em
três momentos, em que ele destaca sendo: Olhar, Ouvir e Escrever. O que nos mostra que os
passos para uma etnografia não se dão por apenas um elemento, mas que um sempre precisa
do outro, para que o que está sendo estudado pelo pesquisador, dê continuidade, visto que só
um elemento não pode desempenhar todas as funções no trabalho do antropólogo durante a
análise. Nessa tríade a teoria antropológica é fundamental para a interpretação do outro.
Enquanto que a Etnografia clássica/tradicional, que todos conhecemos, se preocupa
em fazer um estudo descritivo da cultura dos povos, dos hábitos com a utilização da técnica
de observação participante e diário de campo. A etnografia virtual é um método de pesquisa
que busca compreender o interlocutor do ciberespaço (PEREIRA; MENDES, 2020),
utilizando os diversos materiais que possam estar a dispor na rede, que pode ser bastante útil
para os antropólogos analisar textos online, fenômenos do ciberespaço entre outros. Leitão e
Gomes (2017), explicam que para além dos ambientes tradicionais em que o ser humano vive
e que os geógrafos e biólogos entendem como ambiente, também há a existência de ambientes
digitais que os próprios indivíduos desenvolveram, que também ocorre a adaptação dos
mesmos e novas formas de vida. Sendo assim, é importante pensar em como se desenvolve as
relações nas plataformas digitais, em que se desenrolasse modos de vidas diferenciados. Para
as autoras, existe uma diferença entre a vida online e offline, porque dentre as plataformas
digitais, os usuários tendem a se sentir "livres" para possuir outras "cidadanias", visto que
essas redes sociais possuem o domínio de empresas globais, fazendo com que os
consumidores passam a desenvolver habilidades exigidas nos termos de uso de cada

292
plataforma, e podem se expressar sem que ocorra um julgamento a sua imagem que está
sendo protegida por uma tela ou um falso perfil.
Para melhor entender essas relações de espaços digitais, técnicas são desenvolvidas
para o melhor entendimento desses espaços reprodutores de culturas. Leitão e Gomes (2017)
explica que o paralelo entre plataformas digitais e cidades, torna-se crucial por razões
metodológicas, pois a ciência avança também ao adaptar procedimentos, técnicas de obtenção
de informações, modos de observação e atenção, formas de registro de uma área de
conhecimento para outra. Sendo assim, a etnografia online é a melhor técnica a ser
desenvolvida para possuir um entendimento para com as relações em espaços digitais, a
importância de possuir essas técnicas, torna a busca netnográfica ainda mais profissional e de
tão importância quanto as pesquisas etnográficas.
A antropologia digital não é só diferente como também essencial, pois é o melhor
caminho para compreender a sociedade moderna, visto que é um instrumento chave para
nossa autoeducação (MILLER, 2015). Para o autor é necessário que a antropologia trate todas
as formas de sociedades como iguais. Logo, na perspectiva de Miller, a antropologia pode ser
positivamente empregada para os estudos contemporâneos, sobretudo, no meio virtual, onde
pode usar ideias teóricas como objetificação, mas contendo as qualidades da tradição
etnográfica tendo um equilíbrio entre elas para ajudar a ver como a tecnologia digital está
integrada no cotidiano.
A obra de Kozinets (2014) foi muito divulgada durante a pandemia e a netnografia
tornou-se uma alternativa vinda do campo do Marketing e Pesquisas de Mercado para estudos
com características etnográficas realizados no mundo on-line. Para o autor, que afirma que a
netnografia pode ser um apoio a etnografia, esta está mais focada no estudo de comunidades
virtuais e culturas que manifestam interações sociais importantes nas redes de interação,
fazendo uma observação participante dentro do contexto online, visando o conhecimento a
respeito de sua cibercultura, utilizando de métodos específicos que auxiliam no estudo dessas
comunidades.
Para o autor, na mesma obra, a netnografia é um recurso a ser aplicado
majoritariamente nas redes sociais. O prefixo "Net" indica o uso da internet, por isso
netnografia é uma técnica inteiramente usada para estudar as conexões que as pessoas
praticam na internet. Logo, para Kozinets, a técnica tem como objetivo, se aprofundar no
contexto das relações que são realizadas online, seja nas postagens, interações e conversas ali
desenvolvidas - Não é uma busca estatística que almeja a quantidade, mais sim uma análise

293
qualitativa, saber o contexto em que o indivíduo está inserido virtualmente, é o que torna a
netnografia a técnica adequada para estudar as relações nos ciberespaços.
Kozinets (2014) identificou uma mudança nas relações sociais, observou que todos
nós possuímos uma "vida dupla", no ciberespaço e no espaço físico, por isso a importância de
se haver uma técnica específica para estudar os diferentes tipos de relações. Nas redes sociais,
as pessoas tendem a se comportar de modo diferente da vida offline, causando expressões
diversas nos etnógrafos. É com esse impasse que técnicas de pesquisas online são elaboradas
para que não passe despercebido nenhuma informação que possa manipular os dados e as
interpretações que serão levados em consideração para o tema e grupo estudado.
A netnografia é uma forma de atualizar as técnicas já utilizadas na Antropologia
clássica, como entrevistas, grupo focal, questionários, entre outros, onde o agrupamento e a
análise adequada de dados coletados, mostraram diversos princípios e valores (Pereira;
Mendes 2020), visto que nas redes sociais, as relações contemporâneas passam por diversas
mudanças que possibilitam o não reconhecimento de humanos, e quais são seus verdadeiros
valores como seres sociais dentro e fora dos ciberespaços, quais as alternâncias das atuações
online e offline dos mesmos.
Quanto a discussão da Netnografia VS Antropologia online, é importante fazer uma
observação acerca disso, visto que muito se questiona se a vida online é igual a offline como
proposto por Ferraz; Alves (2017). Pois entende-se que as experiências no ambiente online
podem não ser iguais ao offline, já que muitos indivíduos dentro das comunidades virtuais
têm potencial para apresentar condutas e interações nas redes totalmente diferentes da vida
real. Desse modo, acaba influenciando na própria pesquisa de campo, onde a atenção quanto a
esses impasses subjetivos nos estudos da cibercultura. Não pretendemos discutir aqui as
questões das experiências vividas na cibercultura e as relações entre o eu virtual e o mundo
vivido (CASTELLS, 1999; LATOUR, 2012; LEVY, 1999).
As diversas técnicas que a netnografia desenvolveu e divulgou com a utilização de
softwares que nos permite recortar informações já disponíveis na rede, selecionar temas e
codificadores que nos interessam, facilitar as pesquisas bibliográficas na pesquisa dentro da
Antropologia online, etc. Todas as pesquisas online servem de apoio para complementar
nossas análises de dado quando nosso campo não é o mundo online. As relações éticas da
pesquisa etnográfica clássica, as relações e troca de contato no mundo virtual se desenvolve
de uma maneira diversa dos espaços físicos, mas precisam ser repensadas.

294
Sendo assim, com as dificuldades de contato com nossos interlocutores face a face
realizada nos trabalhos de campo da Antropologia devido a pandemia da COVID-19, a
netnografia como método de pesquisa ganhou notoriedade nos estudos de Antropologia
Online. Com seu enfoque altamente tecnológico, muitos pesquisadores passaram a investigar
alguns aspectos e interações sociais dentro do ciberespaço. Que antes eram privilegiados por
temas associados ä cibercultura. Importante lembrar que a netnografia era usada em áreas de
pesquisa de marketing digital e pesquisa de opinião. A netnografia passa a por um momento
importante para coletar dados através de técnicas qualitativas e interpretativas, para que
possamos compreender o percurso do ser humano no mundo online. Lembrando que ela se
torna uma ferramenta de complementação a etnografia, tendo em vista que a etnografia é:

“[...]a rigor, fazer etnografia não consiste apenas em “ir a campo”, ou “ceder a
palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnográfico”. Fazer etnografia supõe uma
vocação de desenraizamento, uma formação para ver o mundo de maneira
descentrada, uma preparação teórica para entender o “campo” que queremos
pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um
tempo prolongado dialogando com as pessoas que pretendemos entender, um “levar
a sério” a sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as
coisas em ordem mediante uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva”
(URIARTE, 2012, p. 11)

Assim, a importância da netnografia tem se tornado presente onde vários


pesquisadores utilizam desse método de pesquisa para desenvolver seus estudos, a exemplo
dos antropólogos, que necessitavam realizar pesquisas no ápice do período pandêmico,
notando essas novas formas de se fazer cultura e como elas estão se desenvolvendo no espaço
online, transformando e contribuindo a análise de comunidades virtuais, fazendo uso da
técnica de observação participante dentro do contexto online. As pesquisas feitas em espaços
virtuais, acrescentam no conhecimento dessas novas relações sociais, trazendo uma
colaboração essencial para a pesquisa desses novos núcleos de interação sociais no mudo
online.

Palavras-chaves: Etnografia. Netnogafia. Antropologia.

295
REFERÊNCIAS

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.


DE OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista
de antropologia, p. 13-37, 1996.

FERRAZ, Cláudia Pereira; ALVES, André Porto. Da etnografia virtual à etnografia online.
Deslocamentos dos estudos qualitativos em rede digital. 41º Encontro Anual ANPOCS, p.
1-25, 2017.

KOZINETS, Robert. Netnografia: Realizando Pesquisa Etnográfica online. Rio de Janeiro:


Penso Editora, 2014.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator Rede.


Salvador/Bauru:Edufba/Edusc, 2012.

LEITÃO, Débora.; GOMES, Laura. Etnografia em ambientes digitais: perbulações,


acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 1º sem. 2017.

LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. Ponto Urbe.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Etnografia como prática e experiência. Horizontes


antropológicos, v. 15, p. 129-156, 2009.

MILLER, Daniel. “A antropologia digital é o melhor caminho para entender a sociedade


moderna. Entrevista de Monica com Daniel Miller”. Revista Z Cultural, v.1, n.1, 2015.
Disponível em: https//cutt.ly/Rdlb2RI.

PEREIRA, Samira Cristina Silva; MENDES, Sérgio Procópio Carmona. Um debate sobre o
campo online e a etnografia virtual. TECCOGS, Revista Digital de Tecnologias Cognitivas,
n. 21, jan./jun. 2020, p. 196-212.

PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano
20, n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014.

URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Revista do núcleo
de antropologia urbana da USP. Ponto Urbe. v. 11. 2012.

296
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 1 - PESQUISA COM MÍDIAS DIGITAIS: DILEMAS E DESAFIOS

PERCURSOS DA ETNOGRAFIA DIGITAL NO ESTUDO COM OS


MẼBÊNGÔKRE (KAYAPÓ) EM TEMPOS PANDÊMICOS

Michelly Silva Machado134

Neste trabalho descrevo brevemente os caminhos percorridos na minha pesquisa de


Mestrado sobre os “Processos de formação de novas categorias conceituais e as agências
linguísticas Mebêngôkre Kayapó”135. O estudo é formado por narrativas autobiográficas que
me situam no contexto da pesquisa e detalham as travessias que me conduziram ao estudo de
alguns aspectos da língua Mẽbêngôkre, amparada na antropologia linguística. Trata-se de um
estudo etnográfico que envolveu, diálogos com interlocutores Kayapó, diferentes fontes
bibliográficas e de leituras sobre línguas Jê. Assim, será descrito os atravessamentos da
pesquisa devido à chegada da pandemia e os percursos que o trabalho foi tomando.
Em meio aos desafios do contexto pandêmico, a chamada “magia da etnógrafa”136, só
aconteceu quando percebi que os impactos da pandemia não incidiram apenas na minha vida,
mas nas dos interlocutores Kayapó137 e nas das pessoas como um todo. Nesse despertar,
entendi que a língua Mẽbêngôkre acompanhou as mudanças de seus falantes e precisava
registrar isso de alguma forma. Essa condição um tanto solitária pela distância do campo
físico fez com que eu estabelecesse laços de amizade com meus interlocutores à distância e
assim poder observar a língua culturalmente organizada e em uso através das plataformas
sociais (Facebook e WhatsApp).
Na narrativa textual, optei pela escrita etnográfica inspirada nos conceitos de teoria
vivida de Mariza Peirano (2014), na qual minha história, minhas formações e experiências se

134
Doutoranda em Antropologia (PPGA-UFPA). Mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLSA-
UFPA). Mestra em Diversidade Sociocultural (PPGDS-MPEG). E-mail: mih.machado02@gmail.com.
135
Dissertação realizada no Programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural (PPGDS), do Museu
Emílio Goeldi, sob orientação da Prof. Dra. Ana Vilacy Moreira Galúcio, a quem agradeço pelas contribuições.
136
Tradução livre do termo “The Ethnographer's Magic”, do livro de STOCKING (1992).
137
Os Kayapó são originários da região do Cerrado. Mebêngôkre é o nome da língua falada por duas nações do
centro-norte do Brasil, os Xikrin e os Kayapó (SALANOVA, 2001, p.01). Estão localizados em uma área do
norte do Mato Grosso (AI KapôtjJarina), à região sul do Pará (AI Baú: Mekranotire, AI Mekranoti, AI Kayapó e
AI Badjonkôre), desde os afluentes do Rio Fresco ao leste, até os afluentes do Rio Curuá. A oeste, há alguns
Kayapó que vivem no baixo curso do Rio Iriri, na AI Kararaó. Os Xikrin habitam duas regiões no Pará: a AI
Cateté, afluente do Itacaiúnas, que por sua vez tem sua foz no Araguaia, e a AI Bacajá (VILLAS-BÔAS, 2019).

297
reencontram para observar, analisar e escrever sobre linguagem, cultura e sociedade, três
elementos indissociáveis, que se alteram no tempo e no espaço (físico e digital) com a
participação ativa de seus segmentos sociais.
O projeto inicial da minha pesquisa previa a realização de campo nas aldeias Tepdjâti e
Moikarakô, localizadas na Terra Indígena (TI) Kayapó, de São Félix do Xingu (PA), porém
em decorrência do Sars-CoV-2 (o vírus que causa a doença Covid-19) houve a impossibilidade
de fazer pesquisa in loco, implicando na busca por novos horizontes metodológicos para
atingir os objetivos da pesquisa138.
O cancelamento das atividades presenciais e o isolamento social ocasionou inúmeros
impactos em minha na vida. Nos aspectos psicossociais posso citar: crises de ansiedade,
adoecimento e luto pela perda de familiares; na vida acadêmica: o afastamento das bibliotecas,
dos laboratórios e do campo impactaram diretamente o desenvolvimento da pesquisa,
cumprimento de prazos do calendário acadêmico e a finalização de créditos das disciplinas.
Ainda vivendo sob o luto das perdas de entes queridos e das incertezas da pandemia
segui com as aulas síncronas e o compartilhamento das vivências etnográficas de meus
professores. E, nesse percurso, surgiu a ideia de fazer um estudo etnográfico léxico-digital,
considerando as ações e interações on-line entre os Mẽbêngôkre.
A ideia de etnografia em ambiente digital fundamenta-se nas “metodologias de
estudos sobre as novas plataformas de interações sociais/digitais” (FERRAZ, 2019, p.01).
Essa abordagem “parte da produção de novos espaços sociais e de novas experiências
subjetivas” que derivam da existência de um ciberespaço social (RAMOS; FREITAS, 2018,
p.02). Um campo rico de possibilidades analíticas por ser composto de múltiplos e diversos
espaços de onde emergem vozes polissêmicas.
Conforme Ramos e Freitas (2018), esse campo de investigação e de interlocução tem
sido construído a partir das interações entre os indivíduos no mundo virtual, através da relação
entre agências sociais e recursos tecnológicos. Os ambientes dessas interações envolvem o
uso de websites, redes sociais e mundos virtuais, que pode ser reconhecível por todos os
espectadores conectados, nas interações no mundo virtual (GOMES, 2018, p.45).
Considerando as manifestações linguísticas e culturais, encontramos na rede social
Facebook (Face) diferentes manifestações e léxicos Mẽbêngôkre. É importante destacar que
além do Face outra plataforma digital serviu de base para constituição da pesquisa. O
WhatsApp foi o meio escolhido para conversações mais diretas. Nele foram realizadas
138
A pesquisa visa entender as contrapartidas linguísticas Kayapó diante do contato com os não indígenas
através do estudo dos processos de formação de novas categorias conceituais na língua Mẽbêngôkre.
298
diferentes interações, escritas e orais, que ficaram registradas do aparelho celular (figura 02).
A abordagem empregada visa o estudo da fala no contexto da antropologia a partir da
pesquisa de diferentes produções discursivas Mẽbêngôkre e o levantamento de léxicos de
origem do português e inseridos nesta língua.
Dadas as circunstâncias da pesquisa, contei com seis (06) interlocutores, residentes em
diferentes regiões, TI Báu, TI Kapot Jarina e TI Kayapó. Todos são falantes do Mẽbêngôkre e
do Português. É importante destacar que a etnografia lexical em ambiente digital foi uma
experiência exitosa, pois grande parte desses falantes eu conhecia dos tempos em que morei
em São Felix do Xingu/PA. O fato também de ter ido a campo antes da pandemia, me ajudou
a entender, em parte, as organizações das aldeias, ter noção das relações de parentescos,
conhecer um pouco de seus rituais, grafismos e cultura material. Assim, quando nos
falávamos via celular sempre criava uma imagem acústica referente às experiências que vivi
naqueles contextos.
Apesar do campo virtual parecer um espaço “simples” por você pesquisar de “sua
própria casa”, é importante destacar que garantir a confiança e envolver os interlocutores
indígenas, sobretudo lideranças, em sua pesquisa não é algo que se constrói de maneira
imediata, sobretudo sem um contrato firmado “olho no olho”. Foram necessários três anos de
conversas e interações para construir um estudo etnográfico e realizar um levantamento
básico de neologismos Kayapó. Dessas vivências, tivemos interações exitosas no que compete
às dinâmicas da língua Mẽbêngôkre no ciberespaço, mas também muitas falhas comunicativas
ocorreram.
Os exemplos abaixo demonstram um pouco da minha pesquisa sobre o processo de
formação de novos conceitos, de origem do português, inseridos na língua Mebêngôkre. A
análise se baseia em um levantamento de utensílios que passaram a fazer parte do contexto
Kayapó a partir de seus intercâmbios culturais com os kubẽ (não-indígenas). Os exemplos
mostram a criação de neologismos formais, em que os referentes novos são formados a partir
de elementos gramaticais já existentes na língua, uma espécie de neologismo de resistência.
Os exemplos seguem a ortografia usada por meus interlocutores. Para as análises baseio-me
em interpretações construídas em conjunto com colaboradores indígenas.

Figura 01 – Conversas sobre neologismos em Mẽbêngôkré

299
Fonte: Acervo da Autora (2022).

Na imagem podemos observar um dos registros do meu campo digital. Trata-se de uma
conversa sobre alguns léxicos Kayapó. Bepgogoti é um dos meus interlocutores e programou
o seu WhatsApp para apagar as conversas em 24hs, eu só descobri isso quando perdi alguns
dados. A imagem precisou ser ajustada para facilitar a visualização do print. Abaixo descrevo
dois neologismos citados na conversa com Bepgogoti:
(01) a. rop no
rop + no
onça olho
‘lanterna; lâmpada’ (lit. olho de onça)

O exemplo acima é formado pela composição de nome + nome. Sobre a significação


do nome rop no, perguntei ao estudante Bepgogoti Kayapó, que refletiu:
Rop no, significa olho da onça, ou dos vira-latas. Nossos ancestrais viam que as
lanternas ou lâmpadas parecem com olhos dos animais, pois quando as pessoas
usam a lanterna e focam nos olhos dos animais, elas brilham o olho. Por isso, coloca
este nome rop no, como a lanterna e a lâmpada (KAYAPÓ, Bepgogoti, 2022).

No exemplo (02a), ocorre uma composição a partir do nome rop no ‘lâmpada’ para
designar o termo ‘poste de lâmpada’ através da composição ‘lâmpada’+(posse)+nome.
(02) a. ropno nho pῖn
rop no nhõ pin
onça olho GEN poste
‘poste elétrico’ (lit. poste de lâmpada).

O item lexical ‘poste elétrico’ é formado por meio de dois processos de composição,
rop ‘onça’ + no ‘olho’ = lâmpada, seguido de rop no ‘lampada’ + GEN [ɲõ] ‘de/da’ + pin
‘poste’. Sobre o sentido do termo ‘poste elétrico’ perguntei ao interlocutor Bepbjere Kayapó
sobre o seu significado. Na conversa, mandei uma imagem do objeto estudado, isso é
importante, pois existem diferentes categorias para nomear utensílios grandes, pequenos ou
achatados.

300
Na ocasião mandei uma imagem da internet. Em questões de segundos Bepbjere me
mandou uma foto do poste da aldeia (figura 02). Lembrei da minha condição um tanto
solitária pela distância do campo físico, mas possível de se apreender sobre o ponto de vista
do outro.
Figura 02 – ropno-nho-pῖn (lit. poste de lâmpada)

Fonte: Acervo da Autora (2022).

Para saber quais neologismos eu poderia perguntar aos meus interlocutores era
necessário conhecer as dinâmicas das aldeias, entender os horários e ter noção da língua
estudada. É importante notar que não basta apenas escrever sobre a língua do ‘o outro’, é
necessário entender as suas concepções e modos de ver o mundo. Mas, isso inclui a
personalidade, capacidade intuitiva e literária do antropólogo (PEIRANO, 2018: p.07). Algo
que vai além do conceito teórico e perpassa no viver-ver-conviver, pois você sempre volta
transformado e afetado pelo campo, pois o campo está em nós (EVANS-PRITCHARD,1978,
p.247).
É possível observar nas interações livres e conversações formais com os Kayapó a
presença de representações verbais que revelavam estados reflexivos, críticos e emocionais.
As falas espontâneas encontradas em textos do Face, bem como as conversas no WhatsApp,
ao lado das leituras bibliográficas, contribuíram profundamente para o levantamento de
léxicos da língua Mẽbêngôkre no meio digital.
Sobre o estudo no ambiente digital, vimos que apesar da etnografia lexical ter sido
uma abordagem alternativa na minha dissertação, em função da pandemia, ela se tornou uma
ferramenta importante de pesquisa. Essa modalidade de estudo permitiu estudar não só os
léxicos da língua, mas as narrativas e futuramente as ações políticas de meus interlocutores
(ou atitudes linguísticas), sendo um campo profícuo de investigação.

301
Palavras-chaves: Etnografia digital. Língua Mebêngôkre (Kayapó). Pandemia.

REFERÊNCIAS

E. EVANS-PRITCHARD, Edward. 1978. Apêndice IV: Algumas Reminiscências e


Reflexões sobre o Trabalho de Campo. In: Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azande. Rio
de Janeiro: Zahar.

FERRAZ, Cláudia Pereira. A etnografia digital e os fundamentos da Antropologia para


estudos em redes on-line. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.12, n.35, p.
46-69, jun.-set.2019.

GOMES, E. de C.; MENEZES, Raquel A., 2007. Emoções do antropólogo em campo: a


etnografia em questão. 31º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, DE 22 A 26 DE
OUTUBRO DE 2007, CAXAMBU, MG. https://www.anpocs.com/index.php/papers-31-
encontro/st-7/st03-6/2756-gomes-menezes-emocoes/file.

KAYAPÓ, Bepbjere. [06/2022]. Entrevistadora: Michelly Silva Machado. Belém, 2022.


arquivo mp3 - via WhatsApp.

KAYAPÓ, Bepgogoti. [07/2022]. Entrevistadora: Michelly Silva Machado. Belém, 2022.


arquivo mp3 - via WhatsApp.

PEIRANO, Mariza. 2014. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, vol. 20, n.
42, Porto Alegre: PPGAS-UFRGS. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ha/v20n42/15.pdf.

PEIRANO, Mariza. 2018. A eterna juventude da antropologia: etnografia e teoria vivida


[Etnografia, ou a teoria vivida”]. <http://journals.openedition.org/pontourbe/1890>.
http://www.marizapeirano.com.br/capitulos/2018_a_eterna_juventude_da_antropologia.htm.

RAMOS, J. de S., FREITAS, E. T. (2018). Dossiê temático: Etnografia


digital. Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, 1(42). Disponível em:
https://doi.org/10.22409/antropolitica2017.1i42.a41882. Acesso em: 05 de jun. de 2021.

SALANOVA, Andrés Pablo. A nasalidade em Mebêngôkre e-Apinayé; o limite do


vozeamento soante. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, do
Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas-SP, 2001.

STOCKING, G. "Fieldwork in British Anthropology from Tylor to Malinowski" In:


Stocking, G. The ethnographer's magic and other essays in the history of anthropology. The
University of Wisconsin Press, 1992.

VILLAS-BÔAS, André J. A. (Coord.). Diagnóstico da efetividade do fundo Kayapó na


melhoria da qualidade de vida do povo kayapó e na gestão e integridade de seus
territórios. Instituto Socioambiental - São Paulo, 2019.

302
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 1 - PESQUISA COM MÍDIAS DIGITAIS: DILEMAS E DESAFIOS

COMO UM PROFISSIONAL: NOTAS ETNOGRÁFICAS DE UM


APRENDIZ DE PRO-PLAYER

Tarcízio Macedo139

A explosão dos esportes eletrônicos (esports)140 é uma das evoluções mais marcantes
da indústria de videogames. Embora nem todos os jogos criados sejam voltados para
competições, as ligas de esports permeiam hoje o mercado e a experiência de jogo
contemporânea (FALCÃO et al., 2020). Com este setor assumindo um protagonismo
crescente, sua expansão constante levou a uma ascensão da profissionalização de jogos,
jogadores (chamados de pro-players141), equipes e toda sorte de atores que integram as
comunidades competitivas de base até mesmo em regiões periféricas (MACEDO;
FRAGOSO, 2019; TAYLOR, N., 2015).
A partir desse contexto, o objetivo deste trabalho é problematizar posturas e aspectos
epistêmicos e teórico-metodológicos que atravessaram um estudo etnográfico com jogadores
semiprofissionais do jogo digital League of Legends (LoL)142, realizado entre junho de 2016 a
maio de 2018 (MACEDO, 2018). O intuito é revisitar um trabalho com uma comunidade da
cidade de Belém do Pará para quem a minha biografia, participação e câmera fotográfica se
tornaram não apenas uma abordagem de pesquisa, mas um recurso promocional útil para a
equipe e seus membros. Examinando as transformações que a minha presença e
experimentação promoveram, tanto na prática do trabalho de campo etnográfico quanto na
relação com os jogadores, este trabalho explora o papel central desempenhado pela
(auto)biografia e participação na pesquisa etnográfica em jogos digitais e esports. Considero
como os participantes se apropriaram da minha presença e câmera fotográfica para algo que
reconheceram, por meio de seu consumo de esports, como parte dos jogos profissionais.
Entre as questões abordadas figuram: como a efetiva participação de um pesquisador
numa equipe altera a compreensão dos jogadores sobre si mesmos e suas práticas de jogo?

139
Doutorando em Comunicação e Informação pela UFRGS, tarciziopmacedo@gmail.com.
140
A abreviação é usada em referência à expressão inglesa electronic sports. Cf. Macedo (2018).
141
Acrônimo do termo em inglês professional players, é usado para se referir aos jogadores profissionais de
games.
142
Trata-se de um jogo competitivo criado em 2009 pela desenvolvedora Riot Games. Cf. Macedo (2018).
303
Como essa interação transforma o andamento da própria pesquisa? De que maneira as
subjetividades dos jogadores, as interações comunicativas e o jogo são moldados pela própria
experiência e subjetividade dos pesquisadores, e vice-versa, assim como pelo diálogo que
estabelecem? Este texto discute algumas dessas questões por meio de uma consideração
reflexiva do meu trabalho de campo, durante um período em que a cena de esports brasileira
(e de Belém, em particular) estava lutando para conquistar a legitimidade social de suas
práticas como jogadores competitivos sérios e para articular o que o jogo profissional implica,
como ele poderia ser melhor comercializado e como seus atores poderiam se profissionalizar.
Para desenvolver essa leitura, sigo o pensamento de Ashley Brown (2015), que
propaga a importância da reflexividade no uso de métodos etnográficos na pesquisa em jogos
digitais como uma estratégia para lidar com as emoções oriundas da experimentação e
participação no campo. A abertura para desestabilização que vivenciei durante as primeiras
incursões ao cenário local me levou a reconsiderar minha própria postura dentro do campo,
assim como as noções de autobiografia e participação como condições essenciais para o
desenvolvimento da pesquisa. Com efeito, a experiência de campo com esta equipe e,
simultaneamente, minha experiência como jogador e fotógrafo me levaram a colocar em
questão o modo como conduzi a pesquisa.
Inicialmente, passei a realizar uma etnografia pelos espaços nos quais a comunidade
local se construía. Esse trabalho se deu a partir da participação e inserção em grupos online da
comunidade esportiva local de LoL e no acompanhamento de eventos divulgados nesses
ambientes. Chamei esta etapa anterior ao contato com o time de etnografia movente, cujo
período remonta junho de 2016 a junho de 2017. A expressão faz alusão à movimentação pelo
cenário competitivo de LoL em Belém, a partir dos seus próprios ambientes de convívio como
um primeiro passo para alcançar os circuitos que envolvem os esports.
Durante um ano visitei, com periodicidade, uma variedade de atividades competitivas
presenciais e online do cenário. Em um torneio presencial de junho de 2017 encontrei uma
organização recém-criada, cuja relação comigo se seguiu formalmente até maio de 2018. Meu
trabalho envolveu notas detalhadas em um caderno de campo, entrevistas e conversas
informais regulares com jogadores e atores da cena local, ida a eventos presenciais e virtuais,
participação em grupos online e na agenda de atividades do time, incluindo a gravação de
suas partidas, e uma série de registros fotográficos que começaram como trocas científicas
sociais convencionais e terminaram como material promocional para a organização e seus
jogadores.

304
Embutido nesse relato está uma tentativa de superar as noções convencionais que
prescrevem a (auto)biografia como uma fuga da objetividade etnográfica e o distanciamento
no contato com os interlocutores (FABIAN, 2000, 2001; GOULET, 2011; EWING, 1994). De
início, minha aproximação com a equipe ocorria apenas a partir da presença em treinos e
torneios coletivos presenciais, com algumas trocas de mensagens com seus membros. Os
organizadores do time pareciam interessados na época (possivelmente por cortesia), mas meus
contatos de acompanhamento nas semanas seguintes beiravam a superficialidade – meu
trabalho parecia ter pouca relevância para seus objetivos de profissionalização. Apenas eu
parecia demonstrar interesse pelo tema.
Durante um dos primeiros eventos presenciais que acompanhei a equipe, em julho de
2017, e em um cenário que me posicionei mais claramente como pesquisador e a câmera
assumia sua função de instrumento de pesquisa, a maioria dos meus interlocutores, antes,
reagia evitando entrar em detalhes sobre qualquer assunto, negando ou se abstendo de um
contato. Suas respostas curtas sugeriram relutância em participar ou nervosismo em ser
entrevistado – estavam todos visivelmente ansiosos e desconfortáveis nos primeiros contatos.
Os próprios jogadores, no entanto, provocaram uma mudança no “ângulo” que estava
tomando meu trabalho, tanto técnica quanto teoricamente. De forma recorrente era
imediatamente confrontado com um ponto de vista dos jogadores segundo o qual uma
verdadeira compreensão do cenário belenense de esports, e consequentemente de LoL, seria
indissociável de uma experiência pessoal. Eles exigiam que experimentasse pessoalmente, e
por minha própria conta e risco, os efeitos de participar de uma rede particular de
comunicação que consiste jogar LoL profissionalmente, de ser membro de uma comunidade
de emoções (MARRANCI, 2008) que compartilhava suas informações. Decidi que nos
encontros com os jogadores ocuparia o lugar de participante que me era solicitado.
Caminhei, assim, em uma trilha intuitiva, adentrando na rede de comunicação da
equipe em uma prática que, em muito, convergia meu papel tanto de pesquisador quanto de
jogador. A mudança de postura para um engajamento de participação enquanto jogador, aos
poucos, abriu espaço para que fosse possível uma aproximação maior com a equipe e sua rede
de relações. A diferença foi perceptível: ao longo da pesquisa meu tempo em campo não
apenas se ampliou como os participantes, antes relutantes, pareciam agora despreocupados,
até mesmo confortáveis, com a minha presença com uma câmera fotográfica. Se antes suas
respostas eram curtas, agora faziam contato visual com a câmera e posavam para ela.

305
Essas experiências foram uma rara oportunidade para observar tanto as realidades
quanto as experiências morais, emocionais, físicas, intuitivas, epistemológicas e espirituais
dos jogadores em primeira mão. Gradualmente, os jogadores passaram a ressignificar e
aproveitar minha estadia com eles, dando-me funções específicas, mesmo que de modo
inconsciente e não formalizado. Ao realizar essa pesquisa com uma equipe
predominantemente composta por homens heterossexuais, de classe média e com privilégios
socioeconômicos semelhantes aos meus tinha efetivamente pouco a retribuir como
pesquisador. Para trabalhar com eles era preciso enquadrar meu envolvimento de forma
alinhada com suas expectativas e necessidades.
Explorar como os próprios jogadores se adaptaram à minha presença como
pesquisador é fundamental para entender o papel que meu trabalho de campo desempenhou na
profissionalização dessa comunidade, bem como os impactos que o ato de confissão traz,
sobretudo para o pesquisador. Embora minha permanência tenha sido esclarecida e tivesse
revelado totalmente meus interesses de pesquisa a todos os membros da equipe, no decorrer
do tempo os jogadores consistentemente enquadravam meu envolvimento como uma forma
reconhecível de serviço ao time, e não como pesquisa. Eles com frequência me apresentavam
como o novo analista/conselheiro e fotógrafo da equipe, dirigindo-se até mim para solicitar
conselhos das mais variadas ordens e alguns dos registros fotográficos que produzi da equipe.
Essa relação não foi acordada deste o início em troca de apoio ao meu projeto de
pesquisa, mas ao longo da convivência fui progressivamente chamado para contribuir com
análises, comentários e quaisquer dados fotográficos que produzisse, bem como pelas minhas
habilidades de edição de fotos, fornecendo materiais promocionais para a organização e seus
jogadores. Minha câmera fotográfica (usada para o registro do trabalho de campo) e minha
experiência biográfica como jogador e fotógrafo me ajudaram a transpor a fronteira entre
meus próprios interesses de pesquisa, voltados para documentar a “profissionalização” de
uma equipe, e os interesses de um grupo de jogadores para quem a câmera e minha biografia
representavam oportunidades para os tipos de construção de visibilidade normalmente
associadas com esports profissionais. Esses dois elementos me permitiram atravessar a
fronteira entre a academia e uma comunidade relativamente privilegiada de jogadores
competitivos.
Ao aceitar essa colaboração, gradualmente os papéis de jogador e fotógrafo
conquistaram mais espaço e me possibilitaram adentrar no adensamento da compreensão de
uma rede de comunicação. Fazer isso exigia uma apreciação maior daqueles momentos de

306
jogo que os próprios jogadores consideravam significativos – algo que tive que aprender não
apenas jogando mais de perto LoL, mas também assistindo replays de torneios e participando
da rotina de atividades da equipe. Em outras palavras, precisei me tornar um jogador mais
proficiente para cumprir meu papel como analista/conselheiro e fotógrafo e, por fim, para
entender melhor a comunidade de jogadores competitivos com a qual estava envolvido.
Meu próprio envolvimento na qualidade de conselheiro/analista e fotógrafo pode não
ter simplesmente coincidido com as tentativas da organização de ser profissional; pode ter
impulsionado ativamente esses esforços, na medida em que meu trabalho de pesquisa com a
equipe (incluindo o fotográfico) emulava funções presentes em outras organizações
profissionais de esports. Para os jogadores, minha contribuição com registros fotográficos e as
pesquisas que desenvolvia sobre os benefícios sociais dos jogos, assim como as expectativas
de visibilidade que esses trabalhos poderiam trazer no futuro, pareciam ter relevância junto
aos seus objetivos na construção do perfil da organização e na legitimação de seus status
como jogadores competitivos sérios do cenário local. Meu trabalho, de algum modo, ofereceu
uma forma de reconhecimento dentro de uma comunidade que coloca muito valor à
visibilidade.
Neste trabalho destaquei como as preocupações etnográficas convencionais em torno
da (auto)biografia e da participação foram transformadas a partir do meu duplo papel como
etnógrafo e jogador/fotógrafo nesta comunidade. A tradição de pesquisa etnográfica em que
fui treinado evita essas abordagens – caracterizadas pela extração de dados de sujeitos, a partir
do uso de técnicas de questionamento formalizado – em favor de trocas dialógicas mais
abertas. Nesta tradição, enraizada no trabalho experiencial de Ewing (1994), Fabian (2000,
2001), Favret-Saada (2005), Goulet (2011) e Marranci (2008), são produzidas trocas
recíprocas de narrativas e reflexões por meio das quais o conhecimento é coconstruído ao
invés de obtido. As conversas e entrevistas que realizei com os jogadores foram guiadas por
preocupações de reciprocidade e retribuição. Elas foram realizadas tanto para beneficiá-los,
em suas tentativas de se estabelecerem em uma rede mais ampla de pro-players de LoL,
quanto para avançar minha própria compreensão dos jogos competitivos. Para conseguir isso,
no entanto, precisei performar o profissionalismo ao me modelar a partir da experiência de
pro-players e de um estilo fotográfico promocional frequentemente usado na cobertura dos
esports.
Também prestei atenção às maneiras como meu próprio papel, atos de confissão e
prioridades em mudança dentro desta comunidade modificaram a forma e o modo que e como

307
aprendi sobre o processo de profissionalização de equipes e jogadores na periferia dos
esports. Ao fazê-lo espero ampliar o rico trabalho etnográfico de pesquisadores dos game
studies (TAYLOR, T., 2006, 2012; TAYLOR, N., 2016; SÜNDEN, 2009) que atentam para
os modos como sua própria reflexividade moldou suas interações com os jogadores, revelando
as complexas relações entre participantes, pesquisadores, contextos virtuais/físicos e
tecnologias.
Quando aplicada a estudos de esports e jogos competitivos, a articulação em torno de
uma participação e posicionamento responsável e reflexivo pode apoiar na construção de
entendimentos mais sutis da interação coconstitutiva encenada entre jogadores e
pesquisadores. O estudo de um grupo de jogadores semiprofissionais que relatei aqui, e as
questões práticas e epistemológicas envolvidas em experimentar e retribuir a essa
comunidade, pretende tanto reafirmar quanto problematizar preocupações em torno da
reflexividade e do uso da (auto)biografia e da participação, sob condições sociotécnicas
contemporâneas onde as recompensas da pesquisa científica social são muitas vezes, e cada
vez mais, unilaterais.

Palavras-chaves: Esports. Etnografia. Reflexividade.

REFERÊNCIAS

BROWN, Ashley. Awkward: The importance of reflexivity in ethnographic methods. In:


LANKOSKI, Petri; BJÖRK, Staffan (Ed.). Game Research Methods: An Overview.
Pittsburgh: ETC Press, 2015, p. 77-92.
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Believe. American Anthropologist, Arlington, v. 96, n. 3, p. 571-583, 1994.
FABIAN, Johannes. Out of our minds: reason and madness in the exploration of Central
Africa. Berkeley and Los Angeles, California: University of California Press, 2000.
FABIAN, Johannes. Anthropology with an Attitude: Critical Essays. Stanford: Stanford
University Press, 2001.
FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan; MACEDO, Tarcízio. At the Edge of
Utopia. Esports, Neoliberalism and the Gamer Culture’s Descent into Madness. Journal
Gamevironments, Bremen, v. 13, n. 2, p. 382-419, 2020.
FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada. Revista Cadernos de
Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005.

308
GOULET, Jean-Guy. Trois manières d’être sur le terrain: une brève histoire des conceptions
de l’intersubjectivité. Anthropologie et Sociétés, Quebec, v. 35, n. 3, p. 107-125, 2011.
MACEDO, Tarcízio. Like a Pro: Dinâmicas Sociais no e-sport. 2018. Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia). Instituto de
Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.
MACEDO, Tarcízio; FRAGOSO, Suely. Geografias dos Esports: mediações espaciais da
prática competitiva na Amazônia. Logos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 106-123, 2019.
MARRANCI, Gabriele. The Anthropology of Islam. Oxford: Berg Publishers, 2008.
SÜNDEN, Jenny. Play as transgression: an ethnographic approach to queer game cultures. In:
PROCEEDINGS OF DiGRA. London: Brunel University, 2009, 1-7.
TAYLOR, Nicholas. Professional Gaming. In: MANSELL, Robin; ANG, Peng (Ed.). The
International Encyclopedia of Digital Communication and Society. London: Wiley
Blackwell, 2015, p. 987-990.
TAYLOR, Nicholas. Play to the camera: Video ethnography, spectatorship, and e-sports.
Convergence, London, v. 22, n. 2, p. 115-130, 2016.
TAYLOR, T. Play Between Worlds: Exploring Online Game Culture. Cambridge: MIT
Press, 2006.
TAYLOR, T. Raising the Stakes: E-Sports and the Professionalization of Computer Gaming.
Cambridge: MIT Press, 2012.

309
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 1 - PESQUISA COM MÍDIAS DIGITAIS: DILEMAS E DESAFIOS

OS IMPACTOS DA PANDEMIA DE COVID-19 NA ORIENTAÇÃO DE


PESQUISAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Guilherme Bemerguy Chêne Neto143

A prática de qualquer atividade parte da ideia de que quanto mais praticada, mais ideal
ela ficará. No fazer constam o pensar, a dedicação e o cuidado (SENNETT, 2008). E é esse o
objetivo da iniciação científica:
uma modalidade de pesquisa acadêmica que visa iniciação à prática científica de
estudantes, a partir da participação em projetos de pesquisa desenvolvidos sob a
orientação de um(a) professor(a) ou pesquisador(a). Ela possibilita o(a) estudante
ampliar seus conhecimentos, ter acesso à aprendizagem de técnicas e métodos
científicos, estimula o desenvolvimento do pensar cientificamente e da criatividade,
contribuindo, assim, de maneira importante para uma formação completa, como uma
preparação para a docência, para a pós-graduação e para a vida profissional
(COSTA, 2021, p.14-15).

É fato que para a formação de qualquer profissional são necessários aprendizado e


prática. E, para tal, há a necessidade de quem ensine144. Na iniciação científica esse papel cabe
à/ao professor/a orientador/a, em que para o processo de orientação ser bem-sucedido, para
que “o orientando seja estimulado, esclarecido e conduzido para o alcance dos objetivos da
pesquisa, é recomendável que o orientador desenvolva competências nas dimensões: técnica,
psicossocial e conceitual” (WOLFF, 2007, p. 413).
Lillian Wolff aponta, ainda, que quem orienta deve possuir conhecimentos
epistemológicos e metodológicos a fim de facilitar o processo de aprendizado do/a
orientanda/o no que diz respeito ao planejamento e execução da pesquisa científica e análise
dos resultados obtidos através dela. A/O orientador/a deve possuir experiências em pesquisas,
pois são dessas experiências que se torna orientador/a.

143 Doutor em Ciências Sociais (Unesp | Araraquara), Laboratório de Antropologia dos Meios Aquáticos do
Museu Paraense Emílio Goeldi (LAMAq/MPEG), gbemerguy@museu-goeldi.br.
144 Não necessariamente quem ensina diz respeito ao ser humano. A experiência de vida também ensina e esse
ensinamento é contínuo. Como afirma Matos (2020), “A ideia de ser um aprendiz ao longo da vida é
fundamental para que estejamos preparados a nos transformar constantemente, junto com essa transformação
sem fim em todos os âmbitos da vida no século XXI”.
310
é relevante que o orientador busque rememorar as suas dúvidas e dificuldades
anteriores a fim de se antecipar no esclarecimento do orientando e atentar para que
as dificuldades vivenciadas por ambos no processo de orientação, bem como as
soluções encontradas, sejam sistematizadas de forma a facilitar orientações e
pesquisas futuras (WOLFF, 2007, p. 414).

É um processo dialético, conclui essa autora.


Para Feldman-Bianco (2011), na antropologia, a relação entre orientador/a e
orientanda/o é artesanal, constituindo “pontos fortes da produção do conhecimento
antropológico e da formação disciplinar”. Essa relação é permeada por subjetividades em
diálogos/conflitos desde a escolha do tema a ser pesquisado, o fazimento do projeto e,
principalmente, à ocasião de campo. O partilhar desses momentos por orientador/a e
orientando/a é crucial para a formação dessa/e última/o.
A mim mesmo essa parceria com a minha então orientadora de iniciação científica,
em minha primeira ida para campo, foi essencial para que eu pudesse aprender a olhar, ouvir,
escrever (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). O observar de como ela observava o seu redor
e conduzia a pesquisa e as interlocuções até hoje me marcam, pois, em algumas situações,
reproduzo o seu olhar.
Para Fabietti e Matera (1998),
a pesquisa de campo é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve. [...] O
lugar da pesquisa de campo no fazer da antropologia não se limita a uma técnica de
colecta de dados, mas é um procedimento com implicações teóricas específicas.

Mesmo que Bortolami Gabriele (2016) afirme que não há propriamente como se
ensinar a fazer pesquisa de campo, já que não existem normas e regras que balizem a
pesquisa para todas/os, eu, particularmente, acredito que foi fundamental o papel que a minha
orientadora de iniciação científica teve para que eu pudesse ficar mais à vontade em campo,
com o passar do tempo.
No ano de 2020 fomos surpreendidas/os pelo surgimento do vírus SARS-CoV-2 e pela
sua propagação no mundo todo, levando a Organização Mundial da Saúde a declarar situação
de pandemia, no dia 11 de março de 2020. Com isso, o mundo parou e só as atividades
consideradas como essenciais continuaram na sua normalidade. O que achávamos que duraria
alguns poucos meses foi se prolongando - e ainda estamos em situação de pandemia. Em

311
virtude de estar mais habituado ao novo normal, resolvi me aventurar e, então, aceitei o
convite de três discentes145146147 de graduação que entraram em contato comigo por e-mail,
desejando submeter Planos de Trabalhos ao processo seletivo de bolsas de Iniciação
Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no
Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), para o período 2021/2022.
Refiro-me à aventura pois, após pensarmos nas propostas de trabalhos e as
submetermos, quando aprovadas, pensei e problematizei comigo mesmo sobre como orientar,
à distância, iniciação científica? Ainda mais quando as/os estudantes nunca tinham tido
experiências em pesquisas e, tampouco, em pesquisas de campo. Durante o período de
duração das bolsas, as orientações ocorreram via plataforma Google Meet ou por WhatsApp.
Encontramo-nos pessoalmente somente uma vez, na casa de uma das bolsistas – pois o
campus do Museu Goeldi ainda não estava aberto. Tudo isso impactou diretamente na forma
como as/os bolsistas realizaram suas pesquisas e apresentaram os resultados parciais e finais.
Se a tecnologia aproximou as pessoas no período mais crítico do isolamento social
(UNINTER, 2020) – necessário para conter a disseminação do SARS-CoV-2 e não
sobrecarregar o sistema de saúde -, na atividade científica, em algumas áreas, mesmo
considerando os avanços derivados dessa necessidade de adaptação, não são escassos os
relatos acerca das dificuldades em realizar pesquisas em meio ao período de distanciamento
social (FIORI, 2020; CÂNDIDO, MARQUES, OLIVEIRA & BIROLI, 2021; CÂNDIDO &
CHAGURI, 2021; MARCELINO, 2021).
É isso o que essa proposição deseja discutir: como a pandemia de Covid-19 impactou
as pesquisas em antropologia (FARIA, 2020), em todos os seus âmbitos: o planejamento das
pesquisas; as sessões de orientações e leituras dirigidas; o contato das/os bolsistas com seus
pares e demais pesquisadoras/es; e a partilha da ida ao campo, entre orientandas/os e
orientadoras/es.

Palavras-chaves: Orientação de Iniciação Científica. Pandemia de Covid-19. Pesquisa de


Campo.

145
SANTOS (2022). Estudante do curso de Licenciatura em História.
146
CARVALHO (2022). Estudante do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas.
147
ALMEIDA (2022). Estudante do curso de Bacharelado em Direito.
312
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, J. S. A importância da mandioca (Manihot esculenta) à organização social de


uma comunidade amazônica: o caso do povoado de Bacuri-Prata (Bragança/PA). 14f.
Relatório Final de Iniciação Científica, Coordenação de Ciências Humanas, Museu Paraense
Emílio Goeldi, Belém/PA, 2022.

CÂNDIDO, M.R.; CHAGURI, M. Desafios da pandemia para o futuro nas Ciências Sociais.
Latinoamérica 21, 30 dez. 2021.

_____________.; MARQUES, D.; OLIVEIRA, V.E.;BIROLLI, F. AS CIÊNCIAS


SOCIAIS NA PANDEMIA DA COVID-19: ROTINAS DE TRABALHO E
DESIGUALDADES. REVISTA SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA, v. 11, p. 31-65,
2021.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir, escrever.


Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111579>. Acesso em 06 AGO
2022.

CARVALHO, M. H. C. Incentivando a preservação eo conhecimento do patrimônio


ambiental por meio da educação infantil: análise de uma escola infantil na APA de Cotijuba
– Belém/PA. 11f. Relatório Final de Iniciação Científica - Coordenação de Ciências
Humanas, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém/PA, 2022.

COSTA, S. H. A importância do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) na formação


científica dos estudantes da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). 53f.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Ciências
Básicas da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida
e Saúde, Porto Alegre/RS, 2021.

FABIETTI, U.; MATERA, V. Etnografia. Scritture e rappresentazioni dell'antropologia.


Roma: Carocci, 1998.

FARIA, L. P. Doing research in a Pandemic: Shared experiences from the fieldwork.


Disponível em: <https://bityli.com/ehiVWQdT>. Acesso em 06 AGO 2022.

FELDMAN-BIANCO.B. A antropologia hoje. Cienc. Cult., São Paulo, v. 63, n. 2. p. 4-5.


Apr. 2011. Disponível em: <https://bityli.com/cTlULmWW>. Acesso em 06 AGO 2022.

FIORI, A. L. Sem chegar perto e de dentro de casa: notas sobre antropologias, etnografias e
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1, p. 390-398, 2020.

313
GABRIELE, B. O trabalho de campo como experiência etnográfica nas aldeias da comuna de
Luvo, município de Mbanza Kongo. Mulemba [Online], 6 (12) 2016. Disponível em:
<http://journals.openedition.org/mulemba/1141>. Acesso em 06 AGO 2022.

MARCELINO, M. Como prosseguir sua pesquisa etnográfica na maior pandemia do século


(até agora). Disponível em: <https://bityli.com/UxXNDHmy>. Acesso em 06 AGO 2022.

MATOS, A. In: O QUE É LIFELONG LEARNING: APRENDA COM EXPERIÊNCIAS


QUE GERAM CONHECIMENTO PARA A VIDA TODA. Disponível em:
<https://bityli.com/ucDtFaxI>. ACESSO EM06 AGO 2022.

SANTOS, L. F. F. O PROJETO RENAS E A PESQUISA TRANSDISCIPLINAR:


REFLEXÕES SOBRE A HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA NA AMAZÔNIA. 16f.
Relatório Final de Iniciação Científica, Coordenação de Ciências Humanas, Museu Paraense
Emílio Goeldi, Belém/PA, 2022.

SENNETT, R. The craftsman. London: Penguin Books, 2008.

UNINTER. Tecnologia aproxima pessoas em período de isolamento pelo coronavírus.


Disponível em: <https://bityli.com/afWWjIzc>. Acesso em 06 AGO 2022.

WOLFF, L. D. G. O PAPEL DO PROFESSOR NA ORIENTAÇÃO DE TRABALHO


CIENTÍFICO. Disponível em: <https://bityli.com/SRDZlIAK>. Acesso em 06 AGO 2022.

314
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 2 - CULTURA, POLÍTICA E DESIGUALDADES NOS ESTUDOS COM MÍDIAS DIGITAIS

NEOLIBERALISMO E PROPAGANDA POLÍTICA DA EXTREMA


DIREITA NAS REDES SOCIAIS

Livia Coelho Netto Affonso148

Recentemente, observa-se o crescimento mundial de uma nova direita que converge


com a reafirmação de soluções políticas autoritárias, conservadoras, antidemocráticas e
potencialmente fascistas (BROWN, 2019). Esse fenômeno, que surge no Brasil e se
intensifica com a pandemia da Covid-19, coincide com o aumento da relevância política da
atuação desses movimentos no meio digital (CESARINO, 2019, 2020), que, por meio de
influenciadores com elevados números de visualizações e seguidores nas redes sociais,
divulgam efetivamente uma propaganda política relacionada à sua ideologia.
Com estratégias do olavismo149 e do cyberativismo (ROCHA, J., 2021; WINK, 2021),
essa nova direita brasileira se expandiu nas mídias sociais a partir da formação de
contrapúblicos na internet150 (ROCHA, C., 2018) e o uso de linguagem de uma “forma-
meme” de grande alcance popular (ROSA; ÂNGELO; BRAGA, 2021). Nesse sentido, esse
cuidado intenso com a perfeição do meio e a depreciação dos fins demonstram de forma
empírica a teoria de Theodor Adorno sobre o novo radicalismo da direita (2015, 2020).
Segundo o autor, no âmbito desses movimentos a própria propaganda é a substância da
política, sem ter como meta finalidades racionais (ADORNO, 2020) - o que torna, no
momento atual, a pesquisa online de seus conteúdos disseminados nas redes sociais
imprescindível para a compreensão da extrema direita.
Em relação a esses conteúdos no meio digital, destaca-se a presença de uma
racionalidade neoliberal na ideologia disseminada pela nova direita. De acordo com Brown
(2019), esse movimento defende no âmbito da internet a negação do social e do público, sob a
alegação de que o Estado representa uma instituição inerentemente corrupta e viciosa. Nesse

148
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH), livia.coelho.netto.affonso@gmail.com
149
Olavismo, segundo Wink (2021), é definido como movimento dos seguidores do ícone da nova direita Olavo
de Carvalho, caracterizados por discursos fundamentalistas e anticomunistas.
150
Segundo Rocha (2018), contrapúblicos na internet define os grupos formados nas plataformas digitais que se
difundem como contrários aos públicos dominantes, como a imprensa profissional e outras esferas.
315
contexto, as influências de autores como Mises (ROCHA, C., 2018) e, principalmente, Hayek
(WINK, 2021) trazem esse foco na ideia de mercado e moralidade, o que mistura de modo
“frankesteiniano” o conservadorismo e o neoliberalismo (BROWN, 2019).
Com o propósito de contribuir com as investigações sobre a racionalidade liberal da
nova direita e seus discursos nas redes sociais, este trabalho pretendeu analisar e interpretar
conteúdos propagados por influenciadores da extrema direita relacionados ao neoliberalismo.
Desse modo, para cumprir esse objetivo, a metodologia utilizada consistiu no
acompanhamento sistemático e a análise do conteúdo dos vídeos postados no Youtube por 7
canais da nova direita brasileira com elevados números de inscritos e visualizações: Canal
Hipócritas, Papo Conservador, O Jacaré de Tanga, Vista Pátria, Paula Marisa, Marcos Falcão
e Direto aos fatos – com Camila Abdo.
Em relação aos resultados dessa pesquisa realizada de forma online, com a observação
empírica das redes sociais da nova direita, foi possível perceber de forma intensa a relação
direta dos discursos dos youtubers selecionados com a racionalidade neoliberal de
demonização do público e do político, na qual o Estado é representado como inerentemente
corrupto e antagônico a um mercado virtuoso (BROWN, 2019). Nas postagens analisadas,
com a reprodução de um modelo binário antagonístico, comum nos discursos da extrema
direita (CESARINO, 2019, 2020), são frequentes as comparações da imagem do político
vicioso ou do funcionário público inerentemente corrupto ao seu oposto do empresário
virtuoso.
Nesses exemplos, reforça-se a ideia típica do neoliberalismo relativa ao antagonismo
entre Estado e mercado (BROWN, 2019), em que o primeiro se transforma no inimigo a ser
eliminado. Assim, no aspecto do conservadorismo religioso católico da nova direita misturado
ao neoliberalismo e na ideia dos discursos olavistas de uma decisiva batalha entre o Cristo e o
Anticristo, segundo Wink (2021)151, o Estado é considerado, em uma visão maniqueísta ao
extremo, como o principal instrumento satânico para destruir a espontânea e divina ordem
hayekiana do universo, representada pelo mercado.
Ademais, observa-se como a arquitetura digital do neoliberalismo (CESARINO, 2019)
no funcionamento das redes sociais estimula a racionalidade neoliberal presente nos
conteúdos da internet. Nesse sentido, com a reprodução da lógica dos sistemas algorítmicos
151
Essa afirmação de Wink (2021) se baseia em declarações do autor liberal José Huerta de Soto.
316
de modulação comportamental (SILVEIRA, 2019), os youtubers selecionados utilizam o
raciocínio do constante engajamento de seu público, aspecto identificado em propagandas
potencialmente fascistas (ADORNO, 2015), e da mobilização de afetos com o consumo
constante de emoções intensas, como indignação, raiva e ódio.
Com o uso de técnicas das redes sociais, é comum nos vídeos características apontadas
por Adorno em relação às propagandas da direita radical (2015) como a performance na busca
de emocionar seus interlocutores. Em muitos conteúdos analisados, os influencers estudados
se utilizam de expressões teatrais e reações exageradas com a variação do volume de suas
vozes para engajar seus seguidores. Desse modo, é coerente com a teoria que um dos canais
da nova direita da pesquisa, o Canal Hipócritas, seja a produção de um grupo de atores que
realizam esquetes de humor e peças, em que, com escárnio e deboche da linguagem do
contrapúblico da internet (ROCHA, C., 2018), são realizadas farsas de acontecimentos reais
com a inserção de diversos elementos fantasiosos.
Esses algoritmos digitais característicos de uma sociedade de controle e de um
capitalismo de sobreprodução (DELEUZE, 2000) modelam as subjetividades dos usuários das
redes sociais a uma racionalidade neoliberal. Sem escape desses anéis de serpente, o
comportamento é modelado pela restrição do conteúdo que o sujeito tem acesso. Assim,
levando em consideração os conceitos de Deleuze, os filtros algorítmicos das plataformas da
internet consolidam bolhas ideológicas e intensificam mecanismos de controle contínuo pelas
redes sociais.
A estrutura neoliberal das mídias digitais (CESARINO, 2019) com seus algoritmos
possivelmente também afeta a experiência e a memória dos sujeitos. Esse fato explicaria a
tendência característica dos discursos dos influencers da nova direita à estereotipia, ao
revisionismo de acontecimentos históricos e à distorção de notícias recentes (WINK, 2021).
Dessa maneira, com a necessidade de postagens e atualizações constantes, não há tempo para
reflexão nos conteúdos que buscam apenas engajar seguidores e atrair visualizações com
tópicos do dia das redes sociais.
Com esses impactos, os conteúdos da extrema direita também desumanizam grupos
opositores que se tornam inimigos a serem destruídos (ADORNO, 2020). Nesse sentido,
observou-se nos vídeos técnicas discursivas que constituem, segundo João Cezar de Castro
Rocha (2021), uma retórica do ódio. Semelhante à linguagem de memes na internet (ROSA;
317
ÂNGELO; BRAGA, 2021), os aspectos da hipérbole descaracterizadora e da desqualificação
nulificadora (ROCHA, J., 2021) são reproduzidos pelos youtubers da nova direita com o
emprego de repetições frequentes e de apelidos de tom humorístico que reduzem seus
adversários.
Sobre essas transformações nas formas de vivenciar a experiência, observa-se também
presentes nos vídeos dos influenciadores da extrema direita as características neoliberais do
niilismo e fatalismo (BROWN, 2019). Como identificado por Adorno (2015) em propagandas
potencialmente fascistas, os conteúdos analisados no Youtube apresentam distorções como a
catastrofização e a ideia da inevitabilidade de um desastre com a vitória dos inimigos. Por
exemplo, a youtuber Camila Abdo do canal Direto aos fatos, ao discorrer em um discurso
irracional e negacionista contra a vacinação da Covid-19 de funcionários de uma companhia
aérea, cria um cenário fantasioso em que um piloto de avião, após tomar a vacina, desenvolve
uma trombose ou isquemia e ocasiona a queda da aeronave com a morte de centenas de
pessoas.
No contexto das redes sociais, em um âmbito que os debates públicos são realizados
com a intermediação de poucas empresas privadas (SILVEIRA, 2019), o poder econômico
com uma lógica neoliberal predomina no funcionamento dos algoritmos das plataformas
digitais. Nesse sentido, os influencers da extrema direita têm conhecimento de como utilizar
esses sistemas algorítmicos. Esses influenciadores se utilizam, por exemplo, de anúncios
pagos transmitidos às mídias sociais de potenciais simpatizantes de sua ideologia.
Outro aspecto importante observado nos conteúdos da nova direita relacionado à
lógica neoliberal é o empreendedorismo encontrado nesses vídeos. Utilizando a própria lógica
dos sistemas algorítmicos (SILVEIRA, 2019), uma parte significativa dos posts foca em sua
monetização máxima (ROCHA, J., 2021) e no incentivo à colaboração financeira da
audiência. Dentro dos discursos dos influenciadores da nova direita, no qual “ativismo
político e empreendedorismo se misturam” (CESARINO, 2020), a venda de cursos virtuais e
livros do movimento é exaltada como ação combativa necessária na guerra cultural contra a
suposta hegemonia da esquerda (ROCHA, J., 2021).
Em relação a essa atitude empreendedora dos youtubers estudados, destaca-se a
influência do olavismo, já que Olavo de Carvalho foi o precursor da estratégia de vendas de
cursos online junto com o cyberjornalismo (WINK, 2021). Dessa forma, é possível também
318
identificar uma semelhança nas táticas para propagar aulas ou palestras pagas na internet, em
que os influenciadores da nova direita fazem promessas de ensinar maneiras de tonar
impossível inimigos vencerem seus seguidores em debates argumentativos (ROCHA, J.,
2021; WINK, 2021).
Sobre o pedido de contribuições financeiras, é comum que grande parte dos vídeos dos
influencers da extrema direita seja de incentivo aos seguidores a realizar transferências por
PIX aos seus canais. Com ideias de perigo iminente (ADORNO, 2015) de situações em que
teriam seus perfis nas redes sociais censurados ou desmonetizados pelos inimigos esquerdistas
das Big Techs, as doações monetárias são apresentadas pelos influenciadores como um modo
de defender e preservar os valores da nova direita.
Em conclusão, é relevante analisar a pesquisa online dos conteúdos da extrema direita
nas redes sociais para compreender esse movimento brasileiro em que a propaganda é a
própria substância de sua política (ADORNO, 2020). Nesse sentido, este trabalho buscou
demonstrar a relação direta dos vídeos dos youtubers da extrema direita com a racionalidade
neoliberal que demoniza o público e o social.
Destaca-se que, nos conteúdos da internet, essa lógica neoliberal está relacionada
principalmente à arquitetura digital do neoliberalismo nas mídias sociais. Com o estímulo dos
algoritmos que modulam comportamentos (SILVEIRA, 2019), típicos de uma sociedade de
controle (DELEUZE, 2000), subjetividades são alteradas assim como maneiras de vivenciar a
experiência e a memória. Portanto, é importante discutir sobre como o meio e a técnica das
redes sociais fortalecem nos vídeos da nova direita as mensagens exageradamente emotivas e
niilistas que engajam intensamente seus seguidores.

Palavras-chaves: Neoliberalismo. Nova direita. Influenciadores digitais.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp,
2015.

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bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Rev. antropol. (Online), São
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Orientador: Adrian Gurza Lavalle. 2018. 232 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia,
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político). Goiânia: Caminhos, 2021.

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a política na era da pós-verdade: uma análise da guerra cultural. Simbiótica, Vitória, v. 8, n.
2, p.187-216, mai./ago. 2021.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos


estão modulando comportamentos e escolhas políticas. São Paulo: Edições Sesc São Paulo,
2019.

WINK, Georg. Brazil land of the past: the ideological roots of the new right. Cuernavaca:
Bibliotopía, 2021.

320
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 2 - CULTURA, POLÍTICA E DESIGUALDADES NOS ESTUDOS COM MÍDIAS DIGITAIS

ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O CONSUMO DIGITAL: A


RELAÇÃO ENTRE AS PRÁTICAS DE CONSUMO ATUAIS E AS
TECNOLOGIAS DIGITAIS

Gláucia Briglia Canuto152


Rogéria Briglia Canuto153

O desenvolvimento de tecnologias digitais de comunicação e informação propiciou a


emergência de novas práticas de consumo influenciadas pelas dinâmicas interacionais típicas
do ambiente digital. De acordo com pesquisa realizada sobre os hábitos de consumo no Brasil
pela ConQuist Consultoria em 2021 e divulgada pela CNN Brasil (2021), atualmente mais de
71% dos brasileiros preferem fazer compras on-line. Dentre as redes sociais, a preferida dos
brasileiros para realizar compras on-line foi o WhatsApp com 51% da preferência do
consumidor. Os entrevistados citaram a agilidade, a rapidez e a comodidade como fatores que
influenciaram suas práticas de consumo atuais devido à crise sanitária causada pela COVID-
19.
Diante disso, o objetivo do trabalho foi discutir a relação entre o uso das tecnologias
digitais e as práticas de consumo derivadas do uso dessas tecnologias. Buscou-se
compreender o impacto que as tecnologias digitais têm no comportamento dos consumidores
que dão origem a práticas de consumo típicas da era digital. O caminho escolhido para guiar a
análise realizada foi por meio da diferenciação entre o consumo tradicional, aqui considerado
como consumo realizado presencialmente em ambientes físicos, do consumo digital. Esse
estudo buscou analisar as dinâmicas culturais e comportamentais do consumo existentes nessa
conjuntura social fomentada pelo avanço tecnológico da sociedade moderna.
Para a realização da análise do objeto de estudo foi feita uma revisão de literatura
sobre os estudos clássicos do consumo na área da antropologia do consumo e estudos mais
recentes sobre o consumo digital a fim de observar e descrever a relação entre o uso das
tecnologias digitais e as atividades de consumo na atualidade. Em específico, foram buscados
artigos no banco de dados da plataforma de busca acadêmica on-line SciELO utilizando como

152
Graduanda em ciências sociais, Universidade Estadual de Santa Cruz, gbcanuto.cso@uesc.br.
153
Graduanda em ciências sociais, Universidade Estadual de Santa Cruz, rbcanuto.cso@uesc.br.
321
palavras-chave: sociedade de consumo; consumo digital; antropologia do consumo. O filtro
usado para a busca foi: ciências sociais aplicadas. Os idiomas foram: português e espanhol.
O percurso metodológico consistiu em apresentar um panorama geral do consumo
como uma atividade social e cultural presente nas sociedades capitalistas contemporâneas por
meio da identificação das características do consumo tradicional nos trabalhos de autores
clássicos da antropologia do consumo como Daniel Miller (2007) e Grant McCracken (2007)
e compará-las com as características do consumo digital encontradas nos trabalhos de Bairon
e Koo (2012), Montardo et al. (2017) e Brandini (2017) para descrever a relação entre o
consumo e a internet.
O consumo é um fenômeno social complexo que está presente em todas as sociedades
como parte das experiências dos indivíduos. A perspectiva antropológica de Daniel Miller
(2007) sobre o consumo é baseada na relação entre o consumo de bens e a cultura material.
Miller (2007) define o consumo como usar algo de maneira que desapareça sua materialidade.
O autor defende a ideia de que as sociedades podem ser mais bem compreendidas quando se
analisam seus aspectos materiais, ou seja, sua materialidade. Para Miller (2007), a abordagem
tradicional do consumo baseada numa ideia negativa da materialidade como negação dos
aspectos culturais e espirituais de uma sociedade não é adequada. Ele acredita que os estudos
da cultura material, ou seja, de como os indivíduos consomem os objetos que são produzidos
no sistema capitalista pode fornecer informações importantes sobre a base cultural da
sociedade contemporânea.
O consumo faz parte da vivência dos indivíduos e através dele é possível observar
como o indivíduo interage com a sociedade em que vive e como ele confere significado aos
bens de consumo. De acordo com McCracken (2007), o significado cultural dos bens serve
para definir e orientar as experiências sociais destes indivíduos. Eles consomem certos bens
visando extrair deles um determinado significado cultural e assim afirmarem suas identidades
frente a um mundo culturalmente constituído. McCracken (2007) ressalta que os bens de
consumo têm um valor que vai além de seu caráter utilitário e valor comercial, os bens de
consumo carregam um significado cultural. Eles têm a capacidade de comunicar significados
dentro de uma sociedade.
Sob essa perspectiva, as mudanças nas formas de vida social ocasionadas pelos
avanços tecnológicos da sociedade moderna deram ensejo a formas de consumo com
322
características específicas que geram uma cultura de consumo particularizada por
comportamentos humanos específicos. Partindo das reflexões de Bairon e Koo (2012) sobre o
consumo digital, pode-se identificar alguns aspectos específicos desse tipo de consumo em
contraponto ao consumo tradicional. O consumo digital se difere do consumo tradicional em
seis aspectos: o contato com o objeto de consumo ocorre na forma digital; lojas virtuais
interativas; organização da informação por sistemas de busca on-line; decisão instantânea de
compra; comunicação interativa entre a empresa e o consumidor e consumidor como curador
da marca ou do produto.
No ambiente digital, o contato do consumidor com o objeto de consumo ocorre
virtualmente e não fisicamente. As plataformas sociais de interação, comunicação e
oferecimento de serviços permitem que os usuários interajam com os bens e serviços que
estão expostos de forma virtual. Essa relação do consumidor com o objeto na forma digital
propicia uma relação imaginativa com o objeto na construção de um significado e de um
desejo por esse objeto que difere da relação entre o objeto e o consumidor que existe no
consumo tradicional em que ele pode ver, tocar e experimentar o objeto de consumo
(BAIRON; KOO, 2012).
Montardo et al. (2017) afirma que o consumo digital está atrelado à comunicação
digital no sentido que ele faz parte das formas de interação social que são possibilitadas no
ambiente digital. Para os autores, o consumo digital pode ser analisado como um tipo de
consumo que se baseia no acesso, produção, distribuição e compartilhamento de conteúdo,
serviços e bens realizados por meio de plataformas digitais, podendo envolver o uso de
recursos financeiros ou não.
O consumo tradicional baseia-se na exposição física dos objetos em lojas físicas nas
quais o consumidor em potencial interage com o objeto de consumo e com o vendedor
humano. A experiência desse tipo de consumo é pautada pela linearidade entre o contato com
o objeto, os motivos que influenciam a decisão de compra e as informações obtidas sobre esse
objeto. Essas informações são organizadas de maneira linear porque envolvem os meios de
comunicação tradicionais que distribuem a publicidade que fornece as bases cognitivas e
emocionais para que o indivíduo tome a decisão de consumir algum produto ou uma marca
em especial.

323
No consumo digital, a interação com o objeto acontece virtualmente. As lojas on-line
expõem os objetos de consumo por meio de catálogos virtuais e os divulgam através das redes
sociais e seus influenciadores que atuam como garotos ou garotas-propaganda da marca no
ambiente digital. As informações que os indivíduos consumidores obtêm sobre esses produtos
e marcas são disponibilizadas através de sistemas de busca on-line, catalogadas e
hierarquizadas em termos de relevância em frequência de buscas.
No consumo tradicional, a decisão de consumir algo era baseada numa análise
cuidadosa e pragmática que envolvia a coleta e o processamento de informações sobre o
objeto de consumo e, em seguida, a decisão das ações necessárias para concretizar esse
consumo em termos de tempo, recursos financeiros, necessidade e deslocamento até o espaço
em que esses objetos se encontravam. No consumo digital, a decisão de compra acontece de
maneira instantânea e não mais como uma decisão pragmática e cuidadosa com base em
pesquisas de preço, qualidade e confiança por meio de catálogos de vendas, de vendedores
físicos ou de anúncios publicitários veiculados em meios de comunicação de massa como a
televisão, jornais ou rádio.
Nesse contexto, o mercado digital passa a investir em tecnologia para buscar
informações sobre os indivíduos a partir de suas atividades on-line para com isso formular
campanhas de marketing personalizadas sob a forma de anúncios publicitários com o intuito
de influenciar o comportamento dos consumidores. Brandini (2017) explica que o ambiente
digital de consumo é caracterizado pela participação ativa do consumidor por meio da
expansão da sociabilidade on-line. Conforme as ideias da autora, a midiatização digital
ocasiona uma mudança nas relações de consumo entre os consumidores e nas relações desses
consumidores com as marcas. A rapidez na circulação de informações aliada à liberdade de
expressão fomenta a “necessidade” do consumidor em emitir opiniões sobre as marcas e seus
produtos, além de interagir com outros consumidores on-line.
O consumidor deixa de ser um consumidor considerado passivo como no consumo
tradicional em que ele não tinha a iniciativa para tomar a decisão de consumir um produto ou
serviço por conta própria e dependia das comunicações publicitárias tradicionais. O
consumidor na era digital passa a ser ativo se tornando curador da marca porque ele constrói
uma relação pessoal com a marca do ponto de vista do sentido que ele atribui à marca baseado
na presença dela na internet. Ele compartilha conteúdos relacionados à marca, ele divulga os
324
produtos, ele comenta e os usa em suas postagens nas redes sociais (BAIRON; KOO, 2012).
Montardo (2016) explica que o comportamento comunicativo do consumidor com a marca e
os produtos integra a rede de comunicações e informações que circulam no meio digital sobre
essa marca ou esses produtos e isso influencia o comportamento de outros consumidores em
potencial.
Constatou-se que o consumo digital propicia um novo sistema de significados culturais
com características distintas daquelas definidas nas práticas do consumo tradicional. A prática
de consumir no ambiente digital proporciona uma interação mais ativa dos indivíduos com
outros consumidores, as marcas, os bens materiais, os serviços, as informações e as
necessidades de consumo mediadas pelas redes sociais digitais devido à expansão do uso de
aparelhos tecnológicos móveis conectados à internet.
Deste modo, os indivíduos constroem um sistema de códigos culturais por meio de sua
interação com os objetos virtuais, as marcas e outros consumidores. O sistema de códigos
fomentado pelo consumo digital estrutura as relações sociais advindas dessa prática de
consumo e refletem o comportamento comunicativo do consumidor digital. A participação
ativa do consumidor digital o torna um curador da marca porque ele atua como um divulgador
dela ao comentar, recomendar, criticar e compartilhar seus produtos e/ou serviços no
ambiente digital.
Portanto, a investigação antropológica do consumo digital contribui para trazer à luz as
engrenagens socioculturais das práticas de consumo mediadas pelas plataformas digitais de
serviços e as redes sociais digitais.

Palavras-chaves: Antropologia do consumo. Tecnologias digitais. Consumo digital.

REFERÊNCIAS

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tradicional. Signos do consumo, v. 4, n. 1, 2012, p. 125-134. Disponível em
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BRANDINI, Valéria. O consumo de causas sociais na era da midiatização digital. Ação
Midiática – Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura., [S.1.], p. 273-289, dez. 2017.
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https://www.scielo.br/j/rae/a/v4jhqtDxxrkmsrSkmKyjM8p/?lang=pt>. Acesso em 01 de dez.
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MILLER, Daniel. Consumo como cultura material. Horizontes Antropológicos, Porto


Alegre, n. 28, p. 33-63, jul./dez. 2007. Disponível em <
https://www.scielo.br/j/ha/a/68xnZMhnd73FV347vdBrvSH/?lang=pt>. Acesso em 14 de out.
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MONTARDO, Sandra. Consumo digital e teoria de prática: uma abordagem possível. Revista
FAMECOS, v. 23, n. 2, p. ID22203, 21 mar. 2016. Disponível em <
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usos da plataforma de streaming de games Twitch. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, v.
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de dez. de 2021.

326
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 2 - CULTURA, POLÍTICA E DESIGUALDADES NOS ESTUDOS COM MÍDIAS DIGITAIS

A DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL DE CAPITAL CULTURAL ENTRE


DISCENTES DO ENSINO MÉDIO DA EA/UFPA: UM ESTUDO SOBRE
ACESSO DIGITAL NO CONTEXTO PANDÊMICO

Carolina Rodrigues de Souza154


Izabela da Silva Jatene155
Vergas Vitória Andrade da Silva156

O papel da educação como fator de estratificação social ganha grande destaque a partir
do estudo que ficou conhecido como Relatório Coleman (1966). Segundo esse relatório, os
fatores extraescolares explicam mais as desigualdades observadas no desempenho dos (as)
alunos(as) do que fatores intraescolares (COLEMAN et al., 1966), ou seja, o acesso à
educação como os resultados escolares estão associados de maneira direta às características
socioeconômicas e culturais dos(as) estudantes. Neste sentido, a escola é vista como uma
instituição que acaba por cooperar de maneira direta nas grandes divisões e desigualdades,
uma instituição que contribui para a conservação das desigualdades e que legitima os
privilégios sociais. Tais privilégios sociais estão associados ao Capital Cultural, conceito
empregado no estudo das desigualdades escolares o qual é “transmitido pela família às
crianças e da esperança em condições objetivas de que realmente possa acontecer” (ALVES,
2017, p. 131).

O capital cultural, conceito formulado por Bourdieu e Passeron (2009; 2015) irá
sustentar este trabalho. Esta noção é importante, pois revela que as “formas legítimas de
cultura funcionam como uma moeda desigualmente distribuída que dá acesso a muitos
privilégios” (LAHIRE, 2003, p. 983). Partindo dessa prerrogativa, é de fundamental
relevância realizar um estudo que vise movimentar conceitos, assim como capital cultural,
ação pedagógica, habitus, campo, violência simbólica, ideologia do dom, com vistas a
discutir um tema tão caro na atual conjuntura, qual seja: as características socioeconômicas e

154
Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, csrodriguesufpa@gmail.com
155
Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, izabelajatene@gmail.com
156
Doutorado em Ciências Sociais, Escola de Aplicação da UFPA, vergas@ufpa.br
327
culturais dos estudantes da 1ª série do ensino médio da EA/UFPA durante a pandemia da
Covid-19.
A propagação da epidemia do coronavírus, que se abateu sobre os diferentes países do
mundo, no início do ano de 2020, trouxe consequências inéditas para a vida em sociedade
(CARVALHO, 2020; HARVEY, 2020; SANTOS, 2020; ŽIŽEK, 2020). Enquanto um
evento macro, global, com velocidade e expansão recorde, a Covid-19 interferiu nas lógicas
de reprodução dos distintos sistemas sociais, das mais variadas formas, impondo diversos
desafios de natureza sanitária, política e econômica. Com base nessas perspectivas, este
trabalho apresenta o seguinte problema: as desigualdades educacionais se reproduzem em
consequência do contexto pandêmico? Seguimos uma linha teórica que afirma que, as
desigualdades de oportunidades educacionais influenciam a reprodução das desigualdades
sociais, por ser a educação um importante meio de ascensão social e econômica, porém, a
escola é uma instituição que legitima apenas os valores e saberes reconhecidos pela classe
dominante. Para isso, trabalhamos com a hipótese de que o contexto da pandemia ampliou a
distribuição desigual de capital cultural.
Esse estudo tem como base teórica o arcabouço das discussões em torno das relações
entre origem social e capital cultural. Por isso, nosso referencial teórico se alinha às
discussões dos autores Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2009, 2015). Para entender as
desigualdades educacionais que emergem no contexto pandêmico na EA/UFPA daremos
primazia ao conceito de capital cultural. Afinal, como argumenta Bourdieu (2015, p. 81), “a
noção de capital cultural impõe-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar
conta da desigualdade de desempenho escolar”. Com base nesta perspectiva, realizamos uma
pesquisa de natureza quantitativa que consistiu em “criar uma base de dados repertoriando
fatos sociais observados em pesquisa de campo, em explorar essa base com um auxílio de um
programa de tratamento estatístico, para finalmente interpretar os resultados de um ponto de
vista sociológico” (SELZ, 2015, p. 204).

Por isso, a técnica de pesquisa utilizada foi o questionário cujo interesse foi “reunir
uma grande quantidade de informação junto a um número importante de indivíduos [com o
objetivo de] medir a frequência de características (situações, comportamentos, opiniões e
atitudes) em uma população dada” (PARIZOT, 2015, p. 85). Neste sentido, nossa proposta foi

328
analisar dados e estatísticas advindas de dois questionários composto por questões fechadas:
um aplicado aos alunos/as da 1ª série do ensino médio da EA/UFPA e outro aplicado a seus
pais e/ou responsáveis, os quais foram respondidos entre os meses de janeiro a abril de 2021,
remotamente, via plataforma virtual Google Forms. A amostra do questionário 1: Capital
cultural dos/as discentes da 1ª série da EA/UFPA foi composta por 83 estudantes e a do
questionário 2: Capital cultural dos pais/responsáveis dos/as discentes da 1ª série da
EA/UFPA composta por 61 pais/responsáveis.

O ponto de partida de nossa análise parte da afirmativa segundo a qual a crise sanitária
da Covid-19, acentuou mais ainda as desigualdades sociais, comprometendo a renda de
milhares de brasileiros, intensificando as desigualdades escolares e tornando vulneráveis
socioeconomicamente famílias que já se encontravam em situação de vulnerabilidade, como
os trabalhadores informais e famílias que têm estudantes matriculados na rede pública da
educação básica. Segundo a abordagem que tomamos como referência, as desigualdades
podem ser consideradas “distinções que nos hierarquizam, de natureza social, que revelam
uma situação de injustiça que podem e devem ser superadas. São, portanto, estratificações
sociais decorrentes das estruturas de poder econômico e político” (ARAÚJO, p. 114, 2019).

Através da leitura e análise dos questionários, observamos que o contexto das


desigualdades econômicas, sociais e educacionais se tornam evidentes, a começar pela
realidade social destes (as) estudantes, uma vez que a maioria reside em bairros periféricos de
Belém, mais especificamente no entorno da EA/UFPA, o bairro da Terra Firme. Segundo
nossos dados, as famílias possuem, em sua maioria, renda de um a dois salários-mínimos.
Quanto a situação de emprego dos pais/responsáveis, percebemos um muitos trabalham na
informalidade. Entretanto, os dados que queremos destacar aqui são referentes às
desigualdades de acesso digital durante o contexto pandêmico. Tal contexto, impõe uma
modalidade de ensino a qual limita a presença apenas da internet, com uso de computadores,
tablets ou celulares, cuja distribuição é desigual no Brasil e, sobretudo, no Norte.

Podemos ver que isto se amplia para a realidade dos/as discentes da EA/UFPA, no
contexto da pandemia da Covid-19, no exercício do Ensino Remoto Emergencial, onde 46,5%
desses estudantes não possuem computador em casa, 15,7% acessam a internet através de rede
móvel no celular e 7,2% não têm internet em casa. Aqui vale uma ressalva importante: apenas
329
os alunos com acesso à internet responderam ao questionário dessa pesquisa. Portanto, os
dados colhidos refletem uma realidade específica. Por isso, a realidade dos estudantes que não
dispõe da conexão de internet pode ser diferente da expressa nesses resultados. Há uma
disparidade que separa e segrega estudantes que têm computadores e que, assim, são
privilegiados para assistir as aulas remotas em um equipamento considerado mais adequado,
há, por outro lado, estudantes que dispõe apenas de um celular, ferramenta limitada, cuja
qualidade de leitura e escrita é bastante reduzida quando comparada a m computador de mesa
ou um notebook.

Com isso, esta análise permitiu concluir que a hipótese de que o contexto da pandemia
ampliou a distribuição desigual de Capital Cultural se confirmou, pois precarizou a relação
professor- aluno, dificultando mais ainda a incorporação de capitais culturais que são
fundamentais para o êxito escolar do/a aluno/a. Com relação ao acesso digital, observamos
que há uma disparidade de desigualdades no contexto das aulas remotas na EA/UFPA, pois,
no que diz respeito ao campo da educação, as desigualdades com relação ao uso dessas
tecnologias mostram-se de extrema importância no contexto pandêmico, uma vez que
necessita-se de uma nova modalidade de ensino e o acesso a tais tecnologias, plataformas
digitais, torna-se desigual para consideráveis números de estudantes.

Há muito tempo estudos vêm mostrando que há uma forte ligação entre a origem
social dos(as) alunos(as) e as desigualdades escolares, portanto, a crise sanitária decorrente da
pandemia de Covid- 19 no Brasil, agravou as desigualdades sociais lançando abaixo a renda
de milhares de brasileiros e tornando desigual a distribuição de capitais culturais, o que acaba
contribuindo intensamente para o fracasso escolar dos(as) estudantes, dado que a escola,
como uma instituição que mantém e legitima essas desigualdades e privilégios sociais,
valoriza apenas a cultura dos saberes dominantes. Sendo assim, as desigualdades educacionais
se reproduzem em consequência do contexto pandêmico.

Palavras-chaves: Capital Cultural; Desigualdades escolares; Acesso Digital; Contexto


pandêmico.

330
REFERÊNCIAS

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331
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 2 - CULTURA, POLÍTICA E DESIGUALDADES NOS ESTUDOS COM MÍDIAS DIGITAIS

DE QUAL MUSEU ESTOU FALANDO? UMA EPISTEMOLOGIA DO


MUSEU A PARTIR DA ANÁLISE INTERPRETATIVA DAS
EXPERIÊNCIAS MUSEAIS MEDIADAS POR TECNOLOGIAS
DIGITAIS

Gabriela da Costa Araújo157

Este trabalho versa, de forma preliminar, sobre epistemologia do museu Municipal


Francisco Coelho158, da cidade de Marabá159, estado do Pará. Através de uma análise
interpretativa das experiências museais, entre os visitantes160 e objeto museal, mediada pelas
tecnologias digitais. A proposta é refletir, a partir dessas experiências, como este museu 161 se
caracteriza, entre os significados e significantes presentes nessa relação.
Atualmente vislumbramos na sociedade uma constante reconfiguração dos modos de
comunicação, no qual, é possível verificarmos novas formas de relações sendo criadas e
recriadas, constantemente. A interatividade entre os sujeitos compreendeu-se, por muito
tempo, a partir de relações interpessoais, contudo, atualmente essas relações são
intermediadas por novos meios de comunicação, gerados a partir de tecnologia digitais, que
estão rompendo as barreiras das sociabilidades e comunicação.
Esse modelo de interatividade reconfigurado a partir da mediação tecnológica,
proporcionou aos sujeitos novas experiências, que percorrem campos como: educacional,
econômico, social, político, histórico e cultural. Logo, as tecnologias ganharam espaço na

157
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, e-
mail: gabriela.araujo@ifch.ufpa.br .
158
O museu Francisco Coelho 158, foi inaugurado em 10 de agosto do ano de 2020, sendo instalado no Palacete
Augusto Dias158, um dos prédios que remontam a história e a memória da cidade, o mesmo foi tombado na
década de 90, possuindo 83 anos de existência.
159
Cidade localizada na mesorregião do Sudeste Paraense, estando no ponto de encontro entre os rios Itacaiúnas
e Tocantins. Marabá está por volta de 485 km de distância da Capital Paraense.
160
Para a produção desta pesquisa será trabalhado com os alunos de ensino médio.
161
O museu organiza-se em setores, que rememoram por meio de uma linha do tempo os ciclos econômicos e
políticos da cidade; a promoção de uma caverna realista e interativa; um rio virtual com peixes “nadam” pelas
abaixo dos pés que ali circulam; e um holograma (imagem tridimenssional) de um indígena local, convidando o
público a conhecer a sua história.
332
vida das pessoas, estando presente em diversos setores, sendo assim, perceptível a sua
importância na vida cotidiana dos sujeitos, e nos museus essa influência não está sendo
diferente.
A vivência e o estudo do patrimônio cultural e dos museus adquiriram outras
perspectivas de abordagens e possibilidades de imersão com a ampliação dos usos
das tecnologias digitais e de conexão em rede. Esta aproximação, cada vez mais
estreita e ao mesmo tempo vasta, mobiliza iniciativas crescentes de pesquisas
científicas e de experiências em espaços museológicos, que passam a ser vistos
também como ambientes interconectados, espaços de memória expandidos. (SILVA;
JESUS, 2019, p. 163).

A sociedade, sendo marcada pela influência tecnológica, caracteriza-se pela formação


de valores e experiências de forma dinâmica. Logo, caracterizando-se como uma sociedade
moderna, a qual pode ser compreendida, “[...], por definição, sociedades de mudança
constante, rápida e permanente. [...]” (HALL, 2006, p. 14). Desse modo, ao relacionar os bens
culturais, como o acervo do museu às tecnologias, é necessário cuidado para que a
valorização da efemeridade não ultrapasse aos bens culturais. Ressaltando, os desafios que os
museus podem enfrentar na implementação da virtualização.
Logo, com a inserção dessas tecnologias, o museu precisa ter a dimensão de não
transformar os seus acervos em objetos de consumo imediato, com tempo determinado, uma
vez que, o bem cultural “[...] virtual ou virtualizado expande o saber, para tempos e espaços
que coexistem, que se encontram e que permitem outros encontros, busca eterna da
humanidade, que se vê também atingida pelas transformações aceleradas das vivencias
contemporâneas, [...]” (SILVA, 2019, p. 270).
O processo de virtualização no museu Municipal Francisco Coelho, através de
ferramentas tecnológicas que são utilizadas pelo museu nas suas exposições, como ferramenta
de mediação, deve permitir ao visitante, não só a experiência de uma nova realidade de
interação com os objetos, mas, proporcionar aos visitantes, experiências de assimilação e
reinterpretação. Assim, para percebermos/interpretarmos/compreendermos as experiências
museológicas presentes no museu Municipal Francisco Coelho, a partir das experiências
vividas entre os visitantes e os objetos museais, que são intermediados por tecnologias
digitais, precisamos observar e refletir sobre como os visitantes estruturam os seus sentidos a
partir dessa relação. E, para com isso podermos conceber o processo classificatório que se dá

333
a partir daquela realidade, e como está classificação se expressará neste visitante e no seu
cotidiano.
Dessa maneira, em busca da produção deste conhecimento, objetivamos conduzir este
trabalho ao modo que Clifford Geertz (2013) já afirmava ser a etnografia, “a arte de
descrever”. Portanto, realizaremos uma etnografia descritiva que nos ajude a percebermos e
interpretarmos as minúcias presentes no campo, contudo, sem nos prendermos num
“detalhismo obsessivo” (MAGNANI, 2009). Mas, realizando uma descrição que ajude e
facilite no processo de compreensão dos significados existentes.
Significados que são constituintes da cultura (GEERTZ, 2013), e produzidos pelos
sujeitos, no qual, estes significados são percebidos/encontrados nas ações destes sujeitos.
Assim, com a etnografia descritiva, poderemos aprofundar a nossa percepção, interpretação e
a compreensão, para enfim, podermos nos aproximar da cultura destes sujeitos, e
consequentemente, da sua sociedade.
[...] Geertz demonstrou para os antropólogos (Gadamer o faz de modo mais geral e
sistemático) que a compreensão (Verstehen) não está baseada na empatia ou em
outras introspecções psicológicas, mas sim num processo de justaposição, de
esquemas de referência nativos com aqueles do analista, o que é, também, um
processo de comunicação. Esta concepção da tarefa etnográfica (e antropológica)
chama a atenção para expressões idiomáticas, meios, modos, usos figurativos e
canais de comunicação. [...] (FISCHER, 2018, p. 59).

Diante do exposto, baseando-se na antropologia interpretativa, o objetivo é


realizarmos uma percepção atenta à relação do visitante com o objeto museal. Direcionando
as observações, especialmente, a interpretação dos comportamentos, das interações, dos
silêncios, e das falas relacionadas ao objeto, pois, serão através dessas relações que as “teias”
culturais vão sendo projetadas, e apresentadas a partir de seus códigos e símbolos. Logo, “[...]
a cultura não é algo preso dentro das cabeças das pessoas, mas é incorporada em símbolos
públicos, símbolos através dos quais os membros de uma sociedade comunicam sua visão de
mundo [...]. ” (ORTNER, 2011, p. 422).
E, por isso, com base na antropologia interpretativa, ressaltamos a importância de
realizarmos interpretações que procurem compreender, não somente os significados, mas,
também como os sujeitos criaram esses significados, portanto, aprofundando-se em uma
leitura interpretativa das estruturas significantes na ação observada, na linguagem e símbolos,
através de uma descrição densa. Pois “[...] Até mesmo as experiências subjetivas são

334
amplamente mediadas pela linguagem, pela participação social (as reações dos outros) e por
símbolos culturais [...]” (FISCHER, 2018, p. 57). Sendo assim, a busca pela interpretação
profunda envolve a compreensão dos elementos significantes e significativos regentes de uma
cultura e suas expressões.
Portanto, o desenvolvimento de uma etnografia através de uma descrição densa
(GEERTZ, 1998), será necessário para que consigamos alcançar as particularidades, os
significados que estão por trás da “superfície”, e, assim, procurando não cair no erro de
interpretar somente a “superfície” da relação objeto e visitante, mas ir mais profundamente
nessa interpretação, com uma descrição microscópica das relações e eventos de que
intermediam o local de pesquisa (campo).
[...] a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é
um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível —
isto é, descritos com densidade. (GEERTZ, 2013, p. 10).

Todavia, ressaltamos que dentro da relação pesquisador e sujeitos da pesquisa, aqui


não se objetiva realizar uma interpretação de “mão única” sobre os sujeitos, mas sim, uma
transação de diálogos, no qual, fiquem evidentes no texto etnográfico, as vozes dos sujeitos,
assim como, a nossa como pesquisadora. Considerando, que o desenvolvimento do
conhecimento ocorre a partir de uma divisão de produção, entre os sujeitos e a pesquisadora,
e, portanto, relacional. Tendo em vista que, a antropologia “[...] não é um estudo de, mas um
estudo com.[...]. ” (INGOLD, 2011, p. 14, grifo nosso), portanto, uma produção de
conhecimento em conjunto.
Assim, compreendemos que a produção do conhecimento desenvolvida a partir deste
trabalho, não envolve em capturar o mundo dos sujeitos, mas, em apresentar na escrita deste
trabalho a relação do meu mundo com o dos sujeitos. Compreendendo, ainda, que apesar do
aparato metodológico da “descrição densa”, nunca alcançaremos, a dimensão total do discurso
falado e dos comportamentos.
Com isso, é importante compreendermos a representatividade que os sujeitos fazem
das relações que ocorrem no/com o museu, e principalmente com os objetos museais
intermediados pela tecnologia. Pois, é necessário nos aproximarmos da representatividade que
estes sujeitos fazem dessas experiências que ocorrem entre si, com o museu, com os objetos
museais, para chegarmos à compreensão das interferências que estes objetos fazem aos

335
visitantes. Sendo assim, realizando uma observação etnográfica, na qual ocorra um “[...]
desprendimento de tempo e vontade de vivenciar o contexto do espaço pesquisado,
considerando plenamente o modo como acontecem as relações sociais, respeitando os
costumes e cultura local. [...]”, (SILVA; RODRIGUES, 2014, p. 30).
Contudo, sabemos que não é um processo fácil, tendo em vista que “[...] para entender
as concepções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e busquemos ver
as experiências dos outros com relação à sua própria concepção de “eu”. [...]” (GEERTZ,
1998, p. 91). Por isso, concebemos a importância de nos desvencilharmos de preconcepções e
olhares egocêntricos. Pois, para cada cultura os valores serão diferentes, assim como, pessoas
aspiram diferentes formas de vida.
À vista disso, quando nos baseamos na antropologia interpretativa para o
desenvolvimento deste trabalho, é com o objetivo de que através da etnografia descritiva,
consigamos “assimilar e explicitar” as experiências vivenciadas no museu. Através de
conversas, observações, convívio direto no museu e com os sujeitos, pois, “[...]. Nós fazemos
nossa filosofia fora de casa. E nisto, o mundo e seus habitantes, humanos e não-humanos, são
nossos professores, mentores e interlocutores. ” (INGOLD, 2011, p.15). E, com isso,
alcançando particularidades que não seria possível sem a participação ativa no campo, assim
como, na escrita (OLIVEIRA, 2000).
Consequentemente, buscamos realizar um trabalho que se produza, com base na
concepção de um trabalho que intercalasse o “estar lá”, no museu, presenciando as dinâmicas
promovidas, mas também estar dentro destas dinâmicas para compreendê-las de forma mais
particular, assim como, o “estar aqui”, analisando; interpretando e produzindo sobre as
informações coletados (GEERTZ, 2005).
Contudo, concebemos que as mudanças durante a pesquisa ocorrerão, e que a
discussão trazida aqui, não é o determinante, mas sim, um “pontapé” inicial para uma reflexão
maior. Portanto, durante a pesquisa os caminhos serão reinventados, a cada necessidade que
pesquisa apresentar (NADER, 2011). Sendo assim, como antropóloga, temos um trabalho
contínuo que deve ser atento às constantes significações e ressignificações presentes no
campo, no nosso referido caso, o museu.
E, sabendo ainda, que a compreensão de museu, vai muito além de um local de
exposição, relacionada a perspectivas históricas e culturais, porém, é um espaço que possui
336
distintas funcionalidades, que são possíveis, devido os diferentes usos, sentidos, significações/
ressignificações, interações que são promovidos pelo museu e/ ou seus visitantes, e refletem
na formação individual e coletiva de uma sociedade.
Desse modo, quando direcionamos o “olhar interpretativo” ao museu Municipal
Francisco Coelho e a sua associação as tecnologias digitais, estamos buscando identificar as
funcionalidades advindas dessa associação, que significam e identificam esse museu, para
compreendermos de “Qual estamos falando?”.

Palavras-chaves: Objetos Museais e Tecnologias digitais. Antropologia Interpretativa.


Epistemologia.

REFERÊNCIAS

FISCHER, M. Da antropologia interpretativa à antropologia crítica. Anuário


Antropológico, 8(1), 2018, p. 55–72. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6300. Acesso em: 02 de
ago. 2022.

GEERTZ, Clifford. “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do entendimento


antropológico. In: O saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
Petropolis: Vozes, 1998, p. 85-107.

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antropólogo como autor. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2005, p. 11-39

______________. Estar aqui: De quem é vida, afinal? In: Obras e vidas: o


antropólogo como autor. 2º ed. Rio de Janeiro: UFRJ. 2005, p. 169-193.

______________. A interpretação das culturas. In: Uma Descrição Densa: por uma
Teoria Interpretativa da Cultura- lº ed., [Reimpr.] - Rio de Janeiro: LTC. 2013 [1926], p.
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HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. 11º ed. Rio de Janeiro: DP&A,
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INGOLD, Tim. “Anthropology is not Ethnography.” In: ______. Being Alive. Tradução de
Caio Fernando Flores Coelho e Rodrigo Ciconet Dornelles. Routledge: London and New
York, 2011, p. 229-243. Disponível em:

337
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1862649/mod_resource/content/1/Antropologia_nao
_e_etnografia_-_por_Tim_Ingold(1).pdf . Acesso em: 04 de ago. 2022.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. No meio da trama: A Antropologia urbana e os desafios


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n. 60, 2009, p. 69-8. Disponível em: http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/spp/n60/n60a05.pdf.
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NADER, Laura. Ethnography as theory. In: Journal of Ethnographic Theory, 1(1), 2011. p.
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OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: O
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ORTNER, Sherry. 2011. Teoria na Antropologia desde os anos 60. Tradução de Cecília
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RODRIGUES, Carmem Izabel; SILVA, Luiz de Jesus e MARTNS, Rosiane Ferreira (Orgs.).
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https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle/prefix/831. Acesso em: 15 de dez. 2020.

338
GT 5 - ENTRE O ONLINE E OFFLINE:
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DA PESQUISA VIRTUAL
SESSÃO 2 - CULTURA, POLÍTICA E DESIGUALDADES NOS ESTUDOS COM MÍDIAS DIGITAIS

#DESCANSEEMPAZOLAVO: MAPEAMENTO DE IDENTIDADES


COLETIVAS DA NOVA DIREITA NO TWITTER EM TEMPOS DE
ESFERAS PÚBLICAS DISRUPTIVAS

Bruno Anunciação Rocha162


Nathalia Guimarães e Sousa163

As plataformas digitais são constituídas por algoritmos que personalizam a experiência dos
seus usuários, colocando-os em bolhas identitárias e informacionais (PARISER, 2012) que
dificultam a comunicação livre e que podem estimular processos de criação de identidades
violentas, de medo e ódio do diferente. Esse fenômeno de personalização e fragmentação da
experiência dos usuários é possível graças a tecnologias automatizadas de coleta e processamento
massivos de dados (big data), capazes não apenas de constatar tendências e descrever
comportamentos, mas também de modulá-los sem prejudicar uma aparência de liberdade para o
usuário (ROUVROY; BERNS, 2018). Por meio dessas tecnologias, as plataformas são capazes de
otimizar a utilização da atenção dos usuários (WU, 2016) como produto disponível para seus
clientes - outras empresas, grupos de interesse, partidos políticos ou até mesmo Estados.
Tendo em vista essas características das plataformas digitais, convém tratá-las não como
estrutura de ação, mas como possuidoras de um certo tipo de agência (MILAN, 2015). Seu
funcionamento faz com que elas sejam “estabilizadores de confiança, garantias práticas e
simbólicas de que suas avaliações são justas e precisas, livres de subjetividade, erro ou tentativas de
influência.” (GILLESPIE, 2018, p. 106–107).
Esse modo de funcionar das plataformas está relacionado com a ocorrência de “enclaves
algorítmicos” formados por grupos de indivíduos que, em suas constantes interações com os
algoritmos, “se esforçam para criar uma (assim percebida) identidade online compartilhada para
defender suas crenças e proteger seus recursos de ameaças reais ou imaginárias” (LIM, 2017, p. 12
tradução nossa). Nesse sentido, usuários e plataformas, agências humanas e maquínicas, convergem
para consolidação de uma cultura de ranqueamento, entendida como processo de hierarquização e

162Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). bruno.a.rocha@gmail.com
163 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). nathaliags7@outlook.com

339
modulação da visibilidade de argumentos, reivindicações, valores, identidades, visões de mundo
etc., do qual participam usuários espectadores, criadores de conteúdo e a própria plataforma.
(RIEDER; MATAMOROS-FERNÁNDEZ; COROMINA, 2018).
Nos últimos anos, pesquisas acadêmicas e investigações jornalísticas constataram indícios
de que os resultados da curadoria algorítmica de plataformas digitais dão maior visibilidade a
conteúdo e atores alinhados à nova direita (HUSZÁR et al., 2021; MAI, 2020; RIBEIRO et al.,
2019). Partindo desses achados, propomos investigar os elementos que compõem a identidade dessa
nova direita, especificamente no Twitter e com recorte no Brasil.
Coletamos 223021 tweets de 125147 usuários do Twitter a partir da busca pelo termo
“Olavo”, que se refere a Olavo de Carvalho, falecido em 24 de janeiro de 2022. Considerado um
dos gurus da nova direita no Brasil, a morte de Olavo de Carvalho mobilizou usuários do Twitter
que criaram, compartilharam e curtiram conteúdos críticos e elogiosos ao ideólogo.
As perguntas que guiam a pesquisa são: como os públicos presentes no twitter se
organizaram em torno da morte de Olavo de Carvalho?; quais são as principais características do
grupo simpático às ideias de Olavo de Carvalho?
Para analisar os dados coletados, utilizamos técnicas de análise de redes sociais, com intuito
de identificar comunidades. Em seguida, selecionamos os 100 perfis mais relevantes de acordo com
o valor do pagerank e os classificamos, manualmente, de acordo com o teor de suas manifestações
sobre a morte de Olavo de Carvalho, com intuito de selecionar apenas os perfis elogiosos a ele. Por
fim, lançamos mão das abordagens metodológicas propostas por Crosset et al (2018) com intuito de
identificar, nos traços digitais, elementos constitutivos de identidades coletivas em torno das quais
os perfis da nova direita elogiosos a Olavo de Carvalho se mobilizam.
Para desenvolver esta pesquisa utilizaremos as noções de “qualitative indicators” e de
“digital traces” de Valentine Crosset, Samuel Tanner e Aurélie Campana (2019), como
metodologia voltada para a análise de dados no Twitter. Tal metodologia pressupõe a
construção de um conjunto de indicadores qualitativos que definirão a nossa amostragem.
Esses indicadores são desenvolvidos a partir da “recontextualization” das mensagens
postadas no Twitter com o intuito de identificar a sua natureza e detectar elementos que se
conectam com o tema desta pesquisa.
A “recontextualization”, segundo Crosset, Tanner e Campana (2019), implica colocar
em contexto os “digital traces” deixados pelos usuários do Twitter. Por “digital traces”
340
compreende-se uma série de textos, imagens, interações, entre outros, dividido em dois
aspectos: o primeiro se refere à detecção e registro de uma ação online e o segundo se trata de
uma ferramenta utilizada para produzir e detectar essa ação. Nesse sentido, os traços digitais
são, ao mesmo tempo, os rastros deixados pelos usuários do Twitter e o caminho a se
percorrer para selecioná-los e analisá-los.
Com o intuito de conferir materialidade e transmitir um significado, os traços digitais
possuem três elementos diferentes que se entrecruzam: a imbricação, a inscrição e a
representação. O primeiro é a imbricação de traços de grandes redes de atores, valores e
tecnologias que existem tanto online quanto offline e que variam de um para o outro
dependendo do sistema de valores mobilizados.
O segundo é a inscrição, ou seja, são os registros feitos pelo usuário ou por processos
automatizados que tornam os traços visíveis. A partir daí é possível criar um perfil digital que
conecta arranjos técnicos (Twitter, Facebook, Instagram que fornecem ferramentas para
transmitir uma mensagem), políticos (instrumentalização da internet para difundir ideologias
através de diferentes técnicas discursivas) e econômicos (restrições e oportunidades de
mercado que influenciam nos comportamentos). Já o terceiro corresponde ao processo que
tem como intuito dar visibilidade a um sistema de valores, empregando ferramentas de
enunciação e visualização, chamado de representação.
Desta forma as análises serão feitas a partir dos seguintes traços: Traço 1:
características do perfil (análise do nome, da descrição, dos ícones e dos links), Traço 2:
tweets (análise das mensagens), Traço 3: interações online (identificação de grupos na rede) e
Traço 4: imagens e memes (análise da foto de perfil e do banner).
Os perfis analisados foram selecionados em um universo de 223021 tweets de 125147
perfis. A coleta dos dados foi feita por meio do pacote academictwitterR164. Desse universo,
selecionamos os 100 perfis mais relevantes de acordo com o valor do pagerank, que é uma
métrica utilizada em análise de redes para identificar a importância dos nós 165 em sua rede
(RECUERO; BASTOS; ZAGO, 2018). Em seguida, classificamos manualmente esses 100
perfis de acordo com o teor de suas manifestações sobre a morte de Olavo de Carvalho, com
intuito de selecionar apenas os perfis elogiosos a ele. Cinco perfis não foram classificados,

164 https://rdrr.io/cran/academictwitteR/
165 Na rede gerada para este trabalho, os nós são os perfis e as arestas/laços, menções ou respostas.
341
pois as informações obtidas não foram suficientes para tanto. Dos 95 perfis classificados, 31
foram identificados como elogiosos a Olavo de Carvalho. Esses 31 perfis e seus respectivos
174 tweets foram objeto da análise exposta a seguir.
Durante a análise dos traços 1, 2 e 4, percebemos que os achados poderiam ser melhor
tratados em conjunto, categorizados em quatro grandes grupos: religiosidade e cristianismo;
patriotismo, conservadorismo e anti-esquerdismo. Cada um desses traços, com sua
materialidade própria, parece fazer referẽncia a esses grupos. Por sua vez, o traço 3 precisou
ser tratado individualmente, uma vez que ele diz respeito às interações cuja visualização e
interpretação dependem do auxílio de técnicas da análise de redes sociais.
Um dos achados da pesquisa diz respeito ao número pequeno de olavistas nos tweets e
perfis analisados. Dos 100 perfis mais relevantes na rede, apenas 31 são elogiosos a Olavo de
Carvalho. Desses 31 perfis olavistas, 28 apresentam padrões de interação que permitem sua
classificação, por meio do cálculo de modularidade, dentro de um mesmo grupo. Trata-se de
um indício de que olavistas tendem a interagir mais entre si do que com não-olavistas.
As análises realizadas com base nos traços digitais nos levaram a identificar
características marcantes no que diz respeito à nova direita brasileira e ao “olavismo” como
fenômeno cultural e político. Destacamos elementos como a religiosidade e o cristianismo
como fortes marcas que constituem as identidades desses atores, evidenciando traços
particularmente relacionados a valores morais e de costumes, em especial, no reconhecimento
da família tradicional. Além disso, o patriotismo também é um componente constitutivo
dessas identidades, revelando a importância de símbolos como a bandeira, o hino nacional e
as cores verde, amarela, azul e branca que foram, por sua vez, apropriados por parte dos perfis
analisados como forma de manifestar suas inclinações tanto políticas, quanto ideológicas.
Nessa perspectiva, o conservadorismo também é refletido nesses perfis ao retratar uma
retórica nacionalista em defesa de um ideal unificador e homogeneizador, ancorado nas bases
de um autoritarismo social, anticomunista e antiesquerdista. Ressaltamos, portanto, que tais
perfis estão articulados em torno da morte de Olavo de Carvalho, apontando para as íntimas
relações que interligam esses atores.
Esses achados vão ao encontro da literatura especializada sobre a nova direita usada
como referência da pesquisa (CEPÊDA, 2018; CHALOUB, PERLATTO, 2015; CODATO,
BOLOGNESI, ROEDER, 2015; COOPER, 2017; LACERDA, 2018), confirmando os
342
mesmos traços identitários dos atores políticos identificados por meio de outras abordagens
metodológicas. Assim, não obstante as limitações inerentes ao desenho de pesquisa utilizado
neste trabalho, encontramos indícios de que as abordagens de análise de redes e de
investigação de traços digitais são tão confiáveis quanto abordagens metodológicas
tradicionais.
Sobre as limitações do trabalho, é importante ressaltar o reduzido número de perfis
analisados e a concentração num único evento, isto é, a morte de Olavo de Carvalho. Para
testar quão generalizáveis são as conclusões sobre os elementos identitários da nova direita
encontradas neste trabalho, convém expandir a análise para incluir um número maior e mais
representativo de perfis que se comunicam sobre eventos distintos. Tal empreitada não foi
possível nos limites deste trabalho, feito para avaliação final de disciplina e que poderá ser
ampliada futuramente.
Por fim, cabe destacar que algumas análises a serem feitas envolvem os tipos de perfil
selecionados nesta análise. Nos próximos passos desta pesquisa, pretendemos ampliar as
considerações aqui observadas e concentra-nos em novos marcadores, a fim de revelar quais
perfis são verificados e quais não são; o número de perfis fakes, de pessoas de públicas,
anônimos e de organizações, como os jornais e instituições governamentais, por exemplo; os
links apresentados por esses perfis nas descrições que levam para outros lugares como sites
particulares, YouTube, Telegram, entre outros, e verificar a relevância dessas informações
para a construção de identidades coletivas.

Palavras-chaves: Nova Direita. Identidade coletiva. Métodos Digitais.

343
REFERÊNCIAS

CEPÊDA, V. A. A nova direita no Brasil: contexto e matrizes conceituais. Mediações.


Londrina, v. 23, n. 2, p. 40-74, mai./ago. 2018.

CHALOUB, J; PERLATTO, F. Intelectuais da “nova direita” brasileira: ideias, retórica e


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CODATO, A.; BOLOGNESI, B; ROEDER, K. M. A nova direita brasileira: uma análise da


dinâmica partidária e eleitoral do campo conservador. In: CRUZ, S. V et al. Direita, volver!:
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HUSZÁR, F. et al. Algorithmic amplification of politics on Twitter. Proceedings of the


National Academy of Sciences, v. 119, n. 1, 21 dez. 2021.

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Câmara dos Deputados. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
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da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 107–139.

345
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS

GT 6 - A CIDADE PRATICADA: ETNOGRAFIAS,


MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS

COORDENADORES:

Me. Jússia Carvalho da Silva Ventura (UFPA)

Me. Silvia Lilia Silva Sousa (UFPA)

Me. Victória Ester Tavares da Costa (UFPA)

346
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 6

APRESENTAÇÃO

Jússia Carvalho da Silva Ventura 166


Silvia Lilia Silva Sousa167
Victória Ester Tavares da Costa168

O Grupo de Trabalho “A Cidade Praticada: Etnografias, memórias, paisagens e


imaginários” teve como objetivo central proporcionar o diálogo entre pesquisas que se
dedicassem a pensar as multiplicidades de práticas sensíveis presentes na cidade. Deste modo,
este GT recebeu pesquisas que refletem acerca das pluralidades de urbanidades e luta pelo
direito à cidade experenciadas por diferentes grupos na urbe. Todos estes debates
possibilitaram trocas importantes no decorrer do Simpósio. As sessões foram divididas
conforme a aproximação entre os temas apresentados abaixo:
A sessão 1, intitulada “Tensões, fronteiras e a prática de povos indígenas e populações
tradicionais nas cidades” reuniu trabalhos sobre as experiências de diferentes grupos étnicos
em suas práticas nas cidades brasileiras. Tais discussões apontaram para a urbe como um
campo complexo e pluriversal. Como bem discute o trabalho de Luciana de Assiz Garcia,
“Ciganar a cidade: Ir, vir e ficar. Vivência Calon em contexto urbano”, as experiências de
grupos ciganos em espaços urbanos são marcadas por relações tensionais que envolvem tanto
processos de expropriação, invisibilidade e estigmas, como também diferentes formas de
praticar a urbe e reivindicá-la enquanto território e espaço político, desconstruindo, assim, a
maneira estereotipada como estes grupos são encarados tanto pelo Estado como pela
sociedade de modo geral.
Durante esta sessão foram também acolhidos trabalhos que se dedicaram a pensar as
relações entre cidades e espaços ribeirinhos revelando complexidades importantes na urbe
amazônica. No texto “Experiências identitárias e comunicacionais ribeirinhas amazônicas da
Cidade/Ilha do Combu a partir da construção da Marca Filha do Combu”, de Giselle do
Carmo Souza Moraes e Manuela do Corral Vieira, é debatido o desenvolvimento da empresa
em torno da identidade amazônica e fatores que buscam a valorização das experiências e

166
Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail: jussiac@gmail.com
167
Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail: silvialiliasilvasousa@gmail.com
168
Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail: victoriaetcosta@gmail.com
347
peculiaridades locais, que fomenta o turismo e a economia. Baseado no discurso mais amplo,
que se espalha sobre a região, há o fortalecimento em torno do imaginário amazônico, que
remete às relações entre seres humanos e natureza. A pesquisa traz o debate acerca de como a
marca utiliza-se destes pontos para se fortalecer e atender a demanda e a economia das
comunidades da ilha do Combu.
Ainda pensando as cidades amazônicas como espaços importantes para o
questionamento entre ribeirinho/ urbano temos a pesquisa “Portos e suas especificidades
como forma urbana na Amazônia: Intersecção entre comunidades e cidades”, de Antônio
Carlos Lobato Nery e David Junior de Souza Silva. A partir de uma interessante imersão no
porto Igarapé das Mulheres, localizado em Macapá- AP, os autores atentam para o porto
como um espaço marcado por diferentes formas de sociabilidades e fluxos entre a cidade e as
comunidades ribeirinhas do Marajó-PA e Amapá.
A sessão 2 - “Sociabilidades centro-periferia: estigmas e resistências” iniciam com o
trabalho “Sociabilidade urbana e condições de moradia de um bairro periférico de Natal-RN”,
de Raimundo Paulino da Silva, em que o autor apresenta a discussão acerca do bairro Lagoa
Azul, localizado na Zona Norte de Natal, e as relações cotidianas entre os moradores de
loteamentos e de conjuntos habitacionais. Assim, atenta para as sociabilidades e questões de
cidade e periferia utilizando-se da observação participante e relatos desses moradores. A partir
da heterogeneidade entre estes, o autor traz discussões conceituais que, futuramente, junto
com os dados produzidos em campo, serão mapeados e analisados para a finalização da
pesquisa, que está em andamento.
Em “As perspectivas qualitativas do Tecnobrega no Pará: Uma análise das vivências
dos estudantes da UFPA”, de Lourena Jesus de Souza, Erika Cristina Barroso Magalhães e
Isabela Vitória Pinto da Silva, as autoras abordam as experiências de estudantes da
universidade com o tecnobrega, evocando discussões acerca da estigmatização do ritmo.
Através de entrevistas tornou-se possível um panorama sobre as relações destas pessoas com
o gênero musical e suas percepções sobre as festas de aparelhagem, que perpassam os âmbitos
social, cultural e econômico.
A Sessão 3 - “Conflitos ambientais e transformações das paisagens” inicia com o texto
“O Projeto de Lei Complementar 01/2020, Justiça Ambiental – Análise da disputa de
narrativas voltada para a derrubada do veto ao PEC 01/2020”, de Aída Maria de Mello Neto e
348
Dalton Beltrão Rodrigues, com discussões diretas sobre o direito à cidade. A pesquisa tem
como eixo principal as narrativas em volta de um Projeto de Lei (PL) que prevê a liberação de
construções de empreendimentos do comércio atacadista na área da orla da cidade de Belém-
PA, ocupada majoritariamente por populações de baixa renda. A partir dos conceitos de
justiça ambiental e desigualdade em dimensões amplas, os autores trazem materiais
divulgados nas redes sociais de grupos contra e à favor do PL para discutir a gentrificação da
área pela análise de conteúdo.
“Racismo ambiental no bairro Montese (Terra Firme) em Belém (PA): Um estudo de
campo acerca da injustiça ambiental e movimentos sociais”, de Laura Cecília Braga
Guimarães, Thalles Castellani Penna de La Rocque Real e Nelissa Peralta Bezerra levanta a
discussão acerca dos processos de ocupação da cidade, que legaram às camadas
desprivilegiadas as áreas com numerosos riscos ambientais. Assim, as condições do
saneamento e a ordenação da cidade impactam diretamente nas sociabilidades do bairro e, a
partir disso, os autores debatem acerca da justiça ambiental e o papel dos movimentos sociais
neste contexto, sinalizando a influência dos marcadores de raça e classe.
A pesquisa de cunho descritivo e qualitativo “Os catadores de recicláveis no
imaginário coletivo Janaubense: Reflexões a partir de uma pesquisa imagética”, de Éder de
Souza Beirão, Paula Cruz Pimentel e Tarso Guilherme Macedo Pires, faz comparativos entre
ocupações diversas e a de catadores de recicláveis. A observação, feita através de entrevistas,
evocação de imagens e ranqueamentos entre as reações das pessoas abordadas, foi realizada
com o intuito de se debruçar sobre os estigmas e preconceitos direcionados aos profissionais
que lidam diretamente com o “lixo”, permeados pelos discursos e associações socialmente
criados e que, algumas vezes, são absorvidos por estas pessoas em seu cotidiano.
Por fim, o trabalho de Karina Cunha Pimenta e Emylle Nayara Maia da Silva Gomes
proporciona um interessante estudo sobre as memórias, temporalidades e transformações das
paisagens presentes na Praia de Vera Paz, Santarém PA, após a implantação do Terminal
Regional de Granéis Sólidos, da multinacional Cargill. Ao pensarem este processo a partir das
memórias de antigos moradores, as autoras apontam para debates fundamentais como: o
questionamento à ideia de desenvolvimento; as alterações nas formas de sociabilidades locais
e os diferentes impactos ambientais deixados pelo Terminal.

349
REFERÊNCIAS

CERTEAU, M. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes. 1994.

DAMATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de


Janeiro: Rocco. 1997.

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Revista Iluminuras, volume 4, nº 7. Porto Alegre. 2003.

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Alegre: Marcavisual, 296 p. 2013.

MAGNANI, J. G. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29. 2002.

350
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NO RIO TAPAJÓS: A PRAIA DA


VERA PAZ E OS IMPACTOS DA IMPLANTAÇÃO E OPERAÇÃO DO
TERMINAL DA CARGILL – SANTARÉM/PA

Karina Cunha Pimenta169


Emylle Nayara Maia da Silva Gomes170

O presente resumo busca realizar uma reconstrução do processo de transformação


ocorridas na paisagem da antiga praia da Vera Paz nos últimos vinte anos através da memória
dos moradores do bairro do Laguinho, em Santarém/PA. O objetivo é demonstrar quais os
impactos da implantação e operação da Terminal Fluvial de Graneis Sólidos da multinacional
Cargill em âmbito citadino, e em relação aos povos do rio e da mata que habitam na região,
como beiradeiros, ribeirinhos, indígenas e quilombolas. Para tanto, utilizou-se o como fonte
de pesquisa a revisão bibliográfica em artigos, dissertações e teses publicados sobre o tema,
bem como, coleta de relatos de vida e observação participante.
Onde antes era situada uma das praias de mais fácil acesso à população da cidade de
Santarém, a Praia da Vera Paz, popularmente chamada de “Veroca”, lugar de lazer, pesca e
campeonatos de futebol, agora é conhecido como “Bosque Vera Paz”. O local foi alvo de
grande disputa territorial quando este patrimônio de inestimável valor sociocultural se viu
impactado pela instalação do Terminal Fluvial de Granéis Sólidos, da multinacional Cargill.
Nesse processo, famílias ribeirinhas foram retiradas de suas moradas à beira do rio, onde
plantavam e pescavam seus alimentos e empurradas para a periferia, enquanto a paisagem que
temos hoje do lugar se construía.
Durante os anos 90, a Praia da Vera Paz era muito visitada por turistas e santarenos
por ser uma praia de fácil acesso, pela beleza, pela longa faixa de areia branca, muitas árvores
frutíferas e barracas de venda das mais diversas. A praia também era palco de campeonatos
das famosas peladas de futebol. E, ao longo dos anos, essa imagem foi dando lugar ao
embarque e desembarque de grandes peças de madeira e, cada vez mais, embarcações de
grande porte foram tomando conta do local.

169
Bacharel em Antropologia, Universidade Federal do Oeste do Pará, karinapimentac@gmail.com.
170
Bacharel em Direito, Universidade Federal do Oeste do Pará, emyllemaias@gmail.com.
351
Hoje o que vemos no local é um complexo de estruturas portuárias e de
armazenamento situados à margem do Rio Tapajós. A areia mudou de cor, Santarém passou
por um processo de crescimento, a área em torno da praia foi aterrada para dar lugar à
construção de bairros, ruas e casas, o campo de futebol sumiu. Devido às nuvens de fuligem
de soja e do milho, já não se enxerga ou respira como antes.
Nesta paisagem atual, tais transformações coexistem com um modo de vida que se dá
por meio da permanência de usos já estabelecidos e expressões de sobrevivência e resistência.
O início do bairro do Laguinho, o terminal da Cargill e o rio Tapajós, são lugares formados
por uma diversidade de usos, nos quais se impõe como espaços de encontros e desencontros
de perspectivas e de tempos históricos diferentes e contraditórios, mesmo que
contemporâneos, pois são lugares onde transformações e permanências coexistem. Sendo
assim, a paisagem não pode ser entendida enquanto um processo finalizado, e sim como algo
dinâmico que assim como permanece, acaba por se transformar.
Em Santarém, a produção do urbano se deu a partir de uma forma peculiar de
ocupação do espaço, compreendida a partir de processos históricos, geográficos e culturais
únicos. As atividades desenvolvidas em contexto regional, sejam econômicas, políticas ou
sociais, contribuíram enormemente para a organização do espaço da cidade e, acabaram assim
configurando as relações que os moradores do bairro desenvolveram com o rio e a paisagem
ao longo de todo seu processo histórico. As atividades mais recentes, como o cultivo e
exportação da soja, apresentam novas dinâmicas, dessa forma atribuindo novas funções para
alguns espaços da cidade. No caso aqui trabalhado, esse espaço seria a área correspondente à
antiga praia da Vera Paz e o atual bairro do Laguinho.
Segundo Pereira (2013), a “fala do desenvolvimento” produz um sentido de Amazônia
que a associa ao vazio sociocultural e demográfico, a uma natureza abundante e selvagem que
precisa ser incorporada ao desenvolvimento nacional por meio do projeto de modernização
capitalista para a região. Com tal característica também se refere às pessoas que vivem e
habitam aquele local, pois essas em vista da lógica capitalista seriam incapazes de transformar
em riqueza econômica o patrimônio natural que detém (PEREIRA, 2013, p. 130).
Durante o período posterior à instalação do terminal da multinacional, a área ao bairro
do Laguinho passou por um processo intenso de gentrificação, no qual a chave desse processo
seria o poder político, visto que isso ocorreria como uma maneira das elites locais
352
expressarem de maneira simbólica seu poder sobre os espaços, ressaltando a diferença de
classe. Mas quais seriam os fatores que levaram o lugar onde abrigava a antiga praia a ser
massacrado pelas próprias pessoas que lá habitavam?
Com o aterro do que restou da praia da Vera Paz, o fim dos campeonatos de futebol e
houve o deslocamento das famílias que ali moravam, muitos se dispersaram para outros
bairros e cidades próximas, os encontros entre os moradores ficaram limitados às próprias
famílias. Diversos moradores viviam do que ali plantavam e vendiam, como frutas e
hortaliças e, tiveram que buscar uma alternativa de renda. Desse modo, acabou por desfazer
gradativamente as redes de sociabilidades dos moradores, bem como a falta de alternativa de
lazer e o abandono do lugar, em relação à iluminação pública, coleta de lixo e segurança
pública surgiram como principais pontos favoráveis ao uso do lugar pela empresa Cargill.
Nos relatos de vida coletados, é notável como os moradores atrelam a chegada da
empresa com a redução da violência em vias públicas, bem como a redução de assaltos e
furtos em suas casas. A chegada de luz na área onde havia a antiga praia Vera Paz também
segue vinculada a chegada do progresso, hoje não se vê o céu estrelado a margem direita do
rio Tapajós sem observar também as centenas de luzes que se encontram ao longo de toda a
estrutura do terminal. Ali, o rio encontra com o bosque abandonado pelos cuidados humanos,
encontra com os resíduos humanos de exploração do ambiente chamado de lixo, encontra com
o cemitério de embarcações abandonadas e os pescadores que ainda vão arriscar pescar e
vender o fruto de seu trabalho, encontram com os animais que ali obtiveram abrigo como, por
exemplo, os gatos.
Ao entendermos isso, podemos experimentar uma perspectiva que mude a dinâmica do
lugar. A praia se tornou Bosque e se viu necessário pensar sobre as transformações ocorridas
na paisagem. Hoje, o porto da Cargill ocupa mais da metade da margem direita da cidade de
Santarém. A memória do que era não desaparece, ela resiste assim como a conexão que
existia anteriormente aparece hoje de outras maneiras.
Ao longo desses anos, os moradores foram se habituando aos poucos a não estranhar
partilhar o pôr do sol com as megas esteiras e os armazéns de silos da Cargill. Paisagem
naturalizada, agora parece mais como parte da composição, uma ao lado da outra, em uma
fusão que apenas o capitalismo e a chamada modernidade seria capaz de prever. Aquele
pedaço de terra, assim como grande parte da nossa região, foi tomado das pessoas que ali
353
faziam morada e com ele um pedaço da história das populações que aqui habitavam foi
invisibilizado.
A partir dessa pesquisa, desenvolvida com moradores de uma área urbana em
Santarém, houve o acesso a mais diversas questões em respeito dos impactos da
implementação e operação do terminal da multinacional Cargill. É possível observar como
empreendimento desse porte e desse setor impactam a vida dos povos e comunidades que
dependem do rio e da terra para sua sobre (vivência).
Assim, a relevância dessa temática se torna imprescindível para compreendermos o
processo constante das transformações ocorridas na cidade de Santarém nas últimas décadas e
sua diversidade ao se tratar de uma cidade no meio na Amazônia e com um potencial enorme
de exploração pelo círculo mundial hegemônico capitalista.
Como herança atual do colonialismo na região, quilombolas, indígenas e comunidades
tradicionais, tem seu modo próprio de fazer política e economia, bem como seus
conhecimentos e saberes inferiorizados frente ao ideal do progresso. Para essas pessoas, o
progresso e desenvolvimento da lógica capitalista significam o agravamento da omissão a
assistência à saúde, ausência de políticas ambientais próprias que levem em consideração seus
modos de vida, poluição socioambiental, destruição dos territórios ancestrais e assassinatos.
Desse modo, ao focar no conjunto de transformações na paisagem ocorridos no bairro
do Laguinho e na antiga praia da Vera Paz –os quais se tornaram palco de um
empreendimento multinacional –, este trabalho assume a importância de compreender quais
mudanças e permanências no que concerne às formas de relações entre o humano e não
humanos são mantidas historicamente entre o espaço que remete ao bairro, ao terminal e ao
rio. Portanto, o caminho do enfrentamento a esse tipo de pensamento, a essa colonização
intelectual e política de extinção, não é fácil, pois passamos a ser quase que apenas
espectadores das futuras ruínas que nos cercam, achando que o rio Tapajós será sempre essa
imensidade e que, praias como a de Alter do chão, não correm risco de ter o mesmo destino
que a antiga praia da Vera Paz.

Palavras-chaves: Paisagem. Memória. Transformação.

354
Referências:

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permanências frente ao processo de urbanização recente, o exemplo de Santarém (PA).
Orientador: Sant-Clair Cordeiro da Trindade Júnior. 2012. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de Pós -
Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. Belém, 2012.

COSTA, Solange Maria Gayoso da. Grãos da floresta: estratégia expansionista do


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(Doutorado em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental) - Núcleo de Altos Estudos
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PEREIRA, José Carlos Matos. “Cidade na floresta: Belterra, a experiência da plantation de


seringa de Henry Ford na Amazônia brasileira (1934-1945)”, en Avances del Cesor, Año X,
N° 10, p. 129-150, 2013.

TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB/Mil
Folhas. 2019.

PIMENTA, K. et al. Saudades da Veroca: Memórias da Praia de Vera Paz antes do Porto da
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Natal. ANAIS | Vol. 2 - Área temática: Cultura. Natal: UFRN. v. 2. p. 465- 485. 2018

VICENTINI, Yara. Cidade e história na Amazônia. Curitiba: EDUFPR, 2004.

355
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 1 - TENSÕES, FRONTEIRAS E A PRÁTICA DE POVOS INDÍGENAS E
POPULAÇÕES TRADICIONAIS NAS CIDADES

CIGANAR A CIDADE: IR, VIR E FICAR. VIVÊNCIA CALON EM


CONTEXTO URBANO

Luciana de Assiz Garcia171

Uma antropologia no plural ou o plural do fazer antropológico? Partindo da


perspectiva de que a ciência é universal e de que a Antropologia é una, em que pese suas mais
diversas facetas, Mariza Peirano na Introdução do livro “Uma Antropologia no plural: Três
experiências Contemporâneas” (1992), nos apresentará a discussão acerca da relação entre as
teorias antropológicas e os contextos sociais a partir dos quais tais produções se dão, ou seja,
a noção de que o conhecimento científico/antropológico relaciona-se com o contexto
sócio/histórico que o produz/influencia.
Podemos dizer que o universo da pesquisa, assim como o da teoria, conecta-se a uma
totalidade do existir e que, portanto, também contornará todo e qualquer processo de produção
humana. Assim, por exemplo, a “etnografia não é algo que se faz espontaneamente” (1995, p.
18), não é algo aleatório. Os elementos que compõem o contexto de uma pesquisa, as
orientações teóricas adotadas, o recorte do momento histórico privilegiado, a personalidade e
o ethos de quem pesquisa condicionam os resultados.
Deste modo, pensar Antropologia da/na cidade é também aproximar-se dos complexos
processos de transformação histórica das sociedades ocidentais. Os estudos da escola de
Chicago (especialmente de Robert Park [1864-1944], Ernest Burguess [1886-1966] e Louis
Wirth [1897-1952]) e de Manchester (especialmente Max Gluckman [1911-1975]), neste
sentido, são pilares teórico-metodológicos quanto ao registro etnográfico deste novo universo
que foi surgindo.
A nova realidade imposta, de crescimento da vida na/da cidade, demandava a
emergência de outros filtros analíticos. Os olhares foram deslocados para significações sociais
estabelecidas na cidade ou a partir dela, tendo-a sempre com um ponto de referência, seja de
171
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), graduada em
Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), integrante do Grupo de Pesquisa Conflitos
Socioambientais (GPCONS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia pela Universidade
Federal da Grande Dourados – PPGANT UFGD. Email: cambalim1@hotmail.com
356
contraste/oposição ou não. Ou seja, a cidade, e o deslocamento entre urbano versus rural, se
tornou o grande paradigma da Antropologia Urbana.
No contexto atual, e pensando o recorte Brasil, outros fenômenos urbanos reclamam
por atenção. Diante do exposto, o presente estudo, a partir da pesquisa bibliográfica e da
análise de materiais audiovisuais disponíveis em plataformas digitais, buscará explicitar como
os Povos Ciganos, especialmente os grupos Calons, estabelecem formas diferentes de
ocupação social a partir da experimentação da vida da/na cidade.
Assim, a perspectiva analítica que prevalecerá é a de que o modo de ser/existir de um
grupo também se costura desde um determinado espaço geográfico físico, demarcado por
“fronteiras sociais” (BARTH, 2011, p. 194), espelhado em certa territorialidade étnica e que
está constantemente sendo negociada. Buscaremos identificar a relação dialética entre o modo
de ser que é limitado ao espaço geográfico e o movimento contrário, ou seja, aquele modo de
ser que, a partir de sua ocupação, inscreverá limites fronteiriços a determinados espaços.

“Existe uma frase que é muito divulgada, né?! Que dizem que é uma frase cigana e
que seria ‘meu povo não quer ir e nem vir, meu povo quer passar’. Não é a
realidade! Meu povo quer ter o direito de ir e vir, passar e ficar, se desejar!” Lu
Ynaiah172

Desafiando os limites impostos pelas fronteiras religiosas, misturando dinheiro com


sorte, cada dia que passa é menos comum depararmos com mulheres ciganas vestidas com
suas saias rodadas e coloridas nos centros urbanos em busca de curiosos interessados em
ouvir a buena dicha173. Em sua lida diária, as mulheres ciganas às vezes encontram um bom
resultado e outras nem tanto, sendo “banidas das ruas, estigmatizadas pela sociedade
envolvente e vistas como forma de contágio, contaminação e poluição.” (VEIGA; MELLO,
2012, p. 94).
Caminhar pela cidade é expor-se a uma série de opiniões comuns, pré-existentes e que,
na maioria das vezes, são depreciativas, povoam o imaginário social coletivo que a sociedade
produziu acerca dos Povos Ciganos e funcionam como uma referência moral inquestionável,
um mecanismo de ‘defesa’ contra o diferente. É assim que, por exemplo, a calin Débora de
Jesus Rocha no documentário “Habitar/habitat: Ciganos” nos afirma: “Quando a gente entra

172
Frase dita pela calin Lu Ynaiah (0m23s) no documentário “O outro lado” Ciganos de 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Oei_ycEOzSA&t=845s. Acesso em: 18 ago. 2022.
173
Leitura das mãos.
357
em algum comércio as pessoas já fica tudo olhando pensando que a gente vai roubar, vai
fazer alguma coisa. Então, isso constrange muito a pessoa” (SESC TV, 2018, 14m19s).
Pensar o direito à cidade, no contexto cigano, nos impulsiona a diversas direções, seja
a reflexão acerca da construção política dos ambientes urbanos, seja quanto aos impactos que
os processos de urbanização possuem em relação a novos cenários em que os grupos étnicos
pleiteiam a vivência de sua territorialidade (por exemplo, nos casos em que as comunidades
procuram o Judiciário visando a regularização fundiária dos terrenos ocupados há décadas174),
seja quanto à sui generis forma de ocupar/ressignificar a cidade, seja quanto ao acesso a
serviços públicos e o direito à cidadania, e, sobretudo, quanto ao próprio direito de compor o
tecido urbano. (TOLENTINO, 2018). A historiadora Fernanda Martins, a este respeito nos diz
algo muito interessante, vejamos
Eu acho que o que elas [ciganas] mais ouvem, todos os dias, é que elas não devem
existir. O que a gente vê é isso, seja pela negação do acesso a serviços básicos. Elas
circulam na cidade com a marca de quem não deveria estar presente ali. O racismo,
o preconceito, tá incrustado na sociedade, nos agentes públicos, que precisam de
formação, de capacitação para lidar com a diferença também. (SESC TV, 2018,
14m29s)

A fala acima nos permite refletir sobre o quanto as relações de poder influenciam
constrangimentos dispostos a nível espacial. A cidade para além de ser um ambiente de
experimentação da cultura é também palco de conflitos e disputas. As dinâmicas citadinas,
estabelecida predominantemente pela lógica hegemônica dos grupos maioritários, reverberam
sobre os Povos Ciganos como um universo de dominação cultural, salvaguardadas
historicamente por infindáveis leis, decretos, alvarás, etc (BORGES, 2007). Além do que, tais
povos sempre foram considerados ‘destoantes’ dos projetos de “civilização e progresso” das
cidades brasileiras, tidos como “incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos”, ou seja,
uma “anomalia social e racial” (TEIXEIRA, 2009, p. 12) a ser ferozmente combatida.
De acordo com Vaz (2005, n.p.), em território brasileiro, tais povos formam uma
grande heterogeneidade étnica e que corresponde ao fato de que cada grupo teve “trajetórias
diferenciadas, formas e estilos de vida diversos”175. Especula-se que os primeiros ciganos a

174
A este respeito destaca-se os estudos de Priscila Godoy (2021) realizados com os Calons do bairro São
Gabriel em Belo Horizonte / MG. No estudo a autora narrará à tentativa de desterritorialização da comunidade
cigana e a emergência de um processo de reivindicação de direitos judicialmente.
175
Os principais grupos no Brasil se dividem em: Rom, Sinti e Calon.
358
chegar ao Brasil tenham sido ciganos Calons, oriundos da Península Ibérica, mais
especificamente João Torres e sua família, por volta de 1574 (TEIXEIRA, 2009).
Das etnias ciganas, os Calons, segundo Tolentino (2018), destacam-se, sobretudo, pela
busca em manter a tradição da vida nos acampamentos, sejam os grupos nômades,
seminômades ou aqueles que possuem moradia fixa. O fenômeno do nomadismo é bastante
explorado no imaginário coletivo gadjé (não-cigano) como elemento atributivo da
ciganidade176. Tal associação, “percepção anti-histórica, congelada e essencializada”
(GODOY, 2021, p. 90), revela-se perigosa, inclusive, manejada, historicamente, como
argumento favorável a expulsões e negações de direitos.
A calin Lu Ynaiah nos diz, no documentário “O outro lado: Ciganos” (2015), por
exemplo, que a noção de “Os ciganos querem ficar andando de um lado pro outro” (5m47s)
não corresponde de fato com a realidade, pois “a maioria dos grupos de acampamentos, eles
querem um local para ficar fixo” (5m53s), ponto também corroborado com a fala da calin
Daiane Rocha, no documentário “Calon, povo cigano no DF” que nos diz
Muita gente fala ‘mas voceis só vivem viajando’, pra gente conseguir esta terra aqui
eu escutei muita vezes ‘mas ciganos querendo terra? Vocês só gostam de viajar!’ eu
falei não! Eu não gosto de viajar, nós somos obrigadas a fazer isso, nós somos
obrigadas a fazer comida no chão pras crianças, ter que tirar as panelas correndo e
ter que ir embora, porque o delegado da cidade, porque o prefeito, porque o
administrador, não queria aceitar o cigano lá, por a gente viver em comunidade
(2016, 2m45s)

A fala de Lu Ynaiah espelha o atual cenário conflitivo de muitos municípios


brasileiros, destacando que, segundo dados da Associação Maylê Sara Kali (AMSK), até
2016, estimava-se que havia, aproximadamente devido ao grande número de subnotificação,
337 municípios no Brasil com a presença de acampamentos ciganos. Isto nos leva a refletir
que o nomadismo foi e ainda é uma resposta ao próprio “cerceamento imposto pelas
sociedades envolventes” (GODOY, 2021, p.94) que etnocentricamente não admite o atual
desejo de ir, vir e parar.
A maior parte dos grupos, itinerantes ou não, convive em ambientes com infraestrutura
precária, sem acesso a água potável, sem acesso a saneamento básico, em moradias
improvisadas e praticamente “obrigados a manter relações com vários segmentes sociais da
cidade” (VAZ, 2005, s.p.), ou seja, direcionando suas existências também a partir do contato,

176
Conceito amplamente trabalhado por Igor Shimura no texto “A ideia de ciganidade como chave para o
reconhecimento da pluralidade cigana no brasil” publicado em uma Coletânea produzida pelo MPF em 2021
359
direto ou não, com a sociedade circundante, como menciona a calin Preta, no documentário
citado acima, vejamos
A gente chega no lugar, arma a lona, começa a fazer a comida, chega o dono do
terreno, qué que a gente vai embora, às vezes é um terreno da prefeitura, chega a
prefeitura, às vezes chega aqui até a polícia para fazer a gente sair, ameaça de
passar a máquina por cima das coisas, cortar a corda. Então a gente tem que sair,
ai prejudica mais a gente(09m07s,2015).

A fala da calin ilustra o quanto a cidade, ponto de convergência e divergência, é um


“espaço de conflito real” (SILVA, 2012, p. 40). O ir, vir e ficar denotam uma mobilidade
estratégica por lugares cercados e emaranhados em relações de poder a serem consideradas,
como quando o calon Sandro, no já mencionado documentário “O outro lado: Ciganos”, que
vive em acampamento, nos diz: “A gente quando vive assim tem amizade com todo mundo,
né?! Tem que ter amizade com ladrão, com polícia, com todo mundo, já para não ser
prejudicado” (2015, 9m30s).
Portanto são notórios os processos elásticos de sociabilidades a serem negociadas. A
vivência sem um território geográfico delimitado, e a necessidade de adaptação a um mundo
hostil e intolerante quanto a sua presença, tem impulsionado tais povos a demarcar,
etnicamente, certos espaços, ou seja, a reivindicar um simbólico “arquipélago de pequenos
territórios” (TEIXEIRA, 2009, p. 64) existenciais e que, sutilmente, se materializam nas
ocupações dos acampamentos, na buena dicha nos centros da cidade, na itinerância urbana,
no uso das tradições e na própria forma de significar este “espaço portátil, conquistado,
domesticado” (GODOY, 2021, p. 92).
Assim, quando a poetisa cigana Esmeralda Liechocki, em seu lamento cigano, diz
“Jamais teremos terminado nossa caminhada. Mesmo vivendo sob tetos, nossas almas seguem
livres pela estrada.” (PEREIRA, 1991, p. 152) vislumbramos que os elementos culturais, em
um universo marcado pelo que Roberto Cardoso de Oliveira chamou de Fricção Interétnica,
não são dados, são processos de ressignificação e contraste que alimentam a noção de si e do
outro, ou seja, em todo trânsito, ao tocar a cidade, mesmo que brevemente, algo de si fica,
ainda que modificado, e mesmo que diferenças, não suas, também sejam carregadas.
Por fim, pelo exposto, constata-se que no caso dos Povos Ciganos, povos tradicionais,
a carga valorativa imbuída em seus costumes ancora uma pertença étnica, que inscreverá
singularidades aos espaços ocupados de modo itinerante ou fixo. Isto é, lutar pelo direito à

360
vida na cidade, e tudo que a ela se imbrica (moradia, saúde, educação, etc), não deve ser
entendido como algo indisponível para Povos Ciganos pelo fato de serem ‘nômades’ ou de
não ‘possuírem documentos’. Na atualidade, os próprios grupos têm demonstrado o
entendimento de que ser cigano, ou seja, parte de um grupo étnico específico, não afasta o
direito cidadão que todos temos de acionar políticas públicas (ações afirmativas nos diversos
âmbitos), além de possibilitar também a reinvindicação de direitos específicos relacionados à
própria singularidade cultural de seu povo. Portanto, cabe a nós, pesquisadores, o olhar atento
a este movimento de ‘Ciganar a cidade’.

Palavras-chave: Povos Ciganos; Direito; Antropologia Urbana.

REFERÊNCIAS

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; FENART,
Jocelyne Streiff. Teorias da Etnicidade. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 186-227.

BORGES, Isabel Cristina Medeiros Mattos. Cidades de portas fechadas: A intolerância


contra os Ciganos na Organização Urbana na Primeira República. 2007. 131 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2007.

CALÓN, povo cigano no DF. Direção Cristiane Portela. Distrito Federal: Canal E SEDF,
2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DPqp3VXSnv4&t=43s. Acesso
em: 18 ago. 2022.

GODOY, Priscila Paz. O Povo Invisível: Os ciganos e a emergência de um direito libertador.


Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021.

TOLENTINO, Erika dos Santos. Justiça Ambiental, direito à cidade e ciganos Calon. O social
em Questão, Rio de Janeiro, n. 40, p. 333-360, 2018.
PEIRANO. Mariza. Uma antropologia no plural. In: Uma antropologia no plural: três
experiências. Brasília: Editora da UnB, 1992. p. 235-250.

______. Os Antropólogos e suas Linhagens. In: A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro:


Relume-Dumará, 1995. p. 13-30.

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https://www.youtube.com/watch?v=Oei_ycEOzSA&t=845s. Acesso em: 18 ago. 2022

361
PEREIRA, Cristina da Costa. Lendas e histórias Ciganas. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1991.

SILVA, Flávio José de Oliveira. Das tendas às telhas: a educação escolar das crianças
ciganas da praça Calon-Florânia/RN. 2012.102 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.

TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos no Brasil: Uma breve historia. Belo Horizonte:
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VtYP1Zrd8Gw. Acesso em: 18 ago.
2022.

VAZ, Ademir Divino. José, Tereza, Zélia...e sua comunidade: Um território Cigano. Revista
Trilhos, Pires do Rio, v. 3, n. 3, [n.p], 2005.

VEIGA, Felipe Berocan; MELLO, Marco Antonio da Silva. A incriminação pela diferença:
casos recentes de intolerância contra ciganos no Brasil. In: As máscaras da Guerra da
intolerância, 66., 2012. Anais [...] Rio de Janeiro: ISER, 2012. p. 86-108.

362
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 1 - TENSÕES, FRONTEIRAS E A PRÁTICA DE POVOS INDÍGENAS E
POPULAÇÕES TRADICIONAIS NAS CIDADES

EXPERIÊNCIAS IDENTITÁRIAS E COMUNICACIONAIS


RIBEIRINHAS AMAZÔNICAS DA CIDADE/ILHA DO COMBU A
PARTIR DA CONSTRUÇÃO DA MARCA FILHA DO COMBU

Giselle do Carmo Souza Moraes177


Manuela do Corral Vieira178

A Ilha do Combu (Figura 1) está localizada na margem esquerda do rio Guamá e,


está a 1,5km de distância da parte continental da cidade de Belém no estado do Pará, sendo a
quarta maior ilha da cidade. A partir do ano de 1997 passou a ser uma Área de Preservação
Ambiental (APA)179. O acesso à Ilha é somente por meio fluvial, com uma extensão territorial
de 15km² e aproximadamente 1.500 habitantes180 (conhecidos como ribeirinhos), que vivem
basicamente da pesca e do extrativismo dos recursos da floresta. A flora da ilha é bem diversa
e composta por vários tipos de árvores, desde árvores centenárias, como samaumeiras e
árvores frutíferas, as quais se destacam: cupuaçu, açaí e cacau181.

Figura 1- Vista aérea Ilha do Combu

Fonte: Leonardo Mendonça - março de 2019

Há 12 anos, a Ilha do Combu começou a se destacar como ponto turístico. Este


destaque deve-se ao aumento do discurso publicitário divulgado por bares e restaurantes da
ilha. Tal discurso tinha como objetivo não só de levar as pessoas a visitarem os
177
Mestranda, Universidade Federal do Pará-UFPA, gysouzamkt@gmail.com
178
Doutora, Universidade Federal do Pará-UFPA, manuelacvieira@gmail.com
179
Lei Estadual Nº 6.083, de 13 de novembro de 1997
180
Fonte: Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará
181
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, o estado do Pará é o maior produtor de cacau
do Brasil, em todo o estado e no período de 2005 a 2018, a produção de cacau aumentou 35%. No ano de 2018, o
estado produziu 116 mil toneladas do fruto, quanto que a Bahia (historicamente estado com maior produção)
produziu 122 mil toneladas.
363
estabelecimentos comerciais, mas também conhecer e descobrir na ilha, uma maneira de fazer
um “turismo autêntico” em um local com uma concepção mais idealizada. Como relatado por
Santos (2010, p.18): “a publicidade vai construindo outra realidade como produto de um
mundo totalmente idealizado, um espelho mágico que só reflete as coisas boas do mundo”.
Como consequência disso, algumas empresas locais, fundadas ou não por moradores da
região, como a empresa Filha do Combu182, utilizam esta compreensão deste contexto e deste
espaço fortemente marcado entre sociedade e natureza e as relações provenientes desta, para
explorar comercialmente a identidade cultural amazônica a qual pertencem, valorizando-a e
embasando os seus discursos empresariais e nas criações de produtos e serviços.
A empresa Filha do Combu consegue ganhar destaque nacionalmente183 ao vender
chocolate e proporcionando uma melhoria na qualidade de vida da comunidade local, atraindo
uma maior visibilidade184 para à Ilha e aumentando um fluxo de visitantes (existem pessoas
que vão exclusivamente visitar à empresa, por exemplo), gerando assim empregos diretos
vinculados a empresa ou empregos indiretos (barqueiros, garçons e outros colaboradores de
bares, restaurantes e hotéis da Ilha do Combu). Além disso, o maior destaque é proveniente da
busca pela incorporação na construção da sua marca de fatores como: características da
identidade amazônica, apelo histórico, social, cultural e afetivo do local que está inserida,
aliados ao conceito da busca por práticas de sustentabilidade e experiências individuais e
coletivas, facilitados pelo consumo de produtos e serviços desenvolvidos pela empresa e
propagados principalmente pelas redes sociais digitais.
É possível observar que este discurso se fundamenta não só em apropriações,
práticas e experiências de seus habitantes, mas no olhar que é dirigido para a região (Paes
Loureiro, 1995) e na expectativa gerada quando o assunto é cultura amazônica e o imaginário
criado a partir desta. Onde percepção e reconhecimento é feito por via das aparências e
inspirado em lendas amazônicas, relações homem e natureza, relações sociais, políticas e
econômicas. Paes Loureiro intitula este imaginário como estético-poetizante, onde este ainda

182 Empresa produtora de chocolate, fundada em 2006, por Izete Costa, conhecida popularmente por Dona
Nena, ribeirinha, nascida e criada na Ilha do Combu.
183
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/produtos-ingredientes/chocolate-rustico-
dona-nena-ilha-do-combu/. Acessado em: 20 de Jun. de 2021
184
A Filha do Combu é convidada pela gestão do Governo do Estado do Pará e pelo Serviço Brasileiro de Apoio
às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE para divulgar a empresa e o estado do Pará em feiras regionais e
nacionais, atraindo assim mais visitantes não só para o estado como principalmente para a Ilha do Combu.
364
explana que
A cultura amazônica onde predomina a motivação de origem rural-ribeirinha é
aquela na qual melhor se expressam, mais vivas se mantêm as manifestações
decorrentes de um imaginário unificador refletido nos mitos, na expressão artística
propriamente dita e na visualidade que caracteriza suas produções de caráter
utilitário - casas, barcos etc. (PAES LOUREIRO, 1995, p. 56)

Por este motivo, conseguimos encontrar nas divulgações e criações de produtos e


serviços da empresa Filha do Combu, resquícios do imaginário do Mito do El Dorado
entrelaçado com a ocupação da Amazônia. Castro (2010, p.106) expõe que este mito sempre
envolveu sonhos de riqueza que impulsionaram a exploração de recursos naturais,
modificando a relação homem e natureza e gerando mercadorias a partir desta. Estes sonhos
atravessaram séculos e chegaram aos dias de hoje sendo capazes de incitar interesses
econômicos e políticos, além de movimentar sociedades. Assim, é possível conceber a Ilha do
Combu e a criação da empresa Filha do Combu, com seus produtos e serviços, como a
realização deste sonho do Mito do El dorado. Análise que também nos remete à explanação
de Perez (2020, p.109) visto que, “mais que comunicar produtos, significar marcas tem sido o
caminho dos produtores para construir vínculos com as pessoas, libertando-as de possíveis
culpas e arrependimentos decorrentes da compra”. E, em alguns casos, consumir também
significa constituir cidadania para um caminho para fazer parte de um coletivo e pertencer a
algo bem de se ter visibilidade social e política.
A Ilha do Combu é percebida como uma mercadoria intacta a ser consumida,
tornando-se capaz de movimentar a comunidade local, instigando-os a criarem novos
produtos e serviços para atender às novas demandas que surgiram e sendo capaz de agrupar
interesses econômicos de empresas locais, como a Filha do Combu e envolver interesses
políticos de gestores locais que, após o destaque nacional da Ilha, e a fim de gerar maior
visibilidade para a região, passaram a inserir mais políticas públicas, desde muito solicitadas
pelos habitantes da ilha, de aspectos básicos, estruturais e de mobilidade urbana, como
melhoria no transporte para a ilha e coleta de lixo da região. Amaral Filho (2016) percebe esse
cenário e nos alerta para a concepção da Amazônia enquanto marca:
É justo, portanto, conceber a Amazônia como elemento do sistema de signos da
publicidade, além de preencher estas condições gerais de uma marca, se fragmenta
em diversos elementos, como uma marca proteica, cuja materialidade, é doada a
cada um de seus produtos como um signo e que por isso mesmo traz consigo a
agregação deste valor geral: "Marca Amazônia". (AMARAL FILHO, 2016, p. 60)

365
Por este motivo, atrelado a esta idealização de local onde é possível realizar sonhos e
conseguir novas conquistas, é possível perceber como a empresa Filha do Combu consegue
usufruir em suas criações do fato da Ilha ter as características de uma cidade imã, definição
baseada no conceito de Rolnik (1995, p.13), onde esta diz que: “A cidade é antes de mais
nada um imã, antes mesmo de se tornar local permanente de trabalho e moradia”. Neste
sentido transformando a localidade em um fator atrativo, aonde a ilha vai além de suas belas
paisagens e onde, atualmente, a empresa está redescobrindo como um local de produtos e
serviços no formato de vivências e experiências adaptadas para atrair turistas locais ou de
outras regiões.
A Filha do Combu possui em seu portfólio185 de produtos tanto os chocolates do
Combu quanto visitas aos setores produtivos e ponto de venda da empresa, bem como a
realização de trilha pela floresta nativa que circunda a empresa. Essa interação é realizada por
meio de estímulos dos cinco sentidos, com degustações de receitas caseiras, explanações e
demonstrações do modo de vida ribeirinho, o que consegue estabelecer para o consumidor
uma forma de viver na prática, mesmo que por alguns instantes, o que é morar e produzir em
uma ilha na Amazônia.
Em seus meios de divulgação, sobretudo a rede social digital Instagram186, o
portfólio de produtos e serviços a Filha do Combu evidencia os traços de origem e as
experiências sociais, ambientais e criativas que a proprietária da empresa e grande parte de
seus colaboradores possuem, transformando este cenário para os seus consumidores, em
vivências contextualizadas do cotidiano ribeirinho. Assim, a empresa busca, por meio do
consumo dos seus produtos e serviços, resgatar memórias afetivas e criar um vínculo com o
seu consumidor, mesmo que este não tenha vivenciado tal contexto. Tal explicação, deve-se
ao fato de que a cultura do mundo ribeirinho se estende e interage com o mundo urbano. Paes
Loureiro (1995, p. 55) afirma:
é preciso entender que a cultura do mundo ribeirinho se espraia pelo mundo urbano,
assim como aquela receptora das contribuições da cultura urbana. Interpenetram-se
mutuamente embora as motivações criadoras de cada qual sejam relativamente
distintas. (PAES LOUREIRO, 1995, p. 55)

185
Portfólio é um catálogo descritivo de produtos e serviços pertencentes a empresa.
186
O perfil da empresa na rede social digital Instagram pode ser acessado pelo link
www.instagram.com.br/filhadocombu
366
A empresa insere aspectos e concepções de vários mundos inerentes aos grupos de
sujeitos aos quais os seus consumidores e seu quadro colaborativo pertencem, para assim
agregar valor da vida amazônica ribeirinha e procura fazer isso divulgando e reforçando
internamente a sua tentativa de ser uma empresa sustentável e que respeita o meio ambiente,
processos produtivos e comunicativos seguem dentro das suas possibilidades e limites de
conhecimento e financeiros. Como consequência disso a empresa consegue reduzir os
resíduos gerados na produção de chocolate e utiliza colheita manual para não agredir o meio
ambiente e recursos da biodiversidade da floresta como cupuaçu, açaí e pupunha para agregar
valor ao chocolate, além de utilizar as folhas do cacaueiro in natura para a confecção de
embalagens de alguns produtos. Segundo Amaral Filho (2016, p. 114):
a Amazônia enquanto Marca, parece se constituir em uma matriz cultural produzida
pela midiatização e por uma narrativa baseada em dados fantásticos e reais, que
tiveram origem em universos simbólicos locais que foram apropriados e ofertados
com um sentido dado pela publicidade para o mercado global (AMARAL FILHO,
2016, p. 114)

Além de ser um meio facilitador de diálogos entre indivíduos de “vários mundos” e


de interação com as experiências que lhes são apresentadas e vivenciadas individualmente e
coletivamente e que conseguem assim ampliar as trocas sociais que ali são experenciadas
pelos indivíduos presentes e que provavelmente, só ocorrem por estarem envolvidas neste
contexto e propagadas pelo discurso publicitário elaborado pela empresa. O que nos leva a
compreensão desta ação ao conceito de bios midiático, conforme proposto por Muniz Sodré
(2002), em que o autor salienta o papel da mídia atual na sociedade contemporânea, que surge
como um meio de consciência coletiva que direciona pensamentos e ações da sociedade,
validando produtos, experiências e pessoas. Estes movimentos também interferem
diretamente no campo social, em que “o sujeito é sempre individual e só existe socialmente
enquanto tem algo para comprar ou vender, ou pelo menos assim pense” (SODRÉ, 2002, p.
52).
É nesta conjuntura que a empresa Filha do Combu, ainda que com desafios, como
estar localizada em uma ilha na Amazônia e todas as consequências e insuficiências logísticas
e territoriais que isso possui; ser uma empresa de pequeno porte que tenta ser sustentável e
encontra dificuldades financeiras para isso; tendo que conviver com falta de incentivos
políticos e problemas de ordem sociais e ambientais devido ao contexto que está inserida,

367
propõe integrar, mas também se valer, por meio de suas práticas comunicacionais e de
mercado dos seus produtos e/ou serviços, em integração intermediada pelo capital financeiro e
pelo consumo material e imaterial do chocolate do Combu da Amazônia.

Palavras-chave: Consumo. Chocolate do Combu. Cidades Amazônicas.

REFERÊNCIAS

AMARAL Filho, Otacílio. Marca Amazônia: o marketing da floresta. 1.ed. Curitiba, PR:
CRV, 2016.

CASTRO, Edna. Território, biodiversidade e saberes de populações tradicionais. In:


Faces do trópico úmido: conceitos e novas questões sobre desenvolvimento e meio ambiente.
Belém: CEJUP/UFPA-NAEA, 1997.

PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica. Uma poética do imaginário. Belém,
CEJUP, 1995.

PEREZ, Clotilde. Há limites para o consumo? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2020

ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Coleção Primeiros
Passos; 203)

SANTOS, Luiz Cezar Silva dos. PubliCIDADE belle époque: a mídia impressa nos
periódicos da cidade de belém entre 1870-1912. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - São Paulo. 2010

SODRÉ, Muniz, 1942. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em


rede / Muniz Sodré. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

368
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 1 - TENSÕES, FRONTEIRAS E A PRÁTICA DE POVOS INDÍGENAS E
POPULAÇÕES TRADICIONAIS NAS CIDADES

PORTOS E SUAS ESPECIFICIDADES COMO FORMA URBANA NA


AMAZÔNIA: INTERSECÇÃO ENTRE COMUNIDADES E CIDADES

Antônio Carlos Lobato Nery187


David Junior de Souza Silva188

Cada porto como sabemos tem uma grande importância econômica e social para a
região em que se localiza e também para o Estado, é por meio dele que pessoas chegam e
partem para suas localidades, que mercadorias são comercializadas e trocadas, que relações
são construídas. De forma geral quando pensamos em portos temos a visão daqueles
considerados de grande estrutura, de grande movimentação de mercadoria e de logística como
é o Porto do Grego localizado no município de Santana no Estado do Amapá, mas também
temos uma outra especificação de porto em que está ligada mais com o movimentar das
pessoas, da troca e venda de produtos considerados regionais e de uma relação de
dependência entre o porto e aqueles que lá aportam e que residem na proximidade.
É sobre essa realidade amazônica que se busca saber como o porto é um meio de
ligação (as vezes essa ligação é de dependência) entre o território das comunidades ribeirinhas
e a cidade e em específico os agentes da comercialização em que seriam aqueles que vivem
no porto para qual o ribeirinho vende seus produtos. Buscando ainda mais, essa relação pode
ser apreendida “[...] como uma relação de poder, que por sua vez, gera uma dependência
recíproca dos valores de uso, oportunizando as possibilidades de trocas, o que impõe ao
camponês a sua ida ao agente da comercialização para vender seus produtos extraído da
natureza [...]” (FRAXE et al, 2018, p. 9)
Assim essa dependência ocorre justamente no processo de comercialização e troca de
produtos, pois um depende do outro, o ribeirinho depende do agente da comercialização para
vender seus produtos e o urbanita necessita, mais especificamente, dos produtos advindos da
natureza que são coletados. Essa comercialização por parte do ribeirinho se dá em dois meios

187
Graduando em Licenciatura em Sociologia pela Universidade Federal do Amapá. E-mail:
antoniocarloss1998@gmail.com
188
Professor da Universidade Federal do Amapá. E-mail: davi_rosendo@live.com
369
econômicos, primeiro trata do valor de uso do ribeirinho com o de outros atores sociais sem a
mediação do dinheiro e o segundo trata em si da venda dos produtos com o uso do dinheiro.
Essa ligação com o porto vai além da atividade de comercio, muitos que vem para a
cidade vem em busca também de serviços públicos como de saúde e educação e de moradia
pois muitas famílias dos ribeirinhos mantem casa na cidade, como sendo uma extensão de
suas casas na comunidade, e em geral são de uso coletivo, pois todos da família usufrui
quando chega na cidade. Assim é notável perceber em bairros próximos do porto a presença
de famílias ribeirinhas vindas da região do interior e ilhas do Amapá e Pará.
Percebemos que a temporalidade da vida ribeirinha se difere da vida em cidade, uns
remontam como “lentos” já que não vivem essa correria da cidade e da vida capitalista. O rio
tem um papel importante na vida do ribeirinho, como pontua Menezes (2016, p. 12) “[...]uma
relação intima e diferenciada com o rio, eles fazem parte de suas construções simbólicas e
também oferece elementos da vida material[...]” é a partir do movimentar das cheias e
vazantes das águas de rios, lagos, furos, igarapés que o ribeirinho organiza sua vida. E assim
acontece com o porto do Igarapé das Mulheres em que as águas do Rio Amazonas determina
a dinâmica do porto e também da relação entre o ribeirinho e a população local.
A dinâmica do porto se dá em períodos específicos, justamente nos períodos de
enchente e vazante da maré: é com a enchente que os ribeirinhos desembarcam no porto
trazendo seus produtos ou vindo em busca de serviços na cidade e é na vazante que muitos
embarcam para suas localidades. São nesses dois períodos que o porto “ganha vida”, é quando
de fato percebemos essa relação entre o ribeirinho e o urbano da cidade,
O lócus da pesquisa é o Porto do Igarapé das Mulheres localizado no Estado do
Amapá na cidade de Macapá em uma região de proximidade do centro econômico e
administrativo da cidade em que é responsável pela partida de embarcações e pela
comunicação entre a capital, com localidades do interior e ilhas do estado do Amapá e Pará e
faz com que tenha um movimento diário de produtos rurais que abastecem a cidade e pessoas
que vêm em busca de serviços.
Um porto como o Igarapé das Mulheres é diferente de um porto industrial ou militar é
um porto que se pode dizer artesanal, criado, estruturado e regulado pela própria população
que o ocupa e vive. Por essa característica, o porto do Igarapé das Mulheres, assim como
outros da realidade amazônica, se tem uma forma urbana específica criada pela população
370
ribeirinha e negra de Macapá e das ilhas do Marajó em sua área de influência. É a
caracterização da especificidade desta forma urbana que se torna o objeto de discussão.
A metodologia desta pesquisa é a etnografia que consiste em olhar, ou seja, observar
cotidianamente a realidade social do porto, o movimentar das embarcações, do
entrelaçamento das relações assim como também em ouvir aqueles que lá residem assim
como aqueles que chegam e lá aportam, e por último escrever sobre o objeto pesquisado a
partir das vivências no campo. Como bem salienta Oliveira (1996, p. 29) “[...] é no processo
de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que
dificilmente aparecerão ‘antes’ da textualização dos dados provenientes da observação
sistemática.”
Outro recurso usado é o da fotografia para fazer registro da dinâmica do porto, do vai
vem das embarcações, assim busco trazer o campo da antropologia visual para dentro da
pesquisa pois como sabemos “[...] a antropologia é uma disciplina particularmente
vocacionada para observar tento, ao longo da sua história, desenvolvido uma determinada
forma de olhar para aquilo que nos rodeia” (CAMPOS, 2012, p. 24). Assim a imagem é
como uma ferramenta de investigação e de análise na antropologia no qual me abre a
possibilidade de usar, pois as imagens são “[...] como reveladoras dos encontros entre
observados e observadores e dos processos de construção negociada, continuada e
circunstancial do conhecimento e das representações produzidas durante e após o trabalho de
campo.” (MARTINS, 2013, p. 395)
Existe muitos estudos sobre o urbano na Amazônia, essa pesquisa que se encontra em
fase inicial se debruça sobre a questão urbana, mas de uma maneira própria, focando na
especificidade dos portos amazônicos. Com o desdobramento da pesquisa, já me permitiu a
ida a campo, que possibilitou a fazer algumas observações acerca da dinâmica portuária da
região, de tomar nota de como o porto do Igarapé das Mulheres se torna no fenômeno urbano
um porto misto, com traços da identidade do ribeirinho com a vida urbana.
Nas idas a campo já fiz alguns registros fotográficos acerca da paisagem observada,
das embarcações e de seu colorido que traz um traço marcante para o local, dos trabalhadores
que lá ficam na beira do cais vendendo seus produtos, o agitar das águas do Rio Amazonas
que adentra naquele porto e dentre outros lócus de registros.

371
Assim como resultados parciais, é possível já trazer de fato que o porto é esse elo de
ligação do ribeirinho com o meio urbano e de como essa população transformou e transforma
essa região com traços que são próprios da identidade ribeirinha junto com a vida na cidade
colocando assim o porto com uma forma urbana especifica da Amazônia.

Palavras-chaves: Portos. Cidades. Comunidades ribeirinhas.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Ricardo. A cultura visual e o olhar antropológico. Visualidades. Goiânia, v.10,


nº1, pag. 17-37, jan-jun, 2012

FRAXE, Therezinha. et al. O Camponês Amazônico: vida de trabalho. In: V Seminário


Internacional em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, n.º 10, 2018,
Manaus. Anais... Manaus, UFAM, 2018. Pag. 1-11.

MARTINS, Humberto. Sobre o lugar e os usos das imagens na antropologia: notas críticas
em tempos de audiovisualização do mundo. Etnográfica, v.17(2), pag. 395-419, junho, 2013.
Disponível em: Sobre o lugar e os usos das imagens na antropologia: notas críticas em tempos
de audiovisualização do mundo (openedition.org)

MENEZES, Elisangela Ferreira. “Sou da beira do Madeira”: interfaces entre juventude e


gênero na área ribeirinha de Porto Velho-RO. In: X Simpósio Linguagens e Identidades da/na
Amazônia Sul-Ocidental: trânsitos pós-coloniais e decolonialidade de saberes e sentidos, n.º
10, 2016, Rio Branco/Acre.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O Trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir, escrever.


Revista de Antropologia. São Paulo, v.39, nº1, pag. 13-37, 1996.

372
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 2 - SOCIABILIDADES CENTRO-PERIFERIA: ESTIGMAS E RESISTÊNCIAS

SOCIABILIDADE URBANA E CONDIÇÕES DE MORADIA DE UM


BAIRRO PERIFÉRICO DE NATAL-RN

Raimundo Paulino da Silva189

Os estudos de sociologia urbana Brasil têm sido, nestas últimas décadas, bastante
profícuos. Há uma vasta e relativa produção de pesquisas que têm como campo empírico, os
espaços urbanos, as cidades, discutindo os mais diferentes aspectos, tais como a violência, as
condições de moradia, questões étnicas, desemprego, juventude, entre outros.
Remontando à Escola de Chicago, onde é considerada o berço dos estudos urbanos no
campo da sociologia (BECKER, 1996; COULON, 1995; EUFRASIO, 2013; VALADARES,
2005), e também da antropologia, muitos pesquisadores brasileiros se apropriaram desse
campo de pesquisa para fomentar outros estudos, tendo como campo empírico, as cidades
brasileiras, em especial São Paulo e Rio de Janeiro. Gradativamente, tais estudos foram se
expandindo para outras cidades e capitais do país.
Neste trabalho, situo o objeto de estudo no âmbito dos estudos urbanos, tendo como
referencial teórico, autores como Vera da Silva Telles, Georg Simmel, Marc Augé, entre
outros e como referência empírica, um bairro periférico de Natal, RN. Os sujeitos/informantes
da pesquisa são os moradores desse bairro, procurando pesquisar a sociabilidade urbana e as
condições de moradia desses moradores.
Explicando de forma mais clara, o campo da investigação é o bairro da Lagoa Azul.
Trata-se de um conjunto habitacional, denominado Nova Natal e dois loteamentos – Boa
Esperança e Nordelândia - que fazem fronteira entre si. O que separa esses loteamentos do
conjunto é a Avenida dos Caboclinhos. Para situar a amostra, apresento Natal, que se organiza
em quatro zonas (Norte, Sul, Leste e Oeste). A Zona Norte, a mais populosa da capital, está
dividida em sete bairros: Igapó, Redinha, Salinas, Potengi, Nossa Senhora da Apresentação,

189
Doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS-
UFRN e Licenciado em Ciências Sociais com bacharelado em Sociologia e Antropologia pela UFRN. E-mail:
raipsilva@usp.br.
373
Pajuçara e Lagoa Azul. Este, por sua vez, é composto de vários conjuntos habitacionais e
cercado, em todas as fronteiras por loteamentos (SEMURB, 2021).
Os motivos pelos quais me impulsiona a desenvolver a pesquisa é o fato de que, por
morar num conjunto habitacional nesse bairro, por mais de 20 anos, ter lecionado em escolas
públicas e particulares e aqui ouvir de forma recorrente, discriminação por parte das pessoas
que moram nesse conjunto com aqueles que moram nos loteamentos vizinhos. Ou seja, os
moradores do conjunto, em grande parte, se consideram superiores àqueles que moram na
periferia desse conjunto.
A questão central da pesquisa é a seguinte: Como as diversas categorias de moradores
do bairro da Lagoa Azul, Natal, RN entendem suas condições de moradia e quais as
diferenças entre morar num conjunto habitacional e num loteamento? Além desta pergunta,
procurarei saber que tipos de sociabilidades são praticadas entre moradores desse bairro
periférico da Zona Norte da capital potiguar?
Como objetivos sublinho: a) efetuar uma revisão teórica no âmbito do conceito de
sociabilidade urbana, cidade e periferia, buscando expor e problematizar as suas diversas
concepções; b) conhecer, com base na fala/relato dos moradores, como estes se veem
morando num bairro periférico, em especial as suas próprias condições de moradia; c) analisar
dados recolhidos junto aos informantes (moradores do bairro da Lagoa Azul) por meio dos
instrumentos de pesquisa (entrevistas e observações diretas); d) interpretar, à luz da sociologia
urbana, esses dados, procurando relacioná-los com a finalidade de saber até que ponto eles se
interligam.
Vera Telles, pesquisadora do campo dos estudos urbanos e temas relacionados, tem
publicado diversos estudos que contribuirão para ajudar a pensar nosso objeto de estudos.
Entre tais, destaco quatro: Prospectando a cidade a partir de suas margens: notas inconclusas
sobre uma experiência etnográfica: Ilegalismo urbanos e a cidade, publicado em 2009; cidade
e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito, publicado em
2007 e, por fim, Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos, publicado em
2015. Em todos esses estudos, o campo empírico tem sido a cidade de São Paulo.
Neste último, Telles (2015) apresenta dados interessantes que mostram uma
heterogeneidade mesmo em bairros populares, bem como a concepção de “cidade”, que nos
ajudará em nossa pesquisa. Com base em Harvey (2012, apud TELLES, 2015, p. 20):
374
A cidade não é apenas um contexto, uma arena em que os conflitos
acontecem; é algo que está posto no próprio modo como seus espaços e
estruturas são produzidos, geridos, agenciados na dinâmica da acumulação
urbana, de produção da riqueza, modos de circulação e apropriação; as
estruturas urbanas, suas redes, funções, espaços e artefatos são instrumentos
e recursos estratégicos nos processos de acumulação urbana e expansão das
fronteiras de mercado.

A partir dessas concepções, é possível perceber que a cidade é um espaço urbano onde
as relações entre os atores sociais que nela habitam e transitam, se estabelecem produzindo
entre tantos, situações de conflito.
Simmel (2006), em Questões fundamentais da sociologia, apresenta o conceito de
sociabilidade. Mas para isso, faz uma discussão sobre a concepção de sociedade que defende.
Para ele, “a sociedade seria uma abstração indispensável para fins práticos, altamente útil
também para uma síntese provisória dos fenômenos, mas não um objeto real que exista para
além dos seres individuais e dos processos que eles vivem” (SIMMEL, 2006, p. 7).
Acrescenta ainda que que a sociedade “é também algo funcional, algo que os indivíduos
fazem e sofrem ao mesmo tempo, e que, de acordo com esse caráter fundamental, não se
deveria falar de sociedade, mas de sociação” (SIMMEL, 2006, p. 1718).
Com base nas categorias sociológicas, Simmel (2006, p. 65) chega ao conceito de
sociabilidade, a qual é, para ele, “a forma lúdica de sociação, e – mutatis mutantdis - algo cuja
concretude determinada se comporta da mesma maneira como a obra de arte se relaciona com
a realidade”.
Simmel traz uma categoria importante para pensar os moradores do bairro da Lagoa
Azul. Trata-se do conflito, enquanto conceito sociológico. Segundo ele, o conflito não gera
negatividade, ou seja, desintegração social; ao contrário, é elemento fundamental da própria
unidade social (SIMMEL, 1964).
Marc Augé (2010) faz alusão aos problemas urbanos, tais como a violência, da
juventude entre outros. Para ele, “o par cidade/subúrbio ou, numa linguagem mais geométrica,
o par centro/periferia está no cerne de todas as descrições. É nas ‘periferias’ da cidade que se
situam todos os problemas da cidade: pobreza, desemprego, subhabitação, delinquência,
violência (AUGÉ, 2010, p. 31). É importante salientar sobre o termo periferia, o qual, para
Augé (2010), só tem sentido em relação à noção de centro.

375
Augé (2010) também alude ao termo “periferias urbanas”, as quais, define-as como
“zonas em torno da cidade que estão em oposição ou em rivalidade umas com as outras, à
distância das outras, tão distanciadas umas das outras quanto do centro imaginário da cidade
em relação ao qual elas se definem como ‘periféricas’” (AUGÉ, 2010, p. 32). Periferia, tal
como alerta Augé (2010, p. 34), “pode ser entendida em um sentido geográfico, mas também
num sentido político e social”.
Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma abordagem qualitativa. Nessa
perspectiva metodológica, me ancoro nas orientações de Amado (2013), entre outros. A
estratégia de pesquisa é de caráter etnográfico (BEAUD; WEBER, 2014). Segundo esses
autores, na pesquisa etnográfica, “o pesquisador/investigador é sozinho responsável por seu
trabalho do início ao fim, do projeto de investigação à pesquisa e à análise posterior
definitiva” (BEAUD; WEBER, 2014, p. 191). Ainda para eles, existem três condições para a
pesquisa etnográfica:

Que o meio pesquisado se caracterize por um grau elevado de


interconhecimento; que o pesquisador providencie os meios de uma análise
reflexiva de seu próprio trabalho de pesquisa, de observação e de análise;
que a própria pesquisa seja de longa duração para que se estabeleçam e se
mantenham relações pessoais entre pesquisador e pesquisados (BEAUD;
WEBER, 2014, p. 192).

Quanto à análise dos dados, opto pela análise de conteúdo (AMADO, 2013) dos dados
recolhidos mediante às entrevistas e dos documentos disponibilizados pela prefeitura
municipal do Natal e as notas de campo. Nesse contexto, é importante dizer que “enquanto faz
suas observações, o pesquisador de campo precisa construir constantemente; ele precisa
colocar dados isolados em relação uns com os outros e estudar a maneira pela qual eles se
integram” (MALINOVSKY apud FERNANDES, 1980, p. 1).
A análise dos dados recolhidos é sistematizada a partir das problematizações, reflexões
e discussões, que terão lugar durante o desenvolvimento do estudo. Para a análise dos dados
das entrevistas, utilizo a técnica da análise de conteúdo (AMADO, 2013) a qual compreende
quatro fases. Na primeira, a análise vertical de todos os dados recolhidos nas entrevistas. Na
segunda, será a vez da análise horizontal. A seguir, avanço para construção do mapa
conceitual, o qual se constituirá das duas etapas realizadas anteriormente. Ou seja, o mapa
376
configurará, portanto, das expressões, palavras ou frases construídas pelo pesquisador, na
interpretação das falas dos sujeitos. O mapa conceitual, na sequência, será o terceiro passo do
processo da análise de conteúdo e é a partir dele que construiremos a matriz de análise
(AMADO, 2013).
Em termos de resultados e considerações finais, ainda não nos foi possível apresentar
alguma inferência, uma vez que se trata de um estudo em andamento. Mesmo assim, que essa
breve discussão possa suscitar um debate interessante, tanto para as ciências sociais, como
para os estudos urbanos, tendo a “cidade praticada”, tal como intitula-se o GT o qual este
trabalho faz parte nesse tão importante evento.

Palavras-chaves: Sociabilidade Urbana. Periferia. Condições de moradia.

REFERÊNCIAS

AMADO, J. (coord.). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Editora


Imprensa Universidade de Coimbra, 2013.

ANUÁRIO NATAL. Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo. Natal,


SEMURB, 2021.

AUGÉ, M. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: EDUFAL; UNESP, 2010.

BEAUD, S.; WEBER, F. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.

BECKER, H. Conferência: A escola de Chicago, Mana


v. 2, n. 2, Rio de Janeiro, out. 1996.

COULON, A. A escola de Chicago. Campinas: Papirus, 1995.


EUFRASIO, M. A. Estrutura urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago
(1915-1940). 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 4. ed. São Paulo: T.
Queiroz, 1980.
SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

377
SIMMEL, Georg. SociologIa: Estudios sobre las formas de socialización, Volumes 1 e 2.
Buenos Aires, Compaliía Editora Espasa-Calpe Argentina S. A, 1939.
TELLES, V. S. Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos. Revista de
Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan./jun., p. 15-41, 2015.
VALLADARES, L. (org.). A escola de Chicago: impacto de uma tradição no Brasil e na
França. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERG, 2005.

378
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 2 - SOCIABILIDADES CENTRO-PERIFERIA: ESTIGMAS E RESISTÊNCIAS

AS PERSPECTIVAS QUALITATIVAS DO TECNOBREGA NO PARÁ:


UMA ANÁLISE DAS VIVÊNCIAS DOS ESTUDANTES DA UFPA

Lourena Jesus de Souza190


Erika Cristina Barroso Magalhãe191
Isabela Vitória Pinto da Silva192

O tecnobrega como movimento musical, pode ser compreendido como fruto de


movimentos culturais no âmbito da música que expressam as mudanças de compreensão do
fazer musical. Conforme aborda Amaral (2009), o que em Belém é conhecido como
tecnobrega deriva da classe do Brega que se iniciou nos anos 60, e tomou nova forma em
Belém ao se apoiar nos princípios da mesclagem de distintos estilos audiovisuais e na
transferência do foco do Brega, antes do centro, para as periferias.
Ainda acerca da contextualização histórica do tema, o autor citado acima destaca
também que o Brega, como estilo musical, era entendido como algo ruim, mas o Tecnobrega
rompe com o estigma social ao incluir o uso das tecnologias de aparelhagens, ao mesmo
tempo que fomenta um mercado informal do audiovisual em Belém. Dessa forma, o ritmo
desenvolveu o seu próprio estilo e é definido por Amaral como a possibilidade de vivenciar
distintas culturas in loco enquanto rompe com o modo sistemático de se viver a música.
Posto isso, é importante destacar que este estudo tem por objetivo principal a análise
das vivências dos estudantes da UFPA nas perspectivas qualitativas do tecnobrega no Pará.
Portanto, de forma investigativa, busca-se aqui o entendimento sobre o comportamento das
complexas redes de relações sociais que se desenvolvem nos ambientes festivos das
aparelhagens, dadas as transformações históricas, tecnológicas e culturais experimentadas por
estudantes.Nesta pesquisa, nossas observações foram desenvolvidas a partir de questões
norteadoras, interpretadas por análises qualitativas dos relatos de experiências dos

190
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
lourena.souza@ifch.ufpa.br
191
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
ec62821@gmail.com
192
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
isabelaufpa20@gmail.com
379
participantes de festas de aparelhagem. As questões são, respectivamente: 1- “ao quanto os
alunos da UFPA consomem o tecnobrega nos momentos de lazer?”, com a finalidade de
analisar a valorização da cultura do tecnobrega no âmbito social dos estudantes da instituição;
2 - “o quanto eles ocupam os espaços culturais de aparelhagem?”, tendo em vista observar a
frequência do consumo deste espaço pelos alunos, a fim de identificar a importância da
tradição do consumo dos locais de festas; 3 - “quais as roupas e acessórios são mais usados
em festas de aparelhagem?”, com a finalidade de verificar se as marcas de roupas e bebidas
influenciam diretamente na estética e nas dinâmicas das festas e como elas são vistas pelos
consumidores.
No que se refere a metodologia, a coleta de dados foi realizada através de entrevistas
presenciais durante os dias 25 a 31 de maio de 2022 dentro dos ambientes da Universidade
Federal do Pará, onde um roteiro de perguntas com questões semiestruturadas guiou diálogos
entre os pesquisadores e os entrevistados. Todas as entrevistas foram gravadas através de
celulares dos entrevistadores e, em seguida, resumidas em transcrições no Excel para uma
avaliação mais sucinta dos relatos. Os diálogos tiveram, em média, o tempo de 10 minutos. A
análise dos dados aconteceu em etapas, sendo a primeira desenvolvida a partir do exame dos
áudios produzidos nas entrevistas. Na segunda fase, com a utilização dos programas Word e
Excel realizaram-se a produção escrita dos resumos e a padronização de todas as entrevistas
com base nas questões norteadoras, com categorização das informações obtidas. Em seguida
os resultados foram tratados com finalidade de agrupamento de informações consideradas
similares, com base nas categorias de indicadores potenciais de “ambiente”, “segurança”,
“valorização cultural” e "letra", de forma a proporcionar uma melhor interpretação ao leitor,
dada à quantidade de informações coletadas pelos pesquisadores.
No âmbito das discussões e resultados, foram 22 pessoas entrevistadas no total, assim,
com base nas entrevistas, foi observado que grande parte dos entrevistados escuta o
tecnobrega, independente do seu gosto ou preferência pelo gênero, isso em razão de que um
ponto em comum nos relatos obtidos, é que o gênero musical abordado faz parte do cotidiano
belenense, logo, mesmo aqueles que não frequentam as festas de aparelhagem, tem o hábito
diário de escutar e vivenciar, em diversos momentos do seu dia, o tecnobrega. Dessa forma,
foi perguntado a impressão dos entrevistados, sejam frequentadores ou não, sobre as festas de

380
aparelhagem. Assim, podemos sinalizar alguns indicadores potenciais relevantes sobre não só
no que se refere ao consumo do tecnobrega nos momentos de lazer, mas também sobre os
prós e contras que influenciam o hábito de ir a esses espaços:

O ambiente: grande parcela dos entrevistados que gostam do gênero tecnobrega


consideram as festas de aparelhagens como um entretenimento, onde é possível dançar e se
divertir, sobretudo, uma oportunidade de cultivar laços afetivos e novas amizades, tornando
esse espaço não só como essencial para o lazer, mas também para a solidariedade a
valorização cultural. Uma experiência negativa em relação ao ambiente das festas de
aparelhagem foi a questão da poluição sonora, as quais incomodam pelo exagero de música
em alto volume.
A segurança: foi observado um consenso sobre as impressões da segurança nas festas
de aparelhagem, a maior parte dos entrevistados ponderou que não consideram tais locais
como seguros sejam em vista do acesso facilitado as festas, as quais não necessitam de grande
“burocracia” ou fiscalização e, por esse motivo, crianças e ladrões podem entrar; ou em razão
das constantes brigas durante os eventos, pois também foi observado as vivências dos
entrevistados de que as festas de aparelhagem em Belém, hoje, englobam as diversas classes
ou grupos sociais e, por consequente, este seria um motivo de animosidades. Um exemplo
pode ser observado nas disputas nas festas de aparelhagem, por maior ocupação e consumo
dos “clubes” ou “equipes” de aparelhagem, onde cada grupo compartilha uma identidade e
localidade; nesse sentido, quanto maior a ocupação e consumo, maior o destaque e “status”
nas festas. Ademais, foi observada a preocupação em relação ao consumo e venda de drogas
nas festas de aparelhagem, o que causa um sentimento de insegurança em alguns
entrevistados.
A valorização cultural: Foi observado que grande parte dos entrevistados considera as
festas de aparelhagem e o gênero tecnobrega como fomentadores da valorização da cultura
paraense pois não só engloba diversas características de remixagens, como os samples193
típicos da música eletrônica, como também os gêneros regionais que formam o tecnobrega,
como o “calypso”, “carimbó” e “guitarrada”. Tudo isso desenvolvido, juntamente, com as

193
Trechos sonoros das mais diversas músicas, que podem ser reutilizados dentro de novas gravações de forma
remixada, cortada ou direta. Esse recorte pode dar origem a uma nova melodia, com uma roupagem diferente
do som. (BARROSO, 2021).
381
grandes “estruturas de ferro”, o que também, portanto, é reconhecida como expressão e
estética tradicionais nas festas, por exemplo as “super máquinas" de som e painéis
constituídos de metal e em formato de animais, como águia, crocodilo ou búfalo.
A letra: grande parte dos entrevistados, quando relataram uma experiência negativa,
em relação ao gênero de tecnobrega e as festas de aparelhagem, foram no que se refere às
canções com discursos machistas e misóginos, as quais causam uma sensação de
“humilhação” e normalização de práticas de abuso em relação às mulheres.
As motivações: em relação às motivações dos entrevistados para irem às festas de
aparelhagem, nota-se um padrão de que todos que foram, buscavam divertimento e lazer.
Entretanto, vale considerar as influências relatadas com base nas entrevistas, por exemplo,
nota-se que todos entrevistados, principalmente do sexo feminino, frequentam os espaços de
aparelhagem com a condição de estarem acompanhados de amigos, família ou ambos. Assim,
consideramos que as relações sociais externas às festas passam a influenciar diretamente no
público que frequenta esses locais. Diferentemente das ocupações nas festas de aparelhagem
localizadas nos centros urbanos da cidade de Belém, é interessante notar como a ocupação nas
festas, por parte das famílias nos interiores do Pará, possuem um papel relevante de
influenciar no que se refere ao hábito de prestigiar as festas de aparelhagem nas gerações mais
novas da família. Nesta linha de raciocínio, os entrevistados relataram que muitas
experiências “marcantes” ocorreram nas festas de aparelhagem, como exemplo citado por
alguns entrevistados: a primeira vez que consumiu bebidas alcoólicas, como “primeiro beijo”,
até mesmo a primeira “relação sexual”.
Vestuário: Grande parte dos entrevistados que frequentam ou não as festas de
aparelhagem sinalizaram que, no que se refere ao estilo de roupa para frequentar esses
espaços, o adequado seria roupas leves e confortáveis, enfim, roupas simples que “não façam
calor”. Entretanto, a partir das falas também é possível observar uma possível distinção com
base no gênero: os indivíduos do sexo masculino optam por irem com roupas folgadas e
longas, já as do sexo feminino optam por irem com roupas e acessórios mais “provocantes” e
“decotadas”.
Marcas de roupas e acessórios: Foi analisada uma distinção de todos os entrevistados:
os que acham que as marcas de roupas e acessórios não influenciam nas dinâmicas das festas
de aparelhagem, mas eles a tornam como algo característico da estética e aqueles que
382
consideram que as marcas de roupas influenciam tanto nas dinâmicas das festas como na
estética. Os entrevistados que acreditam que as marcas influenciam tanto na estética, tal
comona dinâmica das festas, argumentam que as marcas demonstram não só uma
diferenciação de classes dos indivíduos que frequentam, mas também expressão um papel
importante nas relações econômicas e de “status” e “poder”, isto é, uma imagem de destaque.
Consumo de bebidas: Os entrevistados que consomem bebidas alcoólicas, foi
observado que a opinião geral é que, hoje, nas festas de aparelhagem não há exclusividade o
consumo de apenas uma bebida, é possível encontrar bebidas diversas como Vodka, Vinho,
Whisky e Caipirinha. Entretanto, é consenso de todos os entrevistados que há grande
predominância no consumo e venda de cerveja, não só pela preferência de consumo, mas
também pelo massivo marketing deste modelo de bebida alcoólica, inclusive pelo rendimento
e promoções apresentadas. Um fenômeno curioso foi observado nos relatos dos entrevistados,
especificamente o consumo de cervejas também é utilizado como forma de interação social ou
romântica nas festas de aparelhagem. Uma interlocutora mencionou, quando indagada sobre o
consumo de bebidas, que quando alguma pessoa quer ter determinada relação romântica com
outra, esta primeira envia um “balde de cerveja” como presente ou convite a outra pessoa
como forma de aproximação de laços afetivos, sendo que esta situação também é possível de
ocorrer entre amigos; em suma, pode ser considerada como sinal de estima, prestígio e
interesse, romântico ou não.
Por fim, concluímos que a pesquisa demonstrou como as relações sociais, econômicas
e culturais estão intimamente relacionadas ao convívio e uso das festas de aparelhagem como
espaços de socialização e lazer. A maioria dos entrevistados consome o conteúdo musical e
enxergam-o positivamente, com compreensão de distintas nuances relativas a ele. A
visualização de como a estética vestuária impacta as relações nesses espaços, por exemplo, é
evidência da percepção individual sobre o fenômeno, desenvolvendo a partir daqui variadas
formas de relações. Observa-se uma valorização do tecnobrega como gênero musical, mas sua
relação com a periferia ainda gera um forte estereótipo que afasta, ou pelo menos, cria
concepções negativas. Os resultados apresentados aqui compreendem um recorte social que
reflete visões, concepções e experiências acerca do tecnobrega, todas relevantes para uma
discussão sociológica e cultural do impacto fenomenológico. Entretanto, devemos considerar

383
onde o recorte foi feito e quais grupos sociais abrangemos, exigindo assim, mais trabalhos
futuros que busquem a visão de diferentes estratos sociais em Belém.

Palavras-chaves: Aparelhagem. Vivências. Cultura.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Paulo Murilo Guerreiro do. Estigma e cosmopolitismo na constituição de


uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do tecnobrega em
Belém do Pará. 2009. 244 f. Tese (Doutorado) - Curso de Música, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
BARROSO, Bárbara. Sample na produção musical: tudo se cria ou tudo se transforma?
Culturadoria, 2021. Disponível em: &lt; https://culturadoria.com.br/sample-na-
producao-musical/ &gt;. Acesso em: 26 jul. 2022.

384
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 3 - CONFLITOS AMBIENTAIS E TRANSFORMAÇÕES DAS PAISAGENS

O PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 01/2020, JUSTIÇA AMBIENTAL –


ANÁLISE DA DISPUTA DE NARRATIVAS VOLTADA PARA A DERRUBADA DO
VETO AO PEC 01/2020

Aída Maria de Mello Neto


Dalton Beltrão Rodrigues

Esta pesquisa propõe-se a analisar a disputa de narrativas em torno da derrubada ou


permeância do veto ao Projeto de Lei Complementar 01/2020 da Câmara de Vereadores de
Belém, de autoria originária do vereador Zeca Pirão (MDB). Esse projeto de Lei
Complementar altera o plano diretor da Cidade de Belém permitindo a construção de grandes
empreendimentos do comercio atacadista na orla da cidade. Hoje essa área urbana é ocupada
em quase sua totalidade por população de baixa renda, áreas verdes e pequenos comércios
voltados para o público habitual residente e frequentador daquele espaço. A centralidades das
narrativas aqui analisadas se dão contra e a favor da manutenção do veto. A análise passará
por levantar as linhas gerais dos argumentos dos grupos de interesse envolvidos. O Vereador
Zeca Pirão, autor do projeto, em entrevista ao Jornal Liberal em 24/05/2021 disse que o
objetivo do PL é modernizar a cidade. O Projeto de Lei Complementar 01/2020 foi vetado em
dezembro de 2020 pelo prefeito da época Zenaldo Coutinho.
Em 2021 o projeto foi representado para a reanalise do veto reabrindo a discussão e os
debates em torno da derrubada ou permanência do veto. A partir de então diversas
organizações e grupos que discutem o direito à cidade passaram a fazer campanhas contra a
derrubada do veto. Dentre os componentes desses grupos estão parlamentares, principalmente,
vereadores (as) do munícipio que movimentam as redes sociais, como Instagram e Twitter.
Como objetivos buscamos definir, a partir da análise da disputa de narrativas na
reapresentação do projeto em 2021, qual narrativa se sobressai e quais os conceitos centrais
dos argumentos contra e favor. E outro momento pretendemos analisar como a cidade e
população residente na orla da cidade será afetada caso haja a derrubada do veto ao PL.
Buscando um direcionamento inicial, a fim de embasar este trabalho, nos apoiaremos
em conceito de Justiça Ambiental, tal como articulado por como Henri Acserald, Cecília
Mello e Gustavo Bezerra (2009). Este conceito se fundamenta na “condição de existência

385
social configurada através do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as
pessoas independente de sua raça, cor ou renda no que diz respeito à elaboração,
desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, leis e regulações ambientais”
(ACSERALD; MELLO, & BEZERRA, 2009).
Outra perspectiva que usaremos de suporte é de que a desigualdade não se restringe à
privação de renda, ou a outras dimensões como raça, cor, gênero, orientação sexual, mas que
“ela impõe-se, inclusive, na segregação do espaço que indivíduos se inserem e se
movimentam, delimitando o lugar de cada cidadão na face urbana” (SCALON, Celi. 2011).
Essas perspectivas permitem analisar que os grupos que ocuparam essas as áreas da
orla de Belém, que, em alguns pontos, ainda são consideradas de risco ambiental, por falta de
saneamento básico, enfrentarão grandes dificuldades caso o PL seja aprovado.
Segundo vídeo publicado na rede social Instagram, pelo grupo de pesquisa URBANA
vinculado à UFPA, UFMG e INPE, no dia 14 de junho de 2020, a construção de grandes
atacadistas e a facilitação da especulação imobiliária nessas áreas, empurrará os moradores e
frequentadores habituais dessas locais para zonas periféricas. Segundo o URBANA, o
afastamento desses grupos trará alteração nos seus modos de vidas. Como exemplo dessa
mudança no modo de vida o grupo de pesquisa cita a dificuldade de acesso ao Rio Guamá e
ao centro da cidade. Esses dois locais são locais de geração de renda para esses grupos. O
afastamento desses grupos ocorre dentro de um processo de gentrificação da área. O processo
de gentrificação já ocorreu em outras áreas da cidade favorecendo interesses particulares de
grupos empresariais e indivíduos de classe abastada.
Para subsidiar este trabalho, fizemos uso do método de pesquisa da Análise de
Conteúdo, tal como pensado por Laurence Bardin. Sua preocupação se fundamenta na técnica
denominada análise temática. Esta metodologia pode ser compreendida como “um conjunto
de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e
objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores, quantitativos ou não, que
permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas
mensagens”. (BARDIN, 1977, p. 42). Para desenvolver este trabalho foi necessário nos
aprofundar nesse movimento que surgiu nas redes sociais, analisando vídeos, entrevistas e
reportagens sobre a possibilidade da derrubada do veto e como isso afetaria a população

386
residente na orla de Belém, além dos possiveis danos ambientais que serão causados por essas
construções.
Pra finalizar, é importante destacar que para que haja uma alteração na lei, em um
processo democrático, é importante que sejam feitas consultas públicas com a população,
como moradores, comerciantes e frequentadores atuais. Lembramos também que o conceito
de “modernizar” como declarado pelo vereador autor do projeto não passa apenas por
construções e grandes empreendimentos. “Mordenizar” é primordialmente dar acesso a
condições dignas de vida coisa que hoje é escassa para população daquela área.
Os resultados da análise chegam a conclusão que a narrativa em prol de manter o veto
está tendo maiores resultados visto que o veto continua e a votação que havia sido agendada
para a sua derrubada foi adiada.

Palavras-chaves: Sociologia Urbana. Justiça Ambiental. Redes Sociais.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977

ASCELRAD, Henri; BEZERRA, Gustavo das Neves &amp; MELLO, Cecília Campelo do A.
O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. SCALON, Celi. Desigualdade,
pobreza e políticas públicas: notas para um debate. Revista Contemporânea, Nº 01, p. 49-68,
jan. – jun. de 2011.

GUIMARÃES, João Paulo. Belém corre risco social e ambiental com projeto de lei
especulativo. Jornalistas Livres, 2021. Disponível em: https://jornalistaslivres.org/belem-do-
para-corre-risco-social-e-ambiental-com-pl-01-2020/. Acesso em: 09/2021

CAU/PA se posiciona quanto ao PL que propõe flexibilizar as regras de uso do solo em parte
da orla de Belém. Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Pará, 2021. Disponível em:
https://www.caupa.gov.br/cau-pa-se-posiciona-quanto-ao-pl-que-propoe-flexibilizar-as
regras- de-uso-do-solo-em-parte-da-orla-de-belem/. Acesso em: 12/2021.

Porque se opor à derrubada do veto da PL 01/2020?. 14/06/2021. Instagram. Perfil:


@urbanapesquisa. https://www.instagram.com/tv/CQHPsaEDWtF/?utm_medium=copy_link.
Acesso em: 09/2021.

387
CARDOSO, Ana Cláudia Duarte; NETO, Raul da Silva Ventura. A Evolução Urbana De
Belém: trajetória de ambiguidades e conflitos socioambientais. Cad. Metrop., São Paulo, v.
15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013.

GOLDBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências


Sociais/Mirian Goldberg. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2004.

MELLO, Natália. “Vamos derrubar esse veto”, afirma Zeca Pirão sobre veto a Projeto que
permite construções na Orla de Belém. O Liberal, 2021. Disponível em:
https://www.oliberal.com/politica/vamos-derrubar-esse-veto-afirma-zeca-pirao-sobre-veto-a-
projeto-que-permite-construcoes-na-orla-de-belem-1.390905. Acesso em: 02/2022.

388
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 3 - CONFLITOS AMBIENTAIS E TRANSFORMAÇÕES DAS PAISAGENS

RACISMO AMBIENTAL NO BAIRRO MONTESE (TERRA


FIRME) EM BELÉM (PA): UM ESTUDO DE CAMPO ACERCA DA
INJUSTIÇA AMBIENTAL E MOVIMENTOS SOCIAIS

Laura Cecília Braga Guimarães194


Thalles Castellani Penna de La Rocque Real 195
Nelissa Peralta Bezerra196

Na segunda metade do século XIX a região amazônica enfrentou numerosas mutações


em seu arranjo urbano. Nesse cenário, na cidade de Belém a infraestrutura planejada foi
destinada às regiões centrais nos terrenos de cotas mais elevadas, localizados antes da
chamada Primeira Légua Patrimonial. Neste espaço se concentra a melhor infra-estrutura, os
serviços urbanos, os locais de trabalho, comércio e lazer. (Pereira, 2009). Esse primeiro
processo de urbanização motivou o deslocamento da população de baixa renda (Leal, 2022).
Os bairros residenciais pobres se estendiam pelas regiões de baixada e caracterizavam-se por
suas habitações de madeira edificadas em áreas de várzea, sujeitas às inundações. O processo
de ocupação e a ação antrópica produziram grandes mudanças no território, tais alterações
culminariam na emergência de regiões de altos riscos ambientais, que foram habitadas pelas
populações mais desprivilegiadas politicamente.
A bacia urbana do Tucunduba é a segunda maior da cidade de Belém e apresenta doze
canais distribuídos pela região. O processo de concentração populacional no local provocou
variações em suas coberturas vegetais, igarapés, cursos d'água entre outros atributos naturais.
A ocupação desordenada (induzida pelo estado) contribuiu para a deterioração do espaço e
acentuou os riscos de danos ambientais causados por fenômenos associados à pluviometria
como inundações e alagamentos. Além disso, esses riscos têm seu nível aumentando se
levarmos em consideração a vulnerabilidade social dos habitantes que residem nessas áreas
propensas a ameaças naturais.
O canal Lago Verde inunda suas margens frequentemente e, por conta das condições
precárias de saneamento, a população do bairro de Terra Firme fica suscetível à contaminação
por doenças de propagação hídrica. Esse cenário de saneamento básico deficitário atrelado à
194
Graduanda, Universidade Federal do Pará, ceciliaguimaraes04@outlook.com.
195
Graduando, Universidade Federal do Pará, tchenrezig@gmail.com.
196
Doutora, Universidade Federal do Pará, nelissapb@ufpa.br.
389
falta de urbanização e espaços de lazer, compromete a mobilidade e a sociabilidade da
comunidade ao encerrar suas possibilidades pela negação do acesso à cidade.
As transições referentes ao ordenamento urbano não se distribuíram em toda a
extensão da cidade de Belém. O que pode ser facilmente notado é a concentração dos
equipamentos urbanos e serviços públicos nas áreas centrais, empurrando a população de
baixa renda para as margens da urbe. A análise do processo de urbanização em torno da bacia
do Tucunduba salienta o dualismo centro-periferia partindo da falta de estruturação urbana,
além disso, mostra como a urbanização desalinhada, congruente ao descaso por parte do
Estado, trazem problemas significativos para a população. Trata-se de uma situação
caracterizada como injustiça ambiental: “mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto
de vista econômico e social, destinam maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento
às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos
tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis” (Acserald et
al. 2009, p.41).
Mediante estas condições, movimentos sociais do bairro da Terra Firme atuam de
maneira pedagógica e política de forma a alertar sobre a exposição da comunidade a riscos
socioambientais. Agente importante na luta da luta histórica pela macrodrenagem do igarapé
Lago Verde, o Movimento Tucunduba/Pró Lago Verde reivindica a pavimentação e drenagem
do canal, bem como a urbanização planejada para os bairros que perpassam o Tucunduba.
O trabalho busca descrever a relação dos movimentos sociais com a questão do
saneamento e saúde no bairro Montese e investigar se há diferenças entre marcadores de raça
e classe na distribuição da desigualdade ambiental. Para isto foi feito um levantamento
bibliográfico que engloba o tema de meio ambiente e insegurança social, além de pesquisa em
campo com movimentos sociais localizado no bairro, onde se colheram informações obtidas
em uma roda de conversa com agentes comunitários no Barracão do Boi Marronzinho, centro
cultural e de consciência ambiental, que, em associação com o Espaço GeoHostel, contribuem
fortemente para a compreensão das dinâmicas sócio urbanas e ambientais do bairro. Em
conjunto a este processo também trabalhamos com a análise de dados secundários coletados
na plataforma SIDRA/IBGE. Variáveis como etnia, domicílio, população e renda foram
selecionadas sob a premissa de comparar o perfil social e econômico da população dos dois

390
bairros - Terra Firme e Nazaré -, buscando entender se existem diferenças sociais entre os
grupos mais suscetíveis a sofrer riscos ambientais.
Em 2010, segundo os dados coletados na plataforma SIDRA, habitavam no bairro da
Terra Firme 61.439 pessoas com idade igual ou acima de 5 anos, distribuídas entre 15.464
residências. No bairro de Nazaré, residiam, na mesma época, 20.504 pessoas da mesma faixa
etária supracitada, divididas por 6403 domicílios. Ou seja, em Nazaré há menos de um terço
do número de pessoas e residências presentes no bairro da Terra firme.
Segundo o sistema, 77% desta população da Terra Firme são pessoas racializadas,
enquanto brancos totalizam 23% do contingente. Já no bairro de Nazaré, 55% de sua
população é formada por pessoas brancas e 45% de pessoas racializadas. Ainda em 2010, a
renda mensal média da população da Terra Firme era de apenas R$ 714, enquanto que a renda
mensal média da população de Nazaré era de R$ 4.357, aproximadamente 6 vezes mais que o
rendimento médio da Terra Firme. O rendimento mensal médio dos cidadãos de Belém, na
mesma época, era de R$ 1.191, 166,76% a mais que a renda mensal média dos moradores do
bairro da Terra Firme. Estes dados socioeconômicos são importantes para discutir sobre as
condições que operam o racismo ambiental e a segregação socioespacial na região belenense.
Em modo de alterar a expectativa passiva diante destas problemáticas, atualmente
espaços de educação e apoio comunitário locais como o Movimento Boi Marronzinho e o
Espaço Geohostel engajam-se na organização contra as injustiças ambientais no bairro e
operam por meio de ações sustentáveis promovidas por um ecoponto de coleta seletiva; rodas
informativas e lúdicas para a população acerca da relevância da participação dos moradores
em frente à distribuição dos riscos socioambientais na Terra Firme, de forma a posicionar o
relato e experiência dos moradores como relevante a elaboração não discriminatória de uma
política ambiental pensada para quem de fato reconhece a realidade do local (Acserald et al.
2009).

Estes movimentos sociais surgem na Terra Firme pela carência do direito a cidade e
se propõem a elaborar práticas de ressignificação de ocupação dos espaços a começar pela
reflexão da prática de habitar. Foi possível notar pela fala dos agentes comunitários a
preocupação em alterar a perspectiva dos moradores de apenas vítimas afetadas pelas
condições socioambientais e políticas coercitivas para sujeitos de transformação. Isto foi

391
precisamente notado nas práticas do coletivo Cine Club TF, como um catalisador da arte
periférica que busca ressignificar a periferia através de resistência através da arte e cultura, a
partir de declamação de poesias, produção audiovisual, batalha de rimas, cultura hip hop. Já o
Ecoponto Geo Hostel busca, a partir de implementação de práticas de coleta seletiva e
reutilização criativa dos resíduos, a mudança pela iniciativa pessoal que dialoga com os
problemas vivenciados na comunidade.
Concomitante a isto, a comunidade e agentes comunitários, que constituem o corpo
dos movimentos sociais, têm se engajado na luta por condições dignas de moradia e saúde em
fóruns e plenárias com a prefeitura ensejando desenvolvimento de políticas públicas
compatíveis com as necessidades locais. Em meio a isto houve a conquista do Projeto
Macrodrenagem da Bacia do Tucunduba (atualmente em andamento) que irá beneficiar
bairros como a Terra Firme, Guamá, Marco e Canudos e tem previsão para transcorrer até o
final do ano de 2022. O projeto Tucunduba também conta com a construção de unidades
habitacionais em conjuntos residenciais do Riacho Doce que abrigam famílias que precisaram
ser realocadas por conta dos trabalhos sendo executados nos canais, além da criação da
Estação de Tratamento de Esgoto do Riacho Doce.
Na gestão municipal atual, está operando o Programa Tá Selado, um fórum de
participação cidadã da prefeitura de Belém, que elege pautas prioritárias a serem discutidas e
aplicadas na cidade. Desenvolvido durante o governo do prefeito Edmilson Rodrigues, o
fórum conta com plenárias em que os conselheiros dos distritos administrativos de Belém e
moradores possam opinar politicamente acerca dos problemas experienciados em seus bairros
e discutir sobre suas soluções. As propostas mais relevantes entram para o Plano Plurianual
do Município (PPA) para o quadriênio 2022 – 2025, com a execução do orçamento de 2022.
A ineficiência das políticas urbanas em produzir uma integração dos cidadãos de
baixa renda, faz com que os cidadãos se aglomerem em residências nas regiões de baixada e
periferias da cidade, comumente em áreas de degradação ambiental e com menor valor
imobiliário. A rotina na cidade também explicita as dinâmicas de poder, visto que o espaço
que absorve estas atividades é um organismo vivo, que age como produtor das relações
sociais, e é onde se manifesta a realização da criatividade humana (Lefebvre, 1991). O espaço
é o meio de criação da potencialidade humana, e pode vir a favorecer as relações sociais de
comunalidade, a partir da habitação como uma prática de direito à cidade.
392
Palavras-chaves: injustiça ambiental. movimentos sociais. políticas públicas

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, H. et al. O que é justiça ambiental?. Rio de Janeiro, Garamond, 2009.

ESPÍRITO SANTO, W. R. do; RETONDAR, J. J. . M. Direito ao lazer e direito à cidade:


interseções a partir de um projeto de extensão universitária. Movimento, [S. l.], v. 24, n.
1, p. 251–262, 2018. DOI: 10.22456/1982-8918.67920. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/67920. Acesso em: 12 ago. 2022.

HARVEY, D. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:


Martins Fontes, 2014

LEAL, M. V. S.; RAMOS, A. C. D. A bacia hidrográfica urbana do Tucunduba: impactos


no uso e ocupação do solo em Belém, Pará. Sustentabilidade: Diálogos Interdisciplinares,
v. 3, e225538, 2022. https://doi.org/10.24220/2675-7885v3e2022a5538

LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo, 1991.

PEREIRA, I.S. As Políticas de Revitalização Urbana e a Localização das Classes Sociais: O


Caso de Belém. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Universidade de
Brasília, 2009. 304 f.

393
GT 6 - A CIDADE PRATICADA:
ETNOGRAFIAS, MEMÓRIAS, PAISAGENS E IMAGINÁRIOS
SESSÃO 3 - CONFLITOS AMBIENTAIS E TRANSFORMAÇÕES DAS PAISAGENS

OS CATADORES DE RECICLÁVEIS NO IMAGINÁRIO


COLETIVO JANAUBENSE: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA
PESQUISA IMAGÉTICA

Éder de Souza Beirão197


Paula Cruz Pimentel198
Tarso Guilherme Macedo Pires199

A partir da promulgação da lei 12.305 de 2010, que instituiu a Política Nacional de


Resíduos Sólidos - PNRS, onde os Catadores de Recicláveis foram reconhecidos como atores
sociais integrados aos processos produtivos, houve um substancial incremento de publicações
científicas nas quais este estrato social passou a figurar como ponto focal de pesquisas. Nelas,
via de regra, são retratados como depositários de preconceitos, marginalização e exclusão.
Comumente, tais publicações reforçam a ideia de que o estigma que os marcam é fortemente
associado ao lixo com o qual lidam200. Contudo, há a possibilidade de que os Catadores de
Recicláveis estejam reproduzindo um discurso, por eles incorporados, que foi exógena e
socialmente construído. Para Dubet (2021), não raro, as políticas sociais de intervenção nas
camadas excluídas os caracterizam em categorias marcadas por algum tipo de
“desvantagenlogia”, fazendo nascer um “estigma”, que acaba sendo interiorizado por tais
grupos. Desta forma, ocorre uma colonização da experiência vivida, pois interfere na
percepção que os indivíduos possuem de si mesmos.
Com essa reflexão em mente, o principal objetivo deste trabalho foi o de indicar, em
perspectiva comparada com outras ocupações, a relevância social atribuída aos Catadores de
Recicláveis no imaginário coletivo dos citadinos de Janaúba - MG. Nesse esforço, buscamos,
ainda, elementos para confirmar ou, eventualmente, refutar a ideia de que esses profissionais

197
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS - Universidade Estadual
de Montes Claros - UNIMONTES, ederbeirao@gmail.com.
198
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS - Universidade Estadual
de Montes Claros - UNIMONTES, paula.pimentel@hotmail.com
199
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS - Universidade Estadual
de Montes Claros - UNIMONTES, tarso.pires@ifnmg.edu.br.
200
Por exemplo, as autoras Costa & Pato (2016, p.131) afirmam que os “preconceitos (…) em relação aos
catadores são muitas vezes referentes à associação entre esses e o lixo, na acepção de algo sujo, descartável,
que incomoda”.
394
são “maculados” pelo lixo com o qual lidam cotidianamente.
Tratou-se de uma pesquisa descritiva, de natureza quantitativa e que utilizou uma
abordagem imagética como estratégia de investigação. Para Medina Filho (2013), o
“imaginário social”, enquanto capacidade de se evocar uma “imagem” é o locus onde se
constrói as representações sociais, por isso, a necessidade de se acessar tais imagens e revelar
tanto informações de natureza valorativa, quanto afetivas. Os dados foram coletados no
âmbito do município de Janaúba - MG, entre os dias 19 a 23 de janeiro de 2022, por meio do
“Google Forms” e obteve 272 respostas201.
Desta forma, solicitou-se aos entrevistados que observassem 29 imagens202 de
indivíduos em situações diversas e, com base somente nas cenas, avaliassem a
importância/relevância/contribuição daquilo que os retratados estavam fazendo para a
sociedade, como um todo203. Dentre tais imagens, sete aludem às pessoas que lidam com o
“lixo” para viver/sobreviver. A partir disso, calculou-se uma média simples e organizou-se
um ranqueamento204 de “relevância social” das atividades retratadas.

201
O levantamento foi apresentado somente com o título de “Pesquisa de Percepção”, de forma a evitar
que juízos prévios interferissem nas respostas. Quanto às imagens, nenhuma descrição/legenda foi apresentada.
Assim, evitou-se qualquer tendência à “ancoragem” que é o efeito de se limitar o sentido do conteúdo imagético
através do texto. Sem tal contextualização, as “cenas” são sempre polissêmicas, contêm algum grau de
ambiguidade.
202
As 29 imagens foram selecionadas para esta pesquisa levando-se em conta o grau de
ambiguidade/polissemia, ou seja, a existência de maior ou menores possibilidades de interpretações diferentes
para uma mesma cena. Além disso, buscou-se isolar a influência de variáveis intervenientes como gênero e raça
nos padrões de respostas. Por exemplo, há duas imagens que aludem ao trabalho docente: a de um homem
branco e a de uma mulher negra. Os dados coletados permitem afirmar que tais variáveis não impactaram nos
resultados.
203
Para tanto, bastava atribuir um valor dentro de uma escala de 0 (zero) a 10 (dez). Somente essas
duas pontuações extremas receberam legenda, sendo, respectivamente, “nenhuma importância positiva ou
contribuição negativa” e “importância positiva máxima”.
204
1ª - Agricultor na plantação (9,71); 2ª - Médico examinando criança (9,66); 3ª - Mulher negra
professora (9,65); 4ª - Homem branco professor (9,54); 5ª - Farmacêutico (9,39); 6ªª - Policial Militar de Minas
Gerais próximo à viatura (9,29); 7ª – Coletores de lixo domiciliar urbano em caminhão de lixo (9,29); 8ª –
Juíza em tribunal (8,90); 9ª - Catadores de recicláveis em usina de triagem II (8,88); 10ª - Catadores de
recicláveis em usina de triagem I (8,87); 11ª – Homens na construção civil (8,84); 12ª – Operadora de caixa
de supermercado (8,81); 13ª – Caminhoneiro (8,77); 14ª- Mulher branca em uniforme de trabalhadora
doméstica (8,64); 15ª – Mulheres cuidando de crianças (8,39); 16ª – Mulher lavando louças em ambiente
doméstico; 17ª – Mulher negra discursando no parlamento (7,43); 18ª - Catador de recicláveis, sem camisa,
puxando carroça pela cidade (7,42); 19ª – Mulher negra ajoelhada e esfregando o chão (6,26); 20ª –
Parlamentares em sessão da Câmara dos Deputados do Brasil (6,20); 21ª – Catador (a) procurando materiais
em lixeira de rua (5,91); 22ª – Homem negro empunhando uma lata de alumínio e sacolas com outros
recicláveis (5,86); 23ª – Mulher negra realizando catação em “lixão” próxima à urubus (5,76); 24ª –
Jogadores de futebol (5,51); 25ª – Pessoas deitadas junto à monumento público (4,24); 26ª – Pessoas
encarceradas (3,81); 27ª – Mulher pedestre sendo aborda por motorista (1,81); 28ª – Mulheres (ou travestis)
com roupas curtas em paisagem urbana noturna (1,71); 29ª – Assalto à mão armada (1,29)
395
Como pode ser observado na Tabela 01, no que concerne às pessoas que lidam com o
lixo como forma de obter sustento (aqui, provocativamente nominados como “profissionais
do lixo”) , podemos observar que três cenas possuem médias elevadas e figuram no terço
superior do ranking, com avaliação próxima a de ocupações “tradicionais” como as de
policial militar, magistrados e trabalhadores da construção civil.
Tabela 01: “Profissonais do lixo” versus percepção de relevância social
Posição no Descrição Média
ranqueamento

7ª Coletores de lixo domiciliar urbano (uniformizados) em caminhão de lixo 9,29

9ª Catadores de recicláveis (uniformizados) em usina de triagem de lixo II 8,88

10ª Catadores de recicláveis (uniformizados) em usina de triagem de lixo I 8,87

18ª Catador de recicláveis, sem camisa, puxando carroça pela cidade 7,42

21ª Catador(a) de recicláveis (sem uniforme) procurando materiais em lixeira 5,91

22ª Homem negro (em trajes comuns) empunhando sacola com recicláveis 5,86

23ª Mulher negra realizando catação em lixão, próxima à urubus 5,76

Fonte: Autores/2022
A imagem que representa um “catador, sem camisa, puxando carrinho” está
posicionada no terço intermediário (18ª), muito próximo do “entre lugar” do trabalho
doméstico. E, por fim, há três imagens com avaliações que se aproximam à de outros
estigmatizados e figuram no terço inferior do ranking, junto à políticos, pessoas em situação
de rua e encarcerados.

IMAGEM 01 - 7ª Posição (9,29 pontos) 205 IMAGEM 02 - 18ª posição (8,87 pontos)206

205
Coletores de lixo domiciliar urbano / Foto: Renato Weil/ EM/ D.A Press/ 2009.
206
Catador de recicláveis, sem camisa, puxando carroça pela cidade / Foto: Arquivo PMBC - Prefeitura
Municipal de Balneário Camboriú.
396
Segundo Souza (2018), o respeito e reconhecimento social que atribui-se ao outro está
diretamente vinculado ao exercício ou não de uma ocupação e qual a importância relativa
desse labor. Desta forma, o trabalho se tornou um valor moral hierarquizante pelo qual
julgamos alguns indivíduos como melhores do que outros. Assim, considerando que nas sete
imagens relacionadas na Tabela 01 é possível fazer a relação "indivíduo X lixo”, nos
perguntamos: O que explicaria as diferenças na hierarquização “moral” dos Catadores de
Recicláveis no imaginário coletivo Janaubense? Entendemos que uma possível resposta está
relacionada com a noção de “ambiguidade”.
A situação dos catadores é particularmente ambígua, já que sua forma de trabalho
não garante que sejam vistos como não delinquentes, visto que delinquentes —
vagabundos, bêbados da ralé, que perturbam a paz pública — podem exercer essa
atividade (o bêbado de classe média, mesmo o que assim permanece o tempo todo,
não é visto como delinquente; talvez como doidivanas, no máximo como “doente”).
Daí a ambiguidade dos catadores. Afinal, como distinguir entre o bêbado que junta
um pouco de lixo para comprar mais cachaça e o trabalhador regrado, que dá duro
todo dia para sustentar a sua família, quando alguém está mexendo no lixo?
(MACIEL & GRILLO, 2009, p.270)

Na Imagem 03, por exemplo, a pessoa foi fotografada com uma lata de alumínio nas
mãos. Nos ombros nota-se um imenso saco contendo incontáveis recipientes semelhantes.
Contudo, essa mesma foto foi utilizada para ilustrar uma reportagem de uma renomada revista
que noticiava a implantação do serviço de "disque mendigo", em Ribeirão Preto/SP.

Imagem 0

IMAGEM 03 - 22ª posição (5,86 pontos)207


Quanta interseccionalidade de estigmas! Uma mesma cena talvez tenha avocado uma
multiplicidade de afetos no imaginário coletivo janaubense: Mendigo? Pessoa em situação de
rua? Louco? Bêbado? Desocupado? Viciado em drogas? “O velho do saco 208”? e,

207
Imagem utilizada pela Revista Exame para ilustrar matéria de 28/06/2014. (Foto/crédito: wikimedia
commons). <https://exame.com/brasil/ribeirao-preto-tem-telefone-para-impedir-morador-de-rua-diz/>>.
208
Lenda urbana contada para incutir medo em crianças desobedientes
397
eventualmente, "catador de reciclável”.
Portanto, não é o tocar no lixo que estigmatiza a pessoa. Um sem-número de outros
estigmas já o havia tocado antes. É essa multiplicidade de interpretações possíveis, essa
ambiguidade, essa impossibilidade de convencer-se imediatamente que trata-se “somente” de
uma pessoa realizando um “trabalho produtivo útil” que gera o olhar de desprezo,
corretamente sentido pelos catadores e catadoras e já documentado em inúmeras pesquisas.
O principal objetivo deste trabalho foi o de estabelecer, em perspectiva comparativa
com outras ocupações, a relevância social atribuída aos “profissionais do lixo”, em especial,
aos Catadores de Recicláveis, no imaginário coletivo dos citadinos de Janaúba-MG. A
pesquisa indicou que, nesse “imaginário”, os “profissionais do lixo” não estão fixados em um
único “locus”, mas muitos. Tudo está na dependência do grau de ambiguidade com que se
apresentam e são percebidos pela sociedade.
Contudo, os dados revelam que não há uma relação evidente de desprezo e
estigmatização de tais profissionais que tenha origem no contato com o lixo e, sim, quando
são associados com outros grupos sociais “delinquentes”. O discurso do lixo que estigmatiza
e macula o trabalhador parece ser um equívoco com implicações onerosas. Quando, por
exemplo, catadores e catadoras de recicláveis optam “taticamente” (Certau, 1998) por
trabalhar nos lixões, buscando por uma uma “invisibilidade”, onde o olhar do outro não os
alcança, na prática estar-se fazendo uma referência ao sentido mais literal do termo, o óptico.
A vergonha do olhar julgador do outro é motivo, de ordem íntima, suficientemente forte para
compreender o desejo de permanecer invisível. Porém, é, também, “um sentimento que
favorece a submissão” (MIURA & SAWAIA, 2013, p.332). Há de se considerar que, na
medida que as metas do Plano Nacional de Resíduos Sólidos avançam, os lixões estão com os
dias contados. É o caso do município de Janaúba.
A opção pela tática da invisibilidade autoimposta, que decorre da vergonha advinda
do estigma que associa a imundície do lixo às pessoas que com ele trabalham, corresponde,
no limite, a uma permissão para que os dominantes decretem a irrelevância social dos
dominados. Como alternativa e, também, como contribuição a partir deste estudo, sugerimos
à categoria que adote tática oposta, ou seja, que busquem uma visibilidade óptica (uso de
uniformes). Talvez, essa sugestão implique, ainda, na necessidade de organização em
cooperativas e ou associações. Esse caminho, aparentemente, é o mais viável para, em um
segundo estágio, obter-se o reconhecimento e alguma justiça social. Porém, como bem
398
estabelecido na epistemologia de Honneth (2011), esse patamar não advém sem luta/conflito.
Palavras-chaves: Catadores de Recicláveis. Imaginário Social.

REFERÊNCIAS

COSTA, Cláudia Moraes da; PATO, Cláudia A Constituição de Catadores de Material


Reciclável: A identidade estigmatizada pela exclusão e a construção da emancipação como
forma de transcendência. IN: PEREIRA, Bruna Cristina;.GOES, Fernanda Lira
(organizadoras). Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional – Rio de
Janeiro: Ipea, 2016. 562.
DUBET, F. As desigualdades multiplicadas. In: Revista Brasileira de Educação, n.17, ago.
2021.

HONNETH, A. La Sociedad del Desprecio. Editorial Trotta. Madrid, 2011.

MACIEL, Fabrício; GRILLO, André. O Trabalho que (in)dignifica o homem. In: SOUZA,
Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009.
MEDINA FILHO, A. L. Importância das imagens na metodologia de pesquisa em
psicologia social. Psicologia e Sociedade, v. 25, p. 263-271, 2013.
MIURA, P.O & SAWAIA, B.B. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de
ação. IN:Psicologia & Sociedade, 25(2), 331-341
SOUZA, J. de. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio
de Janeiro, 2018.

399
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES: MORTE, NECRÓPOLES E RITOS

GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:

MORTE, NECRÓPOLES E RITOS

COORDENADORAS:

Me. Elisa Gonçalves Rodrigues (UFPA)

Estefânia de Oliveira Leite (USJT-SP)

Drª. Valéria Fernanda Sousa Sales (SEDUC-PA)

400
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT

APRESENTAÇÃO

Elisa Gonçalves Rodrigues 209


Estefânia de Oliveira Leite 210
Valéria Fernanda Sousa Sales211

A partir de desdobramentos comuns entre três pesquisadoras vinculadas à Associação


Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), entidade sem fins lucrativos, fundada em
novembro de 2004, que congrega pesquisadores, cujos estudos abrangem os cemitérios e as
mais diversas manifestações acerca da morte e do morrer no Brasil 212. A ideia deste GT
intitulado “Perspectivas Fúnebres: morte, necrópoles e ritos” surge como uma possibilidade
não só de (re)conhecer os trabalhos sobre a morte e o morrer, como também num movimento
de compreensão a respeito de como este fenômeno se apresenta nos cemitérios do país, sendo
esta uma oportunidade de encontrar as espaçadas pesquisas que ocupam as universidades
brasileiras a respeito da temática, que aqui se iniciam por meio dos atravessamentos de
pesquisa das coordenadoras apresentadas a seguir.
Elisa Rodrigues, antropóloga de formação, desenvolve pesquisa nas áreas Cemiteriais,
de Antropologia e Psicanálise, especialmente nos campos da Antropologia da Morte ou
Mortuária, Antropologia das Emoções, Antropologia Urbana, imaginário, memória, luto, ritos
funerários e santos populares/milagreiros. Debruça-se a respeito das potencialidades de
sociabilidades que as cidades cemiteriais e os profissionais da lembrança (RODRIGUES,
2023) destes lugares confluem, especialmente os situados em Belém-PA, uma vez que estes
espaços são documentos ativos na história urbana (BOTELHO, 2018) de cada cidade, bem
como o modo que se praticam as necrópoles, condensando diferentes atos que desdobram em
emoções (RODRIGUES, 2020), devoções, narrativas, ritualísticas e transitividades diversas
nos campos-santos.

209
Doutoranda e Mestra em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Pará (PPGSA-UFPA). E-mail: elisagoncalves00@gmail.com
210
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade São Judas Tadeu. E-mail: estefanialeite@gmail.com
211
Doutora em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e docente da SEDUC-PA. E-mail:
estefanialeite@gmail.com
212
Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (https://www.estudoscemiteriais.com.br/abec). Acesso em
30/03/2023.
401
Estefânia Oliveira, arquiteta e urbanista, dedica-se à pesquisa na área cemiterial dentro
do âmbito da arquitetura e urbanismo. Trabalha especialmente nos campos de gestão do
espaço urbano e sustentabilidade, além de se concentrar nos estudos sobre Cemitérios
Verticais. Nesta direção, sua atual pesquisa tem como tema “Cemitérios e seus Impactos
Urbanísticos”, temática que analisa o ambiente cemiterial envolvendo a relação histórico-
cultural da morte nas sociedades antigas e atuais. Essa pesquisa tem também como escopo de
estudo, os cemitérios como elemento simbólico e das possíveis interferências sociais,
culturais e ambientais, compreendendo a importância da representação arquitetônica
cemiterial em suas tipologias.
E Valéria Fernanda Sales, etnocenóloga de ritos fúnebres, cujas pesquisas de mestrado
e doutorado compreendem as relações de pertencimento que geram espetacularidade e papéis
sociais nas homenagens realizadas pelos curuçaense aos seus entes queridos falecidos. No
Frete (SALES, 2014), o morador da Vila São João do Abade (Curuçá-PA) se despede de seu
amigo falecido realizando um velório com bebidas, comidas, jogos de baralho, dominó e um
cortejo fúnebre por 5km até o cemitério São Bonifácio, no centro de Curuçá. Na Iluminação
de Finados (SALES, 2022), os curuçaenses organizam a homenagem aos seus mortos
contratando biscateiros para a limpeza, construção e manutenção das casas-túmulo. No Dia
de Finados, à noite, o cemitério São Bonifácio fica todo iluminado pelas velas, há preces e
encontros de vizinhos de sepultura. Na frente do cemitério há comensalidades, reencontro de
amigos e familiares que se arrumaram para o momento, realizando um verdadeiro cemitério
fashion.
Dada a união destas perspectivas, estudos e pesquisas entre as coordenadoras, a
primeira sessão do GT que teve como título “Luto e seus entrecruzamentos” condensou
trabalhos que trataram das nuances e particularidades que o luto alcança nos diversos recortes
de pesquisas apresentados. O trabalho que iniciou o GT 7 e que foi escolhido para receber
Menção Honrosa pelas coordenadoras é intitulado Necropolítica como gestão do luto, de
Heitor Moreira Lurine Guimarães (UFPA), que trouxe como proposição as formulações de
Achille Mbembe (2018) para retratar como a necropolítica se refere ao modo como instâncias
de poder − especialmente, mas de modo algum exclusivamente, o Estado − organizam,
gerenciam e administram a morte de grupos humanos específicos, seja pelo assassinato direto,
seja pela exposição a condições mortíferas artificialmente produzidas. O autor dialoga
402
também com as perspectivas freudianas a respeito do trabalho luto (FREUD, 2020) e em
como isto se aplica a determinados corpos (BUTLER, 2019).
O segundo trabalho desta sessão se intitula Dia dos Mortos na pandemia: as fases de
vivenciar a morte no Cemitério Senhor da Boa Sentença em tempos de solidão em 2020, de
Weverson Bezerra Silva (UFPB), que também é membro da ABEC. O trabalho trata da
experiência etnográfica do Dia dos Mortos em tempos de pandemia na cidade de João Pessoa-
PB, no Cemitério Senhor da Boa Sentença. Objetiva mostrar o significado da visita aos
mortos como forma de lembrança aos vivos, considerando os processos sociais e econômicos
em torno desse dia durante a pandemia da COVID-19. Compreensão importante sobre os
fenômenos sociais e históricos da nossa sociedade, cujas fotografias utilizadas evidenciaram o
cemitério como um espaço socialmente significativo, fundamental no fomento à cultura, além
de ser testemunha da história da sociedade que, naquele momento, enfrentava a experiência
coletiva de visitar os mortos em tempos de restrições e apoio social limitado.
Alynne Cavalcante Bezerra da Silva (UFPE) que também é membro da ABEC,
apresentou o terceiro trabalho desta sessão: Melancolia e luto nas artes visuais: de Dürer ao
Cemitério de Santo Amaro (Recife-PE), que apresenta uma série de iconografias cemiteriais a
partir da representatividade comum do que compreende por melancolia nas artes tumulares do
Cemitério de Santo Amaro. A autora demonstrou a representação do luto e da melancolia nas
artes visuais, com o suporte metodológico da iconografia de Panofsky. Em que seria
considerada apenas a postura física dos personagens que retratam a melancolia, a partir do
olhar dos artistas. Em esculturas funerárias, foi possível encontrar semelhanças iconográficas
com Melencolia I retratada pelo autor, sendo uma das características a postura corporal
associada à melancolia.
O texto Luto e o anseio pelo fim na obra de Manuel Bandeira e Kotomi Aoki, de
Crislane da Silva Lima (UFPA), quarto trabalho desta sessão, objetivou explorar o tema
recorrente do luto e do desejo pelo término, presentes nas obras do poeta brasileiro Manuel
Bandeira e no mangá japonês "Boku no Hatsukoi wo Kimi ni Sasagu" de Kotomi Aoki. A
obra inaugural de Bandeira, "A Cinza das Horas", apresenta tópicos sobre temas como
melancolia, morte e sofrimento, os quais foram inspirados pela enfermidade que acometia o
poeta. Outras obras de Bandeira também foram abordadas sob esta perspectiva.

403
Na sessão 2 intitulada: “Processos ritualísticos e suas particularidades”, foi
estruturada e pensada para agrupar trabalhos que tocassem especialmente no que diz respeito
às variadas maneiras de ritualizar os mortos e a morte, dentro e fora dos espaços cemiteriais.
Abrindo esta sessão, o trabalho de Alan da Silva Dias (UFRJ) intitulado Para além da morte:
análise das emoções nos testamentos do Centro de Memória da Amazônia (1889-1930),
trouxe um recorte da Antropologia das Emoções e da História das Emoções com o intuito de
compreender como as emoções se estabelecem e se tornam um campo de pesquisa nos
testamentos, documento que manifesta a última vontade em vida, na qual a pessoa estabelece
o que deve ser feito com o seu patrimônio após sua morte. O autor abordou
metodologicamente, através da micro-história, as pesquisas de Rodrigues (2020) chegando à
conclusão de que cada comunidade social estrutura uma definição de emoções (ROCHA,
2021), e, portanto, este reflexo circunscreve as documentações presentes nos testamentos
investigadas no Centro de Memória da Amazônia (CMA).
No segundo texto desta sessão intitulado O ritual fúnebre no Islã e a pandemia do
Covid-19: uma pesquisa bibliográfica, as autoras Pamela Mariane da Gama Melo (UEPA),
Larissa da Conceição Barradas (UEPA) e Rubia Suzane Antunes dos Santos (UEPA),
tensionaram e apresentaram as mudanças que ocorreram no ritual fúnebre islâmico em tempos
de pandemia da Covid-19, por meio de uma pesquisa bibliográfica. A exposição enfatizou a
complexidade da tradição religiosa que influencia as relações sociais, políticas, econômicas e
culturais nas localidades onde é praticada e, que sofreu alterações em suas cerimônias e
costumes em decorrência da pandemia. O enfoque foi direcionado para o entendimento da
tradição islâmica e seu papel na sociedade, bem como, na compreensão dos impactos da
pandemia sobre essa religião. Foram exploradas as particularidades do Islã e as práticas
fúnebres que compõem a sua cultura identitária religiosa.
E encerrando o GT 7, Maria Roseli Sousa Santos (UEPA), Thayanara de Souza Duarte
(UEPA) e Fernando Adlly Kauffmann Negrão (UEPA) apresentaram o trabalho Rituais
religiosos familiares e histórias de vida em cenário pandêmico, onde os autores
compreendem o pertencimento da comunidade religiosa que corporifica as tradições
(ELIADE, 2010) e, assim, analisam os ritos de passagem (JUNG, 1972; VON FRANZ, 1981;
VAN GENNEP, 2011). O estudo envolveu praticantes de religiões Ayahuasqueiras, do
candomblé e da Wicca - que é um segmento do paganismo contemporâneo, conhecida como
404
religião da Deusa. Sendo os ritos familiares, o foco do estudo que envolveu o núcleo da
comunidade religiosa e suas formas de organização (DURKHEIN, 2003).
Todos os trabalhos aqui apresentados contribuem significativamente para novos
alcances do que os estudos cemiteriais, da morte e do morrer abrangem em suas dimensões
sensíveis, materiais e simbólicas. Estudos sobre Luto, Melancolia, Religião, Rito, Ritual,
Antropologia da Morte, Antropologia das Emoções, História, Arte Cemiterial, Fotoetnografia
e Necropolítica em meio à pandemia de Covid-19. Discussões pertinentes à compreensão de
nossa atualidade. Boa leitura! Bons estudos!

REFERÊNCIAS

BOTELHO, Amanda Roberta de Castro. Santa Izabel e Soledade: O eterno e o mutável nas
alterações dos espaços cemiteriais na Belém do Século XIX, através de uma análise
cartográfica da morte. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo, Instituto de Tecnologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber.
Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

DURKHEIN. Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume I: da Idade da Pedra
aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão (obras incompletas de Sigmund Freud, vol.
5). Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

GENNEP, A. V. Os ritos de passagem.2. ed., Trad.Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes,


2011.

JUNG, C. G. (1986). O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1972.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte.


Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.

RODRIGUES, Elisa Gonçalves. Espaços da morte na vida vivida e suas sociabilidades no


Cemitério Santa Izabel em Belém-PA: etnografia Urbana e das Emoções numa cidade
cemiterial Dissertação. 162 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) -
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, UFPA, Belém-PA, 2023.
405
Disponível em:http://repositorio.ufpa.br:8080/jspui/handle/2011/15525. Acesso em: 14 abril
2023.

RODRIGUES, Elisa Gonçalves. Antropologia mortuária: sentimentalismo contemporâneo


acerca da morte. 66 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Ciências Sociais) -
Faculdade de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará. Belém, 2020. Disponível em:
https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/prefix/3812. Acesso em: 13 mar 2023.

ROCHA, Thayna Alves. Doença e sentimento: diagnósticos de melancolia no manual de


Psiquiatria Clínica e Forense. Contraponto, v. 10, n. 1, p. 461, 2021.

SALES, Valéria Fernanda Sousa. Lágrimas e Cachaça: a Espetacularidade do cortejo


fúnebre do Frete em São João do Abade, Curuçá-PA. 117f. Dissertação (Mestrado Acadêmico
em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém-PA, 2014.

SALES, Valéria Fernanda Sousa. Saudades, Reencontros e Manicuera: espetacularidades


entrecruzadas de afeto na Iluminação dos Mortos em Curuçá-PA. 175f. Tese (Doutorado em
Artes) - Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém-PA, 2022.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 7 ed. São Paulo: Paulus, 2008.

406
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
TRABALHO HOMENAGEADO PARA MENÇÃO HONROSA

NECROPOLÍTICA COMO GESTÃO DO LUTO

Heitor Moreira Lurine Guimarães213

Na formulação original de Achille Mbembe (2018), necropolítica se refere ao modo


como instâncias de poder − especialmente, mas de modo algum exclusivamente, o Estado −
organizam, gerenciam e administram a morte de grupos humanos específicos, seja pelo
assassinato direto, seja pela exposição a condições mortíferas artificialmente produzidas.
Enquanto categoria analítica, o termo hoje é empregado para descrever uma gama de
fenômenos diversificados, desde o genocídio de povos originários em processos de
colonização, passando pelos episódios de violência reiterada contra minorias étnicas e raciais
ou, mais recentemente, a distribuição socialmente assimétrica dos riscos epidemiológicos no
contexto do apartheid sanitário produzido pela pandemia de Covid-19.
Contudo, embora o uso mais notório da noção de necropolítica seja a análise de redes
de poder que culminam com a morte biológica do corpo, ela também pode ser utilizada, por
extensão, para o estudo de fenômenos que ocorrem após a morte. Dentre esses fenômenos,
está a gestão da própria maneira como o sofrimento humano provocado pela morte pode se
manifestar. É nesse sentido que a presente comunicação trata a necropolítica como uma
“gestão do luto”: uma tecnologia de poder que não somente mata, mas que também impede
que a morte produzida se expresse como luto no espaço público. A tese defendida é de que, se
a necropolítica precisa tornar o luto um de seus objetos de regulação, então isso indica que ele
pode se manifestar de formas que servem à denúncia e à crítica das relações de opressão de
que a própria necropolítica faz parte.
Para sustentar essa tese, a argumentação a ser desenvolvida utilizará o método
dedutivo e análise bibliográfica, seguindo os seguintes passos. Em primeiro lugar,
retomaremos as principais premissas da elaboração inicial da ideia de necropolítica em
Mbembe para então mostrar como ela pode ser estendida para abarcar o que se está chamando
aqui de uma gestão do luto. A ideia chave é de que o funcionamento da necropolítica

213
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. E-mail: hguimaraes631@gmail.com
407
compreende um controle sobre como os mortos podem ou não se inscrever na memória social.
Um controle sobre como o desaparecimento de pessoas pode ou não ser socialmente sentido
como falta ou como um acontecimento lamentável. Trata-se, assim, de explicitar como a
necropolítica consiste, muito mais que apenas promover o extermínio de grupos humanos
inteiros, em fazer com que seu desaparecimento gere o mínimo possível de sensibilização ou
comoção social, em fazer com que a dor e o sofrimento desencadeados pelas mortes se
mantenham, ao máximo, restritos aos entes mais próximos das vítimas, para que não
alcancem o espaço público.
O segundo passo será explorar a teorização do luto em Sigmund Freud e extrair de
sua concepção clínica original algumas ideias sobre como compreender o luto enquanto
processo de mudança de posição, por parte do sujeito, em relação a si mesmo e à sua
realidade. No texto seminal Luto e Melancolia, de 1917, Freud se notabilizou por descrever o
luto não como um momento de inatividade ou apatia, mas como um trabalho, o “trabalho do
luto” (FREUD, 2020, p. 101). No curso de sua reflexão, Freud propôs duas interessantes
noções que, como gostaríamos de mostrar, podem ser utilizadas para pensar o exercício do
luto como prática de contraposição à necropolítica.
A primeira noção é de que o luto tem a ver com a recuperação, pelo sujeito, da
capacidade de engajamento e interação com a realidade. Mas uma realidade nova,
subjetivamente falando, porque marcada pela ausência de um antigo objeto de amor. Luto,
portanto, é sinônimo de elaboração, de ressignificação de uma determinada perda (FREUD,
2020). E uma ressignificação com viés eminentemente prático, posto que se presta ao
restabelecimento de relações renovadas com o mundo. A segunda noção é a de que o
processamento de uma perda exige a assimilação, pelo sujeito, de algo do objeto perdido. Ou
seja, a superação de toda perda é sempre, paradoxalmente, a retenção, por aquele que perde,
de algum aspecto do que foi perdido. Como se só fosse possível aceitar a fugacidade de algo
que se foi quando alguns de seus traços são incorporados à vida psíquica de quem o perdeu
(FREUD, 2020).
Mas essas duas noções, para se tornarem politicamente produtivas, precisam ser
transpostas do campo individual da análise da psique para o campo coletivo das lutas sociais.
Por esse motivo, a terceira etapa do argumento consistirá em utilizar os textos de Judith sobre
a temática do luto para explicar como a experiência da perda pode proporcionar aos sujeitos
408
um ganho de consciência sobre aspectos de sua existência social que na maior parte do tempo
lhes são opacos.
A reflexão butleriana demonstra como o luto pode funcionar como um estado
emocional que, no curso do sofrimento, desloca o sujeito de sua relação cotidiana consigo
mesmo e com o mundo, abrindo-lhe novos horizontes sobre seu contexto histórico, seus
vínculos com os outros e sua posição no corpo social. Esse conjunto de experiências
propiciadas pelo luto formam o que Butler, desde Vida Precária, chama de “despossessão”
(BUTLER, 2019, p. 48). Ser despossuído significa, essencialmente, cair da posição daquele
que se compreende como dono de si próprio e reconhecer-se como um corpo cujas
vicissitudes. Assim, quando vivenciado de uma certa maneira, diz Butler, o luto é responsável
por desfazer o mito liberal da individualidade como autossuficiência, que, no plano da teoria
social e política, é responsável pela ideia, raramente problematizada, de que os sujeitos das
relações políticas são seres humanos adultos e autônomos, cujas vidas se determinam
exclusivamente por suas escolhas (BUTLER, 2018).
A quarta etapa do argumento empregará a teorização de Angela Harris a respeito do
papel das emoções na crítica social para sustentar que esses efeitos disruptivos do luto público
referidos anteriormente podem ser produzidos por meio da construção de uma metanarrativa
sobre os processos de extermínio necropolíticos. Por metanarrativa, entenda-se, neste
contexto, toda forma de representar ou simbolizar uma pluralidade de histórias pessoais de
modo a conglobá-las em uma narrativa mais ampla que lhes atribui novo sentido, sem
prejuízo das peculiaridades de cada uma dessas histórias. Harris (2021) nos diz que há uma
relação intrínseca entre algo ser visível e o modo como esse algo produz afetos: a depender de
como uma circunstância é narrada, simbolizada, representada, ela pode esconder ou revelar
sofrimentos. Isso aponta para a importância de se disputar, no plano simbólico, as narrativas
que se constroem a respeito de acontecimentos históricos e sobre o que eles revelam a respeito
do contexto em que se passaram, quer no campo da esfera pública, da imprensa ou mesmo das
artes.
Para ter potencial emancipatório contra a necropolítica, a metanarrativa produzida
nesses termos teria de ser construída para que pudesse, por assim dizer, funcionar como um
amálgama entre as incontáveis histórias intrafamiliares de morte e de perda, retratando-as
todas como relacionadas entre si, por serem o produto da ação de uma mesma rede de
409
agências de poder Em relação aos mortos pela necropolítica, a metanarrativa os conserva
enquanto parte de uma memória social, reconhecendo o caráter violento e opressor com que
essas mortes ocorreram e desfazendo o efeito de desaparecimento que as invisibilizava.
Ademais, entre aqueles que possuíam vínculos com as vítimas da necropolítica, a
metanarrativa em questão cumpriria o papel de reposicioná-los diante de sua própria
experiência privada de sofrimento.
Essa ideia retoma a noção que havíamos extraído de Freud, de que superar uma perda
envolve a incorporação a si do objeto perdido, depois de ressignificado. Em um luto público e
coletivo sob uma metanarrativa como essa, isso se traduz como o ganho, por parte do
indivíduo, de subterfúgios para nomear mais diretamente o fator causador de seu sofrimento e,
por conseguinte, para dispor de possibilidades mais alargadas de como reagir à perda sofrida.
A quinta etapa do argumento consiste em demonstrar, com amparo na sociologia do
corpo proposto por David Le Breton, como essas práticas de regulação da morte e seus
desdobramentos instauram uma experiência de corporeidade individualizada. Para Le Breton,
o corpo nunca é meramente um organismo vivo, mas um artefato portador de significações
que variam de acordo com a cultura em questão. Com base nessa linha de raciocínio e nas
diferentes formas de tratamento do corpo constatadas pelo autor em seus estudos etnográficos,
pretendemos mostrar que a gestão necropolítica do luto produz uma experiência de
corporeidade na qual o corpo morto é compreendido como uma entidade abstrata, cujas
condições de vida e morte são dissociadas das circunstâncias sociais e políticas em que ele se
encontra. Essa dissociação é necessária para garantir que o fenômeno da morte não seja
sentido como um efeito de decisões e de escolhas políticas. Nessa perspectiva, a necropolítica
como gestão do luto pode ser considerada como um padrão institucionalmente arquitetado
para produzir uma experiência de corporeidade alienante.
A sexta e última parte do argumento abordará sucintamente alguns aspectos da
gestão da pandemia de covid-19 no Brasil como um caso concreto que ilustram a tese
defendida pelo trabalho. Ao final do processo argumentativo, pretendemos deixar clara a
diferença entre o que seria uma experiência individual-privada e uma experiência coletiva-
transindividual do luto. A experiência individual é aquela em que o luto é vivenciado como
um acontecimento cuja repercussão emocional e psíquica fica contida aos entes mais
próximos da pessoa morte, sem haver uma associação direta com o contexto social em que
410
essa morte ocorre. A experiência transindividual e coletiva é aquela quando a singularidade de
cada morte é lida como um episódio dentre de um processo complexo que atravessa grupos
sociais inteiros. Queremos mostrar que a vantagem da experiência coletiva e transindividual é
sua capacidade de formar identificações entre pessoas atravessadas por processos de opressão
similares, fazendo com que o luto se torne uma oportunidade para formação de articulações
políticas contra-hegemônicas entre grupos subalternos, mais do que apenas um sofrimento.

Palavras-chave: Necropolítica. Luto. Perda.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio
Tadeu Lamarão e Agnaldo da Cunha. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018b.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber.
Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão (obras incompletas de Sigmund Freud,


vol. 5). Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

HARRIS, Angela P. Compaixão e Crítica. Tradução de Ana Luiza de Oliveira Pereira, Alba
Fernanda Pinto de Medeiros, Mylla Cristina Henrique Bezerra Cardoso e Lucas do Couto
Gurjão Macedo Lima. Revista Direito e Práxis. v. 12, n. 2, p. 1473-1498, 2021. Disponível
em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/59786.

LE BRETON, David. A Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de


morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.

411
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 1 - LUTO E SEUS ENTRECRUZAMENTOS

DIA DOS MORTOS NA PANDEMIA: AS FASES DE VIVENCIAR


A MORTE NO CEMITÉRIO SENHOR DA BOA SENTENÇA EM
TEMPOS DE SOLIDÃO EM 2020

Weverson Bezerra Silva214

Esse resumo expandido com metodologia de fotoetnografia215 aborda o tema do Dia


dos Mortos em seu contexto pandêmico ritualístico na cidade de João Pessoa, Paraíba, mais
precisamente no cemitério Senhor da Boa Sentença, situado no bairro do Varadouro. A
finalidade é mostrar em experiência etnográfica o significado do processo de visitar os mortos
como forma de lembrança, atentando aos processos sociais e econômicos em torno desse dia
em tempos de distanciamento social, no primeiro dia dos mortos no Brasil em 2020 na
presença da covid-19.
No campo, com o silêncio do cemitério, era o momento que refletia e fazia a
observação do espaço. Nesse instante, passava na minha cabeça que cada túmulo ou cova
existia uma história transcorrida, reprimindo o pensamento de Kübler-Ross (1975) que o real
desafio de tempo e espaço é viver o tempo que você tem antes da morte. Uma das primeiras
reações de muitas pessoas antes da morte é o desespero, e nesse momento tive que respirar,
pois percebi que seria um dos meus primeiros momentos de pânico. Pois, nesse momento de
distanciamento social que estávamos vivendo, o cemitério estava mais vazio, comparando a
outros dias de finados que realizei trabalho de campo.
Com isso é preciso destacar que os sistemas simbólicos sobre a morte e o morrer
retificam todas as ações a que o indivíduo precisa dirigir-se quando o tema da morte é posto, e
assim, o fenômeno da morte se insere em um conjunto de interpretações no complexo das
experiências pessoais, conduzidos por um sistema simbólico que as anuncia, de uma ação
social prática que as fundamenta em uma historicidade (NEVES, 1998, p.33). Assim, a ação

214
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Antropologia, ambos pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), especialista em Tanatologia: sobre a morte e o morrer (FSG). É membro do Grupo
de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura (GRUPESSC) e da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais
(ABEC). Integrante do Projeto intitulado Estado, populações e políticas locais no enfrentamento à pandemia de
Covid-19 (ANTROPOCOVID). E-mail: weversonsilbez@gmail.com
215
Todas as fotografias foram tiradas pelo autor.
412
social diante da morte está relacionada com as práticas sociais nos quais o indivíduo faz parte
do seu processo de socialização, suas construções históricas interferem diretamente na
abordagem de significados sobre o simbolismo da morte.
Pesquisar as questões ligadas à morte por meio de reflexões antropológicas
configura-se como importante para o desenvolvimento da compreensão acerca dos fenômenos
sócio-históricos que compõem a sociedade em que vivemos. No tocante aos estudos sobre os
cenários e os aspectos que compõem a morte e, o morrer no Brasil, pode-se afirmar que são
diversos, complexos e essenciais para compreendermos o processo de organização e
estruturação da sociedade em que vivemos, como podemos perceber a partir das seguintes
produções: Martins (1983); DaMatta (1986); Reis (1991); Rodrigues (1997;2005); Motta
(2009); Mauss (2013); Reesink (1995); Rodrigues (2006).
Mauss (2003) ajuda a pensar a morte como um fato social total, no qual relata os
sentimentos de tristeza, dor e perda que consistem em experiências usualmente associadas à
morte. O autor ainda anuncia sua percepção sobre as emoções como uma espécie de “cultura
emotiva”, com a qual os indivíduos aprendem significados acerca das noções constituintes da
sociedade e significantes para a sociabilidade, visto que são inteligíveis mesmo para aquele
que ainda não tenha vivenciado a situação específica (KOURY, 2010).
Com isso, parte-se do entendimento que a construção social da morte é resultado de
um longo processo histórico que tem relações particulares com diferentes sistemas sociais e
econômicos, igualmente com uma diversidade de costumes e subjetividades no processo de
morrer. Assim, este trabalho tem o intuito de discutir a morte enquanto uma categoria
antropológica, considerando-a para além da sua possibilidade de ser vivida “naturalmente”,
como um evento que faz parte do ciclo da vida, nas experiências das pessoas, e sim como um
fenômeno propriamente social, considerado desde os sentidos e influências do mesmo no
conjunto da vida coletiva.
Trata-se de problematizar os processos da contemporaneidade sobre o visitar no Dia
dos Mortos, com as medidas de biossegurança e as máscaras, o novo acessório no mercado
das flores e velas. As fotografias refletem o cemitério como espaço significativo no
entendimento de uma organização social, como parte fundamental de uma cultura, e ainda
como testemunha da história de uma sociedade que vive a experiência coletiva de visitar os
seus mortos com restrições e apoio social limitado.
413
Nesses momentos trago imagem para demostrar a breve descrição do resumo
expandido;

Imagem 1 Comércio no cemitério e a Imagem 2 Profissionais autônomos do


venda de máscaras. cemitério esperando clientes para
organização dos túmulos.

Imagem
Imagem 33 A
Avisita
visitarestrita.
restrita. Imagem 4 O uso de máscara como
critério de visitar os seus mortos.

414
Imagem 5 A limpeza dos túmulos pela Imagem 6 O levar as flores
enlutada.

Imagem 7 Profissionais “da limpeza” Imagem 8 Grupos geracionais familiares


realizando a limpeza dos túmulos. no culto aos mortos.

O cemitério é visto como uma construção histórica feita a partir de processos de


distanciamento, assombro e higiene em torno da morte e dos mortos, além do medo da

415
contaminação pelo vírus invisível. Visando compreender os elementos que compõem o
mundo social do cemitério, observo questões como o mercado dentro e fora dos muros e a
presença de novos assessórios que compõem os sistemas de relações (máscaras e álcool 70%),
a ausência das missas religiosas, o simbolismo da solidão, o número reduzido de enlutados,
como também toda a divisão de classes presente na estrutura do cemitério, que perpassa as
relações dos vivos e/com os mortos, mostrando a diminuição dos serviços de limpeza dos
túmulos.
Na imagem 7. a profissional “da limpeza” realiza a limpeza do túmulo e o uso da
tecnologia se tornou um acessório no dia dos mortos para mandar um registro dos túmulos
limpos para os enlutados que contrataram o seu serviço e não poderia comparecer ao
cemitério com o medo do vírus invisível.
No Dia de Finados foi elaborado um manual de protocolo do “novo normal”, que era
dividido para os trabalhadores e visitantes, recomendações às gestões municipais,
recomendações para as igrejas e recomendações para administração dos cemitérios e criptas.
Foi orientado o distanciamento social, não realizar celebrações ou encontros nas capelas dos
cemitérios, aumentar a quantidade de celebrações nas paróquias, salvaguardando todas as
recomendações sanitárias já divulgadas. No cemitério era necessário, manter a distância social
mínima de 1,5m, pessoas com febre, tosse, congestão nasal, coriza, dor de garganta, fadiga,
cansaço, diarreia e dificuldade de respirar devem evitar ir para os cemitérios ou celebrações
religiosas e uma das questões que destaco, a recomendação no local por curto período,
diminuir o tempo de celebração com o morto.
Dessa forma, a percepção da dinâmica social que envolve o cemitério com suas
práticas socioculturais está associada ao contexto histórico vivenciado, e as relações
construídas entre os indivíduos ajudaram a compreender o espaço do cemitério não apenas
como lugar de morte, mas, principalmente, como espaço de vida, atividade social, memória e
continuidade simbólica, onde os enlutados resistem no fortalecimento de suas práticas
culturais mesmo com todas as formas do cenário de solidão de vivenciar esse dia.
Por fim, em tempos de distanciamento social devido a Covid-19, no dia dos mortos e o
seu sistema organizacional que é o pensar de como as estruturas do cemitério elabora
estratégias de biossegurança sobre o corpo e o relembrar a despedida. Esses espaços
evidenciam a riqueza de detalhes de estudos de crenças, relação de memória com todo o seu
416
simbolismo religioso e econômico, e agora durante a pandemia o modo junto com o
distanciamento dos afetos.

Palavras-chave: Antropologia da morte. Dia de Finados. Pandemia.

REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Rocco, 1997.

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1975.

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do luto. Ed.1, Editora Vozes, Rio de Janeiro RJ, 2003, 215 p.

MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo,


Brasil. Universidade de São Paulo. Departamento de Ciências Sociais. seminário
Interdisciplinar. 1938.

MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

MOTTA, A. À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios


brasileiros. Recife: Massangana, 2009.

NEVES, Ednalva M. Da morte biológica à morte cultural: um estudo sobre o morrer em


casa em João Pessoa-PB. Dissertação de Mestrado. João Pessoa: UFPB/Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, 1998.

REESINK [LINS], Mísia. Morte, católicos e imaginários: o caso do Alto do Re-servatório,


Casa Amarela. Dissertação de mestrado em antropologia, PPGA, UFPE, 1995.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e


transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janero: Secretaria Municipal de Cultura,
1997. 274 p.

RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além: A secularização da morte no Rio de Janeiro


(séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005. 390 p.

417
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 1 - LUTO E SEUS ENTRECRUZAMENTOS

MELANCOLIA E LUTO NAS ARTES VISUAIS: DE DÜRER AO


CEMITÉRIO DE SANTO AMARO (RECIFE-PE)

Alynne Cavalcante Bezerra da Silva216

Não se pode falar em representação da melancolia nas artes visuais sem mencionar a
obra Melencolia I do alemão Albrecht Dürer. Muitas são as versões de críticos e historiadores
de arte a respeito das intenções do artista ao retratar a melancolia com tamanha riqueza e
rigor, no entanto o senso comum é de que a obra, além de marcar o apogeu do Renascimento
alemão, também ilustra um grande passo na história da arte global pela genialidade do artista
ao conseguir expressar um sentimento abstrato em uma gravura tão complexa em detalhes e
interpretações.
Não é mérito deste texto analisar a totalidade desta obra de Dürer embora ela tenha
importante destaque nesta investigação preliminar, pois, conforme será visto a seguir, as
representações de melancolia e luto na Arte em seus mais diversos suportes, acabam tendo
mais semelhanças visuais que distanciamentos. E para tentar confirmar esta hipótese, com o
suporte metodológico da iconografia de Panofsky, será feito um estudo inicial e leitura
imagética de obras de arte tumulares para tentar aproximar, ou mesmo distanciar esses dois
estados - luto e melancolia - nas artes visuais.
Antes de iniciar qualquer comparação entre a obra de Dürer e as esculturas funerárias,
se faz importante destacar que será considerada apenas a postura física dos personagens que
retratam a melancolia a partir do olhar dos artistas, e que aparece na figura angelical em
Melencolia I: o olhar taciturno e distante, o corpo que vacila para um dos lados, uma ou
ambas as mãos que apoiam a cabeça por não aguentar carregar o peso dos próprios
pensamentos... Segundo Agamben (2007), são característicos das representações visuais da
melancolia, “o gesto exemplar de deixar cair a cabeça e o olhar como emblema da
desesperada paralisia do ânimo diante de uma situação sem saída”. (p. 31).

216
Mestranda em Artes Visuais PPGAV-UFPE, com especialização em Ensino em História do Brasil pela
FAINTVISA e graduação em Licenciatura Plena em História pela FUNESO. Sócia da Associação Brasileira de
Estudos Cemiteriais – ABEC. Email: alynne.cbsilva@gmail.com

418
Vale a pena abrir um parêntese sobre o trecho acima, quando Agamben fala em
“paralisia” ou medo paralisante, ou seja, a acídia217. Na idade média, “o tipo iconográfico do
acidioso e o do melancólico aparecem fundidos nas ilustrações dos calendários e dos
almanaques populares [...]”. (AGAMBEN, 2007, p. 37). Percebe-se que a postura vacilante da
figura principal também acabou sendo traduzida por alguns como uma postura de repouso, ou
até mesmo de preguiça, excluindo inicialmente o sentimento de sofrimento que o artista
possivelmente tentou demonstrar. Se couber uma sugestão, a partir das leituras preliminares,
essa interpretação confusa da associação com a preguiça e não com a melancolia pode ter
acontecido simplesmente porque no cotidiano social da época medieval (período o qual se
instaurou a terminologia ‘acídia’) não se falava em melancolia da forma que se fala
atualmente, então era mais fácil atribuir o conceito de acidioso a um indivíduo que era, na
verdade, melancólico.
Trazendo a discussão para o ambiente cemiterial, após uma pesquisa inicial de obras
de arte em cemitérios diversos, tanto na Europa quanto no Brasil, foi possível encontrar uma
quantidade importante de esculturas com semelhanças iconográficas à Melencolia I e para
melhor ilustrar essa relação foi escolhido o acervo escultórico do Cemitério de Santo Amaro
no Recife – PE, por possuir um grande potencial artístico de estilos e suportes variados, que
ornam o jazigo de centenas de pessoas desde o final do século XIX.
Em um breve passeio pelo cemitério é possível notar muitas obras que trazem a
postura corporal associada à melancolia representada na obra de Dürer: olhar inconstante,
tronco que cai para um dos lados, mãos que sustentam a cabeça, são alguns dos traços
percebidos em parte das esculturas funerárias que convidam o observador atento a suspirar
junto com o personagem principal da obra.
O interessante desse tipo de representação com a finalidade funerária, é que ao buscar
semelhanças visuais com a postura associada à melancolia, até o momento da pesquisa, foram
encontradas apenas personagens femininas e a elas, no contexto dos estudos cemiteriais, é
atribuída a terminologia de “pranteadoras” que de fato, designa a mulher em pranto. No

217
Termo utilizado para representar a tristeza e apatia, mas que também traduz a paralisia humana diante de algo
que não se pode enfrentar. Era, como a melancolia, associada ao excesso de bílis negra e por provocar essa
sensação de rigidez e paralisia, passou a ser vista como preguiça, sendo associada aos pecados capitais,
ganhando, inclusive, espaço na obra “Os sete pecados capitais e as quatro últimas coisas” de Bosch.
(AGAMBEN, 2007; MOREIRA, 2014).
419
entanto, em termos de visualidade, as semelhanças chamam mais a atenção do observador que
as diferenciações. Então, diante disso surge uma provocação: como o observador poderia
identificar o luto e/ou a melancolia nas artes visuais, estando elas descontextualizadas do
argumento da obra ou das motivações pessoais dos artistas?
Claro que, em termos lógicos, o próprio local da obra indica muita coisa sobre o
sentimento que ela transmite, ou seja, as obras de arte tumulares na maioria das vezes serão
representativas do luto e da preservação da memória dos mortos. O que está proposto aqui é
tentar analisar a obra descontextualizada.
Trazendo Panofsky para o contexto da interpretação das imagens, uma análise pré-
iconográfica poderia, com certa facilidade, apontar a direção da leitura central da imagem. Ao
ver uma figura humana distante com a cabeça apoiada nas mãos, se pensa em sentimentos de
tristeza como a melancolia. Seria necessário então uma análise iconográfica dos elementos
extras da obra para encontrar mais detalhes que a classifiquem, de fato, como representativa
do luto. Alguns elementos extras, como por exemplo a presença comum de um arco de flores
junto à personagem, (usado para simbolizar a concretização do ciclo da vida), pode ser um
indício de que a figura sofre por luto, não necessariamente por melancolia.
Quando se recorre aos teóricos que se dedicaram ao estudo da melancolia como
Aristóteles no ‘Problema XXX’ e Freud em ‘Luto e Melancolia’ se consegue compreender a
dimensão desses dois estados: Enquanto Aristóteles associa a melancolia à genialidade e a
caracteriza pela presença em excesso da bílis negra, Freud a coloca em um patamar muito
mais ligado ao próprio ego:

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma


suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição
de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima [...] o luto revela
os mesmos traços, exceto um: falta nele a perturbação do sentimento de autoestima
(2013, p.28).

O pensamento dos teóricos, embora não seja de grandes esclarecimentos do ponto de


vista das artes visuais, é importante para entender as nuances da melancolia e como elas
afetariam a questão da genialidade, proposta por Aristóteles.

420
Um exemplo de tal provocação pode ser entendido no contexto da obra Retrato do Dr.
Gachet218 (1890), do holandês Vincent Van Gogh. “Quando Van Gogh o conheceu, fazia
alguns anos que Gachet era viúvo. Esse luto o fizera sofrer. Van Gogh pensou perceber nele
um profundo desencorajamento, o que para o pintor foi um motivo de identificação”
(STAROBINSKI, 2012, p. 180). Esse trecho mostra que Van Gogh, acometido pela
melancolia, identificou-se com o médico enlutado por sua esposa, por sentir uma aproximação
sentimental entre os dois estados (melancolia e luto).
Não é mérito deste texto discorrer mais a fundo sobre as particularidades do estado
melancólico e do estado do luto219, mas sim observar nesse recorte que, talvez por Van Gogh
ter se identificado com tal sentimento, o retrato do médico carrega em si, uma aura de
melancolia e uma “expressão consternada do nosso tempo”, conforme cita Van Gogh em carta
dirigida a Gauguin. (STAROBINSKI, 2012, p. 180) com semelhanças visuais à Melencolia I
de Dürer, de forma a exteriorizar mais a melancolia que o luto220.
Assim como Van Gogh, inúmeros artistas ao longo da História da Arte buscaram a
representação da melancolia bebendo da fonte de Dürer. Vale lembrar das várias versões de
‘Melancolia’ de Edvard Munch pintadas entre 1891 e 1893 que representam o sofrimento tal
qual Melencolia I. E mais próximo da contemporaneidade, se tem a releitura da mesma obra:
Melancholy after Dürer (1989) do artista R. B. Kitaj, que apesar de inspirada numa obra tão
longínqua, evoca questões contemporâneas. Mesmo com o hiato de quase cinco séculos entre
as duas obras, o olhar distante e as mãos que carregam o peso da cabeça, permanecem
imutáveis, ignorando a passagem do tempo.
Muito ainda há para ser estudado, pesquisado e dito sobre as representações que os
artistas fizeram e fazem nas artes visuais para expressar esses estados/sentimentos que tanto (e
tão pouco) se sabe a respeito. A subjetividade da melancolia e a materialidade do luto
parecem se confundir e se fundir nas artes visuais de tal forma que a impressão que se tem é
de que na contemporaneidade, mesmo com o aporte da psicologia e psicanálise, não se sabe
tanto mais sobre a “doença da alma” do que se sabia com Aristóteles lá atrás. Mesmo assim,

218
O Dr. Gachet foi o médico que diagnosticou Van Gogh como sendo melancólico. Coincidência ou não, Van
Gogh viria a se suicidar algumas semanas depois. (STAROBINSKI, 2012).
219
Para maior aprofundamento no tema, ler FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
220
Luto este que só fica evidente quando se conhece o contexto da pintura de tal retrato.
421
tomando como base a máxima de que “a arte revela o real do seu tempo”, estudar essas
representações visuais do passado e as comparar com representações mais recentes, revela que
a forma como as pessoas sentiam e externavam a melancolia e o luto permanece quase
imutável. No recorte a seguir, lendo-se com alguma imaginação, se consegue até visualizar a
postura descrita pelo autor:

Sentia-me afundando sob algo mais forte do que eu. Primeiro, não conseguia usar os
tornozelos, depois não conseguia controlar os joelhos e a seguir minha cintura
começou a se vergar sob o peso do esforço, e então os ombros se viraram para
dentro. No final, eu estava compactado e fetal, esvaziado por essa coisa que me
esmagava sem me abraçar. (SOLOMON, 2022, p. 18).

A relação (ou relações) entre as obras de arte descritas nesse texto, figuram um
pequeno vislumbre de um universo imagético que ainda carece de mais debruce e que ainda
tem muito mais a oferecer em termos de signos e significados. Confrontar o acervo funerário
do Cemitério de Santo Amaro, pode representar uma janela para que esse tipo de pesquisa
ganhe cada vez mais notoriedade no campo das artes visuais. A pesquisa acadêmica em
ambientes cemiteriais, traz resultados muito interessantes e pertinentes não só para as artes
visuais, mas também para outras vertentes das ciências humanas. Pesquisar o acervo artístico
de um cemitério é uma forma de manter em voga a tradição fúnebre de determinado local e
entender como as pessoas representavam seus processos de luto, perda e memória dos mortos,
além da citada melancolia. E ainda contribuir para a naturalização de temas considerados
tabus na sociedade atual, aproximando-os ainda mais da pesquisa em artes visuais.

Palavras-chaves: Luto. Melancolia. Arte tumular.

REFERÊNCIAS

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Editora UFMG, 2007.

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tradução do grego, apresentação e notas de Jackie Pigeaud. Rio de Janeiro: Lacerda editores,
1998.

422
BORGES, Maria Elizia. Imagens da morte: monumentos funerários e análise dos
historiadores da arte. XXVI Simpósio da Anpuh São Paulo, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300659144_ARQUIVO_XXVIANPUH,2
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https://www.revistas.usp.br/espinosanos/article/view/89331. Acesso em: 23 fev. 2022.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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Disponível em:
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_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157 Acesso em: 15 fev. 2022.

MOTTA, A. Melancolia e paisagens da morte. Revista de ciências sociais - Política &


trabalho, [S. l.], v. 2, n. 39, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/
ojs2/index.php/politicaetrabalho/article/view/17654. Acesso em: 24 fev. 2022.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva,
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Santo Amaro. In: Estudos Cemiteriais no Brasil: Itinerários, múltiplas Abordagens e Novas
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SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia. Uma anatomia da depressão. Rio de Janeiro:


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VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos cemitérios Brasileiros. Rio de


Janeiro: Conselho Federal de Cultura/MEC, 1972.

WOLF, Norbert. Albrecht Dürer 1471-1528: O gênio do Renascimento alemão. [s. l.]
Taschen, 2010.

423
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 1 - LUTO E SEUS ENTRECRUZAMENTOS

LUTO E O ANSEIO PELO FIM NA OBRA DE MANUEL BANDEIRA E


KOTOMI AOKI

Crislane da Silva Lima221

O luto e o anseio pelo fim são temas presentes em toda a obra do poeta Manuel
Bandeira e no mangá (quadrinho japonês) Boku no hatsukoi wo kimi ni sasagu (ou em
tradução livre: Dedico meu primeiro amor a você) de Kotomi Aoki. É parte deste
trabalho entender como o luto está sendo apresentado nestas obras e como elas se
relacionam. Manuel Bandeira era um escritor, professor e crítico, também um dos
principais nomes da Primeira fase do Modernismo, além de compor a Academia
Brasileira de Artes. Foi diagnosticado com tuberculose ainda muito jovem, e é possível
encontrar em sua obra referências à doença. O autor era conhecido por falar do cotidiano,
solidão e humildade com versos livres ou também com métricas dos cancioneiros
medievais mostrando seu domínio de diferentes formas de poesia. Seu poema mais
famoso é "Vou-me Embora pra Pasárgada" presente no livro Libertinagem (1930). O
autor era extremamente engajado no movimento modernista, mesmo que a distância,
entretanto este trabalho focará apenas poemas da obra A cinza das horas (1917).
Em sua primeira obra, A cinza das horas de 1917, temas como melancolia, morte e
sofrimento são recorrentes e inspirados, como já dito, por sua doença, como afirma Ana
Miranda (2002, p. 199) "O livro é todo escrito com o principal intuito de driblar o
sentimento de inutilidade provocado pela doença". Segundo Norma Seltzer Goldstein
(1987) o livro tem fortes influências do parnasianismo e simbolismo, movimentos
anteriores, mas que Bandeira vai criticar em suas obras vindouras. O primeiro poema do
livro é "Epígrafe” que significa “título, inscrição, pensamento ou frase colocada no início
de uma obra para sintetizar seu espírito” (Minidicionário Larousse, 2009, p. 310).

“Sou bem-nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

221
Graduanda em Letras, Universidade Federal do Pará. E-mail: crislane.lima@ilc.ufpa.br.

424
Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.”

(BANDEIRA, 1958)

O nome não é à toa, além de abrir o livro, explicar seu título, também pode ser
considerado um parâmetro para o que virá adiante. O poema apresenta ritmo e
musicalidade através de suas rimas e leva o leitor a entender que há melancolia e
frustração ante o “mau destino” e o “mau gênio da vida”, não há desespero, mas uma
espécie de luto pelo que se perdeu, está perdendo e vai perder.
Obviamente Bandeira não estava satisfeito com sua situação e as limitações que a
doença implicava, por isso a escrita se torna tão importante, sua forma de ler o mundo
também mudou, pois se tornou consciente da finitude humana. Em seguida há
“Desencanto”, outro título quase autoexplicativo, pois como se encantar com algo
quando uma doença mortal está à espreita?

“E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre”

(BANDEIRA, 1958)

Diferente de "Epígrafe", o poema aborda o desespero e a dor do autor que são


extravasados através da escrita cheia de figuras de linguagem. Ribeiro Couto diz (1980,
p. 49) “o célebre verso ‘Eu faço versos como quem morre' não era literatura. Durante
muitos anos, cada dia foi para ele o último. Cada poema era uma despedida”. Era como
vivenciar a morte e o luto durante a escrita, pois seu “verso é sangue”, “cai, gota a gota,
do coração”. Sua primeira obra também era a mais próxima do início da doença, quando
tudo era novo e assustador ante o medo da morte.
Mas “a angústia é o que coloca o homem diante da insuperável condição de seu
viver. Desse modo, ela aniquila qualquer objeto determinado e existente para apontar o
nada” (AGUIAR, Rosiane, 2010 p. 113). Agora ciente da finitude humana e tendo que

425
seguir uma vida diferente da planejada, Bandeira tem o “nada” diante de si, suas escolhas
são tentar continuar vivendo o mais normalmente possível ou apenas esperar a morte
chegar e até mesmo ansiar por ela para que sua “angústia rouca” chegue ao fim. Apesar
da morbidez em sua obra, não é exatamente este caminho que o autor segue, através da
escrita “a consciência da morte serviu como abertura a partir da qual tomou
conhecimento do mundo e não só de si, mas de si no mundo” (Aguiar, 2010, p. 114). Sua
dor o retarda, mas também o faz seguir em frente, a doença o limita, mas também faz seu
mundo se expandir, então mesmo sem poder viver “plenamente” ainda há o desejo de
seguir, mas seguir não significa não reclamar, não questionar por que logo um menino
“bem-nascido” teve de perder boa parte de sua juventude. Seguir em frente para Bandeira
foi desejar o fim da doença e não de si mesmo, foi se agarrar a sua poesia e guardar nela
seus pensamentos mais sinceros.
A morte, a doença que mina uma vida tão jovem, um luto pelo que se perdeu e pelo
que se pode perder, a solidão por sofrer algo que nem todos entendem ou passam, são
fortes características do poeta recifense e também podem ser encontradas na obra de
Kotomi Aoki. Aoki é uma autora japonesa premiada e suas obras já foram adaptadas em
diversos países, é responsável pelo roteiro e arte do mangá Boku no hatsukoi wo kimi ni
sasagu (僕の初恋をキミに捧ぐ ou Dedico meu primeiro amor a você), publicado pela
editora Flower Comics, que pertence a demografia shojo, linha editorial definida pela
faixa etária e gênero, é destinada ao público femino mais jovem entre 12 e 18 anos, o
termo significa literalmente “quadrinho para garotas”. Publicado em 2005 no Japão e
inédito no Brasil, o mangá conta a história de Mayu e seu primeiro amor Takuma, eles se
conheceram ainda na infância, pois Takuma convive desde muito cedo com várias
limitações devido uma doença no coração e o pai de Mayu é o cardiologista do rapaz.
Quando os médicos garantem que Takuma não viverá além dos 20 anos ele tenta se
distanciar de Mayu para evitar que ela sofra com sua morte. O casal passa então a viver
distante boa parte da trama e quando se aproximam é para discutir. O personagem não é
levado a aproveitar a vida que lhe restava, mas diante do “nada” é refém de sua doença e
apenas ansiava pelo fim, pelo momento que seu coração finalmente pararia e com ele a
dor de sua família, amigos e a própria.

426
O mangá inicia com um Takuma mais velho falando que não tem muito tempo de
vida e boa parte da história é ele relembrando o início de seu relacionamento com Mayu.
Por ter nascido doente, tinha bons motivos para ser ressentido com a vida. Entretanto ele
diz que nunca foi infeliz e um médio até chega a dizer "você está de parabéns por ser tão
alegre e viver da vida tudo o que ela tem a oferecer” 222, mas isso só era possível porque
acreditava que ia ser curado e viveria seus sonhos. Quando em uma viagem escolar, o
garoto descobre que não viverá além dos vinte anos, ele não consegue lidar com a
notícia. “Em que consiste a minha vida? Que tipo de vida é essa? É o que eu fico me
perguntando. Fico me perguntando para que eu nasci”, a partir deste ponto Takuma vive
o mais miseravelmente possível, isolado, forçando uma personalidade que não é a sua e
fazendo escolhas ruins porque ele morrerá em “breve”. Toda a dor dos personagens é
sentida através do enredo cheio de drama com pequenas reviravoltas e através dos
grandes olhos e lábios expressivos. Mesmo sem ter certeza se o prognóstico médico vai
se concretizar para ele seu “destino é a morte” e em pouco tempo começa a se afastar de
todos e de si mesmo, indo inclusive para um internato, assim, ao seu ver, evitando o
sofrimento daqueles que ama. Agora semelhante a Bandeira, ele vivia um “mau destino”.
A doença pode ter privado Takuma de muitas coisas, mas foram suas próprias
escolhas que o levaram a uma vida mais difícil, ele já estava de luto pela vida que ele não
teria e pelo amor que não viveria, sem notar que estava vivo no presente, podendo ter
bons momentos ao lado de seu primeiro amor e dos pais que sempre cuidaram dele ou
fazendo amizades e vivendo tão plenamente quanto pudesse. O intervalo entre descobrir
seu fim trágico e isso de fato se realizar é muito grande, porém ele não teve nenhum tipo
de aconselhamento ou de válvula de escape e suas escolhas com apenas doze anos
mudaram toda a sua curta vida. Durante um longo período da história, ele e a amada
sofrem por nunca estarem realmente juntos, mas quando ambos fazem 18 anos se
reaproximam e decidem se casar conforme prometeram na infância antes do diagnóstico
de Takuma. Ele, incerto sobre o futuro, deixa para a garota um testamento que a encoraja
a seguir em frente e viver sua vida ao máximo (bem diferente dele). O mangá termina

222
A obra não foi publicada no Brasil, portanto não possui tradução oficial, para fins de facilitar o
entendimento de todos, a tradução usada foi a disponibilizada por scanlator Mangás Space com tradução
de Takeshito. Disponível em: https://www.mangasspace.com.br/projeto/boku-no-hatsukoi-wo-kimi-ni-
sasagu/56
427
com Mayu feliz e com uma família, mas sem a certeza se o rapaz sobreviveu ou não e se
é ele que está com ela.
Semelhantemente ao autor Manuel Bandeira, Takuma foi afetado por sua doença por
toda a vida, mas diferentemente ele não se agarrou a nada, não buscou algo que tivesse
significado para si nem que fosse apenas para driblar ou reduzir seu sofrimento um
pouco, viveu seus quase vinte anos temendo a chegada da morte e ansiando por ela em
igual medida. Sua frustração por não poder praticar esportes como os outros garotos e
não poder estar perto da família e da amada, estranhamente só fez com que ele se
afastasse mais e mais, até chegar ao ponto em que ele se sentia completamente só. Se
Bandeira escrevia como quem morre, Takuma viveu como se já estivesse morto.

Palavras-chaves: Luto. Manuel Bandeira. Kotomi Aoki.

REFERÊNCIAS

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Bandeira. 2010. Tese (Doutorado) - UFRN, Natal.
AOKI, Kotomi. Boku no hatsukoi wo kimi ni sasagu. Tradução de Takeshito. Japão:
Flower Comics, 2005.
BANDEIRA, Manuel. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.

COUTO, Ribeiro. De menino doente a rei de Pasárgada. In: BRAYNER; Sônia. (Org)
Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980.
GOLDSTEIN, Norma. O primeiro Bandeira e sua permanência. In: LOPEZ, Telê Porto
Ancona (org.) Manuel Bandeira: Verso e Reverso. São Paulo: T.A. Queiroz, 1987.
Minidicionário Larousse da Língua Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Larousse do Brasil,
2009.
MIRANDA, Ana Augusta W. R. A morte na poética de Manuel Bandeira. Revista do
Centro de Estudos Portugues, Minas Gerais,v. 22, n.31, p. 199-210, 2002.

428
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 2 - PROCESSOS RITUALÍSTICOS E SUAS PARTICULARIDADES

PARA ALÉM DA MORTE: ANÁLISE DAS EMOÇÕES NOS


TESTAMENTOS DO CENTRO DE MEMÓRIA DA AMAZÔNIA (1889-
1930)

Alan da Silva Dias223

O valor das fontes judiciais nas pesquisas históricas é amplamente conhecido e


debatido. Historiadores que se ocupam na investigação e análise desse tipo de fonte histórica
têm lançado grandes contribuições para a compreensão das mais diversas temáticas. A partir
dos processos cíveis e criminais do Poder Judiciário, vem sendo possível para a
historiografia a investigação dos signos de riqueza, da cultura material, da religiosidade, dos
casamentos, das famílias, das mentalidades e do cotidiano de sujeitos das mais variadas
classes sociais de determinada época. Trabalhos como de Martha de Abreu Esteves (1989)
no Rio de Janeiro e Cristina Donza Cancela em Belém (2011), são exemplos de como essas
discussões podem ser feitas em torno dos processos judiciais. Diante disso, esta pesquisa
pretende utilizar processos judiciais, em particular os testamentos do Centro de Memória da
Amazônia (CMA), com um foco diferente dos citados acima, objetiva-se investigar nesses
processos cíveis os sentimentos e emoções em torno da morte no contexto da Primeira
República na cidade de Belém do Pará, fazendo aproximações com a Antropologia das
emoções e contribuir para a História dos sentimentos.
Até o presente momento, foi feito um levantamento parcial no conjunto documental
do Centro de Memória da Amazônia dos processos de testamentos disponíveis. Dentre as
onze varas cíveis disponíveis, a subsérie de testamentos foi encontrada em apenas dois
cartórios: 11ª Vara Cível - Fabiliano Lobato, que possui 123 caixas que se estende pelos
anos de 1796 a 1970, e a 14ª Vara Cível - Sarmento, que possui uma caixa com documentos
que se estendem pelo período de 1840 a 1894. Sendo este um volume documental grande e
que carrega uma infinidade de potenciais pesquisas, buscarei testamentos que compreendam
o período da Primeira República (1889-1930) e que possuam aspectos particulares, que
sejam singulares em sua estrutura e na construção do testemunho, para que se possa chegar a

223
Mestrando em História, PPGHIS – UFRJ. E-mail: alandiashist@gmail.com
429
discussões a respeito das emoções. Assim, sendo produzido em um contexto que antecede a
morte da pessoa, o testamento acaba sendo um testemunho não somente da morte, mas
também da vida e dos sentimentos.
Segundo Júnia Ferreira Furtado (2009), essa documentação possui ricas informações
sobre os diversos aspectos da vida do morto e da sociedade que ele fazia parte, sendo
registrado as últimas vontades do sujeito. Em um contexto marcado por grandes mudanças
no Estado brasileiro com a Proclamação da República e com profundas alterações na capital
paraense desde os anos de 1870 com o crescimento da economia da borracha, diversificando
e intensificando o comércio e a economia, ocasionando mudanças na estrutura da cidade e
redefinindo das relações sociais (CANCELA, 2011), almeja-se transcender os limites da
fonte original, dos diferentes tipos de testamentos, dos discursos e das linguagens próprias
da justiça em períodos diferentes, para se chegar em dimensões mais profundas. Dessa
maneira, entendendo que os processos judiciais são rastros do passado, é necessário fazer
uma descrição densa, desemaranhar as linhas emboladas das narrativas e dos filtros judiciais
dos testamentos para buscar os dados negligenciados ou imperceptíveis para se chegar nos
sentimentos por trás dos testamentos e examinar em que grau o contexto pode ter afetado as
percepções e sentimentalidades sobre a morte.
Neste sentido, a micro-história como metodologia surge como uma das
possibilidades para alcançar esses objetivos. Por meio da microanálise e da investigação das
particularidades, singularidades e do exame minucioso das fontes, as coisas consideradas
insignificantes e as zonas opacas, podem ser chaves para interpretar uma realidade mais
profunda e pouca explorada, como é o caso dos sentimentos em torno da morte nos
testamentos. Segundo Ginzburg (2011), o historiador é comparável ao médico que se utiliza
de quadros nosográficos224 para identificar e investigar o mal específicos de cada doente, e,
como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural.
Assim, esta pesquisa se propõe em abstrair de casos particulares de testamentos,
considerações gerais, “teóricas”, tendo consciência de que casos individuais podem ser
reveladores, explorando a possibilidade para a história de ligar esses casos particulares a
considerações amplas (FAVERO, 2020). Sendo a micro-história o método que parte de
questionamentos gerais e de respostas locais, ou seja, não tem objetivo de generalizar
224
Documento que possui a descrição e explicação de doenças.
430
respostas, mas, através de um lugar, um documento ou um caso, lindos e examinados a partir
do aumento de lente, busca identificar perguntas com um valor geral, colocando em
questionamento a funcionalidade da razão humana que governa as ações e comportamentos
(LEVI, 2020), pode ser possível que venhamos encontrar em casos específicos,
questionamentos gerais sobre as sentimentalidades de sujeitos sobre a morte no período
republicano na cidade de Belém do Pará.
Dessa maneira, a aproximação e uma possível relação com a Antropologia das
Emoções podem concatenar e fomentar muitas contribuições. A ideia de se propor um
diálogo entre micro-história e Antropologia das Emoções veio de uma pesquisa recente que
analisou a morte na perspectiva da Antropologia das Emoções na cidade de Belém/PA no
ano de 2019. Por meio de 50 entrevistas realizadas no cemitério Santa Izabel, Elisa
Rodrigues (2020), em sua monografia Antropologia mortuária: sentimentalismo
contemporâneo acerca da morte, analisou e identificou o panorama de como a morte era
sentida por aquele grupo de pessoas distintas, e em como esses sentimentos no contexto de
morte configuram o indivíduo socialmente, fazendo com que essas emoções justificassem a
interpretação da morte individual e coletivamente, contribuindo para se compreender quais
sentimentos se conectam com pensamento sobre a morte.
Dessa maneira, o movimento analítico que privilegia as emoções como dimensões
autônomas e que possui histórias e conexões, foi possível na investigação de Elisa
Rodrigues que identificou, categorizou e conectou os sentimentos presentes nas falas
daqueles sujeitos que visitavam o cemitério no contexto de dia de finados do ano de 2019,
levando em consideração em como eles se expressavam, as diferenças e convergências das
respostas, seus semblantes, quais classes e grupos pertenciam e se o ambiente - o cemitério -
com sua arquitetura e características influenciavam aquelas emoções. Assim, a investigação
de signos, sinais, indícios e o encontro de particularidades e singularidades presentes na
pesquisa de Elisa Rodrigues, que encontrou respostas locais, mas que serviram para
questionamentos gerais e relevantes a respeito das emoções sobre a morte (RODRIGUES,
2020), levando, também, o imaginário e a relação do cemitério com a cidade de Belém, e as
diferentes emoções e sensibilidades a respeito do estar no cemitério, percebendo o espaço
cemiterial da e na cidade dos vivos e mortos, como também é pontuado no artigo Às portas

431
das cidades urbana e cemiterial na cidade de Belém (PA) (RODRIGUES; SILVEIRA,
2022), pode ser o fio que conecta o método histórico com essa perspectiva antropológica.
Por fim, ainda que esta pesquisa esteja em estado inicial, ela possui potencial para
fazer grandes contribuições para os estudos da historiografia na Amazônia sobre a história
dos sentimentos. Se preocupando com os sentimentos e como estes são essenciais para as
condições e relações humanas, já que são ingredientes da sociabilidade e da vida social, não
perdendo de vista as características específicas e que cada comunidade social estrutura uma
definição de emoções (ROCHA, 2021), a história dos sentimentos sublinha que as emoções
podem ser examinadas como práticas sociais, culturais e políticas, sendo possível enxergar a
historicidade dos afetos. Essa perspectiva põe os sentimentos como base das relações
humanas, é por meio da sensibilidade que o historiador pode compreender um pouco melhor
a atitude dos homens no passado.
Segundo Arlette Farge, há lugares para a história na atualidade que permite um
confronto entre o passado e o presente interrogando os documentos de outras formas
buscando articular o que desaparece sobre o que aparece. É nesse sentido que essa
investigação se estabelece, propondo que seja possível que se possa ter contato com as mais
diversas emoções dentro dos testamentos, por meio de novos olhares, perguntas e diálogos
com outras ciências. A hipótese levantada que se possa encontrar indícios dos sentimentos,
por exemplo, de dor e sofrimento nessa documentação, pode gerar grandes discussões sobre
essas sentimentalidades, as colocando como ponto de pesquisa e reflexão, diferente do que
comumente se tem pensado a respeito das emoções, considerados consequências deste ou
daquele fato (FARGE, 1999).
Analisar os sentimentos e sua expressão social é um caminho de compreensão de
convivência e de seus modos (SIQUEIRA, 1976). Trabalhos como o de Thayna Alves
Rocha, que analisam doenças e sentimentos por meio de diagnósticos de melancolia na
cidade de São Paulo na primeira metade do século XX, são exemplos de como a abordagem
vem ganhando novas discussões e que privilegia dimensões importantes para a história. Por
fim, a História dos sentimentos coloca os sentimentos como objeto, não simplesmente como
consequência de algo, mas uma dimensão, que possui sua própria dinâmica em diferentes
contextos.

432
Portanto, tendo como objeto de pesquisa os sentimentos em torno da morte nos
testamentos da cidade de Belém, com análise de microscópio e fazendo ponderações e
empréstimos com a Antropologia das Emoções, este trabalho pode contribuir para o
desenvolvimento de uma variedade de investigações no campo da história dos sentimentos,
abrindo possibilidades para que a história venha a tocar em dimensões emotivas de sujeitos
que se situavam no contexto republicano.

Palavras-chaves: Micro-história. Antropologia das Emoções. História das Emoções.

REFERÊNCIAS

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1870-19200). Belém: Ed. Açaí, 2011.
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Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FARGE, Arlette. Lugares para a História. Lisboa: Editorial TEOREMA, LTDA, 1999.
FAVERO, Giovanni. Método da história e ciências sociais: Para uma micro-história
aplicada. In: VENDRAME, Maíra e KARSBURG, Alexandre. Micro-história: um método
em transformação. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2020.
FURTADO, Júnia. “A morte como testemunho da vida” In: PINSKY, Carla Bassanezi &
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118.
GINZBURG. Carlo. Mitos, emblemas e sinais.São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
LEVI, Giovanni. Micro-história e história global. In: VENDRAME, Maíra e KARSBURG,
Alexandre. Micro-história: um método em transformação. São Paulo, SP: Letra e Voz,
2020.
MARTINS, Ana Paula Vosne. A Utopia Amorosa de Jules Michelet. In: BREPOHL,
Marion; CAPRARO, André Mendes; GARRAFFONI, Renata Senna (Orgs.). Sentimentos
na História: linguagens, práticas, emoções. Curitiba: Ed. UFPR, 2012. p. 154-181.
ROCHA, Thayna Alves. Doença e sentimento: diagnósticos de melancolia no manual
Psiquiatria Clínica e Forense. Contraponto, v. 10, n. 1, p. 461, 2021.
RODRIGUES, Elisa Gonçalves. Antropologia mortuária: sentimentalismo
contemporâneo acerca da morte. Orientadora: Renata de Godoy. 2020. 66 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Licenciatura em Ciências Sociais) - Faculdade de Ciências Sociais,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará. Belém, 2020.

433
Disponível em: https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/prefix/3812. Acesso em: 13 agos
2022.
RODRIGUES, Elisa Gonçalves; SILVEIRA, Flávio. Leonel Abreu. (2022). Às Portas Das
Cidades Urbana E Cemiterial Na Cidade De Belém (PA). Revista Conhecimento Online, 1,
67–85. https://doi.org/10.25112/rco.v1.2867.
ROSEMBERG, André; DE SOUZA, Luís Antônio Francisco. Notas sobre o uso de
documentos judiciais como fonte de pesquisa histórica. Patrimônio e Memória, v. 5, n. 2,
p. 159-173, 2007.
ROSENWEIN, Barbara H. História das Emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra
e Voz, 2011.
SIQUEIRA, Sônia A. A renovação da História: História dos Sentimentos. Revista de
História, v. 54, n. 108, p. 564-578, 1976.

434
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 2 - PROCESSOS RITUALÍSTICOS E SUAS PARTICULARIDADES

O RITUAL FÚNEBRE NO ISLÃ E A PANDEMIA DO COVID 19:


UMA PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

Pamela Mariane da Gama Melo225


Larissa da Conceição Barradas226
Rubia Suzane Antunes dos Santos227

O Islã é um segmento religioso com características rituais próprias, sobretudo no ritual


fúnebre de seus mortos. Contextualizado no mundo todo, o Islã se globalizou e está presente
em vários países do ocidente como o Brasil. Esta pesquisa bibliográfica objetiva compreender
quais foram as mudanças na prática do ritual fúnebre na tradição islâmica durante pandemia
do Covid 19. A importância desse estudo consiste em aprender sobre a tradição islâmica
enquanto um segmento religioso complexo que modifica relações sociais, políticas, econômicas e
culturais nas localidades em que se encontra, mas que também sofreu alterações em seus rituais e
costumes devido a pandemia do Covid 19, em especial o ritual fúnebre de seus mortos.
A iniciativa de pesquisa surge a partir de uma avaliação regimental da disciplina de
Antropologia da Religião, ministrada no 3º período do Curso de Ciências Sociais pela Profª
Drª Rachel Abreu. Essa avaliação consistiu em elaborar um artigo sobre um ritual de uma
matriz religiosa. Devido a pandemia do Covid 19 e o desenvolvimento do semestre de forma
remota, realizamos pesquisa bibliográfica a partir do método qualitativo. Trabalhamos com o
levantamento bibliográfico e pesquisas que abordam tematicamente a religião, rituais e o ritual
fúnebre dentro da religião islâmica. A respeito de pesquisa bibliográfica, concebemos em acordo
com Pizzani (2012) ao perceber a importância da pesquisa bibliográfica como uma etapa crucial e
anterior ao de uma produção de artigo ou tese e que significa imprimir esforços para pesquisar e
conhecer algo.
Para início de debate é importante frisar que a palavra Islã tem origem etimológica do
árabe saalam que significa “paz”, mas também significa “submissão” espontânea à vontade de
Allah, (o Soberano, o Absoluto), em que o fiel alcança a paz interior, entre corpo e espírito, e

225
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará. E-mail:
pamela.melo@aluno.uepa.br
226
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará. E-mail:
larissa.barradas@aluno.uepa.br
227
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará. E-mail:
rubia.santos@aluno.uepa.br
435
se encontra com Allah sem intermediários. O/A fiel adepto/a ao Islamismo é conhecido/a
como muçulmano/a (MARQUES, 2009).
O islamismo é uma religião monoteísta, ou seja, cultua uma única divindade e tem
como livro sagrado o Alcorão (que significa “a leitura”) contendo 114 capítulos (suratas) e
6.342 versículos (ayat) (MARQUES, 2009). Sobre religião, Durkheim (1996) discute
inicialmente que os homens foram obrigados a criarem uma concepção de religião para si,
antes mesmo que a ciência das religiões instituísse comparações metódicas. Dessa forma, o
islamismo apresenta-se como uma instituição social dotada de uma função social estabelecida,
de forma a contribuir para o controle e modelagem social, impactando nas relações sociais nos
espaços em que se insere.
De acordo com Castro e Vilela (2019) o censo demográfico realizado pelo IBGE em
2010, são constatadas cerca de 35.166 pessoas adeptas do islamismo no Brasil, provenientes
principalmente de países como o Líbano, Jordânia e Síria, localizados de forma mais
expressiva na região sul e sudeste. Já na Cidade de Belém do Pará, não foram encontrados
dados quantitativos da presença de muçulmanos, contudo, foi possível localizar pela internet o
Centro Islâmico Cultural do Pará - Mesquita Ar-Rahmah (Mosque) situada na Rua Ferreira
Cantão, bairro Campina onde acontecem reuniões da comunidade islâmica belenense. Em
virtude da pandemia causada pela Covid 19 e o distanciamento social empregado para conter
a proliferação do vírus, evitamos fazer pesquisa de campo pela nossa segurança e também
para não expor ninguém ao vírus.
Na atualidade, a comunidade islâmica do Brasil pode se configurar como uma
comunidade pequena se comparada com as outras religiões de maior proporção nacional,
como o protestantismo e o catolicismo, todavia mantém a tradição de seus rituais, como o
Ramadã e o ritual fúnebre (CASTRO; VILELA, 2019). A morte e os rituais que a envolvem
representam parte da cultura identitária da religião islâmica. Na tradição islâmica, acredita-se
que a vida na terra é apenas uma passagem. A forma como viveram seus princípios religiosos
será determinante para o seu destino após a morte. Turner (1974) considera como
liminaridade, uma fase do ritual onde os indivíduos se encontram em um processo de
transição.
O ritual fúnebre corresponde a um conjunto de obrigações seguidas pelos
mulçumanos quando alguém morre. O ritual consiste em purificar o corpo do morto lavando-o
436
com água e ervas de três a cinco vezes antes de serem enterrados e segundo a tradição devem
ser enterrados no mesmo dia em que morreram. A preparação ritual envolve a utilização de
objetos, substâncias, aliado a orações e preces. As regras rituais e as práticas de preparação do
corpo são baseadas nos “textos corânicos, nas hadiths e também na jurisprudência (fiqh)”
(CHAGAS, 2015, p. 125). Barbosa (2021) explicita que os corpos são lavados e perfumados
principalmente nas partes que envolvem a oração (testa, mãos e joelhos), os homens são
enrolados com três tecidos brancos (kafan) e as mulheres em cinco tecidos, mantendo seu
cabelo solto. Além disso, não é qualquer pessoa da comunidade muçulmana que pode
proceder o ritual, uma vez que deve ser realizado por quem tem o conhecimento necessário e
vivencia os valores islâmicos em seu cotidiano. Necessário evidenciar que o corpo é
preparado por alguém do mesmo gênero, ou pela esposa ou marido do/a morto/a.
A purificação do morto muçulmano demonstra o poder simbólico da religião islâmica
na medida que um todo esse processo só poderá ocorrer se a pessoa for muçulmana ou
mulçumana convertida, não importando o tempo ou sua fidelidade a religião. Quanto ao poder
simbólico Bourdieu (1989) fala que tais símbolos são instrumentos de integração social do
indivíduo por serem instrumentos de conhecimento e comunicação. Preparado o corpo, o
muçulmano morto pode ser posto em um caixão e levado da mesquita para o
cemitério/sepultura. Ao chegar no cemitério, é realizada uma oração fúnebre e o corpo é
retirado do caixão e posto diretamente na cova, com a cabeça voltada para a cidade de Meca
(sede da Grande Mesquita), enquanto os que estão presentes permanecem em oração pela
alma do morto. O ritual deve seguir de modo discreto, sem elevação da voz e sem permitir
que a oração para o falecido deixe de ser o foco, de modo que a passagem para o outro mundo
seja tranquila.
No entanto, a partir de 2020, rituais fúnebres como o da tradição islâmica tiveram
que se adaptar as mudanças do novo contexto mundial. As primeiras mortes ocasionadas pela
pandemia do Covid 19 mudaram alguns pensamentos acerca da concepção de morte, rituais e
luto. Esse processo impactou na organização psíquica e de bem-estar pós perda que o ritual
auxilia (GIAMATTEY et al., 2022).
No caso do ritual fúnebre realizado pela tradição islâmica as mudanças aconteceram
na purificação do corpo e na possibilidade de as orações poderem ser realizadas fora da
mesquita. Todo o ritual de purificação é uma forma de dignificar o corpo do falecido, mas em
437
casos excepcionais como o de uma pandemia o processo de preparação do corpo tem sido
evitado para evitar a propagação do vírus e seguir as recomendações da Organização Mundial
de Saúde (OMS), então todo o processo o processo de preparação do corpo ficou
impossibilitado. Inclusive, Barbosa (2021) menciona um hadith tirado do Sahih Al-Bukhari:
“Se você ouvir um surto de peste em uma terra, não entre nela; mas se a praga eclodir em um
lugar enquanto você estiver nele, não deixe esse lugar”, muito usado por xeiques para orientar
na proteção contra epidemias. Sobre as orações, existe a possibilidade de ser realizada fora da
mesquita ou mesmo dentro dela, sem que o falecido esteja no mesmo ambiente, com alguns
presentes, respeitando o distanciamento social e mantendo presente a tradição de entrar em
oração pela alma do morto, ainda que o corpo já tenha sido enterrado.
Por fim, cabe ressaltar como a pandemia influenciou no comportamento e na forma
que as pessoas interagem. Interromper bruscamente uma rotina movimentada para entrar em
um isolamento social –ou mesmo estar na linha de frente contra o vírus– provoca muita
desestabilização na rotina e no campo psicológico. Dessa forma, o trabalho apresentado teve o
intuito de evidenciar sobre como os rituais fúnebres se tornaram complexos, especificando o
ritual islâmico, o qual precisou passar por mudanças de modo que pudesse resguardar a vida
dos que permanecem vivos e respeitar o término da passagem dos mortos muçulmanos.
Além do que foi discutido, Maranhão (2017) entende a morte como um fato natural,
quase sempre tratado como algo pesado, que deve ser amenizado. Dessa forma, outra intenção
foi a de levantar a discussão sobre a riqueza possibilitada pela pesquisa sobre o significado
simbólico e mágico da tradição islâmica, sobretudo no ritual fúnebre de seus mortos. Sobre
magia Mauss (2003) diz que sua definição não está nos ritos que realiza, mas nas definições
sociais em que se insere e no lugar que ocupa no conjunto dos hábitos sociais. O ritual
fúnebre para o Islã é privado, de natureza íntima, reservado, contempla o misterioso, o
sobrenatural, mas também é carregado de simbolismo e significado, contribuindo como uma
importante instituição social na manutenção do controle e hábitos da sociedade por meio da
binaridade bem/mal, céu/inferno, tolerável/intolerável, sagrado/profano, entre outros.

Palavras-chaves: Islã. Ritual fúnebre no Islã. Pandemia do Covid-19.

438
REFERÊNCIAS

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MARQUES, V. L. M. Sobre práticas religiosas e culturas islâmicas no Brasil e em
Portugal: notas e observações de viagem. 2009. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2009.
PIZZANI, L. et al. A arte da pesquisa bibliográfica na busca do conhecimento. RDBCI:
Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, v. 10, n. 2, p. 53-66, 2012.
TURNER, V. W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução de Nancy Campi de
Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.

439
GT 7 - PERSPECTIVAS FÚNEBRES:
MORTE, NECRÓPOLES E RITOS
SESSÃO 2 - PROCESSOS RITUALÍSTICOS E SUAS PARTICULARIDADES

RITUAIS RELIGIOSOS FAMILIARES E HISTÓRIAS DE VIDA


EM CENÁRIO PANDÊMICO

Maria Roseli Sousa Santos228


Thayanara de Souza Duarte229
Fernando Adlly Kauffmann Negrão230

Os ritos religiosos familiares estudados nesta pesquisa são compreendidos como


aqueles ritos celebrados no coletivo e marcadores de um tempo praticado coletivamente no
núcleo familiar e comunidade religiosa de pertencimento e comportam uma simbologia que
corporificam as tradições Autores como Eliade, 2010; 2018, Jung (1972), da mesma forma
Von Franz (1981) afirmam os ritos como passagens, como transição da infância para a vida
adulta, nascimento, casamento, ou mesmo, ritos que configuram a apresentação da pessoa a
sua comunidade como nos rituais religiosos que são vividos de variadas formas e dão
fortalecimento ao tecido cultural que é partilhado entre os membros da cultura às gerações
através de contos e mitos.
Os ritos de passagem, acompanham toda a mudança de lugar, estado, posição social,
de idade. Gennep (2011) enfatiza que o rito concede autoridade e legitimidade para organizar
a posição, o valor e as visões de mundo do sujeito.
O estudo envolveu segmentos religiosos da linha de religiões Ayahuasqueiras, outra
do candomblé e ainda, da Wicca, que é um segmento do paganismo contemporâneo e
conhecida como religião da Deusa. Foram nove praticantes ao todos e, todos eles possuem
em seio familiar consanguínea uma representação da diversidade religiosa. Porém, os ritos
familiares que são foco deste estudo ocorrem nem sempre somente com os pares
consanguíneos, mas também com o núcleo da comunidade religiosa e suas formas de
organização (DURKHEIN, 2003).
As religiões da linha ayahuasqueira, se conectam à natureza e procuram guiar os seus
adeptos no caminho do autoconhecimento através da beberagem de um chá psicoativo.

228
Doutora em Educação, Universidade do Estado do Pará, mroselisousa@uepa.br
229
Graduando em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará, thaynara.dsduarte@aluno.uepa.br
230
Graduando em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará, fernandokauffmannnegrao@gmail.com
440
Ayahuasca é o nome dado ao chá utilizada nos ritos da religião, podendo tal palavra ser
traduzida como “cipó dos espíritos" (ALBUQUERQUE, 2010), é feito a partir da infusão de
duas plantas amazônicas sendo ela cipó-jagube e o arbusto-chacrona (também chamada de
folha da rainha). Já o Candomblé, vem de um período anterior ao aparecimento das religiões
do vegetal estudadas nesta pesquisa, é uma religião afro-brasileira, trazidas ao Brasil por
populações negras escravizadas vindas de países da África Ocidental, como Nigéria, Benin e
Togo. É uma religião em que se pratica o culto de divindades chamadas orixás, com
referência, ao século XIX e formado a partir de tradições religiosas africanas de povos iorubás
(PRANDI,2001). E as relações que estabelecem com a natureza se dá na cosmovisão que
centra os elementos naturais em seus rituais e nos cultos e suas relações direta com os Orixás.
Diferente dos dois primeiros campos religiosos, a outra vertente religiosa deste estudo é a
Wicca que é uma religião neopagã e estabelece uma ligação continua com as culturas indo-
europeias. Em ritos centrados na Deusa é associada à terra, às águas e à lua, e no Deus
associado ao sol, ao céu, aos animais e à vegetação que representam os princípios opostos,
mas complementares” (OSÓRIO, 2011). A Wicca é uma religião sacerdotal, mistérica e de
culto a Deusa Tríplice, que nasceu na Inglaterra em 1952, com Gerald Gardner, quando este
publicou seu livro “Witchcraft Today”, período da revogação da última lei da inquisição e que
a bruxaria deixava de ser crime. E foi adentrando vários países, inclusive o Brasil que hoje se
encontra consolidado a considerar que já existe há mais de 20 anos (BEZERRA, 2019). É uma
religião com ligação total à natureza através de seus ciclos sazonais e que remetem aos ciclos
biológicos de nascimento, vida e morte e renascimento e que estão diretamente ligados aos
mistérios wiccanianos.
Os objetivos consistiram em, em sentido geral, mapear as novas formas de viver os
ritos de passagem de três segmentos de tradições religiosas centradas no culto a natureza,
diante da pandemia covid 19. E propôs-se realizar estudos teóricos sobre o tema em banco de
dados da UEPA, bibliotecas de periódicos virtuais e instituições acadêmicas na área de
Ciências da Religião e afins; coletar relatos orais de história de vida temática de forma online
vida através das plataformas de videoconferência ou serviço de comunicação por vídeo e
cartografar os relatos, assim como, analisar os conteúdo dos relatos identificando as unidades
de sentidos (BARDIN, 2011; BAUER&GASKELL,2004) que remetem as mudanças e
adequações dos rituais religiosos familiares, seus consensos e dissensos. Por orientação de
441
uma das praticantes, reorientamos a referência à religião Daime (que inicialmente foi
indicada) para “religiões de linha ayahuasqueira” para nos referir às práticas desse segmento,
posto que das três entrevistadas apenas uma é efetivamente Daime e as duas possuem em suas
vertentes a unificação Daime/União do Vegetal.
A abordagem foi realizada através de contato junto ao Comitê Inter religioso do
Estado do Pará; por redes sociais/ plataformas e chamadas em vídeo, assim como as coletas
dos relatos. Todos foram acessíveis a contribuir e autorizaram o uso do material produzido.
Foram realizadas reuniões com pesquisadores remotamente através de videochamada, no
último ano, presencialmente. Elaboração dos quadros/ cartografia dos ritos de passagens
presente nas narrativas e análise dos relatos com identificação dos resultados que foram
sistematizados e socializados em eventos científicos foram realizadas online.
Dos resultados e discussões, destacamos que são praticantes (professores, atrizes,
contador, artesã) que vivenciam a religião entre cinco a dez anos. Todos eles possuem em seio
familiar consanguínea uma diversidade religiosa. Porém, os ritos familiares, foco deste estudo
e que ocorrem nem sempre com os pares consanguíneos, mas também com o núcleo da
comunidade religiosa que, igualmente, são nomeados por estes de “família”. As entrevistadas
da Religião da linha Ayahuasqueiras, foram três mulheres, uma do segmento do Daime
especificamente, outra do Centro de Unificação Rosa Azul-CURA (que é a unificação do
Daime e União do Vegetal) e uma terceira que une Daime, Umbanda e outras espiritualidades.
Foi possível observar a semelhança entre as histórias das entrevistadas de vertentes diferentes
de uma mesma doutrina e a conexão com a Ayahuasca. As entrevistadas demonstraram sentir
a natureza como chamado para sagrado e se encontraram no Santo Daime após passar por
alguns momentos difíceis em suas respectivas vidas. Relataram que já haviam frequentado
diversas outras religiões de diversas outras vertentes (seja do cristianismo ou não; tais como
Wicca, Umbanda e etc) que aos poucos delinearam suas opiniões e influenciaram suas vidas.
A entrevistada 1 - (PP) teve uma infância afastada da mãe, porém posteriormente recebeu o
“chamado” do Santo Daime e hoje em dia a planta uniu novamente as duas – mãe e filha; por
outro lado, a entrevistada 2- (YG) e entrevistada 3 – (PG) são irmãs que seguem vertentes
distintas, PG – frequenta o CURA, e PG é Daimista. Além das duas, uma terceira irmã
também foi “fardada no Santo Daime”. A maioria dos ritos familiares de passagens praticado
no segmento da religião de linha ayahuasqueiras são mencionados pelas entrevistas como
442
fundada em práticas cristãs, como os batismos e casamentos que ocorrem ao final das sessões.
E durante o período pandêmico indicam adaptar as dinâmicas coletivas onde a maioria das
práticas restringiram-se ao núcleo familiar e vividos nas casas. Alguns deles que eram
fardados receberam a permissão de consumir o chá em suas respectivas casas, porém os
outros tiveram que seguir os ensinamentos sem a abertura do chá.
No candomblé, o estudo alcançou uma praticante do Tambor de Mina, outro da Nação
Jeje Savalu, Povo Fon e outro de raiz Ketu que é dofono de Obaluaê, mencionam que
sofreram mudanças significativas em suas dinâmicas durante a pandemia, mantiveram apenas
atividades sem os festejos. O bàbá Egbé da Casa de Axé mora junto a sua Ialorixá e sua “mãe
pequena”, os rituais ficaram circunscritos, presencialmente, a eles três, com a presença
pontual de mais duas “filhas de santo”. No Tambor de Mina – CN – enfatiza que nos pós
pandemia foram voltando aos poucos, respeitando as regras carteira de vacina e a máscara.
Que enfrentaram comportamentos de entidade que não gostam de usar máscara.
Entre os ritos familiares destacou-se um batismo de uma criança e um rito fúnebre,
destacando que: o rito fúnebre – é a cerimônia chamada Axexê que é a cerimônia que vai
preparar a casa né? Vai levantar o os fundamentos, vai levantar todos aqueles fundamentos
que serviam aquele Pai de Santo. Aquele Babalorixá e tudo vai ser despachado, porque o
Candomblé ele é uma religião onde a gente contempla a natureza, [...] então tudo que é feita
no candomblé tudo que a gente traz da natureza pra nossa vida, é entregue de novo para a
natureza. [...] (MG). Outro rito é o batismo da criança que é preparado com banho e
defumação com cânticos e tem um padrinho e madrinha que pode ser alguém da casa ou
entidade. O rito pode ser feito no igarapé ou uma praia. E na pandemia houve restrição de
ritos e declinando até para a manutenção do terreiro porque alguns pais e mães vivem de
valores que arrecadam dos ritos e na pandemia tiveram que vender algumas coisas para poder
continuar mantendo aquilo ali. viveram questões de perdas, o apoio e o acolhimento.
Para sacerdotisas e sacerdote da Wicca (Religião da Deusa), no período de pandemia
as atividades se mantiveram online, assim como alguns praticantes da religião
Ayahuasqueiras presente neste estudo. Os três praticantes wiccanianos foram: uma
sacerdotisa e sacerdote do Coven Pássaros de Cy, da Tradição Diânica do Brasil-TDB e uma
sacerdotisa do Coven Filhos de Freya. As práticas rituais dos wiccanianas, diferente das
práticas cristãs, seguem outros parâmetros ritualísticos e identificamos que, entre os ritos de
443
passagens vividos por estes segmentos encontram-se: ritual de apresentação da criança aos
deuses, chamado por eles de wiccaning; o ritual da menarca (meninas) e o ritual de Apolo
(meninos); os ritos de reconsagração do ventre e do falo; o handfasting (casamento) e entre
outros, o ritual fúnebre, que é o Réquiem. Durante a pandemia, uma das praticantes ao
participar de uma morte de um ente querido, demonstra o sentido de perda, separação e dor.
Além dos ritos familiares mencionados, não se exclui os ritos de cura, proteção.
Os resultados indicam que os entrevistados, em sua maioria, vêm de famílias cuja
tradição religiosa está centrada no cristianismo católico, sejam os avós, pais ou outros
familiares na linha colateral, como primos, que desde cedo as levavam para igrejas, missas ou
até mesmo as colocavam em colégios confessionais (católicos). Os ritos familiares vividos por
eles, no período pandêmico (2020-2021) remetem a: ritos de passagem de apresentação da
criança aos deuses e nomeação (wicca); rito fúnebre (candomblé), rito da beberagem
(Ayahuasqueiras) e rito de Dedicação/iniciação religiosa (wicca), todos sofreram adaptações
em suas estruturas e engajamento de suas comunidades pois foram vividos com restrição da
coletividade e alternados entre presencial com núcleo de celebrantes e/ou de forma remota
ampliando a inserção com o coletivo. Os ritos fúnebres “de separação” (preliminares) que,
para Fiamenghi (2002), são ritos de libertação; expressam o desprendimento de emoções
dolorosas e auxiliam o senso de proximidade e compartilhar e o rito de apresentação da
criança aos Deuses foram de maior impacto nos relatos. Cada grupo especifico constrói sua
significação (SANTOS, 2011) e são ritos que evidenciam fases de separação e de
incorporação à sociabilidade, sendo que entre estas há um período liminar, marginal ou
fronteiriço. Eles rompem a ideia de aspectos universais e indica a relação direcionada ao
coletivo (GENNEP, 2011).
Por fim, o surto da pandemia durante o período 2020-2021 (no qual tiveram as
primeiras ondas da doença) isolou grande parte da população brasileira e matou também boa
parte, logo feitas as medidas preventivas para se evitar a proliferação ainda mais do
COVID19, e uma dessas medidas foi o isolamento (quarentena) o que acabou por deixar boa
parte dos cidadãos sem nenhum contato com o exterior e outras pessoas que não fossem as
que morassem com os mesmos. Nas análises dos conteúdos identificamos categorias
unificadoras dos ritos familiares que consistiram em: sociabilidade/espiritualidade;
ancestralidade/sagrado; partilhas/fortalecimento do legado religioso. Os ritos de passagens
444
mapeados indicam que houve alterações na dimensão de sociabilidade das celebrações,
restringindo a convivência e impondo a adaptação de estruturas e formas de realização do
ritual com mínimo de celebração presencial que, ainda assim, eram restritas a um núcleo
religioso.

Palavras-Chaves: Religião. Pandemia. Ritos.

REFERÊNCIAS

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BEZERRA, Karina. Wicca no Brasil. Magia, adesão e permanencia. Editora Fonte, 2019

BAUER&GASKELL, Análise de conteúdo. In: Bauer M. Gastel G. Pesquisa qualitativa


com texto, imagem e som: um manual prático. 4S Petrópolis (RJ): Vozes: 2004.

DURKHEIN. Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume I: da Idade da Pedra
aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: As essências das religiões. 4 ª. Ed. São Paulo.
WMF Martins Fontes. 2018.

FIAMENGHI, Geraldo A. Rituais familiares: alternativas para a re-união das


famílias. Psicol. teor. prat. [online]. 2002, vol.4, n.2 [citado 2021-10-06], pp. 25-29.

GENNEP, A. V. Os ritos de passagem.2. ed., Trad.Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes,


2011

JUNG, C. G. (1986). O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1972.

VON FRANZ, M. L. (1990). A interpretação dos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 1981.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

TURNER, Víctor W. Liminaridade e "Commúnitas". In: TURNER, Víctor W. O Processo


Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro. Petrólopis: Vozes,
1974.

445
SANTOS, M. R. S. Oralidade, performance e representações sociais – Catolicismo popular
e neopaganismo In: Como estudar as religiões: metodologias e estratégias / Emerson Sena da
Silveira, (organizador). – Petrópolis, RJ: Vozes, 2018

446
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA
CONTEMPORANEIDADE: DESAFIOS, LIMITES E
PERSPECTIVAS

COORDENADORAS:

Alessandra Viviane Vasconcelos Bezerra (UFPA)

Andréa Silva Melo (UFPA)

Bianca Mycaella dos Santos Tsubaki (UFPA)

Drª. Daniela Ribeiro de Oliveira (UFPA)

Larissa Ribeiro Wanzeller (UFPA)

Drª. Luísa Maria Silva Dantas (UFPA)

Mayara Feitosa Teodoro (UFPA)

447
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 8

APRESENTAÇÃO

Alessandra Viviane Vasconcelos Bezerra231


Andréa Silva Melo232
Bianca Mycaella dos Santos Tsubaki233
Daniela Ribeiro de Oliveira234
Larissa Ribeiro Wanzeller235
Luísa Maria Silva Dantas236
Mayara FeitosaTeodoro237

O Grupo de Trabalho 8 “As transformações do trabalho na contemporaneidade:


desafios, limites e perspectivas”, foi coordenado por um grupo de mulheres, docentes e
discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, da
Universidade Federal do Pará – UFPA, se configurando em uma ótima oportunidade de
ensino-aprendizagem, em que as estudantes tiveram chance de aprender como selecionar
trabalhos e organizar a dinâmica de um GT e as professoras foram gratificadas pelas
contribuições e partilha de atribuições com as alunas/orientandas, portanto gostaríamos de
agradecer às organizadoras e organizadores do I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais
pelo fomento da experiência, assim como, a todos os participantes do evento.
O trabalho na contemporaneidade está sendo interpelado por profundas
transformações cujos efeitos atingem suas formas de controle, gestão e organização. O
objetivo deste GT foi discutir trabalhos que investigassem processos, arranjos, práticas,
relações e condições de trabalho frente às mudanças econômicas, sociais, políticas,
sanitárias e tecnológicas da contemporaneidade. O GT buscou contemplar diferentes temas
e/ou dimensões do trabalho cujas análises recaíssem sobre: a relação entre trabalhos e
desigualdades sociodemográficas e interseccionalidades, trabalhos digitais, plataformização
no trabalho, trabalho e ação coletiva, reforma trabalhista e seus efeitos, discursos
empreendedores e subjetividades neoliberais, nova informalidade, trabalho do care, serviços

231
Mestranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, vivijnjv@gmail.com
232
Mestranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, andrea.silva.melo30@gmail.com
233
Mestranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, tsubakibianca@gmail.com
234
Doutora em Sociologia. Docente na Universidade Federal do Pará. E-mail: danicso02@gmail.com
235
Mestra em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, larissa.r.wanzeller@gmail.com
236
Doutora em Antropologia Social. Docente na Universidade Federal do Pará. E-mail: luisadantas1@gmail.com
237
Mestranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, mftems@gmail.com
448
domésticos e análises sobre as dinâmicas do trabalho no contexto da pandemia da COVID-
19; com prioridade para trabalhos que já tivessem dados de pesquisa empírica.
O GT selecionou treze (13) trabalhos de pesquisadoras e pesquisadores de diferentes
instituições e níveis de formação, que foram organizados em três (3) sessões, durante os dias
20 a 22 de setembro de 2022. Para estes anais nos foram enviados para publicação 11 textos.
Após a finalização das apresentações a equipe coordenadora se reuniu e votou pelo trabalho
da graduanda em Ciências Sociais – FACS/UFPA, Rebeca Costa, para receber a menção
honrosa, com o título: Riscos Essenciais: Uma pesquisa etnográfica com trabalhadoras
domésticas em Belém/PA. O trabalho é resultado de dois (2) anos de pesquisa enquanto
Bolsista de Iniciação Científica – PIBIC (2020-2022) e concentrou-se nos impactos da
Pandemia da Covid-19 em uma rede de trabalhadoras domésticas, em sua maioria diaristas
que, além de não possuírem direitos trabalhistas garantidos por Lei, foram ainda mais
expostas ao vírus devido a necessidade de continuarem trabalhando no período pandêmico
e/ou ficarem desempregadas e doentes. A autora trabalhou com as categorias analíticas de
trajetórias sociais (Bourdieu, 1974) e narrativas biográficas (Ricoeur, 1994; Eckert e Rocha,
2005), além de services à la personne – SAPs (Devetter, Jany-Catrice, Ribault, 2009).
A precarização das relações de Trabalho: sequelas de uma pandemia e do falho
sistema neoliberal, texto de Gabriel da Cunha Melo e Thabata de Farias Silva discute os
efeitos provocados pela crise sanitária da Covid-19, iniciada em dezembro de 2019, e que no
Brasil eclodiu em março de 2020 com medidas de distanciamento social adotadas pelo
governo federal. O autor e a autora percorrem uma série de fatos e dados de pesquisas que
reforçam o argumento de que no Brasil a Pandemia intensificou as desigualdades sociais –
que há muito tempo são denunciadas por movimentos sociais, pesquisadoras e
pesquisadores, jornalistas, políticos progressistas, entre outros. Mobilizam a teoria de
Achille Mbembe (2018) da necropolítica apontando como o Brasil, durante todo o processo
da crise sanitária, criou políticas e difundiu discursos de negação à emergência sanitária
mundial, resultando em elevados índices de mortes acometidos principalmente sobre a
população negra. As políticas e teorias neoliberais estão articuladas ou subjacentes a tais
ações do Estado - compreendem o autor e a autora - na medida em que a razão
empreendedora (Laval; Dardot, 2016), há mais de 30 anos formata subjetividades para o
trabalho, cujo desejo manifesto é o da liberdade e autonomia. Tais efeitos colocam
449
trabalhadores informais em condições exacerbadas de pobreza e miséria, sem ação imediata
do governo.
O trabalho apresentado com o título: Precarização da Educação e Uberização do
Trabalho Docente no Contexto da Pandemia da COVID 19, tem como análise o trabalho
docente a partir de medidas tomadas pelo Estado da Bahia em escolas do ensino médio da
rede pública, no período pandêmico. As pesquisadoras Franciele Brito Barbosa, mestranda e
a docente Elis Cristina Fiamiegue, ambas da universidade Estadual de Santa Cruz-UESC,
debatem as consequências da plataformização no ensino público, que não somente trouxe
novas questões, como intensificou a precarização do mesmo, que está há anos sendo
sucateado pelo Estado. A pesquisa denuncia as novas formas de contratação de professores
da rede pública, que com contratos diferenciados não podem atuar em sindicatos e as
estratégias do setor privado no ensino público que viu oportunidade na pandemia para
intensificar a flexibilização das relações com professores e alunos.
A pesquisa de Israel Aparecido Gonçalves, doutorando em sociologia na UFSC,
propõe entender a relação dos efeitos da pandemia da COVID19 nas transformações das
estruturas do setor editorial (escritores, editoras, gráficas e livrarias) na cidade de
Joinville/SC. O resultado foi a constatação do aumento do faturamento em 29%, de 2020
para 2021; as novas estratégias de mercado ampliaram o alcance não só de clientes, como
também de capitalização de bens simbólicos, isto é, o número expressivo de clientes-
escritores que pagaram para a editora publicar suas obras e distribuí-las gratuitamente, sem
ter o lucro como objetivo. A hipótese de Israel é que a busca pelo lucro das empresas
editoriais ampliou seu foco na captação de clientes (leitores e escritores) devido várias
empresas terem suspendido atividades antes realizadas em espaços físicos para a estrutura
online, processo denominado por Grohmann (2020) como plataformização do trabalho.
O trabalho intitulado Forças produtivas e suas transformações: o fenômeno da
“uberização”, apresentado por Andréa Bittencourt, Lucas Lobato e Artur Santos, discutem a
indústria 4.0 no Brasil. A pesquisa crítica e discuti as caracterizações da “Uberização”
(SLEE, 2017). Tendo como base as teorias de análise das categorias Forças Produtivas e
Trabalho e fontes documentais retiradas do marco legal da reforma trabalhista no Brasil. O
estudo busca entender o papel do capitalismo na sua busca de elaborar estratégias
tecnológicas destinadas ao controle e exploração do trabalho.
450
O texto “O silício no país das maravilhas e o impacto do capitalismo digital na
precarização do trabalho contemporâneo”, pesquisa de Gustavo Silva e Mateus de Barros
(graduação em Ciências Sociais - Universidade Federal de Pernambuco), chama atenção
para a ilusão de que a internet e as demais tecnologias digitais poderiam proporcionar um
mundo melhor, que levaria ao fortalecimento das democracias com ampla participação
cidadã, à superação das desigualdades sociais e do capitalismo. Argumentam que há
necessidade urgente de confrontar o modus operandi e as configurações da precarização do
trabalho contemporâneas do capitalismo digital e pensar alternativas para minimizar a
exploração das relações trabalhistas e humanas.
"A Covid chegou pela cozinheira": Os discursos racistas sobre o trabalho doméstico
no contexto da pandemia de coronavírus, trabalho da pós-graduanda em Relações
Etnicorraciais (IFPA), Verena Reis, e da doutoranda em História Social da Amazônia
(UFPA), Kelly Tavares, refletem sobre a linguagem na produção de “verdades” (Foucault
apud Silva, 2019) que subjazem “discursos de ódio” (Butler, 2021). O trecho destacado no
título, foi uma fala proferida por Daniel Cady (2021), marido da cantora baiana Ivete
Sangalo, em que ele acusa a cozinheira enquanto vetor da chegada da Covid-19 em sua casa,
de forma bastante naturalizada, evidenciando o preconceito interseccional em sua fala, posto
que envolve uma mulher pobre, negra e trabalhadora doméstica. Para além dos discursos
racistas cotidianos, as autoras chamam atenção para a maior letalidade da doença entre
negros, evidenciando que em junho de 2020 o Estado do Pará chegou a liderar o número de
mortes de quilombolas e, portanto, o racismo na política de Estado.
“As metamorfoses do trabalho do pedagogo: a partir da resolução CNE/CP n.
2/2019”, pesquisa de Kethlen Moura e Camila Bortot analisa documentos que define as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação
Básica, e que revela a aproximação entre poder público e organizações privadas. O estudo,
ainda em curso, revela “elementos-chave” associados a um conjunto de características
demandadas do sujeito trabalhador/a no contexto da sociedade flexível, a saber:
engajamento emocional, equidade, valores, atitudes, valor social à escola, protagonismo,
metodologia inovadora, flexibilização curricular, itinerários formativos, projeto de vida e
resolução de problemas cotidiano. As autoras problematizam com maior preocupação a

451
categoria Projeto de Vida, ideologia que carrega em si o valor neoliberal de individuação
dos sujeitos.
As estudantes de graduação em Ciências Sociais da UFPA, Raiane Roberta
Cavalcante Pereira e Tayane da Silva Launé, e a docente da FACS/UFPA Nelissa Peralta
Bezerra, apresentaram um estudo sociológico sobre os impactos causados aos trabalhadores
de Belém, decorrentes da medida extrema de isolamento social (“lockdown”) frente à
pandemia da Covid-19 no período entre 2020 e 2021. A pesquisa, oriunda de uma
amostragem não aleatória por conveniência e obtida por meio de questionário do formulário
Google, contou com 48 trabalhadores, sendo 24 formais e 24 informais, os quais
evidenciaram as dificuldades enfrentadas na jornada de trabalho, como a diminuição do
rendimento salarial e os gastos no mercado, principalmente para os que vivem na
informalidade, mas também afetando os trabalhadores formais, demonstrando que apesar da
medida emergencial ser eficaz para a saúde pública (DE SOUZA, 2020) revelou danos no
setor comercial para os trabalhadores.
Aldo Ribeiro nos brinda com dados de sua pesquisa de mestrado realizado na UFPI
(2018) e intitulada “Educação profissional, empreendedorismo e mercado de trabalho”. O
estudo focou os egressos dos cursos técnicos de administração e vestuário, que concluíram
no Instituto Federal do Piauí/Campus Piripiri, entre o período de 2011 e 2014. O autor
destacou a busca pelo “empreendedorismo como redenção para a crise do emprego”
enquanto impacto no mundo do trabalho do momento atual do capitalismo, de “acumulação
flexível” (Harvey, 2007), posto que a maioria dos egressos recorreu ao negócio próprio, na
lógica da terceirização e subcontratação de “colaboradores”, com a falsa sensação de
integração ao sistema social.
O trabalho “Mundo do trabalho e pandemia: notas sobre uma nova temporalidade
histórica e a necessidade de sobrevivência imediata” desenvolvido pela doutoranda Ethiene
Santos do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
analisa as estratégias de sobrevivência imediatas em um cenário neoliberal de “vida ou
morte”. Observando e acompanhando trabalhadores/as do Complexo do Mercado de São
Brás em Belém-Pará, entre setembro de 2020 a janeiro de 2021, a pesquisadora destaca que
a pandemia impactou o cotidiano dos/as feirantes, com a impossibilidade de executarem
seus trabalhos presencialmente, a perda familiar, o acúmulo de dívidas e o surgimento de
452
novas formas de formas de trabalho (home-office, empreendedorismo e uberização).
Portanto, assumir novas formas de trabalho precarizado é parte dessa estratégia de
sobrevivência imediata, em que a busca pela sobrevivência também é incerteza da vida.
O grupo de estudos que compôs este GT abordou perspectivas macro e
microestruturais para refletir sobre o mundo do trabalho envolto ao neoliberalismo atual e
impactado pela pandemia da Covid-19. A flexibilização do trabalho pode ser facilmente
identificada pelas práticas de home office e pela plataformização e/ou uberização, que
produzem novas formas de contrato e que remetem a cenários de suposta maior liberdade,
limitada pelas próprias condições precárias de trabalho; no caso das pesquisas de nosso
grupo, atingindo desde educadores e editoras, até currículos de formação profissional que
incentivam a construção de subjetividades empreendedoras. A pandemia acelerou e deu
maior visibilidade aos efeitos diferenciados das crises, que tendem a impactar mais
fortemente a classe trabalhadora, preta e pobre que, além de morrer mais, ainda é vista como
ameaça e/ou vetor de doença e contaminação, como no caso das trabalhadoras domésticas.
Com essa diversidade de sujeitos e contextos, em pesquisas de caráter sociológicos e
antropológicos, esperamos contribuir para a compreensão da paisagem perigosa em que
estamos imersos.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2015.
BOURDIEU, Pierre; MICELI, Sergio. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
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SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política;
Living Commons, 2019.

454
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

TRABALHO HOMENAGEADO COM MENÇÃO HONROSA

RISCOS ESSENCIAIS: UMA PESQUISA ETNOGRÁFICA COM


TRABALHADORAS DOMÉSTICAS EM BELÉM/PA

Rebeca Vitória Alberto Costa238

Com a crise sanitária, econômica, política e social instaurada com o surgimento da


pandemia de Covid-19, reconhecida pela Organização das Nações Unidas – ONU, em março
de 2020, inúmeras mudanças foram observadas no âmbito do trabalho; esta pesquisa irá se
concentrar em trabalhos historicamente desvalorizados e precarizados. Desde o início da
pandemia, trabalhadoras domésticas vivenciaram/vivenciam inúmeras particularidades, entre
elas, podemos citar dados da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas -
FENATRAD que evidenciam que trabalhadoras domésticas perderam cerca de 11,8% de seus
postos de emprego. Essa pesquisa, fruto da pesquisa de Iniciação Científica (PIBIC/UFPA)
iniciada em 2020 da autora, buscou refletir sobre mudanças ocorridas no cotidiano de
trabalhadoras domésticas residentes da região metropolitana de Belém, a partir de uma
abordagem antropológica, observando contextos de vulnerabilidades e as formas com que
trabalhadoras domésticas construíram alternativas em meio ao contexto atípico.
Este trabalho é uma reflexão a respeito do trabalho doméstico remunerado a partir da
análise de trajetórias sociais (Pierre Bourdieu, 1974) de trabalhadoras domésticas residentes
da Região Metropolitana de Belém/PA, apresentando resultados de uma pesquisa realizada
em um momento atípico, que foi responsável por inúmeras mudanças no cotidiano de todos.
Também aprendi e dialoguei com pesquisas descobertas por meio da revisão bibliográfica.
Atentou-se para as trajetórias sociais e para os marcadores geracionais para identificarmos o
modo como a pandemia da Covid-19, doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, afetou as
relações de trabalho das interlocutoras, impactos sentidos em seus cotidianos e mecanismos
de enfrentamento durante a pandemia. O trabalho doméstico é historicamente e
majoritariamente exercido por mulheres negras, com baixos índices de escolaridade e
oriundas das classes mais baixas; este perfil reflete questões estruturais de formação da
sociedade brasileira, pelo menos desde o período escravocrata. Com o pós-abolição esse
trabalho passou a ser “remunerado”, mas continuou sendo fortemente composto por mulheres

238
Graduanda do curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Email: rebcostav@gmail.com.
455
negras e/ou ex-escravizadas (Sanches, 1998; Dantas, 2016). O trabalho doméstico pode ser
considerado um campo de luta ao combate ao racismo e ao sexismo, também no que se refere
à valorização da atividade e garantia de direitos trabalhistas; somente em 2012 houve uma
tentativa de equiparação de direitos aos demais trabalhadores urbanos, com a Proposta de
Emenda Constitucional 66, conhecida como a “PEC das Domésticas”, seguida pela Emenda
Constitucional 72/2013, até a Lei Complementar 150/2015.
No contexto global conturbado por uma pandemia que afetou diretamente todas as
categorias de trabalho, as trabalhadoras domésticas vivenciaram grandes impactos. Em
Belém/PA tivemos o Decreto n° 729 (5 de maio de 2020), responsável por decretar um
período de lockdown na cidade, ou seja, a proibição de atividades consideradas não essenciais
na capital e em alguns outros municípios do Estado do Pará nos primeiros meses pandêmicos,
este decreto classificou os serviços domésticos - SD como atividade essencial. Tal fato
escancarou a desumanização que as trabalhadoras domésticas são cotidianamente expostas,
pois para estas, não foi possível cumprir o isolamento recomendado pela Organização
Mundial de Saúde - OMS, para a prevenção do contágio da doença. A pesquisa de campo vem
sendo realizada desde 2020 e por se tratar de um estudo iniciado durante o primeiro ano de
pandemia (2020) e que se estendeu até o atual momento (2022), comumente denominado de
“novo normal” ou “pós-pandemia”, foi possível observar as mudanças ocorridas durante cada
fase da pandemia. Nossas interlocutoras são mulheres que foram acionadas a partir de uma
rede social que foi construída durante os dois anos do projeto de pesquisa denominado O
trabalho doméstico remunerado e/ou realizado na casa de terceiros - transformações,
continuidades e desafios, a qual este plano de trabalho está vinculado.
Como metodologia foi utilizada a etnografia, a qual prioriza a abordagem do
referencial teórico e a pesquisa de campo; para tal, foi realizada a produção de dados de
maneira qualitativa, para análise das narrativas biográficas (Ricoeur, 1994; Eckert e Rocha,
2005) das interlocutoras, com entrevistas, à princípio feitas a partir de um roteiro
semiestruturado, mas ao final da pesquisa foram feitas trocas de mensagens rápidas e
informais por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp, com o objetivo de tornar o contato
mais íntimo com as interlocutoras, pois os encontros presenciais se tornaram mais
dificultosos, devido ao tempo das trabalhadoras ser muito curto. Tendo como caminho as
narrativas biográficas das entrevistadas, analizou-se de modo mais denso seus relatos e
456
contribuições para a pesquisa, observando e dando maior ênfase aos principais pontos por elas
abordados. As interlocutoras desta pesquisa são quatro mulheres residentes da Região
Metropolitana de Belém, pertencentes a uma mesma rede social, visto que pertencem ao
mesmo núcleo familiar, sendo importante ressaltar que também faço parte. Apesar de ao
serem questionadas se poderiam ter seus nomes divulgados, todas dizerem que sim, optou-se
por apresentá-las com nomes fictícios, para garantir a ética na pesquisa. Raissa e Carolina,
nossas duas primeiras interlocutoras são irmãs e desde muito novas tiveram suas vidas
atravessadas pelo serviço doméstico, pois sua mãe lavava roupa pra fora – trabalhava
lavando roupas de terceiros -, como relatado por Raissa logo nas primeiras entrevistas. Nossas
duas outras interlocutoras são Flávia e Samanta. Todas possuem vidas diferentes, mas
semelhantes em alguns aspectos, sendo o trabalho doméstico um deles. Para compreender as
diversas nuances que envolvem o trabalho doméstico remunerado no Brasil e no mundo,
precisamos nos debruçar sobre alguns conceitos. Dessa forma,demos ênfase à categoria
denominada Les services à la personne - SAP, estudada pelo sociólogo e economista do
trabalho, François-Xavier Devetter, que ao longo dos anos vêm estudando sobre as
implicações dos serviços domésticos e de cuidados na França. Este conceito analítico versa
sobre uma categoria híbrida e politicamente forjada criada nos anos 2000, de modo a
responder aos altos indicies de desemprego. Desse modo, os serviços categorizados como
services à la personne são predominantemente realizados por mulheres imigrantes. Dessa
forma, essa categoria pode ser considerada semelhante à realidade brasileira, pois há uma
enorme precarização e são classificados como não qualificadas (Dantas, 2016). Nessa
categoria praticada no contexto francês, existem atividades realizadas dentro ou fora do
domicílio das próprias trabalhadoras. Devetter classifica os SAPs em serviços de conforto,
aqueles que poderiam ser feitos pelos próprios demandantes, mas optam por terceirizar; e os
serviços de utilidade social, que não podem ser realizados pelos demandantes, por exemplo,
por pessoas com deficiência - PCDs, idosos e crianças. No contexto brasileiro os serviços
domésticos e de cuidados, que poderiam também ser associados e/ou classificados em
serviços de conforto e utilidade social, percebemos diferenças entre as práticas de
trabalhadoras mensalistas e diaristas; se antes já era possível observar uma grande distância
em termos de garantias trabalhistas, durante o contexto de pandemia, isso se tornou mais

457
evidente, uma vez que as trabalhadoras diaristas, que em sua maioria não possuem carteira
assinada.
A Lei Complementar nº 150/2015, somente garantiu direitos trabalhistas aos
profissionais que atuam por mais de dois dias semanais no mesmo domicílio. Deste modo, as
diaristas que oferecem seus trabalhos durante um ou dois dias na semana não possuem
nenhum vínculo empregatício com seus patrões e não tiveram amparo em termos econômicos
durante a pandemia, pois se decidissem cumprir o isolamento social, ficariam sem receber.
Com isso, muitas continuaram a trabalhar, impulsionadas por questões financeiras, expostas
ao vírus, correndo grandes riscos de vida, pela necessidade de se manter. Esse foi o caso de
Raissa, que em determinado momento da pandemia se viu dependente financeiramente do
auxílio oferecido pelo Governo Federal, pois foi dispensada de suas diárias. Mesmo
trabalhando na mesma casa, Raissa e Carolina experimentaram os impactos da pandemia de
maneiras diferentes, justamente devido as suas formas de contratação. Mesmo com a carteira
assinada, Carolina foi dispensada sem aviso prévio por seus empregadores, o que suscitou em
seu adoecimento psicológico e insegurança financeira como relatado por ela:

[...] mandaram eu vim pra casa e ficar esperando, aí quando eu liguei de novo pra
saber como era, aí foi que disseram que não iam querer mais, aí, sabe, eu pirei.
Entrei em depressão. Porque é assim, desde 12 anos que eu trabalho na casa dos
outros, aí dependia de mim mesma, né, nunca dependi de ninguém, aí quando chega
uma hora dessa eu vou ter que depender dos outros. É, depender dos outros, é
ruim... A gente querer as coisas, não tem dinheiro, não tem dinheiro, quer pagar
uma conta não tem dinheiro... (Carolina, 2020).

Já no caso de Flávia, ela continuou trabalhando em todos os momentos de pandemia,


mesmo durante as duas vezes em que a cidade passou por lockdown. Em seus relatos, Flávia
contou que não sentiu muito receio pela pandemia, já que estava trabalhando e vivendo
“normalmente”. Samanta, nossa última interlocutora, havia iniciado no trabalho doméstico um
pouco antes do início da pandemia, como diarista, na casa de uma família de conhecidos, mas
logo em seguida precisou parar de trabalhar, pois quem lhe contratou possuía filhos com
problemas respiratórios e, de acordo com Samanta, sua patroa ficou com receio de um
possível contágio. De acordo com as configurações de emprego de nossas interlocutoras,
podemos identificar os altos índices de informalidade encontrados na categoria, um agravante
para a insegurança trabalhista, pois uma vez que não estejam protegidas perante as leis
trabalhistas, e em um cenário de insegurança geral, como o que foi colocado pela pandemia de

458
covid-19, isto se agravou. Entretanto, as trabalhadoras estão na linha de frente no processo de
reconhecimento de sua categoria. Para além dos sindicatos e associações, essas lutas estão
presentes no cotidiano, já que muitas trabalhadoras buscam formas de resistência por meio de
negociações com seus patrões, e outras micro atitudes que podemos identificar como
mecanismos de autonomia. Como exemplo, Flávia evidenciou que na informalidade ela pode
fazer o seu horário, algo que não poderia fazer caso estivesse com carteira assinada. É válido
ressaltar a associação do reconhecimento de seus direitos para com a luta do reconhecimento
do trabalho doméstico, não só em termos jurídicos, mas pelas próprias autoestimas das
trabalhadoras. A exemplo disso temos o relato de Raissa:

[...] A gente vai se calar? Eles não são bons de exigir o serviço doméstico? Se a
gente deixar alguma coisa por fazer eles reclamam, como é que eu também não vou
reclamar também meus direitos? (Raissa, 2020).

Por fim, este trabalho argumenta que a pandemia da Covid-19 tornou as desigualdades
sociais e trabalhistas mais evidentes. Torna-se evidente que as trabalhadoras sentiram os
impactos causados pela pandemia de numerosas formas, visto que afetou diversas áreas de
suas vidas e, mesmo com a regulamentação da categoria, continuam expostas ao desemprego
e a contextos de vulnerabilidade. Entende-se também que os serviços domésticos, em um
contexto de pandemia, serem considerados enquanto atividade essencial é reflexo da
desumanização de trabalhadoras domésticas. Com isso, este trabalho se propôs a contribuir
com as reflexões acerca do trabalho doméstico remunerado e suas imbricações, ainda que
modestamente, para que se possa oferecer maior dignidade laboral para trabalhadoras
domésticas.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre; MICELI, Sergio. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Perspectiva, 1974.

DANTAS, Luísa M. S. As domésticas vão acabar? Narrativas biográficas e o trabalho como


duração e intersecção por meio de uma etnografia multi-situada – Belém/PA, Porto Alegre/RS
e Salvador/BA. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAA, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
459
DEVETTER, François-Xavier; JANY-CATRICE, Florence & RIBAULT, Thierry. Les
services à la personne. Coll. Repères, éd. La Découverte, 2009, 128 p.

ECKERT, C. e ROCHA, Ana Luiza C. A interioridade da experiência temporal do


antropólogo como condição da produção etnográfica. Revista de Antropologia, São Paulo -
USP, volume 41 número 2, 1998.

ECKERT, C. e ROCHA, Ana Luiza C. O Tempo e a Cidade. Porto Alegre: Editora da


UFRGS, 2005.

ECKERT, Cornelia. Questões em torno do uso de relatos e narrativas biográficas na


experiência etnográficas. In: ECKERT, C e ROCHA, A. L.C. Etnografia da duração,
antropologias das memórias coletivas nas coleções etnográficas. Porto Alegre, Marcavisual,
2013, Capítulo 3, p. 105 a 128.

FENATRAD, 2020. O foco em 2020 foi lutar por direitos durante a pandemia e a palavra de
ordem foi solidariedade.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad. Luci Moreira Cesar. Campinas: Papirus,
1991.

SANCHES, Maria Aparecida P. Fogões, pratos e panelas: práticas e relações de trabalho


doméstico, Salvador 1900-1950. 1998. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 1998.

460
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 1 -

A PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO: SEQUELAS DE


UMA PANDEMIA E DO FALHO SISTEMA NEOLIBERAL

Gabriel da Cunha Melo239


Thabata de Farias Silva240

Desde o começo do século XXI, a modernização das relações de trabalho tem se


acentuado com rapidez e em muitos momentos de maneira estrutural, pois grande parcela da
sociedade civil não consegue acompanhar essas atualizações. É possível perceber que novos
atores sociais surgiram, como por exemplo os motoristas de aplicativo, o Brasil em todo o
seu território diverso e heterogêneo mudou, a forma de transitar dentro da cidade, os meios
de comunicação lançaram mão de um discurso baseado na flexibilização do tempo, do
trabalho e grande lucratividade para convencer a população, porém, na prática, esse tipo de
trabalho mostrou-se uma realidade conturbada e contraditória. Assim, o sistema capitalista
entra em uma nova fase: O neoliberalismo. Ele se mostrou resiliente e somente adaptou os
seus mecanismos de opressão em paralelo a tentativa de mascarar a latente luta de classes
com discursos inovadores de empreendedorismo e a falsa ideia de liberdade dentro de
regimes informais de trabalho.
Em 2019 surge a pandemia da COVID-19 na qual de surpresa, transforma
radicalmente todas as expressões das relações sociais, desde um simples abraço até ao
mercado. Desse modo, os governantes e toda a sociedade civil buscaram maneiras alternativas
de sobrevivência social e econômica para vencer a crise que atravessou todas as esferas da
sociedade e intensificou os
marcadores sociais das diferenças de gênero, raça e classe. Grande exemplo que transpareceu
as desigualdades da sociedade brasileira foi a primeira vítima do Coronavírus no país, ser
uma mulher negra e diarista cuja foi infectada por seus patrões que voltaram de uma viagem

239
Graduando em licenciatura plena em ciências sociais, Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Gabriel.melo@aluno.uepa.br
240
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia (UFPA) e Docente da
Universidade do Estado do Pará (UEPA). Thabata.silva@uepa.br
461
ao exterior e a manipularam a trabalhar durante uma crise sanitária que já era divulgado o
risco demorte existente.
De todo modo, o Governo Federal brasileiro não conseguiu agir no tempo hábil e
com eficácia para combater a pandemia devido ao seu despreparo e menosprezo com a crise
e ao resultado de anos de políticas de austeridade e privatizações que dificultaram a rapidez
do Estado em auxiliar economicamente os trabalhadores para resguardar a saúde. Pesquisa
feita pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) chamada “Epicovid” aponta que 400 mil
mortespor COVID-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas, caso o Governo tomasse medidas
de controle, distanciamento social e acelerasse a vacinação.
O neoliberalismo de maneira hegemônica prejudicou a garantia de direitos
constitucionais dos trabalhadores e apresentou soluções falhas e subjetividades nas quais o
trabalhador sente-se um empresário de si mesmo e assume novas perspectivas de trabalho e
remuneração que o aliena da sua condição de informalidade e insegurança, sem qualquer
amparo de vínculo empregatício ou previdência social e suas sequelas transpareceram com a
pandemia.
Afim de compreender as mudanças e transformações a partir da pós-modernidade e
da implementação do neoliberalismo no Brasil e suas consequências, será utilizada a
metodologia fenomenológica para delimitar o objeto de estudo e sua seus atravessamentos
em determinado período histórico que é respectivamente, as relações de trabalho e a
pandemia da COVID-19 (2020 até os tempos atuais). Ainda assim, serão utilizadas
referências bibliográficas nas quais discorrem sobre o contexto pandêmico dentro do campo
sociológico e também sobre fenômenos no trabalho que surgiram anterior à pandemia e foram
acentuados com ela, como a uberização.
Além disso, a abordagem e perspectiva utilizada pelos autores estudados neste
trabalho como Boaventura de Souza Santos e Jorge Grespan possui influência da teoria
marxista e analisa a sociedade a partir da luta de classes que está em constante adaptação,
porém mantémas regras da dominação e as contradições da sociedade burguesa.
O trabalho foi construído para compreender os novos trabalhos que surgiram desde o
início do século XX e como as desigualdades são recorrentes ainda que permeada de
discursos inovadores e otimistas influenciados pelo neoliberalismo e acentuados na pandemia.
É de suma importância buscar compreender as novas dinâmicas sociais do trabalho e a partir
462
delas encontrar alternativas mais justas e livres de estruturas de acumulação de riquezas e
opressão.
Ao debater os resultados da pandemia nas relações de trabalho, é necessário traçar
um perfil daqueles que foram mais afetados e ficaram à mercê de um vírus fatal e das mãos
de um Estado omisso, que atuou somente em momentos de pressão fomentadas pelo
Congresso Nacional e sociedade civil. De modo geral, o Panorama Social da América Latina
aponta que em 2020 houve 209 milhões de pessoas pobres ao final do ano em todo o
continente, 22 milhões a mais que no ano anterior, ou seja, a pandemia intensificou as
desigualdades sociais onde uma massa de descartáveis para o sistema capitalista cresceu e a
necropolítica a partir de discursos como “O Brasil não pode parar” causou desespero e caos
em um momento fundamental de consenso e preservação de vidas.
Além disso, a FIOCRUZ/ Relatório OXFAM concluiu que a desigualdade mata,
exemplo disso são os dados de 2020 em que negros são 1,5 vezes mais propensos a morrer
de COVID do que brancos e taxa de letalidade do vírus no Rio de Janeiro possuir contrastes
onde no Leblon é de 2,4% e na Maré de 30,8%. Tudo isso serve para mostrar que a partir da
subjetividade classista e racista dominante no Estado burocrático brasileiro, o biopoder
administra as vidas que são deixadas viver e feitas morrer, não são coincidências ou
ocasionalidades as maiorias das vítimas na pandemia serem pobres e negras e ainda a
pobreza ter aumentado.
Em momentos de crise, sejam econômicas ou sanitárias, a luta de classes mostra-se
mais violenta e nociva a vida da classe trabalhadora, ao apresentar soluções que domesticam
a consciência de classe dos trabalhadores com discursos empreendedores e a falsa autonomia
financeira tão sonhada por um grupo social historicamente explorado. Como o filósofo Karl
Marx (1818-1883) exemplifica em seu livro “O manifesto comunista”:

“Opressores e oprimidos em constante oposição, têm vivido numa guerra


ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; Uma guerra que terminou sempre ou por
uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou peladestruição das duas
classes em conflito.” (2005, p.40.)

A “epidemia da superprodução” como Marx chama o fenômeno resultante da


desorganizada evolução do capitalismo, tem causado com cada vez mais frequência

463
instabilidades globais que provocam mortes, crises econômicas e sanitárias, isso mostra que
o lucro se apresenta como o “senhor” que dita as regras do jogo da sociedade capitalista.
Sendo assim, a última crise foi resultado de uma superexploração dos recursos naturais e
novamente o sistema neoliberal mostrou-se ineficiente em proteger as vidas e o
individualismo em muitos momentos imperou em detrimento da solidariedade e da empatia.
É possível analisar este antagonismo dentro da perspectiva de classe na qual, os empresários
em seus carros de luxo gritavam “O Brasil não pode parar” e os trabalhadores faziam filas
em hospitais em busca de atendimento médico.
Devido ao sucateamento do Estado e dos órgãos públicos a pandemia foi muito pior
do que deveria ser, pois um Estado intervencionista que garantisse o direito de
distanciamento social para preservar vidas, evitaria muitas mortes e cidadãos não se
colocariam em perigo para comprar alimentos e suprir as necessidades básicas de suas
famílias. Em paralelo a isso, o Governo Federal brasileiro, quando não estava
menosprezando a pandemia, fez com que as relações de trabalho que já haviam sido
flexibilizadas com a reforma trabalhista em 2017 se tornassem mais informais onde o patrão
negociava diretamente com o funcionário e ameaças eram feitas caso não trabalhassem
durante a pandemia.
Outrossim, o fenômeno da uberização que funciona sem vínculo empregatício e o
trabalhador atua através de demandas de viagens por aplicativos, foi uma das saídas mais
comuns para os trabalhadores durante a crise. Sob esse viés, é vendida a ideia de
flexibilidade e de ser “O patrão de si mesmo”, por outro lado mascara as intensas jornadas de
trabalho exaustivas, a periculosidade durante as viagens sem ter a quem recorrer em casos de
furto ou acidentes e a ausência total de direitos trabalhistas.
O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) concluiu que o número de
motoristas por aplicativo em 2021 chegou a 945 mil, um crescimento em comparação a 2020
que era 782 mil, aumento assustador tendo em vista que em 2021 ainda estava em plena
pandemia. Esse dado ratifica que a precarização das relações de trabalho formais com
empregadores oportunistas fazem com que indivíduos procurem a informalidade como
única saída. Mais que isso, o sistema excludente que prejudica a vida da classe trabalhadora
é o mesmo que fomenta discursos de superação e motivacionais baseado no pseudo
empreendedorismo cujo em suma é a destruição total da vida dos trabalhadores.
464
O historiador e economista Jorge Grespan busca sintetizar a forma que este sistema
funciona do seguinte modo:

Empregadores gananciosos de pagarem a seus trabalhadores um salário efetivo


inferior àquele necessário para a manutenção da força de trabalho. O sistema
enseja essa e outras práticas imorais do ponto de vista individual. (2021, p. 39.)

Destarte, a pandemia não afeta a todos da mesma maneira, sobretudo a classe


trabalhadora negra saiu mais prejudicada do que o resto da população, o vírus da COVID-19
transpareceu as desigualdades e intensificou os processos de exploração por meios materiais
e ideológicos. Não é possível pensar nas atuais relações de trabalho, sem pensar nas políticas
neoliberais construídas desde 2017 desmontaram as políticas protecionistas estatais e
consequentemente colocaram milhões de brasileiros no trabalho informal.
Os conflitos internos dentro da sociedade civil podem ter mudado, ainda assim o
sistema continua desigual e por mais que ocorra uma reforma moral dos cidadãos, são seria
alterado o sistema capitalista, é necessário repensar novos modelos civilizatórios capazes de
estruturar saudáveis e harmônicas relações de trabalho. Sendo assim, deve ser extinguido os
pilares de racismo, patriarcado e neocolonialismo que sustentam o capitalismo e eliminar
qualquer hipótese de expropriação através da mais-valia.
Enfim, a insuficiência do neoliberalismo e os privilégios propositais impostos pelo
sistema para uma minoria burguesa em detrimento dos direitos da maioria trabalhadora. Por
isso, a retomada da consciência de classe continua em voga e é tão atual hoje quanto no
século XIX, porém agora com a pós-modernidade e a liquidez e relatividade das relações
interpessoais, precisa-se reiterar a concretude que é a luta de classes e a importância do
almejo de uma sociedade na qual os valores inegociáveis sejam a equidade, emancipação e
justiça, tudo isso também atravessará as dinâmicas sociais de trabalho.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Pandemia. Trabalho.

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466
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:
DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS
SESSÃO 1 - TRABALHO DIGITAL, MERCADOS E PRECARIZAÇÃO

PRECARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E UBERIZAÇÃO DO TRABALHO


DOCENTE NO CONTEXTO DE PANDEMIA DE COVID-19 NA BAHIA

Franciele Brito Barbosa241


Elis Cristina Fiamengue242

O objetivo deste trabalho é discutir a precarização da educação e a uberização do


trabalho docente, a partir do contexto de pandemia de Covid-19, através das medidas adotadas
pelo Estado da Bahia na regulamentação do trabalho remoto da rede pública de ensino médio.
Diante do novo formato de educação, como a utilização de novas tecnologias no ensino
remoto e do ensino híbrido, são identificadas algumas fragilidades do sistema educacional.
Para atingir este objetivo foi realizada uma revisão bibliográfica com base nos textos de
Antunes (1999, Monteiro (2021) e Silva (2020), e das normativas disponíveis no Diário
Oficial da Bahia, desde o início da pandemia.
A escolha da rede pública da Bahia se deu por atuar nesta rede, como professora de
sociologia, pelo Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) desde março de 2020 e
vivenciar essas medidas adotadas.
As aulas estaduais na Bahia foram suspensas no dia 16 de março de 2020, com a
incerteza de quando e como retornariam. O que ninguém imaginaria é que a partir desta data a
precarização do trabalho, que já vinha se mostrando por meio das políticas estatais, se tornaria
muito mais evidente.

Quadro 1 – Diretrizes de regulamentação do ensino durante a pandemia na Bahia.


N° da normativa Do que se trata
Decreto nº 19.529 de 16 de março de 2020 Suspensão das aulas no âmbito do Estado
da Bahia.
Deliberação nº 02/2021 do CEE-BA. Recomendações sobre o retorno das aulas
de maneira remota.
Decreto nº 20585 de 08 de julho de 2021. Realização das atividades letivas de
maneira semipresencial.
Resolução CEE/BA, nº 44, de 24 de Retorno às aulas presenciais do sistema
241
Mestranda, Universidade Estadual de Santa Cruz/UES. E-mail: franbr.barbosa@gmail.com
242
Doutora, Docente na Universidade Estadual de Santa Cruz/UESC. E-mail: eliscf@gmail.com
467
agosto de 2021. estadual de ensino.
Portaria N° 1900/2021. Diretrizes e procedimentos para a
finalização do ano letivo 2020/2021, com
vistas à transição para o ano letivo 2022.
Fonte: Dados da pesquisa (2022).

Ainda no ano de 2020, após a suspensão das aulas em toda a rede estadual da Bahia, a
escola onde atuo continuou com as atividades, desta vez de forma remota: grupos no
whatsapp com estudantes e professores, redes sociais da escola (facebook e instagram), canal
no youtube para divulgação de lives, uso do google meet para reuniões, blog da escola para
divulgação de atividades semanais para os estudantes. Estas atividades docentes realizadas no
ano de 2020, através das redes sociais da escola, não foram computadas como carga horária.
Em março de 2021, com o retorno das aulas de maneira remota, diversas atividades
como a jornada pedagógica e reuniões de professores, começaram a ser realizadas pela
plataforma google meet, por meio do e-mail institucional, pago pela secretaria de educação,
com os seguintes recursos educacionais: cadernos de apoio à aprendizagem (materiais
didáticos padronizados, disponíveis por área do conhecimento, para ser utilizados online pelos
estudantes); salas virtuais via google sala de aula; canal de televisão TVE Educabahia, entre
outros.
Houve a recomendação do uso de vários recursos como gravação das aulas
ministradas, utilização de podcast, aulas síncronas ou assíncronas, e outros. O horário das
aulas ficou igual ao presencial, com aulas alternadas de 50 minutos cada entre uma disciplina
e outra. As aulas assíncronas poderiam ser gravadas, via whatsapp ou pelo google sala de
aula. As aulas síncronas foram realizadas principalmente via google meet. As aulas para os
estudantes que não tinham acesso a internet foram realizadas através de material impresso,
roteiros, livro didático, cadernos de apoio à aprendizagem, tirar dúvidas por telefone. Além de
atividades específicas para os estudantes com deficiência.
Ainda neste período, foram oferecidos vários cursos para os docentes, entre eles:
“Curso ensino híbrido na prática” oferecido pela Sincroniza Educação243 e o curso “Projeto de
Vida: Inova Escola” oferecido pela Fundação Telefônica Vivo244. Segundo o mapeamento do

243
Disponível em: https://sincronizaeducacao.com.br/. Acesso em 26 jul. 2022.
244
Disponível em: https://www.escolasconectadas.org.br/projeto-de-vida. Acesso em 26 jul. 2022.
468
Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (GREEPE), entre 2005 e 2018, entre
as empresas que atuam junto à educação pública na Bahia, 42% delas são instituições
privadas. Dentre essas empresas, 69% delas se dedicam a atuar na etapa de escolaridade do
ensino médio. (MONTEIRO, 2021, p.97-8).
Diante destes dados, podemos considerar que o interesse das empresas privadas na
rede de ensino público, principalmente no ensino médio, se dá por um discurso de uma
profissionalização precoce desses estudantes. Cada vez mais o discurso do empreendedorismo
se faz presente nesse contexto e as aulas remotas se tornaram um momento propício para essa
formação do trabalhador.
Em julho, com o retorno híbrido, as aulas pela manhã eram presenciais com dois
planejamentos: o planejamento presencial para o grupo que estava na escola e o planejamento
com atividades impressas para o grupo que estava em casa. Na escola onde atuo, por ser de
tempo integral, no turno da tarde as aulas aconteciam de forma remota e deveriam ser
realizadas no espaço escolar. De maneira geral, nesse período, a precarização se intensificou
um pouco mais por incluir planejamento presencial, em casa e aulas remotas às vezes
ofertadas todas em um único dia.
Em outubro de 2021, as aulas totalmente presenciais voltam a funcionar. Ainda sobre
a realidade onde eu atuo, não houve conversa com a direção da escola sobre a possibilidade de
esperar a decisão do sindicato, que debatia com os trabalhadores uma melhor data onde todos
os professores tivessem sido vacinados por completo. Esse retorno se deu de forma abrupta e
por meio de uma decisão unilateral.
Ainda sobre a minha realidade, dos 14 docentes atuantes na escola, apenas 4 são
profissionais efetivos, os demais são por contrato temporário. Quando uma mesma categoria
profissional possui diferentes formas de contratação, o que se pode observar é uma
dificuldade de unir essa classe trabalhadora para luta de direitos, porque cada tipo de
contratação possui diferentes pautas a serem discutidas. Nesse caso específico, fica difícil os
profissionais efetivos lutarem pela causa dos profissionais do REDA e vice-versa.
As relações de trabalho passam por constantes ondas de flexibilização, perdas de
direitos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e pelo discurso empresarial de que
estamos em uma crise permanente. A ideia da uberização não é nenhuma novidade, o que se
tem de novo é o acesso às plataformas digitais. (ANTUNES, 1999, p. 111). A pandemia é
469
utilizada como justificativa para que essas relações se tornem mais frágeis e precárias para os
trabalhadores.
O trabalho docente já vinha sendo atacado há muito tempo. Com a implantação das
aulas remotas foi gerada uma desigualdade no acesso ao conhecimento. A qualidade do
acesso à internet, com a mescla de trabalho pessoal e profissional se tornou um fator que
gerou muito desgaste por parte dos estudantes e dos professores.
O ensino remoto funcionou como uma desculpa perfeita para que o setor privado
tomasse fôlego e oferecesse o uso de plataformas, das mais variadas, aparentemente sendo a
solução mais plausível, porém com o efeito colateral de substituir ou retirar toda a autonomia
docente dentro da sala de aula. (SILVA, 2020, p. 588).
As relações de trabalho passam por constantes ondas de flexibilização, perdas de
direitos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e pelo discurso empresarial de que
estamos em uma crise permanente. A ideia da uberização não é nenhuma novidade, o que se
tem de novo é o acesso às plataformas digitais. (ANTUNES, 1999, p. 111). A pandemia é
utilizada como justificativa para que essas relações se tornem mais frágeis e precárias para os
trabalhadores.
O trabalho docente já vinha sendo atacado há muito tempo. Com a implantação das
aulas remotas foi gerada uma desigualdade no acesso ao conhecimento. A qualidade do
acesso à internet, com a mescla de trabalho pessoal e profissional se tornou um fator que
gerou muito desgaste por parte dos estudantes e dos professores.
O ensino remoto funcionou como uma desculpa perfeita para que o setor privado
tomasse fôlego e oferecesse o uso de plataformas, das mais variadas, aparentemente sendo a
solução mais plausível, porém com o efeito colateral de substituir ou retirar toda a autonomia
docente dentro da sala de aula. (SILVA, 2020, p. 588).
O conjunto destas problemáticas apresentadas é conhecido como “uberização”, em
referência à conhecida plataforma digital. A uberização do trabalho é um fenômeno atual em
que as relações de trabalho assumem características de uma prestação de serviço, mediada
pela tecnologia, via aplicativos, aumentando ainda mais a informalidade. Esse tipo de relação
de trabalho já pode ser percebido também no campo educacional. (SILVA, 2020, p.589).

470
Um bom exemplo é o aplicativo criado na cidade de Ribeirão Preto, em São Paulo,
que ficou conhecido como “Uber do Professor245”. A ideia é pagar aos professores apenas as
aulas dadas, sempre que algum professor da rede faltar. Dessa forma o docente vem sendo
deixado de ser chamado de “professor” e passou a ser “entregador”, ou ainda “professor
delivery”. Ou seja, deixa de existir a necessidade de um profissional devidamente qualificado
na área, pois se for pra “entregar” pode ser qualquer um, não necessariamente precisa ser um
professor.
Outros exemplos que podemos citar são o da cidade de Angelina, em Santa Catarina,
onde em 2017 a prefeitura abriu um edital de leilão para contratação de professor por menor
preço246, ou ainda uma propaganda de TV com o apresentador Luciano Huck, que dizia
“Torne-se professor e aumente sua renda247”.
Podemos afirmar que a discussão do ensino remoto não irá se encerrar com o fim da
pandemia, mas sim abrir grandes possibilidades de mercado, de uma lógica da oferta de
formação em todos os níveis. Estratégias de aumento da precarização estão por vir, com mais
aulas gravadas, ou acesso à educação exclusivamente através de ferramentas como celular,
computadores e internet.

Palavras-chave: Políticas Públicas Educacionais. Ensino Médio. Bahia.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. A classe-que-vive-do-trabalho: a forma de ser do trabalhador hoje. In:


(org.). Os sentidos do trabalho. São Paulo, Boitempo, 1999.

MONTEIRO, Santiago Castigio e. Estratégias da privatização da educação básica na rede


estadual da Bahia (2005-2018). In: VENCO, Selma; BERTAGNA, Regiane Helena;
GARCIA, Teise. Currículo, Gestão e Oferta da Educação Básica Brasileira: Incidência de
atores privados nos sistemas estaduais das regiões nordeste e sudeste (2005-2018), 2021.

245
Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,prefeitura-de-ribeirao-preto-planeja-criar-uber-
do-professor,70001899946. Acesso em 26 jul. 2022.
246
Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/04/prefeitura-de-angelina-abre-
leilao-para-contratar-professor-de-educacao-fisica-por-menor-preco-9780413.html. Acesso em 26 jul. 2022.
247
Disponível em: http://vidadiaria.com.br/vidadiaria/index.php/educacao/1045-unopar-torne-se-professor-e-
aumente-a-sua-renda-saiba-mais. Acesso em 26 jul. 2022.
471
SILVA, Amanda Moreira da. Da uberização à youtuberização: a precarização do trabalho
docente em tempos de pandemia. RTPS. Revista Trabalho, Política e Sociedade, vol. 5, n.
09, p. 587-610, jul. dez./2020.

472
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 1 - TRABALHO DIGITAL, MERCADOS E PRECARIZAÇÃO

O MERCADO EDITORIAL EM JOINVILLE (SC): UMA PERSPECTIVA


A PARTIR DA SOCIOLOGIA ECONÔMICA

Israel Aparecido Gonçalves248

Com o advento da pandemia249 em 2020 ocorreram mais de um milhão de mortos no


mundo - só no Brasil mais de 670.532 mil casos250. No setor industrial, de serviços e da
cultura, todos inseridos no sistema capitalista, foram paralisados e/ou transformados em suas
estruturas administrativas e/ou nas suas plantas produtivas. Muitas empresas migraram de um
espaço físico para o uma estrutura on-line, fenômeno qualificado como plataformização
(GROHMANN, 2020), ou se estabeleceram em um formato híbrido, com estrutura física e on-
line. Empresas faliram por conta da pandemia da Covid-19 e outras conseguiram, de uma
forma ou de outra se adaptar ao longo dos dois anos da pandemia e novas formas de
circulação de produtos e serviços foram criadas, assim como, novas formas de vender e
distribuir produtos, foram reinventadas e muitas vezes conectadas às plataformas digitais, o
que acelerou a inserção dos chamados clientes virtuais na web.
Para esta pesquisa analisaremos a cidade de Joinville que é o maior município de
Santa Catarina, com uma população d 604.708 habitantes (IBGE, 2021) e o melhor
desempenho no Produto Interno Bruto (PIB) do estado com R$ 34,5 bilhões em 2021 (IBGE,
2021), gerando uma grande circulação de pessoas, de bens e de serviços. A cidade é
conhecida historicamente (TERNES, 1986 e CUNHA, 2008). por suas atividades industriais
e de serviços, no campo econômico e pelo festival de dança, o teatro e pela feira do livro, no
campo cultural. Há instituições na área da literatura como associações, várias livrarias e

248
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política, pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC/ Concentração: Sociologia. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de São
Carlos – UFSCAR. Graduado em História pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. Este projeto é
financiado pelo CAPES. E-mail: educa_isra@yahoo.com.br
249
“Pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epidemia,
surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para
pessoa.” Disponível em: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-pandemia
250
Dados finalizados em 28 de junho de 2022. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.

473
editoras na cidade. Em certa medida há uma combinação entre a produção econômica e os
movimentos artísticos e literário na cidade.
Esta pesquisa está em andamento e objetiva entender o desenvolvimento regional de
setores ligados a indústria editorial (escritores, editoras, gráficas, livrarias) esta conectada
com a economia criativa (PACHECO, 2019). Este campo literário, na forma descrita por
Bourdieu (2011), foi adaptado a nova realidade social e econômica imposta pela pandemia e
seus arranjos produtivos e institucionais, foram moldados pela inovação tecnológica e novas
relações econômicas e sociais que será analisada a partir da sociologia econômica de
Bourdieu.
Essa economia do mercado literário reconfigura-se a partir de 2020 em novo sentido
da produção, confecção, distribuição de livros que tinham como modelo o chamado livro
físico (material), agora em formato e-book, ePUB251, MOBI252 (digital). Além de
transformação da obra em si (físico para o virtual) ocorreram novos sentidos dentro do campo
literário: a) o entendimento dos direitos autorais, do copyright; b) da noção de venda/ lucro
sobre os e-books para os dois polos deste campo: os escritores/clientes e das editoras. Essas
novas conexões sociais são mais objetivadas a partir da sociologia economia que tem no
agente e suas percepções o lugar de partida para análise social.
Em um período pandêmico, muitos professores, enfermeiros, pesquisadores entre
outros das mais diversas áreas buscaram escrever suas histórias, via relatos ou analisá-las do
ponto de vista científico gerou uma demanda para as editoras. Estas empresas tiveram que
promover uma flexibilização: a) com relação aos seus métodos de capitar clientes/escritores –
clientes/leitores; b) na distribuição dos seus produtos/livros porque em boa medida muitas
livraras estavam fechadas; e c) na comercialização dos livros. A adaptação ao novo cenário
social e econômico do mercado literário resultou, conforme a matéria do jornal Folha de S.
Paulo, que o “O faturamento das editoras subiu 29% de 2020 para 2021, consolidando um
movimento já esperado de bonança para o mercado de livros” (PORTO, 2022, on-line).
O mercado de livros está em uma crescente assim como novos autores adentram ao
campo literário, em destaque para a maior cidade do estado de Santa Catarina, Joinville. Estes

251
Para ciência o termo é uma abreviação de Electronic Publication - publicação eletrônica
252
Estas siglas são referências a Mobipocket, que é reduzido para Mobi. É um código padrão do Open eBook e
pertence a empresa Amazon, desde 2005 para vender seus livros na internet.
474
têm na produção e divulgação dos seus livros, aqui colocamos como hipótese investigativa,
uma identificação com o conceito de “economia de bens simbólicos” de Bourdieu no que
expressa que modelos econômicos que modificam a ideia de lucro ou exploração, podem
degenerar o sistema capitalista só “funcionam e só podem funcionar na prática – e não apenas
nas representações – às custas de uma repressão constante e coletiva do interesse
“econômico” propriamente dito e da verdade das práticas que a análise ‘econômica’ revela
(BORRDIEU, 2015, p.164).
Ao mobilizar Bourdieu (2015), e o conceito de bens simbólicos, entendemos que os
autores estão mais interessados em ter sua história objetivada em livro, mesmo que isso não
signifique um lucro para eles, ou seja, não é processo econômico em busca do lucro, como
revela Weber, uma racionalidade em relação a fins. Uma evidência dessa forma de negociação
entre autor-editora é o caráter de distribuição gratuita do material confeccionado pela editora.
Essa tipologia, de o autor buscar promover entre seu público (clientes, família, amigos,
concorrentes etc.) um tipo de status (um escritor) o colocaria como uma pessoa diferenciada
na sociedade, com uma distinção ao entrar no campo literário. Os autores podem, aqui
pensado em Sennett (2019) reorganizar suas narrativas de vida, com relação ao seu passado e
o seu futuro; porque eles conseguem registrar suas próprias histórias e assim selecionado o
que lhe convém contar sem uma interferência direta de um editor.
O objetivo central deste trabalho é pesquisar as mudanças na produção e distribuição
de livros digitais pelas editoras de Joinville/SC. Entender as mudanças das relações sociais
entre empresa/editora e sociedade/escritores, motivada pela pandemia – 2020 até o momento.
A nossa hipótese é que a nova configuração econômica e social entre os clientes, escritores e
as editoras que agora geram renda não mais com a venda de livros, mas com autores que
pagam pela confecção de suas próprias obras, indicando uma flexibilização do capitalismo e
uma relação econômica-social que não era uma novidade neste mercado, mas que ganhou
escala nos últimos anos.
A pesquisa tem como eixo teórico a sociologia econômica de P. Bourdieu (1930-
2002), na sua análise de economia dos bens simbólicos, aqui mobilizado para entender como
o agente usa os bens (sua história em livro) como uma ação que orienta e organiza suas
relações sociais em um campo, no caso o artístico nos quais os agentes entendem e aceitam
essas relações entre os autores e os livros (bens). Outro autor importante para o
475
direcionamento da pesquisa é o conceito de tipo ideal de racionalização explorado por Max
Weber, no sentido da racionalização referente a fins – a busca do lucro/material -; e a
racionalização referente aos valores/status. Para Sell (2009) a análise da racionalização do
mundo Ocidental é o principal objetivo das obras de Weber.
Para estudar as relações da economia criativa e o campo literário em Joinville optamos
por uma análise endógena dentro do campo, no sentido de P. Bourdieu, ou seja, entender
como funcionam as lutas e seus resultados, as posições dos agentes no campo. Elementos
externos ao campo, conectados ao capitalismo, como os aspectos econômicos também serão
inseridos no debate. Por isso, optamos pelo conceito de campo, por expor as buscas dos
agentes por poder político, por status e nesse sentido se faz uma análise microcósmica do
campo literário.
As editoras pesquisadas existem via plataformas digitais, por isso, foi necessário
analisar suas redes sociais, sites entre outras plataformas. Do ponto de vista econômico as
editoras são pequenas e se enquadram como MEI – Microempreendedor Individual. Em
Joinville as instituições que compõem o campo literário são: Academia de Letras de Joinville
(ALJ), criada em 1969, com 36 membros. Os integrantes dessa instituição são o grau máximo
de status de um reconhecimento público do ser escritor. Em segundo plano (político), há
Associação das Letras, com mais de 50 sócios pagantes e um número próximo de 100
escritores que colaboram de forma direta e indireta nas ações da Associação, como exposição
de obras, elaboração de minicursos, sarau ou na escrita de livros em forma de coletâneas, em
especial a poesia e a trova.
Diferentemente da ALJ, a Associação tem foco na produção e circulação de livros,
fator cultural importante que pode ser observado na Feira do Livro, em sua décima oitava
edição em 2022, no das editoras, já estão inseridos nas instituições de consagração dos
escritores, acabam atraindo seus clientes para o reconhecimento de escritor, gerando uma
espécie de pequena nobreza de escritores.

Palavras-chaves: Sociologia Econômica. Campo Literário. Editoras.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1989.
476
_________________. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. 11ª ed. Campinas, SP;
Papirus, 2011.
_____________

____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2015.

CUNHA, Dilney. História do trabalho em Joinville: gênese. Joinville, Edições TodaLetra,


2008.

GARCIA, Sandro Ruduit. Sentido das mudanças: economia criativa e implicações sociais
em Porto Alegre. Ciências sociais UNISINOS. São Leopoldo, RS. Vol. 53, n. 1 (jan./abr.
2017), p. [15]-23.

GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidade e estados, 2021, Online. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sc/joinville.html Acesso em: 10 jun. 2022.

SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. 7ª ed. Petrópolis, Rio
de Janeiro; Editora Vozes, 2009.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências do trabalho no novo capitalismo.


21ª Ed. Rio de Janeiro, Record, 2019.

TERNES, Apolinário. História econômica de Joinville. Joinville, Meyer, 1986.

PACHECO, Adriano Pereira de Castro. A Economia Criativa no Brasil: conceitos, políticas


públicas e desenvolvimento. Campo Grande (MS); independente, 2019.

PORTO, Walter. FSP. Publicado: 21 jan. 2022. Online. Vendas de livros crescem 29% em
2021 e consolidam bonança do setor editorial. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/01/vendas-de-livros-crescem-29-em-2021-e-
consolidam-bonanca-do-setor-
editorial.shtml?pwgt=kcle8fj9azvy5svwnmev6k4mi2aifwl3i294b69u3sxajy82&origin=folha
Acesso em: 01 jul. 2022.

477
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 1 - TRABALHO DIGITAL, MERCADOS E PRECARIZAÇÃO

FORÇAS PRODUTIVAS E SUAS TRANSFORMAÇÕES: O FENÔMENO


DA “UBERIZAÇÃO”

Andréa Bittencourt Pires Chaves253


Lucas Henrique Navegantes Lobato254
Arthur Henriques dos Santos255

As mudanças no mundo do trabalho, a partir do século XX, foram acompanhadas das


revoluções tecnológicas e da criação de modelos de produção tendo como finalidade o
aumento de capital através de uma organização racional da produção e distribuição de
mercadorias fomentando o consumo em massa.
Adventos provocados por novas tecnologias proporcionaram uma facilidade de
expansão do capitalismo com mecanismos cada vez mais sofisticados, rompendo, desta
forma, com o protagonismo da produção fabril em meio a formação de novos modelos de
negócios por meio do uso de tecnologias digitais.
No século XXI, com aprimoramento das tecnologias de informação e comunicação
(TIC`S), Slee (2017) descreveu o fenômeno da Uberização como reflexo das transformações
no conjunto das forças produtivas. Tal fenômeno foi criado em meio ao imaginário de que o
mundo seria mais igualitário com acesso à informação e à tecnologia. Neste sentido, surgi
uma forma de economia a qual recebeu o nome de economia de compartilhamento imersa ao
intuito reduzir o consumo em massa por meio do uso compartilhado de bens e prestação de
serviços, mas acabou por abrir uma nova possibilidade para expansão do capitalismo e maior
exploração do trabalho, viabilizando a acumulação capitalista.
A análise das forças produtivas e suas transformações no contexto do trabalho e da
revolução 4.0 no Brasil tem a intenção de elaborar uma crítica e discutir as caracterizações da
“Uberização” (SLEE, 2017) considerando os mecanismos usados pelo capitalismo
fomentando à desregulamentação do trabalho, aprofundando as desigualdades produzidas pelo
capital e criando novos estruturas de exploração trabalho.

253
Doutora em Ciências, UFPA, andreachaves@ufpa.br.
254
Graduando, UFPA, caslunavegantes@gmail.com.
255
Graduando, UFPA, art1r1ques@gmail.com.
478
O presente estudo foi baseado na pesquisa descritiva, considerando os princípios
apresentados por Marconi & Lakatos (2002, p. 20) “descrição, registro, análise e
interpretação” do fenômeno. O levantamento de dados qualitativos foi a escolha empregada
na pesquisa por meio da revisão bibliográfica, tendo como base as teorias de análise das
categorias Forças Produtivas e Trabalho e fontes documentais retiradas do marco legal da
reforma trabalhista no Brasil. No estudo ora apresentado, o pensamento social contribuiu para
entender o papel do Capitalismo na sua busca de elaborar estratégias tecnológicas destinadas
ao controle e exploração do trabalho. Parte-se da relevância da teoria para a explicação dos
fatos sociais, defendendo uma afinidade estreita entre a teoria e a realidade para o avanço
científico pela análise e interpretação do problema investigativo (LOUREIRO, 2018).
O sistema capitalista é constituído por um conjunto metabólico em permanente
transformação visando acelerar o processo produtivo e diminuir o custo da produção. Desta
forma, investe em desenvolvimento tecnológico e proporciona, de tempos em tempos, a
quebra do modelo produtivo, por conseguinte, modifica as formas de organizar o do trabalho
(HARVEY, 1992).
No percurso do avanço das forças produtivas está o uso das tecnologias acendendo
condições à formação da indústria de quarta geração (4.0) sucedendo as fases anteriores do
capitalismo industrial nas versões: mecânica (1.0); elétrica (2.0) e microeletrônica (3.0). No
século XIX o proletariado fabril foi o herdeiro da primeira revolução industrial, com a
introdução da máquina a vapor. No século XXI o “proletariado digital”, nas palavras de
Antunes (2019, p. 15), é um “autêntico filho da quarta revolução industrial”, alavancada pelas
tecnologias de informação e plataformas digitais.
Segundo com Schwab (2016, p.16), a “quarta revolução industrial”, nascida na virada
do século XXI, é marcada pela revolução digital com a hegemonia da internet em sua forma
móvel, utilizando captadores pautados na microeletrônica, com alta potência e com baixo
custo. Tal cenário tecnológico acontece com base na inteligência artificial e pela
aprendizagem automática (machine learning), forjando o contexto de trabalho do proletariado
digital, versão atualizada do proletariado fabril do século XIX.
Santos et al (2018) considera que a utilização da internet nos processos produtivos
fomentou o aparecimento do proletariado digital, sendo assim, novamente na história da

479
humanidade, o avanço das forças produtiva altera as relações sociais nos princípios
estabelecidos por Marx (1985).
O cenário do século XXI as formas de prestação de serviços por meio de modelos de
negócios ganham projeção no capitalismo digital. Neste contexto, configuram-se aplicativos
(Apps) destinados a ofertar diversos tipos de serviços. Apps são miniprogramas complexos e
derivam de expressivo aporte de capital, carecem de investidores de capital de risco para
extrair a ideia do papel. No começo “a empresa quer gastar muito mais capital do que fatura
em busca de crescimento exponencial” (GEROMEL, 2019, p. 226). O início de uma empresa
de aplicativo não prevê, e sim, expandir a sua atuação no mercado.
O diferencial deste tipo de modelo de negócios e associar a tecnologia oriunda da
revolução 4.0 e a força de trabalho desprotegida do amparo legal trabalhista instituído no
contexto taylorista/fordista do século XX. Para Geromel (2019) as empresas de Apps
conseguem alcançar valor de mercado bilionário, mesmo com prejuízo. O valor de mercado
está conexo ao potencial do investidor e, por outro lado, idealizado de um App é um jovem
com conceitos inovadores de ação para organizar um recurso tecnológico destinado a alcançar
clientes e valores exponenciais fornecendo algum serviço por Apps, configurando um novo
modelo de negócios. O modelo de negócios do capitalismo digital deriva de horas
incalculáveis de trabalho intenso e precário, catando financiamento para, talvez, ingressar no
próspero mercado digital
No contexto do capitalismo digital está a precarização do trabalho. Este tipo de
negócio fomenta o fim do assalariamento e inaugura, segundo Slee (2017), a condição de
“uberização”, termo derivado do nome da empresa de aplicativo de transporte Uber. A
condição de “uberização” faz referência ao trabalho desprotegido presente nos Apps
destinados a conectar um cliente ao serviço desejado.
O fenômeno da “uberização” foi forjado no ideário do mundo universitário do vale do
silício nos Estados Unidos em meio ao imaginário da possibilidade de mundo mais igualitário
com acesso à informação e à tecnologia para além da relação capital trabalho. Os Apps na sua
versão original pertenciam ao formato da economia compartilhada, baseada em uma ideia
colaborativa visando o compartilhamento.
Contudo, este os Apps de compartilhamento proporcionaram um rearranjo do
capitalismo para a versão digital possibilitando a maior exploração do trabalho, viabilizando a
480
acumulação capitalista. A tecnologia digital contribuiu de forma enfática para o abalo do
assalariamento (GOMES, 2002) e, especificamente no Brasil, colocou em questão o marco
legal trabalhista.
Nomeadamente, no Brasil, ao longo de cinquenta anos de vida, a legislação trabalhista
sofreu 233 alterações até 2016, com 75% de mudanças procedentes do poder legislativo
(GALVÃO et al, 2017) até o avanço da desregulamentação com a Lei Nº 13.429/2017 e a Lei
Nº 13.467/2017. O presente processo de perda de direitos responde a preceitos neoliberais e
as tecnologias disruptivas na versão 4.0. Nas considerações de Sennett (2015, p. 09): “Pede-se
aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam risco
continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais”. Tal é o contexto
da “uberização”.
O desenvolvimento tecnológico reorganiza o espaço da produção e dos serviços
majorando o lucro em razão da redução do tempo de produção e distribuição das mercadorias,
alcançando a organização do trabalho com alterações sociais e econômicas. As novas
tecnológicas afetam as relações pertinentes ao trabalho assalariado, conduzem a uma
diminuição de postos de trabalho e metamorfoseiam a planta produtiva e o setor serviços.
Tais transformações fomentam as instituições estatais retroagir nos direitos garantidos
no marco legal com a finalidade de garantir a reprodução do sistema capitalista. O processo
de industrialização foi seguido de um conjunto de políticas públicas voltadas à conciliação do
conflito capital/trabalho com formação da renda para o trabalhador se tornar consumidor.
Passado o período de acessão do capitalismo, os mecanismos de proteção foram
compreendidos, no âmbito do sistema, como entraves para a expansão do capital.
A legislação trabalhista foi reinterpretada como nociva, responsável pelo desemprego
e por obstáculo na dinamização da economia, pois não possibilita o descarte da força de
trabalho sem custos para o capital e vincula o emprego a direitos como a jornada de quarenta
horas semanais, o pagamento de hora extra e as férias anuais dos trabalhadores tidos como
despesas onerosas ao patronado. Por sua vez, a mudança tecnológica é a responsável pelo
desemprego estrutural concernente a um quadro permanente de trabalhadores vivendo sem a
inserção no formal de trabalho em meio a contínua e permanente flexibilização da legislação
protetiva no cenário da revolução 4.0.

481
Palavras-chave: Trabalho. Tecnologia. Uberização.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Proletariado digital, Serviços e Valor. In: Antunes, R. (Org.). Riqueza e


Miséria do Trabalho no Brasil: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida.
Boitempo, 2019.
GALVÃO, A et al. Dossiê Reforma Trabalhista. Campinas: CESIT/IE/Unicamp, 2017.
GEROMEL. R. O Poder da China. São Paulo: Gente Editora, 2019.
GOMES, A. Cidadania e Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
LOUREIRO, V. A Pesquisa nas Ciências Sociais e Direito. Pará: Cultura Brasil, 2018.
Marconi, M. A.; Lakatos, E. M. Fundamentos de Metodologia Científica (5ª ed.). São
Paulo: Atlas, 2002.
MARX, K. Capítulo VI Inédito de o Capital. São Paulo: Moraes Fontes, 1985.
SANTOS, B. et al. Indústria 4.0: desafios e oportunidades. Revista Produção e
Desenvolvimento, 4, (1), 2018. 11-114.
SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. Edipro,
2016.
SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precário. Tradução: João Peres. São Paulo:
Editora Elefante, 2017.
SENNETT, R. Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Record. 2015.

482
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 1 - TRABALHO DIGITAL, MERCADOS E PRECARIZAÇÃO

O SILÍCIO NO PAÍS DAS MARAVILHAS E O IMPACTO DO


CAPITALISMO DIGITAL NA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
CONTEMPORÂNEO

Gustavo Leonardo Barreto Silva256


Mateus Gomes de Barros257

A ilusão de que a internet e as demais tecnologias digitais poderiam proporcionar um


mundo melhor em que levaria ao fortalecimento das democracias com ampla participação
cidadã, à superação das desigualdades sociais e do capitalismo, não passou de um conto de
fadas. Chamamos, então, ‘O Silício no País das Maravilhas’ o discurso acrítico e fictício que
as grandes corporações digitais - vindas principalmente no Vale do Silício, na Califórnia -
utilizam como verdades absolutas sobre seu impacto positivo no mundo e o ideário de
neutralidade e objetividade de suas plataformas e tecnologias.
Podemos citar promessas de algumas plataformas a partir da apresentação das suas
missões e valores para fazer um contraste posterior entre o que é dito e o que se concretiza.
Por exemplo, de acordo com Mark Zuckerberg, o objetivo do Facebook é conectar pessoas,
criando um mundo mais transparente. Já a Uber tem como objetivo trabalhar para melhorar a
mobilidade das pessoas em todo o mundo. O Ifood, por sua parte, tem entre seus valores a
facilidade, a privacidade e o respeito com seus parceiros (entregadores). No entanto, com base
em Santos (2021) e Antunes (2021), a internet e essas grandes plataformas digitais estão se
transformando no instrumento central do capitalismo. Através da expansão informacional-
digital, as empresas sob o comando do capital financeiro vêm impondo ainda mais a
terceirização, a informalidade e a flexibilidade às relações de trabalho.
Todos os processos de transformações no modo de produção capitalista e nas
consequentes mudanças nas relações trabalhistas estão associados à introdução de novas
tecnologias. Essa movimentação tem como objetivo a obtenção de maior eficiência na
produção e geração progressiva de maiores lucros e extração de mais-valia. Assim foi com a

256
Graduando em Ciências Sociais, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ogustavobarreto@gmail.com.
257
Graduando em Ciências Sociais, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mateus.gomesbarros@ufpe.br.
483
máquina a vapor, com a eletricidade, com os computadores etc. A diferença atualmente, com
a integração das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) cada vez maior, é o fato
de mesmo o capitalismo continuar baseado na extração de mais-valia, não está limitado ao
interior da fábrica, pois é imaterial também.
Entendemos, portanto, o Capitalismo Digital como o estágio econômico atual do
modelo capitalista neoliberal, agora mais profundo e perigoso para as democracias. O qual se
dá pela incorporação de TICs com a finalidade de extração de mais-valia de processos
materiais e imateriais. Nesse modelo todas as experiências humanas são precificadas e sujeitas
a exploração, principalmente o trabalho. Nesse sistema, as plataformas digitais têm lugar
central e atuam em cadeia global, contribuindo no aprofundamento das desigualdades sociais.
De acordo com Grohmann (2021, p. 96), “as plataformas não atuam sozinhas, mas dependem
de uma imbricação de algoritmos e dados, ligados à financeirização e à racionalidade
neoliberal”. Em suma, “o capitalismo digital se expandiu com a internet e foi embalado pelo
ordenamento neoliberal do planeta” (AMADEU, 2021, p. 20)
Segundo Grohmann (2021), o ideário algorítmico de neutralidade e objetividade
corresponde à ideologia neoliberal de empreendedorismo a partir do momento que a sensação
de autonomia e liberdade é intensificada no trabalhador, por não possuir uma pessoa como
chefe, mas sim um “sistema” ou um “aplicativo”. Esse tipo de pensamento legitima a ilusão
do “empreendedor de si mesmo”, o qual acha que é seu próprio chefe, porém seu trabalho é
explorado por terceiros - geralmente, grandes corporações financeiras e plataformas digitais -
e não por ele (o trabalhador). Em outras palavras, “ao tentar sobreviver, o ‘empreendedor’ se
imagina como proprietário de si mesmo, mas frequentemente se converte em um proletário de
si próprio” (ANTUNES, 2021, p.16).
O caso da plataforma da Uber é pontual quando abordamos a exploração do trabalho
que existe por trás da fantasia da “autonomia”, uma vez que “trabalhadoras e trabalhadores
com seus automóveis arcam com despesas de seguros, gastos de manutenção de seus carros,
alimentação, limpeza etc., enquanto o “aplicativo” se apropria do mais-valor gerado pelo
sobretrabalho do motorista” (ANTUNES, 2021, p.16). Por exemplo, um motofretista que
trabalha com entregas por aplicativo tem que arcar com os custos da sua moto (manutenção,
combustível, seguro, limpeza) e do seu trabalho (alimentação, saúde, segurança) e uma grande
parcela de todas as entregas que faz fica com a plataforma.
484
Normalmente o indivíduo não possui folga ou descanso do trabalho como motorista ou
motofretista por aplicativo. Pois se folgar, não trabalha e se não trabalha, não ganha, já que a
plataforma paga apenas pelo serviço prestado. Colocando, assim, o trabalhador em posição de
espera durante longas jornadas diárias de trabalho, contexto esse que dá origem ao termo just-
in-time, que Abílio (2020, p. 117) define como “estar disponível para ser imediatamente
utilizado”. Isso, além de provocar consequências graves à saúde do trabalhador, gera uma
perspectiva de insegurança financeira e social, ou seja, torna a atividade precária.
Portanto, de acordo com Abílio (2020, p .116),

(...) a ausência de qualquer garantia ou obrigação por parte das empresas quanto à
remuneração e à carga de trabalho oferecida vem obrigando o trabalhador a exercer
jornadas extensas, a abolir dias de descanso, além de ter de aderir a mais de uma
empresa-aplicativo para poder garantir sua remuneração – ao passo que o poder de
definir o valor da remuneração, a distribuição do trabalho, as regras e critérios de
distribuição e remuneração é de total propriedade das empresas.

Esse processo ao qual Abílio (2020) nomeia de uberização leva à troca dos direitos
trabalhistas pela fantasia da “autonomia” do trabalhador. Essas grandes plataformas, como
Uber, Ifood, 99, sequer oferecem um contrato para formalizar a relação com os entregadores.
O que existe é um eventual cadastro, em que os motoristas e motofretistas registram seus
dados pessoais, confirmam as regras colocadas pela plataforma e aguardam a avaliação até
poder começar a fazer suas viagens. Elas (as plataformas) afirmam juridicamente que são
mediadoras entre o usuário, o entregar e o fornecedor e que não há relação trabalhista oficial,
mas nitidamente são responsáveis pela exploração dos seus trabalhadores.
É pensando na flexibilização e na precarização do trabalho que nos deparamos com a
eliminação dos freios legais que inibem a exploração do trabalho, o que envolve a
transferência de custos e riscos ao trabalhador por parte da plataforma digital. Desta maneira,

Sem relações contratuais trabalhistas e com gigantescos aportes de capitais obtidos


de investidores dos países ricos, o Uber tenta expandir seu modelo neoliberal de
converter trabalhadores em empresas de um único dono que é, concomitantemente,
seu único funcionário. Assim, o capitalismo dirigido pela doutrina neoliberal
encontra seu melhor modelo, o trabalhador precarizado e chamado de empreendedor
de si (AMADEU, 2021, p. 22).

Com o advento da pandemia da Covid-19, tornou-se comum encontrarmos a crescente


procura pelo tipo de trabalho just-in-time, uma vez que as necessidades atreladas ao contexto
de isolamento social transformaram a função dos entregadores (motoboys e ciclistas) em uma
485
profissão essencial (SANTOS, 2021, p.111). E, em alguns casos, passou a ser a única
possibilidade de renda para chefes de famílias e desempregados, já que o Governo Federal
não se comprometeu com o enfrentamento da pandemia e em oferecer uma renda básica para
as famílias brasileiras. Só depois de alguns meses, o Congresso chegou a aprovar o Auxílio
Emergencial.
Outro fator que temos de colocar é a ‘Indústria 4.0’, lançada na Alemanha em 2011, é
uma estratégia de salto tecnológico no mundo do trabalho produtivo. Esse novo projeto
planeja automatizar o trabalho, e a consequência disso será a ampliação do trabalho “morto”
feito por máquinas e não mais por pessoas (Antunes, 2018, p.14). Ou seja, essa automação do
trabalho ao mesmo tempo que se moderniza, exige uma nova mão-de-obra qualificada. Algo
que não é fácil de encontrar em um país com uma educação precarizada. Esse pode ser um
fator atenuador para gerar desigualdade, pois poucas pessoas conseguirão acompanhar o
movimento de modernização do mercado, o que certamente excluirá vários trabalhadores no
mapa de empregos.
Contudo, Castells (2000, p. 284) afirma que a relação entre entre a difusão das TICs e
a evolução dos níveis de emprego na economia “varia entre empresas, indústrias, setores,
regiões e países em função de competitividade, estratégias empresariais, políticas
governamentais, ambientais, ambientes institucionais e posição relativa no mercado global”.
Isso quer dizer, que em países às margens dos centros econômicos e do capitalismo digital,
aqueles do Sul Global, o impacto desse novo modelo econômico pode ser muito mais voraz.
Portanto, com base em tudo o que discutimos, há a necessidade urgente de
confrontar o modus operandi e as configurações da precarização do trabalho contemporâneas
do capitalismo digital e pensar alternativas para minimizar a exploração das relações
trabalhista e humana, pois a dignidade deve ser inerente ao ser humano e suas relações
sociais, dentre as quais está o trabalho.
Grohmann (2021, pp. 106-107) constrói três eixos de alternativas para o cenário
contemporâneo do trabalho mediado por plataformas digitais: 1) A regulação do trabalho nas
plataformas digitais, em que se buscaria regularizar os trabalhadores das plataformas (como
Ifood, Uber, 99) como empregados das corporações. Esse emprego também deveria ser
baseado de forma digna a partir de parâmetros internacionais, como a OIT (Organização
Internacional do Trabalho), salário e gestão transparente dos algoritmos; 2) Organização
486
coletiva dos trabalhadores, por meio de sindicalização e protestos e greves de cunho global
envolvendo as plataformas digitais; 3) Construção de outras lógicas de organização de
trabalho, como o cooperativismo de plataforma.
No entanto, algumas dessas alternativas podem ser enfraquecidas por cooptação e
reapropriação por parte dessas grandes corporações digitais. Como coloca Antunes (2021, p
.18), é um desafio enorme pensar como os trabalhadores poderão se contrapor à uberização,
ao individualismo, às falácias do “empreendedorismo” e a fantasia do “Silício no país da
maravilha” (adendo nosso) de modo solidário, orgânico e como classe.
Ao mesmo tempo que as formas de trabalho se modernizam, elas levam consigo novas
exigências que torna cada vez mais difícil o acesso ao emprego por parte dos trabalhadores e a
possibilidade de crítica solidária. Tal situação torna-se ainda pior quando pensamos no que
chamamos de “Indústria 4.0”, onde sequer podemos assegurar o trabalho humano. Podemos
identificar, também, que a oferta de empregos está baseada na posição econômica do país em
relação à cadeia global do capitalismo digital.
Por fim, por mais que tenha sido cristalizado o discurso de que as tecnologias digitais
e a internet iriam superar as desigualdades sociais, percebemos que instrumentalizadas pelo
modelo neoliberal de exploração e geração de riquezas, (as plataformas) apenas ampliaram as
desigualdades e precarizaram as relações trabalhistas, por meio da terceirização, flexibilização
e informalidade. Por outro lado, abrem-se brechas para que contranarrativas possam ser
geradas e novas lutas sociais possam ser desencadeadas pelos novos trabalhadores da era
digital.

Palavras-chaves: Capitalismo Digital. Uberização do Trabalho. Desigualdade.

REFERÊNCIAS

ABILIO, Ludmila. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estud. av., São Paulo,
v. 34, n. 98, p. 111-126, Apr. 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ea/a/VHXmNyKzQLzMyHbgcGMNNwv/?lang=pt#:~:text=Sintetica
mente%2C%20a%20an%C3%A1lise%20 neste%20artigo,um%20auto gerente%20
subordinado%20(Ab%C3%ADlio%2C%202019

AMADEU, Sérgio. Brasil, colônia digital. Revista IHU, 2020.


487
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PAULUS: Revista de Comunicação da FAPCOM. São Paulo, v. 5, n. 10, jul/dez. 2021.
Disponível em: https://fapcom.edu.br/revista/index.php/revista-paulus/article/view/480/440

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era


digital. 2 ed., São Paulo, Boitempo, 2018, coleção Mundo do Trabalho.

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In: Uberização, trabalho e Indústria 4.0. org ANTUNES, Ricardo. 1º ed. São Paulo:
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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In:


Uberização, trabalho e Indústria 4.0. org ANTUNES, Ricardo. 1º ed. São Paulo: Boitempo,
2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora. Da pandemia à utopia. São


Paulo: Boitempo, 2021.

488
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 2 - TRABALHOS E INTERSECCIONALIDADES NA AMAZÔNIA

“A COVID CHEGOU PELA COZINHEIRA”: OS DISCURSOS


RACISTAS SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE CORONAVÍRUS

Verena Pereira Reis258


Kelly Chaves Tavares259

O presente trabalho possui como objetivo debater a questão racial presente nos
discursos a respeito do trabalho doméstico no contexto da pandemia do vírus SARS-Cov19,
especificamente, no contexto do isolamento social que compreendeu os anos de 2020 a 2021,
isto é, a primeira fase do estado pandêmico. No Brasil, a experiência foi atravessada pela
desigualdade entre classes sociais e por discursos de racismo que vincularam as chances de
transmissão a um grupo social e racial específico, isto é, a população preta e empobrecida
socialmente e economicamente atuantes como trabalhadores domésticos.
Assim, diferentes discursos e agentes dos discursos, introduziram novos verbetes ao
vocabulário social. O principal deles foi o discurso médico-científico a identificar e conferir
significado ao vírus, sua origem, seus vetores, formas de transmissão, à terapêutica e demais
formas de combate à doença. Jargões da literatura médica e científica foram introduzidas no
cotidiano de todos os países e recantos do globo, atingidos pela disseminação do vírus.
Alves, Pimenta e Antunes (2021) escreveram reflexões sobre as cenas discursivas da
pandemia de Covid-19, especificamente, o impacto do discurso sobre o isolamento social na
imprensa.
Analisando o jornal O Globo, os três autores observaram os discursos produzidos a
respeito da experiência brasileira na realização do isolamento social. Os autores realizaram
busca no próprio jornal, em sua versão digital, ao termo “isolamento social”, concernente à
pandemia de Covid-19. A referida pesquisa evidenciou que além da expressão “isolamento
social”, a nomenclatura “distanciamento social”, que uma vez tomada como sinônima ao

258
Graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Pará. Pós-Graduanda a nível de Especialização
em Educação para Relações Etnicorraciais pelo Instituto Federal do Pará. Email: verena.reis01@outlook.com
259
Graduada em História, pela Universidade Federal do Pará. Mestra em História Social da Amazônia e Pós-
Doutoranda em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Email:
kelly.tavares@ifch.ufpa.br
489
primeiro termo, aparecem como dois vocábulos que possuem sentidos diferentes em seu uso na
imprensa7. Alves, Pimenta e Antunes (2021), assinalam que as discussões sobre medidas de
mitigação contra a pandemia já vinham sendo discutidas desde que o vírus foi detectado na
China, na cidade de Wuhan, e mostrou sua forte tendência a se proliferar. Surpreendeu os
autores, o fato de que nem “isolamento social” nem “distanciamento social” – locução que
buscamos somente num momento prévio da análise para efeito de contextualização –
tenham aparecido desde o início da epidemia naquele país, ou mesmo na sua chegada aos
países europeus.260

Ainda, no contexto da pandemia do novo coronavírus, se mostrou latente o racismo


na política do estado para lidar no combate ao vírus que afetou mais ferozmente a população
negra e pobre do país. De acordo com o levantamento de Gondim et al (2020), da Escola
Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, durante os primeiros meses da pandemia (05/04/2020
à 23/05/2020), o número de óbitos entre a população negra superou o de brancos, com a
letalidade de pessoas negras em 57%, contra 41% de pessoas brancas. O estado do Pará, em
junho de 2020, chegou a liderar o número de mortes de quilombolas. O projeto de morte
seguiu seu curso devido à demora em se concretizar uma política de vacinação. A ausência
de políticas eficientes contra o avanço do vírus, acarretou a proliferação e no surgimento de
novas variantes da Sars-Cov-2 (covid-19), aumentando os índices de letalidade da
população negra. O Estado do Pernambuco, por exemplo, durante a segunda onda (2021),
chegou a registrar o aumento de 72,7% de mortes de pessoas negras por covid-19 em
relação ao ano de 2020. Esses números escancaram as diferenças raciais e socioeconômicas
que, somadas aos altos índices de letalidade contra negros no Brasil, aprofundam as
disparidades e revelam a necropolítica do Estado(GONDIM et al, 2020).
Realizadas as considerações a respeito do impacto discursivo da pandemia do
coronavírus na imprensa escrita do jornal O Globo e dados epidemiológicos, encerremos por
aqui o impacto da pandemia na linguagem escrita. Passamos agora para os discursos oralizados
no cotidiano de pandemia, fruto das práticas cotidianas de transmissão, adoecimento,
tratamento hospitalar, cura e/ou óbito dos adoecidos.

260
Ibidem, p. 23.

490
Reiteramos nosso objetivo neste trabalho: identificar e relacionar os discursos de
teor racista verbalizados por diversos segmentos característicos por pertencerem às elites
econômicas do país, que atravessado pela desigualdade entre classes sociais, herdeira da estrutura
secular escravocrata, que não resolvidos após a abolição da escravatura, legou à sociedade
brasileira o atravessamento das diferenças sociais por discursos de racismo. Cabe
ressaltarmos que esses discursos das elites publicizados através de lives, entrevistas, tuítes,
publicações em redes sociais, que tornaram-se peculiares por acabarem vinculando como
vetores do contágio e portadores dos riscos de transmissão a um grupo social e racial
específico, isto é, a população preta e empobrecida socialmente e economicamente,
especificamente, os grupos profissionais atuantes na categoria profissional das
trabalhadoras e trabalhadores domésticos.
Denise Ferreira da Silva em seu celebre trabalho “A Dívida Impagável” (2021),
apresenta elementos importantes para pensarmos acerca dos discursos racistas, a autora
pontua tal discurso como anti-dialético, caracterizada por um discurso às avessas, uma
dialética racial que marca, nomeia e determina ditas verdades acerca do corpo negro.
Cotejando referido olhar com o trabalho de Judith Butler261, é a linguagem que
confere existência e validade a algo ou alguém. A linguagem inscreve "verdades", verdades
essas manipuláveis e que podem se tornar instrumentos de violência, construindo assim os
discursos de ódio.
Definidos como atos de fala, os discursos de ódio caracterizam-se como tipos de
fazer e agir que orientam condutas discriminatórias e sobretudo violentas. Na maioria das
vezes são falas aparentemente "sutis", comumente disfarçadas de "opinião particular", ou
seja, atos de falas naturalizados e incorporados à cultura do agente do ato (pessoa que fala)
(BUTLER, 2021).
Os discursos de ódio, atualmente, considerando o campo de linguagem das mídias
sociais, se proliferam em larga escala, no entanto apenas o Estado pode validar referidos
discursos como atos de ódio e discriminatórios (BUTLER, 2021). Dessa forma, os
agressores que utilizam narrativas de preconceito, racismo e demais violências costumam passar
incólumes aos olhos da lei.

261
BUTLER, Judith. Discurso de Ódio: uma política do performativo. São Paulo: Editora da Unesp, 2021.
491
São discursos que oprimem e submetem seus alvos à um “lugar”, que em sua
maioria é um “não-lugar”, o “não-lugar” dos que comungam com a sujeira fora dos portões
dos condomínios de luxo, o "não-lugar" dos que carregam uma marca (a cor), o “não-lugar”
dos considerados “sem valor” (AUGÉ, 2012).
Nesse sentido, a trabalhadora (o) doméstica (o) experimenta um não-lugar ainda
mais profundo. Herança direta do regime escravagista, essas profissionais vivenciam um
cotidianode dupla jornada e trabalho precarizado262.
Essa classe foi uma das que trabalhou durante a pandemia, poucas foram as que
tiveram o “privilégio” de serem liberadas do posto de trabalho para se resguardar da
pandemia em seus lares. Para as que tiveram que ir trabalhar, além de enfrentar a exposição
ao vírus, tiveram que lidar com acusação de vetores da Sars Cov-19. Em abril de 2021,
ápice da crise pandêmica no Brasil, Daniel Cady, esposo da cantora baiana Ivete Sangalo,
durante uma transmissão de vídeo ao vivo, via a rede social Instagram, culpabilizou a
cozinheira da família pela contaminação com a covid-19. As palavras de Cady, ditas no mês
de junho de 2021 a apresentadora de tv, Regina Casé, seguem abaixo:

“Todos nós pegamos covid aqui em casa, mas, graças a Deus foi deu tudo [sic] foi
só sintomas leves: M., eu, I., graças a Deus não teve nada [sic] assim tamos [sic]
meio que vacinados agora estamos com o cuidado redobrado, estamos isolados e
tal [sic] e já completou o período de isolamento e a gente tá mais tranquilo até pra
poder ir pra algum lugar, porque a gente ‘tava’ muito muito [sic] intocado
mesmo, e o covid chegou por uma funcionária, por uma cozinheira, então
assim, o que a gente pôde fazer a gente fez [sic] mas, esse lance de funcionário
passar uma semana aqui e folgar, ela acabou trazendo pra cá, mas está tudo
bem, então fica mais fácil pra gente se encontrar (...)”. [grifo nosso]263.

O ato de fala do “senhorzinho”, evidencia assim quem está no domínio, além de


conceder uma estrutura de significados e significações, constituindo-se em “sistemas de
verdade” (FOUCAULT apud SILVA, 2021) que localizam a culpabilizada enquanto um

262
Área de trabalho composta em sua maioria por mulheres negras, que ao chegar em casa continuarão sua
jornada de trabalho com os fazeres domésticos.
263
CADY, Daniel. Gado desafinado, marido de Ivete e padre reaça: piores vídeos do fim de semana.
[Entrevista concedida a] CASÉ, Regina Casé. Canal do Youtube Galãs Feios, São Paulo, junho, 2021, 06:47
min. a 07:37 min. [online]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QuuAMRF60vl. Acesso em:
03 jun. 2022.

492
sujeito sem direito. Ao direcionar a culpa, o autor da fala pontua seu direito de não ser
contaminado. Mas e o direito da trabalhadora de estar segura em casa?
Considerando o exposto, caracterizamos o referido discurso como discurso de ódio,
que evidencia também o racismo. A fala proferida soma-se a tantas outras, inclusive a
comumente utilizada “vírus chinês”, o “vírus dos que comem macaco”, entre outros.
Discursos que continuam produzindo efeitos e consequências diversos (perlocucionários).
Consequências que podem matar, os discursos também se inscrevem na memória e
conduta social. Um ano passou-se desde a morte de Miguel Otávio (junho de 2020), filho da
então empregada doméstica Mirtes Renata, o menino caiu do 9o andar de um prédio de luxo
em Recife/PE. A criança, de cinco anos de idade, estava aos cuidados da patroa de Mirtes,
Sari Corte Real, que permitiu que a criança saísse sozinha do apartamento para ir atrás da
mãe, que tinha ido levar o animal de estimação da família para passear.
Aí está a dívida impagável (SILVA, 2019), a lógica da exclusão e hierarquia racial e
social é fomentada por meios dos discursos/atos de fala performativos (BUTLER, 2021), a
dialética racial tão evidente ao mesmo tempo escamoteada pelo "ela é como se fosse da
família", falsa convivência harmoniosa racial, e regime histórico social assentado no
patriarcalismo senhorial, naturalizou discursos racistas e discriminatórios.
Linguagem é poder, a existência pode ser limitada no discurso, a linguagem controla
ações, fomenta exclusão, confere identidade e existência racial (BUTLER, 2021)

Palavras-chave: Discurso; Trabalho Doméstico; Pandemia; Racismo.

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493
BUTLER, Judith. Discurso de Ódio: uma política do performativo. São Paulo: Editora da
Unesp, 2021.

SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação
Política; Living Commons, 2019.

OLIVEIRA, Roberta Godim et. al (2020). Desigualdades raciais e a morte como


horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública,
2020; 36(9).

Fontes:

CADY, Daniel. Gado desafinado, marido de Ivete e padre reaça: piores vídeos do fim de
semana. [Entrevista concedida a] CASÉ, Regina Casé. Canal do Youtube Galãs Feios, São
Paulo, junho, 2021, 06:47 min. a 07:37 min. [online]. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QuuAMRF60vl. Acesso em: 03 jun. 2022.

494
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 3 - IMPACTOS E AGENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO E NO TRABALHO

AS METAMORFOSES DO TRABALHO DO PEDAGOGO: A


PARTIR DA RESOLUÇÃO CNE/CP N.º 2/2019

Kethlen Leite de Moura264


Camila Maria Bortot265

A mundialização do capital promoveu a gênese de um cenário mais competitivo e


individualizado no mundo do trabalho, organizando-se em eixos de flexibilidade e
polivalência (SILVA JÚNIOR, 2002), a partir dos anos de 1990. Nossa sociedade tem
presenciado profundas transformações econômicas, políticas, sociais, históricas e culturais,
trazendo novos desafios para a educação e a formação de professores. Nesse interim, novos
perfis profissionais e modelos de formação tem transitado na agenda globalmente estruturada
para a educação (DALE, 2004), com o propósito de constituir nos currículos de formação de
professores competências sociais, habilidades cognitivas e socioemocionais exigidas para o
exercício da docência (CATANI, 2001). Esse ideário requereu que o Ministério da Educação
e o Conselho Nacional de Educação em parceria com entidades privadas repensasse o perfil
profissional dos licenciandos em Pedagogia para atuar na Educação Básica.
A aproximação entre poder público e organizações privadas evidencia a gestão
corporativa da Educação Pública, em que “[...] grupos empresariais privados, não
exclusivamente do campo educacional, organizam-se em instâncias de governo ou a estas se
articulam, passando a definir políticas educacionais” (ADRIÃO; PERONI, 2018). A inserção
de conglomerados privados no campo das políticas educacionais, evidencia uma relação de
disputa pelo trato com o conhecimento a partir do momento que se define o que a escola irá
ensinar aos filhos da classe trabalhadora.
Dentro deste cenário, encontramos a Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de
2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores
para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de
Professores da Educação Básica (BNC-Formação) (BRASIL, 2019). Com a pandemia de
Covid-19, novas demandas e exigências passam a serem feitas aos profissionais da educação,

264
Doutora em Educação, Universidade Federal do Tocantins, klmoura@mail.uft.edu.br
265
Doutora em Educação, Universidade Federal do Paraná, camilabortot@hotmail.com
495
requisições em conformidade com a metamorfose do mundo do trabalho, como: abstração,
atenção, flexibilidade e polivalência; concordamos com Antunes (2018) ao retratar que a
pandemia escancarou as perversidades da combinação letal entre crise estrutural do
capitalismo e crise sociopolítica. A necessidade desta reflexão surge como objeto de estudo
sobre a precarização do trabalho do Pedagogo com a publicação e aprovação da Resolução
CNE/CP n.º 2/2019 (BNC-Formação): quais as implicações que este documento produz na
formação de Pedagogos, ao incorporar discursos advindos da ofensiva capitalista?
O método de análise utilizado na pesquisa em tela é o materialismo histórico, a
escolha deste resulta de um conjunto de atividades sistemáticas e racionais que concedem às
pesquisadoras apreender o movimento e as contradições sociais, econômicas e políticas acerca
da complexidade que envolve as transformações do perfil profissional do Pedagogo na
materialidade das relações sociais. Dessa forma, qualificamos a pesquisa como documental
devido as análises realizadas sobre o documento Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BNC-
Formação); a pesquisa documental permite apreender os acontecimentos no tempo-histórico,
possibilitando captar as evidências sem desvinculá-las dos contraditórios sociais a que estão
atrelados.
O documento retrata que a política de formação de professores para atuar na Educação
Básica, deve estar em consonância com os marcos regulatórios, em especial com a BNCC
(BRASIL, 2019). Vale destacar que a BNCC tem sido o carro-chefe das políticas
educacionais desenhadas pelo Ministério da Educação após o impeachement da Presidenta
Dilma Vana Roussef (2015-2016), impactando diretamente na constituição de políticas
educacionais curriculares e na formação de professores (AGUIAR; DOURADO, 2018).
Ao lermos o documento aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, BNC-
Formação, buscamos elementos que demonstrem a prevalência do capital na determinação de
políticas educativas e curriculares. Com efeito a BNC-Formação, ao definir diretrizes
curriculares para a formação inicial de professores utiliza as universidades e as escolas como
possibilidade ilusória para solucionar as contradições sociais e econômicas. De fato, e
principalmente em momentos de crise e com a eclosão do coronavírus, a aprovação de
políticas educacionais curriculares aparecem com argumentos ideológicos para tentar “[...]
formar massa de jovens trabalhadores num espírito menos reivindicativo e consciente dos
seus direitos e, de outro, colocar a tônica na mudança das mentalidades e na necessidade de
496
aumento de qualificação acadêmica e formação profissional [...] como suposto remédio para
as dificuldades de lucratividade do capital” (AGUIAR, 2010, p. 13).
O aparelhamento das políticas educacionais curriculares com a agenda estruturada do
capital busca formar força de trabalho disponível e flexível, imprimindo nos currículos das
Licenciaturas, aqui, especificamente da Pedagogia, um condicionamento ideológico e cultural.
Ao formar Pedagogos mais individualizados e competitivos, que aceitem as condições de
trabalho absurdamente precárias; haja vista que a Reforma Trabalhista – Lei n.º 13.467, de 13
de julho de 2017, que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi aprovada no
sentido de deixar o emprego formal cada vez mais flexibilizado em direitos, resultando na
vulnerabilidade da classe trabalhadora em meio às crises econômicas e agora, também,
sanitárias.
Ao analisarmos a Resolução n.º 2/2019 (BNC-Formação) encontramos categorias-
chave que demonstram a articulação com uma agenda devastadora que o capitalismo tem
praticado em relação a classe trabalhadora por meio da Educação. Adiantamos que, não se
trata de analisar essa política educacional para a formação de professores apenas como um
mecanismo que coopta a subjetividade dos/as filhos/as da classe trabalhadora via capital, mas
revela os processos pelos quais o capitalismo incorpora elementos-chave do saber no
currículo escolar, já que este é território de disputa, logo a Educação torna-se mercadoria
portadora de valor, de mais-valia (AGUIAR, 2010).
Os elementos-chave elencados ao longo da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BNC-
Formação) são: engajamento, emocional, equidade, valores, atitudes, valor social à escola,
protagonismo, metodologia inovadora, flexibilização curricular, itinerários formativos,
projeto de vida e resolução de problemas cotidiano (BRASIL, 2019); estes são alguns das
substâncias que compõe o universo trágico e perverso da sociedade capitalista. De todos, o
que nos chama mais a atenção é o elemento-chave Projeto de Vida, tal categoria tem sido
apresentada na política educacional curricular BNCC desde a Educação Básica até o Ensino
Superior; defendendo um discurso neoliberal de Projeto de Vida fundamentado na
responsabilização do indivíduo. A situação é ainda mais grave, quando passa a delegar para as
Universidades a construção de Itinerários Formativos que visem oferecer aos acadêmicos
habilidades cognitivas e competências socioemocionais para lidar com os problemas
cotidianos que assolam a profissão.
497
A tônica da categoria Projeto de Vida tem por objetivo de agir sobre a formação
desses futuros pedagogos/as influenciando na constituição de sujeitos que sejam líderes,
principalmente, ao estimular via Itinerários Formativos para um Projeto de Vida
empreendedor. Assim, a BNC-Formação autonomiza o poder do capital, por meio da
Universidade, do Currículo e da formação do futuro profissional de Pedagogia, orquestrando a
Resolução n.º 2/2019 como a base formadora do pensamento do indivíduo trabalhador para
que ele esteja comprometido com a produção de mercadorias, responda isoladamente aos
constrangimentos evocados pela dinâmica capitalista e coopere para o modus operandi das
relações de força e de desigualdades existentes.
Evidenciamos, a partir destes elementos uma nova morfologia do trabalho do
Pedagogo e sua atuação no processo de ensino-aprendizagem e gestão da escola;
expropriando do futuro profissional de Pedagogia o intelecto do trabalho imaterial. Quanto
mais o currículo sofre pressões de setores empresariais, mais vemos o avanço do receituário
formativo para a Pedagogia imposto pelo capital financeiro se esparramando nessa pragmática
ideologia de Projeto de Vida que tem se convertido em mecanismo estratégico para dissimular
as relações entre capital e trabalho.

Palavras-chaves: Mundo do Trabalho. Formação de Professores. Pedagogia. BNC-Formação.

REFERÊNCIAS

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negócios? In: AGUIAR, Márcia Ângela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes. (Orgs.). A
BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Recife: ANPAE, 2018.
p. 49-54.
AGUIAR, João Valente. Prefácio: educação mutilada e vulnerabilidade laboral na sociedade
contemporânea. In: SOUZA, José dos Santos; ARAÚJO, Renan. Trabalho, educação e
sociabilidade. Maringá: Práxis e Massoni, 2010. p. 11-14.
AGUIAR, Márcia Ângela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes. Apresentação. In: AGUIAR,
Márcia Ângela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes. (Orgs.). A BNCC na contramão do
PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Recife: ANPAE, 2018. p. 7-8.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era
digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

498
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Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base
Nacional Comum para a Formação Inciial de Professores da Educação Básica. Brasília:
MEC, 2019. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=135951-
rcp002-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192. Acesso: jul. 2022.
CATANI, A. M. et al. Política educacional, mudanças no mundo do trabalho e reforma
curricular dos cursos de graduação no Brasil. Educação e Sociedade. v. 22, n. 75,
Campinas, 2001.
DALE, Roger. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura
Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para
a Educação”?. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago.
2004.
SILVA JR., J. dos R. Tendências do ensino superior diante da atual reestruturação do
processo produtivo no Brasil. São Paulo: [s.n.], 2002.

499
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 3 - IMPACTOS E AGENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO E NO TRABALHO

O LOCKDOWN EM BELÉM: A INVIABILIZAÇÃO DO


TRABALHO, DIMINUIÇÃO DE RENDA E CONSUMO DE
TRABALHADORES INFORMAIS E FORMAIS DOS SERVIÇOS NÃO
ESSENCIAIS

Raiane Roberta Cavalcante Pereira266


Tayane da Silva Launé267
Nelissa Peralta Bezerra 268

Frente à pandemia do coronavírus nos anos de 2020 e 2021, diversos setores sofreram
impactos gigantescos. Para evitar a transmissão no auge da pandemia, muitos gestores
públicos decretaram estado de lockdown. Essa palavra - lockdown - é, segundo Aquino
(2020), oriunda da língua inglesa e significa bloqueio, caracterizando-se pelo formato extremo
de distanciamento social: contenção de saídas e passeios, exceto para os serviços considerados
essenciais durante a pandemia, como aquisição de suprimentos e ida a serviços de urgência.
Em Belém, o governo do Estado, através da plataforma da PGE.PA, divulgou uma cartilha
explicando o que é o lockdown e quais serviços estariam proibidos e permitidos no período de
7 dias, iniciando em 15 de março de 2021, sendo posteriormente prolongado por mais uma
semana.
Para Ximenes e colaboradores (2021), as crises sanitária, política e econômica se
foram enfrentadas de maneira equivocada, sobretudo no que diz respeito à não adesão das
recomendações da Organização Mundial da Saúde e o não reconhecimento da pandemia
mesmo tendo em vista as experiências dos outros países, o que, de maneira geral, dificultou o
enfrentamento da pandemia no Brasil. Ainda para Ximenes, (2021):
“Sabe-se também, que a efetivação das medidas de distanciamento social requer a
adoção concomitante de políticas, da alçada do governo federal, de proteção social
aos segmentos mais vulneráveis; medidas imprescindíveis em razão da desigualdade
social e da pobreza, e do amplo contingente da população (41,3%) inserido no
mercado informal de trabalho e submetido às precárias condições de moradia”
(XIMENES et al, 2021, p. 1442)

266
Graduanda do curso de Ciências Sociais, UFPA, raiane.pereira@ifch.ufpa.br
267
Graduanda do curso de Ciências Sociais, UFPA, tayane.laune@ifch.ufpa.br
268
Professora da Faculdade de Ciências Sociais, UFPA, nelissapb@ufpa.br
500
Além disso, no trabalho de Isaac (2020) são abordados outros desafios enfrentados
pelos trabalhadores na pandemia, sobretudo devido às perdas de emprego, diminuição de
renda e, não menos importante, os riscos da COVID.
Partindo desse pressuposto, a escolha do tema surgiu da necessidade de fazer um
estudo sociológico acerca dos impactos que a medida extrema de isolamento social causou
aos trabalhadores da cidade de Belém. A pesquisa em questão se justifica para entendermos os
efeitos de tais medidas no cenário socioeconômico que o Brasil atravessou nos anos de 2020 e
2021, considerando esse contexto de pandemia do novo coronavírus e fechamento de serviços
considerados não essenciais como forma de conter os avanços da doença no estado do Pará.
A pesquisa é de cunho correlacional, visamos compreender como o lockdown afetou,
ou não, o consumo por parte dos trabalhadores formais e informais devido à queda de renda
proveniente do fechamento de serviços não essenciais na cidade de Belém.
De acordo com dados da SECON (2019), a população de trabalhadores formais e
informais de Belém totaliza 666.000 indivíduos. Entretanto, a amostra foi obtida por meio de
uma amostragem não aleatória por conveniência, obtida por formulário Google com um
questionário auto aplicado e estruturado com perguntas fechadas. A amostra final foi de 48
trabalhadores, sendo 24 formais e 24 informais, que representa 0,0072% da população total de
trabalhadores estimada pela SECON.
O formulário foi dividido em duas categorias com perguntas exclusivas para
trabalhadores formais e para informais, finalizando com perguntas gerais sobre consumo.
Foram recebidas 48 respostas para uma amostra de trabalhadores formais e informais. Desses
48 respondentes, 50% (24 respostas) estão no setor formal, que possuem registro da carteira
de trabalho (DUARTE; CIRINO; SETTE, 2018) e 50% (24 respondentes) no setor informal,
não possuem o registro da carteira de trabalho e não recebem os benefícios da formalidade
(DUARTE; ClRINO; SETTE, 2018). Na amostra os respondentes possuem idades entre 18 e
50 anos, sendo maior parte do gênero feminino, contabilizando 62,5%, enquanto o gênero
masculino totalizou 37,5% dos entrevistados; concomitante aos setores apresentados, as
atividades exercidas somaram 38 respostas diversas categorizando a maioria em um
percentual de 6,52% de vendedores, 6,25% em serviços gerais e 6,25% como auxiliares
administrativos. Além disso, foram categorizados 22 bairros com a maioria residentes do

501
bairro da Pedreira, totalizando 6 pessoas (12.5%). Já quanto à jornada de trabalho, as
estatísticas descritivas apresentaram uma média de 7,08 horas da contagem geral.
No grupo dos trabalhadores formais, foi constatado que antes do lockdown, de 100%
da amostra, 58% recebiam, em média, R$2.200. Por outro lado, de 100% da amostra, 52%
passou a receber apenas R$1.100 durante o lockdown. Isto é, houve uma queda de 50% no
valor da renda desta categoria.
Outrossim, 62,5% dos entrevistados da categoria de trabalho formal expuseram que
tiveram o serviço fechado durante o lockdown. Entretanto, desse percentual, 54,17%
responderam que não obtiveram desconto salarial.
Já para trabalhadores informais da amostra, foi constatado uma queda de renda
também em 50%: antes do lockdown 33% recebiam um valor de R$1.100, enquanto durante o
fechamento, este valor caiu para R$550 com uma porcentagem de 46% dos trabalhadores
recebendo esse valor, com uma diferença de 13 pontos percentuais (pp) entre os trabalhadores
informais, antes e durante o fechamento. Ademais, quando perguntados acerca das
dificuldades enfrentadas por ser da categoria de trabalho informal, 62,5% dos entrevistados
afirmaram que o lockdown dificultou muito de realizar seu trabalho, 25% dificultaram pouco
e 12,5% não dificultou. Com isso, dentre os que afirmaram que o lockdown dificultou de
alguma maneira, 9 respostas foram positivas para impedidos de trabalhar, 4 tiveram seu tempo
de trabalho reduzido, 11 afirmaram queda no consumo do produto e 1 pessoa marcou "Outro".
Em relação às perguntas acerca do consumo antes e durante o lockdown, livres para
ambas as categorias responderem, observou-se que antes do decreto a maior parte, 29,17% do
total da amostra, gastava no mercado uma faixa de R$200 a R$300, enquanto a menor parte
desses trabalhadores, um percentual de 2,08%, consumia menos de R$100. Posteriormente,
durante o lockdown, 29,17% mantiveram seu gasto na faixa de R$200 a R$300, sem
diferenças percentuais, porém houve um aumento na faixa de menos de R$100 totalizando
6,25% que passou a consumir este valor, diferença de 4 pontos percentuais. Além disso, o que
antes totalizava 16,67% na faixa acima de R$500 passou para 22,92% dos respondentes
apresentando uma diferença de 6 pontos percentuais (pp).
Subsequentemente ao consumo, foi perguntado a todos os respondentes da amostra
quais as dificuldades econômicas que eles enfrentaram durante o decreto de lockdown. Nas
respostas verificou-se que 6% trabalhadores deixou de comprar gás quando foi preciso,
502
seguidos de 44% que deixaram de comprar carne e outras proteínas, 19% que não tiveram
dinheiro para transporte, 56% afirmaram atraso para pagar as contas mensais, 17%
enfrentaram dificuldade no aluguel e 58%, a maior parte, deixou de gastar com atividade de
lazer. Em seguida, foram questionados se faltou dinheiro para a alimentação do dia-a-dia,
onde 52,08% afirmaram que nunca faltou, enquanto para apenas 2,08% faltou sempre. De
acordo com dados da SERASA (2021), após um ano de pandemia no Brasil, de cada 10
trabalhadores, 4 deles afirmam ter queda na renda média, enquanto metade afirma aumento
nos gastos (PORTAL G1, 2021). Para Ornelas (2021), o primeiro momento da pandemia no
país levou a uma retração da economia nacional, o que ocasionaria a redução de emprego,
renda e consumo, exceto ao que diz respeito aos alimentos básicos, produtos de higiene e
limpeza. Já para Isaac (2020) é possível ver a queda de renda e de consumo não somente no
Brasil, mas no mundo, o que leva ao dilema de obter sua renda necessária para sobrevivência
ou correr o risco de contaminação ao sair para trabalhar. No setor informal, explica Isaac
(2020), as dificuldades são maiores, haja vista que essa categoria é a mais vulnerável aos
efeitos de crises econômicas, o que pode ser comprovado pelos trabalhadores da amostra.
Por fim, a última questão abordou acerca da taxa de satisfação dos trabalhadores
formais e informais quanto às políticas adotadas dentro do decreto do lockdown em Belém e
mostrou que a política 5 (obrigatoriedade do uso de máscara) foi a mais aprovada com uma
média de 4,8 pontos de nível de satisfação, em contraponto à política 2 (auxilio emergencial
estadual) a menos aprovada com uma média de apenas 2 pontos do nível de satisfação.
Para Isaac (2020) os riscos da Covid, perdas de emprego e queda de renda foram
desafios presentes constantemente na rotina de trabalhadores na pandemia. Seguindo esse
raciocínio, o presente trabalho buscou analisar os impactos do lockdown em Belém quanto à
renda e consumo de trabalhadores formais e informais do município. A partir de 48
entrevistas, ficou evidente que as dificuldades enfrentadas na jornada de trabalho desses
indivíduos são a diminuição do rendimento salarial e dos gastos no mercado. Os informais são
os mais afetados, pois além de impedidos de trabalhar, a diminuição do consumo afeta
diretamente a quem vende, o que é uma realidade aparente nos informais da amostra. Mas os
formais não ficam atrás: com diversos serviços fechados, os descontos salariais também
aconteceram, mesmo em uma porcentagem menor dos que não tiveram esse desconto. E
apesar de haver políticas para embate a esses desafios, como auxílios do governo federal e do
503
estado, a aprovação popular não aponta bons níveis, seja o auxílio emergencial ou as próprias
medidas de distanciamento social, já que apenas o uso de máscara aponta bons resultados.
Como indica Muniz et al (2020), no Ceará houve uma considerável queda no
rendimento dos cearenses, o que causou dificuldades ao comércio e setor de serviços do
estado. Em Belém, esse fenômeno se deu ao passo que os entrevistados relataram diminuição
de gastos em atividades de lazer, compras de carne e gás, além de afetar no pagamento de
contas, como água, luz e aluguel, impactando na área de serviços. Mas para os gastos básicos
de mercado, como higiene e alimentação, apesar de haver aumento na faixa acima de R$500
reais, a maioria estava consumindo valores abaixo de R$500 e essa queda pode ser explicada
pela redução de renda, seja dos informais impedidos de trabalhar ou dos formais com
descontos nos rendimentos finais.
Portanto, conclui-se que o lockdown pode ser uma ótima alternativa para a saúde
pública (DE SOUZA, 2020), mas os danos no setor comercial são evidentes. Caberia, então,
desenvolver políticas de enfrentamento que apoiassem os trabalhadores em geral, com os
mínimos impactos possíveis. Por fim, cabe perguntar o que causou, em contrapartida, um
certo percentual de aumento de gastos, que seriam os valores cada vez mais altos dos
produtos? Fica a lacuna da pesquisa para possíveis amostragens futuras.

Palavras-chaves: lockdown, consumo, renda.

REFERÊNCIAS

4 em cada 10 brasileiros apontam queda na renda, e metade teve aumento de gastos, mostra
pesquisa da Serasa. Portal G1. 15 abril. 2021. Disponível em:
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Após um ano de pandemia, pesquisa da Serasa revela os impactos no bolso do brasileiro.


Portal Uol, 14 abr. 2021. Disponível
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504
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CLASSIFICACÃO DE POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTOA COVID-19. 2020.

DUARTE, Leandro Batista; CIRINO, Jader Fernandes; SETTE, Ana Beatriz Pereira.
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região metropolitana de Belém. Revista de Estudos Sociais, v. 20, n. 40, p. 42-59, 2018

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informal. Caderno de Administração, v. 28, n. Edição E, p. 66-70, 2020.

MUNIZ, Alexsandra Maria Vieira; DA SILVA, José Borzacchiello; FERNANDES, Jefferson


Santos. Impactos da Covid-19 no mercado de trabalho metropolitano de Fortaleza no
contexto de inflexão neoliberal. Revista da Casa da Geografia de Sobral (RCGS), v. 22, n. 3,
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ORNELAS, Eduardo Brandão. A teoria keynesiana, o Brasil e a narrativa “economia


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Trabalho – Cresce o número de ocupação no mercado de trabalho em Belém. Portal Secon.05


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XIMENES, Ricardo Arraes de Alencar et al. Covid-19 no nordeste do Brasil: entre o


lockdown e o relaxamento das medidas de distanciamento social. Ciência & Saúde Coletiva,
v. 26, p. 1441-1456, 2021.

505
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 3 - IMPACTOS E AGENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO E NO TRABALHO

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, EMPREENDEDORISMO E MERCADO


DE TRABALHO

Aldo Vieira Ribeiro269

O desenvolvimento científico e tecnológico do último quartel do século XX


possibilitou avanço na economia de mercado, reestruturação no processo produtivo, inovação
na prestação de serviços, inauguração da nova lógica de acumulação do capital nas sociedades
capitalistas industrializadas com impactos diretos na ordem econômica, política, social,
cultural e no mercado de trabalho. O período assinalado corresponde à passagem do rígido
regime de acumulação fordista/taylorista (em crise) para o novo padrão de produção, de
regulação social, econômica e política denominado acumulação flexível (HARVEY, 2007).
O regime de acumulação flexível opera sob uma lógica nova: a da globalização. No
que se refere aos impactos no mercado de trabalho, essa lógica pode ser descrita, em síntese,
como a extensão da presença das multinacionais em regiões geográficas e econômicas que
oferecem uma força de trabalho com salários baixos e menos dispêndios com benefícios
sociais sendo, portanto, mais vantajosas em termos de lucratividade (SANTANA;
RAMALHO, 2004). São marcas desse novo capitalismo: flexibilidade no gerenciamento;
descentralização e organização das empresas em rede; enfraquecimento do movimento de
organização dos trabalhadores; individualização e diversificação das relações de trabalho;
desmonte do estado de bem-estar social; aumento da concorrência global entre distintos
cenários geográficos e culturais; fortalecimento do capital via desregulamentação dos
mercados; e expansão do capital para regiões onde opções de lucro são mais vantajosas
(CASTELLS, 1999).
O Toyotismo ou “modelo japonês” de produção, considerado estágio atual do
paradigma da acumulação flexível (ALVES, G. 2007), produziu (e vem produzindo) intensas
transformações no mundo do trabalho: a) “enxugamento” das grandes empresas em razão do
cenário globalizado (abertura de mercados e forte competição internacional) e grande

269
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará
(PPGSA/UFPA), Mestre em Sociologia (PPGS/UFPI). E-mail: dr.aldoribeiro@gmail.com
506
exigência de aumentos na produtividade e na qualidade do que é produzido; b) transferência
de parte do processo produtivo (atividades fora do foco principal da empresa) para empresas
subcontratadas (terceirização, quarteirização, etc.) atuando em rede (empresa em rede); c)
desemprego estrutural na indústria e no setor de serviços, precarização das relações de
trabalho e aumento da informalidade em razão da redução dos postos de trabalho; d)
desmonte do estado de bem-estar Social (nos países em que esse sistema existia) em razão do
fortalecimento do neoliberalismo; e) enfraquecimento dos sindicatos em razão da
heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora, bem como, pelo
uso de formas de gestão que enfatizam a participação dos trabalhadores (o trabalhador
“colaborador”) e desestimulam a sindicalização; f) “maior autonomia” ao trabalhador que
passa a ter visão de conjunto da atividade produtiva, reunindo concepção e execução em um
único processo, decorrendo desse aspecto o discurso de exigência de maior qualificação para
os trabalhadores, dos quais se passa a exigir um novo perfil polivalente/flexível baseado no
modelo da competência, cujo desenvolvimento deve reunir além de conhecimentos objetivos
e formais, habilidades cognitivas e comportamentais capazes de promover aumento de
produtividade e qualidade em meio aos imprevistos da produção flexível; e g) surgimento da
tese do fim da centralidade da categoria trabalho anunciada por vários estudiosos.
Em meio ao conjunto de transformações no mundo do trabalho decorrentes do regime
de acumulação flexível, o presente estudo, resultado de pesquisas realizadas no âmbito do
Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Piauí (UFPI),
no ano de 2018, partiu do seguinte problema: como ocorre a inserção dos egressos dos cursos
técnicos concomitantes/subsequentes em Administração e Vestuário do Instituto Federal do
Piauí - IFPI/Campus Piripiri no mercado de trabalho? O objetivo geral do presente estudo
consistiu em analisar a inserção dos egressos das primeiras turmas dos cursos Técnicos
Concomitantes/Subsequentes em Administração e Vestuário do IFPI/Campus Piripiri no
mercado de trabalho local (MTL) à luz das transformações ocorridas no mundo do trabalho a
partir da reestruturação produtiva de 1970, vislumbrando como eles transitam em meio a
seletividade excludente do mercado de trabalho e lidam com o discurso hegemônico que exige
dos trabalhadores em geral a constante necessidade de qualificação profissional para
manutenção dos seus postos de trabalho.

507
Para efeito de delimitação do objeto de pesquisa, realizamos um recorte cronológico
analítico: a formação dos egressos das duas primeiras turmas dos cursos técnicos
Concomitante/subsequentes em Administração e Vestuário do IFPI/Campus Piripiri que
concluíram seus cursos entre 2011 e 2014. Optou-se por esta população porque entre 2014
(último ano do intervalo de tempo de conclusão do curso pelos egressos) e 2018 há um lapso
temporal razoável de 4 (quatro) anos para ingresso desses egressos no mercado de trabalho,
justificando-se, nesses termos, a opção pela população indicada. Para realização da pesquisa,
partiu-se de alguns pressupostos (RUDIO, 2015), dentre estes, o de que o IFPI/Campus
Piripiri contribui para formação de egressos com visão empreendedora que resulta na criação
do próprio negócio (empreendimento). É esse aspecto (empreendedorismo) do estudo
realizado que passa a ser evidenciado nesta comunicação acadêmica.
O desenho metodológico incluiu pesquisa bibliográfica, documental e de campo. A
coleta de informações realizou-se mediante a realização de um estudo exploratório prévio,
aplicação de questionário eletrônico e realização de entrevistas semiestruturadas. A
construção e interpretação dos dados ocorreu à luz da abordagem qualitativa com amparo no
método dialético (MINAYO, 1994). No tratamento dos dados utilizou-se a técnica de Análise
de Conteúdo proposta por Bardin (2002) compreendida como o conjunto de técnicas de
análise sistemática e objetiva do conteúdo das mensagens a fim de obter indicadores
(quantitativos ou não) que possibilitem a inferência de conhecimentos relativos a essas
mensagens em termos de produção/recepção, a partir da qual o pesquisador construiu uma
grelha de análise dos dados qualitativos, relacionando categorias centrais e periféricas do
estudo.
Em concomitância com a pesquisa bibliográfica que reuniu um conjunto
interdisciplinar de autores (ALVES G, 1999; 2007; ANTUNES, 1999; 2005; 2015;
FRIGOTTO, 2005; 2010; RAMOS M., 2002; KUENZER; 1997; 2007; 2011; 2016;
MANFREDI, 2017; SAVIANI, 2007, entre outros) que tomam a categoria trabalho como
referência analítica de suas produções, realizou-se um levantamento de informações nos
setores de Controle Acadêmico e Pedagógico do IFPI/Campus Piripiri a fim de reunir o maior
número de informações a respeito dos cursos e egressos mencionados (estudo exploratório). A
partir deste levantamento, constatou-se que a população de egressos selecionada para o
presente estudo era constituída de 93 (noventa e três) egressos, sendo 57 (cinquenta e sete) de
508
Administração e 36 (trinta e seis) de Vestuário. O levantamento realizado no referido setor
contribuiu ainda para a construção de um banco de dados contendo endereço, telefone, entre
outras informações que mais tarde serviram de base para a localização e acesso aos egressos
participantes da pesquisa.
Conseguiu-se a atualização das informações correspondentes a 66 (sessenta e seis)
sujeitos para os quais enviou-se por e-mail o questionário, acompanhado do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), na forma de formulário eletrônico, utilizando-se
a ferramenta “google drive”. Do total de questionários enviados, recebemos as respostas de
40 (quarenta) egressos que passaram a partir de então constituir a base de informações
(amostra) para a construção dos dados empíricos, caracterizando-se como uma amostra do
tipo não-probabilística por conveniência (APPOLINÁRIO, 2006).
Dessa base de informações (40), foram selecionados 11 (onze) sujeitos, sendo 06 (seis)
egressos do curso Técnico em Administração, 03(três) do sexo masculino e 03(três) do sexo
feminino, e 05(cinco) egressas do curso Técnico em Vestuário, para a realização das
entrevistas na perspectiva metodológica da entrevista “compreensiva”, modelo proposto por
Kaufmann (2013), cuja direção rompe com as propostas convencionais de uso da entrevista
enquanto procedimento técnico. Nela, o “entrevistador está ativamente envolvido nas
questões, para provocar o envolvimento do entrevistado. Durante análise de conteúdo, a
interpretação do material não é evitada, mas, ao contrário, constitui o elemento decisivo”
(KAUFMANN, 2013, p. 40). Quanto à seleção dos egressos entrevistados, esta ocorreu
aleatoriamente considerando o binômio convite/interesse em participar, ou seja, os 11(onze)
primeiros egressos com os quais entrou-se em contato por telefone para realizar o convite e
que manifestaram interesse em participar foram selecionados. As entrevistas foram
previamente agendadas com os egressos participantes quanto ao local e data da realização. A
maioria preferiu realizar as entrevistas no próprio campus do IFPI. As gravações foram
transcritas para o texto final da dissertação tal como foram pronunciadas pelos entrevistados,
sem qualquer tratamento, resguardando-se a identidade dos egressos, designados no referido
texto pela letra “E” (de egresso) seguida de um número que vai de 1 a 11, sendo os 6 (seis)
primeiros sujeitos (E1, E2, E3, E4, E5 e E6) do curso Técnico em Administração e os 5
(cinco) restantes (E7, E8, E9, E10 e E11) do curso Técnico em Vestuário.

509
Os resultados apontaram que dentre os 40 participantes do estudo, 9 egressos estão
trabalhando como empreendedores no MTL, sendo 3 do curso Técnico em Administração e 6
do curso técnico em Vestuário, a maioria, o que é compreensível quando se contextualiza os
dados em questão com o fato de Piripiri constituir-se em um polo de produção têxtil no Piauí.
O empreendedorismo na visão dos egressos, conforme termos que marcam o discurso destes -
“postura, uma escolha de vida”, “fazer acontecer” (E1), “criatividade”, “inovação” (E2),
“aproveitar boas oportunidades” (E3), “tentar solucionar os problemas da população local”
(E6), “saber que vai dar certo, que pode dar errado” (E9), identifica-se com o discurso
apologeta em favor do empreendedorismo reconhecendo-o como a necessidade de realização,
disposição para assumir riscos e autoconfiança (DORNELAS, 2007; CHIAVENATO, 2007).
O estudo permitiu constatar que os egressos se sentem relativamente seguros para atuar no
ramo do empreendedorismo. O discurso produzido pelos egressos enfatiza a qualidade da
formação técnica realizada no IFPI para a atuação nesse ramo do mercado, mesmo quanto
aqueles egressos que ainda não tiveram experiência como empreendedores: “Sim, muito
importante. Porque me ajudou a ter uma visão melhor do mercado que eu ia adentrar” (E6);
“quando eu saí daqui [IFPI] eu já saí com essa base do que era [empreender], do que você
precisava ter pra ser empreendedor... Isso tudo, eles [docentes] deram uma base boa pra
gente” (E7). No que se refere às atividades empreendedoras verificou-se que a maioria delas
ocorreram após a formação técnica realizada pelos egressos no IFPI e com fulcro em
oportunidades visualizadas pelos egressos no MTL. São empreendimentos modestos que
asseguram a melhoria na obtenção de renda apenas no âmbito dos egressos e suas famílias,
mas que seguem desenvolvendo-se ancorados no planejamento e na perspectiva de
crescimento, mantendo, nesse aspecto, uma relação de distanciamento com o
Empreendedorismo de Subsistência Não Planejado (ESNP) predominante no MTL.
Constatou-se que as poucas oportunidades criadas no âmbito das atividades empreendedoras
gerenciadas pelos egressos do IFPI ocorrem reproduzindo a lógica da precarização das
relações de trabalho que permeia o mundo do trabalho na contemporaneidade, tendo-se como
pano de fundo as figuras da terceirização e da subcontratação, esta materializada nas figuras
do diarista ou colaborador que atuam (quando necessários) auxiliando os egressos em seus
empreendimentos, seguindo, portanto, a lógica universal que serve de parâmetro para a
organização e gestão do processo de trabalho como um todo, seja nos países capitalistas
510
avançados seja na periferia do capital - a flexibilidade instituída no novo regime de
acumulação do capital (ALVES, 2007; ANTUNES, 2005; 2015). O estudo permitiu ainda
verificar que o MTL não reconhece e nem valoriza mão de obra qualificada, seja oriunda do
IFPI ou de outra instituição, contrariando o discurso hegemônico da exigência de qualificação
difundido no atual regime de acumulação flexível. Desse modo, ante a falta de
reconhecimento e valorização dos profissionais qualificados, o empreendedorismo, sobretudo,
no caso particular dos egressos empreendedores, representa uma resposta a esse quadro,
colocando o empreendedorismo como principal mecanismo de obtenção de renda, uma
espécie de “fuga” do desemprego e das frustrações com o MTL, o que faz do
empreendedorismo um ardil do capital flexível cuja função é inculcar nos sujeitos a ideia do
empreendedorismo como redenção para a crise do emprego, isto é, como porto seguro à
inserção social. Mera falácia.
Tendo em vista os resultados apontados, conclui-se, que a inserção dos egressos do
IFPI no mundo do trabalho via empreendedorismo ocorre reproduzindo a lógica da produção
flexível, isto é, seus dispositivos ideológicos-organizativos de base toyotista, a exemplo da
empresa “enxuta” e do discurso redentor do empreendedorismo, presentes no imaginário
socioeducativo dos egressos que, ignorando a lógica excludente do capital, tem a falsa
percepção de integração ao sistema social em tempos de crise do emprego.

Palavras-chaves: Acumulação Flexível. Educação Profissional. Empreendedorismo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Dimensões da Reestruturação Produtiva: ensaios de sociologia do


trabalho. – 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.

ANTUNES, Ricardo L. C. O Caracol e sua Concha: ensaios sobre a nova morfologia do


trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.

______________. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


mundo do trabalho. – 16. ed. São Paulo: Cortez, 2015.

APPOLINÁRIO, Fábio. Metodologia da Ciência: Filosofia e Prática de Pesquisa. São Paulo:


Thomson Learning, 2006.
511
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, LDA, 2002.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede – a era da informação: economia, sociedade e


cultura. Vol 1. 10. ed. – São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração: uma visão


abrangente da moderna administração das organizações. – 7. ed. rev. atual. – Rio de Janeiro:
Elseiver, 2003.

DORNELAS, José Carlos Assis. Empreendedorismo na prática: mitos e verdades do


empreendedor de sucesso. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2007.

HARVEY, David. Condição Pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança


cultural. 16. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

KAUFMANN, Jean-Claude. A Entrevista Compreensiva: um guia para a pesquisa de


campo. Tradução de Thiago de Abreu e Lima Florêncio. Petrópolis, RJ: Vozes; Maceió, AL:
Edufal, 2013.

MINAYO, M. C. de S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 17. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

RUDIO, Franz Victor. Introdução ao Projeto de Pesquisa Científica. 43. ed. – Petrópolis,
RJ: Vozes, 2015.

SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo. Sociologia do Trabalho no Mundo


Contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

512
GT 8 - AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE:

DESAFIOS, LIMITES E PERSPECTIVAS

SESSÃO 3 - IMPACTOS E AGENCIAMENTOS NA FORMAÇÃO E NO TRABALHO

MUNDO DO TRABALHO E PANDEMIA: NOTAS SOBRE UMA NOVA


TEMPORALIDADE HISTÓRICA E A NECESSIDADE DE
SOBREVIVÊNCIA IMEDIATA

Ethiene da Purificação dos Anjos Santos270

O presente texto é resultado da vivência no âmbito do Complexo do Mercado


Municipal de São Brás, no município de Belém/PA - apresenta, nos limites deste espaço
questões importantes sobre as dinâmicas do trabalho e da subjetividade do/a trabalhador/a no
cenário da pandemia da COVID-19. Com esse propósito, se dará ênfase às relações e às
demandas constatadas/percebidas a partir de observações e da participação da respectiva
autora na construção e desenvolvimento de um Projeto de consultoria/assessoria para
avaliação das demandas e acompanhamento do remanejamento dos/as feirantes e/ou
permissionários/as do Complexo, no caso, os/as trabalhadores/as dos diferentes setores da
feira.
Ao iniciar as intervenções no espaço do Mercado de São Brás foi perceptível o quanto
o cenário pandêmico impactou diretamente no cotidiano e na reprodução social da classe
trabalhadora - o alto índice de letalidade, a alta taxa de contágio do vírus trouxe à tona o
espraiamento das desigualdades sociais e reafirmou o quão brutal é o sistema do capital em
tempos de agudização das expressões da questão social.
Desde o período anterior à pandemia o sistema do capital através do ideário neoliberal
vem impondo medidas que buscam fontes e meios para valorização e superacumulação do
dinheiro - tal procedência tem se materializado por meio da capitalização de setores
explorados minimamente pelo capital, na sondagem mercantil e industrial, e por fim, por
investimentos em setores rentistas. Neste cenário, as novas táticas determinadas pelo estágio
vigente de acumulação capitalista e pelo rentismo estão alicerçadas na exploração e
superexploração da força de trabalho - simbolizada por uma “agenda programada” que
explicita cada vez mais: o poder do capital sobre o trabalho e uma crise estrutural pautada na

270
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
ethiene.epas@gmail.com
513
restruturação de um sistema que está preocupado com o lucro, com a rentabilidade, com a
iniciativas de contenção da crise financeira e com a reorganização/controle do mundo do
trabalho.
As metamorfoses no mundo do trabalho estão diretamente vinculadas ao ideário
neoliberal, por meio da reestruturação produtiva, do desemprego estrutural, das novas formas
de contratação, da precarização do trabalho - tais mudanças na esfera do trabalho
exacerbaram ainda mais a incompatibilidade entre democracia e capitalismo e a divergência
entre classes – como bem pontua Anderson (1995, p. 23), na hegemonia neoliberal se
dissemina que “todos da sociedade, seja confessando ou negando, tem de adaptar-se às suas
normas”, é nesta confluência da busca “incansável” pelo crescimento econômico que o
capital apresenta sua face mais predatória.
Em fevereiro de 2020 diante da confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil,
e em seguida com a disseminação exorbitante pelos estados brasileiros e pelo mundo -
assistiu-se os meios de comunicação veicularem dramáticas situações que reforçaram a
situação de calamidade pública. Nesta nova temporalidade histórica que abrange o cenário de
pandemia presenciou-se a fragilização da vida, da sociabilidade humana e a nefasta
reconfiguração do mundo laboral (instabilidade, insegurança, trabalho precarizado, dentre
outros).
Em plena conjuntura da pandemia da Covid-19, em meados de setembro de 2020, no
município de Belém/PA se deu início ao processo de concessão de direito de uso de bem
público, com outorga onerosa, precedido de obras de restauração e reforma do Complexo do
Mercado Municipal de São Brás, objetivando a reabilitação e reutilização do imóvel. A
concessionária que “venceu” o certame licitatório reiterou a “ordem” de início ao Plano de
Operação do Mercado, dentre as premissas do plano estava a iniciação do processo de
realocamento dos/as permissionários/as do Complexo.
De início, no processo de aproximação, de acompanhamento e escuta dos/as feirantes
se teve a percepção de suas dores, de suas perdas e de memórias enquanto “sobreviventes” à
onda pandêmica - relatos que expressavam uma profunda melancolia, como bem foi pontuado
por um jovem rapaz que tinha a perspectiva de continuar o ofício de sapateiro, função esta
herdada de seu avô e de seu pai (que também trabalharam no Complexo), o jovem pontuou
“não sei se é lucro a vida ou a morte [...] se é melhor voltar pra cá pra uma coisa que gosto de
514
fazer e não vindo a clientela que vinha antes ou se é melhor continuar na entrega que não
compensa muito, sabe? [...]” - o rapaz ao expor/evidenciar sua subjetividade referiu-se aos
rebatimentos da pandemia, a tentativa de retorno à feira e a nova atividade laboral de entrega
com “bike” que iniciou por conta da quarentena, atividade essa que se deu por conta do
fechamento temporário de seu boxe e que mesmo após o retorno ao Mercado continuou
exercendo, visto que o índice de procura para os serviços de sapateiro declinou
consideravelmente.
Ao refletir sobre a subjetividade dos/as trabalhadoras/es se teve “insights” de como a
subjetividade operária tem sido apropriada pelo capital, e que por mais que o trabalhador/a
esteja trabalhando em uma nova atividade laboral ele não se reconhece, há essencialmente um
efetivo estranhamento - tal análise culmina exatamente nas reflexões de Antunes (2018), em
sua obra “O privilégio da servidão”, quando remete-se à dimensão de negatividade do
trabalho, do não reconhecimento do produto gerado pelo trabalho e do sentimento de não
pertencimento à atividade que ocupa/realiza.
Para tanto, dentre vários relatos escutados foi possível identificar diversas situações
que acometeram os/as trabalhadores/as no período da Covid-19, dentre elas: a perda de
familiares e de colegas de trabalho, conflitos familiares, enfrentamento de sequelas causadas
pela COVID-19 fatores de impedimento ao retorno das atividades no espaço da feira, o
acúmulo de dívidas, a recorrência à novas formas de trabalho (home-office,
empreendedorismo e uberização) e a dependência do valor do auxílio emergencial para dar
início à atividades de serviços para aluguel de carros, motos e compra de utensílios como
“bags” e bicicletas.
Dando ênfase à questão das novas formas de organização social do trabalho, constata-
se que com a pandemia da Covid-19 se teve uma crescente visibilidade do trabalho não
apenas no mundo da produção material, mas também no processo de fluxo do capital e do
aligeiramento das informações, e nesta “brecha” foi/é possível visualizar o aumento do
trabalho informal e digital. Para além disso, fica evidente a tendência de precarização e
terceirização do trabalho no cenário brasileiro. E em tempos de contrarreformas, de lógica de
uma acumulação que insiste em pressupostos da insuficiência da gestão pública em gerir
recursos e intensificar as concessões público-privado, fica perceptível a onda de “devastação
do trabalho”, determinada pelo capital global.
515
Diante das especificidades que atravessaram a dinâmica do processo de
acompanhamento e escuta das demandas dos/das permissionários/as, especificamente no
interstício de setembro de 2020 a janeiro de 2021, fica a certeza de que um relevante parcela
“se viu” na laboriosa tarefa de rever mesmo que em tempos sombrios de crise sanitária e de
constantes perdas, estratégias para a urgência da sobrevivência imediata. Sendo assim, se quer
reforçar aqui, que a incidência da precariedade do mercado de trabalho e os “novos” formatos
de trabalho precarizado na conjuntura brasileira são acontecimentos precedentes ao contexto
pandêmico, mas que eminentemente ganharam maiores proporções no cenário marcado pelo
desespero de manter-se vivo e subsistir em um Brasil que desceu “a ladeira da morte e,
progressivamente, os dados ganharam identidade, rosto, carne e corpo, e os mortos passaram a
ter nome, sobrenome, endereço, tendo sido gente pela qual nós tínhamos contato, amizade,
amor, apreço” (DEMIER, 2020, p. 90).
Todavia, desde que a pandemia começou, progressivamente a “classe que vive do
trabalho” em meio às recomendações de isolamento e o exacerbamento do medo, da
insegurança, do suprimento das necessidades imediatas - deparou-se com a necessidade de
enfrentar a própria incerteza da vida, assumindo novas formas de trabalho, para eles/as era/é
apenas a forma/a necessidade de tentar se reproduzir socialmente em uma conjuntura de
pandemia; já para o capital, uma busca sem limites para manter seus interesses, mesmo que
tenha que acentuar o “poder de destruição e [...] destituir um crescente contingente da ‘classe
que vive do trabalho’ de suas próprias condições de sobrevivência ultraprecárias” (PRAUN,
2020, p. 5).

Palavras-chaves: Mundo do trabalho. Pandemia. Sobrevivência.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, P. Pós-


neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1995.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era


digital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

516
DEMIER, Felipe. Burguesia e pandemia: notas de conjuntura sobre neofascismo e
ultraneoliberalismo no Brasil da atualidade. In: BRAVO, M. I. S.; MATOS, M. C.; FREIRE,
S. M. F. (Org.). Políticas sociais e Ultraneoliberalismo. Uberlândia: Navegando
Publicações, 2020.

PRAUN, Luci. Espiral da destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho.


In: Revista Trabalho, educação e saúde, n. 18, v. 3, 2020. Disponível em: SciELO - Brasil -
A Espiral da Destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho. Acesso em:
julho de 2022.

517
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS


POLÍTICOS

COORDENADORES:

Dr. Carlos Augusto da Silva Souza (UFPA)

Jailson Lopes Correia (UFPA)

Dr. Lukas Toshiaki Archangelo Okado (UFPA)

Rafael Cavalcante Lisboa da Conceição (UFPA)

518
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

APRESENTAÇÃO DA COORDENAÇÃO DO GT 9

APRESENTAÇÃO

Carlos Augusto da Silva Souza271


Jailson Lopes Correia272
Lukas Toshiaki Archangelo Okado273
Rafael Cavalcante Lisboa da Conceição274

O GT Democracia, Representação e Partidos Políticos reuniu trabalhos sobre o


funcionamento das instituições democráticas no Brasil, evidenciando a participação e
influência dos atores políticos, tanto no âmbito do sistema eleitoral e partidário, quanto na
relação entre os poderes executivo e legislativo.
Os trabalhos apresentaram diferentes ângulos metodológicos de aproximação dos
temas, desde estudos de casos até comparações entre esferas de competição eleitoral, seja na
ótica nacional ou subnacional ou entre partidos e cargos em disputa.
Este GT contou com trabalhos sobre a participação de minorias e grupos vulneráveis
na esfera eleitoral, organização, estratégias e funcionamento interno dos partidos,
recrutamento político, financiamento de campanhas, fragmentação partidária e renovação
parlamentar.
Os trabalhos propostos foram apresentação em três seções que procuram discutir a 1)
representação de minorias; 2) a relação entre instituições democráticas e a fé e, por fim; 3)
como populismo, principalmente no Brasil, ameaça os regimes democráticos.
Em “Mulheres Sem Voto nas Eleições Legislativas Municipais: Uma análise
sociopolítica das candidaturas nos municípios brasileiros,” Martha Maria Jares Alves
procurou identificar como a política de cotas afetou o recrutamento partidário nas eleições
legislativas municipais a partir de características dos municípios.
Jorge Lucas Nery de Oliveira em “Os Idosos na Política Local: uma análise do perfil

271
Doutor em Ciência Política e docente no PPGCP/UFPA. E-mail: carlossouza@ufpa.br
272
Mestrando em Ciência Política no PPGCP/UFPA. E-mail: correiajailson.jlc@gmail.com
273
Doutor em Ciência Política e docente no PPGCP/UFPA. Email: lucas.okado@gmail.com
274
Mestrando em Ciência Política no PPGCP/UFPA. E-mail: lisboarafael77@gmail.com
519
das candidaturas idosas para o cargo de vereador no brasil em 2016” traçou o perfil dos idosos
eleitos vereadores nas eleições de 2016, verificando se existem diferenças em relação aos
adultos e jovens.
Na mesma seara, Jade Neves Moreira em “Juventude e Política: um estudo do perfil
das candidaturas para as câmaras de vereadores nos municípios da região norte do Brasil”
buscou identificar as características das candidaturas de jovens para o legislativo municipal na
região norte.
Em “O Financiamento Político e a Institucionalização das Organizações Partidárias”,
Taulo Italo Soares Cardoso procura identificar como a institucionalização dos partidos
políticos no Brasil influenciou a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de
Campanha, o FEFC, nas eleições de 2018.
Já Larissa da Conceição Barradas e suas colaboradoras analisam, em “A Trajetória
Política Brasileira: Entre a ditadura e a democracia em vertigem”, a dicotomia entre ditatura e
democracia no Brasil desde 1964.
Débora Evelyn Lima Lopes apresenta em “Urnas Eletrônicas e Fake News: Violência
eleitoral simbólica contra democracia” procura demonstrar como o ataque à integridade do
processo eleitoral nos últimos anos se constituiu como uma forma de violência simbólica
contra a democracia brasileira.
Por sua vez, Crislane Oliveira do Nascimento e Isaura Wayhs Ferrari, “A Construção
da Periculosidade Social em Torno de Grupos Antivacinação: análise de uma sessão da CPI
da covid-19 no brasil” procura, a partir de um estudo de caso, entender como os discursos de
grupos antivaciação tem se transformado em uma ameaça à saúde pública.

520
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

TRABALHO HOMENAGEADO COM MENÇÃO HONROSA

MULHERES SEM VOTO NAS ELEIÇÕES


LEGISLATIVASNMUNICIPAIS: UMA ANÁLISE SOCIOPOLÍTICA
DAS CANDIDATURAS NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS

Martha Maria Jares Alves275

Este artigo apresenta como objeto de investigação o fenômeno das mulheres sem
votonas Câmaras Municipais brasileiras, partindo da evidência da existência de um tipo de
fraude eleitoral cuja intenção é burlar a Lei de Cotas nas eleições proporcionais com
candidaturas femininas fictícias, conhecidas popularmente como candidaturas laranjas. Esse
tipo de fraude, praticada por partidos políticos, tem em suas raízes aspectos estruturais
hierarquizantes, como o patriarcalismo e o patrimonialismo que consolidaram ao longo do
tempo uma cultura política machista que permeia até hoje as instituições, como os sistemas
eleitoral e partidário, causando entraves à representação feminina na política e um déficit de
mulheres nas casas legislativas que fragilizam o exercício da democracia. Contudo,
acreditando que existam questões exógenas às estruturais, este estudo buscou analisar se
existe associação entre o grau de desenvolvimento socioeconômico e a incidência de
candidaturas laranjas nos estados e regiões do Brasil.
Partindo do debate teórico, abordando a sub-representação da mulher na política
institucional como linha condutora, este estudo desenvolveu uma pesquisa empírica
quantitativa, onde traça o perfil das mulheres sem voto nas eleições de 2016 e 2020 e que,
para testar as hipóteses de que as mulheres sem voto apresentam um perfil social de média à
alta escolaridade, idade até 40 anos, donas de casa, solteiras e autodeclaradas pardas; de que
concorrem predominantemente por partidos de direita; de que quanto menor o padrão de
desenvolvimento socioeconômico dos municípios, maiores são as taxas de mulheres sem
voto.

275
Mestra em Ciência Política e pesquisadora do Observatório Eleitoral, PPGCP/UFPA,
marthajares@hotmail.com
521
Para tanto, foi necessário montar uma base de dados com os bancos de dados do TSE
e do IBGE, bem como, analisar estatisticamente as correlações entre indicadores
socioeconômicos e o número de mulheres sem voto, por meio do coeficiente de Spearman.
Este estudo apresentou como resultados a confirmação do perfil social deste público-
alvo, assim como, apontou para os partidos com o espectro ideológico de direita como os
que mais lançam candidaturas laranjas femininas. Em relação à análise das correlações entre
desenvolvimento socioeconômico (taxas de ocupação e escolarização femininas, IDHM e
renda per capita) com a taxa de mulheres sem voto por município, os resultados
demonstraram correlações de graus fracos, ou seja, sem efeitos nas associações realizadas.
Assim, pode-se inferir que os indicadores de desenvolvimento testados não
conseguiram interferir sozinhos no comportamento de redução ou aumento do número de
mulheres sem voto. E que, portanto, tais indicadores não possuem exclusividade na
influência para a equidade de gênero na política institucional.
Dessa forma, este estudo entende que os fatores que entravam a representação da
mulher no campo político institucional são constituídos por aspectos de várias ordens, como
os estruturais, os culturais, os institucionais e, os de ordem socioeconômica. Por óbvio, que
cada aspecto possui o seu próprio peso de influência e de importância, porém, não podem ser
analisados isoladamente, ou seja, sob um único ponto de vista.

Palavras-chave: Mulheres sem Voto. Candidaturas Laranjas. Eleições Municipais.

REFERÊNCIAS

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Cadernos Adenauer,Rio de Janeiro, XIV, n. 2, p. 85-107, 2013.

523
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 1 - MINORIAS E REPRESENTAÇÃO

OS IDOSOS NA POLÍTICA LOCAL: UMA ANÁLISE DO PERFIL DAS


CANDIDATURAS IDOSAS PARA O CARGO DE VEREADOR NO
BRASIL EM 2016

Jorge Lucas Nery de Oliveira276

Esse resumo apresenta como proposta de discussão: analisar a participação e


representação política dos idosos, utilizando como estudo de caso, a eleição municipal de
2016 para a composição dos cargos legislativos em todos os municípios brasileiros. A
população idosa delimita-se pelas determinações estabelecidas pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) e pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 8.842/1994) que considera idoso todo
indivíduo com 60 anos ou mais. A pesquisa se utilizará dessa classificação para avaliar os
candidatos que possuíam idade igual ou acima de 60 anos no ano de apresentação da
candidatura ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O Brasil tem mais de 28 milhões de pessoas nessa faixa etária, número que
representava cerca de 13% da população do país em 2017. Na divisão por gênero, as mulheres
são maioria expressiva nesse grupo, representando cerca de 56% contra 44% dos homens.
Segundo dados do IBGE nas duas últimas décadas a população acima de 60 anos apresentou
uma taxa de crescimento de 26%, muito superior a de qualquer outro segmento etário na base
demográfica do país. Além disso, as projeções do IBGE indicam que a população idosa deve
dobrar no Brasil até o ano de 2042, na comparação com os números de 2017.
O processo de envelhecimento mais acelerado da população brasileira, demonstrado
por Closs e Schwanke (2012), corrobora a necessidade de instituir políticas públicas voltadas
para as especificidades de atendimento deste segmento populacional, logo, a inserção dos
idosos nas arenas decisórias se torna de fundamental importância para este objetivo, ainda
mais no seu contexto local. Apesar de ser um segmento expressivo na pirâmide demográfica,
e com uma tendência de crescimento, os idosos estão sub-representados em relação à eleição
de candidatos nesta faixa etária. Os dados do TSE relativo à eleição de 2016, indicam que

276
Graduado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, jorgelucasneryo@gmail.com
524
apenas 7,62% dos vereadores eleitos em 2016 nos diversos municípios brasileiros estavam
nesta faixa etária, semelhante com os vereadores jovens (entre 18 a 29 anos) que
representaram cerca de 7,8% do total de eleitos nesta mesma eleição.
Devido sua importância na base demográfica, o voto dos idosos pode ter a
capacidade de decidir uma eleição, principalmente em cargos executivos, entretanto, como a
partir dos 70 anos o voto passa a ser facultativo, muitos idosos deixam deliberadamente de
exercer o direito de influenciar no processo político, o que limita de certa forma, o alcance da
representação deste segmento. Na pesquisa se utilizou em resumo, 3 perspectivas sobre os
idosos, uma biológica, que analisa o iminente envelhecimento populacional, a Sociocultural
que verificou a participação política dos idosos em vários contextos e a Institucional que
avalia as candidaturas idosas e tenta responder as hipóteses formuladas.
Em relação à participação política, pesquisas qualitativas de caráter localizado,
divulgadas por alguns pesquisadores (GONDIM, NÓBREGA e PATRIOTA, 2006;
FRANCISCO e RODRIGUES, 2003 e BÓSA et al, 2015) indicam que a maioria dos idosos
não deixam de votar, mesmo que os motivos para isso não sejam categorizados com o apelo
cívico da escolha democrática, pois muitas vezes, é a oportunidade desse idoso evitar o
sedentarismo, sair às ruas e ser inserido socialmente.
O entendimento sobre as condições dos idosos em relação à participação e sua
representação política, passa-se por temas como: a luta dos idosos por seus direitos
previdenciários; a estigmatização e depreciação do “velho” em face de uma sociedade
capitalista, que exalta a produtividade e o corpo jovem; a relação dos idosos com as
tecnologias e as diferenças socioeconômicas como as de classe, gênero, cor/raça entre os
idosos nas eleições de 2016 e/ou comparando com o resultado de outras faixas etárias.
É notório quando se analisa o estado da arte, a falta de trabalhos especializados sobre
o tema. Em sua maioria, as pesquisas com idosos envolvem as ciências da saúde, como
Medicina e Nutrição, e também contextos de participação localizados e qualitativos, como
pesquisas em associações, bairros e cidades. Essa pesquisa procura preencher um vácuo
investigativo, se orientando por um problema de pesquisa que pretende respostas nacionais:
características socioeconômicas, demográficas e políticas das municipalidades, interferiram
ou não nas eleições de idosos em 2016, para o cargo de vereador no Brasil?

525
O Objetivo é identificar o perfil sociopolítico dos idosos eleitos para as Câmaras
Municipais em 2016 e sua diferenciação (se houver) em relação aos segmentos considerados
jovens e adultos. Os específicos são relações entre contextos sociais e políticos que são
importantíssimos para inferir os resultados do objetivo geral. São eles: Verificar a relação
entre o tamanho da população idosa e a eleição deste segmento para as Câmaras Municipais;
avaliar se a dimensão ideológica dos partidos políticos interfere na eleição de idosos para a
composição das bancadas municipais e verificar a existência de padrões sociais (escolaridade,
profissão, estado civil, etc.) que caracterizam os idosos eleitos.
O perfil dos idosos eleitos se apoiará nos resultados da eleição de 2016 para a
Câmara de Vereadores, disponibilizado pelo TSE, o banco de dados será com a utilização de
software da Microsoft de agregação e organização de dados. A população alvo será
constituída por todos (as) os candidatos (as) idosos aptos eleitos (as) e não eleitos (as) que se
candidataram na eleição de 2016 para os cargos de vereador em todos os municípios
brasileiros. Os dados coletados serão processados utilizando os métodos estatísticos
descritivos e inferenciais. Para analisar as condições socioeconômicas dos idosos e sua
diferenciação com outros grupos, foram criadas novas variáveis como “fases de vida” e
“ideologia partidária” (IP).
A criação de hipóteses visa indicar possibilidades para a resolução do problema de
pesquisa, antes da avaliação de todas as hipóteses, os dados indicam resultados gerais, por
fase de vida, nas eleições para vereador em 2016. De acordo com os dados se percebe uma
semelhança geral entre o desempenho dos candidatos jovens e idosos, que será também
identificada em algumas hipóteses mais específicas. Em relação à taxa de sucesso ( os
candidatos eleitos do grupo dividido pelo total de candidatos do grupo) a fase de vida de 30
até 44 está acima das demais com 14,57% dos seus candidatos eleitos. Em relação ao total de
eleitos as fases de vida de 30 até 44 e 45 até 59 anos concentram quase 90% dos eleitos, os
idosos contribuem com apenas 7,62% dos eleitos totais.
A hipótese 1 se orienta por uma observação demográfica: Quanto maior a população
idosa das grandes regiões, maior a eleição desse segmento para vereadores, no Brasil, em
2016. O objetivo dessa hipótese é descobrir se há pensamento corporativo entre os idosos.
Analisando o estado da arte não se identificou esse tipo de movimento, de modo que os
poucos resultados estão direcionados à participação cívica desses idosos. Os dados indicam as
526
regiões Sul, Sudeste e Nordeste com a proporção maior entre idosos na sua população,
respectivamente 12%; 11,86%; 10,28% a partir dos dados do censo de 2010. De acordo com
medidas de dispersão, as regiões Sul e Norte são as que ficam fora do conjunto. O resultado
das taxas de sucesso inconcluem a hipótese, a partir das medidas de dispersão, apenas a região
Nordeste fica fora do intervalo (12,99--8,19) e acima da média (10,59), as outras duas regiões
com mais população idosa tiveram resultados distintos, o Sul manteve-se no intervalo e o
Sudeste ficou abaixo do intervalo.
A hipótese 2 avaliará a relação entre demografia e escolaridade: Em todas as
macrorregiões, os candidatos idosos com ensino superior são a maior parcela entre os idosos
eleitos. Não há literatura que avalie essa relação, existe apenas uma tendência do aumento de
escolaridade em candidaturas indígenas, segundo Codato et al (2016). Os resultados gerais de
escolarização indicam que não há uma tendência evidente, as categorias dicotômicas: ensino
fundamental incompleto e ensino superior completo possuem aproximadamente 27% dos
eleitos, cada uma. Quando se analisa os eleitos idosos por região, os mais escolarizados (com
ensino superior completo), são a maior categoria no Sudeste (45,08%), no Sul (39,40%) e no
Centro Oeste (27,64%). A região Nordeste (15,21%) e Norte (10,61%) tem os menores
quantitativos nesse recorte. Avaliando a hipótese, o aumento da escolarização das
candidaturas idosas não se tornou hegemônico nas eleições em todo país, 3 macrorregiões já
possuem a maior parcela de eleitos idosos mais escolarizados mas Nordeste e Norte não
acompanham essa tendência. Dessa forma, a hipótese é negada.
A hipótese 3 se orienta por uma observação ideológica: Os partidos de direita elegem
mais vereadores idosos proporcionalmente que os partidos de centro e esquerda. A
bibliografia indica uma mudança eleitoral geral com potencialidade para os partidos de
direita, mas a discussão sobre o segmento dos idosos é ínfima ou inexistente. A classificação
de IP foi estabelecida pelo estudo de Sousa (2019). Dessa forma, se analisará os candidatos
eleitos e não eleitos por grupo de IP. O resultado dos candidatos idosos é semelhante ao dos
candidatos jovens (18 a 29 anos) à medida que, encontra-se no geral uma vitória dos
candidatos idosos de direita, que somam aproximadamente 49% dos eleitos idosos, no
entanto, quando se analisa a taxa de sucesso em relação aos grupos de ideologia partidária, a
proporção da direita é menor que o aproveitamento dos partidos de centro, ou seja, eles

527
precisam de menos candidatos idosos para eleger candidatos desse segmento. A partir disso, a
hipótese correspondente não foi confirmada.
A hipótese 4 se orienta por uma observação de relação de Gênero: Idosos homens
tem o dobro de chances de se elegerem proporcionalmente em relação as idosas mulheres. O
objetivo da hipótese é analisar a condição da mulher idosa na disputa eleitoral para o cargo de
vereador, verificar no geral as diferenças entre as grandes regiões, comparando com os
resultados dos homens idosos. Não há achados na bibliografia sobre a representação
municipal dessas idosas, que mesmo sendo 55% da população idosa, segundo o censo de
2010, sua população não acompanha a sua representação. De acordo com os dados gerais, há
continuidade de um predomínio masculino na representação idosa, eles têm uma taxa de
sucesso maior em todas as regiões, sendo a região sul a que apresenta maior diferença e a
região norte com menor diferença entre essas taxas de sucesso. Dessa forma, é necessário um
estudo mais aprofundado para analisar essas diferenças regionais. A hipótese 4 é confirmada a
partir da comparação entre essas taxas de sucesso no contexto nacional.
A hipótese 5 se orienta por uma observação social: Os candidatos casados se elegem
com mais facilidade que os outros declarantes de estado civil. A hipótese tem por objetivo
descobrir se há relação entre o estado civil e a eleição dos idosos para vereadores. Ela tem por
base, um estudo de Bósa et al (2015), que verificou o perfil dos eleitores idosos no Rio
Grande do Sul, em uma de suas conclusões aponta os idosos como mais ativos politicamente
são casados, por isso, a análise se isso ocorre também com os idosos eleitos em todo país. As
categorias da análise são baseadas em informações do TSE, são elas: casado, divorciado,
separado judicialmente, solteiro e viúvo. De acordo com os dados, é evidente o predomínio
absoluto dos candidatos idosos casados 66,19% do total e também dos eleitos 78,54%. A taxa
de sucesso nos grupos de estado civil também é maior que as outras categorias. Portanto, o
que refletiu sobre os eleitores na pesquisa de Bósa et al (2015), também se reflete na eleição
desse segmento, confirmando a hipótese.
A proposta da pesquisa foi trazer o perfil sociopolítico dos idosos eleitos em 2016
para as câmaras de vereadores, verificou-se a prevalência de eleitos homens, brancos,
casados, com uma variedade no grau de instrução, e de partidos do espectro de Direita. As
ínfimas referências sobre o tema prejudicaram sobremaneira a comparação de trabalhos com

528
este exposto, no entanto, o levantamento do tema na área da Ciência Política é fundamental
para engajar novos estudos e responder a diversas lacunas investigativas.

Palavras-chave: Candidatos idosos; sub-representação; Eleições Municipais.

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SOUZA, Carlos Augusto da Silva. Participação e representação dos jovens na política


local: uma avaliação das candidaturas para as Câmaras de Vereadores nos municípios
brasileiros. Belém, 2019.

530
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 1 - MINORIAS E REPRESENTAÇÃO

JUVENTUDE E POLÍTICA: UM ESTUDO DO PERFIL DAS


CANDIDATURAS PARA AS CÂMARAS DE VEREADORES NOS
MUNICÍPIOS DA REGIÃO NORTE DO BRASIL

Jade Neves Moreira277

Enquanto categoria etária, a Organização das Nações Unidas (ONU), assim como o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), afirma que a juventude compreende o
período dos 15 aos 24 anos de idade, ao passo que a literatura frequentemente adota o
intervalo de 15 a 29 anos para delimitá-la. Porém, há outras vias de interpretação – inspiradas
sobretudo pelas teorias de Pierre Bourdieu – que permitem pensar a juventude também como
um capital simbólico e, assim, evidenciar as contradições que envolvem este segmento.
A participação da juventude no processo político se expandiu no Brasil após a
promulgação da Constituição de 1988, que estendeu o direito ao voto facultativo aos jovens
maiores de 16 anos e menores de 18 anos. Com esse dispositivo, o país se tornou um dos
poucos no mundo a conferir permissão para que jovens menores de 18 anos participem do
processo político na condição de eleitores.
Santos (1992) afirma que o voto a partir dos 16 anos foi resultado do ativismo e da
luta política dos jovens brasileiros que se organizaram para impor resistência à Ditadura
Militar, período no qual os jovens do movimento estudantil prestaram relevante contribuição
para as manifestações políticas e movimentos reivindicatórios a favor da democracia e da
conquista das liberdades civis. Assim, após a redemocratização do país em 1988, o direito ao
voto tornou-se uma das principais demandas do movimento estudantil.
A partir da década de 1990, como resultado do esgotamento do modelo
desenvolvimentista e das reformas estruturais resultantes da globalização, o Brasil vivenciou
processos profundos de exclusão social, o que intensificou a vulnerabilidade da juventude
brasileira a diversas formas de violência e situação de desemprego. Dessa forma, a situação
social dos jovens no Brasil, como na América Latina em geral, adquiriu notoriedade enquanto
problema político e passou a compor a agenda pública (BRASIL, 2014).

277
Mestranda em Ciência Política, Universidade Federal do Pará, jade.nevesmoreira@gmail.com.
531
Em vista disso, no ano de 2005 foram criados a Secretaria Nacional de Juventude
(SNJ) e o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), a fim de dar impulso à formulação e
implantação de políticas públicas em âmbito estadual e municipal. Para corroborar a
iniciativa, o Senado Federal, com o apoio do movimento estudantil, sancionou em agosto de
2013 o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013). Esta lei foi um marco importante nas ações
governamentais direcionadas aos jovens no Brasil.
Em termos demográficos, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou que a proporção
de jovens entre 15 e 29 anos de idade na população brasileira corresponde, atualmente, a cerca
de 23%, somando mais de 47 milhões de pessoas.
Todavia, nota-se que a proporção acentuada de jovens na população brasileira não se
reflete em sua incorporação na esfera política enquanto candidatos (e menos ainda enquanto
candidatos eleitos). Os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a eleição de 2016
indicam que apenas 7,8% do total de vereadores eleitos no Brasil estavam na faixa etária de
18 a 29 anos, ao passo que a maioria deles (cerca de 61%) possuía entre 30 e 49 anos.
Comparados com a eleição de 2012, quando esse percentual foi de 8,7%, os dados indicam
que houve redução no número de jovens eleitos para o cargo de vereador.
Dessa forma, a fim de compreender a taxa de sucesso e o perfil sociopolítico dos
candidatos jovens eleitos no cenário recente da política brasileira, este estudo analisou os
dados relativos às eleições de 2016 e 2020 para o cargo de vereador(a) nos municípios da
região norte do Brasil, estabelecendo comparativos entre os jovens e as demais faixas etárias,
com o intuito de identificar as possíveis diferenças ou semelhanças entre elas.
Em primeiro lugar, observou-se que os jovens, além de representarem um percentual
reduzido de eleitos quando comparados às demais faixas etárias, tiveram diminuição no
percentual de candidatos eleitos no transcurso da eleição de 2016 para 2020. No contexto
regional, com exceção do sudeste, que obteve um crescimento bastante tímido no transcurso
da eleição de 2016 para 2020, todas as demais regiões do país tiveram redução na eleição de
jovens para a composição política das bancadas municipais. A média dos jovens eleitos tem se
situado em torno de 7,0% do total de eleitos em todas as regiões, tanto em 2016 quanto em
2020. Apenas na eleição de 2016, na região nordeste os jovens chegaram a 8,0% do total de
eleitos, mas com redução em 2020 para 7,2%.
532
Levando-se em consideração a distribuição dos jovens eleitos entre os estados da
região norte, percebe-se que os estados do Acre, Pará e Amazonas são os estados com os
menores percentuais médios de incorporação dos jovens na política local, com destaque para
o estado do Acre, que em 2020 elegeu apenas 3,5% de jovens para a composição do poder
legislativo nos 22 municípios do estado.
Do lado oposto, estão os estados de Roraima, seguido do Amapá e Tocantins, como os
estados onde os jovens mais encontram um ambiente favorável para se eleger. Roraima, por
exemplo, chegou a eleger cerca de 14,6% de jovens na eleição de 2020, um número bem
superior à média regional e nacional.
Quanto à variável de gênero, percebe-se que na região norte as mulheres encontram-se
sub-representadas em todas as faixas etárias, com pouca discrepância proporcional entre elas.
Entretanto, no transcurso da eleição de 2016 para 2020, o desempenho das mulheres
apresentou certo crescimento em todas as faixas etárias analisadas, mas o crescimento mais
significativo se estabeleceu entre as candidaturas jovens, que saíram de 13,0% em 2016 para
18,4% em 2018 – um crescimento acima de cinco pontos percentuais e, portanto, bastante
promissor para um grupo que historicamente sempre foi excluído das instâncias de
deliberação política.
Em relação ao recorte por escolaridade, os dados demostram que, na medida em que
aumenta a faixa etária, mais diminui a escolaridade dos eleitos. A maior proporção dos
eleitos, em todas as faixas etárias, tem se situado como tendo o ensino médio completo, vindo
logo a seguir os que possuem ensino superior completo. Entre os jovens, entretanto, no
transcurso da eleição de 2016 para 2020, tem diminuído a proporção daqueles com apenas o
ensino médio completo (que passou de 51,3% para 48,9%) e tem aumentado a proporção de
jovens eleitos que possuem ensino superior completo (cujo salto foi de 25% para 29,5%).
No que tange ao aspecto racial, a maior proporção dos eleitos nos municípios da
região norte, tanto no ano de 2016 quanto em 2020, era composta por pardos, vindo logo a
seguir os candidatos brancos e, após estes, os pretos. Os três grupos mantiveram percentuais
relativamente estáveis no transcurso dos pleitos: os pardos constituindo, em média, 63% dos
jovens eleitos; os brancos cerca de 27,2%; e pretos em torno de 7,8%. Indígenas e amarelos
apresentaram pouca significância entre os eleitos, o que dificulta a mensuração das variações
enfrentadas por estes grupos na comparação com outros grupos raciais.
533
Quando analisada a dimensão ideológica das candidaturas, os dados indicam que, em
todas as faixas etárias, os eleitos se candidataram preferencialmente por partidos de direita,
vindo logo a seguir os partidos de centro e, por último, os partidos de esquerda. Entre os
jovens, a distribuição dos candidatos eleitos por ideologia partidária seguiu as seguintes
médias nas eleições de 2016 e 2020: direita (57,5%); centro (24,6%); e esquerda (17,8%).
Apesar de historicamente os partidos de esquerda serem mais abertos à participação de
grupos minoritários e ao ativismo da juventude, na esfera da representação política esse dado
é irrelevante, pois a eleição comporta cálculos vinculados às chances de vitória em relação aos
possíveis opositores. Por esta razão, a liderança dos partidos de direita no recrutamento e
seleção dos eleitos não reflete necessariamente a posição ideológica dos candidatos e sua
vinculação a pautas conservadoras. Na realidade brasileira, diversos autores indicam que os
partidos possuem raízes frágeis na sociedade e não têm capacidade de criar laços de lealdade
entre os candidatos e as siglas. Num processo altamente competitivo como o brasileiro, os
candidatos não procuram os partidos por critérios de identidade ideológica, mas, sobretudo,
por cálculos sobre suas reais chances de conquistar uma vaga no parlamento ao disputar a
eleição por esse partido (SOUZA e colaboradores, 2021).
Assim, entender a juventude como participante de uma sociedade plural, que apresenta
demandas, interesses e valores completamente diferentes de outros grupos sociais, se torna
fundamental para a democracia na atualidade. Neste sentido, na medida em que a juventude
aumenta o seu grau de participação no processo político, seja como eleitores ou como
candidatos, aumenta a possibilidade de ter suas demandas consideradas para efeito das
decisões governamentais.
Há razões históricas, sociais e culturais para incentivar o maior protagonismo dos
jovens no processo político. Em primeiro lugar, com a universalização da educação, o
aumento da escolarização e a diversificação da profissionalização, o jovem passou a se tornar
mais informado e engajado nos processos políticos e no mercado de trabalho e a querer
participar de forma mais ativa nas decisões governamentais que podem afetar a sua vida
presente e futura.
Aliado a isso, a evolução na tecnologia da informação, tem permitido aos jovens
diversificar seus canais de informação, se expressarem de forma mais livre e debaterem suas
opiniões com outros segmentos sociais. Como consequência, os jovens deixaram de ser vistos
534
como indivíduos desinteressados, mal informados e sem compreensão da realidade e
passaram a ser vistos como elemento de transformação social e engajamento político que
procuram rever valores e ideias socialmente estabelecidas e historicamente consolidadas.
Além disto, com a evolução da sociedade liberal, aliada a melhoria nos sistemas de
comunicação, os jovens deixaram de ter apenas a família e os amigos próximos como
referência e passaram a se conectar com o mundo e com diferentes contextos sociais. Como
resultado, a juventude ganhou condições objetivas para se expressar, emitindo opiniões e
alterando comportamentos e valores presentes na sociedade.
Por outro lado, há ainda uma escassez de estudos que procurem interpretar a
participação de jovens no processo eleitoral à luz de fatores políticos, sociais e territoriais,
buscando identificar padrões de recrutamento e seleção destas candidaturas em comparação
com outros grupos etários a fim de perceber a existência de mudanças no perfil das
candidaturas que possam impactar na qualidade dos gestores que estão compondo o processo
de representação na esfera local.

Palavras-chave: Jovens. Eleições Municipais. Região Norte. Representação Política.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estação juventude: conceitos fundamentais – ponto de partida para uma


reflexão sobre políticas públicas de juventude. Org. Helena Abramo. Brasília: Secretaria
Nacional de Juventude (SNJ), 2014.

BRASIL. Estatuto da Juventude: atos internacionais e normas correlatas. Brasília:


Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013.

BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e


Investimento Estratégico. Plano Mais Brasil. PPA 2012-2015: Agendas transversais —
monitoramento participativo. Pessoa idosa, ano base 2012. Brasília, 2013.

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, p. 112-121, 1983.

BRUNO, M. R. P. Cidadania não tem idade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 75,
p. 83, 2003.

535
DOURADO, Simone Pereira da Costa; ALMEIDA, Carla. A juventude pensada a partir do
envelhecimento: demografia e comportamento político dos grupos geracionais. Soc. e
Cult., Goiânia, v. 17, n. 1, p. 63-73, jan./jun. 2014.

PITKIN, Hanna. O Conceito de Representação. In: Política e Sociedade. Companhia Editora


Nacional, vol. 2, p. 8-22, 1975.

PITKIN, Hanna. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova, São Paulo, 67:
15-47, 2006.

YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade, minorias. Lua Nova, São Paulo,
67: 139-190, 2006.

WELLER, Wivian. A atualidade do conceito de gerações de Karl Mannheim. Revista


Sociedade e Estado, Vol. 25 nº2, p. 205-224, maio/agosto, 2010.

536
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 2 - INSTITUIÇÕES, FÉ E DEMOCRACIA

O FINANCIAMENTO POLÍTICO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS


ORGANIZAÇÕES PARTIDÁRIAS

Taulo Ítalo Soares Cardoso278

Uma das preocupações do campo da Ciência Política é a mudança sobre os modelos


partidários na democracia, uma consequência dessas transformações se revela na perda de
filiados e membros dos partidos políticos (AMARAL, 2013), em razão não só de novas
possibilidades de organização política, mas também acerca da desconfiança dos cidadãos
sobre o sistema partidário (FREIDENBERG, 2019). Nesse sentido, novos estudos contrastam
a tese de que certa ausência de participação e vigilância sobre as organizações partidárias seja
um acaso nas democracias representativas, na verdade, a resposta encontra-se no
funcionamento e estratificação interno dos partidos, especialmente, no que se refere ao
controle dos dirigentes e acesso à representação (GUARNIERI, 2015); portanto, o atual
resumo apresenta algumas considerações e categorias formuladas sobre o tema, dividido em 2
etapas teóricas: primeiro em relação ao grau de democracia intrapartidária e sistema
partidário, segundo em respeito sobre o financiamento dos partidos e o sistema eleitoral.
Em suma, o trabalho consiste em analisar a distribuição nacional dos recursos do
Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) considerando o nível de
institucionalização das organizações partidárias do período de 2014 a 2018. É observado o
padrão de financiamento de candidaturas a deputado federal conforme a proporção de órgãos
definitivos versus comissões provisórias de direção partidária das legendas nos estados e
municípios.
A análise empírica é realizada por estatística descritiva, o objetivo é analisar a
presença institucional dos partidos, considerando o padrão de repasses financeiros de cada
tipo de órgão de direção partidária (definitivo ou provisório) para candidatos e candidatas a
deputado federal em 2018. Igualmente é observado o padrão de repasses comparativamente a
cada região do país, destacando a Região Norte.

278
Discente de licenciatura em Ciências sociais, Universidade Federal do Pará, tauloufpacs@gmail.com.
537
Desse modo, além do estudo teórico sobre a institucionalização e novas agendas do
campo de partidos políticos, houve a coleta e organização de informações do Repositório de
Dados Eleitorais do TSE (prestação de contas eleitorais e órgãos partidários) sobre a
quantidade de categorias de órgãos partidários em cada organização política, como as
categorizações de diretórios definitivos, provisórios ou comissão interventora, os quais
serviram de base para o exame do nível de democracia intrapartidária (GUARNIERI, 2015).
Em primeiro lugar, segundo o artigo de Flavia Freidenberg (2019) a maneira como a
distribuição de poder e o acesso a ele é processado internamente nos partidos, implicará em
grande proporção no grau de democracia de uma sociedade. O clássico termo “Lei de Ferro da
oligarquia” da teoria da ciência política de Michels, apresenta uma jornada de descrédito dos
partidos políticos. Entretanto, Fernando Guarnieri (2015), faz considerações sobre os graus de
democracia intrapartidária, orientando-se pela forma de participação e escolha de líderes e
candidatos nas decisões internas da organização.
Sobre essa questão enfrentam-se dilemas: como podemos interpretar o juízo de um
partido político? Se por um lado podemos considerar que deva ser uma instituição com
autonomia própria — ou seja, de Direito privado — pois é um meio de representação e
legitimidade da sociedade civil, por outro lado, é indispensável que os partidos políticos
estejam regulamentados conforme as normas legais do Estado, é o Direito público
(FREIDENBERG, 2019). Ademais, é preciso considerar que o processo de democratização
dos partidos é atravessado pela segurança de sucesso eleitoral com o desenvolvimento
institucional, os quais precisam ser harmônicos (GUARNIERI, 2015).
Dessa forma, podemos determinar dois grandes eixos importantes pelos quais se
estrutura a democratização dos partidos: os Atores (Candidatos e Selecionadores) e os
Processos (Centralização e Método de escolha), esses dois eixos irão sustentar as formas de
acesso à representação e ao controle dos dirigentes partidários; logo, seu fim será a
transparência da organização (FREIDENBERG, 2019).
No que se trata dos atores, Guarnieri (2015) expõem de maneira contínua, como uma
linha horizontal que atinge dois extremos, as leis do sistema legislativo e os regimentos
internos de cada partido, para mensurar o nível democrático. Nesse sentido, segundo a
categoria dos candidatos, os pólos são de inclusão e exclusão, dependem de mecanismo como
acesso à ficha, do abono e da impugnação que varia com cada organização. O autor sinaliza
538
que tais mecanismos, geralmente, são utilizados como função de restringir a filiação ou acesso
de candidaturas, em virtude de assegurar a defesa contra a entrada de “notáveis” ou "blocos"
de fora do partido que possam interferir na coesão.
Além disso, a dimensão dos selecionadores pode ir de um contínuo de inclusão por
parte do eleitorado ou de exclusão cujo há somente um selecionador. Segundo o autor, as
lideranças partidárias sempre têm mecanismos que podem impor a sua vontade, tanto no
processo de seleção de candidaturas, como nas convenções. Considerando que a legislação
eleitoral permite ao diretório nacional determinar as normas das convenções, alguns exemplos
são evidentes, como na convocação das convenções e garantia de detentores de cargos
eletivos nesses espaços, além das comissões provisórias as quais podem ser facilmente
manipuladas pelas lideranças dos diretórios, principalmente ao nível nacional.
Enfim, o eixo sobre os processos que ocorrem internamente nos partidos reflete o grau
de centralização das decisões, quanto menos centralizado for, mais elevado será o nível
democrático do partido. Assim sendo, há dois tipos: descentralização territorial quando os
selecionadores locais nomeiam os candidatos ou corporativa quando é garantida a
representação funcional em grupos como de mulheres, sindicalistas, jovens, etc
(GUARNIERI, 2015).
Na mesma linha de raciocínio, o contínuo apresentado pelo autor é de que há
centralização do poder quando os candidatos são escolhidos exclusivamente pelos
selecionadores ao nível nacional (sem representação territorial); no extremo oposto há
descentralização quando os candidatos são escolhidos somente ao nível local, por setores ou
grupos do partido (GUARNIERI, 2015). Uma observação relevante é apontada pelo autor:
embora no Brasil, o processo interno de seleção de candidatos seja descentralizado, grande
parcela dos partidos não poupa intervenções de instâncias superiores nos estatutos.
Por fim, a última categoria de dimensão é o método de escolha que segue de 2 formas:
votação ou indicação. Nos estatutos dos partidos, essa categoria é muito superficial. A lei
deixa ao critério da direção nacional do partido baixar resoluções a respeito, isso abre brechas
para mudanças que favoreçam a elite partidária, tal como nas convenções (GUARNIERI,
2015). É fundamental que o critério de estruturação da votação obedeça a duas condições.
Primeiramente, cada candidato deve ser escolhido pelo voto, não sobre um acordo (como
exemplo as listas). Em segundo, os resultados devem ser legitimados por uma divulgação
539
oficial. Qualquer processo que não contenha essas duas exigências será um sistema de
nomeação, o qual os candidatos não são escolhidos por aprovação geral (GUARNIERI, 2015).
De maneira positiva, pode-se traçar alguns pontos acerca da introdução de leis e
reformas eleitorais nos partidos, a qual a hipótese seria que o nível de democracia interna
seria favorecido com mecanismos que permitam maior concorrência e participação de atores
na liderança e pelas candidaturas dos partidos. O nível de democracia interna está associado
ao grau de centralização, inclusão e competitividade. (FREIDENBERG, 2019). Todavia, vale
constar uma problemática quando se trata de mudanças na organização que podem afetar de
maneira negativa quando se trata de institucionalização.
Diante desse panorama, poderemos ter algumas bases para a compreensão sobre o
financiamento partidário, distribuição de recursos, além de compreender como uma variável
dependente que se articula com o papel dos partidos políticos na democracia representativa
(DOLANDELI e TANAKA, 2019).
Há duas questões fundamentais que se referem ao fundo partidário e eleitoral. O fundo
partidário demonstra um forte mecanismo de controle sobre os partidos e suas finanças,
especificando de maneira transparente todas as movimentações financeiras dos partidos. O
Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) é de suma importância para o
processo eleitoral de campanhas com base em doações orçamentárias do Estado brasileiro. O
porquê de o FEFC ser uma base de seguridade para campanhas e partidos diz respeito à
institucionalização das doações empresariais em 2015 (DOLANDELI e TANAKA, 2019),
esta reforma altera em grande proporção o comportamento dos partidos e sua organização
para disputas eleitorais. É preciso ressaltar que as condições para a uso do FEFC são definidos
pelos órgãos nacionais e lideranças dos partidos, os quais têm autonomia para organizar de
maneira estratégica sobrepondo, possivelmente, seus interesses. (DOLANDELI, 2020).
Não há grande diversidade sobre o padrão de distribuição de recursos dos partidos
entre os candidatos, há clara orientação em benefício de um determinado perfil. Se tratando da
categoria de capital político, analisado com base nas eleições de 2014 (DOLANDELI e
TANAKA, 2019), podemos estabelecer 4 tipos: capital político antigo, novo, sem capital
político, e o que é mais relevante, o perfil de candidato com capital político frequente. Este
último consegue alto financiamento por parte de diversas fontes, em especial, as dos partidos
distribuídos pelas instâncias ao nível nacional, cerca de 50% são destinados a esse perfil
540
específico, e proporcionalmente vai diminuindo a cada instância (DOLANDELI e TANAKA,
2019).
Assim, grande parte dos trabalhos sobre sistema partidário e sistema eleitoral
consideravam hipóteses sobre o quanto maior o grau de autonomia de um partido,
proporcionalmente, seria distribuição de recursos em seu interior, essa questão já foi
desmentida. Os partidos políticos apresentam grande concentração de seus recursos de
campanhas em poucos candidatos de maneira estratégica com base na oportunidade de vitória
eleitoral (BOLOGNESI, 2020), isso pode ser observado com base em categorias como perfis
dos candidatos e capital político (DOLANDELI e TANAKA, 2019).
Não bastasse isso, a relação de autonomia dos partidos e o grau de democratização
interno da organização que, não necessariamente, resulta em uma resolução acerca da
desigualdade entre distribuição de recursos e acessibilidade dos filiados a candidaturas.
Observou-se diversos mecanismos que detém as lideranças dos partidos para o controle da
organização em diversas instâncias de maneira hierárquica, por exemplo, a categoria de
“selecionador” cujo tem propriedade de impor à vontade e organizar as convenções de cada
partido moldando, com legalidade da legislação, normas as quais podem favorecer a liderança
num determinado período. (GUARNIERI, 2015). Enfim, esse controle dos mecanismos e
normas refletem nas categorias de candidaturas do processo eleitoral. Entre ambas as eleições,
2014 e 2018, candidaturas de “minorias” como negros, mulheres e pessoas sem formação
superior, permanecem com baixo financiamento e acesso a recursos.
“Os dados sugerem que os partidos políticos brasileiros operam uma lógica que leva
menos em conta o peso da organização partidária e mais o investimento nos nomes
disputando as eleições (...) Os partidos passam a ser atributos dos candidatos, e não
o inverso” (BOLOGNESI, 2020. p.54, apud ALCÁNTARA, 2016).

Os partidos políticos são instituições com papel de regulamentar a representação da


sociedade. Quando esse papel não é mais exercido, os partidos se transformam somente de
maneira instrumental (BOLOGNESI, 2020), eis uma crise democrática interna a esta
instituição que impacta a luta e solidariedade de um país, por consequência, grupos são sub-
representados nos espaços de decisão política e permanecem em condições de desigualdade.

Palavras-chaves: Financiamento de campanha. Eleições. Organização Partidária.

541
REFERÊNCIAS

AMARAL, O. E. O que sabemos sobre a organização dos partidos políticos: uma avaliação de
100 anos de literatura. Revista Debates, v. 7, n. 2, p. 11-32, 2013.
BOLOGNESI, Bruno et al. Como os partidos distribuem o dinheiro. Estrutura organizacional
e recursos eleitorais em 2014 no Brasil. Colombia Internacional, n. 104, p. 33-62, 2020.
BOLOGNESI, Bruno. “Organização partidária: modelos de análise e novas agendas”.
Ciências sociais hoje: Ciência Política (orgs. Bruno Bolognesi, Glauco Peres da Silva). Ed.
São Paulo: Zeppelini Publishers, n. 95, 2020. pp. 161-191. (Ciências sociais hoje; 2) PDF.
DOLANDELI, Rodrigo dos; TANAKA, Marcela. A. O financiamento partidário e a estratégia
de doações na arena eleitoral. Caos – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, João Pessoa, n.
23, p.197 -232, jul./dez. 2019.
DOLANDELI, Rodrigo. Estratégias partidárias e recursos públicos: uma análise do
financiamento político de deputados federais em 2018. In: 44º Encontro Anual da
ANPOCS, GT12 - Dinheiro, interesses e democracia: estratégias de ação e influência no
sistema político. 2020.
FREIDENBERG, Flavia. DEMOCRACIA INTERNA EN LOS PARTIDOS POLÍTICOS, en
Dieter Nohlen, Daniel Zovatto y Leonardo Valdés. Eds. Derecho Electoral Latinoamericano:
un enfoque comparativo. México: IIJUNAM, Fondo de Cultura Económica. IDEA
Internacional e Instituto Nacional Electoral (Cap. XXV). ISBN 9786071661951.
GUARNIERI, Fernando. Democracia Intrapartidária e reforma política. Rev. Parlamento e
Sociedade, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 83-106, jul./dez. 2015.

542
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 2 - INSTITUIÇÕES, FÉ E DEMOCRACIA

A TRAJETÓRIA POLÍTICA BRASILEIRA: ENTRE A DITADURA


E A DEMOCRACIA EM VERTIGEM

Larissa da Conceição Barradas279


Nayana Cristina Viana da Silva280
Gabriela Negrão dos Santos281

O presente resumo tem por objetivo refletir, atendendo a análise política, filosófica e
crítica, o modo como o Estado brasileiro vem se construindo historicamente desde o período
da ditadura civil militar, entre os anos de 1964 e 1984, passando por uma redefinição a partir
do ano de 1988, chegando as mudanças após a ditadura com a redemocratização do país no
ano de 2013 e até chegar aos debates mais atuais que iniciaram em 2015 e levaram a escolha
de Jair Messias Bolsonaro para concorrer à presidência do Brasil, eleito em 2018.
A iniciativa de pesquisa surge a partir de uma avaliação regimental da disciplina de
Introdução a Filosofia, que foi ministrada no 1º período do curso de Ciências Sociais pelo
Profº Drº Gustavo Soldati Reis, em 2019. Essa avaliação consistiu em elaborar um artigo, em
trio, sobre o debate político contemporâneo. Tomando como base as discussões realizadas em
sala de aula sobre o tema da política e os atuais acontecimentos desencadeados, sobretudo,
desde 2015, decidimos fazer um recorte histórico abordando da ditadura civil militar até a
contemporaneidade. Levando em consideração a relevância do tema, ficou evidente que os
cargos de poder sempre foram objeto de conflito no Brasil. A particularidade da política
brasileira coloca em disputa os diferentes interesses dos diversos grupos envolvidos. O Estado
joga a favor das elites e o resto é “salve-se quem puder”. Temos aqui um belo exemplo de
política à brasileira.
O tema em questão foi um desafio, a insegurança bateu, mas provocadas pelo docente
responsável pela disciplina embarcamos no desafio da pesquisa, dando o pontapé inicial para

279
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará,
larissa.barradas@aluno.uepa.br.
280
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará,
nayana.silva@aluno.uepa.br.
281
Graduanda de Comunicação Social: Publicidade e Propaganda, Universidade Federal do Pará,
gabinegrao13@hotmail.com.
543
nossa iniciação científica. Para debater esse tema, utilizamos como metodologia a pesquisa
bibliográfica com pesquisas em livros, revistas, documentários, artigos e sites oficiais de
notícias que abordam sobre o assunto, fazendo uso do método dialético de análise, que
segundo Chizzotti (1979, p. 80), “valoriza a contradição dinâmica do fato observado e a
atividade criadora do sujeito que observa, as oposições contraditórias entre o todo e a parte e
os vínculos do saber e do agir com a vida social dos homens”.
Iniciaremos a discussão, abordando de forma breve, sobre o contexto do Brasil
durante a ditadura civil militar. Esse foi um período de restrição à liberdade, censura e torturas
entre 1964 a 1984 em que os militares conduziram o Brasil. Mas também tiveram apoio de
determinados segmentos da sociedade, em especial de civis que tinham medo de um suposto
ataque comunista. Contudo, em 2019, elege-se um presidente da República que nega os
acontecimentos do golpe e prolifera discursos de uma possível volta a esta época. Para
entender melhor o extremo equívoco de Bolsonaro, torna-se necessário retornar para a
conjuntura vivenciada na ditadura civil militar. Mas antes é preciso compreender a dinâmica
do Estado e do poder político num contexto capitalista. Para isso, Osório (2014) diz que
dentre as inúmeras particularidades do Estado, existem quatro que podem ser destacadas:

a) O Estado é a única instituição que tem a capacidade de fazer com que


interesses sociais particulares possam aparecer como interesses de toda a
sociedade. [...] b) O Estado sintetiza costumes e valores compartilhados e
projeta rumos e metas comuns para os membros da sociedade. O Estado se
apresenta como comunidade. c) O poder se reproduz em e a partir de todos
os rincões e vasos capilares da sociedade, sendo o Estado o centro do poder
político, a condensação em que todas as redes e relações de poder
encontram seu núcleo de articulação. d) As sociedades não apenas
produzem, mas também se reproduzem, nos campos material, social,
político e ideológico, e é o Estado a entidade que cumpre o papel essencial
nesse processo. (OSORIO, 2014, p. 18, grifos do autor).

Em um contexto político mundial, na década de 60, a guerra fria foi um período de


conflitos ideológicos. Com medo de uma ameaça comunista, os Estados Unidos passaram a
intervir nos países da América Latina objetivando impedir o avanço de ideias comunistas,
portanto a ditadura foi um mecanismo apoiado pelos Estados Unidos. Sendo assim, o golpe
militar de 1964 tem seu início no dia 31 de março e sua instauração definitiva no dia 1 de
março de 1964 pelos militares.

544
Com a derrubada do regime militar outro cenário político, econômico e social
começou a ser formado no Brasil, principalmente a partir do fim dos anos de 1980 com a
implantação das políticas neoliberais. Estas agravam o desemprego, aumentando o nível de
desigualdade social no país (FONTES; MECHI, 2019). Nesse período, vivencia-se o processo
de redemocratização no país. Fernando Collor de Mello vence as primeiras eleições
presidenciais diretas no ano de 1989 e toma posse em março de 1990 em que permanece até
1992. Se o neoliberalismo no Brasil iniciou com a eleição de Collor foi, contudo, no governo
FHC (1994-2002) que ele de fato avançou (ANTUNES, 2005).
Após anos de comando de governos de direita, em 2002 o líder operário Luiz Inácio
Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores - PT é eleito Presidente da República com o apoio
das esquerdas, sendo reeleito em 2006. Conforme explicam Teixeira e Pinto (2012), as bases
de regime da política macroeconômica do governo FHC, como o sistema de metas de
inflação, superávits primário e câmbio flutuantes foram mantidas no governo Lula em seu
primeiro mandato. No entanto, o segundo mandato, o governo de Lula foi marcado pela
flexibilização na gestão da política econômica.
Após o período de Lula quem assume a presidência é Dilma Roussef em 2010, e sendo
reeleita em 2014. Segundo Teixeira e Pinto (2012) o primeiro mandato de Dilma foi marcado
pelos limites no modelo de crescimento fundamentado no mercado interno e na redistribuição
da renda. No segundo mandato, para Prando (2016), ele nem chegou a iniciar, pois a crise
econômica vivenciada desde o primeiro mandato estava crescendo. Ainda no processo de
campanha eleitoral, Dilma vinha apresentando um pais inexistente, que apresentava
intervenção nos preços da gasolina e da energia elétrica, contendo os índices de inflação, que
após a sua eleição viriam a superar a meta. Em junho de 2013, milhares de brasileiros tomam
as ruas de diversas cidades do país protestando contra o aumento da tarifa da passagem de
ônibus e contra a precarização de modo geral. Nesse contexto, o governo Dilma começa a
entrar em colapso (PRANDO, 2016).
De acordo com o documentário Democracia em Vertigem (2019), indicado ao Oscar
2020, se iniciam no Brasil inteiro, a partir de 2015, uma onda de protestos puxado por
membros de movimentos de direita como o Movimento Brasil Livre – MBL, nas redes
sociais, reforçada pela mídia, com intuito de pedir o impeachment de Dilma Rousseff, então
Presidenta do Brasil pelo PT e defender as operações da Lava-Jato, aprovada por Dilma na
545
tentativa de amenizar a corrupção. Os protestos contra o governo Dilma se ampliaram mais
ainda em 2016, coadunando os interesses de políticos pertencentes ao Congresso Nacional e
Senado com os interesses da população em protesto.
O pedido de impeachment foi aceito e Dilma restituída do poder, ou seja, seu sucessor,
o então Vice-Presidente Michel Temer do PSDB e chefe deste partido, assumiu a presidência,
e logo restabeleceu alianças com partidos de direita e empresários, reafirmando sua
perspectiva neoliberal (DEMOCRACIA EM VERTIGEM, 2019). Sobre a ofensiva neoliberal,
Bourdieu (1998) relata que:

[...] à utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito se realiza através da ação


transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as medidas políticas
[...]colocando em risco todas as estruturas coletivas capazes de resistirem à lógica do
mercado puro [...]. O programa neoliberal extrai sua força social da força político-
econômica daqueles cujos interesses ele exprime (BOURDIEU, 1998, p. 137-138).

Fuser (2018) diz que o golpe jurídico, midiático e parlamentar de 2016 contra o
governo legítimo de Dilma Rousseff foi muito expressivo, pois anulou as ilusões do poder
infinito da política de conciliação de classes, ou seja, anulou o pensamento de que seria
possível vencer a apartheid social e o subdesenvolvimento econômico somente por meio do
desenvolvimento da economia, sem enfrentar as elites burguesas, elites estas que se
mostraram coesas no processo de instauração do golpe de 2016.
Em 2017, Jair Messias Bolsonaro, do Partido Social Liberal – PSL, lança sua
candidatura à presidência do Brasil, juntamente com o ex-Presidente Lula, do PT. Em 2018,
Lula foi preso, após denúncia realizada pelo juiz federal de primeira instância, Sergio Moro,
por corrupção e lavagem de dinheiro por meio da operação Lava-Jato. Lula foi impedido de
concorrer às eleições presidenciais de 2018, indicando como candidato Fernando Haddad. Jair
Bolsonaro foi eleito no segundo turno das eleições de outubro de 2018, com 55% dos votos
válidos, o que caracteriza cerca de 55 milhões de votos para o candidato, segundo o portal G1
de notícias. Jair Bolsonaro assume a presidência do Brasil em janeiro de 2019, e nos seus
primeiros meses de mandato realizou várias reformas políticas. Entre as instabilidades
vivenciadas no governo Bolsonaro, encontram-se os conflitos políticos internos dentro do
próprio governo.

546
No ano de 2019, ano da posse de Bolsonaro na presidência do Brasil, vários direitos
começaram a ser atacados. O então presidente não demorou a mostrar as suas garras. Iniciou
instantaneamente a cumprir as atrocidades prometidas em campanha logo no seu primeiro dia
de mandato. Esse e outros ataques começaram a ser orquestrados de maneira a garantir a
expansão neoliberal no Brasil com a sua política de privatização a qualquer custo. Todos esses
fatores nos transportaram para outro período histórico, um período sombrio, temeroso e
antidemocrático que foi a ditadura civil militar. A sensação de regresso ao passado se tornou
constante desde o primeiro dia que o representante da época que caracterizamos como a mais
vil da história do Brasil se apossou do poder. E até hoje convivemos com essa sensação de
golpe iminente, como se o espectro reacionário tivesse tomado vida e se personificado para
nos assombrar. A democracia está em vertigem.
A conjuntura vivida atualmente não necessariamente significa o despertar de uma
ditadura como a que aconteceu em 1964, afinal o governo de Jair Bolsonaro vem sendo
desmoralizado internacionalmente. No entanto, remetemo-nos a uma ditadura velada, em que
os discursos utilizados por Bolsonaro se pautam na dominação advinda da raiz estrutural
capitalista, por meio de todas as formas de preconceito, discursos violentos e notícias falsas,
minando a subjetividade de uma coletividade que já é construída historicamente por esses
pressupostos, mas que agora, tem álibi para expulsa-los de seus subconscientes e externa-los
no seio da sociedade por meio do ódio gratuito a pessoas ou grupos que fogem das regras
ditadas por Bolsonaro. O processo dominador ideológico se fundamenta em cunho
ultraconservador, religioso moralizante, repassado por meio das instituições sociais, golpe
midiático que corroborou para o crescimento da popularidade de Bolsonaro, bem como de
seus discursos. Não basta derrubar Bolsonaro, é preciso combater o bolsonarismo.
Verificamos esses argumentos nas eleições presidenciais de 2022 - 4 anos do
governo de Jair Bolsonaro com constantes ameaças de privatização, redução de direitos,
escândalos de corrupção, falas antidemocráticas e preconceituosas, discursos problemáticos,
negligências durante a pandemia do Covid 19, entre outros – em que 43,20% (51.071.194)
dos votos válidos no primeiro turno foram para o candidato Bolsonaro (TSE, 2022). Apesar
de ficar em segundo lugar, o número de eleitores que ainda votam em Bolsonaro é expressivo.
Além disso, conseguiu eleger a maior bancada no Senado, com 14 senadores a seu favor,
revelando a manutenção do bolsonarismo e da extrema direita no Brasil. Marx diz que a
547
história só se repete como farsa, e a história do Brasil continua a se repetir como farsa. A
democracia está em vertigem. No entanto, citando a ex-presidenta Dilma Rousseff, “todos
seremos julgados pela história”, as eleições presidenciais de 2022 no Brasil irão para o
segundo turno, revelando novos desdobramentos para a democracia brasileira dos próximos
anos.

Palavras-chaves: Trajetória Política Brasileira. Estado. Democracia.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, R. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2ª ed.
Campinas/SP: Autores Associados, 2005.
BOURDIEU, P. Contrafogos. Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998.
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 2 ed. São Paulo: Cortez Editora,
1979.
DEMOCRACIA em vertigem. Produção de Petra Costa. Netflix, 2019. Documentário em
vídeo (2h 1m).
Eleição Geral Ordinária 2022. Tribunal Superior Eleitoral, Brasília, 02 out. 2022. Eleições
2022. Disponível em: https://resultados.tse.jus.br/oficial/app/index.html#/eleicao/resultados.
Acesso em: 03 out. 2022.

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contemporâneo. In: ______. História e lutas sociais. A classe que trabalha em movimento.
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FUSER, I. América Latina: progressismo, retrocesso e resistência. Saúde Debate, Rio de
Janeiro, v. 42, n.3, p. 78-89, nov. 2018.
Jair Bolsonaro é eleito presidente e interrompe série de vitórias do PT. Portal G1, Brasília, 20
out. 2018. Eleições 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/28/jair-bolsonaro-e-eleito-
presidente-e-interrompe-serie-de-vitorias-do-pt.ghtml. Acesso em: 25 jul. 2022.
OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder.
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PRANDO, R. A. Política e estilos de liderança: FHC, Lula e Dilma. Revista UNIESP, São
Paulo, 2016.

548
TEIXEIRA, R. A.; PINTO, Eduardo Costa. A economia política dos governos FHC, Lula e
Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Economia e
Sociedade, Campinas, v. 21, Número Especial, p. 909-941, dez. 2012.

549
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 3 - POPULISMO E CRISE DA DEMOCRACIA

URNAS ELETRÔNICAS E FAKE NEWS: VIOLÊNCIA ELEITORAL


SIMBÓLICA CONTRA DEMOCRACIA

Débora Evelyn Lima Lopes282

As urnas eletrônicas, como sistemas eletrônicos de votação, destacam-se por se


qualificarem em rapidez nas apurações, tecnologia, participação política, dentre outros
aspectos a serem apresentados no decorrer da presente pesquisa. Hodiernamente, por
intermédio dos dispositivos de votação eletrônica, como procedimento utilizado nas eleições,
elegem-se candidatos para diferentes cargos e em diferentes níveis de poder.
Não obstante, apesar dos benefícios, críticas sob a perspectiva da segurança da
informação, a seguir expostas, são levantadas a respeito da transparência e efetiva lisura do
processo em si. Conquanto, as referidas questões dependem da concretização muitas
possibilidades que tornam mínima a possibilidade de falha. Em outro plano, observa-se que a
real preocupação quanto as críticas se revelam quando constituídas no formato de fake news,
com falsas notícias acerca de um método procedimental democrático e dotado de
legitimidade, surgindo a seguinte questão: Em que medida as fake news acerca das urnas
eletrônicas se constituem como uma violência eleitoral simbólica contra a democracia?
A presente pesquisa busca elucidar brevemente o questionamento acima, a partir de
revisão bibliográfica, tendo como metodologia o diálogo entre referenciais teóricos acerca da
evolução da utilização das urnas eletrônicas no Brasil, sobre a fake news como um fenômeno
negativo na comunicação e na política, bem como acerca da legitimidade de atores,
procedimentos e resultados em eleições contenciosas.
O cadastramento único e informatizado dos eleitores tem início em 1985, até então não
havia um cadastro nacional formal dos eleitores, abrindo margem às fraudes existentes,
enquanto a primeira e isolada votação por intermédio de um computador, em Brusque/ SC se
concretiza em 1989. Na sequência, o primeiro resultado das eleições de forma computacional
da Justiça eleitoral ocorre em 1994, que se constituiu como um momento decisivo na busca de
mudança do voto em papel para o voto eletrônico, haja vista fraudes generalizadas no Rio de

282
Graduada em Direito, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade Federal
do Pará, e-mail: ad.deboralopes@gmail.com
550
Janeiro, oportunidade na qual os resultados foram anulados e novas eleições se realizaram.
Assim, somente em 1995 se dá a apresentação de protótipos de urna eletrônica por meio do
TRE/ MG. (FERRÃO, I et al, 2019, p. 3 e 4.).
A implantação das urnas eletrônicas no Brasil ocorre em 1996, com 32% de
abrangência/utilização dos votantes, e em 1998 o poder de processamento foi melhorado,
majorando para 57% de utilização pelos votantes. As urnas começaram a ser instaladas
previamente em locais de votação e somente em 2000 todos os eleitores passaram a votar de
forma eletrônica. (FERRÃO, I et al 2019, p. 4.). A partir de então, muitas foram as evoluções
e aprimoramentos nas urnas eletrônicas, que se constituem como um método democrático de
participação ativa e cidadã. Isto é, o procedimento eletrônico em questão, com buscas
constantes de melhorias, consubstanciou a luta contra as fraudes até então existentes no voto
em papel.
São muitos os benefícios viabilizados pelas urnas eletrônicas, dentre estes, destacam-
se a própria eficiente apuração dos votos, bem como a apuração em locais de difícil acesso,
considerando a extensão territorial brasileira. Além disso, “a ocorrência de fraudes, se é que
ainda existem, também é hoje muito mais restrita em relação a que se registrava na forma
tradicional de votação” (GASTALDI, H.; ROSENDO, R., 2012, p. 2).
Gastaldi e Rosendo (2012), ao analisarem as mudanças no processo eleitoral e no
comportamento a partir das urnas eletrônicas, observaram que a decisão do voto ocorre antes
da votação, quando o eleitor toma conhecimento do número do candidato em que deseja votar
e não mais somente no ato registrar o nome do candidato, o que impactou na diminuição da
quantidade de votos atribuídos, por acidente, em pequenos partidos. Ademais, constataram
que nas eleições proporcionais, os votos brancos e nulos foram reduzidos, enquanto que para
governador e presidente o impacto se repetiu somente nos votos brancos.
Importante frisar ainda que o voto eletrônico facilitou a votação de eleitores de baixa
escolaridade e, por consequência, diminuiu a taxa de votos nulos e brancos, aumentando a
responsividade nos candidatos eleitos, especialmente a nível federal, que acabam alocando
recursos também nas localidades destes “novos eleitores’, garantindo mais qualidade de vida a
estes eleitores e, por conseguinte, garantindo suas reeleições. (SCHNEIDER, R. et al, 2020).
No entanto, apesar de todos os benefícios narrados, as urnas eletrônicas são alvos de
questionamento em razão de problemáticas relacionadas à segurança e transparência do
551
processo, bem como e, sobretudo, de pessoas mal intencionadas que aumentam as narrativas,
construindo mentiras em face das urnas, questionando a legitimidade de um procedimento
evidentemente democrático, a partir de fake News.
Auditorias e testes públicos de segurança promovidos pelo Tribunal Superior Eleitoral
em parceria com profissionais da área da computação e sistemas de informação constataram
falhas que, apesar de restritas, qualificam-se como problemáticas para segurança. Muito
embora, importante destacar, que os referidos testes e aprimoramentos são constantemente
realizados pela Justiça Eleitoral brasileira (JUSTIÇA ELEITORAL, 2022).
A saber, verificou-se que ocorre o armazenamento e compartilhamento da mesma
chave criptográfica nos cartões de memórias, pelo que se fosse revelada, também se revelaria
a sequência dos votos empregados e, com ajuda da verificação humana nas salas de votação
para ordenar e nomear os eleitores, até mesmo o sigilo do voto correria o risco de ser violado,
implicando em violação da cláusula pétrea constitucional do Art. 60, parágrafo 4º; II.
(ARANHA et al, 2013). Não obstante, de maneira geral, quanto as críticas e denúncias quanto
as fraudes, “não são verificados padrões que suportem tais afirmações” (GASTALDI, H.;
ROSENDO, R., 2012, p. 10).
Entretanto, as críticas levantadas não levam em consideração o robusto histórico das
urnas eletrônicas, sua evidente motivação em mitigar erros humanos e possibilidade de
fraudes, como antes ocorria. A viabilidade de falha constada pela equipe participante do teste
público, como visto, depende de muitas possibilidades a serem alcançadas simultaneamente,
por isso, somente se consolidaria caso desfrutasse de um grande lapso temporal, bem como
robusto engajamento humano nas inúmeras salas de votação brasileiras, sendo ínfima a
possibilidade de falha.
Isto é, não se analisa o contexto sob a ótica da ciência política, na qual se entende a
falibilidade das urnas de forma mínima, já que de forma geral, o resultado das eleições não
seria afetado, bem como dito, prioriza-se o histórico e a motivação das urnas eletrônicas no
Brasil, na busca da mitigação dos erros humanos e evidente diminuição das possibilidades de
fraudes.
Não obstante, uma maior e real preocupação se constitui a partir de críticas no formato
denominado fake news, com falsas notícias e disseminação de desinformação acerca de um
método procedimental democrático e dotado de legitimidade, surgindo a seguinte questão: Em
552
que medida as fake news acerca das urnas eletrônicas se constituem como uma violência
eleitoral simbólica contra a democracia?
Hodiernamente, as notícias falsas desempenham um papel evidentemente desonesto
e, por vezes, violento, especialmente contra democracia. A ampla e fácil possibilidade de
propagação mediante instrumentos da internet provoca certa confiança nos receptores das
mensagens – sem crivos plausíveis ou até mesmo educação política – uma rápida aceitação.
Isto é:

“A prevalência de histórias falsas on-line erige barreiras à tomada de decisões


políticas esclarecidas e torna menos provável que os eleitores escolham com base
em informações genuínas, em vez de mentiras ou ‘distorções’ [spin] enganosas”
(PERSILY, 2017, p. 70).

A informação se constitui como basilar para o que se espera de um denominado


estado democrático de direito, vez que as narrativas e interpretações exibidas buscam,
sobretudo, o convencimento dos receptores da mensagem e, por conseguinte, a formação de
opinião deste grupo. Não obstante, com a proliferação de notícias falsas, especialmente no
campo político, a narrativa dos fatos perpassa a necessidade de checagem e verificação da
factibilidade do que se apresenta.
O termo “fake news” ganhou popularidade mediante a retórica utilizada por Donald
Trump, na qual se apresentava falsas informações que teriam sido constituídas e
compartilhadas nas eleições, culminando com sua nomeação para Casa Branca em 2016
(OLSON, 2016), retórica também adotada como estratégia de Bolsonaro na disputa
presidencial em 2018.
Gomes e Dourado (2019, p. 37) asseveram que a utilização de fake news políticas
“consiste em desqualificar todas as instituições tradicionalmente dotadas de credibilidade para
arbitrar sobre o conhecimento socialmente aceito sobre fatos”, oportunidades em que se
mobiliza a alteração ou má interpretação proposital dos fatos, divulgando-os. É nesse contexto
que Gomes e Dourado (2019, p. 44) apresentam que “a contrafação informacional, nesta era
de desintermediação política em ambientes digitais, é basicamente a política sabotando a
democracia”.
Entende-se que se trata de estratégia política, que ao priorizar determinado candidato
em detrimento de outro, ataca instituições e instrumentos importantes para o fortalecimento da
553
democracia. Nesse sentido, observa-se o ataque generalizado a um dos instrumentos mais
interessantes da democracia brasileira, qual seja, a urna eletrônica.
A desconfiança generalizada nas instituições, especialmente em um período eleitoral é
uma temática que merece atenção, sobretudo em razão do que se denomina “Eleições
Contenciosas”, que dizem respeito a “grandes desafios, com diferentes graus de severidade à
legitimidade dos atores, procedimentos ou resultados eleitorais” (NORRIS et al, 2015, p. 2).
Portanto, eleições em um grau de bom funcionamento fortalecem a democracia, enquanto o
contrário também é verdadeiro, logo, a boa execução destes procedimentos, também inclui a
utilização da urna eletrônica como instrumento de votação. Norris et al (2015, p. 2) indicam
que as eleições contenciosas geram consequências nos comportamentos dos cidadãos e
mobilizam desafios à estabilidade democrática quando há derrubada de lideranças, suscitando
violência eleitoral e demandas nacionalistas em um contexto de secessão.
Os autores apresentam uma sequência referente aos desdobramentos do que
denominam “eleições contenciosas”. Partido do prejuízo à “integridade eleitoral”, onde se
observa problemas falta da igualdade de condições nos regulamentos, irregularidades,
passando ao enfraquecimento da “legitimidade”, em alusão aos atores, procedimentos ou
resultados, chegando aos “desafios pacíficos”, com a mobilização de contestações, e por fim,
a própria “violência eleitoral”, na qual se descreve o envolvimento de ameaça ou coação física
às pessoas ou propriedades no processo eleitoral (NORRIS et al, 2015, p. 5).
Conquanto, é possível aduzir que a violência eleitoral também se constitui no âmbito
simbólico e se relaciona efetivamente com os demais graus relacionados pelos autores. É
possível entender, portanto, que ao se criticar deliberadamente e sem fundamentos plausíveis
a instrumentalidade da votação, a partir das urnas eletrônicas, critica-se questões
procedimentais.
Dessa forma, ao questionar infundadamente a legitimidade procedimental, sobretudo,
por vezes, na tentativa de conturbar o processo eleitoral, consubstancia-se uma violência
simbólica eleitoral, na qual os eleitores, especialmente os de menos instrução são motivados a
duvidar do ato civil em votar e, por conseguinte, dos resultados eleitorais.
A exemplo do que ocorre na disseminação de fake News às urnas eletrônicas, a
temática se torna problemática por disseminar contrariedades não somente a um instrumento
procedimental comum. Constatou-se que questionar instituições democráticas em um período
554
eleitoral, sobretudo no formato de fake news, gera eleições contenciosas, consequentemente
há uma falta de percepção eleitoral que, por sua vez, afeta a satisfação com o regime e a
confiança nas instituições, afetando a própria democracia.
Isto é, se democracias bem estabelecidas possuem reservatórios culturais de
aceitação e a legitimidade tem a ver com a ampla aceitação das denominadas regras dos jogos,
onde há aceitação voluntária dos atores (NORRIS et al, 2015, p. 2), entende-se também que o
ato de questionar, de forma leviana, procedimentos até então aceitos como legítimos como a
urna eletrônica, sobretudo a partir da motivação retórica de um candidato para se
autopromover, constitui-se como um ato de violência eleitoral simbólica à democracia.

Palavras-chaves: Democracia. Fake News. Urnas eletrônicas.

REFERÊNCIAS

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Vulnerabilidades no software da urna eletrônica brasileira. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2013.
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http://seer.upf.br/index.php/rbca/article/view/9056/114114678. (Acesso em: 12 de jul. de
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GASTALDI, Helio; ROSENDO, Rosi. Urna eletrônica no Brasil: mudanças no processo
eleitoral e no comportamento dos eleitores. Revista Latinoamericana de Opinión Pública, vol.
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GOMES, Wilson; DOURADO, Tatiana Maria. Fake news, um fenômeno de comunicação
política entre jornalismo, política e democracia. Estudos em Jornalismo e Mídia, vol. 16, no.
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JUSTIÇA ELEITORAL (2022). TPS. Teste Público de Segurança.
https://www.justicaeleitoral.jus.br/tps/. (Acesso em: 10 de jul. de 2022).
NORRIS, Pippa; MARTINEZ I COMA, Ferran; FRANK, Richard W. Contentious Elections:
From ballots to barricades. New York: Routledge/Taylor & Francis Group, 2015.
OLSON, P. How Facebook Helped Donald Trump Become President. Forbes, p. 1–9,
2016.

555
PERSILY, N. The 2016 US election: Can democracy survive the internet? Journal of
democracy, v. 28, n. 2, p. 63–76, 2017
SCHNEIDER, Rodrigo; ATHIAS, Diloá; BUGARIN, Mauricio. Electronic voting and public
spending: the impact of de facto enfranchisement on federal budget amendments in Brazil.
Journal of Applied Economics, vol. 23, no. 1, p. 299–315, 1 Jan. 2020.

556
GT 9 - DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

SESSÃO 3 - POPULISMO E CRISE DA DEMOCRACIA

A CONSTRUÇÃO DA PERICULOSIDADE SOCIAL EM TORNO


DE GRUPOS ANTIVACINAÇÃO: ANÁLISE DE UMA SESSÃO DA CPI
DA COVID-19 NO BRASIL
Crislane Oliveira do Nascimento283
Isaura Wayhs Ferrari284

A doença desencadeada pela infecção pelo Coronavírus Disease 2019 (COVID-19),


vírus SARS-Cov-2, foi inicialmente encontrada na China, em dezembro de 2019. No Brasil, a
doença fez sua primeira vítima no final de fevereiro de 2020. Frente ao rápido crescimento do
número de casos confirmados e de mortes em decorrência do vírus, em diferentes países, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a caracterizar a situação como uma pandemia,
a partir de 11 de março de 2020 (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020). Os últimos
dados285 sobre a COVID-19 no Brasil mostram que o país atingiu o número de 34.592.027
pessoas contaminadas. Os óbitos chegaram a 685.428 casos. A região Sudeste apresenta o
maior número de casos confirmados, seguida pelo Sul. (IBGE, 2020; Ministério da Saúde,
2020). Com a pressão causada pelo avanço da contaminação pela COVID-19, o sistema de
saúde entrou em colapso em abril de 2020, com falta de oxigênio e Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs) em diversos estados e regiões do país; no entanto, esse cenário voltou a se
repetir também no fim de 2021, com a chegada da nova linhagem do Sars-Cov-2, que passou
a ser classificada como variante pela Organização Mundial de Saúde (OMS): a Ômicron, que
se espalhou pela Europa, e logo foi detectada no país.Em poucas semanas a ocupação de leitos
clínicos aumentou mais de 10 vezes. Em seguida, observou-se forte aumento de pacientes em
UTIs e, já no fim de janeiro de 2022, as mortes por COVID-19 aumentaram substancialmente,
embora em patamares drasticamente menores do que aqueles do auge da segunda onda
(Ministério da Saúde, 2022).

283
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política, pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC/ Concentração: Sociologia. Socióloga pela Universidade Federal do Amapá – UNIFAP,
Especialista em Gestão e Docência do Ensino Superior pela Universidade do Estado do Amapá – UEAP. E-mail:
cris.oliveiraan@gmail.com.
284
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política, pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC/ Concentração: Sociologia. Mestre em Sociologia e Ciência Política, e graduada em
Ciências Sociais pela mesma instituição. E-mail: isaura.ferrari@hotmail.com.
285
Dados finalizados em 20 de setembro de 2022. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.

557
Neste sentido, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar ações
do governo federal do presidente Jair Bolsonaro, durante a pandemia de COVID-19 no país. A
CPI da COVID-19 foi criada em 13 de abril de 2021, e oficialmente instalada no Senado
Federal em 27 de abril de 2021, e prorrogada ainda por mais três meses em 14 de julho de
2021, sendo concluída com a apresentação e votação do relatório final no dia 26 de outubro de
2021.
Nise Yamaguchi, 60 anos, natural de Maringá/PR, é médica oncologista e imunologista
e professora-pesquisadora universitária, formada pela Universidade de São Paulo. Durante sua
formação acadêmica desenvolveu pesquisas acerca da visão humanística de pacientes e seus
familiares. A médica tornou-se conhecida em 2020, quando chegou a ser cotada para suceder
o então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, através da controvérsia em defender o uso
de hidroxicloroquina286 em pacientes que fossem diagnosticados com COVID-19,
convergindo com o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, que incentivou e fez
campanha pelo uso do medicamento.

No dia 01 de junho de 2021, Nise Yamaguchi,depôs na condição de convidada.


Apontada como integrante de um denominado "gabinete paralelo na Saúde", que
supostamente aconselhava Jair Bolsonaro a tomar decisões no enfrentamento da pandemia, a
médica negou a imputação, afirmando que era convidada e que sua atuação era somente como
uma “colaboradora eventual”, e que o este “gabinete”, na verdade, era um “conselho científico
independente”.

Nise Yamaguchi manteve a opinião de que não era necessário vacinar a população de
forma aleatória, alegando que os médicos que defendiam o tratamento precoce, o qual incluía
o uso da cloroquina, eram perseguidos politicamente. Negou, ainda, que teria proposto alterar
a bula da cloroquina para incluir o seu uso no tratamento da COVID-19.
“Os anormais” é o livro resultante de um compilado de aulas referentes a um curso
ministrado por Michel Foucault no Collège de France, de janeiro a março de 1975. O curso
sobre os anormais dá continuidade ao estudo foucaultiano sobre saber e poder, principalmente
sobre o poder disciplinar e o poder de normalização. Os principais temas abordados nas aulas

286
Hidroxicloroquina é um fármaco usado na prevenção e tratamento de malária sensível à cloroquina.

558
dizem respeito a esses indivíduos ditos “perigosos”, chamados no século XIX de “anormais”.
São definidas as três figuras principais da anormalidade: os monstros, os incorrigíveis e os
onanistas. Esta obra é emblemática quando buscamos compreender o princípio do que
entenderemos como periculosidade social, que pode servir, operacionalmente, para imputar
punições e estigmatizações a determinadas categorias de indivíduos.
A primeira aula traça um panorama que, em termos gerais, chega ao tema da invenção
das tecnologias positivas do poder e das definições daquilo que se poderia chamar de normal e
patológico. Foucault parte de exames médico-legais para descrever a situação contemporânea
de relação entre o discurso médico e o discurso judiciário acerca do crime e o criminoso. Para
ele, há a tendência para uma “dupla qualificação”, quer dizer, um conjunto que tem dois pólos:
um terapêutico e outro judiciário. Trata-se de uma miscibilidade institucional que responde e
atende ao perigo, a esses indivíduos que não são nem exatamente doentes nem exatamente
criminosos, mas sempre perigosos. A caracterização desses indivíduos está ligada a formas de
controle social, de apreciação, de efeitos de poder, que ficam cada vez mais ativos na medida
em que lhes cunha o status de anormalidade.
Caminhando neste sentido, Foucault entende que “a noção de periculosidade significa
que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao
nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades
de comportamento que elas representam” (Foucault, 1999, p. 85). Por isso, reconhece-se que
os termos periculosidade e “perigoso” são utilizados e geralmente atrelados à noção de risco,
para designar indivíduos ou grupos diversos, que ao longo do tempo reconfiguram e
reinventam, constantemente, aquilo que se entende como um risco à ordem e à segurança da
sociedade, e que será alvo de repressão e segregação. (MATSUDA, 2009).
A partir destas noções, de anormalidade e periculosidade, associadas ao oferecimento
de risco à sociedade e as consequentes repressões e segregações, avançamos no sentido de
relacionar as falas e argumentos utilizados durante a CPI da COVID no Brasil para demonstrar
a forma com que esses elementos são mobilizados e articulados a fim de pintar um indivíduo e
um grupo potencialmente perigoso no contexto social brasileiro durante a crise sanitária.
Entretanto, essa atribuição do caráter perigoso é também convenientemente utilizada em uma
direção de vitimização, justamente pelo grupo estigmatizado. Trata-se, portanto, de uma

559
interação ambivalente, na qual o dispositivo da periculosidade pode funcionar para justificar
pautas não só diferentes como concorrentes, tornando a polarização ainda mais enérgica.
De acordo com Ferrari et al (2022, no prelo) a prática médica goza de imenso prestígio,
sendo a medicina um exemplo de profissão que, após a Revolução Industrial e a intensa
divisão do trabalho social, apresentou bases cognitivas substantivas, requerendo para si o
domínio e monopólio de conhecimentos e suas aplicações através de serviços especializados.
Ao médico coube o papel de definir realidades, de dizer o que é sanidade ou insanidade e a
“prerrogativa de elaborar e executar critérios de saúde e doença, transformando-se em
paradigmas médicos-sociais”. Sua opinião é frequentemente imperativa e a força dessa
autoridade possui um alto grau de legitimidade.
Durante a pandemia de COVID-19, a validação da profissão médica teve um caráter
social, assim como domínio do saber e das práticas médicas estiveram em desacordo. Neste
contexto, surgiu a organização denominada “Médicos pela Vida” (MPV)
(https://medicospelavidacovid19.com.br/), composta por profissionais médicos do Brasil que
se manifestam e advogam em favor do tratamento precoce para COVID-19, pela não
obrigatoriedade da vacinação, e uso de fármacos que não têm comprovação científica contra o
vírus. Além disso, o grupo também foi alvo de investigações da CPI da COVID-19.
A partir do século XIX percebe-se uma tendência a considerar toda criminalidade
como tendo um fundo de monstruosidade: “Todo criminoso poderia muito bem ser, afinal de
contas, um monstro, do mesmo modo que outrora o monstro tinha uma boa probabilidade de
ser um criminoso.” (FOUCAULT, 2001, p. 101). Primeiro se considerava que todo e qualquer
monstro podia ter em si uma possibilidade de criminalidade, mas a lógica se inverte, tratando
agora, que todo crime possa ter por trás um monstro. A que isso se deve? A resposta se
articula em torno da economia do poder de punição. Em dado momento, o exercício do poder
de punir teve de considerar a natureza do criminoso e a separação entre os atos considerados
criminosos ou não puxa consigo outra demarcação: os indivíduos considerados normais e
anormais.
No caso da sessão da CPI em questão, foram identificados elementos nos discursos,
tanto dos membros da câmara quanto da Dra. Nise, que remetiam a um caráter de
periculosidade em torno de algumas questões específicas, mas, sobretudo, daquelas que foram
emitidas com a intenção de qualificar o indivíduo e o grupo, neste caso, de médicos contra a
560
vacinação. Nise Yamaguchi, que é médica, disseminou, ao longo do período crítico de
tratamentos e prevenções da COVID-19, discursos acerca de medicamentos não comprovados
cientificamente, do distanciamento físico e do uso de vacinas. Esse exercício foi feito de
forma consciente e demonstrou desacordo com a Organização Mundial de Saúde – OMS. O
mesmo vem acontecendo, corriqueiramente, com a associação Médicos pela Vida, que conta
com médicos de diversas especialidades e de vários lugares do Brasil que defendem e
propagam as mesmas informações que a médica que depôs na CPI.
Contudo, nesse contexto, o contraponto ocorre quando esse mesmo discurso acerca de
sua periculosidade é utilizado de forma conveniente pelos próprios indivíduos. Há tempos,
desde o início das discussões acerca da imunização contra a Covid-19, grupos de médicos têm
se manifestado, dentre os quais se destaca a Organização dos Médicos pela Vida, da qual Nise
Yamaguchi é membra. Em diversas ocasiões, a organização relata sofrer perseguição –
sobretudo pela “mídia”, por organizações globais, instituições científicas e sociedades
médicas. O exemplo de declaração que exemplifica essa crença é a fala da Dra. Nise quando
questionada sobre o chamado “gabinete paralelo” de assessoria ao governo em assuntos sobre
a pandemia. Ela diz: “acabou havendo uma perseguição tão grande da mídia que a gente
acabou dissolvendo esse grupo”. Falas como esta são comuns entre os MPV, e ensejam um
discurso de defesa importante, que tende a criar uma redoma de autoproteção notável, como
por exemplo, na fala do recorte 3, proferida por Nise: “isso que está se tentando fazer aqui,
que é a demonização do tratamento precoce e das pessoas que participam dessa iniciativa,
infelizmente é uma coisa muito séria e muito grave. E eu acredito que a gente deva se levantar
veementemente para defender a nossa honra [...]”.
Foucault, ao final de sua elaboração sobre a periculosidade, afirma que “foram
necessários quase cem anos para que esta noção de indivíduo perigoso, que estava
virtualmente presente na monomania dos primeiros alienistas, fosse aceita no pensamento
jurídico” (FOUCAULT, 2004, p. 25). Atualmente, ainda são muitas as referências à obra
foucaultiana que se podem interpretar nas mais diversas manifestações, sejam elas
relacionadas à saúde, doenças e periculosidade social. É interessante poder identificar uma
análise de material audiovisual, com elementos do discurso em detrimento de dimensões
relacionadas à construção de imagens em movimento e sons, e as contribuições de Michel

561
Foucault, um dos autores do século XX cujo pensamento foi considerado de grande influência,
tanto em níveis acadêmicos quanto ativistas.

Palavras-chave: Periculosidade social. Hesitação vacinal. CPI da Covid.

REFERÊNCIAS

IBGE. Cidades: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020. Disponível em:


https://cidades.ibge.gov.br/.

Ferrari, I.W., Grisotti, M., Amorim, L.C., Rodrigues, L.Z., Ribas, M.T., Uflacker-Silva, C..
“Tratamento precoce”, antivacinação e negacionismo: quem são os Médicos pela Vida no
contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil?. Ciência e Saúde Coletiva. Acesso em 05 de
Ago de 2022. Disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/tratamento-precoce-
antivacinacao-e-negacionismo-quem-sao-os-medicos-pela-vida-no-contexto-da-pandemia-de-
covid19-no-brasil/18419

FOUCAULT, M. A evolução da noção de indivíduo perigoso na psiquiatria legal do século


XIX(1977). In: FOUCAULT, M. Ética, sexualidade e política (Col. Ditos & escritos V. Org.
Manoel Barros da Motta). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976).


São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, Michel. Os anormais. 1ª edição. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 478 p.

ROSE, Nikolas. Government and Control. British Journal of Criminology 40, 2000, p. 321-
339.

MATSUDA, Fernanda Emy. A medida da maldade Periculosidade e controle social no


Brasil. Dissertação de Mestrado: Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus Brasil, 2022. Disponível em:


https://covid.saude.gov.br/.

UOL. CPI da Covid ouve médica Nise Yamaguchi. YouTube, 01 de junho de 2021. Acesso
em 05 de Jun de 2022. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=qWHb9907qWA

562
563
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
MESA REDONDA 2 - VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES

MESA REDONDA 2 - VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES

Antônio Sabino da Silva Neto287


Natália Pinto Costa288
Raul da Fonseca Silva Thé289

Esse trabalho são apontamentos iniciais sobre as reflexões da Mesa 2 do I Simpósio


Amazônico de Ciências Sociais, que se propôs a discutir sobre as velhas e as novas dinâmicas
de violência e conflitos sociais promovidos pelas expansões do crime organizado no norte e
no nordeste do Brasil, ainda nesse sentido fazendo uma relação entre violência e juventude, já
que existe um perfil estigmatizado dos criminalizados e vitimados por essas dinâmicas.
Debateram-se também os modos de conflitualidade que envolvem as fronteiras brasileiras,
com enfoque no Amapá, na região do Oiapoque, demarcando assim as relações de poder,
direito e conflitualidade dentro do espaço urbano, nas florestas, fronteira e sinalizando como a
violência apresenta diferentes manifestações a depender das interações sociais em qual estão
contidas.
As reflexões aqui provocadas contribuem para a agenda de pesquisa sobre segurança
pública que perpassa a linha de investigação da política de drogas, porém, não apenas ela, mas
para além dos estudos sobre os espaços urbanos, como também as dinâmicas criminais nos
espaços de fronteira e para além dele, podendo também acrescentar os espaços rurais. Dessa
maneira, irá se discutir inicialmente questões mais teóricas, mobilizando teorias sociológicas
que envolvem a temática das políticas drogas e a guerra na qual está contida e suas linguagens
e por fim, envolvendo dados mais empíricos, se discorre sobre os conflitos socioambientais no
espaço da fronteira franco brasileira.
A primeira fala se intitulou “A guerra é uma droga e a guerra às drogas: o combate
como linguagem viciada” e foi animada pelo debate interno do filme The Hurt Locker (no
Brasil traduzido para Guerra ao Terror), que tem como título uma expressão que tanto traduz
a sensação dos desarmadores de bombas em seu traje antibomba quanto expressa à
dependência e vício que soldados adquirem ao estar em guerra, gestando um Poço de

287
Doutorando em Sociologia, UFC, antoniosabino@unifap.br
288
Mestranda em Ciência Política, UFPA, nataliapinto.ce@gmail.com
289
Doutorando em Sociologia, UFC, raulsilvathe@gmail.com
564
Sofrimento. Da mesma obra foi trazida (e traduzida) uma citação nela apresentada: “A pressa
da batalha é muitas vezes um vício patente e letal, da guerra é uma droga” (war is a drug). A
partir desse mote a apresentação se desenrolou no intuito de verificar como a guerra às
drogas, levada a cabo por diversos Estados, é e se produz antes de tudo como um vício. Mas
antes de encaminhar a discussão em si, a apresentação relembrou que as ciências sociais para
as sociedades contemporâneas (sociologia) se desenvolveram (1880-1920) mediante a
formulação da busca de compreensão acerca do capitalismo, dos caminhos do trabalho e da
religião (ERIKSEN; NIELSEN, 2010). Enquanto a sociologia contemporânea e as ciências
sociais como um todo, devem desenhar e modelar seus debates na convergência, inter-
relacionamento e integralidade entre os temas do Trabalho, Saúde e Violência, estes temas
envoltos pelos debates sobre o capitalismo contemporâneo.
Feita essa introdução, cabe entender que a fala se apresentou mais como uma
publicização de uma série de notas para uma agenda de pesquisa ou em processo. Dessa
forma, primeiramente aponta para como ao se pensar ou ao a se classificar certas substâncias
como drogas a serem perseguidas se elencam um conjunto de estereótipos que tem por base o
racismo (vide documentário Baseado em Fatos Raciais) (BATISTA, 2008). Além disso,
conota uma série de oposições e aproximações entre o legal e o ilegal e entre os mundos
formais, informais e ilegais (TELLES, 2010). O que não deixa de evidenciar, já entrando no
segundo ponto, como os mercados legais e ilegais são direta e mutuamente dinamizados seja
pelo investimento financeiro proveniente de um sem-número de processos de lavagem de
dinheiro seja através dos pulmões e das correntes sanguíneas de operadores das bolsas do
mundo inteiro, demonstrando assim a imbricação interna do sistema bancário e financeiro
capitalista com os mercados de drogas classificadas como ilícitas. O terceiro pilar desse
debate é compreender que assim como qualquer substância viciante a linguagem do combate
tem seus usuários e seus junkies (adictos contumazes).
Para buscar compreender tal fato fez-se necessário uma viagem histórica entre duas
cidades, uma data e no correr entre dois anos fundantes para o quadro social contemporâneo.
Nosso caminho começou na cidade de Santiago no Chile no dia onze de setembro de 1973,
dia em que um ataque aéreo de aviões estadunidenses consumou o golpe de Estado a Allende
e empoçou não só Pinochet como também o laboratório do neoliberalismo e seus Chicago
boys (vide A Batalha do Chile). Em decorrência do violento combate aos contrabandistas que
565
atuavam no Chile, estes passaram a atuar nos países vizinhos e levaram sua expertise para o
mercado do tráfico de cocaína. No mesmo ano, de 1973, o World Trade Center (WTC) é
inaugurado na segunda parada dessa viagem, Nova Iorque. Nesse mesmo período Richard
Nixon (presidente estadunidense entre 1969-1974) iniciou a chamada guerra às drogas, para
tanto fortaleceu a DEA (Administração de Fiscalização de Drogas) que em 1977 recolheu
200kg de cocaína. É o mesmo ano do blecaute de 25 horas na região de Nova Iorque, levando
à expressão da decadência que nos anos seguintes se veria a cidade passar, como demonstrado
nos filmes The Warriors e Taxi Drive.
Se a década de 1970 apresenta o paralelismo entre neoliberalismo e tráfico de cocaína
(BATISTA, 2003), a década de 1980 aponta para que o aprofundamento do neoliberalismo
normaliza o consumo de cocaína pela geração yuppie do mercado financeiro e traz consigo o
tráfico de crack. Assim, nessa década, de um lado a cocaína alcançou milhões de usuários
regulares e de outro o crack alcançou o status de “epidemia”, a resposta estadunidense e da
cidade de Nova Iorque foram: 1) a expansão da DEA e da guerra às drogas no governo
Ronald Reagan (1981-1989), com a intensificação da punição de posse de crack em 1986 e a
apreensão de 60 t de cocaína em 1988; e, 2) a aplicação da política de tolerância zero na
cidade de Nova Iorque, ou seja, a prática de guerra urbana às drogas. Os resultados foram à
explosão da população carcerária, o aumento do abuso policial e o fortalecimento do
complexo industrial prisional-penal. A década seguinte é marcada pela passagem nos Estados
Unidos por um processo de privatização e pela retirada do Estado das atribuições de geração
de emprego, tornando-se um Estado de bem-estar ativo ou a prática-política do workfare state,
ou seja, cabendo a cada um buscar produzir suas formas de trabalho (MOSER, 2011;
NOBRE, 2012). Já no Brasil a década de 1990 foi marcada pelas chacinas do Carandiru
(1992), da Candelária e de Vigário Geral (1993) e Eldorado dos Carajás (1996), tendo como
vítimas crianças em situação de rua, moradores de comunidades, penitenciários e ativista do
MST (Movimento Sem Terra).
O novo século surge e como ele um outro onze de setembro, agora em 2001. Nova
Iorque e o atentado às duas torres do WTC. Inicia-se a Guerra ao Terror – e o tráfico de
drogas não deixa de estar no horizonte desse terror – e o que Naomi Klein (2008) chama de
capitalismo do desastre. Em conjunto com guerras abertas em países detentores de recursos do
interesse dos Estados Unidos, há a instalação do Warfare State, ou seja, o estado de guerra
566
contra o povo, em que de um lado se aprofundam as privatizações e retirada de direitos e de
outro se expandem o complexo industrial-prisional, a população carcerária e a militarização
(das polícias, mas também da segurança privada e da vida, do léxico e do escopo simbólico).
Um marco disso está no biênio 2006-2007 com a aprovação da “nova lei de drogas” e com a
Operação Policial-Militar sobre o Complexo do Alemão.
Portanto, cabe às ciências sociais investigar e militar, diante desse quadro, acerca das
temáticas da abolição penitenciária e a consequente luta contra o racismo, da desmilitarização
das polícias, da vida e do simbólico e, fundamentalmente, contra a linguagem do combate em
nossa experiência cotidiana (DAVIS, 2018).
A segunda fala discorreu sobre a atuação profissional dos trabalhadores e ex-
trabalhadores do ouro é um fio condutor da pesquisa apresentada por Antônio Sabino.
Buscou-se analisar ações dos garimpeiros não de modo personalista, mas sim à procura de
entender o funcionamento de suas agências por meio dos locais sociais ocupados (ELIAS,
2001). Assim, interpretar o processo de inserção e de permanência de brasileiros na atividade
profissional “garimpeiro” em garimpos ilegais na fronteira franco-brasileira, como também
analisar as práticas inerentes à atividade, foram estratégias necessárias para o
desenvolvimento deste trabalho. Por conta disso, este trabalho tenta responder quem são os
profissionais do ouro e quais as condições constitutivas da formação de um trabalhador que
dedica sua vida à garimpagem; posteriormente, parte para elucidar como outras atividades
laborais entrecruzam as trajetórias destes homens e mulheres, ao formar um novo estilo de
vida através de um emaranhando de configurações profissionais, políticas, econômicas,
familiares e morais na fronteira franco-brasileira, que buscam se deslocar da própria atividade
garimpeira, que paulatinamente assume a condição de descrédito entre os moradores locais.
Sigo a perspectiva de que os percursos trilhados por garimpeiros e por comerciantes
no rio Oiapoque, num movimento que interliga várias comunidades e corrutelas de garimpos
na floresta com a sede do município, se caracterizaram como um lócus privilegiado para o
início da construção do objeto desta pesquisa. Como aponta Lia Osório Machado, estes são
“lugares de comunicação” que se estabelecem “como pontos estratégicos de passagem da rede
fluvial e de caminhos” (MACHADO, 2000). Entendimento que dialoga com Silva (2014), que
observa Oiapoque como um nó em uma grande rede. Ao propor a fronteira franco-brasileira

567
como campo analítico propício para interpretar os caminhos percorridos pelos agentes que
nela interagem.
De início, é válido apontar que existem parcerias familiares e de amigos que
significativamente influenciam os processos migratórios e de permanência na atividade; ao
formar, inclusive, garimpos predominantemente compostos por familiares que exercem a
extração de ouro em pequena escala – característica na região das Guianas (OLIVEIRA,
2013). Ao passo que se tornou necessário entender como os garimpeiros, aparentemente quase
esquecidos dentro da floresta Amazônica, estão entrelaçados a redes internacionais altamente
interdependentes de comércio ilegal. Se na base existem garimpeiros ou outros profissionais
que laboram como prestadores de serviço nos garimpos; noutra ponta, muitos investidores
nacionais e internacionais também compartilham origens e aprendizados através das relações
de mando vinculadas ao ouro (MARTINS, SUPERTI, PINTO, 2015). Assim, as redes de
interdependência são produzidas por um contexto muito específico – extração e venda de ouro
– que propicia perceber, como aponta Norbert Elias (2001), que as redes de interrelação são
ao mesmo tempo rígidas e elásticas, pois ao passo que possibilitam a inserção de novos
indivíduos numa configuração, estabelecem um rígido controle de possiblidades de suas
ações, através das posições variadas que são necessárias para que o contexto situacional de
uma configuração especifique possa funcionar.
Uma diversidade de comerciantes, donos de máquinas e outros profissionais
movimentam a economia garimpeira tanto em sua base como fora da circulação cotidiana do
garimpo, em ciclos abastados da sociedade. Como aponta Tedesco (2015), este processo
insere a extração de ouro na Floresta Amazônica num largo campo de interlocuções,
tencionando o regional, o nacional e o global como escalas constitutivas de análise do
fenômeno.
Foi por meio desse contexto de percepções difusas sobre a atividade garimpeira que
iniciei a problematizar como determinados indivíduos, em diferentes posições no espaço
social, avocam e ao mesmo tempo são impelidos para o universo da garimpagem. Tornar-se
garimpeiro não se constitui como um processo caracterizado apenas pelo movimento de
migração à fronteira em busca do ouro, neste caso em específico a migração envolve para a
fronteira franco-brasileira questões mais amplas, que permeiam desde o recrutamento, o
compartilhamento de práticas cotidianas ao universo da garimpagem, como também a criação
568
de redes de pertencimento construídas pela inserção na atividade. Estas redes aproximam e
distanciam percepções sociais compartilhadas, deste modo ensejando também as
autopercepções sobre a adesão à profissão.
Em outra ponta, a relação financeira e a possibilidade de grandes lucros canalizam a
participação de investidores – organizações financeiras e criminosas (COUTO, 2022), que
mesmo em sua maioria nunca tendo viajado aos garimpos, são os principais especuladores e
beneficiários desta estratégia econômica. Pensar a relação entre investidores e garimpeiros
não só é importante, como também necessária. As duas categorias de agentes são partes
constitutivas de um mesmo universo, contudo ocupam locais sociais não só diferentes, mas
incrivelmente distantes na estrutura social na qual estão inseridos. Se de um lado eles são
interdependentes, de outro é cada vez mais comum não se conhecerem, como também sequer
saber identificar a existência uns dos outros. São existências reais, contudo não reconhecíveis
através da interrelação cotidiana.
Nesta perspectiva, as experiências individuais e coletivas destes agentes socam se
embaraçam num complexo espaço de conflitos, possíveis de serem identificados através das
aproximações e dos distanciamentos vinculados à mineração aurífera, além das demais
práticas de trabalho na fronteira. Como exemplo, é possível perceber os distanciamentos
através daqueles trabalhadores mais experientes que não mais percebem a prática de extração
de ouro em si mesma como vantajosa.

Palavras-chaves: Violência. Conflitualidades. Fronteiras.

REFERÊNCIAS

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Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan/ Instituto Carioca de Criminologia, 2003.

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DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da


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ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia. 3. ed.


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MARTINS, Carmentilla; SUPERTI, Eliane; PINTO, Manoel de Jesus. Migração e mobilidade


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Revista Tomo, n. 27, jul./dez., 2015, p. 361-396.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2. ed.
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MOSER, Liliane. A nova geração de políticas sociais no contexto europeu: workfare e


medidas de ativação. Revista Katálysis, Florianópolis, v.14, n. 1, p. 68-77, jan./jun. 2011.

NOBRE, Nélia. (Des)emprego e empreendedorismo: repensar as políticas públicas.


Configurações [Online], Braga, n. 10, 2012. Disponível em:
www.configurações.revues.org/1410.

SILVA, Gutemberg. Usos contemporâneos da fronteira franco-brasileira: entre os ditames


globais e a articulação local. Macapá: UNIFAP. 2013.

TEDESCO. Letícia da Luz. No trecho dos garimpos: mobilidade, gênero e modos de viver
na garimpagem de ouro amazônica / Leticia da Luz Tedesco. Amsterdam, 2015.

TELLES, Vera da Silva. Nas dobras do legal e o ilegal: ilegalismos e jogos de poder nas
tramas da cidade. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 5-6, p. 97-126, jul./dez. 2010.

570
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
MESA REDONDA 6 - AS CIÊNCIAS SOCIAIS NA PANDEMIA DA COVID -19

MESA REDONDA 6 - AS CIÊNCIAS SOCIAIS NA PANDEMIA


DA COVID-19

Luísa Maria Silva Dantas290


Alessandra Viviane Vasconcelos Bezerra291

Em acordo com a proposta do I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais, organizado


por discentes e docentes do Programa da Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia –
PPGSA, da Universidade Federal do Pará – UFPA, e realizado entre os dias 19 e 23 de
setembro de 2022. Esta Mesa Redonda – MR (6) foi composta por uma professora do
PPGSA, Luísa Dantas, e uma aluna de doutorado, Jússia Carvalho, como palestrantes, e uma
estudante de mestrado, Alessandra Bezerra, enquanto mediadora, evidenciando a importância
do evento científico ser também um espaço e ensino-aprendizagem para a organização de
eventos e atuação de nossos alunos nas diversas posições que são possibilitadas na
contribuição do debate e construção do conhecimento acadêmico.
A MR (6) ocorreu às 10h da manhã, do dia 23 de setembro de 2022, em formato
digital, via plataforma googlemeet, e foi iniciada pela mediadora Alessandra Bezerra, que
apresentou as palestrantes e organizou a mesa em termos de dinâmica e tempo.
Eu, Luísa Dantas, iniciei minha fala fazendo uma analogia do período extraordinário
da pandemia da Covid-19 que vivemos desde o início de 2020 até o início de 2022, quando do
maior acesso às vacinas disponíveis e redução do número de casos e mortes causadas pela
doença no Brasil, ao conceito de evento crítico, da antropóloga indiana Veena Das (1995),
posto que a autora sugere que esses momentos provocam quebra de cotidiano, experiências do
terror, ruptura na continuidade temporal, criação de novos modelos interpretativos,
surgimento de novas formas de ação, sofrimento, dor, violência, relação do Estado com a
sociedade e, portanto, são eventos dramáticos. Todas as características que pressupõem os

290
Doutora em Antropologia Social, Universidade Federal do Pará, luisadantas1@gmail.com
291
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - PPGSA, UFPA,
vivijnjv@gmail.com
571
eventos críticos correspondem ao que vivemos no Brasil e no mundo quando da explosão da
pandemia, assim determinada pela Organização Mundial da Saúde – OMS, em 20 de março
de 2020.
Primeiramente tomados pela surpresa e suspensão das atividades cotidianas, posto que
a prevenção à contaminação pelo vírus era o “distanciamento social”, logo passamos por
momentos de muito sofrimento, dor e terror quando do falecimento de pessoas queridas,
próximas e distantes e a incerteza e medo em relação à nossa própria sobrevivência e das
pessoas que amamos. O cenário de pavor e desconhecimento da profilaxia e tratamento da
doença demandou ações do Poder Público que, pelo menos no caso do Brasil, e do governo
Jair Bolsonaro (2018-2022), se mostraram ineficientes, coniventes e criminosas; sobretudo,
no que diz respeito à população preta e pobre acometida mais fortemente pela letalidade da
Covid-19 e configurando políticas de morte, ou necropolíticas, nos termos de Achille
Mbembe (2018).
No que tange à ciências sociais, desde o início da pandemia as diversas associações
que compõem o campo tiveram iniciativas no sentido de contribuir para a compreensão de
como o evento crítico estava afetando os grupos com os quais fazemos pesquisas 292 por meio
de periódicos e outras possibilidades de expressão/comunicação293. Complementar a esta
perspectiva, nós também começamos a exercitar autoetnografias (VERSIANI, 2005), com o
objetivo de observar e analisar como a pandemia estava nos afetando e provocando uma
reorganização da vida, permeada pelo medo, pelas dúvidas, perdas e lutos.
Com a necessidade e o privilégio de ficar se protegendo em casa, posto que boa parte
da população não pôde parar e foi submetida a riscos e violências, muitas vezes, irreparáveis,
professoras e pesquisadoras rapidamente perceberam o acúmulo de trabalho e cuidados no
ambiente doméstico, salientando fortemente as desigualdades de gênero (CASTRO e
CHAGURI, 2020), intensificadas pelos marcadores sociais de classe e raça nos impactos da

292
O podcast Fazeres etnográficos em tempos de pandemia, inaugurado pela antropóloga Juliane Bazzo, reúne
um grupo importante de pesquisadores com experiência em trabalhos de campo em contextos pandêmicos e/ou
que necessitaram de estratégias inusitadas devido aos imponderáveis da vida. Disponível em
<https://www.youtube.com/playlist?list=PLobe-LHB6759f1d3WgZ4q901vcVUvOByW>. Acesso em
22/03/2023, às 16h27.
293
À exemplo do Boletim Semanal “Cientistas Sociais e o Coronavírus”. Disponível em
<http://www.anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2325-boletim-semanal>. Acesso em 22/03/23, às
16h17.
572
pandemia, seja no que diz respeito ao maior desemprego, às violências domésticas e/ou às
possibilidades de prevenção da doença.
Os espaços virtuais passaram a ter presença constante em nossos cotidianos, tanto para
o exercício da vida profissional, como para os momentos de lazer, possibilitando “encontros”
e confraternizações. Em nosso vocabulário, assim como as palavras “pandemia”, “Covid-19”
e “coronavírus” se tornaram habituais, as lives, webinários e demais aulas e eventos online se
tornaram corriqueiros. Também se popularizou fortemente os usos dos aplicativos de entrega
de comidas e bebidas, como ifood e zé delivery.
O trabalho docente foi interpelado por categorias, como: “teletrabalho”, “ensino
remoto” e “atividades síncronas e assíncronas”, além do home office, já existente, mas nunca
antes tão praticado como nos tempos da pandemia. Acontece que essa “nova” forma de
trabalho demandou uma infraestrutura que grande parte dos cientistas sociais não tinha, como,
por exemplo, maiores pacotes de dados de internet, cadeiras e mesas apropriadas para o
grande número de horas de trabalho, ou seja, um ambiente minimamente adequado, arcado
por custos privados. Sem contar a necessidade de aprendermos novas tecnologias para
produzir vídeos, podcasts e darmos aulas em ambientes virtuais – googlemeet, zoom,
Microsoft teams.
A pandemia da Covid-19 certamente foi o evento crítico com maior impacto dos
últimos tempos, em escala global. A vida ordinária foi suspensa e tivemos todos, quando
privilegiados, que permanecer em nossas casas, longe do ambiente de trabalho ou de qualquer
outro. Isso produziu uma fusão entre tempos de trabalho e lazer de forma ainda mais intensa
do que já vinha acontecendo devido à “flexibilização da produção” capitalista (HARVEY,
2007), sobretudo pelo uso do whatsapp, utilizado enquanto ferramenta de trabalho, muitas
vezes, sem limites de dias e horários. Mudamos de rotina, tivemos que aprender a trabalhar e
nos relacionar estritamente por espaços virtuais e a viver em constante estado de medo, alerta
e pavor. Os impactos desse cenário em nossa saúde ainda não podem ser mensurados,
passando por exaustão, dores e sofrimentos psíquicos.
Ter álcool em gel, máscara, internet e um ambiente adequado de trabalho, ainda que
tenham sido fundamentais para a continuação da vida, não garantiram saúde ou um bom
rendimento profissional; a angústia de “ver” alunos tentando participar das aulas, mas sem
condições devido à falta de dados e a dificuldade em se concentrar e lidar com as tecnologias
573
foi enorme. Os professores foram atingidos de forma particular, acumulando uma carga de
trabalho absurda, sem contrapartida estatal, tendo que administrar a esfera doméstica e de
cuidados com o trabalho em casa, muitas vezes, agredidos por ataques virtuais294, que atuaram
como veículos de disseminação de preconceitos e violações de direitos.

Palavras-chave: Pandemia da Covid-19; Ciências Sociais; Mesa Redonda; I Simpósio Amazônico.

REFERÊNCIAS

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DAS, Veena. 1995. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New
Delhi: Oxford University Press. 230 pp.

HARVEY, David. Condição Pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 16.
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

VERSIANI, Daniela G.C.B. Autoetnografias: conceitos alternativos em construção. Rio de Janeiro:


7Letras, 2005.

CASTRO, Bárbara; CHAGURI, Mariana. Um tempo só para si: gênero, pandemia e uma política
científica feminista. Blog DADOS, 2020 [published 22 May 2020]. Available from:
http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-cientifica-feminista/.

294
Durante as aulas e eventos científicos das ciências sociais em formato online, passamos a conviver com
“ataques virtuais”, ou seja, usuários, verdadeiros ou falsos, que adentravam às salas de trabalho para inviabilizar
os eventos e/ou agredir palestrantes. Os xingamentos eram majoritariamente de cunho racista, homofóbico e
sexista.
574
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
MESA REDONDA 7 - POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: INDÍGENAS E QUILOMBOLAS

POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: INDÍGENAS E


QUILOMBOLAS
Adrian Kethen Picanço Barbosa295
Ana Manoela Primo dos Santos Soares296
Hellen Regina Martins Rocha297
Josilene da Silva Nunes298

Este texto nasce do encontro entre mulheres indígenas e quilombolas em Mesa


Redonda intitulada “As Políticas de Ações Afirmativas”, que ocorreu em setembro de 2022,
durante o I Simpósio Amazônico de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará
(UFPA). Neste espaço de diálogo, as mulheres narraram suas vivências desde as comunidades
até a entrada e permanência nas universidades públicas, onde enfrentam cotidianamente o
racismo. Além desta violência, é apontado em artigo por Amoras, Gayoso e Santos (2022) que
dentro da universidade pública, outras múltiplas dificuldades podem ser sentidas, entre estas
destaco as dificuldades de acesso a políticas estudantis; dificuldades financeiras para se
manterem nas cidades; dificuldades em acompanhar os conteúdos do curso e violência de
gênero para com as estudantes mulheres. Acrescento também que é um grande impacto nas
trajetórias de estudantes indígenas e quilombolas as saudades que sentem de seus familiares,
costumes e territórios. A postura de epistemicídio das academias, demonstra que a
universidade reproduz estruturas excludentes, que causam impacto diretamente na saúde
mental e na permanência das/os estudantes originárias/os de grupos étnicos e tradicionais
(AMORAS, GAYOSO, SANTOS, 2022).
As convidas, Adrian Barbosa, quilombola e Mestra em Sociologia (UFPA); Hellen
Rocha, indígena do povo Arapiun e Doutoranda em Antropologia (UFPA); e Josiliene Nunes,
indígena do povo Galibi-Marworno e Graduanda em História (UFPA). Debateram na Mesa
sobre como As Políticas de Ações afirmativas, no ano em que completou 10 anos de
implementação, estão se desenvolvendo no Brasil, quais as conquistas que proporcionaram e

295
Mestra em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, adrianbarbosa267@gmail.com
296
Doutoranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, anamanoelakaripuna@gmail.com
297
Doutoranda em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará,
hellenreginamartinsrocha@gmail.com
298
Graduanda em História, Universidade Federal do Pará, josilenesilvanunes189@gmail.com
575
o que é necessário aperfeiçoar ou modificar para que os estudantes tenham acesso e concluam
seus cursos com êxito. Além de debaterem os enfrentamentos que realizam coletivamente
para combater o racismo e demais violências que atingem a seus corpos e conhecimentos. As
vozes dos parágrafos a seguir são destas mulheres, que são as autoras da pesquisa.

Adrian Barbosa, apresenta que ao tratarmos de Políticas de Ações Afirmativas é


preciso ter em mente que estas promovem o acesso e permanência de estudantes negros,
indígenas, quilombolas e de outros grupos no ensino superior. Fazendo emergir presenças que
subvertem as lógicas de poder, saber e produção de pesquisas. Pois, estes sujeitos antes vistos
somente como objetos da pesquisa, agora passam a produzir narrativas próprias sobre suas
comunidades, histórias, memórias e vivências. A intelectual negra Nilma Lino Gomes (2015)
aponta:

O protagonismo desses estudantes na Pós-Graduação se faz sentir nos mais diversos


lugares do país. Outros temas de pesquisa, novas indagações teóricas,
epistemologias insurgentes, construção de metodologias criativas e dinâmicas,
autoras e autores negros, indígenas, quilombolas passam a se tornar referência nas
produções acadêmicas e tensionam o cânone, construindo para si um lugar
epistemológico (GOMES, 2020, p.15)

Partindo destas reflexões, relato enquanto pesquisadora e quilombola que sou fruto das
Políticas Afirmativas desde a Graduação em História, até o presente momento com a
finalização do Mestrado em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Pará, onde
ingressei através do Processo Seletivo Suplementar para Indígenas e Quilombolas. Sou a
primeira da minha família a chegar a este nível de escolaridade, realizando uma pesquisa que
não vai circular somente na academia, mas, que levou uma devolutiva produtiva para minha
comunidade com a produção de uma cartilha feita pela metodologia da investigação ação
participante, onde em conjunto desenvolvemos temática a respeito da Educação Escolar
Quilombola.
Nestas novas formas de pesquisar, escrever e compartilhar trabalhos acadêmicos que
reside a importância das Políticas Afirmativas. A presença de quilombolas, indígenas e outros
corpos subalternizados e as produções de conhecimento a partir de suas perspectivas, tornam-
se articulações revolucionárias que apresentam novas formas de ser e estar no mundo. Mas,
com isso apresentam-se também alguns desafios, um deles é a incessante busca por efetivação

576
e ampliação dessas Políticas Afirmativas pelas universidades do país, outro é o próprio acesso
a direitos básicos como a educação, e neste espectro, quilombolas, por exemplo, tem sempre
que convencer o espaço científico que não são meros objeto de estudos de pesquisadores não
quilombolas. Assim passamos a usar as universidades como ferramenta de amplificação de
vozes e mentes que produzem epistemologias quilombolas.
Estas, são formas de enfrentar a estrutura racista das universidades que negligenciam
os nossos saberes, vivências e produções. Temos juntos que fomentar a virada epistemológica
e prática que os/as intelectuais e ativistas que vieram antes de nós iniciaram, modificar a partir
de nossa entrada e permanência nas universidades, as matrizes curriculares, as formas de
abordagem e os discursos. É importante enfrentar e assumir que as instituições são racistas e
com isso implementar novas e efetivar as Políticas Afirmativas já existentes, para termos uma
universidade mais democrática.
A autora Josilene Nunes, apresenta-se como indígena do povo Galibi-Marworno e
natural da aldeia Uahá, na Terra Indígena Juminã, localizada no rio Oiapoque, município de
Oiapoque no estado Amapá. Explica que sua trajetória com as Ações Afirmativas iniciou em
2020 quando soube da aprovação no Processo Seletivo Especial (PSE) da Universidade
Federal do Pará. Em seu debate, destaca, que a existência das Políticas de Ações
Afirmativas, foi uma conquista dos povos originários, principalmente das lideranças.
Nunes observa, que no decorrer dos 10 anos de Ações Afirmativas na UFPA, houve o
aumento expressivo de candidatos indígenas mais jovens ao PSE e a diminuição na inscrição
de pessoas com idade, mas avançada. Tal fenômeno parece denotar o acolhimento, nos
primeiros anos da Política de Ações Afirmativa, de uma demanda reprimida de sujeitos mais
velhos que já possuíam ensino médio. Mas, que não haviam tido oportunidades anteriores de
ingressar nas universidades.
A liderança Galibi-Marworno, também destaca a importância de uma educação
diferenciada e de qualidade para as futuras gerações indígenas. Completando, que as lutas
das lideranças para tal, é fruto de debates, manifestações e reivindicações extremamente
árduas. Porém, também nos lembra que a educação entrou dentro dos territórios indígenas
como consequência das violências da colonização. Pois, os parentes indígenas aprenderam a
ler e a escrever com a justificativa de que os povos originários deveriam “civilizar-se”.

577
Nunes, explica que, o fato de escolher o curso de Licenciatura em História foi por
ouvir vários relatos históricos sobre povos indígenas, a partir disto, decidiu ser uma indígena
historiadora, não somente para escrever a história de seu povo, mas principalmente ensinar
as verdadeiras histórias dos povos indígenas, que sejam registradas com o devido respeito
aos originários. Para ela, a universidade tem o papel de formar as pessoas como profissionais
capacitados a realizarem o enfretamento a uma sociedade racista com os indígenas. Em suas
palavras, também trazendo o protagonismo para o fato de que a comunidade acadêmica
indígena já tem uma formação ancestral, que são todas as lutas compartilhadas e as
experiencia que são passadas de geração em geração. Finalizando que suas vivencias são de
cuidado com Amazônia, bioma em que se localiza o seu povo e a universidade em que
estuda.
Pensando nas relações com o território, Josilene Nunes, contribui com o conhecimento
de que a vida na Terra significa cura para os povos indígenas; que o som dos maracás e o
poder das ervas são proteção para os povos; e que as danças com cantos da cosmologia
Galibi-Marworno a tornam mais empoderada com a vida. Por estar na cidade estudando, esta
longe de seu território, onde costumava plantar e colher, mas destaca que continua lutando
pela Terra e que os espíritos de sua cosmologia estão vivos e a acompanham.
Enquanto, para a pesquisadora Hellen Rocha, as Ações afirmativas são uma das
alternativas para reduzir ou minimizar a desigualdade na inserção de estudantes no ensino
superior. Principalmente, no que se refere aos povos indígenas, que como destaca, necessitam
de uma atenção ainda mais especial devido possuírem idiomas próprios, o que em alguns
casos acaba dificultando a aprendizagem no ensino superior, devido a carência de intérpretes
e professores que possam ser compreensíveis a ter metodologias acessíveis na sala de aula.
Sales et al (2008) argumentam que o Brasil é um país formado por diferentes povos
(indígenas, africanos, europeus, asiáticos, entre outros) e que a interação social entre eles foi
desigual desde o início da colonização. Sendo de conhecimento de todos, principalmente
quando se trata dos direitos dos negros, que até hoje a sociedade ainda é muito relutante em
aceitar que tenham cotas, devido ao segregacionismo. Rocha, destaca que não cabe apenas
garantir que os indígenas tenham direito as cotas para o acesso as universidades. Mas que
também é necessário garantir a sua permanência e o acesso a um ensino de qualidade.

578
A pesquisadora Arapiun, trata que a Constituição Brasileira de 1988, discute a
afirmação da identidade étnica. Nela, este é um direito fundamental dos povos indígenas.
Estando no artigo 210, a garantia do uso da língua materna nos processos de aprendizagem
dos povos originários. Completando, que a Portaria Interministerial n. 559, de 1991,
estabeleceu as diretrizes próprias das escolas indígenas, como calendário escolar, material
didático e metodologia específica. Para a pesquisadora, a partir destes documentos as
universidades poderiam rever seus currículos, para haver uma maior inclusão maior no ensino
superior com relação aos povos indígenas.
Por outro lado, as universidades também devem estar prontas para indagarem-se sobre
o quanto podem beneficiar-se com a presença indígena em seus espaços, ampliando-se, na
construção de um mundo de tolerância e riqueza simbólica em que não bastará mais a
repetição ampliada de paradigmas do horizonte capitalista contemporâneo. Desse modo, as
Políticas de Ações afirmativa e de inserção de estudantes de povos originários nas
universidades precisam ter características diferenciadas e específicas, para que, de fato, esses
alunos sejam incluídos no Ensino Superior.
Rocha finaliza, afirmando que, diante disso, pode-se falar que o princípio da
diversidade cultural, pensado em consonância com o princípio da igualdade aos povos
indígenas quanto as Ações Afirmativas, possibilitam novas soluções jurídicas para o avanço
da efetividade dos direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. As Ações
Afirmativas representam, a decisão de uma sociedade que radicaliza a democracia em sua
expressão pluriétnica, com respeito e valorização a identidade cultural indígena. Para isso, é
fundamental uma aliança entre negros, brancos e indígenas pela eliminação de formas de
discriminação que há nas Universidade e na sociedade em geral.

Palavras-chaves: Políticas de Ações Afirmativas; Povos Indígenas; Quilombolas

REFERÊNCIAS

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e a permanência de estudantes indígenas e quilombolas na UFPA. Revista Interethnica,
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579
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papel do estado. Dossiê 120 anos da abolição da escravidão no Brasil: um processo ainda
inacabado. Revista Estudos Feministas. 2008.

580
581
ANAIS – I SIMPÓSIO AMAZÕNICO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CONFERÊNCIA 7 - ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL:
DESAFIOS E POTENCIALIDADES NA PESQUISA CIENTÍFICA

CONFERÊNCIA 7 - ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL:


DESAFIOS E POTENCIALIDADES NA PESQUISA
CIENTÍFICA

Denise Machado Cardoso299

A Antropologia é uma ciência que se apropria de maneira singular em várias


ferramentas metodológicas e apresenta possibilidades de diálogo interdisciplinar com
diferentes áreas de conhecimento. Assim, teoricamente e metodologicamente, abre-se para
interlocução com diversas formas de conhecimento, inclusive com aqueles para além dos
“muros da academia”. Dentre esses diálogos interdisciplinares, destaca-se aquele estabelecido
com as artes audiovisuais como: o cinema, fotografia, desenho e grafismos (AZEVEDO,
2016; BENITES, 2021; SIMONIAN, 2006). É nesse encontro da Antropologia com as artes
audiovisuais que proponho debater os desafios e potencialidades científicas em contextos da
panamazônia, em especial na região norte do Brasil.
Debater a importância dos usos do audiovisual pela produção científica implica
considerar o contexto do final do século XIX, pois é nesse período que a ciência
antropológica e a fotografia estão surgindo. Embora não se pretenda contar a história da
Fotografia e da Antropologia, considero pertinente destacar que a fotografia já se fazia notar
na pesquisa antropológica desde os primórdios desta.
Desde sua origem, ainda no final do século XIX, a Antropologia apresenta-se de forma
multifacetada, pois era importante neste momento inicial explicar e compreender lógicas de
modos de ser de diferentes culturas, com ênfase para as sociedades não-europeias. Nesse
contexto, a fotografia também emerge como uma importante ferramenta para pensar
alteridades. Desse modo, têm-se neste período os avanços tecnológicos e científicos surgindo
como possibilidades de investigação e reflexão das complexidades sociais próprias desta
época, pois os avanços do capitalismo sobre diferentes continentes impactaram sobremaneira
as sociedades originárias e diaspóricas, ainda submissas ao colonialismo europeu.

299
Antropóloga, Doutora em Desenvolvimento Socioambiental, UFPA, denisecardosoufpa@gmail.com
582
O audiovisual não é, portanto, algo novo nas experiências etnográficas, pois a exemplo
do que foi realizado por Bronislaw Mailnowski, Margarete Mead e Gregory Bateson, as
imagens fotográficas e documentários eram perceptíveis como algo relevante na pesquisa
antropológica desde a primeira metade do século XX (MONTE-MOR, 1993). Em tempos
recentes, é inegável que os usos da produção fílmica e fotográfica vêm se ampliando cada vez
mais devido aos avanços tecnológicos da segunda metade do século XX. Atualmente, devido
ao aumento da prática de compartilhar fotografias, vídeos em diferentes formatos, áudios e
outras produções, via telefonia celular, os ambientes virtuais tornaram-se um espaço com
práticas socioculturais antes restritas ao ambiente não virtual. Nesse contexto, os usos de
aplicativos nos smartfones conectados pela rede mundial de computadores, facilitam e
viabilizam postagens, prints, fotos, selfs e outros congêneres nas trocas de mensagens, dando
a impressão de que são práticas recentes e ainda pouco usuais para parte da sociedade.
A prática de pesquisa que se utiliza da produção audiovisual apresenta-se com
potencialidade imensurável posto que envolve uma série de elementos estéticos, técnicos e
éticos. No âmbito da pesquisa antropológica, percebe-se que as imagens, as sonoridades e
silêncios, os registros imagéticos como um todo, têm se tornado importantes no processo de
investigação científica. Ao mesmo tempo, evidencia-se que o audiovisual não se restringe a
apenas um aspecto de estudo, pois pode ser acionado, também, como ferramenta
metodológica, como instigante fonte de debate e discussão sobre o tema de pesquisa, bem
como resultado desta mesma proposta de investigação.
Ao ser tomado como o objeto central de estudo, seja pela produção fílmica, pelos
acervos de imagens fotográficas ou pelas gravuras (presentes em obras artísticas, documentos
oficiais, entre outros) e por desenhos, percebe-se que há significativo potencial para
realização de pesquisa antropológica a partir do audiovisual. Desse modo, e dependendo da
proposta de pesquisa, pode-se investigar álbuns de fotografias de acervos pessoais, coleções e
acervos de organizações governamentais e não governamentais, periódicos, peças
publicitárias em geral, cartas postais, produção fílmica. A partir destes elementos imagéticos,
encontrar elementos que proporcionem análises, caracterizações e sistematizações acerca das
regras e normas sociais, costumes, práticas culturais relativas tanto ao contexto público
quanto privado. Por certo, a sociedade a ser pesquisada está registrada nas suas imagens e
sonoridades e é nesta base que se pode, também, percebê-la.
583
Outro aspecto referente aos usos das fotografias, filmes e desenhos na experiência
etnográfica se refere ao potencial de viabilizarem interessantes oportunidades de interações e
diálogos em contextos de pesquisa (ROCHA; ECKERT, 2016). A mediação proporcionada
pelos usos de fotografia, por exemplo, possibilita acionar nas memórias as lembranças do que
já fora vivenciado. Os usos de desenho em oficinas ou rodas de conversa aproxima
interlocutores e interlocutoras de maneira interessante, por inserir técnicas de pesquisa que
não se restringem às entrevistas (AZEVEDO, 2016). A produção fílmica pode ser um modo
de interação participativo, pois esta produção exige trabalho em equipe que pode ser ampliada
com o envolvimento das pessoas que anteriormente eram designadas como meras
informantes.
A produção audiovisual participativa é algo que vem ganhando destaque na
Antropologia (áudio)visual, notadamente na produção de filmes etnográficos, porque implica
em ações interdisciplinares, com a inclusão da perspectiva êmica (RIBEIRO, 2016). Esta
prática contribui na produção de conhecimento no qual os grupos sociais participantes tenham
poder de decisão desde o projeto de investigação até a divulgação dos resultados da pesquisa.
A pesquisa participativa contribui, portanto, na superação de colonialidades (QUIJANO,
2019). Além disso, outras formas de apreensão e compreensão das realidades socioculturais
passam a ser utilizadas pela academia.
As oficinas, cursos, atelier e rodas de conversas têm se revelado como estratégias
inclusivas na medida em que se oportunizam momentos de interação entre a equipe
pesquisadores e pesquisadora para além dos tradicionais papeis de informantes e cientistas
(RIBEIRO, 2014). Nesse contexto, ao incluir o audiovisual como ferramenta de pesquisa, as
possibilidades se participação e de democratização da produção de conhecimento se ampliam.
Quando Minicursos e Oficinas são realizadas a partir do aprendizado de técnicas de
captura de imagens fotográficas, produção de filmes, realização de desenhos e
grafismos/gravuras voltadas para a autonomia de quem deles participam, proporciona-se um
ambiente favorável para que estas pessoas construam suas narrativas. A exemplo do que
ocorreu no projeto Cinema no Marajó (2021), a potencialidade de experiências etnográficas
mais participativas e menos excludentes é vivenciada para além das práticas de campo já
consolidadas.

584
Quando as conversas se dão a partir de temas correlatos ao projeto de pesquisa, e que
dialoguem com os temas de interesses das pessoas envolvidas nesta atividade, é possível
superar as colonialidades e proporcionar que silêncios sejam superados, que a pluralidade de
conhecimentos seja incluída de maneira efetiva. Como afirma Donna Haraway (2009, p. 40),
“os dualismos têm sido persistentes nas tradições ocidentais; eles têm sido essenciais à lógica
e à prática da dominação sobre as mulheres, as pessoas de cor, a natureza, os trabalhadores, os
animais – em suma, a dominação de todos aqueles que foram constituídos como outros”, por
isso não se trata só da construção de um pensamento científico, mas em estruturas reais que
precisam ser repensadas.
Os produtos advindos com a experiência etnográfica no campo da Antropologia
(áudio)visual trazem novos elementos na arena de debate acadêmico ao incluir narrativas de
quem dantes era incluído apenas como interlocutor ou informante. Para além da polifonia, na
qual a autoridade etnográfica reforçava o espaço acadêmico como lugar de doutoras e
doutores, tem-se com a fotografia, cinema e desenho a abertura para a inclusão de outras
epistemologias elaboradas por especialistas de fora das universidades e instituições de
pesquisa.
O cinema indígena é exemplo desta inserção de narrativas que trazem conhecimentos
sustentados em cosmologias e visões de mundo diferentes daquelas marcadas pelo modo
eurocentrado de explicar as realidades. Como visto nas produções exibidas no Festival do
Filme Etnográfico do Pará, além de não se restringir ao suporte da escrita, estas narrativas
imagéticas trazem temáticas, olhares, sonoridades muito caras aos povos originários e com
suas próprias perspectivas.
Os filmes etnográficos produzidos na Amazônia e por povos que nela vivem têm
trazido narrativas com imagens do que é vivenciado nesta região. Muitas destas produções
fílmicas enfatizam desafios diante das ameaças do agronegócio e da exploração ilegal de
garimpos nas terras indígenas e quilombolas, bem como nas unidades de conservação em
geral.
A produção de filmes, em seus diferentes formatos, tornou-se recorrente incluir
documentários como resultante da experiência etnográfica. Essa prática vem se ampliando a
partir de várias motivações das pessoas que os realizam, bem como pode ser decorrente de
uma demanda do grupo envolvido na pesquisa.
585
Os usos das imagens fotográficas nos trabalhos realizados por quem se utiliza da
etnografia como uma estratégia de pesquisa têm sido produtivos, pois elas não se encerram
em mera ilustração dos textos escritos, na medida em que trazem em si múltiplas
possibilidades de interpretação do fazer etnográfico, das pessoas envolvidas na pesquisa e
suas idiossincrasias, das técnicas de captura das imagens, das realidades investigadas, dentre
outras questões.
As mídias sociais acionadas em suportes conectados pela internet são cada vez mais
intensas e abrangem variados grupos sociais. É inegável a importância de acrescentar a estes
usos as implicações éticas relacionadas à captura de fotografias e produção de vídeos. Ao que
se refere às pesquisas científicas participativas, ressalta-se que, para além do aperfeiçoamento
estético e técnico, é relevante ponderar sobre o modo como as imagens estão sendo
registradas pelas câmeras de celulares e, principalmente, como elas estão sendo
compartilhadas.
A superação da hegemonia da escrita é desafiadora e um projeto que tem sido
conquistado a partir da abertura para novas práticas de pesquisa. Pode-se afirmar que há neste
percurso a percepção de que a superação das colonialidades se dá com a inserção de
epistemologias que não se restringem ao modelo eurocêntrico de racionalidade. As
explicações e compreensões se sustentam de modo mais amplo quando vemos, ouvimos e
escrevemos com outros suportes conceituais e metodológicos daqueles das ciências modernas,
canonizados e “eternizados” como únicos e verdadeiros.
A partir das pesquisas científicas, que tem no suporte de recursos audiovisuais sua
principal ferramenta de estudo, o desafio passa a ser o de realizar projetos de investigação
éticos e voltados para a superação de epistemicídio e genocídio, bem como combater
violências de toda ordem. Consequentemente, a prática de campo participativa extrapola o
modelo clássico da observação participante, pois mais do que realizar estudo para
compreender práticas culturais com vistas à produção de teses formatadas em textos escritos,
a Antropologia (áudio)visual propõe, de maneira desafiadora, que a ciência se abra para
outros olhares, outras narrativas, outros formatos, outros produtos. Assim, o debate se amplia
com a inserção de conhecimentos trazidos por povos e populações que não se utilizam apenas
da escrita e nem se restringem aos métodos de investigação acadêmicos.

586
Palavras-chave: Antropologia audiovisual. Etnografia participativa.

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