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DO BISHONÊN AOS BEARS: DIÁLOGOS DE ESTÉTICA E RECEPÇÃO NOS


MANGÁS

Chapter · January 2010

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2 authors, including:

Glaucio Aranha
Federal University of Rio de Janeiro
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Retratos
do Brasil
Homossexual
Fronteiras,
Subjetividades
e Desejos

Horácio Costa et al.


organização
Copyright © 2010 by organizadores

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

Retratos do Brasil homossexual : fronteiras,


subjetividades e desejos / Horácio Costa ... [et al] (org.).
–- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo :
Imprensa Oficial, 2010.
442 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-314-1242-4 (Edusp)


ISBN 978-85-7060-961-8 (Imprensa Oficial)

1. Homossexualidade-Sociologia. 2. Identidade sexual.


I. Costa, Horácio, 1954-.

CDD 306.766

Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 10.944, de 14 de dezembro de 2004.

Direitos reservados à

Edusp – Editora da Universidade de São Paulo


Av. Prof Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6o andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária
05508-010 – São Paulo – SP – Brasil
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SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151
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Printed in Brazil 2010


Carla que Ama Vera, Mãe de Paula: A Circulação Pulsional
neste Arranjo Familiar
SIMONE APARECIDA NORONHA ................................................................. 931

Safo de Lesbos e a Homocultura


JOSÉ ROBERTO DE PAIVA GOMES ............................................................ 941

Parte X
Homocultura e Masculinidade Gay

A Crise da Masculinidade Contemporânea


FRANCISCO MACIEL SILVEIRA FILHO ......................................................... 949

Vivendo no Entre-Lugar: Raça e Homossexualidade na


Construção de Identidades
JOSÉ ESTEVÃO ROCHA ARANTES ............................................................. 959

Entre a Margem e a Linha: Produção de Subjetividades


Homonormativas e Práticas Sociais Homofóbicas entre
Homossexuais Masculinos
MÁRCIO ALESSANDRO NEMAN DO NASCIMENTO E
FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO ............................................................ 973

Amores Clandestinos, ou o Sonho da Cinderela


ELCIO NOGUEIRA DOS SANTOS ................................................................ 983

Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção


nos Mangás
GLÁUCIO ARANHA E JOSÉ MARIA PUGAS-FILHO ......................................... 991

Representações Sociodiscursivas da Homossexualidade


IRAN MELO ......................................................................................... 1005

Memória Gay e Segunda Guerra Mundial


TIAGO ELÍDIO ...................................................................................... 1015

Os Sentidos da Aceitação: Sexualidade, Emoção e Relações


com a Família de Origem entre Jovens Gays
LEANDRO DE OLIVEIRA ......................................................................... 1025

13
Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e
Recepção nos Mangás

G LÁUCIO A RANHA e
J OSÉ M ARIA P UGAS -F ILHO 1

Inicialmente orientados para a representação andrógina do homem (bishô-


nen), ao longo de sua produção e circulação, os mangás yaoi deram origem a
novas representações do masculino, formando o segmento bara mangá,
destinado a leitores homossexuais. Mais do que uma mudança estética,
observa-se também a alteração da recepção destes mangás a partir das trocas
culturais com o Ocidente e das transformações socioculturais que atravessam
a sociedade japonesa. Se, em seu contexto inicial, o yaoi surge como uma
escrita feita por “mulheres para mulheres”, a emergência de modelos como o
g-men e do yaoi bear marca o nascimento de variantes escritas “por homens
para homens homossexuais”.
O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa iniciada em
2005, sobre o subgênero dos mangás shôjo conhecido como yaoi. Os primei-
ros resultados foram apresentados e publicados nos Anais do III Congresso da
Associação Brasileira de Estudos da Homocultura. Naquele momento, inves-
timos esforços na conceituação, descrição e mapeamento das representações
acerca deste objeto pouco conhecido no ocidente (Aranha, 2006).
O passo seguinte se deu no sentido de mapear as representações deste
objeto no universo brasileiro. Buscou-se, deste modo, por meio de pesquisa
de campo, realizar um estudo comparativo da recepção do yaoi entre seus

1. Instituto de Ciências Cognitivas.

991
Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

leitores no Ocidente e no Oriente. Para o olhar comparativista, partimos da


pesquisa de recepção produzida por Sueen Noh junto aos leitores coreanos,
contrapondo-a aos resultados obtidos em nossa pesquisa entre os leitores dos
principais centros consumidores no Brasil. Os resultados foram apresentados
e publicados em 2008 nos Anais do II Congresso Internacional Cotidiano:
Diálogo sobre Diálogos, do Grupalfa (Aranha e Pugas-Filho, 2008).
No presente relato de pesquisa apresentamos novas questões decor-
rentes de investigação em curso. Verificadas as representações do yaoi no
contexto oriental2 (texto escrito por mulheres para mulheres) e sua recepção
no Ocidente3 (apropriação por jovens homossexuais), avançamos no sentido
de mapear de que modo tais processos de apropriação manifestam diferenças
culturais, transformando a matriz inicial. Neste sentido, verificamos que deste
diálogo cultural emerge uma variação do yaoi4: o yaoi bear, apropriação deste
modelo por outra minoria, desta vez, dentro da própria comunidade gay.

Yaoi e indústria cultural

Em 2002, segundo Keith Vicent (2002), havia no Japão, aproxima-


damente, nove grandes revistas especializadas em yaoi, com periodicidade
mensal, doze revistas em quadrinhos e trinta livros publicados mensalmente.
A popularização da internet contribuiu para a ampliação da oferta e circulação
deste modelo de mangá, especialmente através dos dôjinshi (mangás

2. Trata-se de uma produção textual, que na representação do romance entre “dois homens”,
tenta driblar a hierarquia social marcada pelo machismo, dando voz a uma fala feminina
heterossexual abafada (ver: Aranha, 2006).
3. Verificamos que no Brasil a comunidade de leitores se divide entre heterossexuais (masculinos
e femininos) e homossexuais (masculinos), sendo que entre este último segmento observamos,
nas entrevistas, a prevalência de discursos que revelam haver uma identificação com as questões
do discurso feminino oriental e apropriação de tais discursos na formação identitária destes
leitores (ver: Aranha e Pugas-Filho, 2008).
4. Curiosamente, o termo japonês yaoi ganhou maior notoriedade fora do Japão, enquanto em
seu país de origem foi substituído pelo uso da expressão inglesa “boy’s love” (bôizu rabu).

992
Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

amadores, fanzines). Autoras como Akimi Yoshida (Banana Fish) e Sanami


Matoh (FAKE), representantes do cânone deste subgênero, ganharam grande
visibilidade com as vendas de seus mangás pela Internet.
O antropólogo cultural Matt Thorn (1995), investigando o impacto das
narrativas de yaoi entre leitores adolescentes, entende haver uma redefinição
dos modos de expressão dos desejos entre estes adolescentes. Segundo este
autor, as comunidades de yaoi fundaram um novo espaço para a expressão da
sexualidade e formação de identidades sexuais. Analisando a produção narra-
tiva dos dôjinshi, extremamente populares entre os leitores5, Thorn conclui que
estas comunidades legitimam a expressão livre dos desejos de seus integrantes,
principalmente em decorrência da independência editorial e da ausência de
controle pelos pais. Fato que, muitas vezes, pode ser verificado por meio da pra-
xe nestas comunidades de comentar as produções publicadas através do livro de
visitações de blogs e fóruns de discussão, como, por exemplo, a comunidade The
house of yaoi (http://forums.mangafox.com/group. php?groupid=46), e a
Yaoi’s Journal (http://community.livejournal.com/yaoi).
Via de regra, os temas nas narrativas yaoi giram em torno dos obstá-
culos emocionais nos relacionamentos amorosos. Embora Mark McHarry
(2003) afirme que esse eixo é invariável, podemos verificar que tal afirmação
é exagerada. De fato, a grande maioria das histórias adota este enfoque. Toda-
via, é possível observar algumas nas quais este tema é abandonado em favor
de um enfoque mais centrado na paródia de mangás do mainstream, prin-
cipalmente nos chamados dôjinshi. Parece-nos, portanto, mais adequada à
adoção de cautela quanto a tal afirmação categórica. Motivo pelo qual optamos
pela ideia de prevalência daquele tipo de abordagem temática.
Dentre os obstáculos mais comuns estão: as dificuldades de exposição
emocional de um dos parceiros, papéis sexuais, relações entre parceiros com

5. Normalmente, nas comunidades virtuais de yaoi é possível verificar que a circulação de textos
se dá em mão dupla, ou seja, as narrativas são produzidas e consumidas pelos membros da
própria comunidade.

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Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

grande diferença etária (inclusive, entre uma criança e um adulto6), articu-


lação entre múltiplos parceiros, dentre outros.

Estética bishônen: androginia como ideal de masculinidade

No Japão, desde muito, a androginia juvenil era apreciada como a


beleza masculina por excelência. Esta concepção remete à própria formação
cultural japonesa, sendo possível observá-la já nos mitos xintoístas, herdados
da China, e que aportaram no Japão por volta dos séculos VII e VIII. Neles é
possível perceber a idealização da androgenia juvenil como o perfeito equilí-
brio entre os caracteres de masculinidade e feminilidade. Com o passar do
tempo, este modelo passou a ser conhecido pelo termo bishônen, que, literal-
mente, significa “menino bonito”.
Historicamente, os primeiros registros japoneses em relação a relacio-
namentos homoafetivos podem ser notados em obras do século VIII, tais como
Kojiki e Nohon Shoki. Já a estética bishônen, que nos remete à representação
de jovens do sexo masculino como ideal de beleza, pode ser encontrado nas
pinturas xintoístas e budistas. É reputado ao fundador da Escola Shingon (806
d.C.), Kobo Daishi (ou Kukai), uma das mais antigas referências sobre a divul-
gação do amor entre homens.
Foi, entretanto, no período Tokugawa (ou Edo) que a prática do sexo
entre homens se estabeleceu de modo ímpar (Leupp, 1997). Uma das obras
escritas que mais contribuiu para tanto foi o Nanshoku ôkagami (O Grande
Espelho do Amor Masculino), de 1687. Trata-se de uma publicação de Ihara
Saikaku que teve enorme impacto social e mercadológico no Japão para o
período (Schalow, 1989). Era uma coleção de quarenta narrativas cujo tema
girava em torno das preferências por mulheres e meninos como modelo esté-
tico, pondo ênfase nestes últimos como amantes superiores e como mais

6. Cabe ressaltar que na sociedade japonesa a questão da pedofilia passa por perspectivas
culturais distintas, cuja complexidade escapa ao escopo do presente trabalho.

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Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

elevado referencial estético (Schalow, 2002). Cada narrativa se voltava para


a história do relacionamento entre um jovem (wakashu) e um homem mais
maduro (nenja), formulando as bases do wakashudô (caminho da juventude),
que mais tarde passaria a ser mais conhecido apenas como shudô (Schalow,
2002). O shudô atingiu seu ápice durante o período Tokugawa, indo até o final
do século XIX.
No campo literário, a homossexualidade surge como temática a partir
do universo feminino. Vale destacar que, em meados de 1800, a abertura do
Japão para o Ocidente não afetou significativamente o espaço da mulher
naquela sociedade (Sakurai, 2007), sendo extremamente limitada a liberdade
de expressão em público, sem falar da ausência de direitos políticos (Pharr,
1981). Um claro exemplo foi o assassinato da editora Noç Itô e seus compa-
nheiros, do jornal feminista Seitô, em 1911, pela polícia japonesa, por suas
convicções anarquistas e suas opiniões “subversivas” (Rowley, 2007).
Foi no círculo intelectual do Seitô que surgiu a figura de Nobuko
Yoshiya, autora do best-seller Yaneura no Nishojo, de 1920. Esta obra narra
a história do romance entre duas adolescentes e foi a primeira obra de con-
sumo massivo com temática homossexual no Japão. Kazue Harada (2001)
destaca o modo como o lesbianismo é tratado por Yoshida como uma forma
de libertação da mulher na sociedade japonesa. A autora se tornou um nome
importante na literatura de massa japonesa, sendo de sua autoria diversas
novelas populares. Foi também um dos principais referenciais para as novelas
gráficas do gênero de mangás shôjo, destinado a meninas.
Do período Taisho (1912-1926) até os primeiros anos do período Showa
(1926-1989), os desenhos de Kashô Takabatake começam a ilustrar narrativas
publicadas em revistas como a Nippon Shônen e Shônen Kurabu, destinadas
ao público infanto-juvenil masculino (McLelland, 2005). Muitas das ilus-
trações incluíam jovens em atividades masculinas para a época, como natação,
boxe e outros, mas com colorido e concepção das posturas típicas das
publicações femininas.
Todavia, como destaca McLelland (2005), a androginia como padrão
de beleza masculina no Japão não deve ser confundida com um comporta-

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Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

mento afeminado. O bishônen representa um ideal de beleza tanto para


homens homossexuais quanto heterossexuais.
(Male beauty in Japan does not necessarily connote effeminacy, as is
clear from Takabatake Kashô’s illustrations of beautiful boys engaged in a
range of male-genreded activities, such as boxing, riding and fencing.
(McLelland, 2005, p. 146).)
A coletânea Bishônen Zukan, de Kashô, apresenta um compêndio de
imagens, em grande parte com demonstração de afeto entre meninos. Thorn
(1995) destaca o fato de que, neste momento da sociedade japonesa, o univer-
so infanto-juvenil era bastante demarcado e separado.
Este padrão masculino de beleza sofreu um forte abalo após o fracasso
japonês na Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, as condições da so-
ciedade japonesa eram precárias, implicando em um declínio do paradigma
do homem delicado, envolto em ornamentos e cuidados. Por outro lado, a
entrada do cinema ocidental e a valorização do papel social dos oiaji (homem
trabalhador) na reconstrução da sociedade japonesa abriram espaço para o
reconhecimento da beleza mais rústica e cotidiana.
Na segunda metade do século XX , com a estabilização econômica,
verifica-se uma retomada da estética bishônen, principalmente na profusão
de imagens da cultura midiática em crescimento no período. Recupera-se,
assim, a matriz cultural da beleza masculina andrógina como paradigma,
aspecto marcante na produção dos mangás, dentre outras expressões
culturais, ainda hoje. Neste contexto, deu-se o surgimento do yaoi, com o
movimento Showa 24 (Aranha, 2006).
A estética do yaoi tem por uma de suas características mais marcantes
o uso da androginia nos traços que expressam seus personagens. Para enten-
der melhor a formação deste modelo, vale lembrar que o propósito primeiro
deste subgênero era, justamente, abrir espaço para a expressão da voz femi-
nina em um contexto de opressão masculina (Aranha, 2006). Assim, os casais
gays destas narrativas representam de fato casais heterossexuais. A feminili-
zação do masculino revelou-se um modo de aproximar ambos os sexos, ação
cognitiva que dá materialidade ao próprio processo de resistência em questão.

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Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

Recentemente, todavia, observa-se, o surgimento de uma representação


dissidente da masculinidade no universo da produção de yaoi, rompendo com
a estética bishônen em favor de uma representação da masculinidade forte-
mente influenciada por uma subcultura gay norte-americana, os bears. Há,
contudo, que se destacar, o fato de que esta alteração não vem substituir a
hegemonia do bishônen nos yaoi. Entretanto, marca uma manifestação cul-
tural oriunda do diálogo com o Ocidente que não deve ser academicamente
negligenciada. Trata-se de uma reação cultural que revela o processo de apro-
priação de um modelo de resistência (das mulheres heterossexuais japonesas)
por uma minoria dentro da comunidade gay, fortemente influenciada pela
subcultura gay ocidental dos bears, dando origem a um novo modelo cultural:
o yaoi bear.

Estética bear: a hipermasculinidade como modelo gay

O termo G-men ou jimen se estabeleceu no Japão a partir da populariza-


ção da revista mensal homônima produzida. Esta publicação, com número de
páginas que variam entre trezentos e quinhentos, inclui fotografias, desenhos,
breves histórias e mangás, sempre girando em torno da imagem de homens ma-
duros, peludos (com barba ou não), musculosos e/ou gordos. Uma das caracte-
rísticas do periódico em relação aos seus pares é a menor quantidade de artigos
e o maior espaço para as narrativas ilustradas e histórias seriadas, cujos temas
giram em torno da relação entre homens dentro deste arquétipo, com forte apelo
sexual. Cumpre ressaltar, entretanto, que a revista não é considerada porno-
gráfica. Colabora para tanto o fato de que, em atendimento à legislação japo-
nesa, os quadros em que há exposição de órgãos genitais são sempre censurados.
Ao contrário das publicações de Yaoi-shôjo, a G-men deixa claro que se
destina a leitores gays (gei bôi), ou simpatizantes, advertindo acerca do
conteúdo homoerótico. A revista é publicada exclusivamente no Japão, em-
bora bastante difundida na internet, através de cópias ilegais de fãs do gênero.
Aliás, a rede se revela o principal espaço de consumo destes mangás no
restante do mundo.

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Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

Os homens desenhados nas páginas da G-men se caracterizam por


serem maduros e, em sua grande maioria, peludos. Este modelo de represen-
tação da masculinidade apresentou estreita similaridade com o arquétipo de
um dos segmentos da comunidade gay norte-americana, identificado como os
bears (ursos), fazendo com que o estilo de histórias publicado na G-men pas-
sasse a ser conhecido no ocidente como yaoi bear.
Os bears representam uma subcultura7 da comunidade gay surgida na
década de 1980, em San Francisco, nos Estados Unidos (Wright, 2001). Em
1984, o editor Richard Bulger e o fotógrafo Chris Nelson lançam a publicação
amadora (fotocopiada) Bear Magazine. Com o passar do tempo, esta iniciativa
acabou se tornando a principal revista desta comunidade, servindo de veículo
para a legitimação da estética bear. Isto durou até o ano de 2002, quando hou-
ve a falência da Brush Creek Media Inc., que detinha os direitos da publicação,
retornando apenas em agosto de 2008.
O retorno da publicação da Bear Magazine apresentou um diferencial
em relação à sua antiga forma de edição. Passou a agregar entre os elementos
estéticos não apenas o estereótipo rural que marcou sua primeira fase. Com
isto deu início a um processo de fetichização também da imagem de homens
da classe trabalhadora (trabalhadores braçais, motoristas de caminhões etc.),
sempre vinculados ao padrão de homens gordos e peludos (Nelson, 1992).
Para melhor compreensão, da matriz deste estereótipo, vale destacar o texto
de apresentação do site da própria revista Bear Magazine (www.bear-
magazine.com), que muito contribuiu para a sedimentação do arquétipo bear.

BEAR is a gay and bisexual men’s magazine which embodies the ideals

of iconic hyper-masculinity with fresh editorial content featuring


beautiful erotic photography and provocative fiction, blended with
humor and informative articles that are of interest to both the niche bear
market as well as the gay mainstream (grifo nosso).

7. “We learn that bears emerged as a gay subculture in the early 1980s with a variety of forms
of cultural expression, including bear bars, “clean and sober” social clubs, party weekends,
conventions, and camping trips” (Wright, 2001, p. 328).

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Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

No mesmo sentido, encontramos referências na enciclopédia virtual


Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Bear_community), na qual o verbete
bear é descrito como:

Bears tend to have hairy bodies and facial hair; some are heavy-set;
some project an image of working-class masculinity in their grooming
and appearance, though none of these are requirements or unique
indicators. Some bears place importance on presenting a hyper-
masculine image and may shun interaction with, and even disdain, men
who exhibit effeminacy. The bear concept can function as an identity, an
affiliation, and an ideal to live up to, and there is ongoing debate in bear
communities about what constitutes a bear. There is also, anecdotally,
more acceptance of tattoos and body piercing in the bear community.

Os bears rompiam, portanto, com o estereótipo do adolescente imberbe


e alinhado com a moda urbana, em favor de uma estética calcada na imagem
do homem rural norte-americano, em especial, o arquétipo do lenhador: cor-
pos grandes (músculos e/ou gordos), peludos (destaque para o uso de barba,
cavanhaque, bigode), roupas mais rústicas (camisa xadrez, calça jeans etc.),
dentre outros aspectos. O modelo Jack Radcliffe se transforma em um dos
referenciais desta estética.
Em relação ao aspecto comportamental, esta comunidade desenvolveu
códigos ímpares em relação à cultura gay urbana (Monaghan, 2005). Nesta
resistência aos códigos atribuídos ao “estilo de vida gay”, privilegiam-se os tra-
ços masculinos, ou hipermasculinos, explorando a erotização dos corpos gor-
dos e peludos em contraposição à imagem jovem e feminilizada, fortemente
marcada por traços renascentistas. A imagem rústica do corpo masculino trans-
forma-se agora em afirmação de uma identidade gay alternativa.
Nos mangás, o mangaka Gengoroh Tagame fundou a estética do yaoi
bear. Tagame começou a atuar neste segmento em 1982, ainda como dese-
nhista. Todavia, apenas em 1986 adotou o pseudônimo pelo qual é hoje conhe-
cido. Em seus trabalhos, destacam-se os temas sado-masoquistas e as relações

999
Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

sexuais violentas (www.tagame.org/). Tagame marca o início da estética bear


nos mangás japoneses.
Nos mangás de Tagame a narrativa é frouxa e o foco está inteiramente
no sexo, ou melhor, no sadomasoquismo. Apresenta sucessões de cenas de
tortura e dominação. Via de regra, seu trabalho é referido como o principal
modelo de yaoi bear, o que nos parece um entendimento equivocado, tendo
em vista que seus temas são orientados pela postura do próprio autor, que se
declara sadomasoquista, não devendo sua produção ser confundida com todo
o subgênero.
O mangaka Jiraiya, premiado em 1998 pela G-men, estabeleceu novos
rumos para o subgênero, que agradaram tanto ao leitor japonês quanto ao
ocidental. Em mangás como Goninbeya Shinsôban (2004), surge o espaço
para novas vozes e a constituição de um novo modelo de mangá.

Novos territórios, novas fronteiras

Ao longo do processo de consolidação do yaoi bear, tem sido possível


observar alguns traços que o distinguem do tradicional yaoi, promovendo com
maior clareza também a diferenciação da comunidade de leitores das duas
categorias.
A ruptura em relação ao modelo bishônen e a instituição do arquétipo
bear (figura 1) afastou o público feminino, principal consumidor de yaoi, por
não encontrar nestes últimos os elementos que motivavam sua leitura:

– o arquétipo de beleza masculina fundada na androginia;


– a similaridade visual do feminino no polo passivo da relação, que
como visto em trabalhos anteriores (Aranha, 2006; Aranha e Pugas-
Filho, 2008), representam não um homem, mas uma mulher;
– a perda da delicadeza, do ornamento e da feminilidade nas re-
tratações dos personagens que, no yaoi bear, são mais corpulentos e
brutos;

1000
Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

– a questão etária sofre uma considerável mudança, embora no yaoi


um dos parceiros (polo ativo) possa ser mais velho, a diferença nunca
remeterá a um adulto com mais de trinta anos; já no yaoi bear esta
limitação não se aplica, sendo possível encontrar até mesmo um dos
parceiros já grisalho;
– os papéis sexuais (ativo/passivo) são muito definidos no yaoi, haja
vista que um deles é, na verdade, uma representação feminina. Por
outro lado, no yaoi bear é possível encontrar histórias nas quais os
papéis são definidos e outras em que não, sendo ainda comum que a
troca de papéis desempenhe uma função de representação da posição
dos personagens no jogo de poder e hierarquia do contexto em que
se encontram.

Figura 1. Ilustração dos arquétipos bishônen (esquerda) e bears (direita)

Os mangás gays japoneses se afastam também na composição estilística


dos enquadramentos e composição dos cenários, em relação ao modelo
tradicional do yaoi. Assim, enquanto este modelo se caracteriza pelo floreado,
pela suavidade do traço, elaboração do cenário e bastante ênfase na fusão do

1001
Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

primeiro e segundo planos, os yaoi bear investem no uso de uma arte mais
crua, pouco floreada, no qual prevalece o foco no primeiro plano, muitas vezes
deixando de aplicar um fundo (figura 2). É possível observar, nitidamente, a
distinção entre uma escrita de “mulheres para mulheres”, que valoriza, por
exemplo, a ornamentação do ambiente e o detalhamento de cabelos e olhares,
para uma narrativa de “homens para homens”, na qual os corpos ocupam mui-
tas vezes o ponto central, os traços são mais crus e objetivos e o ornamento é
tratado como supérfluo, sendo a representação do cenário reduzida ao mínimo
possível, quando não abolindo o segundo plano.

Figura 2. Diferenças estilísticas na composição de páginas no yaoi


(esquerda) e no yaoi bear (direita)

Outro ponto de distinção pode ser observado na condução do enredo.


No yaoi bear, a narrativa nasce a partir do sexo entre os personagens, enquan-
to no yaoi ele será a consequência de outros elementos.

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Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás

A questão da violência, muito divulgada pela obra de Tengorot Tagame,


abre espaço para outras manifestações da hipermasculinidade que marca a
homossexualidade do homem japonês. São frequentes as representações de
relações de poder, com a erotização da hierarquia social, muito presente na
cultura japonesa.
Tais aspectos conduziram para a distinção dos modelos e seus públicos.
O yaoi continua sendo percebido como um mangá shôjo, ou seja, destinado
a adolescentes heterossexuais do sexo feminino, enquanto o yaoi bear passa
a ser categorizado como um mangá bara, destinado ao público gay. Cumpre
observar que esta distinção se deu não por imposição editorial ou de qualquer
questão moral, mas a partir da própria recepção, em relação aos usos que fa-
zem destes modelos como veículos de expressão e reconhecimento identitário.

Referências bibliográficas

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das Graphic Novels Japonesas”. Anais do III Congresso da Associação
Brasileira de Estudos da Homocultura, Discursos da Diversidade Sexual:
Lugares, Saberes, Linguagens. Belo Horizonte, ABEH – Associação Brasileira de
Estudos da Homocultura, 2006, CD-ROM.
ARANHA, Gláucio e PUGAS-FILHO, José Maria. “O Impacto da Indústria Cultural Japonesa
na Formação de Identidades Sexuais entre Jovens Brasileiros”. Anais do II
Congresso Internacional Cotidiano: Diálogo sobre Diálogos, GRUPALFA, UFF. Rio
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LEUPP, Gary. Male Colors: The Construction of Homosexuality in Tokugawa Japan.
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1003
Gláucio Aranha e José M. Pugas-Filho

McHARRY, Mark. “Yaoi: Redrawing Male Love”. The Guide, nov. 2003.
MONAGHAN, Lee. “Big Handsome Men, Bears and Others: Virtual Constructions of “Fat
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