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REVISTA DO MUSEU

DE
ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

N25 1995
REVISTA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

C o m issão E d ito rial

José Luiz de M orais


M aria C ristina O liveira Bruno
M aria C ristina M ineiro Scatam acchia
M aria Isabel D 'A gostino Flem ing
N obue M yazaki

E dito ras R esp o n sáv eis

M aria C ristina M ineiro Scatam acchia


M aria Isabel D 'A gostino Flem ing

C o nselho E d ito rial

A na M ae Tavares B arbosa K abengele M unanga


A ntonio Porro M aria C ristina M ineiro Scatam acchia
A ugusto Titarelli M aria Isabel D 'A gostino Flem ing
A ziz N. A b'Saber M aria L uiza Corassin
B erta Ribeiro M aria M anuela Carneiro da Cunha
Carlos Serrano N iède Guidon
D orath Pinto U chôa N oberto L uiz G uarinello
Fábio Leite O scar Landm ann
G abriela M artin D 'Á vila Pedro Ignàcio Schm itz
Igor Chm yz Roberto C ardoso de O liveira
Jacyntho Lins Brandão Solange Godoy
José A ntonio D abdab Trabulsi Sonia T. Ferraro D orta

P ede-se perm uta


We ask fo r exchange

Av. Prof. A lm eida Prado, 1.466


C idade U niversitária - São Paulo, SP
CEP 05508-900 - FAX 818-5042 - 818-4888
REVISTA DO MUSEU
DE
ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ISSN 0103-9709

REVISTA DO MUSEU
DE
ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

publicação anual

Na5

1995

SÃO PAULO, BRASIL


Sumário

ARTIGO S

3 Astolfo Gomes de Mello Araújo - Peças que descem, peças que sobem e o
fim de Pompéia: algumas observações so­
bre a natureza flexível do registro arqueo­
lógico

27 M aria Cariota Sempé e - Las culturas agroalfareras dei Alto Uru-


M aria Amanda Caggiano guay (M isiones), Argentina

39 Nelsys Fusco Zambetogliris - La arqueologia urbana en la Colonia dei


Sacramento

51 Claudia Inês Parellada - Análise da malha urbana de Villa Rica dei


Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR

63 Alberto Gottardi Neto - Análise cerâmica do Projeto Cavernas de


M orro Azul

77 José Luiz de Morais - Salvamento arqueológico na área de in­


fluência da PCH Moji-Guaçu

99 Erika M arion Robrahn González - A ocupação ribeirinha pré-colonial do mé­


dio Paranapanema

117 Walter Bissa M areschi e - Recursos potenciais de grupos caçadores-


Waldir Mantovani coletores do médio rio Ribeira (SP)

125 Paulo A.D. De Blasis e - Analisando sistemas de assentamento em


W alter Fagundes Morales âmbito local: uma experiência com full-
coverage survey no Bairro da Serra

145 Emilio Fogaça - A Tradição Itaparica e as indústrias líticas


pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG
- Brasil)

159 A ltair Sales Barbosa - Peregrinos do cerrado

195 Eduardo Goes Neves - Village fissioning in Amazônia: a criti­


que of monocausal determinism

211 H. A. Shapiro - Literacy and social status o f archaic attic


vase-painters

223 M aria Beatriz Borba Florenzano - Anotações sobre a representação de mons­


tros nas moedas gregas

235 A na Claudia Torralvo e - A coleção cipriota do MAE-USP: os exem­


A lvaro Hashizume Allegrette plares da Idade do Bronze

251 Fabio Leite - ‘Sizanga’


261 Helmy M ansur Manzochi - Axexe: um rito de passagem

267 Vera Penteado Coelho - Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações


para o estudo de uma estética indígena

283 M arilúcia Bottallo - Os museus tradicionais na sociedade con­


temporânea: uma revisão

ESTU D O S D E C U R A D O R IA

291 Yacy-Ara Froner - Conservação preventiva e patrimônio ar­


queológico e etnográfico: ética, conceitos
e critérios

303 Fátima Regina Nascimento e - Cultura material: as propostas de uma ta­


Wallace de Deus Barbosa xonomía geográfica

ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS

325 Adriana M ortara Almeida - Estudos de Público: a avaliação de expo­


sição como instrumento para compreender
um processo de comunicação

235 Pedro Paulo Abreu Funari - Resenha: LAURENCE, R. Roman Pom-


peii, Space and Society. Londres e Nova
Iorque, Routledge, 1994, 157pp

NOTAS

341 Judith Mader Elazari - Projeto Piloto: “Patrimônio Cultural e M e­


mória: a 3a Idade e o Museu de Arqueo­
logia e Etnologia da USP"

343 Christina Rizzi e - Uma proposta de instrumento de leitura pa­


M arília Xavier Cury ra a Exposição "Plumária Indígena Brasi­
leira"

CRÔNICA DO M USEU

347 Ano de 1994


Contents

A R TIC LES

3 Astolfo Gomes de Mello Araujo - Pieces going down, pieces going up and
Pom peii’s end: some remarks on the flexi­
ble nature of the archaeological record

27 M aria Carlota Sempé and - The ceramic-agricultural cultures of Alto


M aria A m anda Caggiano Uruguay (Misiones), Argentina

39 Nelsys Fusco Zam betogliris - The urban archaeology in the Colonia del
Sacramento, Uruguay

51 Claudia Inés Parellada - Analysis of urban net of Villa Rica del Es-
piritu Santo (1589-1632) / Fênix - PR

63 A lberto Gottardi Neto - Pottery analysis of Morro Azul Caves pro­


ject

77 José Luiz de Morais -Salvage archaeology in the PCH Moji-Gua-


çu Reservoir area

99 Erika M arion Robrahn González - The pre-colonial riverine occupation of the


Middle Paranapanema

117 W alter Bissa M areschi and - Potential resources of hunter-gatherers


W aldir M antovani groups in middle Ribeira River (SP)

125 Paulo A.D. De Blasis and - A nalysing local settlem ent systems: an
W alter Fagundes Morales experience with full-coverage survey in the
middle Ribeira Valley, São Paulo State

145 Emilio Fogaça - Tradition Itaparica and early lithic indus­


try o f Lapa do Boquete (M inas Gerais,
Brazil)

159 A ltair Sales Barbosa - Pilgrims of the Cerrado

195 Eduardo Goes Neves - Village fissioning in Amazonia: a critique


o f monocausal determinism

211 H. A. Shapiro - Literacy and social status of archaic attic


vase-painters

223 M aria Beatriz Borba Florenzano - Monsters as coin types in A ncient Greece

235 Ana Claudia Torralvo and - The M A E-U SP Cypriot Collection: the
Alvaro Hashizume Allegrette Bronze Age pottery

251 Fabio Leite - ‘Sizanga’


261 Helmy M ansur Manzochi - Axexe: a rite of passage

267 Vera Penteado Coelho - Zoomorphic figures in the Waura art: notes
on the study of an indigenous aesthetics

283 M arilúcia Bottallo - Traditional museums at contemporary so­


ciety: a revision

CURATORSHIP STUDIES

291 Yacy-Ara Froner - Preventive Conservation and Archaeologi­


cal & Ethnographic Patrim ony: ethics,
concepts and criterious

303 Fátima Regina Nascimento and - M aterial culture: propositions to a geo­


Wallace de Deus Barbosa graphic taxonomy

BIBLIO GRAPH ICAL STUDIES

325 Adriana M ortara Almeida - Audience Studies: using exhibit evalua­


tion as a tool to understand the process of
communication

335 Pedro Paulo Abreu Funari - Review: Laurence, R. Rom an Pompeii,


Space and Society. London and New York,
Routledge, 1994, 157pp

NOTES

341 Judith M ader Elazari - Pilot Project: "Cultural Patrimony and M e­


mory: Third Age and the University of Sâo
Paulo Museu de Arquelogia e Etnologia"

343 Christina Rizzi and - A proposal for a reading instrument for the
M arília X avier Cury Exhibition "Brazilian Indigenous Feather
Art"

M USEUM CHRONICLE

347 Year of 1994


Artigos
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

PEÇAS QUE DESCEM, PEÇAS QUE SOBEM E O FIM DE


POMPÉIA: ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE
A NATUREZA FLEXÍVEL DO REGISTRO ARQUEOLÓGICO

Astolfo Gomes de M ello A raujo*

ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações
sobre a natureza flexível do registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 3-25, 1995.

RESUMO: A movimentação vertical de peças é um fenômeno presente em


praticam ente qualquer sítio arqueológico, em maior ou menor grau. Ainda assim,
é com um que os arqueólogos encarem o registro arqueológico como uma entidade
estável e rígida, partindo de pressupostos implícitos e bastante perigosos. Este
artigo m ostra alguns casos de movimentação vertical, discute suas várias causas,
suas principais conseqüências e apresenta algumas sugestões para que se lide com
o problema.

UNITERM OS: M ovim entação vertical - Processos de formação - Geoar-


queologia - Bioturbação - Remontagem - Pisoteamento - Traceologia

Introdução da (ou nível arqueológico) sobreposta a outra é mais


recente do que esta última. Ocorre, porém, que há
Poucas questões têm um impacto tão grande uma certa confusão na interpretação desta lei, uma
na interpretação de sítios arqueológicos e na elabo­ vez que ela se aplica aos depósitos sedimentares e
ração de cronologias quanto a questão do posicio­ não necessariam ente ao m aterial arqueológico
namento das peças, quer sejam entre si, quer seja neles contido (Stein,1987: 350). Na verdade, como
em relação à estratigrafía do sítio, tanto horizon­ será discutido ao longo do texto, os vestígios ar­
talmente como verticalmente. Toda a definição de queológicos podem ser mais antigos, contem po­
contexto arqueológico passa pela aceitação de que râneos ou até mesmo mais recentes do que a cam a­
peças encontradas em um mesmo “nível” arqueoló­ da que os envolve.
gico são contem porâneas e que, portanto, corres­ Este artigo tem por objetivo alertar mais uma
pondem a um mesmo horizonte de ocupação ou a vez para o perigo de se considerar o registro ar­
queológico como um pacote herm ético e pouco
uma mesma “tradição” cultural. Ainda seguindo
este raciocínio, um princípio geológico bastante co­ sujeito a mudanças. O assunto não é propriamente
nhecido pelos arqueólogos, a cham ada “lei da novo; vários têm sido os estudos a respeito de alte­
superposição de cam adas”, nos diz que uma cama- rações pós-deposicionais do registro arqueológico,
resultando em uma série de advertências aos pes­
quisadores que lidam com sítios considerados
(* ) Depto. do Patrimônio Histórico do Município de São intactos. No âm bito da A rqueologia Brasileira,
Paulo e pós-graduando (douramento) do Museu de Arqueo­ porém, o tema parece não ter tido a repercussão
logia e Etnologia da Universidade de São Paulo. merecida.

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

Os conceitos de Neste artigo será dada ênfase a algumas dessas


“Sítio Perturbado” e “Sítio Intacto” condições que agiram no passado, especialm ente
aos fatores de modificação natural dos sítios ar­
E comum que se considere “perturbado” um queológicos. Até que ponto existem sítios “intac­
sítio arqueológico a céu aberto, em uma plantação, tos”? Para responder a esta pergunta será necessário
sujeito à ação do arado. Dependendo do tipo de antes captar a dimensão das transform ações às
arado, somente serão considerados “perturbados” quais um pacote arqueológico está sujeito. Não se
os primeiros 20 ou 30 centímetros de solo. Em se pode esquecer que, antes de tudo, um sítio arqueo­
tratando de um sítio multicomponencial, com um lógico é composto por uma série de itens culturais
nível cerâmico sobreposto a um ou mais níveis líti- imersos em um a m atriz de natureza geológica,
cos, provavelmente estes últimos serão considera­ sujeita às mesmas ações e transformações existen­
dos “intactos”, a escavação se procederá buscando tes em qualquer outra matriz análoga na paisagem.
níveis naturais, faixas com menor concentração de Para chegarmos aos objetivos finais da A r­
peças serão identificadas como níveis estéreis, o queologia, ao estabelecimento de cronologias, à
carvão que porventura exista nos vários níveis será interpretação das culturas, à construção de modelos
coletado e as datações de C14 serão associadas às explicativos e ao entendim ento dos processos
peças que se encontravam no mesmo “nível arqueo­ atuantes na modificação de sociedades já desapare­
lógico” do carvão. A suposição de que um sítio cidas, temos que antes entender o meio físico que
está “intacto” é ainda mais forte quando se trata contém nosso m aterial de estudo, os processos
de abrigos rochosos ou cavernas em locais de difícil atuantes nesse meio e finalmente quantificar o grau
acesso. A pergunta é: até que ponto não se está de alteração espacial (vertical e/ou horizontal) nele
incorrendo na chamada “prem issa de Pompéia” existentes. A partir disso, e somente a partir disso,
(Ascher,1961 apud: Binford, 1981), ou seja, na é que os dados podem ser reunidos e interpretados
noção errônea e (perigosamente) implícita de que de maneira satisfatória.
o m aterial arqueo lógico enco n trad o em um a
escavação se mostra espacialm ente disposto da Alguns casos documentados
mesma maneira em que foi deixado pela comuni­ de M ovimentação Vertical
dade humana que o utilizou?
A discussão dos processos de formação de O fato de que peças e estruturas arqueológicas
sítios arqueológicos já foi colocada por vários auto­ podem “afundar” no solo foi observado já por
res (Schiffer, 1972,1983; Villa, 1982,1983; Wood & Darwin (I8 8 l,a p u d \ Limbrey,1975) em seu estudo
Johnson, 1979, entre outros). Existem os fatores ine­ a respeito da atividade das minhocas no solo. Tra­
rentes à própria ocupação de um espaço geográfico balhos mais recentes têm podido apontar outros
discreto por uma dada população, que pisoteou o agentes e quantificar o montante das alterações a
solo, removeu detritos, transportou artefatos de um que estão sujeitas as peças dentro de um pacote
local para outro etc., e fatores naturais, pós-deposi- arqueológico.
cionais, que vêm modificar ainda mais as caracte­ A seguir, serão apresentados alguns casos on­
rísticas espaciais dos vestígios arqueológicos. Cabe de se pôde verificar grandes disparidades entre o
aqui atentar para o fato de que se considera estas posicionamento vertical de peças contemporâneas.
transformações como agentes de modificação e não A maioria dos casos foi observada em países de
de distorção. 1 clim a temperado mas, ao que tudo indica, alguns
“The archaeological record can only be con- dos fatores envolvidos podem ser até mais atuantes
sidered a distortion relative to some a priori set na região intertropical. As possíveis causas do des­
o f expectations; certainly it is not a distortion o f locamento vertical, mesmo que apresentadas pelos
its own reality. It is a faithful remnant o fth e causai autores, serão discutidas posteriormente em um
conditions operative in the past, and our task is item específico.
to understand those causai conditions. ” Binford
(1981: 200). A Gruta de Hortus - França
(Lumley,1972; Bordes,1972)

(1) Para uma interessante discussão a respeito, ver Binford,


Escavado entre 1960 e 1964, Hortus apresen­
1981 e Schiffer, 1983. tou um pacote sedimentar espesso, com 9m de

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

profundidade e 42 níveis arqueológicos, predom i­ para a África Central. O sítio está localizado em
nantem ente arenosos. Tomou-se famoso pelo “m i­ um amplo terraço fluvial composto por areias, siltes
lagre do lobo” : os ossos de um único indivíduo de e argilas, assentado sobre arenito e com espessura
Canis lupus se mostraram dispersos ao longo de variando entre 1,4m e 6m.
lm de profundidade, atravessando 8 níveis arqueo­ Em 1973/74, novas escavações foram realiza­
lógicos. N a verdade, o “milagre” não foi exclusivo das para precisar melhor e datar a seqüência descri­
do lobo; ossos de cavalo foram encontrados a uma ta anteriormente. Foram encontrados seis diferentes
distância vertical de 70cm (indivíduo 1) e ossos conjuntos de artefatos e as datações variaram desde
humanos a distâncias de até 60cm (indivíduo 11). mais de 30.000 A.P. (Kaliniano) até 220 A.P. (Idade
Em nenhum dos casos a estratigrafía apresentou do Ferro Recente). Tudo iria muito bem, não fosse
evidências de fossas ou rupturas nos níveis ar­ o fato de que peças provenientes de diferentes
queológicos. Não se tem dados a respeito da movi­ níveis remontavam entre si. Alguns exemplos: um
mentação vertical do material lítico, uma vez que núcleo de quartzito e respectivas lascas, distribuí­
não se procedeu à remontagem de peças. dos entre 140cm e 200cm de profundidade; outro
conjunto com peças entre 185cm e 215cm de
Os Abrigos Shaw ’s profundidade; o caso mais extremo, porém, é o de
Creek, King ’s Table e Bobadeen um conjunto de 102 peças que remontaram, mesmo
-A u s tr á lia (Stockton, 1973,1977) estando distribuídas entre 180cm e 260cm de pro­
fundidade. As conclusões são taxativas:
Shaw’s Creek é um abrigo de pequenas dimen­ “Les ensem bles archéologiques ne consti­
sões, pesquisado no início da década de 70. A esca­ tuent donc pas des industries homogènes. Par con­
vação revelou um pacote sedimentar de 80cm, onde séquent, toute définition typologique et l ’interpré­
foi possível perceber sete camadas distintas, a partir tation chronologique sont privées de sens.
da cor e textura do sedimento. O autor divisou uma Nombre de sites préhistoriques de l ’Afrique
possível alteração no posicionamento vertical das centrale ont sans doute été perturbés d ’une m a­
peças ao perceber que, nos níveis superiores, havia nière analogue à Gombe. (...) la nomenclature et
uma coexistência entre artefatos tradicionais e itens la chronologie actuelle des industries lithiques de
de origem européia. Foram encontrados pequenos cette région devraient être révisées entièrem ent”
fragmentos de vidro até o terceiro nível, a aproxi­ (Cahen, 1976: 599/600).
madamente 20cm de profundidade. Isso sugeriu in­
filtração de peças mais recentes em níveis antigos, O Sítio M eer II - Bélgica (Cahen
uma vez que a cultura aborígene foi rapidamente et al., 1979; Van Noten et al.,1980)
substituída pela européia, estando descartada a
possibilidade de tanto tempo de “coexistência” . O Sítio Meer II, assentado sobre solo arenoso,
No caso de K ing’s Table, escavado em 1974, localizado no norte da Bélgica e datado em apro­
a evidência de perturbações no sentido vertical par­ ximadamente 9.000 anos A.P., constituiu um caso
tiu do fato de se ter fragmentos de carvão com clássico, ao mostrar a importância das remontagens
idades muito próximas ao longo de 60cm de sedi­ de peças e da traceologia no estudo da organização
mento. Isso causou estranheza por se estar tratando espacial de um acampamento de caçadores-coletores.
de um ambiente com taxas de sedimentação baixas. Os artefatos, que se distribuíam desde a super­
Em Bobadeen, notou-se que ossos de animais ficie até aproxim adam ente 45cm de profundidade,
introduzidos pelos europeus foram encontrados no apresentavam -se mais concentrados em uma faixa
segundo nível arqueológico do abrigo, sendo que de aproximadamente 9cm de espessura, em tom o
o primeiro nível havia sido datado em 730 A.P. de 30cm de profundidade.
A dúvida inicial dos pesquisadores residia na
O Sítio Gombe - Zaire (Cahen, 1976,1978) possibilidade de ser o sítio resultado de urna única
ocupação ou de várias ocupações recorrentes. Por
E scavado inicialm ente entre 1925 e 1927, meio de remontagens, foi possível perceber que se
Gombe foi considerado um “sítio tipo”, e a sobrepo­ tratava de uma única ocupação. Algumas das peças
sição de várias camadas de ocupação foi utilizada remontadas apresentavam enormes disparidades
na construção de toda uma cronologia arqueológica verticais: em um caso, uma lasca de silexito encon­

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

trada a 45cm de profundidade remontou com outra estimada entre 200.000 - 300.000 anos. Foram
encontrada a 12cm. Em outro exemplo, onde 17 identificadas três unidades estratigráficas: uma
peças foram remontadas, três foram encontradas a mais antiga, correspondente a depósitos intercala­
menos de 12cm de profundidade, e cinco foram dos silto-arenosos e lentes de seixos, corresponden­
encontradas a mais de 30cm. do a uma oscilação entre antepraia e zona interma-
rés; uma interm ediária, correspondendo a uma
O Sítio FxJj50 - praia com seixos; acima, depósitos interpretados
Kênia (Bunn et dl., 1980) como areias de duna. Durante a escavação, foi esti­
mado que o sítio apresentava um grau de preserva­
Trata-se de um sítio a céu aberto, datado do ção excepcional, com vários níveis de ocupação
Pleistoceno Inferior, entre 1,5 e 1,6 milhões de superpostos ao longo de 1,5-2m de espessura, dada
anos. Foi escavado entre 1977 e 1979 e chamou a a presença de algumas estruturas (fogueiras, bura­
atenção dos pesquisadores pelo elevado número de cos de esteio) e de várias peças que remontavam,
ossos preservados, além do material lítico. O sítio todas de um mesmo nível. Em laboratório, porém,
situa-se na planície de inundação de uma antiga a situação m ostrou-se bem m ais com plexa; o
drenagem, atualmente em processo de erosão, e o rebatimento da posição das peças em um plano ver­
material arqueológico está inserido em uma cama­ tical e suas relações de remontagem mostraram a
da silto-arenosa endurecida, de origem vulcânica não existência das finas e contínuas lentes de m a­
(sedimentos tufáceos). O horizonte arqueológico terial arqueológico, bem separadas por unidades
mostra-se em algumas partes do sítio com apenas estéreis, que se supunha anteriormente. As peças
poucos centímetros de espessura, mas em outras, remontantes mostraram-se separadas verticalmente
as peças estavam dispersas ao longo de 50 cm de por distâncias de 20-30cm ou mais. Em um caso,
sedimento. Segundo os autores, uma lasca fragmentada apresentou disparidade ver­
“(•■•) the position o f pièces that f i t together tical de 45cm entre suas duas metades. Além disso,
form an interconneting web that links up ail parts peças pertencentes a unidades geológicas diferentes
o f the archaeological zone (...) both horizontally também foram remontadas. Exemplificando, arte­
and vertically.” (Bunn et al., 1980: 117-118). fatos encontrados no nível de duna remontaram
com outros encontrados no nível inferior, de praia
A Gruta de Fontbrégoua - pedregosa.
França (Courtin & Villa, 1982) Enfim, o que se esperava do sítio em matéria
de “níveis de assentamento” parece ter sido mais
Gruta em calcário escavada parcialmente em forte do que o mesmo poderia realmente oferecer:
1950 e retomada em 1970, com um pacote sedimen­ “(...) the contemporaneity o f different parts
tar de 10m de espessura, datando desde 11.450 a.C. o fth e site at any given levei isfa rfro m certain(...).
até o período histórico. Os autores, utilizando-se de The postulated life-way ofthe Terra Amata hunters
métodos de remontagem, perceberam que os frag­ has be en described in detail by de Lumley (1969);
mentos provenientes de um único recipiente cerâmi­ expanded accounts o f it are fo u n d in textbooks
co se dispunham ao longo de 30cm de profundiade. (..,). These reconstructions should be considered
“Les déplacements verticaux indiqués par les as largely speculative because they are based on
raccords de tessons céramiques à Fontbrégoua ambiguous or inadequate data (Villa, 1982: 285).
atteignent parfois de chiffres (...) élevés (30 à
35cm)(...). Il est probable (...) que plusieurs fa c ­ Abrigo Sarandí -
teurs de perturbation ont agi pendant et après la São Paulo, Brasil (Caldarelli,1983)
formation des dépôts de la grotte(...).” (Courtin,
Villa, 1982: 122) O Abrigo Sarandí, localizado em meio a urna
escarpa de arenito, foi descoberto por G.C. Collet,
O Sítio Terra Amata - que realizou um poço-teste, e escavado extensiva­
França (Villa, 1982,1983) mente entre 1979 e 1982 por Caldarelli (1983). O
pacote arqueológico é composto por areias de fra­
Terra Amata é um sítio a céu aberto, localizado ções variadas e algumas lentes argilosas. Foi obtida
próximo ao litoral, escavado em 1966 e com idade uma datação única de 5.540 A .P..

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

O nível arqueológico situava-se nos estratos Abrigo Dufaure -


mais profundos, arenosos, diretamente acima do França (Petraglia et al.,/994)
em basam ento rochoso. O m aterial distribuía-se
irregularmente ao longo de toda a camada arqueoló­ O Abrigo Dufaure, de pequenas dimensões,
gica, de até 40cm de espessura, não sendo possível situa-se na base de um paredão rochoso (cuja lito-
observar níveis distintos ou solos de ocupação logia não foi determinada pelos autores) e tem sua
(Caldarelli, 1983: 109). abertura voltada para uma encosta razoavelmente
Por meio de algumas remontagens, foi possível íngreme. O interior do abrigo foi completamente
perceber que o Abrigo Sarandi sofreu modificações escavado no início do século e entre 1980 e 1984
no que diz respeito ao posicionamento vertical das novas escavações foram realizadas na parte externa
peças; a Tabela 1 mostra as remontagens feitas. do mesmo, compreendendo a borda plana do abrigo
e a encosta imediatamente adjacente, com o obje­
tivo de estudar os processos de formação atuantes
TABELA 1
na vertente a céu aberto. Foram realizadas várias
Remontagens - Abrigo Sarandi datações, com resultados entre 9.600 e 14.000 A.P.
No.Peça Quadra N ível Remonta c/ Quadra Nível A área central da encosta escavada foi conside­
rada pouco modificada, não tendo sofrido proces­
A 1 7B3 -0 ,6 0 1014 7B4 -0 ,6 2
sos de erosão ou transporte de material, devido prin­
B 11 7B3 -0 ,7 3 109 7C1 -0 ,5 0
C 84 7C1 - 0 ,4 9 374 8C2 - 1,05
cipalmente à presença de grandes blocos caídos
D 266 7D 2 -0 ,6 0 385 8C4 - 1,07 que protegeram o pacote arqueológico. Ainda as­
E 353 8C3 -0 ,9 0 1783 8C4 - 1,11 sim, os autores reconhecem ter havido m ovimenta­
F 2665 8B2 - 1,41 2762 8B4 - 1,42 ção vertical de objetos.
G 3792 5D1 +0,48 4640 8B4 +0,22
u(...)the refits indicated that vertical move-
(modificado de Caldarelli, 1983: 114)
ments o f up to 76 cm occurred. Objects therefore
passed through pavem ents and, in som e cases,
A partir da tabela acima, pode-se perceber que even strata” (Petraglia et al., 1983: 149).
as rem ontagens A e F não representam discre-
pâncias quanto ao posicionamento vertical e hori­
zontal das peças, situando-se em quadras contí­ Principais características
guas. da M ovimentação Vertical
As remontagens B, E e G representam diferen­
ças bastante grandes no posicionamento vertical,
A partir do que foi exposto, pode-se depreender
da ordem de 20 a 25cm, situando-se também em
algumas características básicas da MV:
quadras contíguas ou, no máximo, vizinhas em dia­
gonal. A movimentação vertical ocorre sem res­
As remontagens C e D chamam a atenção pela peitar barreiras geológicas. As peças podem
grande diferença no posicionamento vertical das se mover dentro de uma mesma camada homo­
peças: 56cm no caso de C e 47cm em D. Em am­ gênea ou através de camadas distintas, sem
bos os casos as quadras não são vizinhas, e sim que isto seja percebido por meio de qualquer
separadas por uma quadra intermediária. Isso na indício de perturbação estratigráfica. Em sítios
verdade não representaria uma distância lateral arqueológicos, camadas de coloração distinta,
muito grande, com uma média de 2 metros entre com limites bem definidos e idades díspares
as peças. Interessante é notar que no caso destas podem conter peças que são contemporâneas.
duas últimas remontagens as quadras não estão em Isso ocorreu claramente em, pelo menos, dois
d isparidade topográfica, ou seja, não há um a sítios: Terra Amata (Villa, 1982,1983) e Hortus
diferença marcante de nível na topografia do sítio (Lumley,1972).
a ponto de sugerir a diferença altimétrica com base Em todos os exemplos mostrados, as pe­
na declividade. A topografia do sítio no local pende ças remontadas apresentaram-se pouco distan­
para sul (tanto a superficial como a topografia da tes em plano, apesar da disparidade vertical
base rochosa), e o eixo formado pelas remontagens (p.ex. Cahen, Keeley & Van Noten, 1979). Es­
é leste-oeste. sa foi uma das características que mais chamou

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

a atenção dos pesquisadores, uma vez que não ção entre as causas biológicas e mecânicas, criando
se tinha elementos para supor uma perturbação um continuum que resulta no rearranjo espacial das
violenta das camadas arqueológicas (via ero­ peças.
são), ou mesmo diferenças explicáveis por des­
nível topográfico.
1 - Fatores biológicos
Em alguns casos, foi sugerido que peças
menores tenderiam a se “infiltrar” mais do que
A ação de organismos vivos em um determ i­
peças m aiores (Stockton,1973, Siiriâinen,
nado registro sedimentar (e aqui se incluem os
1977; Petraglia,1994). Essa característica, po­
sítios arqueológicos) é denominada bioturbação,
rém, parece depender dos fatores envolvidos
e pode ser classificada quanto à natureza do orga­
na modificação do sítio, e não deve ser enca­
nismo responsável pelo processo: no caso de plan­
rada como regra geral. É provável que alguns
tas, teríamos a fitoturbação; no caso de animais,
agentes de bioturbação sejam responsáveis
a zooturbação (Mendes, 1984: 97).
pela situação inversa, fazendo com que peças
A bioturbação já foi tratada por vários autores
menores “subam” e peças maiores “afundem”,
do ponto de vista arqueológico (Bocek, 1986;
conforme será discutido no próximo item.
Cahen et al., 1979; Erlandson, 1984; Mc Brearty,
Por fim, existe uma certa recorrência no
1990; Moeyersons, 1978,1980; Pierce, 1992; Rol-
tocante à litologia dos sedimentos; a maior
fsen, 1980; Villa, 1982, 1983; Stein, 1983; Wood,
parte dos sítios citados apresenta sedimentos
Johnson, 1979). Constatou-se que a ação de plantas
arenosos.
e animais escavadores, vertebrados ou não, consti­
tui um dos principais fatores atuantes no retra-
balhamento de solos e sedimentos, resultando em
Principais (prováveis) transporte de material arqueológico, tanto no senti­
causas da Movimentação Vertical do ascendente como no descendente.

O reconhecimento exato da(s) causa(s) da MV 1.1 - Fitoturbação


de peças não foi alcançado com certeza até o mo­
mento. Trata-se de um assunto pouco desenvolvido, A fitoturbação pode ser exemplificada facil­
que tem chamado mais a atenção de arqueólogos mente se for levada em conta a ação de raízes no
do que de especialistas ligados às Ciências da subsolo. Não se tem dados satisfatórios, porém,
Terra. O mais provável é que várias causas atuem para se afirmar com certeza que o crescimento, ma­
conjuntamente, dependendo também de fatores am­ turação e posterior decomposição de raízes levaria
bientais. Em locais sujeitos à ação do gelo, por a um grande deslocamento de peças ou de solo,
exemplo, tem-se deslocamentos subterrâneos for­ seja vertical ou horizontal. Rolfsen (1980: 115) cita
midáveis devido à pressão exercida pelo conge­ um caso observado na N oruega onde artefatos
lam ento do solo (cf. R olfsen,1980; W ood & foram “empurrados” 80cm para baixo por ação das
Johnson, 1979). Na zona intertropical, além de mo­ raízes de um carvalho. Outro fator relacionado à
vimentos de massa relacionados a horizontes de fitoturbação, e que teria maior potencial de mistura
solo bem desenvolvidos, pode-se contar com a ação de camadas e deslocamento vertical, é a queda de
escavadora e rem odeladora de vários animais e árvores por ação do vento (Wood, Johnson, 1979).
plantas. Esse fenômeno, porém, parece ter mais importância
Serão apresentados a seguir alguns dos agentes em regiões de altas latitudes, onde o solo pouco
de transformação que mais provavelmente atuam desenvolvido e o clima rigoroso fazem com que
no tipo de movimento pós-deposicional observado árvores de grande porte se sustentem por meio de
em sítios arqueológicos. Para isso, far-se-á uma raízes pouco profundas e sejam mais facilmente
subdivisão entre duas naturezas de agentes: os de derrubadas pelo vento. Ao cair, a árvore levaria con­
origem biológica e os de origem mecânica. Deve sigo alguns metros cúbicos de terra agregados às
ficar claro, porém, que tal subdivisão é meramente raízes, incluindo material arqueológico, se for o ca­
ordenadora. Na verdade, vários fatores devem atuar so. Deve-se ter em mente também que as raízes
concomitantemente, existindo uma retroalimenta- podem chegar a grandes profundidades, e sua de­

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

com posição pode não deixar traço algum. A quei­ textura quando molhada) com orifícios intercala­
ma natural de árvores pode se estender às raízes, dos (“olheiros”), que servem para acesso e ventila­
fazendo com que fragmentos de carvão encontrados ção.
em níveis arqueológicos sejam na verdade prove­ As características mencionadas acim a são co­
nientes de antigas raízes queimadas. muns a todas as espécies de saúva.
A distribuição dos sauveiros é bastante abran­
gente em term os am bientais. A lgumas espécies
1.2 - Zooturbação
preferem solos pobres e têm poucas exigências no
tocante à umidade, como é o caso da Atta laevigata,
A zooturbação parece ser um dos fatores mais
que se estabelece tanto em locais arborizados
atuantes e significativos na MV de peças. A princí­
quanto em pastagens. O utra espécie, A tta sexdens
pio, é natural a tendência a subestimar o potencial
rubropilosa, é mais exigente quanto à umidade e
de remoção, transporte e remodelamento de solos
estabelece form igueiros em locais arborizados,
exercido por pequenos organismos como formigas,
evitando locais ensolarados e sendo praticam ente
cupins e minhocas. Alguns animais de maior porte,
inexistentes em cerrados. Parece ser a única espécie
como roedores e tatus, já inspiram uma preocupa­
presente em áreas urbanizadas e ocorre desde o
ção maior, mas pouco se sabe a respeito dos hábitos
nível do mar até pelo menos 1.200m de altitude.
escavadores destes animais, e a questão tende a
Tais dados ilustram o caráter amplo dos ambientes
ser esquecida. O pisoteamento é outro fator que
ocupados pelas saúvas.
deve ser levado em conta, pois se trata de um agente
Um sauveiro é considerado “adulto” três anos
eficaz na separação e movimentação vertical de
(38 m eses) após sua fundação por um a fêm ea
peças. Neste caso, o pisoteamento pode se dar pelos
fecundada (içá, rainha ou tanajura). Neste estágio
próprios habitantes humanos do sítio, que seriam
de desenvolvimento, o sauveiro contará com apro­
considerados como agentes de bioturbação, acei-
ximadamente 1.000 olheiros e ocorre a primeira
tando-se que o pisoteamento não foi intencional,
revoada de formas femininas e masculinas aladas,
ou por outros animais de grande porte, com o gado,
que darão origem a novos formigueiros.
por exemplo.
A longevidade de um sauveiro parece estar di­
A seguir, serão discutidos com maior detalhe
retamente relacionada à longevidade da rainha. Um
alguns dos agentes responsáveis pela zooturbação.
espécime mantido em laboratório chegou a viver
Com efeito, o potencial de movim entação de solo
15 anos e 4 meses (Autuori, 1950 apud: Mariconi,
(e de peças) parece ser mais pronunciado entre os
1970: 34); a colônia teve uma sobrevida de apenas
animais, principalmente os de hábito escavador.
4 meses.
A organização interna dos sauveiros é o que
1.2.1 - Formigas m elhor ilustra a capacidade de movimentação de
terra que têm estes pequenos animais. As saúvas
Para demonstrar o potencial escavador das for­ escavam, além das galerias, um a série de panelas
migas, será usado um exemplo brasileiro: as saú- que podem conter as colônias de fungo, o lixo, ou
vas. as formas sexuadas aladas e ovos. Um formigueiro
Saúvas são formigas do gênero Atta, com am­ de Atta sexdens rubropilosa (“saúva lim ão”) foi
pla distribuição pelas américas, e várias espécies metodicamente escavado, 6 anos após sua fundação
(16 espécies, cf. Mariconi, 1970, das quais 11 estão (Autuori, 1947). Possuía 1.830 olheiros e a super­
presentes no Brasil). São insetos sociais, que vivem fície do solo apresentava 4 montes de terra interli­
em extensos formigueiros subterrâneos e se alimen­ gados abrangendo um a área de cerca de 100m2.
tam de fungos cultivados em câmaras no subsolo. Toda a terra solta de superfície foi raspada, mensu­
A cultura de fungos é feita a partir de fragmentos rada e pesada, resultando em 22,7m 3de terra solta
de folhas, insetos mortos, etc.. As câmaras esca­ ou 15,7m 3 de te rra co m p acta, pesan d o ap ro ­
vadas pelas saúvas são chamadas genericamente ximadam ente 40.000 quilos. Tais medidas não le­
de “panelas” . A terra proveniente da escavação das vam em conta a terra que teria sido dispersada pelo
panelas é levada à superfície, ou depositada em vento ou pela água. Foram encontradas 1.219 pa­
outras panelas. O aspecto externo do sauveiro, por­ nelas vazias, 157 panelas com terra, 296 panelas
tanto, é de montes de terra granulosa (que perde a com lixo e 248 panelas com fungo, perfazendo um

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

total de 1.920 panelas. As panelas com terra mos­


tram que nem toda a terra escavada vai para a super­
fície. O volume de terra em tais câmaras corres­
pondeu a 187,4 litros de terra solta, ou 129,5 litros
de terra compacta. Assim, tem-se um volume total
de 15,8m3 de subsolo remanejado por um único
sauveiro em um período de 6 anos e 5 meses. Note-
se que algumas panelas têm dimensões espetacula­
res: uma panela escavada por uma colônia deA tta
capiguara (“saúva parda”) chegou a medir 2,95m
de altura, a apenas lm de profundidade. Outra pa­
nela, de formiga da mesma espécie, mediu l,25m
de altura, a l,80m de profundidade (M ariconi,
1970: 35). Um sauveiro adulto não raro atinge pro­
fundidades em tom o de 5m. O volume de terra reti­
rada, porém, parece ser maior a partir de 50cm de
profundidade.
As conseqüências de tal atividade na transfor­
mação do registro arqueológico são evidentes; as
Foto 1 - Algumas estilhas trazidas de profundi­
form igas não conseguem carregar m ateriais de dade e depositadas em superfície pela ação de
granulom etria elevada para cima. Desse modo,
form igas saúvas.
artefatos líticos, fragmentos de cerâmica e demais
peças arqueológicas tenderiam a “afundar” à
m edida que as panelas e galerias fossem sendo
escavadas. Ao mesmo tempo, uma camada de solo
fino e de fácil dispersão seria depositada na su­ 1.2.2 - Cupins
perfície. Após o abandono do form igueiro, as pa­
nelas e galerias sofreriam colapso e as peças se Cupins ou térmitas são insetos sociais, que vi­
acomodariam novamente. Como as panelas se dis­ vem em colônias e têm sido personagens de gran­
põem de maneira irregular, esse m ovim ento ver­ des controvérsias entre geólogos, geomorfólogos
tical seria diferenciado, algumas porções do sítio e demais estudiosos do Quaternário.
sofrendo recalques mais significativos do que ou­ A controvérsia se relaciona às hipóteses de for­
tras. D eve-se ter em mente que o material menor, mação de “stone-lines” ou linhas de seixos, que
como estilhas e lascas de reavivam ento de gume, têm sido interpretadas como pavimentos detríticos
são facilm ente carregados pelas saúvas. O autor soterrados por alguns autores; outros autores in-
teve a oportunidade de coletar m aterial prove­ terpretaram-nas como resultantes da ação de cupins
niente de um sauveiro (Atta sp.) existente em uma que, ao escavarem intensivamente o solo, seriam
plantação no m unicípio de Juquitiba (SP), onde responsáveis pela separação de frações granulomé-
grânulos de quartzo e quartzito com até 15mm tricas e, portanto, fariam com que os fragmentos
foram trazidos de profundidade e descartados no maiores “afundassem” e se concentrassem em um
m ontículo de terra em volta de um olheiro. F al­ mesmo nível. Se os cupins são ou não responsáveis
tava, no entanto, a observação de tal fenômeno pelas stone-lines, só estudos mais aprofundados
dentro de um sítio arqueológico. Posteriormente, poderão esclarecer. Fato é, porém, que tanto cupins
em G oiás, m unicípio de N iquelândia, pôde-se como formigas movimentam quantidades impres­
visualizar claram ente este processo: uma colônia sionantes de solo, trazendo vários metros cúbicos
de “saúva de vidro” {Atta laevigata) im plantada de sedimento de grandes profundidades para a su­
em um sítio arqueológico apresentou estilhas de perfície.
lascamento, a maior delas com dimensão máxima Os cupins se distribuem por uma área geográ­
de 22mm (Foto 1) trazidas de profundidade pelas fica bastante extensa, que abrange aproxim ada­
formigas e depositadas juntam ente com a terra mente 45 graus de latitude norte a 45 graus de lati­
descartada em volta do olheiro. tudes sul (Lee & Wood, 1971), embora a maior

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

parte das espécies se localize na faixa intertropical. a 5 anos, quando a taxa de crescim ento diminui e
Sua alimentação pode ser com posta de madeira os ninhos permanecem mais ou menos com o mes­
seca, madeira verde, fungo, húmus, ou restos de mo tamanho.
plantas e folhas. Dependendo da espécie, os ninhos O número de indivíduos por ninho variou de
podem ser totalmente subterrâneos, feitos dentro 81.000 a 986.000 para C. cumulans, e de 62.000 a
de troncos, pendurados em árvores ou em forma 782.000 para C. bequaerti. Outro autor (Amante,
de montes de terra (epigeus). Os cupins que for­ 1916 apud: Ferreira, 1994) encontrou em ninho de
mam este último tipo de ninho são os que mais outra espécie, Syntermes sp., uma população de
interessam do ponto de vista deste artigo. 9.500.000 indivíduos.
A ação dos cupins no registro arqueológico já Com relação à localização dos ninhos, foi ob­
foi tratada por alguns autores (Cahen, 1976,1978; servado que os cupins parecem preferir solos argi­
M cBrearty,1990; W ood & Johnson, 1979), mas losos em detrimento dos arenosos (Ferreira, 1994:
sempre com a utilização de exemplos africanos. A 69), mas isto não implica que condições específi­
ação escavadora destes pequenos animais é impres­ cas não sejam contornadas por estes engenhosos
sionante exatamente por causa do número de indi­ insetos. Já foi observado um ninho completamente
víduos. Estimativas vão em torno de 27.000.000 constituído de areia, em uma restinga no litoral de
de indivíduos/ha em um a região sem iárida do Santa Catarina, sendo que outros cupins da mesma
Kênya, podendo o número ser ainda maior em espécie tendem a construir seus ninhos em solos
regiões florestadas (M cBrearty, 1990: 116). À mais argilosos (L.R. Fontes, 1995, com. pess.).
m edida que vão cavando suas galerias e cons­ A densidade dos ninhos de C. cumulans nas
truindo seus ninhos de terra, os cupins diminuem pastagens da região de Botucatu variou de 0,001 a
a densidade do solo, aumentam sua porosidade e 0,030 ninhos por metro quadrado (Ferreira, 1994:
ao mesmo tempo trazem grandes volumes de terra 70). Isto equivale a dizer que, no caso de C. cum u­
para cima, que será posteriormente espalhada pela lans, em uma área com alta densidade de ninhos,
erosão. ter-se-á em média 7,3 litros de terra remanejada
Para se ter uma idéia do volume de terra trazido por cupins a cada metro quadrado (244 litros x
do subsolo para a superfície, basta saber que algu­ 0,030 ninhos/m2). Levando-se em conta o período
mas espécies africanas (M acrotermes) chegam a de maturidade de 3 a 5 anos para um cupinzeiro,
construir montes de até 9 metros de altura, com pode-se ter uma idéia do efeito cum ulativo desta
diâmetro basal de 30 metros (Howse,1970 apud: ação ao longo dos séculos.
McBreaty,1990). A quantidade de terra envolvida
nas construções de M acrotermes foi estimada em 1.2.3 - M inhocas
2 .4 0 0 .0 0 0 k g /h a na reg iã o c e n tra l do Z aire
(Meyer,1960 apud: McBrearty, 1990). A ação das minhocas no registro arqueológico
No Brasil, os dados a respeito das colônias de pode se dar de várias maneiras: obliteração parcial
cupins ainda não são muitos. As colônias de ninhos ou total de diferenças entre camadas (hom oge­
epigeus mais significativas são as de “cupim-do- neização), recobrim ento de estruturas aflorantes à
pasto” , Cornitermes cumulans, cuja densidade de superfície, aumento da porosidade do solo (cujas
ninhos (ou “murundus”) chega a merecer a denomi­ conseqüências serão discutidas no item 2.1), trans­
nação “cam pos de m urundus” . Há registros de formação química do solo, destruição de vestígios
galerias de cupins descendo até 70 m de profundi­ botânicos de pequena dimensão (sementes).
dade, em direção ao lençol freático (Fontes, 1984). A ação das minhocas se dá pela ingestão de
Ferreira (1994) realizou um estudo a respeito terra e conseqüente abertura de galerias. Dependen­
da estrutura e população de ninhos de Cornitermes do da espécie, as minhocas podem acumular seus
cumulans e Cornitermes bequaerti, na região de excrementos, de aspecto granular, no subsolo ou
Botucatu, SP. Os ninhos de C.cumulans podem levá-los à superfície.
chegar a 4m de altura, embora mais comumente O trabalho mais completo a respeito da ação
não ultrapassem lm . Os volumes de 37 murundus de minhocas no registro arqueológico é o de Stein
de C. cumulans observados pela autora vão de 14,1 (1983). A autora descreve as principais caracterís­
litros a 544,5 litros, com uma média de 244 litros ticas das minhocas e mostra um estudo de caso
por ninho. A maturidade dos ninhos ocorre após 3 onde um sítio tipo sambaqui teve seu solo total­

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

mente transformado por estes anelídeos. As estima­ No caso das minhocas brasileiras, muito há
tivas da quantidade de terra processada por minho­ para ser estudado, principalmente no que diz res­
cas, dependendo da espécie (e do autor consultado) peito a seus hábitos escavadores.
varia de 4.423 a 43.411 g/m3/ano (Evans, 1948;
Guild,1955; Satchell,1967a/?M£/: Stein,1983: 284).
1.2.4 - Roedores, tatus e
Dado o volume do sítio estudado, a autora calculou
outros mamíferos escavadores
que as minhocas ali existentes (em torno de 3 mi­
lhões) demorariam apenas 51 anos para ingerir e
A bibliografia a respeito de mamíferos esca­
remodelar toda a terra. Ainda segundo Stein (1983),
vadores como agentes de transformação do registro
os tipos de sítios arqueológicos mais vulneráveis
arqueológico parece ter se concentrado em um
à ação de minhocas seriam os sítios a céu aberto,
único “vilão” : o Thomom is botae, ou “p o ck et
em regiões florestadas. Habitats favoráveis relacio­
gopher”, um pequeno roedor que vive em com u­
nados a rios seriam os terraços não-inundáveis e
nidades de vários indivíduos, bastante presentes
os leques de colúvio à margem dos terraços. A bri­
na América do Norte, responsáveis por grandes
gos rochosos e cavernas dificilmente reúnem condi­
alterações em sítios arqueológicos ( Bocek, 1986;
ções favoráveis à existência de minhocas.
Erlandson, 1984; Pierce, 1992).
No Brasil, apesar da total carência de estudos
Um caso anedótico da ação de animais esca­
aprofundados sobre estes anelídeos, pode-se dizer
vadores pode ser relatado a partir de uma experiên­
que a espécie mais comum é a Pontoscolex co-
cia de lascamento em que os autores se queixam
rethrurus, conhecida popularmente como “minho­
de um fator inesperado:
ca m ansa” . Esta espécie, que não alcança com ­
“(...) it is interesting here to recall observa-
primentos muito superiores a 5cm, é provavel­
tions (...) made on another trial scatter o f flint.
mente originária do Platô das Guianas e espalhou-
This was set up over a year ago in a dune near by
se por todos os países da Am érica do Sul e Cen­ but unfortunately has recently been destroyed by
tral, atingindo, na A m érica do Norte, o M éxico e
animal burrowing.” (Barton & Bergman, 1982:
o sul dos Estados Unidos. A enorme expansão 245).
geográfica destas minhocas provavelm ente deve-
Para a América do Sul ainda são necessários
se à ação humana, transportada com mudas de estudos mais aprofundados a respeito da ação de
vegetais ou por outros meios, espalhando-se por
mamíferos escavadores que podem representar um
todo o mundo tropical e subtropical, substituindo potencial respeitável de bioturbação. Sabe-se que
as espécies nativas, com o ocorreu em Burma e
mesmo animais introduzidos, como coelhos, po­
na Península M alaia (Righi, 1990: 25). Não se
dem tomar-se pragas e causar grandes destruições
tem dados a respeito do volume de terra ingerido
em sítios arqueológicos.2
e excretado por esta espécie, e nem sobre nenhuma
Na verdade, faltam dados básicos sobre a eco­
outra espécie brasileira, mas sabe-se que tanto a
logia e comportamento até mesmo de animais como
P. corethrurus como a m aioria de nossas espé­
os tatus, escavadores vigorosos que sempre deixam
cies têm um com portam ento de excreção em su­ suas marcas em sítios arqueológicos, e devem ter
perfície, o que contribui enorm em ente para o um poder enorme de alteração de camadas.
enterramento de artefatos e peças, bem como para Observações de campo feitas pelo autor na área
o rem anejam ento do solo. do Alto Xingu mostraram uma ação escavadora
A lgumas espécies brasileiras, como a Rhino- bastante pronunciada por parte destes mamíferos.
drilus sam uelensis, conhecida como “minhoco- Em uma área aproximada de 100 m2, foram obser­
çu” , chegam a ter de 30 a 50cm de com primento, vados mais de 30 buracos de tatu com profundi­
e podem escavar a profundidades de até 9m, dades variáveis, muitos deles responsáveis pelo
acom panhando o lençol freático. Seus túneis po­ afloramento de fragmentos cerâmicos. Foi observa-
dem chegar a diâmetros e quantidades suficientes
para impedir o alagamento em barragens de usinas
hidrelétricas, como ocorreu na Hidrelétrica de Sa­
(2) O autor teve a oportunidade de observar a alteração
muel, em Rondônia (G. Righi, 1995, com. pess.). enorme que coelhos, introduzidos pelos colonizadores
A minhocoçu também tem hábitos de excreção europeus, realizam em sítios arqueológicos no extremo sul
em superfície. da Argentina.

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

do também que as unhas dos tatus deixavam mar­ por 16, 22, 32 e 36 dias. Os resultados foram um
cas pronunciadas na superfície das peças. pouco diferentes dos obtidos por Stockton (1973);
talvez por diferenças no método de recuperação das
1.2.5 - Pisoteamento peças, os autores perceberam uma porcentagem
(animais de grande porte) menor de peças que realmente “subiram” : apenas
10% das peças sofreram movimentação ascendente
O pisoteamento será aqui tratado como um superior a lcm . As peças dispostas em uma mesma
caso de bioturbação, mesmo em se tratando de piso­ cam ad a se d isp e rsaram ao lo n g o de 8cm de
teamento realizado por seres humanos, na medida profundidade, m etade do observado pelo outro
em que não constitui uma atividade intencional, autor. Tal diferença pode se dar por vários fatores:
como seria o caso do enterramento deliberado de o tipo de material utilizado, o tipo de substrato4 e a
artefatos, ou da remoção de peças com o intuito de intensidade do pisoteamento. Em outra experiência,
limpar o solo. Os efeitos do pisoteamento humano os autores depositaram duas camadas de peças dis­
nos solos arqueológicos foram discutidos por al­ tintas separadas por uma camada de sedimento com
guns autores, que realizaram experiências de piso­ espessura de 2 a 3cm, e verificaram a total mistura
teamento (Courtin & Villa, 1982; Gifford-Gonzalez dos níveis.
et al., 1985; N ielsen, 1991; Stockton, 1973). A experiência realizada por Gifford-Gonzalez
Chegou-se à conclusão de que as peças podem et al. (1985) levou em conta as diferenças na movi­
sofrer dispersão vertical significativa, principal­ mentação de peças pisoteadas em dois substratos
mente quando se trata de solos arenosos ou pouco distintos, um arenoso e outro silto-argiloso. As
coesos.3 peças colocadas na superfície de um substrato are­
A experiência realizada por Stockton (1973) noso sofreram maior dispersão vertical (em tom o
utilizou-se de fragmentos de vidro enterrados a 5cm de 1lcm ), e menor dispersão horizontal do que as
de p rofundidade e p isoteados aleatoriam ente peças colocadas em substrato silto-argiloso, que
durante um dia, em solo arenoso. O resultado foi o se dispersaram mais horizontalmente e sofreram
soerguimento de mais da metade dos fragmentos, pequena intrusão no substrato (apenas 0,9% das
que afloraram à superfície, e uma distribuição por peças penetraram mais do que 2cm no substrato).
peso (dimensão) ao longo de 16cm, os fragmentos Adkins & Perry (1989) realizaram experiência
menores alcançando as maiores profundidades. de pisoteamento enterrando alguns artefatos marca­
Note-se que algumas das pequenas lascas de vidro dos (fragmentos de vaso cerâmico, moedas e rode­
alcançaram níveis aparentemente não perturbados las de plástico) em uma trilha utilizada diariamente
e uma profundidade pelo menos duas vezes maior por uma equipe de arqueologia, durante dois anos.
do que a perturbada pela ação direta dos pés. O solo, ao que tudo indica, era bastante argiloso, e
Courtin & Villa (1982) realizaram outra expe­ não foram notadas variações significativas na posi­
riência de pisoteamento, desta vez com materiais ção dos artefatos.
semelhantes aos encontrados na escavação em cur­ Nielsen (1991) realizou outra experiência de
so (lascas e lâminas de silexito, ossos de animais, pisoteamento, com vários tipos de material (frag­
conchas e fragmentos de cerâmica), dispostos ao mentos de tijolo, cerâmica, ossos, madeira, lascas
longo de quadras demarcadas nos terraços de sedi­ de obsidiana) colocados sobre um substrato argi­
mento (calcário alterado) retirado do próprio abrigo loso, e registrou uma MV mínima: apenas l,5cm
que estava sendo escavado. Em alguns experimen­ quando o solo estava seco. Com o solo úmido, a
tos, o m aterial foi colocado em superfície; em argila tendia a aprisionar os materiais experim en­
outros, enterrado sob uma camada de 2 a 4cm de tados, mas, após secagem, os fragmentos voltavam
sedimento. O pisoteamento foi efetuado aleatoria­ a se soltar, principalmente os maiores.
mente, pelos próprios trabalhadores da escavação Resumindo, ao que tudo indica os efeitos do
(em tom o de 15 pessoas), com os pés descalços, pisoteamento em substratos coesos parecem ser

(3) Notar que um dado sedimento pode se mostrar bastante (4) O calcário decomposto, apesar de muito solto quando seco,
coeso à época da escavação, mas não ter sido coeso à época pode se tomar extremamente coeso ao se molhar, diferen­
da ocupação do sítio. temente das areias.

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
registro arqueológico. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 3-25, 1995.

mais significativos no tocante à dispersão horizon­ conjunto a vários ciclos de umedecimento e resse-
tal e aos danos físicos nas peças. Os substratos camento, bem como a pressões equivalentes a pro­
pouco coesos, por sua vez, permitem uma intrusão fundidades de até 2 metros, e chegou a conclusões
vertical muito maior das peças, e uma maior preser­ bastante interessantes.
vação da integridade física das mesmas. Primeiramente, o autor observou que, uma vez
Um fator que não tem sido muito levado em colocadas na superfície de um sedimento sujeito a
conta, até o momento, na literatura arqueológica, vários ciclos de umedecimento/ressecamento, as
diz respeito ao pisoteamento de sítios por outros peças mais pesadas tendiam a se infiltrar com
animais de grande porte, que podem produzir um maior rapidez do que as mais leves, mas a taxa de
efeito ainda mais significativo. Basta pensar na descensão tendia a se igualar uma vez que a peça
pressão exercida e conseqüente poder de penetração se encontrasse totalmente enterrada. Em outras pa­
das patas de animais como bovinos e equinos, pre­ lavras, as experiências sugeriram que o peso ou
sentes com frequência em áreas rurais e que se abri­ densidade dos objetos não são fatores relevantes
gam dos elementos muitas vezes nos mesmos lo­ na taxa de MV, desde que os mesmos não estejam
cais escolhidos pelo homem pré-histórico. Caver­ na superfície.
nas e abrigos rochosos podem ter porções substan­ Outra observação importante diz respeito à
ciais de sua estratigrafía alterada pelo pisoteamento forma dos objetos. Prismas de madeira com seção
de tais animais. O autor teve a oportunidade de triangular foram imersos no mesmo sedimento are­
observar pelo menos dois abrigos rochosos com noso e submeteu-se o conjunto a pressões verticais
material arqueológico que serviam de pouso a ani­ correspondentes a profundidades de até 2 metros,
mais de grande porte. Em um dos casos, tratava- tanto com sedimento úmido quanto com sedimento
se de animais silvestres (antas). Em outro caso, o seco. Os resultados sugeriram que o tamanho dos
abrigo era ocupado regularmente por um rebanho objetos, sua orientação (aresta para cima ou para
de bovinos. O pisoteamento em ambos os casos baixo) e a umidade do sedimento são fatores signi­
era intenso, e o solo arenoso. ficantes no tipo de MV observada.
Com relação à umidade ou teor de água, os
2 - Fatores mecânicos testes sugeriram que sedimentos úmidos tendem a
produzir um maior número de casos de “subida”
de peças,5 ou seja, ocorrem mais casos de intrusão
2.1 - Compactação de peças em níveis inferiores quando o sedimento
está seco.
O termo com pactação será entendido aqui A posição das peças e sua relação com a MV
como o efeito de redução da porosidade de um sedi­ também foi observada. Ao que tudo indica, as peças
mento (ou solo) e a conseqüente diminuição de seu colocadas na posição mais estável, com uma das
volume, por ação da pressão e da acomodação das faces para baixo e a aresta para cima, foram as que
partículas constituintes. mais “afundaram”.
Em um sítio arqueológico, a compactação fará Quanto ao tam anho, verificou-se que dois
com que as peças, centenas de vezes maiores do objetos, um com o dobro do tamanho do outro, rea­
que as outras partículas constituintes do sedimento, giram de maneira diferente, mas os resultados não
se comportem de maneira diferente do conjunto. parecem ser muito significativos.
Quando há compactação, dependendo das dimen­ Por fim, é importante notar que a densidade do
sões, densidade, forma e posição da peça, esta irá sedimento após os testes de compactação em labo­
“afundar” mais ou menos do que o sedimento ao ratório foi superior à compactação medida em cam -
seu redor, ou seja, de uma maneira relativa, a peça
irá “subir” ou “descer” .
O estudo mais completo (e talvez o único)
sobre o tema foi o realizado por Moeyersons (1978). (5) É importante comparar a Tabela III do artigo de
Moeyersons (p. 121) com os dados por ele resumidos no 4o
O autor realizou experimentos com peças retiradas
parágrafo da p. 122. A conclusão original do autor seria de
do já citado Sítio Gombe, colocadas sobre um sedi­ que uma mesma peça “desce” mais no sedimento úmido do
mento arenoso (aprox. 58% areia, 28% silte e 14% que no seco. Os dados da tabela, porém, indicam exatamente
argila) também proveniente do sítio, e submeteu o o contrário e foram levados em conta neste artigo.

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descem, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
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po. A uma profundidade de 2m, o sedim ento em 2.2 - M ovimentos de massa / gravidade
laboratório atingiu uma densidade de 1,70 g/cm3.
Em campo, a densidade medida foi de 1,50 g/cm3 A movimentação gradual e constante de mas­
para a mesma profundidade. Isto sugere fortemente sas de solo por ação da gravidade é cham ada colu-
um constante retrabalhamento interno do sedimen­ vionamento. O coluvionam ento acontece nas en­
to, provocado provavelmente por agentes biogêni- costas, de modo que o solo vai escorregando até
cos (Moeyersons, 1978:126), que estariam sempre ser depositado nas porções mais baixas do terreno,
abrindo galerias e aum entando a porosidade do sendo então definitivam ente removido pela ação
sedimento, que por sua vez estaria sempre sujeito dos cursos d ’água.
a nova compactação, criando uma espécie de moto- A movimentação de uma massa de solo não é
contínuo que causaria um movimento descendente homogênea e depende de alguns fatores. A veloci­
das peças. dade de escorregamento é maior próxima à superfí­
Outro caso de MV, provavelmente resultado cie, e decresce com a profundidade. O ângulo de
de com pactação, foi observado por este autor inclinação da encosta também influi: quanto maior
durante a retirada de uma grande um a funerária a inclinação, maior a velocidade de escorregamento.
enterrada em solo arenoso, no Sítio Salto Grande, Algumas medidas da velocidade em que o solo
às m argens do R io P aranapanem a, São Paulo escorrega encosta abaixo foram feitas por Young
(Morais & Piedade, 1994). A um a com o fundo (1960). O autor relata uma experiência onde pinos
em form ato de cunha, tinha originalm ente uma de metal foram colocados em uma encosta com in­
tigela rasa em borcada sobre sua boca, à guisa de clinação de 30 graus, e sua m ovimentação m ensu­
tampa. A diferença marcante na forma dos dois rada após 3 anos e meio. O movimento próximo à
recipientes, apesar de suas densidades serem pra­ superfície foi de lm m neste período. Em outros
ticamente iguais, fez com que a um a descesse mais experimentos, o autor observou que em encostas
do que a tampa, esta últim a tendo ficado “flu­ com inclinações entre 20 e 30 graus o escorrega­
tuando” aproximadamente 30 cm acima da primei­ mento nos primeiros lOcm de solo (excluindo-se o
ra (Fig.l). horizonte orgânico) era da ordem de 0,25mm/ano.

Fig. 1 - Perfil esquemático mostrando uma urna enterrada em solo arenoso. A urna
afundou mais rapidamente do que o recipiente que lhe servia de tampa, deixando-o
“flu tu a n d o ” 30cm acima.

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ARAÚJO, A.G.M. Peças que descera, peças que sobem e o fim de Pompéia: algumas observações sobre a natureza flexível do
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O horizonte orgânico, que recobre o solo mineral, movimento de peças arqueológicas encosta abaixo
tem uma taxa de escorregamento muito maior, entre cria um padrão reconhecível, onde peças maiores
0,5 e 2,0mm/ano. A Tabela 2 mostra alguns dados e mais densas se deslocam a distâncias maiores
experimentais obtidos: do que peças menores e menos densas, ou seja, o
inverso do observado em sítios sujeitos à ação da
erosão fluvial (Rick, 1976: 144).
TABELA 2

Relação entre ângulo de encosta e taxa de escorregamento


Reconhecendo e lidando
Ângulo prof. veloc.linear veloc. volumétrica com a M ovim entação Vertical
encosta (cm) (cm/ano) (cm3/cm/ano)

26 graus 0-5 0,86 1,07 Depois de relacionar as causas da MV, cabe


5-10 0,41 agora discutir algumas conseqüências e também
20-30 0,08
as maneiras de se reconhecer e lidar com este fator
18 graus 0-5 0,58 0,83 que está presente, em maior ou menor grau, em
5-10 0,33
praticam ente qualquer sítio arqueológico.
20-30 0,08
7 graus 0-5 0,61 0,79
1 - 0 reconhecimento
5-10 0,36
20-30 0,05 da M ovimentação Vertical
(modificado de Young,1960: 122)
Embora as suspeitas mais fortes de que houve
movimentação vertical ocorram em sítios que não
Outro trabalho deste cunho foi realizado na apresentam nenhuma estratificação, nos quais as
região sul do Brasil, em terrenos areníticos e basál­ peças se dispõem de maneira a sugerir uma “nu­
ticos da Serra Gaúcha (Pacheco, 1991). A autora vem ” mais do que um plano, já foi visto que a MV
observou o comportamento de finas colunas de ocorre igualmente em sítios com estratificação defi­
areia colorida injetadas em alta, média e baixa ver­ nida, sem que se note o menor sinal de perturbação.
tentes em várias situações de declividade e cobertu­ A técnica mais eficaz no reconhecimento da
ra vegetal. Os resultados podem ser visualizados MV parece ser a boa e velha remontagem de peças.
na Tabela 3. Utilizada muitas vezes com o objetivo de perm itir
As conseqüências deste tipo de movimentação uma análise espacial de “solos de ocupação”, a téc­
no registro arqueológico podem ser percebidas de nica de rem ontagem acabou m ostrando que na
imediato. Peças inseridas em uma massa de solo verdade tais entidades raramente existem. Ainda
sujeita ao escorregamento vão sofrer movimentação assim, como pôde ser bem ilustrado no trabalho
diferencial, dependendo da profundidade em que de Cahen, Keeley & Van Noten (1979), é possível
estão. Sítios posicionados em encostas, mesmo que ter acesso a um significado espacial das peças, mes­
suaves, vão sofrer este tipo de ação natural de ma­ mo que elas tenham se deslocado verticalmente.7
neira palpável. De acordo com a Tabela 2, mesmo A remontagem é uma técnica trabalhosa. É
em uma encosta de 7 graus, peças posicionadas necessário contar com uma área de laboratório
nos primeiros 5cm vão se deslocar a um a veloci­ ampla o suficiente para se espalhar as peças, e
dade 12 vezes maior do que outras a profundidades muita paciência. Ainda assim, o investim ento é
entre 20 e 30cm. Em outras palavras, não só o sítio muito necessário e com pensador. A verdadeira
inteiro desce a encosta, mas algumas peças vão noção de quão modificada foi a relação espacial
descer mais rápido do que outras.6 entre as peças dentro de um sítio arqueológico só
Além do fator profundidade, existem outros pode ser alcançada depois que se tem idéia da
fatores que influenciam na velocidade e distância magnitude da MV dentro do sítio. Até o momento,
percorrida por uma peça. Segundo Rick (1976), o a remontagem parece ser a melhor maneira.

(6) Após o término da redação deste texto, fui informado da


existência de um artigo mais completo a respeito da natureza (7) Para um debate sobre o papel das remontagens nos estudos
dos movimentos de rastejo. Aos interessados, seria importante de Arqueologia Espacial ver Bordes (1980a,b) e Cahen
consultar Moeyersons (1988). (1980).

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TABELA 3
Taxa de deslocamento
(cm/2 anos)

Declividade Litologia Cobertura em superficie 20 cm


da encosta vegetal prof.
6 graus arenito arbustiva topo: 2,0 1,5
meio: 1,8 1,3
base: 0,6 0,5
15 graus arenito arbórea topo: - * -

meio: 3,2 2,2


meio: 3,2 1,2
5 graus arenito ausente topo: - * -

meio: 2,3 1,7


base: 0,8 0,6
18 graus arenito ausente topo: 5,3 3,4
meio: - * -
base: 2,3 1,4
7 graus basalto arbórea topo: 2,3 1,8
meio: 1,6 1,2
base: 0,7 0,5
25 graus basalto mata topo: 3,1 2,4
meio: 2,6 2,0
base: 1,5 1,2
5 graus basalto ausente topo: 2,6 2,0
meio: 1,9 1,5
base: - * -
23 graus basalto ausente topo: 4,2 3,2
meio: 3,2 2,4
base: - * -
* não foram realizadas m edidas nestes pontos.
(modificado de Pacheco, 1991:93)

Atualmente, já existe tecnologia disponível rais (cf. Bertran & Texier, 1995). As medidas de
para se efetuar trabalhos de remontagem de m anei­ direção e mergulho dos eixos maiores dos artefatos
ra mais ágil e menos trabalhosa. Nada impede o são plotadas em diagramas circulares (rosetas) ou
desenvolvimento de softwares que, por meio de estereogramas, e pode-se perceber se houve retraba-
dados provenientes do escaneamento das peças, fa­ lhamento (direções tendendo a um azimute especí­
çam um ajuste das formas e indiquem, no mínimo, fico) ou não (distribuição aleatória das direções).
quais peças têm m aior probabilidade de rem onta­ Uma vez reconhecida a movimentação vertical
gem, diminuindo enormemente o universo a ser passa-se ao estágio seguinte, à tentativa de visuali­
“testado” manualmente. Dependendo da resolução zação.
alcançada pelo scanner, o computador pode realizar
todo o processo, que seria apenas checado poste­ 2 - A visualização da
riorm ente pelo arqueólogo. M ovimentação Vertical
O utro meio promissor na avaliação da m ovi­
m entação de peças é derivado das geociências: A visualização dos dados provenientes da re­
trata-se da análise da “fábrica”, ou seja, a medição m ontagem é importante para que não só os leitores
dos ângulos de orientação e mergulho das peças. mas o próprio pesquisador possa entender melhor
Este método, desenvolvido para possibilitar o reco­ o que está acontecendo no sítio sob sua respon­
nhecim ento de ambientes de deposição, pode ser sabilidade. V ários sistemas de ilustração foram
utilizado para perceber se houve ou não retrabalha- usados para mostrar as relações entre as peças. No
mento do material arqueológico por agentes natu­ plano horizontal, é comum utilizar-se a notação de

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linhas que ligam as peças remontantes (Fig. 2). A processos geomorfológicos, as técnicas de reconhe­
notação no plano vertical pode se utilizar das mes­ cim ento de traços deixados por vários tipos de
mas linhas, rebatidas em plano (Fig. 3), ou de dese­ animais, e mesmo testes de simulação computacio­
nhos mais esquemáticos (Fig. 4). Em um artigo nal a partir de modelos observados em laboratório
recente, Bollong (1994) se utilizou de um pacote (Moeyersons, 1978) e de observação da natureza
gráfico denominado SURFER, de manuseio bas­ (Pierce, 1992).
tante simples (aqui falo por experiência própria; o A simulação de situações encontráveis na prá­
SURFER pode ser manipulado até mesmo em um tica é de extrema importância na construção de um
AT 286), e demonstrou a facilidade de visualização corpo de conhecimentos que possa refinar o con­
que se tem ao se lidar com “superfícies” geradas trole dos pesquisadores sobre os processos que re­
pelas peças que remontam (Figs. 5 e 6), ao invés sultam na MV. O trabalho de Pierce (1992) é um
dos rebatim entos no plano vertical, que dão a exemplo da aplicação de conhecimentos de ecolo­
impressão de que as peças sujeitas à MV formam gia, modelados de modo a servir de base para uma
“nuvens” (Fig. 7), o que não se coaduna com a simulação computacional onde se verificou os efei­
realidade. tos da ação de roedores em um sítio arqueológico
ao longo de 9.000 anos. O mesmo pode ser feito
2 . 1 - 0 entendimentodos processos com relação a tatus, formigas, cupins e minhocas.
e o controle da Movimentação Vertical Tais simulações, porém, dependem ainda de dados
primários, coletados por zoólogos, sobre os quais
Visualizada a MV, resta tentar entender o(s) se desenvolverão os modelos.
processo(s) atuante(s). Vão entrar em consideração Simulações a respeito da movimentação de so­
todos os fatores listados nos itens anteriores, e tal­ los em encostas também podem ser realizadas com
vez mais alguns: a classificação e variações no se­ grande proveito, tanto para a Arqueologia como
dimento constituinte do sítio, o entendimento de para a Geomorfologia.

Fig. 2 -A s p e c to da representação gráfica utilizada para mostrar remontagens em um plano horizontal.


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10 .

20 .

30 .

40 _

50 .

60 .

70 .

Fig. 3 - A mesma situação da figura anterior, mostrada em um plano vertical.

Ainda tratando de controle e simulações, cabe própria peça. No caso da cerâmica, isso é possível.
citar o artigo de Rowlett & Robbins (1982) onde No caso do material lítico, pode-se datar rochas
os autores, ao perceberem a existência de MV em silicosas, desde que tenham sido queimadas, ou a
um sítio da Idade do Ferro inglesa, desenvolveram obsidiana, que não ocorre no Brasil. Se as datações
um método baseado em equações matriciais para forem relativas, que sejam realizadas datações de
estimar e ajustar o posicionamento espacial das pe­ vários materiais componentes da estrutura ou nível
ças. Ainda que algumas premissas tomadas para que se queira datar. Datações não são baratas, mas
desenvolver o método não sejam muito confiáveis a coleta é gratuita. Se não for possível datar por
(p.ex., 90% das peças ficariam em seu lugar, 7% vários métodos a tempo de se publicar, pelo menos
migrariam para cim a e 3% migrariam para baixo), as amostras estarão disponíveis para dirimir dúvi­
a idéia em si é válida, e os pressupostos podem ser das no futüro. Nunca é demais.
melhor elaborados e controlados à medida que mais Se a datação for feita com base em fragmentos
estudos forem sendo realizados. de carvão esparsos, isso deve ser explicitamente co­
locado no relatório e nos artigos decorrentes, de ma­
3 - Conseqüências óbvias e neira a deixar claro quais são as condições de co­
não-tão-óbvias da M ovim entação Vertical leta. Não é recomendável simplesmente dizer que
tal sítio “foi datado em 2.030 ± 1 0 0 A.P.” e passar
No rol das conseqüências da MV, estão os já direto pela questão. Além de tudo, árvores e raízes
citados problem as relativos à datação, a possibi­ já sofriam os efeitos do fogo em 2.030 A.R
lidade da existência de artefatos não esperados den­
tro de determinada camada arqueológica etc.. Serão 3.2 - M aterial introduzido
listados alguns dos problem as encontrados pelo
arqueólogo que depara com os efeitos da MV e Depois de todos os fatores naturais apresenta­
sugeridas algumas soluções. dos ao longo deste artigo, sem levar em conta even­
tuais casos de enterramento deliberado de peças
3.1 - D atações pelos habitantes de um sítio, deve estar claro que
não se pode considerar fato extraordinário a presen­
O que pode ser sugerido é que, sempre que ça de, por exemplo, um ou dois fragmentos de cerâ­
possível, deve-se tentar um a datação absoluta, da mica em uma camada datada do período paleo-

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i ig. T — u rn uuò n p u ò u t r tp r r tò tn iu ç u u g r a jic u


esquem ática, m ostrando rem ontagens no p la n o
vertical.

Fig. 5 - Superfície tridimensional gerada pelo software SURFER, mostrando a relação espacial entre
peças que remontam, tanto horizontalmente como verticalmente.

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Fig. 6 - “Topografia” da superfície de remontagem mostrada na fig u ra anterior.

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índio. Não é caso de se achar que a confecção de Tal fenômeno já foi observado em abrigos (C.N.G.
cerâmica no Brasil rivaliza em datas com a Ásia, Barreto, 1994, com. pess.; Caldarelli, 1983: 108)
ou que o início da agricultura recua espetacular­ e em sítios a céu aberto (observação do autor).
mente no tempo. O mesmo vale para uma ou outra A causa deste fenômeno pode se dever sim­
lasca datada de maneira relativa, via fragmentos plesmente a uma ocupação humana diretamente
de carvão, com idades estupendas. sobre a rocha, e posterior recobrimento. Em m ui­
A quantidade de peças que se introduzem em tos casos, porém, a MV deve ser a principal respon­
níveis inferiores ou superiores parece ser inversa­ sável. A rocha do embasamento constituiria uma
mente proporcional à distância. Assim, é salutar barreira à movimentação descendente de artefatos,
desconfiar de algumas poucas peças em contextos que ficariam “presos” imediatamente acima dela.
extraordinários. No caso, valem as sugestões apre­ Novamente, a técnica de remontagem poderia es­
sentadas no item anterior. clarecer cada caso.

3.3 - Traços de uso Conclusões

Adentrando o terreno do menos óbvio, podem Se partíssemos da “premissa de Pompéia”, a


existir algumas conseqüências da MV relacionadas resposta à questão colocada no início do artigo seria
à traceologia. Mesmo que não se leve em conta a categórica: “não existem sítios arqueológicos intac­
ação do pisoteamento e da abertura de galerias por tos”. Pelo menos não no sentido almejado e implíci­
animais de médio porte, que podem quebrar ou ar­ to em várias publicações e relatórios de escavação.
ranhar a superfície das peças, a movimentação das Na verdade, o que se procurou demonstrar é que o
mesmas dentro de uma matriz sedimentar por me­ conceito de “sítio intacto” não faz sentido na maio­
canismos de compactação e movimento de massa ria dos casos em que é empregado.
ocorre com uma alta taxa de atrito. Tal atrito tende Ao iniciar uma pesquisa, o arqueólogo faria
a deixar marcas na superfície das peças, inclusive bem em aproveitar as entrevistas com moradores
do material lítico. locais para se informar da fauna existente na região,
Levi-Sala (1986) conduziu uma série de expe­ sua densidade, e mesmo hábitos escavadores, além
rimentos com o objetivo de testai' os efeitos da abra- de abrir os olhos para vestígios não-arqueológicos
são realizada pelo sedimentos na superfície de pe­ que podem dar indicações im portantes sobre a
ças líticas. Ao que tudo indica, alguns “sinais de história deposicional do sítio. Conforme mostrado
uso” poderiam ser na verdade resultado dessa mo­ ao longo do artigo, alguns sítios vão estar mais
vimentação e conseqüente atrito. Em outros casos, propensos à ação de fatores específicos do que ou­
o atrito poderia mascarar os traços de uso. Estes tros. Em abrigos rochosos e cavernas, a ação de
são fatores importantes que devem ser levados em tatus pode ser maior do que a de formigas e cupins,
conta pelos pesquisadores que trabalham com tra­ e as minhocas vão estar ausentes. Sítios a céu aber­
ceologia. to e com solo arenoso podem estar sujeitos aos tatus
e formigas, mas menos sujeitos a minhocas e cu­
3.4 - O "Fator Chão de L ascas” pins. Sítios localizados em rampas de colúvio vão
sofrer ações diferentes de sítios assentados em ca­
O que será aqui chamado de “Fator Chão de vernas, ou em terraços fluviais. Cada fator de modi­
Lascas” é um fenômeno talvez já observado por ficação espacial tem suas características peculiares,
vários arqueólogos; trata-se da acumulação anor­ e suas ações vão resultar em padrões diferentes
mal de peças imediatamente acima de um embasa­ (que podem, também, se sobrepor). Mais uma vez
mento rochoso. O FCL pode ser observado facil­ seria importante enfatizar a necessidade da inter-
mente durante a própria escavação, em locais onde disciplinaridade. Para isso, o arqueólogo deve ter
o sedimento constituinte do sítio arqueológico re­ em mente pelo menos quais são as contribuições
pousa sobre uma rocha mais coesa; à medida que iniciais que especialistas em áreas afins podem
a escavação se aproxima do “fundo” do sítio, mui­ realizar, e mesmo mostrar que o interesse conjunto
tas vezes ocorre uma concentração anômala de pe­ pode ser proveitoso para ambas as disciplinas,
ças (geralmente material lítico), todas tão próximas evitando a tão comum via de mão única, onde o
e imbricadas que por vezes fica difícil retirá-las. especialista frequentemente percebe que o conhe­

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cimento com partilhado não resultará no desenvol­ de posicionamento espacial das peças. Ao contrá­
vimento de sua especialidade. rio, deve-se investir cada vez mais na obtenção pre­
Em um relatório de escavação, indicações a cisa destes dados, para se poder proceder a estudos
respeito das possíveis ações modificadoras do re­ aprofundados dos fatores, propriedades e magnitu­
gistro arqueológico - intensidade e instrumentos de das movimentações de subsolo e, assim, refinar
utilizados no preparo da terra, quais culturas já os conhecimentos a respeito do registro arqueoló­
foram plantadas, qual era a vegetação nativa etc. - gico. Esta é uma condição sine qua non para o
bem como de fatores inerentes ao sítio, como a clas­ avanço de nossa disciplina.
sificação granulom étrica dos sedimentos, não de­
vem ser encarados como meros detalhes, e sim ex­ Agradecim entos
plicitamente colocados para que os colegas possam
ter acesso a informações mais consistentes. Gostaria de agradecer aos Drs. Faiçal Simon
Espera-se que este artigo tenha podido de­ e M ário Borges, da Fundação Parque Zoológico
monstrar a importância de se considerar os sítios de São Paulo, à arqueóloga Cristiana N.G. Barreto,
arqueológicos como entidades absolutamente flexí­ da U niversidade de Pittsburgh, ao Dr. G ilberto
veis, até mesmo fluidas, onde as peças se com por­ Righi, do Instituto de Biociências da Universidade
tam de maneira um tanto menos rígida e ideal do de São Paulo, ao Dr. Luis R. Fontes, da SUCEM,
que se espera. O reconhecimento desta característi­ à Dra. Solange Caldarelli, da Scientia Consultoria,
ca, porém, não deve levar ao pessimismo e muito e ao Dr. Arlei B. Macedo, do Instituto de Geociên-
menos a um “afrouxam ento” no rigor das medidas cias da Universidade de São Paulo.

ARAUJO, A.G.M. Pieces going down, pieces going up and Pom peii’s end: some remarks on the
flexible nature of the archaeological record. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 5: 3-25, 1995.

ABSTRACT: The vertical movement of cultural materials is, in varying degrees,


an ubiquitous phenom enon at archaeological sites. Even so, archaeologists often
view the archaeological record as a stable and rigid entity, taking dangerous assump­
tions implicitly. In this paper, some cases of vertical movement are shown, its
many causes and major consequences discussed and some suggestions on how to
deal with the problem are presented.

UNITERMS: Vertical movement - Formation processes - Geoarchaeology -


Bioturbation - Refitting - Trampling - Use-wear analysis.

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Recebido para publicação em 5 de outubro de 1995.

25
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

LAS CULTURAS AGROALFARERAS DEL ALTO URUGUAY


(MISIONES), ARGENTINA

Maria Carlota Sempé*


M aria Amanda Caggiano*

SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras dei Alto Uruguay (M isiones), Ar­
gentina. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

RESUMO: Este trabalho trata da Tradição Tupiguarani na região m issioneira


do Alto Uruguai. O sítio de Panam bí está localizado sobre o terraço fluvial do rio
Paraguai, no Departamento de Oberá da Província de Misiones, Argentina. Neste
sítio, as escavações intensivas e as evidências recuperadas dem onstram a existên­
cia de uma ocupação habitacional de grupos tupiguarani agricultores de milho-
pescadores em 920 A.P.

UNITERMOS: Arqueologia argentina - Culturas ceramistas - Tradição cerâ­


m ica tupiguarani.

Com el auspicio de la Secretaria de Estado de del LATYR. Los materiales líticos fueron estu­
Cultura de la Nación y de la Derección General de diados por la Lic. N. Flehenheimer, los óseos por
Cultura de la Provincia de Misiones, se realizó una las Lic. M. Prez Meroni y A. Laguenz, y el cerá­
prospección que abarcó los Departamentos de 25 mico por la Prof. P. Ortiz. (En prensa).
de Mayo, Oberá y San Javier sobre la costa del río
Uruguay, Argentina (Lámina 1).
En los trabajos de excavación prestaron su Area de Panambí
apoyo el Regimentó 18 de Infantería de San Javier
y el Escuadrón 9 de Infantería de Oberá, colabo­ En las cercanías de Panambí, el río Uruguay
rando además las Intendencias de los menciona­ corre delimitado por una barranca de 6m de altura
dos Departamentos y la Escuela de Frontera n° 608 que solo en casos de extrema subida es superada
de Panambí. por el nivel de las aguas que alcanzan entonces al
El análisis de los materiales recuperados fue pie de la segunda terraza distantes unos 15-20m
realizado por investigadores de la Facultad de Cien­ de la línea costera.
cias Naturales y M useo de la Universidad Nacio­ El paisaje está caracterizado por una serie de
nal de La Plata. El Dr. P. Tonni determinó las espe­ lomadas cubiertas con el bosque misionero y una
cies de fauna terrestre; el Dr. A. Cione la de peces; franja más llana entre las lomas y el río que ha sido
La Dra. Z. Ageitos de Castellanos, los moluscos; ocupada por la población. Esta zona representa el
la Dra. L. Pochettino, los vegetales; y fechados límite sur del ambiente actual de la selva misionera.
radiocarbónicos realizados por el Dr. A. Figgini Se prospectaron 6 sitios arqueológicos ubica­
dos en las cercanías del arroyo Sagrado y alrede-
rores del puerto. La selección de los lugares donde
(*) Univerdidad de La Plata. se realizaron las excavaciones fue hecha buscando

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SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras del Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

Lámina 1 - M apa com ubicación de sitios excavados en el alto Uruguay, Argentina.

las características que revelaran mejores condicio­ Blanco sobre Rojo (1,30% ), y los demás con me­
nes de conservación del sitio. nos del 1%.
El sitio n° 3 Balneario está ubicado unos 200 En la estratigrafía, el Corrugado tiene tenden­
metros al N de la aduana de Panambí, sobre la se­ cia algo errática, reflejando un uso decreciente des­
gunda terraza del río Uruguay. Sobre el borde de de un 76,92% en el nivel más profundo, passando
la terraza, un gran manchón de humus negro de 8 luego por 52% en los niveles de 70 a 80cm, hasta
x 10 metros, que constata que el entorno rojizo late- alcanzar el 48 % en el nivel superior (Lámina 5).
rítico, indica la existencia del sitio habitacional pa- Es notable la gran variedad y colorido de los
leoindígena. La construcción habitacional havia si­ tipos pintados, con motivos muy complejos (Lámi­
do excavada en la laterita. El sector fue cuadricula­ na 6).
do y la excavación fue fértil hasta los 1,20 metros Se han encontrado fragmentos de tembetá,
de profundidad (Lámina 2, 3 y 4). gran variedad de instrumentos líticos, como piedras
Los tipos cerámicos estabelecidos de acuerdo de pulir, manos de moler y molinos. En hueso se
al acabado de la superficie y decoración se ofrecen destacam las puntas. En arcilla se ha modelado
en el Cuadro n° 1, en cantidades y porcentajes por además, pesas de redes. Hay restos de marlos de
niveles, indicando una gran variación. Predomina maíz carbonizado. Cerca de un fogón se hallaron
la cerámica Corrugada (con el 42,03%), le sigue restos óseos humanos pertenecientes a un cráneo,
en popularidad la Ante Lisa (35,04 %), Pintado que por su rotura sería indicativo además, de cos­
fondo Blanco (11,94%), Pintado Rojo (5,64%), tumbres antropofágicas.

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SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras del Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

Lámina 2 - Panambí, sitio n° 3. Vista general del sitio luego de finalizadas las excavaciones. Cada
escalón correponde a niveles artificiales.

Lámina 3 - Planta del sitio n° 3 de Panambí. Los dos círculos corresponden a fogones. El sector rayado
representa la acumulación de moluscos.

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A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

De acuerdo al análisis de los tipos cerámicos decorativo. Dentro de la decoración se destacan el


decorados con pintura, se pueden establecer relacio­ tipo Blanco sobre Rojo que corresponde a piezas
nes con las fases Cambará e Itararé del rio Paraná- muy grandes de perfil compuesto y gruesas pare­
Panem a del Brasil, pertenecientes a la Tradición des (20mm). En la cerámica polícroma, pintada
Tupiguaraní que se fechan entre el 700 y 900 d.C. en finas líneas negras y rojas sobre fondo blanco,
La datación radiocarbónica sobre carbón vege­ hay un predominio de piezas más pequeñas con
tal de uno de los fogones en Panambí, arrojó 920 ± paredes finas (4mm) de perfil compuesto, y for­
70 A.P. mas restringidas y abiertas.
De la cerámica decorada, los corrugados repre­
sentan el 51,78%, del cual el 0,10 % poseen ade­
Area de San Javier más, pintura polícroma.
Contiguo al sitio n°l Este, sobre otra concen­
Las prospecciones realizadas en la zona coste­ tración circular negruzca, se realizaron 15 cuadrícu­
ra de San Javier, donde se localizan las ruinas jesuí­ las de 2 metros de lado excavadas hasta los nive­
ticas que datam de 1629, permitieron distinguir 4 les fértiles de 60cm (Sitio n° 2 Oeste).
sitios de ocupación ubicados sobre las lomadas y La disposición de los sedimentos permitió re­
en la ladera del cerro Cumandai. conocer la existencia de tres capas de distinta com­
Toda la región está muy trabajada por labores posición. La capa superior de tono rojizo oscuro
rurales y de desmonte, y el paisaje en general está negruzco, de textura muy suelta, de alto contenido
actualmente muy degradado. húmico y ocupaba los primeiros 10 a lOcm. Luego
En uno de los sitios (Sitio n° 1, Este: lámina 7) una capa interm edia hasta los 60cm de profun­
se realizó una excavación con un sistema de agre­ didad, donde aparece ya mezclada con nodulos de
gado de cuadrículas por acrecentamiento, de acuer­ tosca. En ambas capas se puso en evidencia un rico
do a la distribución areal de los niveles de ocupa­ material cultural, donde se destacan además de la
ción. cerámica, perforadores en cristal de roca. Luego la
El perfil natural de los sedimentos indicaría capa inferior, estéril, compuesta' por nodulos de
la presencia de: un primer estrato superficial de tosca y laterita.
unos 30cm de profundidad promedio formado por El análisis procentual de la cerámica extraida
tierra rojiza. Hacia abajo continúa un nivel más (Cuadro n° 3) muestra que los tipos decorados, tan­
definido de laterita mezclado con nodulos de tosca to el corrugado com o el pintado sobre engobe
de 30 a 60cm de espesor variable. Por debajo una blanco con motivos de líneas finas, presentan la
capa de nodulos de tosca, culturalmente estéril. misma evolución de las frecuencias porcentuales.
Se contabilizaron unos 10 círculos de colora­ Los corrugados presentan casi el 50 % del total
ción negruzca com alta concentración de fragmen­ dentro de los tipos cerámicos.
tos cerámicos en una extensión de unos 500 metros
cuadrados. De éstos, se excavaron dos que eran
los menos perturbados por el laboreo agrícola ac­ Comentários
tual.
La ocupación paleoindígena produjo una des­ Los sitios arqueológicos estudiados corres­
com posición de los sedimentos, evidenciado por ponden a ocupaciones semisedentarias. Restos de
la coloración oscura de la laterita y una menor com- maiz son indicativos de una econom ia agrícola
pactación, que en algunas zonas lleva a la form a­ complementada con recolección de moluscos, caza
ción de humus intensamente negro y muy suelto. y pesca.
El análisis porcentual de la cerámica (Cuadro El Cerro Cum andai de San Javier ejemplifica
n° 2), se hizo referido el 100% al total de fragm en­ una típica aldea campesina, con recintos habitacio-
tos de la suma de niveles equivalentes de cada una nales discem ibles como grandes manchones ne­
de las cuadrículas y no tomando referencia el total gruzcos, en oposición al rojo laterítico, de unos 10
por nivel de cada una de ellas. metros de diámetro.
Todos los tipos de decoración analizados son El nivel de los pisos de ocupación, son bastan­
típicos de la Tradición Tupiguaraní, destacándose tes sinuosos, observándose bolsones en algunos
además, la calidad de la pasta, cocción y diseño sectores de las cuadrículas, que pueden ser indicios

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Lámina 5 - Cerámica corrugada, a) pellizcado espigado; b, e, g, h) corrugado; d) roletado; c,f) corrugado-unguicular.

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SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras del Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
Arqueología e Etnología, Sao Paulo, 5: 27-38, 1995.

Lámina 6 - Cerámica pintada.

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SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras dei Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

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30-40 cm 84 34 55 76 3 3 90 88 178

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40-50 cm 74 7 48 76 22 22 55 104 159

50-60 cm 6 5 2 8 8

0-10 cm 55,89% 9,17% 27,51% 1,31% 3,49% 52,40% 6,10% 5 ,6 7% 0,43% 86,68% 63,31% 229
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

10-20 cm 56,00% 9,75% 0,50% 22,75% 4,00% 3,00% 0,25% 52,75% 0,25% 0,25% 6,50% 0,5 0% 3,75% 2,25% 33,00% 67,00 % 400

20-30 cm 49,59% 7,65% 0,31% 28,54% 23,90% 4,46% 45,13% 0,31% 11,16% 0,15% 0,1 5% 10,84% 36,51% 63.47% 627

30-40 cm 47,18% 19,10% 0,56% 30,89% 0,56% 3,37% 1,12% 42,69% 1,68% 1,68% 50,56% 49.43 % 178

40-50 cm 47,79% 4,40% 30,18% 3,77% 47,79% 13,82% 13,83% 34,59% 65.40% 159

50-60 cm

REFERÊNCIAS
1- Suma corrugados 7- Corrugado y pintado 13- Pintado rojo s/fondo blanco
2 - Liso pintado rojo 8 - Corrugado 14- Pintado negro y rojo s/fondo blanco
3 - Liso ante oscuro 9 - Negro sobre rojo 15-Pintado fondo blanco c/pintura
4 - Liso ante claro 10-Blanco sobre rojo 16-Tipos lisos (2+3+4)
5-Ungicular 11-Pintado fondo blanco (12 a 15) 1 7 -Tipos decorados (5+6+7+8+9+10+12+13+14+15)
6- Corrugado y ungicular 12- Pintado negro s/fondo blanco

Cuadro n° 2 - Cerro Cumandai, sitio n° 1.


SEMPÉ, M .C., CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras dei Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
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0-10 cm 25 11 5 77 6 5 59 110 169

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204 28 966 59 70

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13 681 1239 1927

0-10 cm 14,79% 18,34% 1,77% 6,5 0% 2,95% 45,56% 2,95% 0,59% 3,55% 2,9 5% 34,91% 65,00% 169

O
10-20 cm 8,42% 21,60 % 3 ,6 8% 3,16% 1,58% 51,60% 0,21% 0,31% 0,52% 0,4 2% 0,2 1% 2,7 3% 5 ,1 6% 33,71% 66,00% 949

20-30 cm 1,09% 11,83% 22,58% 1,87% 3,90% 0,93% 0,1 5% 48,44% 0,15% 0,10% 1,24% 0,78% 1,40% 3,1 2% 2,49% 36,29% 62,61 % 641

30-40 cm 13,28% 23,07% 4,1 9% 2,09% 1,39% 47,55 % 1,39% 2,79% 4 ,1 9% 4 0,55 % 59,49 % 143

40-50 cm 24

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0,62% | j,U 3,63% | óp,
35,64% 64,34 % 100,00%

REFERÊNCIAS
1-Indeterminado 7 - Corrugado y pintado 13 -Blanco sobre rojo 19- Pintado fondo blanco c/pintura
2 - Liso pintado rojo 8 - Corrugado 14 -Rojo sobre blanco 2 0 - Tipos lisos (2+3+4)
3- Claro liso 9- Rojo sobre ante 15- Policromo y rojo 21 - Tipos decorados (5 a 19)
4- Oscuro liso 10- Negro y rojo sobre ante 16- Pintado negro s/ fondo blanco
5-Ungicular 11 - Negro sobre rojo 17-Pintado rojo s/fondo blanco
6- Corrugado y ungicular 12- Negro sobre ante 18- Pintado negro y rojo s/blanco

Cuadro n° 3 - Cerro Cumandaí, sitio n° 2.


SEMPÉ, M.C.; CAGGIANO, M.A. Las culturas agroalfareras del Alto Uruguay (M isiones), Argentina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

de pozos intencionales. En el sitio n° 1 se encontra­ El fechado radiocarbónico obtenido, del 1030


ron evidencias de hoyos para postes, excavados por d.C. es congruente con los datos conocidos para
debajo del piso de ocupación hasta una profundidad Brasil dentro de la Tradición Tupiguaraní en su
de 70cm. etapa expansiva, y es el primero obtenido para la
La costumbre del uso del tembetá queda re­ provincia de Misiones. Años antes Cigliano (1963)
gistrada en Panam bí por los hallazgos de ejempla­ había obtenido los primeiros fechados readiocar-
res casi enteros y otros en proceso de elaboración bónicos para el Delta del Paraná, asignables a este
realizados en cristal de roca. Muchas piedras fueron m om ento cultural. Proceden de la Isla M artín
utilizadas como pulidores. Garcia y arrojaron una edad de 1545 ± 35 d.C.

SEMPÉ, M. C.; CAGGIANO, M. A. The ceramic-agricultural cultures of Alto Uruguay (Misiones),


Argentina. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 27-38, 1995.

SUMMARY: This paper deals with the Tupiguarani Tradition in the M isiones’s
upper Uruguay river region. The Panam bi’s site is located on the fluvial terrace of
the Paraguay river in the Oberá’s Department of Misiones province, Argentina. In
this site the intensive excavation and the recovered evidence demostrate the existence
of one habitational occupation of corn-base agricultural and fisher tupiguarani group
in the 920 B.P.

UNITERMS: Argentinian Archaeology - Ceramic cultures - Tupiguarani ceramic


tradition.

Referencias bibliográficas

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1977 Pesquisas paleográficas efetuadas no vale do rio Série Arqueologia, 4. Anais do I Simposio de
Paranapanema. Boletim de Psicologia e Antropo­ Pré-história do Nordeste Brasileiro, 1, Univer­
logia. Setor Ciências Humanas, Letras e Arte, 5, sidade Federal de Pernambuco, Recife: 89-97.
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 248p.

Recebido para publicação em 5 de dezembro de 1995.


Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 39-49, 1995.

LA ARQUEOLOGÍA URBANA EN LA
COLONIA DEL SACRAMENTO*

Nelsys Fusco Zambetogliris**

FUSCO, N. La arqueologia urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de Arqueologia e


Etnologia, São Paulo, 5: 39-49, 1995.

RESUMO: Este artigo aborda vários projetos de pesquisa realizados na Colônia


de Sacramento (Uruguai). Trata-se de um projeto de arqueologia tanto urbana quanto
histórica. Foi desenvolvido na própria cidade, fundada pelos portugueses em 1690
e posteriormente controlada pelos espanhóis por mais um século. O período histórico
que se inicia no séc. XVI está sendo estudado. A evolução do desenvolvimento
urbano foi nosso principal objetivo e novas metodologias foram implementadas.

UNITERMOS: Arqueologia Urbana - Meio Ambiente - Cidadania.

“Para poder expresar las similitudes y diferen­ ilustraron sobre la evolución del paisaje urbano y
cias observadas en el registro arqueológico y en la actualidad nos permiten actuar con la celeridad
explicar los procesos que provocan cambios y que exige una ciudad moderna como esta donde nos
diversificaciones en los modos de vida, el ar­ desempeñamos los arqueólogos.
queólogo se vale de una variedad de fuentes de La Colonia del Sacramento, fundada por los
información (Binford, 1978:248); éstas pueden portugueses en 1680, es uno de los principales cen­
ser propiamente arqueológicas o también his­ tros turísticos del área platense. El mayor atractivo
tóricas, etnográficas o de archivo. A través de para los visitantes lo constituye el Barrio Histórico,
estas distintas clases de datos, el investigador donde desde hace varias décadas, se han emprendido
evalúa las ideas acerca de la dinám ica del numerosas obras con el fin de poner en valor el
com portam iento social p retérito y de los patrimonio edilicio colonial. Si bien muchas de es­
procesos de desarrollo social (South, 1977:2)”. tas obras hubieran exigido la intervención de la
(Fournier; 1990). Arqueología su protagonismo es reciente.
A partir de aquel trabajo pionero la Arqueología
Nuestra experiencia en Arqueologia Urbana, ha intervenido a través del relevamiento, la investiga­
se inició en 1988, al realizar un relevamiento en el ción y el asesoramiento, abriéndose un espacio y
Barrio Histórico de la ciudad de Colonia del Sacra­ desarrollando las acciones inherentes a la discipli­
mento (Fusco, 1990). A partir de ese momento he­ na en el medio urbano.
mos reunido un conjunto de “Fuentes” que nos

(*) Presentado en la VII Reunión Científica de la Sociedad


El paisaje urbano
de Arqueología Brasileña. João Pessoa, Paraíba. 26-30 de
setiembre de 1993.
Conocer la evolución sufrida por el paisaje ur­
(**) M inisterio de Educación y Cultura, C om isión del
bano desde el S. XVII ha sido una inquietud que
Patrimonio Histórico, Artístico y Cultural de la Nación - De­
partamento de Arqueología. nos acompaña desde los primeros relevamientos

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FUSCO, N. La arqueología urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5:
39-49, 1995.

realizados en la ciudad. Para abordarlo diseñamos mente por la urbanización que modificó intensamen­
una estrategia que nos permitiera conocer en pro­ te la ciudad desde fines del S. XIX. M ientras la
fundidad el origen de la ciudad y la diacronía de los m uralla “E ste” tiene en la actualidad un tram o
episodios de crecimientos acotados al interior del expuesto. Existen además referencias orales sobre
área fortificada. Se recurrió a un amplio universo de algunos sectores identificados durante las obras re­
fuentes de donde surgieron los datos primarios que alizadas con anterioridad a 1980. Ejemplos de ellos
posibilitaron acceder al proceso de desarrollo de ese son los tramos ubicados en el Hotel Posada del
paisaje urbano. Gobernador y en el Colegio San Juan Bautista.
Con las tres referencias señaladas se realizó el
m ontaje en el Plano de 1977, perteneciente al
Fuentes relevamiento planimétrico del Barrio Histórico, re­
alizado por la Intendencia Municipal de Colonia
Clasificamos las “Fuentes” que nos aportaron (Fig. 2). Precediéndose de esa manera a la ubicación
los datos primarios para contribuir a alcanzar nues­ de la Planta de la Casa de los Gobernadores Portu­
tros objetivos. Dividimos las escritas en dos grupos: gueses del S. XVIII en el plano moderno, limitando
el primero abarca hasta fines del S. XIX, e incluye de esa manera el espacio urbano donde se desarro­
los documentos escritos, la cartografía y los registros llaría la investigación.
iconográficos. El segundo, desde fines del S. XIX El desarrollo operativo se inicia con el reticulado
hasta la actualidad abarca los registros fílmicos y las formado por cuadrículas de 4m de lado que abarcan
fotografías, los planos urbanos, los dibujos y croquis, las áreas internas y extemas de la Planta, precediéndo­
y los artículos periodísticos. Están incluidas también se en primer término a excavar las ubicadas en el
las obras de arte, ya que numerosos artistas plásti­ Sur-Este y Oeste del reticulado (Fig. 3).
cos, han registrado en sus cuadros el paisaje urbano El hallazgo en prim er térm ino del ángulo
de esta ciudad. Se registraron las tradiciones orales Sureste, perteneciente a los muros exteriores de la
provenientes de los vecinos del Barrio Histórico y de Casa, nos permitió confirmar la información previ­
los trabajadores que participaron en obras públicas y amente obtenida durante el montaje de planos.
privadas en el interior del área amurallada. Durante el desarrollo de la excavación se arribó
Las observaciones directas en el terreno son el a los siguientes resultados:
complemento de este conjunto de datos.
1 - La ubicación exacta en el espacio de la Plan­
ta de la Casa (Fig. 4).
La Casa de los Gobernadores Portugueses 2 - La obtención de una estratigrafía arqueoló­
gica, registrada en su expresión en planta y
Con motivo de la planificación de la excavación en su desarrollo vertical.
del área de la Casa de los Gobernadores Portugue­
Este conjunto de datos aportados por la inves­
ses debimos optimizar la información de las fuentes
tigación arqueológica se suma en la actualidad a
para ubicar la “Planta”, para ello era necesario li­
los provenientes de las fuentes ya mencionadas. El
mitar un espacio que perturbara lo menos posible el
dato arqueológico contribuye de esta forma a la
desarrollo de la vida cotidiana de esa ciudad.
resolución de la problemática urbana y fundamental­
Se utilizaron en la oportunidad tres referencias
mente a la ubicación de nuevas plantas al interior
pertenecientes a la Cartografía del S. XVIII (Fig. 1):
de la ciudad actual.
La Planta colonial de 47m x 24m abarca toda
La Planta de la Iglesia el área sur de la Plaza y la mitad de la calle ubicada
La Planta de la Casa de los Gobernadores al Sur de la misma. Esta amplia superficie puesta al
El tramo “Este” de la muralla descubierto nos enfrentó a problemáticas propias del
medio urbano. En ese sentido debimos instrumentar
Las “Plantas” pertenecientes a la Iglesia y a la acciones para readoquinar la calle, cambiar la red
Casa de los Gobernadores se hallan en un espacio de agua potable, diseñar una red de drenaje que per­
abierto, actualmente ocupado por una Plaza Públi­ mitiera evacuar las aguas pluviales e instrumentar
ca, si bien desde sus inicios, el área sugirió algunos la iluminación, que permitiera exhibir los hallazgos
cambios en el trazado, no estuvo afectada esencial­ monumentales.

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FUSCO, N. La arqueología urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de Arqueología e Etnología, Sao Paulo, 5:
39-49, 1995.

Fig. 1 - Cartografía del S. XVIII. “E l triunfo de las armas españolas dentro de la Colonia en 30 de
ocutbre de 1762. Plano de la Colonia del Sacramento en el Rio de la Plata, en que se demuestra sus
fortificaciones con perfil y elevaciones ”.

Edificio de la Sucursal del Banco Procedimiento


de Seguros en Colonia del Sacram ento
Abocados a esta asistencia procedimos a utili­
El edificio se planifica construir en el predio bal­ zar datos de:
dío ubicado en la esquina de las calles España y Gral.
Flores, área perteneciente al Barrio Histórico. Los Fuentes arqueológicas
estudios para la cimentación del edificio exigen la Observaciones del terreno
realización de “cáteos” para conocer el terreno, es Tradición oral
durante esta etapa que los arqueólogos asisten a la obra. Registros fotográficos

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FUSCO, N. La arqueología urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5:
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Fig. 2 - Barrio Histórico. Antigua ciudad de Colonia del Sacramento. Mayo 1977. Intendencia M unici­
p a l de Colonia. Dirección de Obras. En la Plaza Manuel de Lobo se aprecia: al norte la Planta de la
Iglesia, al sur la Planta de la Casa de los Gobernadores Portugueses, y al este el tramo “E s te ” de la
M uralla.

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FUSCO, N. La arqueología urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de Arqueología e Etnología, Sao Paulo, 5:
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Fig. 3 - A r e a de la Plaza M anuel de Lobo con la ubicación del reticulado que abarca las áreas internas
y externas de la Casa de los Gobernadores Portugueses que se proyecta excavar.

Fuentes escritas - En base a la Cartografía de perfil estratigráfico relevado en ella, se proyecta la


1762 (Fig. 1) se identifica una manzana construida ubicación horizontal y vertical de la manzana colo­
con casas particulares. Mientras en el relevamiento nial del predio.
planimétrico moderno de 1976, se aprecian las modi­
Observaciones del terreno - En el interior del
ficaciones en el terreno y la división de patrones
predio a investigar se identifica inmediatamente por
actuales.
debajo de un piso de mosaicos, el ángulo de encuentro
Fuentes arqueológicas - E n base a la ubicación de dos paredes de piedra y ladrillo tipológicamente
de la Planta de la Casa de los Gobernadores, y el similares a las del S. XVIII (Fig. 5). Mientras que en

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39-49, 1995.

Fig. 5 - Muro de piedra y ladrillo, unidos con argamasa


de cal. Entre las grandes unidades de construcción se
aprecian pequeñas piedras y trozos de teja.

la zona exterior, una sencilla limpieza de un terreno Desarrollo operativo


baldío deja al descubierto parte de una canaleta de
desagüe perteneciente a la ciudad colonial (Fig. 6). Reunidos todos los elem entos disponibles,
procedimos al montaje de los planos del S. XVHI y
Tradición oral - Obtuvimos referencias orales
S. XX (Fig. 7) y agregamos la reformulación surgida
sobre un edificio que abarcaba el predio de la inves­
luego de la ubicación de la Casa de los Gobernadores.
tigación, cuya arquitectura pertenecía a fines del S.
Nos proponíamos identificar los vestigios de las
XIX, y que fuera utilizada en un principio como finca
construcciones del S. XVTII y el trazado original de
particular y posteriormente ocupada por dos Institu­
las calles de la época. Para ello procedimos a con­
ciones bancarias. El retiro ubicado al Sur estaba ocu­
feccionar un cuadriculado que abarcó toda el área
pado por un jardín con fuentes de agua.
perteneciente al predio del Banco de Seguros, así
Registros fotográficos - Se poseen fotos de como también las adyacentes incluyendo de este modo
principios del S. XX, tomadas desde el Este del los padrones linderos, las veredas y los retiros. Utili­
predio. zamos en la oportunidad una unidad operativa de

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3 9 -4 9 ,1 9 9 5 .

Fig. 6 - Canaleta dejada al descubierto luego de la limpieza de un terreno baldío lindero


al predio de la excavación.

5m de lado. Durante el desarrollo de la excavación de él forma parte el ángulo de encuentro observado


se procedió a privilegiar las áreas del S. XVIII, selec­ en el terreno. Su desarrollo máximo es de 1.30m.
cionadas en base a la cartografía y a las obser­ Al sur de la construcción se ubican dos canaletas,
vaciones en el terreno (Fig. 8). una relacionada directamente con el límite sur de la
construcción y de lm de ancho (Fig. 8) y la segunda
relacionada con el desagüe de la calzada, dista esta
Desarrollo de la excavación última 6.70m de la primera y tiene un ancho de
0.70m. Se recuperan materiales del S. XVIII; pipas
Se identificaron en la oportunidad las cons­ de cerámica roja y fragmentos de pipas de caolín,
trucciones pertenecientes al S. XVIII las que se cerámica verde-amarilla y tejas entre otros.
desarrollan en la transición del horizonte (B) y (C) La construcción del S. XX retomó parte de los
del suelo al igual que la Casa de los Gobernadores. cimientos de la del S. XVIII, principalmente en el límite
Su trazado coincide con la Cartografía Histórica y sur, donde ambos desarrollos son coincidentes.

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FUSCO, N. La arqueología urbana en la Colonia del Sacramento. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5.
39-49, 1995.

FUSCO, N. The urban archaeology in the Colonia del Sacramento, Uruguay. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 39-49, 1995.

ABSTRACT: This paper deals with the various research projects undertaken
in Colonia del Sacramento (Uruguay). It is both an Urban as well as a Historical
Archaeology Project. It was done in the city itself, founded by the Portuguese in
1680 and later owned buy the Spaniards for another century. The historical period
starting in the 16thcentury is being studied. The evolution of the Urban development
was our main objective and new methodologies were implemented.

UNITERMS: Urban Archaeology - Environm ent - Citizenship.

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Recebido p a ra publicação em 15 de m arço de 1995.

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

ANÁLISE DA MALHA URBANA DE VILLA RICA DEL


ESPIRITO SANTO (1589-1632) / FÊNIX-PR

Claudia Inês Parellada *

PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) /
Fênix-PR. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

RESUMO: Os objetivos principais desta pesquisa foram os de recuperar ele­


mentos da vida cotidiana e analisar a malha urbana da cidade colonial espanhola
de Villa Rica dei Espiritu Santo, de 1589 a 1632. A pesquisa utilizou-se de dados
históricos e arqueológicos, já que existe vasta documentação histórica dos séculos
XVI e XVII sobre Villa Rica, e as ruínas vêm sendo documentadas desde 1865. As
ruínas da área urbana da segunda fundação de Villa Rica tem cerca de 300.000m2
e tem a sua disposição espacial em forma de xadrez, onde as ruas cruzam-se em
ângulos retos. Atualmente, as ruínas de Villa Rica localizam-se dentro do Parque
Estadual de Vila Rica do Espírito Santo, no município de Fênix-Paraná, Brasil.

UNITERM OS: A rqueologia Histórica - Cidade colonial espanhola - Análise


espacial.

Introdução foi transferida do local pelo capitão Guzman para


junto da foz do rio Corumbataí, no rio Ivaí, área
Em 1494, Portugal e Espanha celebraram o atualmente do Parque Estadual de Vila Rica do
Tratado de Tordesilhas, que colocava o atual territó­ Espírito Santo, município de Fênix-PR, Brasil (Fi­
rio paranaense, a oeste de Paranaguá, como sendo gura 2). A área urbana da segunda fundação era de
espanhol; esta era área denom inada Província dei cerca de 300.000m2 (Figura 3) e ao redor desta ci­
Guairá (Cardozo, 1970: 14) (Figura 1). O Guairá dade havia muitas chácaras para plantações de sub­
era povoado principalm ente por grupos indígenas sistência, além de grandes áreas de extração de
Guarani, além dos Kaingang, que tiveram contato erva-mate, nas quais se utilizava mão-de-obra ind­
com os primeiros viajantes espanhóis, como Aleixo ígena através do sistema de encomiendas. De 1610
até sua destruição pelos bandeirantes, em 1632, Villa
Garcia, em 1524, e Cabeza de Vaca, em 1542,
comandantes de expedições que saíam do litoral Rica teve em suas proximidades várias reduções
jesuíticas que tentavam catequizar os índios.
brasileiro e pretendiam chegar ao Paraguai.
Villa Rica dei Espiritu Santo foi a terceira
comunidade fundada por espanhóis no século XVI,
H istórico da ocupação
na então Província dei Guairá. Esta vila teve sua
espanhola na P rovíncia dei G uairá
primeira fundação em 1570, pelo capitão Melgarejo,
em campos situados entre os rios Ivaí e Piquiri.
Em 1589 (Univ.Cat.Asunción, 1984), Villa Rica
O início da colonização do Guairá, segundo
Bruxel (1960), deu-se talvez pelo desejo do gover­
(*) Museu Paranaense. nador de Assunção Irala de obter uma pacificação

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

Fig. 1 - Mapa de localização da província dei Guairá, com as comunidades espanholas e reduções
jesuíticas do fin a l do século XVI/início do X V II (modificado de Cardozo, 1970 e Chmyz, 1976).

Fig. 2 - M apa de localização do Parque Estadual de Vila Rica do Espírito Santo, onde se
localizam as ruínas da segunda fundação de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632).

52
4—Ü
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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

política com grupos de oposição da sede de seu go­ com maior facilidade a conquista da região. A in­
verno, que colocou para povoar esta área. Ellis Jr. da nesta carta, Hernandarias informa que Ciudad
(1944, apud Chmyz, 1976: 69) ressalta outras ra­ Real e Villa Rica tinham, respectivamente, 30 e
zões, como a busca de metais e pedras preciosas, 100 colonos espanhóis e ao seu redor existiam cer­
pois em 1552 houve a proibição de expedições para ca de 150.000 índios (Taunay, 1925: 284-305).
a Serra da Prata, a necessidade de submissão dos Desta forma, a Companhia de Jesus, incenti­
índios daquela região, além de garantir o domínio vada pela Coroa espanhola, decidiu fundar algu­
espanhol das terras e uma saída para o Atlântico. mas reduções de índios no Guairá. Em carta ânua
Em 1554, a mando de Irala, o capitão Vergara de 21 de fevereiro de 1628 (apud Cortesão, 1951:
fundou a prim eira vila espanhola do G uairá, 258) são citadas três reduções próximas a Villa
Ontiveros, às margens do rio Paraná. Em 1556, Rica: São José, São Paulo e Los Angeles.
Irala resolveu fundar uma segunda comunidade e, Desde 1585, os bandeirantes paulistas ata­
assim, enviou o capitão Melgarejo que, na foz do cavam a Província do Guairá para capturar índios
rio Piquiri no Paraná, ergue C iudad Real dei (Taunay, 1924: 230). Porém, foi com a bandeira
G uairá. Ali, segundo G uzman (apud Cardozo, de 1632, cujos nomes dos comandantes ainda se
1970: 48), foram transferidos os poucos habitan­ tem dúvidas, que Villa Rica foi sitiada e seus mo­
tes que ainda restavam em Ontiveiros que, com radores fizeram a sua transferência para a banda
isto, desapareceu. ocidental do rio Paraná. Com a notícia do cerco de
Em fevereiro de 1570, o capitão M elgarejo Villa Rica, os habitantes de Ciudad Real aban­
decidiu fundar uma comunidade a leste de Ciudad donaram a cidade, ficando a Província do Guairá
Real, num local onde suspeitava existirem minas sob o poder dos bandeirantes paulistas, que, entre­
de ouro. Então, Melgarejo, com 40 homens e 53 tanto, não a colonizaram.
cavalos, fundou a 60 léguas de Ciudad Real, em As próximas notícias que se tem de Villa Rica
terras do cacique Coraciberá, Villa Rica dei Espiritu são de 1770, quando o governador da capitania de
Santo (Cardozo, 1970: 49). Em 1589, houve a São Paulo, D. Luís Mourão, enviou uma expedi­
transferência de Villa Rica por ordem do capitão ção ao Paraná, comandada por Francisco Lopes da
Guzman para junto da foz do rio Corumbataí no Silva, que percebeu a impossibilidade de fixação
Ivaí. Esta mudança foi considerada ruim pelos ha­ de colonos naquele local (Martins, 1944: 42).
bitantes da cidade, pois no local da primeira fun­
dação havia mais recursos naturais e mais índios,
que trabalhavam sob o sistema de encomienda Pesquisas realizadas
(Cardozo, 1970: 77). A principal atividade econô­ na área urbana da segunda
mica na região era a extração da erva-mate, que fundação de Villa R ica dei E spiritu Santo
sofria a concorrência dos ervais da Serra do Ma-
racaju. Para a extração desta planta os espanhóis Quanto às pesquisas realizadas no local, po­
reuniam os índios encomendados em pueblos, lo­ demos citar a de Keller & Keller (1933: 4), que
calizados nas margens dos rios Ivaí, Corumbataí, em 1865 confeccionaram um mapa das ruínas de
Iniaí e Tibagi. Villa Rica, tecendo alguns comentários: “As casas
O Estado espanhol tinha uma profunda liga­ eram na maior parte, se não todas, feitas de taipa
ção com a Igreja e, já através dos textos das (terra socada) e cobertas de telhas, de que encon-
Capitulaciones de la Real Provisión de 1526, fi­ tram -se fragm entos alastran d o o in terio r dos
zeram-se constar os fins espirituais da conquista, rectángulos formados pelos restos das paredes,
juntam ente com os políticos, acentuando-se, des­ reduzidos hoje a montes de altura de um metro mais
ta forma, o caráter público das expedições de con­ ou menos com taludes de terra desmoronada” .
quistadores (Capsdequi, 1957: 18). Assim, parece Em 1896, o General Muricy com um grupo de
bem compreensível que, em 1607, o governador políticos paranaenses fazem uma expedição a Villa
do Paraguai, Hernandarias de Saavedra, no seu Rica, pensando lá ser uma redução jesuítica cheia
relato a Felipe III, tenha insistido na importância de tesouros. O grupo partiu de Curitiba e ficou de­
da catequização de tribos indígenas do Guairá, por cepcionado ao encontrar no local somente ruínas
serem muito numerosas em relação à quantidade de taipa, fragmentos cerâmicos e escória de ferro,
de espanhóis, pois, desta maneira, se conseguiria depois de fazer vários buracos (Muricy, 1975).

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

Em 1959/60, os arqueólogos Oldem ar Blasi e A nálise urbana de


Igor Chm yz pesquisaram a área, retirando materi­ V illa R ica dei E spiritu Santo
al cerâmico, lítico e de ferro, e fazendo uma plan­
ta preliminar das ruínas de Villa Rica (Blasi, 1963).
As cidades coloniais espanholas do final do
Como esta planta apresentava problemas, em 1968,
século XVI, como Villa Rica dei Espiritu Santo,
Blasi e o desenhista Ney Barreto fizeram a retifi­
segunda fundação, eram baseadas no modelo co­
cação dos dados coletados em 1959/60. Entretan­
dificado na lei de 1573 de Felipe II, considerada a
to, estes levantamentos topográficos haviam sido
primeira lei urbanística da Idade Moderna. Este
feitos com instrumentos inadequados e em tempo
modelo, segundo Benévolo (1978: 112), seria um
muito curto e, desta forma, não se tinha certeza
“enxadrezado de ruas retilíneas”, que definiam uma
sobre a real disposição espacial das ruínas.
série de quadras iguais, quase sempre quadradas,
Assim, a partir de julho de 1986, a equipe da
sendo que no centro da cidade ficava a praça. A in­
Seção de Arqueologia do Museu Paranaense ini­
da ressaltava que os terrenos ao redor da praça não
ciou a confecção de uma nova planta baixa das
deveriam ser concedidos a particulares, mas sim
ruínas de Villa Rica, através de equipamentos de
reservados à Igreja, aos edifícios reais e m unici­
maior precisão, como teodolito, mira, balizas, além
pais, às lojas e casas de mercadores, que seriam
de um piqueteamento sistemático (Parellada <?í a i,
construídos por prim eiro; o resto das parcelas
1987). Neste levantamento pretendeu-se ainda a
edificáveis eram distribuídas aos colonos autoriza­
caracterização das áreas de atividades específicas;
dos a construir ao redor da praça principal, e os
e conjuntam ente a este trabalho foi realizado um
outros lugares deveriam ser conservados para os
estudo geoarqueológico de Villa Rica e seu entor­
colonos que chegassem posteriormente, ou para
no (Parellada, 1990).
que a Coroa ou o município dispusessem delas para
Em 1991, esta pesquisadora fez uma monogra­
qualquer necessidade.
fia sobre Villa Rica (Parellada, 1993), na qual pro­
As ruínas representativas da área urbana da
curou recuperar elementos da vida cotidiana e ana­
segunda fundação de Villa Rica dei Espiritu Santo
lisar a malha urbana daquela cidade colonial espa­
tem cerca de 300.000m2 ( Figura 3). As constru­
nhola durante o período de 1589 a 1632; caracteri­
ções em Villa Rica eram feitas principalmente em
zando as relações sociais entre os espanhóis, índios
taipa de pilão e madeira, com coberturas de telhas
Guarani e jesuítas que lá viveram, e as causas da
destruição de Villa Rica pelos bandeirantes paulis­ de tipo colonial ou mesmo palha. Havia também
tas. Aquela pesquisa utilizou-se especialmente de algumas pequenas construções em alvenaria de
dados históricos e arqueológicos, já que existe vas­ pedra, como poços e fomos.
ta documentação histórica do final do século XVI e Atualmente, da estrutura urbana, o que se en­
início do século XVII sobre Villa Rica, e as ruínas contram são ruínas das paredes das casas e dos
vêm documentadas desde 1865. Ainda se tentou muros dos terrenos, edificações estas confecciona­
mapear as razões de os moradores de Fênix acredi­ das em taipa de pilão. Através do corte de um muro
tarem que Villa Rica era uma redução jesuítica, além da parte central da cidade, observou-se como a tai­
de se fazer um resgate dos significados que as ruí­ pa vem sendo d estru íd a ao longo do tem po,
nas de Villa Rica e o Parque Estadual possuíam para principalmente pela ação das intempéries; tendo
os cidadãos de Fênix com mais de quarenta anos de hoje form a trapezoidal e, em muitos locais, possu­
idade e que moravam na cidade há pelo menos vin­ indo 0,60m de altura (Figura 4). A largura deste
te anos. Também, naquele trabalho, tentou-se ava­ muro é de 0,60m e, por cálculos de volume, che­
liar os primeiros resultados que o Museu de Histó­ gou-se à conclusão que este muro teria original­
ria Natural e Arqueológico do Parque, inaugurado mente cerca de l,80m de altura.
em 1990 e que tem assessoria do Museu Paranaen­ Villa Rica possuía mas com 10 a 12m de largu­
se, vinham apresentando. ra, que se cruzavam em ângulos retos, e quase to­
Neste trabalho apresenta-se dados desta mono­ das as quadras tinham dimensões de lOOxlOOm
grafia (Parellada, 1993) e inform ações inéditas (Figura 3). Estas quadras eram cercadas por m u­
obtidas nos anos de 1991 a 1993 por pesquisas ros construídos pela técnica da taipa de pilão, che­
realizadas na área urbana de Villa Rica dei Espiritu gando a ter altura de l,80m e largura de 0,60m.
Santo. como já foi dito. Dentro das quadras havia divi­

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

Fig. 4 - Construção de um muro em taipa de pilão (Blumme, 1985).

sões internas, delimitando terrenos, e no interior TABELA 1


destas divisões é que se encontram vestígios de
Dimensões das ruínas das casas de taipa de pilão levan­
casas de taipa de pilão. A maior parte das 26 casas tadas até 1993, junto à área urbana da segunda funda­
já topografadas são pequenas, com dimensões va­ ção de V illa Rica dei Espiritu Santo (158 9 -1 6 3 2 ).
riando de 4 x 4m a 15 x 12m, conforme Tabela 1. Número de Casa Dimensões (metros)
As casas têm três tipos básicos de localização (conforme figura 3)
espacial em relação ao muro de taipa de pilão, que 1 11 x 13
delimita o terreno. Assim, das 26 casas já topo­ 2 7 ,5 x 4
grafadas 14, ou seja 54%, situam-se junto às quinas 3 6 x 10,5
dos muros, aproveitando as paredes dos muros 4e8 6x8
como duas paredes da casa. Apenas quatro destas 5 4x5
casas, cerca de 15%, localizam-se entre duas qui­ 6 8x8
nas, ou seja, aproveitam o muro como uma parede 7 5,5 x 11
da casa. No interior dos terrenos existem oito casas 9 e 26 7x8
já topografadas, ou seja, 31% do total levantado 10 7,5 x 9,5
não utilizaram os muros como paredes da casa. É 11 e 15 6 x 6,5
importante destacar que a documentação destas 12 10 x 14
casas confeccionadas em taipa de pilão continua a 13 10,5 x 13
ser realizada, pois as pesquisas em Villa Rica pelo 14 7x7
M useu Paranaense ainda estão em desenvolvi­ 16 4 x 10,5
mento. 17 7 x 16
U ma casa, a de número 16 na Figura 3, situa­ 18 5x7
da em quadra ao redor da praça, foi escavada par­ 19 5,5 x 8
cialm ente em janeiro de 1991, chegando-se ao ní­ 20 10 x 12
vel das telhas . A casa tinha dois cômodos, sendo 21 6,5 x 7
que, no mais ao norte, as telhas começaram a apa­ 22 12 x 15
recer a 0,2m de profundidade e, no mais ao sul, a 23 5x18
0,5m. No cômodo norte foi observada uma estru­ 24 6 x 16
tura de argila cozida próxima à parede da casa, que 25 4x4

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

talvez esteja relacionada a um fogão. Na parte sul sa de terra fortemente comprimida, da qual se fa­
ocorriam, a 0,l-0,2m de profundidade, fragm en­ zem blocos ou pedras artificiais, através de um
tos cerâmicos dispersos relacionados à Tradição molde especial denom inado taipal ou caixa (ob­
Arqueológica TupiGuarani, e que podem revelar servar Figura 4). Segundo M onróes (1910), o tipo
um a ocupação tard ia da área por populações de solo ideal para se fazer a taipa seria um a terra
Guarani, muito depois da destruição de Villa Rica, argilosa, que contivesse um pouco de pedriscos,
ou simplesmente poderiam ter sido originados por devendo ser retirados todos os restos de raízes, fo­
ação antrópica recente. lhas e esterco. Aquele autor ainda observa que se
No canto sudoeste da praça central estão as as terras com que se faz a taipa fossem arenosas e
ruínas da igreja, que tinha aproxim adam ente di­ devidamente umedecidas, sofreriam pouca retração
mensões 27 x 15m e que foi construída pela técni­ e uma adesão tão forte que as preservariam da ação
ca da taipa de pilão, com cobertura de telhas tipo de chuvas e geadas. Alguns construtores espanhóis
colonial, e certamente beirais. Esta igreja dedicada do século XIX ressaltavam a im portância de mo­
a São João Batista era da Com panhia de Jesus, ten­ lharem-se as terras muito secas com um a calda de
do três naves (Cortesão, 1951: 19). Um a tentativa cal, em vez de somente água.
da reconstituição da parte frontal da igreja foi fei­ Corral (apud Blumme, 1985) observa que as
ta por Parellada (1993), com dados do volume das dimensões de taipais castelhanos e de M arrocos
ruínas das paredes da igreja, e por comparação com no início deste século eram de 0,60 x 2,50 x 0,90m;
inform ações históricas e igrejas construídas na o que deveriam ser basicamente as dimensões dos
mesma época. moldes de Villa Rica. Afinal, as larguras das pare­
Havia um cemitério na praça, ao lado da igreja des de alguns muros, já definidos em Villa Rica,
matriz, local descrito nos autos do processo contra eram também de 0,60m.
o capitão Francisco Benitez de Villa Rica, datado A taipa de Villa Rica pode ser descrita como
de 26 de novembro de 1631 : “ ... Io prendio en la sendo sedimentos argilosos de coloração avermelha­
calle junto a su casa y de alli lo trayo a la carcel da, com pedriscos de basalto em seu interior, tendo o
publica donde se salio huyendo y se fue a meter en material sofrido forte compressão. A análise granu-
el simenterio de la yglesia en todo lo qual el dicho lométrica da taipa de um muro de Villa Rica teve a
capitan francisco benites dio muy grande escandalo seguinte composição: seixos de basalto (> 4mm)
a toda esta plasa y gente y soldados que en ello 68%, grânulos (2-4mm) 2%, areia e silte (0,062-2mm)
avia y sin esto dentro de Vreve rrato se desaparicio 10%, e argila (< 0,062mm) 20% (Parellada, 1990).
dei dicho sim enterio y no pudo ser hallado y A taipa por ser altamente erodível, segundo
vido...” (apud Taunay, 1925a: 323). Lemos (1979), necessita de proteção permanente
Então, provavelmente ao redor da praça de­ de grandes telhados ou largos beirais, surgindo
veriam existir também a cadeia pública e o Cabil- assim a necessidade de telhas cerâmicas de canal,
do (prefeitura); além das duas casas de religiosos: o que explica a sua utilização em larga escala em
de mercedários e de jesuítas, citados em Taunay Villa Rica. Já foi caracterizada a presença de te­
(1924: 232). lhas de canal na maior parte das casas topografa-
Na parte leste da cidade, foram identificadas das. As telhas de algumas construções, como a igre­
construções em alvenaria de pedra: um poço para ja, afloram à superfície, enquanto que em outras
captação de água e fom os para fundição de me­ partes das ruínas elas aparecem somente a 0,5 m
tais. O poço tem forma quadrada, com l,5m de de profundidade.
lado externo e profundidade desconhecida, pois As telhas encontradas em Villa Rica são do
atualm ente se encontra entulhado. Foi construído tipo colonial de encaixe e de cumeeira. São bem
com blocos de basalto, de dimensões 0,25-0,30 x queim adas, mas apresentam coloração variada,
0,30 x 0,20m . Q uanto às estruturas de pedra desde bege até laranja forte, mostrando que foram
caracterizadas como fomos, ainda são necessárias utilizadas ou várias jazidas de argila, ou diferen­
escavações de detalhe na área, cabendo ressaltar a tes pontos de uma mesma jazida, não ocorrendo
presença no local de inúmeros fragmentos de es­ preocupação com a composição química da argila
cória de ferro. da qual seria confeccionada a telha.
A taipa de pilão, principal técnica construtiva Ocorrem também estruturas subterrâneas den­
utilizada em Villa Rica, não é mais que um a mas­ tro da área urbana, locais de onde deve ter sido

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Re v. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

retirada a argila necessária para confeccionar as nem privado, nem no sentido que hoje damos a
edificações em taipa de pilão. Muitas destas cavi­ estes termos nem no que, sob outras formas lhes
dades provavelmente foram utilizadas como lixões, foi dado na época m oderna” . Assim, há uma mis­
ou mesmo para fazer casas subterrâneas para os ín­ tura entre o público e o privado, havendo uma im­
dios Guarani. Algumas destas cavidades já foram posição crescente do Estado, e um enriquecim en­
mapeadas, tendo diâmetros de 3 a lOm, e profundi­ to e diversificação das profissões.
dade variável de 1 a 3m. Em algumas delas fize­ Assim, generalizando para os cidadãos de Villa
ram-se escavações preliminares e coletaram-se frag­ Rica, podemos pensar em domínios mais públicos
mentos cerâmicos típicos da Tradição Arqueológica como as ruas, praças, igreja, cemitério, Cabildo,
TupiGuarani, sendo que em parte destas estruturas cadeia pública, rios e estradas, e domínios mais pri­
coletaram-se fragmentos de telhas. vados como as casas, terrenos e chácaras.
Ao redor da cidade propriamente dita havia
chácaras para plantação de subsistência, muitas O cotidiano da cidade
com 500 passos de frente (650m) e 5000 passos
de comprimento (6500m), como a doada para a Villa Rica II foi construída em terras habita­
Companhia de Jesus em 1594 (Cortesão, 1951: 18). das por tribos Guarani, pois alguns caciques desta
Nestas chácaras faziam-se hortas e plantações de cultura tinham uma relação de amizade e aliança
frutas, como videiras e laranjais. com os espanhóis; afinal, os europeus possuíam
A tualm ente, os vestígios arqueológicos da uma superioridade tecnológica (como as armas de
área urbana da segunda fundação de Villa Rica fogo e a fundição de metais), uma melhor orga­
(1589-1632) aparecem desde aflorando na super­ nização administrativa e protegiam as tribos sub­
fície até a profundidade de dois metros, sendo que metidas à Coroa de Castela de índios inimigos.
a camada arqueológica tem espessura variável ao Cabe destacar que houve também resistência de
longo deste sítio arqueológico. Em um dos perfis muitas tribos Guarani que chegaram a guerrear com
estratigráficos foram identificadas quatro fases de os espanhóis, e outras que migravam para terras
deposição e retrabalhamento, associados a ações ainda não conquistadas pelos europeus. Os índios
antrópicas ocorridas após a destruição de Villa Rica voluntariamente submetidos ou vencidos pelas ar­
dei Espiritu Santo, em 1632, pelos bandeirantes. mas reais, ou pelos esforços individuais dos con­
São níveis de carvão relativos a queimadas, inter­ quistadores, eram utilizados pelos espanhóis atra­
calados com camadas de material retrabalhado ori­ vés do sistema de encomiendas na extração de erva-
ginado por movimentos de massa, provocados pela mate, quando eram reunidos em pueblos (mita),
retirada de cobertura vegetal. Estes escorregamen- ou em serviços domésticos (yanáconas) na área
tos reordenam o material superficial e sub-super- urbana de Villa Rica.
ficial, originando novas camadas, com vestígios O governo espanhol para a conquista da Pro­
recentes (cacos de vidro, latas) misturados com, por víncia do Guairá, de uma forma mais fácil, vai usar
exemplo, fragmentos cerâmicos do século XVI. a religião através dos jesuítas. Porém, os jesuítas
Com os dados obtidos através de análise bi­ quando iniciam a formação de reduções acabam
bliográfica e pesquisas arqueológicas, podemos abrigando índios fugidos dos p u eb lo s de los
tentar definir preliminarmente os domínios públi­ encomenderos e da própria Villa Rica. Assim, a
cos e privados da cidade, cabendo ressaltar que, m ão-de-obra com eça a diminuir, e há conflitos
para segmento da sociedade villariquenha, espa­ entre espanhóis e jesuítas, sendo que os primeiros
nhóis com cargos políticos, espanhóis mais hum il­ cobram a necessidade do retom o dos índios para a
des como os artesãos, jesuítas e índios Guarani, extração da erva-mate. A conseqüência desta rela­
estes domínios devem ser relativizados conforme ção de oposição vai ser o enfraquecimento tanto
o poder de cada um e a época. das reduções, que já não recebem mais armas dos
Deve-se observar, conforme Ariès (1990: 8), espanhóis para se defenderem dos assaltos dos
que tratam os de indivíduos com características bandeirantes, como o das cidades espanholas, que
principalmente do final da Idade Média: “...as so­ praticamente se afundam em dívidas pois não têm
ciedades da comunidade senhorial, as sociedades tantos braços indígenas para extrair a erva-mate.
linhagísticas, os laços vassálicos encerram o indi­ O mais detalhado relato sobre Villa Rica dei
víduo ou a família num mundo que não é público Espiritu Santo no início do século XVII é o da car­

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

ta do Governador da Província do Paraguai, Don Tanto os espanhóis como os indígenas confec­


Luís de Céspedes Xeria, descrevendo sua visita ao cionavam a cerâmica com a argila da área, porém
Guairá, distrito do Paraguai, para o rei Felipe IV como os europeus usavam o tom o para fazer os
(Archivo de índias, apud Taunay, 1925a: 191). vasilhames, os seus antiplásticos tinham textura mais
Naquele docum ento X eria destacava a pobreza de fina que os indígenas. Os Guarani usavam, na con­
Ciudad Real e Villa Rica. Em m atéria de vestuário fecção da cerâmica, sedimentos argilosos com grãos
só viu índios e brancos maltrapilhos; até mesmo de quartzo, hematita e feldspato com diâmetro m á­
os alcaldes y regidores benian vestindo lienço de ximo de 40mm, e ainda acrescentavam fragmentos
algodón tenido de ñegro y esto m uy roto. Las de cacos moídos e carvão vegetal. As técnicas de
mujeres y hijos destos andan vestidos de la misma manufatura indígenas eram o acordelado, o roletado
hasta las camisas. Havia também pouca abundân­ e o modelado. Blasi (1963) cita que a maior parte
cia de víveres, além de umas raízes chamadas yucas dos indícios de Villa Rica eram utensílios de fei­
(mandioca), só existiam laranjas e algum milho; não ções marcadamente ocidentais, sendo que existem
tendo nem gado nem ovelhas. O Governador con­ dois traços característicos da influência européia:
tava que Villa Rica tinha cerca de 130 homens com presença de alças bilaterais, fixadas indiretamente,
muitos velhos e Ciudad Real, 40 homens; e que perto e bases perfeitamente planas.
de Villa Rica existiam cerca de doze a catorze mil Com o declínio do poder dos jesuítas e espa­
índios, mais da metade reduzidos e os demais a re­ nhóis, os bandeirantes paulistas percebem que a
duzir. Na mesma carta Xeria ainda observava que Província do Guairá era um alvo fácil para captura
os edifícios públicos caíam, reinava a fome nas fa­ de índios, e no final até para o domínio do territó­
mílias brancas que emigravam uma após a outra. A rio. Cabe ainda ser com entada a cum plicidade do
justificativa dada pelos colonos desta extrema mi­ governador do Paraguai, Xeria, que se casando com
séria era que a maior parte dos índios, que trabalha­ uma portuguesa do Rio de Janeiro, estabeleceu cla­
vam pelo sistema de encomienda para os villari- ras relações de aliança com os portugueses, e aca­
quenhos, estavam refugiando-se nas reduções jesuí­ bou permitindo que a Coroa espanhola perdesse
ticas, onde tinham a proteção dos padres. um território já colonizado. Também havia a coo­
Podemos também tentar visualizar o cotidiano peração de alguns espanhóis com os paulistas, de­
através de dados obtidos nas pesquisas arqueológi­ vido aos inúmeros casamentos realizados, além de
cas e ambientais. Assim, os recursos minerais exis­ alguns caciques guairenhos que, pretendendo al­
tentes na área e utilizados pelos europeus eram a cançar o poder através das mãos dos bandeirantes,
argila m agra para a confecção de vasilham es serviam de guias e ajudavam no extermínio de sua
cerâmicos e telhas, cascalho e argila gorda usados própria cultura.
como material de construção (taipa de pilão), e os Desta forma, apesar da união da Coroa portu­
basaltos maciços e diferenciadas ácidas para con­ guesa à espanhola, nos territórios de conquista os
feccionar mós e construções em alvenaria de pedra. vassalos de uma Coroa não podiam invadir o po­
Além disso, era feita a extração de ferro de minas derio de outra; o que os portugueses não respei­
da parte média do rio Piquiri, sendo que este miné­ taram, avançaram os lim ites, pois pretendiam a
rio era fundido em Villa Rica para a confecção de captura fácil de mão-de-obra indígena para traba­
moedas e ferramentas. Estas minas são citadas em lhos escravos.
documentos espanhóis dos séculos XVI e XVH, mas Em 1632, depois de alguns meses com a cida­
ainda não se tem a sua efetiva localização. de sitiada pelos bandeirantes paulistas, chegou em
Os índios residentes dentro da área urbana de agosto o Bispo de Assunção Aresti, que vendo o
Villa Rica dei Espiritu Santo utilizavam preferen­ estado deprimente dos habitantes de Villa Rica e a
cialm ente como matéria-prima para a produção de im possibilidade de resistência por mais tempo,
artefatos líticos as litologias da área, como: arenito decidiu a transferência da cidade para além do rio
silicificado (39,5%), diferenciadas ácidas (30,2%) Paraná. A 20 de outubro de 1632 já estavam os
e basaltos (20,2%). Foram encontrados principal­ retirantes do outro lado do rio Paraná em Tapuytá,
mente lascas, raspadores, unifaces, bifaces, lâmi­ nas proximidades da Serra do M aracaju (Taunay,
nas de machado lascado e polido, além de um ador­ 1925b: 148).
no peitoral de argilito, que deve ter sido trazido de Com isto aconteceu a retirada definitiva dos
outro local (Parellada, 1990). espanhóis da Província do Guairá, sendo que as

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PARELLADA, C.I. Análise da malha urbana de Villa Rica dei Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix-PR. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

reduções já haviam se acabado na área em 1631, Afinal, dentro da Província dei Guairá, Villa
algumas destruídas pelos bandeirantes, outras sim­ Rica foi a única cidade que seguiu este padrão des­
plesmente abandonadas. de o seu planejamento, pois teve a sua segunda
fundação em 1589, portanto, após a lei de 1573;
tanto Ontiveros como Ciudad Real tiveram a sua
C onclusões
fundação anterior a essa data, 1554 e 1556, res­
pectivamente.
Villa Rica dei Espiritu Santo, cidade colonial
Ainda deve ser ressaltado que devido ao bom
espanhola do final do século XVI, teve a sua se­
estado de conservação deste sítio histórico, está
gunda fundação conforme modelo codificado na
sendo possível a recuperação de dados fundamen­
lei de 1573, de Felipe II, ou seja, tem o mesmo
tais para a compreensão do cotidiano dos habitan­
traçado urbano de outras cidades da América es­
tes de Villa Rica dei Espiritu Santo, com maior
panhola fundadas na mesma época, como Cara­
profundidade e muitas vezes distinto do que é des­
cas, na Venezuela.
As ruínas da segunda fundação de Villa Rica crito nos documentos históricos.
são, dentre os sítios arqueológicos relativos à ocu­
pação espanhola na Província do Guairá no sécu­
lo XVI, as que se encontram em melhor estado de A gradecim entos
preservação e, portanto, as que têm as maiores con­
dições de fornecer subsídios para a compreensão A Secretaria de Estado da Cultura do Paraná,
do desenho urbano e da disposição espacial dos ao Museu Paranaense, ao Instituto Ambiental do
vestígios arqueológicos. Paraná e ao Prof. Dr. Igor Chmyz.

PARELLADA, C.I. Analysis o f urban net o f Villa Rica del Espiritu Santo (1589-1632) / Fênix -
PR. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 51-61, 1995.

ABSTRACT: The main aims of this research are to recover the everyday life
elements and analyze the net of the Spanish colony called Villa Rica del Espiritu
Santo, in the period between 1589 and 1632. Historical and archeological data were
used for the research, as there is a large number of historical documents from the
sixteenth and the seventeenth century, and the ruins have been studied by since
1865. The ruins of urban area of Villa Rica second foundation have 300.000m2, and
a spatial disposition like a chessboard, where the streets cross in right angles.
Nowadays Villa Rica are located in Parque Estadual de Vila Rica do Espírito Santo,
in Fênix , Paraná State, Brazil.

UNITERMS: H istorical Archaeology - Spanish Colonial village - Spatial


analysis.

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61
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 63-75, 1995.

ANÁLISE CERÂMICA DO PROJETO CAVERNAS


DE MORRO AZUL

Alberto Gottardi Neto*

GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 63-75, 1995.

RESUMO: Este trabalho apresenta a análise do m aterial cerâmico recuperado


junto ao sítio arqueológico Cavernas de M orro Azul, situado no m unicípio de Ven-
tania-PR, Brasil. Naquele local ocorre o m aior conjunto de pinturas rupestres co­
nhecidas atualm ente no Estado do Paraná, sendo as rochas suporte os arenitos e
diamictitos do Grupo Itararé. Nas prospecções preliminares foram identificadas
pelo menos três fases de ocupação: uma mais antiga de caçadores-coletores relaci­
onada à Tradição Umbu, e duas outras posteriores de ceramistas relacionadas à
Tradição Regional Itararé/Casa de Pedra. Os vasilhames cerâmicos, reconstruídos
graficamente, foram classificados segundo suas formas e possíveis funções.

UNITERMOS: Análise cerâm ica - Tradição Itararé/Casa de Pedra - Caver­


nas.

Introdução Apesar de M orro Azul localizar-se numa pro­


priedade particular, de Ricardo e Regina Gomm,
O projeto Cavernas de M orro Azul foi rea­ houve pouco vandalism o no sítio arqueológico.
lizado no bairro de M orro Azul, município de Ven- Mesmo assim, o estado de conservação das pintu­
tania-PR, situado a 300km ao noroeste da cidade ras rupestres não é bom, principalmente devido às
de Curitiba-PR (Figura 1). Esta pesquisa foi inici­ intempéries que fazem a “lavagem”das pinturas, e
ada pela equipe da Seção de Arqueologia do M u­ também porque na maioria delas houve a precipita­
seu Paranaense em 1991, com apoio da Secretaria ção de um filme de minerais carbonáticos, o que
de Estado da Cultura do Paraná e da Fundação O dificulta a sua documentação e estudo.
B o ticá rio de P ro teção à N atu reza, conform e A im portância da realização desta pesquisa
também foi observada pela recuperação de grande
Parellada (1993).
O principal m otivo pelo qual foram desenvol­ quantidade de fragmentos cerâmicos da Tradição
vidos estudos neste local foi a existência do maior Itararé/Casa de Pedra, artefatos líticos e restos ós­
conjunto de pinturas rupestres atualmente conheci­ seos de animais, além de raros ossos humanos e
das no Paraná, e ainda em cavernas nos arenitos e polidores e amoladores fixos.
diamictitos do Grupo Itararé. Era um fato inédito, Nesta região, há relatos de viajantes descreven­
pois os outros sítios com pinturas descritos an­ do a presença de índios e aldeias Kaingang até o
teriormente na bibliografia eram pequenos abrigos- século XVIII (Borba, 1908; Nimuendaju, 1981).
sob-rocha no arenito Fumas. Também é importante destacar a existência de
pelo menos dois sítios arqueológicos nas proxim i­
dades de M orro Azul (Parellada, 1993) (Figura 1).
( * ) Museu Paranaense. No sítio Azul, situado a l k m a leste das cavernas

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

73
28

73
26

76 678
Legenda:

d re n a ge n s

S e s tra d a a s fa lt a d a

S e s t r a d a s e c u n d á r ia

o casas

p a r e d ã o r o c h o s o c o m d e s n ív e l a b r u p t o

° o e s tru tu ra s a r q u e o l ó g i c a s

Fig. 1 - M apa de localização do sítio arqueológico de Morro Azul, município de Ventania-PR, Brasil.

de M orro Azul, podem ser observadas estruturas perturbado. Ainda a 2,5km a leste de M orro Azul
arqueológicas relacionadas às casas de uma aldeia existe o sítio arqueológico Guarani Azul, filiado à
da Tradição Itararé/Casa de Pedra, visualizadas nas Tradição TupiGuarani, SubTradição Pintada, que
fotografias aéreas do IA P/ PR (1980), escala também está muito alterado devido a plantações
1:25.000; este sítio encontra-se atualmente bastante agrícolas sucessivas no local.

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 6 3 -7 5 ,1 9 9 5 .

C aracterísticas am bientais antrópica recente, de fases sucessionais de vege­


da região de estudo tação secundária entrem eada por rem anescentes
arbóreos isolados e pequenas porções primitivas
de tipos vegetacionais distintos.
Geologia e geomorfologia
A fauna relacionada a esta região é caracteristi-
camente subtropical.
Na região de estudo ocorrem rochas do Grupo
Itararé e um dique de diabásio da Formação Lavas
da Serra Geral. O Grupo Itararé com preende, se­ O sítio arqueológico de M orro A zul
gundo Schneider et alii (1974), um a seqüência se­
dimentar de idade permo-carbonífera, formada a O sítio arqueológico ocorre ao longo de 500m
partir de depósitos de natureza glacial, periglacial de um paredão, com direção norte-sul, de um m or­
e m arinha associada, com diamictitos, varvitos e ro testemunho de arenitos e diamictitos do Grupo
outros associados. Zalán et alii (1987) acrescen­ Itararé (Figura 1). Neste paredão estão associados
tam que esta seqüência inicia-se com depósitos duas cavernas e um abrigo-sob-rocha, com o pode
continentais da base do Grupo Itararé, Formação ser observado na Figura 2.
Cam po do Tenente, que rapidam ente passam a A caverna de M orro Azul I, com dimensões
marinhos, Formação M afra e Rio do Sul. Em Morro de 48,5 x 46 x 15m, é a maior do conjunto e con­
Azul o sítio arqueológico está em litologias da tém na sua entrada pinturas rupestres, em preto e
Formação Campo do Tenente: arenitos grosseiros vermelho, com motivos geométricos. Em uma qua­
avermelhados, siltitos, ritmitos e diamictitos, com dra de 1 x lm e nos 11 poços estratigráficos reali­
estratificação cruzada e horizontal e camadas con­ zados (Figura 3), e com a coleta superficial, foram
torcidas. recuperados inúmeros fragmentos cerâmicos, além
A área situa-se no Segundo Planalto Para­ do material lítico e ósseo de animal, como tam ­
naense, sendo que a região apresenta um relevo bém estruturas arqueológicas, com o fogueiras. O
tabular, com rios encaixados segundo a direção de material cerâmico ocorreu até 0,70m de profun­
fraturas. didade no poço 10, e nos poços 6 e 7 nem chegou
O rio das Pedras que corre nas proximidades a aparecer. Nos poços 4 e 10 ficou evidente que
de M orro A zul desem boca no rio Laranjinha ou do existem pelo menos dois níveis de ocupação rela­
Peixe, que está contido na bacia hidrográfica do cionados à Tradição Regional Itararé/ Casa de Pe­
rio das Cinzas, afluente do rio Paranapanema. dra, o mais antigo com profundidade de 0,50 a
0,70m e o mais recente de 0 a 0,20m, entremeados
Clima por uma camada estéril.
A caverna de M orro Azul II tem dimensões
Segundo a classificação de Koeppen, o clima de 12,5 x 16,5 x 5m, e não foram observadas pin­
da região de estudo é Cfa, ou seja, clima subtropical turas no seu interior; é importante destacar que uma
úmido, sem estação seca, com verão quente, sendo parte da parede foi destruída com picareta há cer­
a tem peratura mais baixa do mês mais quente su­ ca de 30 anos. Neste local, informantes da região
perior a 22° C. relataram que existiam pinturas de zoomorfos em
vermelho. Ainda foi feita nesta caverna, há dez anos
atrás, uma trincheira de 2 x lm , pelos atuais pro­
Flora e fauna prietários, que buscavam “tesouros” . O material
arqueológico retirado foi doado ao M useu Para­
Segundo Tramujas (1993) na área das caver­ naense; sendo que nesta trincheira as cam adas
nas de M orro Azul existem quatro tipos fitogeo- com vestígios de ocupação hum ana ultrapassam
gráficos distintos: a Floresta Ombrófila M ista em l,20m de profundidade. Em M orro A zul II devi­
Tensão Ecológica do tipo Contato com a Floresta do ao abundante material superficial, fez-se o qua-
Estacionai Semidecidual e, neste contexto, D isjun­ driculamento de 2 x 2m de toda a caverna confor­
ções Ecológicas da Estepe Gramíneo-Lenhosa e da me a Figura 4, coletando-se os vestígios superfici­
Savana Arborizada. A inda aquele autor observa ais. Ainda foi confeccionado o poço estratigráfico
que a região estudada é constituída, devido à ação N 1 e feita a lim peza das paredes da antiga trin-

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Fig. 3 - Planta da Caverna Morro Azul I, com áreas de prospecção arqueológica.

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Fig. 4 - Planta da Caverna Morro A zul II, com a localização das quadras onde fo i feita a coleta
superficial.

cheira para análise da estratigrafía, observando-se Com as prospecções preliminares neste sítio
que os níveis com cerâmica chegam a 0,55m de foram identificados pelo menos três níveis de ocu­
profundidade. Foi também nesta cavidade que fo­ pação: um mais antigo, relacionado a populações
ram recuperados, além dos remanescentes da cul­ caçadoras-coletoras da Tradição Umbu, e dois pos­
tura material, dois ossos humanos. teriores, a ceramistas da Tradição Regional Itararé /
O abrigo-sob-rocha Morro Azul III tem dimen­ Casa de Pedra (Parellada, 1993).
sões de 19,5 x 10 x 8,4m e concentra nas suas pro­ As pinturas rupestres, que estão concentradas
ximidades o m aior número de pinturas rupestres na parte sul do paredão, são cerca de 50 figuras,
do sítio arqueológico. Ao norte do abrigo, foram com coloração vermelha e preta e motivos diver­
realizados três poços estratigráficos: 13, 14 e 15; sos: antropomorfos, zoomorfos, geométricos e as­
neles também foram caracterizados dois níveis de tronômicos. Parte destas pinturas podem ser cor­
ocupação Itararé, o mais antigo de 0,25 a 0,40m, e relacionadas à Tradição Planalto e algumas à G e­
um mais recente de 0,10 a 0,25 m. ométrica. Pedaços de hematita, que podem ter sido

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

utilizados com o pigmento das pinturas, foram en­ Ainda o m aterial cerâm ico coletado foi es­
contrados associados às três diferentes ocupações. tudado quanto a aspectos tecnológicos, como o tipo
Os polidores e am oladores fixos localizam-se de pasta, tipo e quantidade de antiplástico, m éto­
em um grande bloco de arenito Itararé, de tamanho do de manufatura, tipo e tem peratura de queima,
5,80 x 6,30m. Provavelmente eles foram utilizados espessura de parede, segundo metodologia preco­
pelas populações ceramistas e horticultoras da Tra­ nizada por Shepard (1963), além do tratamento de
dição Itararé/ C asa de Pedra; afinal foram re­ superfície.
cuperadas mão de pilão e lâminas de machado po­ Na análise microscópica do material cerâm i­
lidas asssociadas aos níveis de ocupação que con­ co utilizou-se um estereom icroscópio D R-Br Carl
tinham cerâmica. Zeiss, de objetivas duplas, tipo Greenough, com
ampliação m ínima de 14x e máxima de 400x.

M ateriais e m étodos
R esultados obtidos
Para ser executada esta pesquisa, conforme nas análises cerâm icas
Parellada (1993), fez-se uma análise bibliográfica
de aspectos arqueológicos e ambientais, a interpre­ Numa análise preliminar dos 662 fragmentos
tação de fotografias aéreas na escala 1:25.000 cerâmicos de M orro Azul, sendo 192 recuperados
(1980) do IAP-PR e, em campo, além do cadastra- através de doações dos proprietários, e 470 atra­
mento de sítios arqueológicos da região, a topo­ vés de pesquisas sistemáticas: 238 junto à caver­
grafia de todo o paredão e das cavernas e dos abri- na M orro Azul I, 220 junto à caverna M orro Azul
gos-sob-rocha onde ocorriam vestígios arqueoló­ II e 12 entre a caverna M orro Azul II e o abrigo
gicos. As pinturas rupestres foram documentadas Morro Azul III, pode ser concluído que se trata de
por registro fotográfico e por cópia em plástico uma cerâmica delicada, pouco espessa e de super­
transparente. Também foram confeccionados 15 fície polida. Não foram encontrados motivos de­
poços estratigráficos de 0,4 x 0,4m, e com profun­ corativos, sendo os únicos tipos de tratamento de
didades variando de 0,40 a 0,70m, além da coleta superfície observados o engobo laranja e o enegre-
superficial de vestígios arqueológicos, da realizã- cimento através de técnica do esfumaramento.
ção de uma quadra de 1 x 1 x 0,6m e da limpeza As superfícies, devido à queima e pelos pro­
da antiga trincheira feita há 10 anos pelos proprie­ váveis posteriores reaquecimentos dos vasilhames
tários. cerâmicos, apresentam colorações desde o marrón
Paralelamente ao estudo arqueológico, realizou- mais claro até os tons mais escuros, chegando ao
se a análise microambiental da área através de ma­ negro. Com menos frequência aparecem os frag­
peamento geológico e levantamento florístico. mentos de cor ocre a laranja em ambas as faces.
As superfícies são muito bem alisadas, sendo co­
Na análise cerâmica: mum a observação de estrias no estereomicroscópio;
apresentam rara ocorrência de fragmentos ásperos
Foram recuperados 662 fragmentos cerâmicos ao tato, devido ao intemperismo, e sinais de alisa-
através da coleta superficial e de poços-teste e qua­ mento observáveis microscopicamente.
dras. Primeiro, restaurou-se a cerâm ica nos seus Ainda alguns fragmentos cerâmicos, que pos­
respectivos níveis de coleta; em seguida, o materi­ suíam crostas de restos alimentares aderidos à sua
al foi numerado e fez-se nova restauração, agora face interna, não foram lavados, pois eles estão so­
utilizando todos os setores escavados, permitindo, frendo análise química e palinológica para iden­
com isso, uma m elhor caracterização das formas e tificação do que foi cozinhado ou armazenado nes­
dos processos de formação do sítio arqueológico. tes recipientes.
Para se obterem as possíveis form as dos vasi­ O método utilizado para a confecção dos va­
lhames, eles foram reconstituídos graficamente, silhames cerâmicos foi o acordelado.
segundo a m etodologia descrita em M eggers & Predominantemente, os antiplásticos são grãos
Evans (1970). Estas formas foram classificadas de quartzo hialino e leitoso, sendo cristais sub-an-
conforme suas possíveis funções, segundo Miller gulosos a sub-arredondados. Em quantidades in­
Jr. (1978). feriores podem ser encontrados feldspatos subé-

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

dricos, hematitas esféricas e ainda pedaços de car­ e grandes, maiores que 17cm; observar Figu­
vão, de cerâmica moída e quartzito. A granulome- ra 6. *
tria do antiplástico geralmente é fina, de 1 a 2mm,
Vasos: vasilhames caracterizados por ter
excepcionalmente surgem cristais de quartzo e de
a altura e o diâmetro do bojo de tamanhos
feldspato de 3,5mm de comprimento. Também apa­
iguais ou aproximados; a função principal se­
recem em quantidades significativas grânulos are­
ria a de cozinhar alimentos, podendo também,
nosos até 0,5mm.
possivelmente, ser utilizados na fermentação
A pasta tem textura homogênea, apresentan­
de bebidas. Neste trabalho estão subdivididos
do pouca ou quase nenhuma porosidade. É possí­
em: ovoides, quadrados, com cintura e com
vel ainda observar linhas preferenciais na matriz
borda introvertida. Os vasos ovoides têm bor­
da pasta resultantes, provavelm ente, da técnica
das diretas extrovertidas, curvas suaves, ba­
utilizada na confecção da cerâmica: o acordelado.
ses arredondadas e altura maior que o diâme­
A fratura é irregular e compacta, raramente friável.
tro do bojo; além de possuir um porte médio,
As pastas apresentam normalmente colorações
altura máxima de 20cm e bojo destacado (Fi­
escuras principalmente tons marrons. Nos casos
gura 7). Os vasos quadrados possuem também
onde os fragmentos apresentavam engobo, esses
bordas diretas extrovertidas, pescoço alonga­
núcleos são ladeados por tonalidades mais claras
do, porte médio, sendo que a altura é aproxi­
marrons e ocres. Raramente encontram-se fragmen­
madamente igual ao diâmetro do bojo, o que
tos com pastas ocres, que sempre acompanham a
dá uma aparência “quadrada” a estes vasilha­
coloração das superfícies.
mes (Figura 8). O vaso com cintura é um
As espessuras dos fragmentos cerâmicos va­
exemplar único que apresenta pequeno porte,
riam de 1 até 1 lm m , mas predominam os na faixa
pescoço reto, borda direta extrovertida, bojo
de 4mm. Com respeito à queima pode ser dito que
destacado e base arredondada (Figura 8). O
foi resultante de um a oxidação incompleta.
vaso com borda introvertida possui diâmetro
As formas dos vasilhames recontituídos grafi­
da boca e do pescoço menores que o diâmetro
camente foram agrupadas, segundo uma adapta­
do bojo (Figura 8); este, possivelmente, era
ção do modelo de classificação de Miller Jr. (1978),
utilizado para fermentar bebidas.
em: tigelas (rasas, médias e fundas), copos (pe­
quenos e grandes) e vasos (ovoides, quadrados,
com cintura e borda introvertida). Agora cada um
C onclusões
destes grupos será descrito com detalhes:
Tigelas: vasilhames onde a altura é me­ Em primeiro lugar, é importante destacar que
nor ou no máximo igual ao diâmetro da boca;
o projeto Cavernas de M orro Azul está ainda em
a sua função provavelmente seria a de servir
desenvolvimento e, portanto, com um maior apro­
porções individuais de alimentos. Foram divi­
fundamento das pesquisas ter-se-á um quadro mais
didas em três sub-grupos, conforme suas in­
completo das populações que ali habitaram. Cer­
clinações laterais externas em relação a um
tamente, a ampliação dos trabalhos trará grandes
plano horizontal que passa pela base do va­
subsídios à com preensão dos assentam entos da
silhame. As tigelas foram subdivididas em:
Tradição Itararé/Casa de Pedra no norte do atual
rasas quando têm estes ângulos medindo até território paranaense.
45°; médias, com ângulos entre 46° e 70°; e
Com os dados obtidos nas prospecções pode
fundas, com ângulos entre 71° e 85°. As dife­
ser observado que há concentração de vestígios ar­
renciações entre os tipos de tigelas podem ser
queológicos relacionados à Tradição Itararé/Casa
visualizadas na Figura 5.
de Pedra, preferencialmente nas entradas das ca­
Copos: vasilhames de pescoço longo, com vernas de Morro Azul I e II e no interior da caver­
bordas extrovertidas, onde a altura é sempre na de Morro Azul II. Ao longo do paredão e no
maior que o diâmetro do bojo, cerca de meia interior da caverna M orro Azul I, foram recupera­
vez. Sua função, provavelmente, seria a de dos pouquíssimos fragmentos cerâmicos.
acondicionar e servir líquidos. Aqui são subdi­ O m aterial cerâm ico analisado revelou pos­
vididos em: pequenos, com altura até 16,5cm, suir tamanhos pequenos, paredes delgadas, gra-

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

nulom etria fina dos antiplásticos e a ausência de de quantidade de vestígios associados à Tradição
decoração na superfície. Os únicos tratam entos Itararé/Casa de Pedra mostram uma estabilidade
de superfície observados foram o polim ento, o ocupacional significativa, que pode sugerir, até
engobo laranja e o esfum aram ento. Estas carac­ mesmo, um sítio aldeia ocupado pelo menos duas
terísticas tecnológicas visualizadas na cerâm ica vezes pelas populações Itararé/Casa de Pedra.
de M orro Azul são m uito próxim as às descritas
na cerâm ica dos K aingang paulistas por M iller
Jr. (1978), o que é um fato a m ais na evidencia- A grad ecim en tos
ção da afinidade cultural entre as populações
K aingang e as pré-históricas relacionadas à Tra­
dição Regional Itararé/C asa de Pedra. A Secretaria de Estado da Cultura do Paraná,
Nas cavernas de M orro Azul, tanto a espessu­ à Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e
ra das duas camadas arqueológicas como a gran­ à arqueóloga Claudia Inês Parellada.

Fig. 5 - Vasilhames cerâmicos do sítio arqueológico de M orro Azul


classificados como tigelas: a) rasas; b) médias; c) fundas.

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

Fig. 6 - Vasilhames cerâmicos do sítio arqueológico de Morro Azul classificados como copos: a) pequenos; b) grandes.

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu d e Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

Fig. 7 - Vasilhames cerâmicos do sítio arqueológico de Morro Azul classificados como vasos: a) ovóides; b) quadrados.

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GOTA ARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

Fig. 8 - Vasilhames cerâmicos do sítio arqueológico de Morro


A zul classificados como vasos: a) ovóides; b) com cintura; c) com
borda introvertida.

GOTTARDI NETO, A. Pottery analysis of Morro Azul Caves project. Rev. do Museu de Arqueolo­
gia e Etnologia, São Paulo, 5: 63-75, 1995.

ABSTRACT: This work presents the analysis of ceramics remains of Morro


Azul Caves archaeological site, located in Ventania County, Paraná State, Brazil.
Nowadays the site represents the biggest assemblage of rock art kown in Paraná
State. The support rock are sandstones and diamictites of Itararé geological group.
It was identified in the preliminary prospections, at least, three occupation levels:
the oldest, of hunters and gatherers related to Umbu Tradition, and two later of
ceramists of Itararé/ Casa de Pedra Regional Tradition. The archaeological pottery
vessels, graphically reconstructed, were classified throughout their shape and possible
function.

UNITERMS: Pottery analysis - Itararé/Casa de Pedra Tradition - Caves.

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GOTTARDI NETO, A. Análise cerâmica do Projeto Cavernas de Morro Azul. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 63-75, 1995.

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Recebido p a ra publicação em 20 de setembro de 1995.

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

SALVAMENTO ARQUEOLÓGICO NA ÁREA DE


INFLUÊNCIA DA PCH MOJI-GUAÇU

José Luiz de M orais*

MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência da PCH Moji-Guaçu. Rev. do Mu­
seu de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

RESUMO: este artigo apresenta os dados resultantes da pesquisa de salva­


mento realizada na área de influência do Reservatório da PCH Moji-Guaçu, Esta­
do de São Paulo. Dispensada da licença ambiental, o salvamento arqueológico foi,
todavia, necessário.
Aldeias pré-históricas (sítios tupiguarani) foram levantados e escavados. Va­
silhas de cerâmica foram encontradas nas margens da Cachoeira de Cima, perto
da cidade de Moji-Guaçu. Evidências de ocupações neobrasileiras também foram
registradas.

UNITERMOS: Moji-Guaçu - Reservatório da PCH Moji-Guaçu - Salvamen­


to arqueológico - Horticultores pré-históricos.

Este artigo tem por objetivo relatar, discutir e apresentação de EIA-RIM A (estudo de impacto
propor os encaminhamentos futuros referentes à pes­ ambiental e relatório de impacto ambiental). Tal
quisa de salvamento arqueológico desenvolvida na fato, contudo, não desobrigou o em preendedor da
área de influência da Pequena Central Hidrelétrica necessidade do planejamento e da efetivação de um
de M o ji-G u aç u (PC H M o ji-G u aç u ), e m p re ­ programa de salvamento do patrimônio arqueoló­
endimento da Companhia Energética de São Paulo gico. Além da obrigatoriedade legal estabelecida
implantado nos municípios de Moji-Guaçu, Moji- pela legislação protetora do patrim ônio cultural
Mirim e Itapira (Fig. MJG 1). Os trabalhos de ar­ (apresentada e discutida adiante), destacam-se al­
queologia, obrigatórios pela legislação em vigor, guns outros fatores dignos de nota, que consolida­
foram desenvolvidos pelo Museu de Arqueologia e ram a idéia de se realizar o salvamento prévio. Pri­
Etnologia da Universidade de São Paulo, nos ter­ meiramente, cita-se o fato de o local escolhido para
mos do convênio firmado entre a CESP e a USP. a implantação da barragem, conhecido como Ca­
A PCH M oji-Guaçu é um em preendim ento choeira de Cima, ser reconhecidamente uma área
que, pelo seu porte, está dispensado de licencia­ arqueológica importante, fato verificado por oca­
mento ambiental, instrumento da Política N acio­ sião das pesquisas realizadas pela USP entre 1979
nal do M eio Ambiente (Lei Federal n. 6.938/81 e e 80.
normas infra-legais regulamentares) que prevê a Em segundo lugar, o vivo interesse da com u­
nidade guaçuana, evidenciado pelas manifestações
da municipalidade e, principalmente, do Sr. José
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo e Assessor Especial de Planejamento e M eio Am ­
Edson Franco de Godoy, proprietário das terras
biente da Prefeitura do Município de Piraju, Estado de São onde foram realizadas as pesquisas iniciais. Final­
Paulo. mente, coloca-se também o interesse recíproco da

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MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influencia daPCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

USP e da CESP, preocupadas em promover a reto­ 1990), tive oportunidade de apresentar e discutir
mada da pesquisa arqueológica em uma área tão algumas bases m etodológicas referentes à arque­
importante para a arqueologia brasileira. ologia de salvamento. Convém retom ar sucinta­
Portanto, a convergência destes múltiplos in­ mente alguns dos aspectos ventilados naquela
teresses proporcionou a retomada de mais um pro­ ocasião passando, de imediato, ao conceito usual
grama de salvamento arqueológico, fato que cer­ da disciplina.
tamente adicionou conhecimentos técnicos e cien­ A arqueologia, enquanto ramo do conhecimento
tíficos, seja no aspecto de conteúdo, ou no das ques­ científico, pode ser definida como o estudo das socie­
tões ligadas ao desenvolvim ento metodológico dades humanas que enfatiza a interação do com­
dessa importante modalidade de pesquisa. portamento humano e artefatos (Rathje; Schiffer,
As pesquisas de salvamento arqueológico na área 1982). Objetos de pedra lascada, lâminas de pedra
de influência da PCH Moji-Guaçu foram planejadas polida, vasilhas de cerâmica e adornos de valvas de
e implementadas sob a sigla ARQ.SALV.MJG. moluscos são objetos dos mais rotineiros recupera­
dos na arqueologia praticada no Brasil. Comporta­
mento humano é tudo o que as pessoas fazem: em
Contexto e questões tempos pré-históricos, por exemplo, lascava-se a
pedra para a produção de uma ponta-de-projétil para
O contexto temático a caça ou moldava-se a argila para a obtenção de
vasilhas onde os alimentos eram cozidos. A arqueo­
O contexto temático se refere a um assunto de logia difere das outras disciplinas do campo das
relevante interesse para a arqueologia: o salvamento humanidades por situar sua ênfase nos artefatos e
arqueológico, mormente mencionado como arqueo­ no comportamento humano, considerados de forma
logia de salvamento ou pesquisa de salvamento conjunta e interativa. A perspectiva arqueológica
arqueológico. Em publicação anterior (M orais, enfoca o comportamento humano por meio dos ar­

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MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência daPCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

tefatos, ou melhor, a inferência das atitudes com- dos e críticas, constituem os estágios do encaminha­
portam entais depende da observação e da análise mento dos projetos de salvamento arqueológico.
dos atributos dos artefatos. A tentiva de inter­
pretação páleo-etnográfica se fundamenta na recu­ O contexto arqueológico
peração e na leitura de objetos, considerando sua
natureza e contexto (Leroi-G orhan & Brézillon, Como frisado anteriormente, a arqueologia da
1966). região do alto-médio Rio M oji-Guaçu, especial­
Quanto à arqueologia de salvamento (salvage, mente na área da Cachoeira de Cima, era conheci­
rescue ou conservation archaeology), pode-se afir­ da pelas pesquisas realizadas entre 1979 e 80 por
mar que ela ainda é modalidade carente de siste­ arqueólogos da U SP (Pallestrini, 1980-81). Por
mática m etodológica consolidada. Tanto que, des­ essa ocasião, implantava-se um em preendim ento
de há algumas décadas, tem sido implementada imobiliário em um dos setores de expansão urba­
de muitas maneiras e, por isso, é bastante susceptí­ na da cidade de M oji-Guaçu, conhecido com o C a­
vel a lacunas e críticas das mais variadas, a maior choeira de Cima. Um dos proprietários, o Sr. José
parte pertinentes. O aspecto quantitativo tem pre­ Edson Franco de Godoy, ao construir sua casa,
valecido (quanto m ais m ateriais arqueológicos deparou com algumas vasilhas de cerâm ica indí­
forem coletados e quanto mais sítios forem desco­ gena (conhecidas localmente como “igaçabas”) nas
bertos, melhor será o resultado da pesquisa). Ocorre valas onde assentaria os alicerces da edificação.
que, na ânsia de perseguir a quantidade, materiais De im ediato, procurou especialistas do M useu
arqueológicos são coletados sem nenhuma contex- Paulista da Universidade de São Paulo. O atendi­
tualização vertical ou horizontal ou, pior, estrutu­ mento se deu por meio de um levantamento in situ
ras arqueológicas conexas (como os solos antropo- realizado pela Dra. Luciana Pallestrini e sua equi­
gênicos de habitações) são consideradas indivi­ p e.1A verificação inicial proporcionou dados sufi­
dualmente, cada qual como um sítio arqueológico cientes para o planejamento de um a escavação sis­
(sítio-“habitação”). Mormente isso leva à aquisi­ tem ática do sítio, denom inado a partir de então
ção de dados inconsistentes, mesmo falsos, com ­ “Franco de Godoy” . O sítio foi escavado no decor­
prometendo a interpretação do design da ocupa­ rer de dois anos consecutivos, quando foram evi­
ção humana. denciadas estruturas habitacionais, funerárias e de
Bezerra de M enezes (1988) lançou idéias sig­ combustão. Todas foram mapeadas, constituindo-
nificativas a propósito da arqueologia de salvamen­ se o plano parcial de uma aldeia pré-histórica, cujas
to. A lém de inserir esta modalidade no círculo da estruturas de combustão (carvões de antigas foguei­
investigação rotineira, permeou pela análise críti­ ras) foram datadas em 1.550 anos pelo método do
ca da arqueologia de salvamento no Brasil. De fato, Carbono 14.
exceto no que concerne às condições operacionais, Em 1983, o então Instituto de Pré-H istória da
“nenhum a distinção pode ser fe ita no nível da USP realizou levantamentos sistemáticos no tre­
substância’' entre a pesquisa arqueológica rotinei­ cho inferior do Rio Moji-Guaçu, já nas proxim i­
ra e o salvamento. Por condições operacionais se dades da confluência com o Rio Pardo (Caldarelli,
entende a delimitação da área a ser afetada pelo 1983). Foram descobertas e prospectadas algumas
fator que produz o risco e o prazo derivado do mes­ aldeias ceramistas com m orfologia e materiais se­
mo fator de risco. No caso, o fator que produz o melhantes aos do Sítio Franco de Godoy.
risco é a construção da usina hidrelétrica e o prazo A retom ada do levantamento a partir de 1992,
prende-se ao cronogram a da obra. já no âmbito do programa de salvamento arqueo­
Tem havido um a preocupação de se repensar lógico ARQ.SALV.MJG, ampliou os conhecim en­
os projetos de salvam ento arqueológico, dotándo­ tos relativos ao Sítio Franco de Godoy, consolidan­
os de design claro e consistente, explicitamente cal­ do a definição da área arqueológica da Cachoeira
cado na m etodologia científica da arqueologia ro­
tineira, reforçando a obtenção de informações por
meio da observação sistemática. A definição de um
(1) Além de Luciana Pallestrini, integraram a equipe de 1979-
esquem a conceituai (suposições), o levantamento
80, José Luiz de Morais, Denis Vialou, Philomena Chiara,
de questões, o teste de hipóteses, a recuperação e Águeda Vilhena-Vialou, Daisy de Morais e José Edson Fran­
a análise de dados, a formulação da síntese, resulta­ co de Godoy.

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MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na áreade influência daPCHMoji-Guaçu. Rew do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo. 5: 77-98. 1995.

de Cima. Por outro lado, ampliou os conhecimen­ Segundo o projeto, a PCH M oji-Guaçu tem
tos relativos à área de influência da PCH, ao promo­ potência nominal de 7 mil kw e reservatório com
ver levantamentos sistemáticos nos municípios de capacidade de acumulação de 41 milhões de m?
M oji-Guaçu, M oji-M irim e Itapira. Esse assunto de água. Isso significa que, além de produzir ener­
será tratado no item pertinente. gia, atenuará significativamente o problem a das
enchentes que afetam a cidade de Moji-Guaçu, si­
tuada a jusante do empreendimento. A barragem
O contexto geográfico tem altura de 14,50m, fazendo inundar uma área
de 4,5km2, distribuída entre seções dos vales do
O contexto micro-regional, ou seja, a área geo­ Rio Moji-Guaçu e do Rio do Peixe, seu afluente
gráfica do empreendimento, é repartido entre três da margem esquerda. O nível altimétrico normal a
m unicípios: M oji-G uaçu, M oji-M irim e Itapira montante da barragem é de 598,5m (Fig. MJG 3).
(Fig. MJG 2). Os dois primeiros, além de dividi­ A bacia do Rio Moji-Guaçu é tributária do Rio
rem a barragem (o barramento se situa no Rio Moji- Pardo e se situa no Nordeste do Estado de São
Guaçu, no trecho em que o canal serve de divisa Paulo. O Moji-Guaçu nasce em M inas Gerais, no
municipal), têm parte dos territórios alagados pelo Município de Ouro Fino, em altitudes superiores a
reservatório. Itapira sofreu apenas os efeitos do 800m. Tem 490km de extensão, a maior parte dos
enchimento do lago. A descrição do empreendi­ quais em território paulista (Fig. M JG 1).
mento está detalhada nos dois volumes que com ­ A área de influência da PCH Moji-Guaçu se
põem o plano da obra, intitulado “Aproveitamen­ localiza na região de contato entre as litologias cris­
to Múltiplo do Rio Moji-Guaçu - PCH Moji-Guaçu talinas do Planalto Atlântico, a leste, e os sedimen­
- Projeto Básico”, editado pela CESP em 1988. tos antigos da Depressão Periférica, a oeste. As prin­
Dele foram extraídos e utiüzados oportunamente cipais rochas da primeira unidade são granitos-
apenas os dados relevantes para o planejamento e gnaisses, gnaisses migmatizados e migmatitos com
a implementação do programa ARQ.SALV.MJG. intercalações subordinadas de xistos e quartzitos.

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MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência da PCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 7 7 -9 8 ,1 9 9 5 .

A ação do intemperismo e dos processos erosivos As temperaturas médias anuais se situam em tor­
resultou em relevo com predomínio de morros e de no de 20-21 graus centígrados (a média das máxi­
serras restritas. Já na Depressão Periférica, com mas e das mínimas é 20 e 8 graus centígrados,
seus sedimentos paleozoicos, predomina o relevo respectivamente). De outubro a março, a precipi­
colinoso, com altitudes que variam entre 550 e tação marca 81 % do total anual, que é em tom o
600m. São freqüentes os sedimentos aluvionares de 1.300m m . O mês m ais ch uvoso é ja n e iro
de formação recente, de idade quaternária, consti­ (243mm em média) e a maior estiagem verifica-se
tuídos por aluviões em geral com granulometria em julho, com 19mm em média. Os municípios de
variável. Formam expressivos depósitos junto às Moji-Guaçu, M ogi-M irim e Itapira estão incluí­
calhas ou nos terraços dos principais elementos da dos no domínio morfoclimático do Planalto A tlân­
coleção hídrica. As lagoas e os brejos são freqüen­ tico, caracterizando-se pela elevada umidade e plu­
tes. viosidade, fatores que proporcionam condições de
O local escolhido para o barramento se situa intemperismo muito intenso e perenidade na dre­
em terrenos cristalinos do Planalto Atlântico. A área nagem, implicando no predomínio da pedogênese
inundada é constituída por duas feições de relevo: sobre a morfogênese.
planícies aluviais (várzeas) e colinas médias a am­ A vegetação da bacia do Rio M oji-Guaçu era
plas. As várzeas foram as mais atingidas, perfazen­ originalmente constituída pela floresta latifoliada
do bem mais da metade da extensão total. São terre­ tropical semidecídua (domínio da M ata Atlântica).
nos baixos, planos, anteriormente sujeitos a inun­ O desenvolvimento de atividades agropecuárias e
dações periódicas, que deram origem a solos aluviais mineratórias promoveu uma degradação intensa.
e hidromórficos. Nas áreas colinares predominam Hoje perm anecem algumas extensões de matas
depósitos coluviais e solos podzólicos vermelho- ciliares, além de manchas locais de vegetação de
amarelos. várzea e de banhados.
A região apresenta clima do tipo Cwa (Kõp-
pen), descrito como mesotérmico com inverno seco. * * *

81
MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência daPCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

A partir do exposto, são colocadas algumas põe sobre os monumentos arqueológicos e pré-his­
questões a respeito da ocupação pré-histórica da tóricos, inspirada nas idéias preservacionistas de
área de influência da PCH Moji-Guaçu. A coloca­ Paulo Duarte. Este diploma, além de definir alguns
ção de questões nesta fase de apresentação de re­ conceitos básicos, delineia as competências institu­
sultados (o normal é que elas apareçam no projeto cionais relativas à pesquisa de sítios arqueológicos,
inicial) tom a-se pertinente na medida em que al­ sistematizando um esquema de autorizações e co­
guns problemas permanecem. De fato, o desenvol­ municações prévias ao órgão federal competente,
vimento inicial da pesquisa apenas fomentou a hoje o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
definição de questões sucessivas. Entende-se que Nacional - IPHAN. Todavia, as tentativas de regu­
foi focalizada apenas um a pequena porção de um lamentação desta lei se resumiram na edição de uma
território amplo, intensamente percorrido e ocupa­ norma infra-legal, a Portaria n. 07/87, da antiga
do pelos indígenas pré-históricos. Certamente, a SPHAN. Com algumas lacunas conceituais no ní­
definição do “m icro-território” da Cachoeira de vel da atuação institucional (talvez pelo fato de se
Cima partiu de parâmetros bem atuais, qual seja, preocupar demasiadamente com a então emergente
o “fator de risco” (entenda-se empreendimento) ou arqueologia “de contrato”) apresenta, contudo, este
da pesquisa realizada anteriormente. Neste está­ mérito imbatível: foi a primeira (e até agora única)
gio pergunta-se: o “território” da Cachoeira de norma a regulamentar a lei federal, adequando-a a
Cima é, de fato, importante enquanto am ostra sig­ situações e terminologia mais atuais.
nificativa para a compreensão do povoamento pré- A promulgação da Constituição de 1988 trou­
histórico regional? A situação se repete nos de­ xe novidades com relação ao patrimônio arqueo­
mais desníveis do leito do Rio M oji-Guaçu? Exis­ lógico, provocando a necessidade de se repensar
tem relações possíveis entre o estabelecimento das seu estatuto frente ao federalismo cooperativo ins­
aldeias e as piracemas de peixes migratórios? Por tituído pela Carta Magna. Enumerados dentre os
que a quase ausência de artefatos líticos lascados bens da União (Art. 20, X, CF), os sítios arqueo­
nos acervos formados a partir dos materiais prove­ lógicos e pré-históricos têm sua proteção definida
nientes das aldeias ceramistas? A propósito, por no âmbito das competências comuns da União, dos
que a pequena expressão de sítios de caçadores- Estados, do Distrito Federal e do M unicípios (Art.
coletores que lascavam pedra? Estas e outras per­ 23, III, CF).
guntas poderão ser respondidas de modo satisfa­ Assim, apesar de a clara lição constitucional
tório somente a partir da intensificação dos levan­ determinar que os sítios arqueológicos são bens
tamentos em toda a bacia do Rio Moji-Guaçu. da União, o diploma jurídico máximo também fi­
xou uma gestão participativa dos entes federados
nos assuntos de sua proteção. Muitas vezes, po­
O salvam ento arqueológico rém, os limites entre as competências comuns da
União, dos Estados e dos M unicípios - isto é, onde
Legislação aplicável termina uma e começa outra e, mesmo, a existên­
cia de uma faixa de superposição - é assunto que
A legislação brasileira que normatiza as coisas pode alçar níveis de controvérsia a serem resolvi­
do patrimônio cultural, inclusive o arqueológico, é dos por instrumentos jurídicos menores. O fato é
relativamente antiga, datando da terceira década que a promulgação de uma constituição explicita­
deste século. De fato, o Decreto-Lei n. 25, de 30 de mente “municipalista” e “ambientalista” deu nova
novembro de 1937, define o patrimônio histórico e ordem ao federalismo brasileiro. Pela primeira vez,
artístico nacional: os governos locais - Municípios - são explicitados
Art. Io. - Constitui patrim ônio histórico e artístico como entes federados (Art. I o, caput, CF).
nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes No caso da matéria ambiental, o Cap. VI, com
no p aís e cuja conservação seja de interesse público, quer seu Art. 225, concretiza, talvez, a mais com pleta
p o r sua vinculação aos fatos m em oráveis da H istória do menção à preservação ambiental dentre as consti­
Brasil, quer p o r seu excepcional valor arqueológico ou
tuições da comunidade planetária. Nesse contex­
etnográfico, bibliográfico ou artístico.
to, o patrimônio arqueológico, enquanto evidência
Um excepcional avanço foi a edição da Lei concreta do ambiente sócio-econômico, tem sido
Federal n. 3.924, de 26 de julho de 1961, que dis­ tratado no rol das preocupações ambientais pelos

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instrumentos legais menores. E não poderia deixar responsabilidades, os critérios básicos e as dire­
de ser, posto que a própria Carta da República o trizes gerais para uso e implementação da avali­
associa sempre à envergadura am pla das coisas ação de impacto am biental como um dos instru­
ambientais e culturais vinculadas ao conceito de mentos da Política Nacional do M eio Am biente”
patrimônio. Senão observe-se: e a Resolução 006, de 16 de setembro de 1987, que
dispõe sobre o “licenciamento ambiental de obras
Art. 20 - São bens da União:
de grande porte, especialmente do setor de ope­
ração de energia elétrica”, ambas do CONAMA.
X - a s cavidades naturais subterrâneas e os sítios a r­
O Art. 6o, da primeira, determ ina que o estu­
queológicos e pré-históricos;
do de impacto ambiental desenvolverá, no m íni­
mo, diagnóstico am biental da área de influência
Art. 23 - E com petência comum da União, dos E sta­ do projeto, completa descrição e análise dos re­
dos, do D istrito Federal e dos Municípios:
cursos am bientais e suas interações, tal como
existem de modo a caracterizar a situação am ­
III - proteger os documentos, as obras e outros bens biental da área, antes da implantação do projeto,
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as considerando o meio físico, o meio biótico e os
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
ecossistemas naturais, além do meio sócio-econô-
mico. À arqueologia interessa o meio sócio-econô-
Art. 216 - Constituem patrim ônio cultural brasileiro mico, definido na resolução como ‘‘o uso e a ocu­
os bens de natureza m aterial e imaterial, tomados indivi­
pação do solo, os usos da água e a sócio-econo-
dualmente ou em conjunto, portadores de referência à iden­
mia, destacando os sítios e os m onumentos ar­
tidade, à ação, à memória dos diferentes grupos form ado­
res da sociedade brasileira, nos quais se incluem: queológicos, históricos e culturais da com unida­
de, as relações de dependência entre a sociedade
local, os recursos ambientais e a potencial utili­
V - os conjuntos urbanos e os sítios de valor históri­
co, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
zação futura desses recursos ”,
ecológico e científico.
O empreendedor mandará elaborar, por suas
próprias expensas, programas de mitigação e de
monitoramento dos impactos ambientais negativos.
A legislação ambiental brasileira que, dentre D aí a obrigatoriedade da pesquisa de salvamento
outros instrumentos, passou a contar com um a Po­ arqueológico para o licenciamento de uma usina
lítica Nacional do M eio Ambiente (Lei Federal hidrelétrica, consolidando os preceitos estabeleci­
6.938/81), exige o licenciam ento ambiental dos dos pela Lei Federal n. 3.924/61.
em preendimentos potencialmente lesivos ao meio Como frisado anteriormente, o porte da PCH
ambiente incluindo, nesse caso, as usinas hidrelé­ M oji-Guaçu a liberou do licenciamento ambiental
tricas com potência superior a 10 megawatts. O e, consequentemente, da elaboração de EIA-RIMA.
CONAMA - Conselho Nacional do Meio A m bi­ Todavia, como o patrimônio arqueológico é regido
ente - emitiu uma série de normas relativas à elabo­ por legislação específica, tom ou-se obrigatória a
ração e aprovação de estudos de impacto ambiental elaboração e a implementação de projeto de salva­
(EIAs) e relatórios de impacto ambiental (RIMAs), mento arqueológico, exatamente nos termos da re­
instrumentos necessários para o licenciamento de solução 001/86 do CONAMA.
empreendimentos dessa natureza. No caso do Esta­
do de São Paulo, o órgão licenciador ambiental é a M etodologia de pesquisa
Secretaria de Estado do Meio Ambiente, assesso­
rada pelo CO N SEM A - C onselho E stadual do Para a elaboração e implementação do Progra­
M eio A m biente (o órgão federal com petente, ma de Salvamento Arqueológico da PCH Moji-
IBAMA, age em caráter supletivo; os órgãos m u­ Guaçu - ARQ.SALV.MJG - foi definida m eto­
nicipais de meio ambiente, quando existem, asses­ dologia baseada em alguns princípios operacionais,
soram o órgão estadual nos assuntos de natureza acadêmicos e científicos que têm norteado os sub-
local). programas de salvamento arqueológico do Projeto
São dignas de nota a Resolução 001, de 23 de Paranapanema. Este projeto, desenvolvido no tre­
janeiro de 1986, que “estabelece as definições, as cho paulista da bacia do Rio Paranapanem a, fo r­

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neceu os parâmetros necessários para o desenvol­ favoráveis para a localização de sítios arqueo­
vimento das pesquisas realizadas na bacia do Moji- lógicos.
Guaçu. Os princípios são os seguintes: b) Levantamento, quando se restringe a
ação ao campo do conhecimento arqueológi­
a) Elaboração e desenvolvimento de uma co. Sítios são localizados e plotados nas pe­
metodologia específica para a modalidade, di­ ças cartográficas disponíveis ou produzidas.
ferenciada da maior parte das ações de salva­ Não são efetuadas intervenções de porte. Ape­
mento arqueológico vigentes até o momento nas coletas comprobatorias de material arqueo­
em outros projetos desenvolvidos no país. lógico são feitas para testemunhar a existên­
Encarada como atividade especial, a pesquisa cia dos sítios detectados.
de Moji-Guaçu assumiu os mesmos níveis de c) Prospecção que, de fato, é uma peque­
aprofundamento e detalhamento da pesquisa na escavação para a aquisição de amostras sis­
acadêmica rotineira. temáticas que permitam uma avaliação do po­
b) Produção de trabalhos científicos de tencial dos sítios a serem escavados. Confor­
conteúdo adequado e suficiente para o enca­ me a situação diagnosticada, a prospecção
minhamento de artigos e de trabalhos acadê­ pode ser uma finalidade em si, isto é, ela esgota
micos (teses e dissertações) de responsabili­ o potencial de respostas de um sítio carente
dade do pessoal da equipe evitando-se, ao de informações mais profundas ou detalhadas.
máximo, a mera produção de relatórios des­ De qualquer modo, a prospecção tem a vanta­
critivos, destinados às necessidades formais gem de proporcionar um rol de sítios com di­
de licenciamento da obra. ferentes graus de importância, o que permite
c) Envolvimento das municipalidades e uma seleção bem abalizada para a implemen­
de representantes da comunidade local, com o tação da etapa final, a escavação.
propósito de fomentar o federalismo coopera­ d) Escavação, que é a intervenção por ex­
tivo preconizado pela norma constitucional. celência da praxis arqueológica. Possui iden­
A regionalização das pesquisas de salvamen­ tidade própria, individualizada por profunda
to arqueológico exige a diversificação das linhas especialização metodológica calcada em téc­
de ação pela aquisição e adaptação de novos mode­ nicas coerentes. Rotineiramente, a escavação
los. O desenvolvimento de pesquisas geoarqueo- de sítios do Projeto Paranapanema, como tam­
lógicas, de inspiração anglo-americana, tem refor­ bém no caso do programa ARQ.SALV.MJG,
çado a expansão das ações regionais por meio do tem seguido a escola francesa: enquanto o
estabelecimento de atividades de reconhecimento método das superfícies amplas proporciona o
de área e de levantamento arqueológico. Assim, o levantamento de aldeias e de acampamentos
salvamento arqueológico demarca layers de atua­ pela correta aplicação de técnicas apropriadas
ção, definindo metodologia baseada em estágios como a limpeza ampla e o levantamento plani-
de pesquisa. A estrutura organizacional das abor­ altimétrico (materializado pelo estabelecimen­
dagens se liga às etapas de gabinete, campo e labo­ to de coordenadas locais, com a amarração das
ratório. O trabalho de campo é realizado a partir super-estruturas), o método etnográfico, por
do mecanismo de estágios, que se concretiza pelo meio de decapagens em micro-níveis naturais,
cumprimento das seguintes tarefas: proporciona a leitura do contexto dos m ateri­
ais, chegando a permitir o entendim ento do
a) Reconhecimento de área, quando são cotidiano de grupos que viveram há milhares
realizadas missões de reconhecimento do ter­ de anos.
reno, a partir das informações obtidas por meio
No caso dos empreendimentos hidrelétricos,
da análise documental (mapas, fotos aéreas e
as ações de salvamento arqueológico devem con­
textos especializados). Nessa etapa, potencia-
siderar os universos territoriais definidos nos EIAs-
liza-se ao máximo a questão da multidisci-
RIMAs, quais sejam:
plinaridade e da interdisciplinaridade, com a
efetivação do questionamento indireto no cam­ a) A área de influência indireta do meio
po das disciplinas afins da arqueologia. Tam­ físico-biótico, que corresponde à bacia de con­
bém são demarcadas as áreas potencialmente tribuição para o futuro reservatório, ou seja, o

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território drenado por todos os tributários que arqueológico, cujas pesquisas haviam sido reali­
deságuam no trecho inundado pela formação zadas entre 1979 e 1980. Com o propósito de libe­
do reservatório. Concretiza uma unidade bali­ rar a área para a consolidação do canteiro, foram
zada predominantemente por fatores da geo­ feitas novas sondagens, com a coleta de materiais
grafia física. remanescentes da pesquisa anterior, com pletando
b) A área de influência indireta do meio só- o ciclo relativo ao sítio arqueológico.
cio-econômico, que é constituída pelos territórios Concomitantemente, foram ampliados os le­
(in totum) dos municípios afetados. Neste caso, o vantamentos no entorno de transição da área da
universo tem conotação geopolítica. Cachoeira de Cima, tendo sido confirm ada a loca­
c) A área de influência direta, que é aquela lização do Sítio Franco de Campos, na margem
que sofre a ação direta das obras (canteiros e bacia esquerda (a ocorrência havia sido previam ente
de inundação). comunicada pelo Sr. José Edson Franco de Godoy).
Posteriormente, detectou-se também a presença do
Os estágios de campo têm a ver com a dem ar­
Sítio da Barragem, com pletando o quadro de as­
cação dessas áreas. O reconhecimento e o levanta­
sentamentos pré-históricos do entorno da Cachoei­
mento abrangem tanto as áreas de influência indi­
ra de Cima.
reta, como a de influência direta. A prospecção e a
Iniciou-se também o reconhecimento amplo
escavação se restringem à terceira, em face das
da área de influência indireta do empreendimento,
prioridades da pesquisa, ditadas pela sua condi­
principalmente aquela representada pelos territó­
ção especial.
rios dos municípios de Moji-Guaçu, Moji-M irim
No caso da PCH Moji-Guaçu, considerou-se
e Itapira. Dois novos sítios foram detectados no
como área de influência indireta do meio físico-
M unicípio de M oji-Guaçu (ambos no próprio vale
biótico toda a área de drenagem tributária do re­
do rio): o Sítio Ponte Preta e o Sítio Jardim Igaçaba
servatório, cujos canais principais são os rios Moji-
(Fig. MJG 2).
Guaçu e do Peixe. No caso da área de influência
O Sítio Ponte Preta (PPT-815.338) foi encontra­
indireta do meio sócio-econômico, foram conside­
do a partir de informações obtidas pelo Sr. Franco
rados os territórios dos municípios de Moji-Guaçu,
de Godoy. Situa-se no Distrito de Martinho Prado
M oji-M irim e Itapira. Como área de influência di­
Júnior, a poucos metros da calha do rio. Suas coor­
reta, foram considerados todos os terrenos sujeitos
denadas geográficas são 22° 17’ 10” S e 47o 07’
à intervenção direta do em preendim ento, quais
12” W. As coordenadas UTM são N=7.533.875m e
sejam, os canteiros de obras (entorno da Cachoei­
E=281.338m. A altitude local é 598m e as ocorrên­
ra de C im a) e a faixa situada abaixo da cota
cias arqueológicas se situam a 23 metros sobre o
598,5m, inundada pela formação do lago. Levou-
nível de base local, representado pelo Rio Moji-
se em conta também, em caráter excepcional, uma
Guaçu. A litoestratigrafia é representada por sedi­
faixa de transição entre as áreas de influência in­
mentos aluvionais do quaternário continental. O re­
direta e direta, a saber: o entorno de transição da
levo pode ser caracterizado como um terraço margi­
Cachoeira de Cima e a faixa de depleção do futuro
nal bastante extenso. A antiga cobertura florestal
lago, balizada pelas cotas de 598,5m (nível m áxi­
foi comprometida pela implantação do núcleo ur­
mo operacional) e 602m (nível máximo m áxim o-
bano do distrito e pela expansão da monocultura de
rum).
cana-de-açúcar.
Os vestígios arqueológicos, espalhados em
superfície, são relativamente raros e basicamente
Levantam entos sistem áticos
constituídos de fragmentos de cerâmica. Não foi
possível a observação de estruturas arqueológicas
Os trabalhos relativos ao program a ARQ. in situ, devido ao elevado grau de degradação do
SALV.MJG foram iniciados em 1992, com a reto­ local. De acordo com o esquema de classes de con­
mada das escavações do Sítio Arqueológico Fran­ servação de sítios, elaborado para os projetos de
co de Godoy. Por esta ocasião, a CESP já havia salvamento das bacias do Paranapanema e do Moji-
im plantado o canteiro de obras da PCH M oji- Guaçu, o Sítio Ponte Preta pode ser inserido na
Guaçu e iniciava a construção da barragem. Como classe D (sítio mal conservado), com a seguinte
previsto, o canteiro de obras afetaria parte do sítio descrição:

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“Está muito perturbado por retrabalhamento local de Sítio Jardim Igaçaba (JIG-059.656). Suas coorde­
caráter natural ou antrópico. A perturbação intensa compro­ nadas geográficas são 22° 21’ 16” S e 46° 57’ 34”
mete, em grau elevado, tanto a estratificação com o a distri­ W. As coordenadas UTM são N =7.526.566m e
buição horizontal das estruturas arqueológicas.”
E=305.927m. A altitude registrada é 6 3 lm . Os
Todavia, a notificação do Sítio Ponte Preta vestígios da aldeia ficavam a 50m sobre o nível de
corrobora o panorama identificado na Cachoeira base local, representado pelo Rio Moji-Guaçu. A
de Cima. O assentamento, do tipo aldeia ceramista, topomorfologia local é caracterizada por vertente
situa-se junto a uma seção do canal bastante aci­ de colina ampla, com depósitos coluviais.
dentada: a Cachoeira de Baixo ou Itupava-M irim Verifica-se novamente, neste caso, similarida­
fica 3km a montante. Entre a cachoeira e o local de com relação à área arqueológica da Cachoeira de
do sítio se desenvolve expressiva área de várzea. Cima. De fato, o assentamento correspondente ao
Portanto, verifica-se uma situação de similaridade Sítio Jardim Igaçaba também se fixou junto a um
entre as ocupações do entorno da Cachoeira de ressalto do leito do rio, conhecido como Cachoeira
Cima e a aldeia correspondente ao Sítio Ponte Pre­ do Meio. Este acidente hidrográfico, todavia, não
ta. mais existe: com o propósito de aliviar o problema
Outra ocorrência notificada foi a do Sítio Jar­ das enchentes que constantemente afetavam o cen­
dim Igaçaba. Este sítio arqueológico, também uma tro urbano de Moji-Guaçu, foram executadas obras
aldeia ceramista, localizava-se na área de expan­ de desobstrução do canal. Assim, o estreitamento e
são urbana da cidade de Moji-Guaçu. Foi destruído a ilha que antigamente existiam no local foram di­
pela implantação de um loteamento que, ironica­ namitados para aumentar a vazão naquele trecho.
mente, foi batizado com o nome da evidência ar­ Os levantamentos sistemáticos incluíram pon­
queológica mais expressiva - a “igaçaba” - nome tos dispersos na área a ser inundada pelo reserva­
pelo qual são conhecidas localmente as urnas de tório da PCH Moji-Guaçu (Fig. MJG 4). As coor­
cerâmica produzidas pelos indígenas pré-históri­ denadas UTM e as p rin cip ais características
cos. Infelizmente, a municipalidade não agiu de ambientais dos locais verificados podem ser ob­
modo a preservar as evidências, interrompendo servadas no quadro adiante.
temporariamente as obras para que o salvamento Além dos locais de números 1, 2, 3 (corres­
arqueológico pudesse ser encam inhado. Desse pondentes aos sítios FGD, FCP e BRG), é digno
modo, a comunidade local teve parte importante de nota o local 6, também considerado sítio arqueo­
de seu patrimônio cultural irreversivelmente perdi­ lógico. Trata-se do Sítio Porto de A reia (PAR-
do. A visita técnica feita em 1992 teve por objeti­ 072.326), que apresentou uma situação sui generis:
vo coletar informações junto à população do bair­ uma draga coletora de areia acabou por trazer à
ro e demarcar o local por onde se espalhavam as margem alguns fragmentos de cerâmica arqueoló­
evidências. De acordo com os dados obtidos, ava- gica, presum ivelm ente do período pós-contato.
liou-se que se tratava, seguramente, dos remanes­ Todavia, as verificações in situ não detectaram a
centes de um aldeia ceramista pré-histórica. As es­ presença de materiais similares em superfície ou
truturas in situ foram destruídas pelas operações em estratigrafía. Possivelmente se trata de um sí­
de terraplenagem. De acordo com os informantes, tio pouco denso, situado a montante, destruído pela
várias um as foram “estouradas” pelas máquinas. ação da corrente fluvial. Tal fato parece ser fre­
Do material arqueológico, coletado por curiosos, qüente na calha do Moji-Guaçu, o que também é
não se tem mais notícia. Quanto à conservação, o comprovado pela situação do Sítio Franco de Cam­
Sítio Jardim Igaçaba está classificado na classe E pos: ali uma parte significativa do sítio arqueoló­
(sítio destruído), assim descrita: gico foi erodida e os fragmentos de cerâmica (às
“Está totalmente alterado por intenso retrabalhamento
vezes de vasilhas grandes) se depositam no leito
natural ou antrópico. A estratificação e a distribuição hori­ pedregoso do rio.
zontal das estruturas arqueológicas estão irremediavelmente À exceção dos pontos notificados como sítios
comprometidas. O sítio é diagnosticado apenas pela presença arqueológicos, os demais não forneceram nenhu­
caótica de evidências arqueológicas ou por informações fide­ ma evidência de materiais com probatorios de an­
dignas.” tigas ocupações indígenas. É interessante salien­
Mesmo assim, o local de achamento dos re­ tar que no trecho inundado não havia nenhum aci­
manescentes arqueológicos foi notificado como dente do leito digno de nota, pois a maior parte

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dele era constituída por banhados e lagoas, algu­ N a Fig. M JG-CACH poderão ser visualizadas
mas resultantes do seccionamento de antigos mean­ as ocorrências. A planta apresenta os rem anescen­
dros, principalmente no Rio do Peixe. tes arqueológicos sobre base geológica, cruzamento
As razões presumíveis ligadas à ausência de que permite observações sobre a inserção topomor-
sítios arqueológicos no trecho im ediatam ente a fológica dos sítios, bem com o um panoram a gené­
montante da barragem da PCH M oji-Guaçu serão rico das litologias locais que forneceram as m até­
expostas e discutidas posteriorm ente, juntam ente rias-primas para a fabricação de artefatos cerâm i­
com as demais conclusões e sugestões para enca­ cos. Por outro lado, tem-se uma visão planim étrica
minhamentos futuros. da cachoeira e das lagoas marginais, fato que pro­
voca algumas deduções a propósito dos fatores am­
bientais ligados à subsistência dos grupos indíge­
A área arqueológica nas como, por exemplo, os hábitos dos peixes m i­
da Cachoeira de Cima gratórios (o desnível do leito, além de ser obstácu­
lo a ser vencido na piracema, provoca a turbulên­
A área arqueológica da Cachoeira de Cima cia necessária para estim ular a desova; as lagoas
constituiu o principal núcleo das operações de salva­ são locais apropriados para a procriação dos pei­
mento arqueológico, quer pela densidade ou pela xes).
relevância dos materiais arqueológicos ali encon­ As estruturas arqueológicas com ponentes das
trados. antigas aldeias se distribuem harm ónicam ente,
As pesquisas indicaram a presença de três ocupando patamares topográficos sobre as corre­
núcleos principais, cada qual constituindo uma deiras. Na margem direita, o Sítio Franco de Godoy
unidade individualizada, caracterizando aldeias espalha-se por uma extensão de 45.000m 2. O Sítio
pré-históricas cronologicam ente situadas em tor­ Barragem teve sua extensão avaliada em 35.000m2.
no de 1.500 anos antes do presente. O Franco de Campos, ainda não mapeado na sua

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PCH MOGI-GUAÇU
PONTOS DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO
canteiro de obras, área de formação do reservatório e
faixa de segurança situada entre as curvas de enchimento do
___________ . máximo normal e excepcional______________
no. nome coordenadas UTM descrição
1 Franco de Godoy N =7.524.270m E=304.450m colina baixa a média rMG
2 Franco de Campos N=7.524.283m E=304.254m terraço baixo
rMG
3 Barragem N=7.523.700m E=304.200m colina média a alta rMG
4 — N =7.524.150m E=304.855m terraço baixo
rMG
5 — N =7.524.170m E=306.800m terraço alto
rMG
6 Porto de Areia N =7.523.600m E=307.260m terraço baixo
rMG
7 — N =7.424.690m E=307.600m terraço alto
rMG
8 — N=7.425.390m E=307.790m terraço baixo
rMG
9 — N =7.526.650m E=308.640m terraço baixo
rMG
10 — N=7.527.900m E=310.000m colina baixa a média rMG
11 — N=7.527.810m E=310.000m terraço alto
rMG
12 — N=7.526.300m E=308.850m terraço alto
rMG
13 — ' N =7.524.750m E=308.500m terraço baixo
rPX
14 — N=7.521.950m E=310.000m terraço baixo
rPX
15 — N =7.521.000m E=310.900m terraço alto
rPX
16 — N=7.522.050m E=311.500m terraço alto
rPX
17 — N=7.523.050m E=312.100m colina baixa a média rPX
18 — N=7.523.000m E=312.300m colina baixa a média rPX
rMG=Rio Moji-Guaçu rPX=Rio do Peixe rPN=Ribeirão da Penha

totalidade, apresenta um espalhamento máximo de por arqueólogos do Museu Paulista da USP. Na


vestígios em superfície ao redor de 15.000m2. Este ocasião, foram descobertas e mapeadas duas es­
sítio, situado na margem esquerda, é topografica- truturas habitacionais (remanescentes arqueológi­
mente inferior, situando-se entre as cotas 588 e cos de antigas casas, fortemente m arcadas pela
594m. Franco de Godoy, na margem direita, ocu­ presença de solos antropogênicos) e quatro estru­
pa posição topograficamente intermediária, entre turas de combustão (resíduos de carvão e cinzas
as cotas de 596 e 610m. O Sítio da Barragem, na resultantes de antigas fogueiras). Tais estruturas
margem esquerda, ocupa uma faixa topográfica si­ foram evidenciadas pela aplicação dos métodos de
tuada entre 605 e 620m. superfícies amplas (limpeza e quadriculam ento da
área) e etnográfico (decapagens nos solos antro­
Sítio Franco de Godoy pogênicos das habitações, orientadas por cortes
estratigráficos e trincheiras).
O Sítio Franco de Godoy, cadastrado como A partir de 1992, retomaram-se as escavações
FGD-044.242, fora escavado entre 1979 e 1980 do Sítio Franco de Godoy, agora sob coordenação

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do autor. O levantamento do local foi ampliado intervenções forneceram subsídios essenciais que
descobrindo-se, além de outras concentrações de consolidaram a perspectiva inicial relativa à ne­
fragmentos de cerámica, urna nova estrutura habi­ cessidade de escavações posteriores.
tacional (H3). D esta vez foram abertas várias son­ Nas campanhas foram detectadas duas estru­
dagens em pontos aleatórios, fato que proporcio­ turas habitacionais por meio da efetivação de son­
nou a varredura do sítio em toda a sua extensão. dagens exploratórias de sub-superfície. Franco de
Por outro lado, a partir de informações precisas Campos representa, juntam ente com Franco de
obtidas junto ao Sr. Franco de Godoy, foram mapea­ Godoy, o melhor potencial de respostas no nível
das as posições originais de algumas um as anteri­ da interpretação arqueológica.
ormente recuperadas por ele. Fato importante foi a Situado um frente ao outro, porém separados
evidenciação e a recuperação da estrutura funerá­ pelo rio, ambos têm uma situação topomorfológica
ria U5, hoje em depósito no Museu de Arqueolo­ bastante diferente. Enquanto a aldeia FGD se im­
gia e Etnologia da USP. plantou no flanco suave de uma colina (com seus
A planta apresentada na Fig. MJG-FGD 1 mos­ remanescentes soterrados por colúvios) a outra,
tra a situação das evidências detectadas em 1979- FCP, assentou-se praticam ente ju n to ao M oji-
80, bem como as demais, descobertas na retomada Guaçu, em um amplo terraço, hoje artificialmente
das escavações a partir de 1992. O quadro apre­ transformado em “ilha”, pelo canal da usina velha
sentado em seguida coloca as coordenadas UTM (Fig. M JG-FCP 1). Aliás, este em preendim ento
das estruturas funerárias e das sondagens efetuadas. antigo, da primeira metade do século, deve ter afe­
tado uma pequena parcela das estruturas arqueo­
Sítio Franco de Campos lógicas.
O fato de estar situado em um terraço junto ao
O Sítio Franco de Campos, cadastrado como rio faz com que as estruturas arqueológicas do FCP
FCP-042.242, foi prospectado em 1992 e 1994. As estejam sujeitas, com grande frequência, à dinâ­

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mica erosiva e deposicional do Moji-Guaçu. De maior parte do sítio está protegida por um a exten­
fato, são inúmeros os fragmentos de cerâmica de­ sa mancha de floresta residual que permanece na
positados nas pedras do leito. Sucessivos desbar- “ilha” . Assim, pode-se dizer que será possível, na
rancamentos do terraço ocasionaram tal situação. continuidade das intervenções, recuperar grande
Todavia, há uma contrapartida digna de nota: a parte das estruturas arqueológicas in loco.

SÍTIO FRANCO DE GODOY


LEVANTAMENTOS EFETUADOS ENTRE 1992 E 1994

sondagem / estrutura coordenada N coordenada E

sondagem S1 7.524.241,2485 m 304.410,2171 m


S2 7.524.234,6812 m 304.444,2498 m
S3 7.524.230,8843 m 304.464,1095 m
S5 7.524.303,1225 m 304.481,9178 m
S6 7.524.308,0471 m 304.481,2484 m
S7 7.524.311,4476 m 304.484,5987 m
S8 7.524.309,0248 m 304.484,3134 m
S9 7.524.045,3200 m 304.493,4950 m
S 10+ H 3 7.524.047,4096 m 304.506,3745 m
S ll 7.524.248,3790 m 304.684,9760 m
U4 7.524.274,9265 m 304.470,4735 m
U5 7.524.285,7343 m 304.461,2618 m
U6 7.524.244,6048 m 304.468,8574 m

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S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

O quadro apresentado em seguida demonstra arqueológicas já estava parcialmente comprome­


a localização das sondagens efetuadas e das estru­ tido por movimentos de terra para a preparação da
turas já evidenciadas. ombreira esquerda da barragem e pelo processo de
urbanização que já atinge seu entorno. Todavia,
Sítio Barragem parte do sítio está preservada pela presença de uma
mancha de mata residual.
O Sítio Barragem , cadastrado com o BRG- O Sítio Barragem apresentou evidências de cin­
042.237, foi descoberto em 1994 e, juntamente com co estruturas habitacionais, representadas por mai­
os dois anteriores, com põe interessante quadro de or densidade de fragmentos de cerâmica associados
assentamento de populações ceramistas pré-histó­ a solos antropogênicos. As técnicas arqueológicas
ricas. O local onde foram detectadas as evidências utilizadas foram a varredura superficial, com o apro-

SÍTIO FRANCO DE CAMPOS


LEVANTAMENTOS EFETUADOS EM 1992 E 1994

sondagem / estrutura coordenada N coordenada E

sondagem Sl+Hl 7.524.283,796 m 304.254,048 m


S2 7.524.261,144 m 304.279,638 m
S3+H2 7.524.266,276 m 304.288,468 m
S4 7.524.230,672 m 304.253,964 m
S5 7.524.242,670 m 304.260.003 m
S6 7.524.260,345 m 304.275,435 m

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veitamento da raspagem do solo feita pelas má­ classe C (sítio razoavelmente conservado) é assim
quinas responsáveis pela terraplenagem, e a aber­ descrita:
tura de sondagens para a verificação subsuperficial. “Parte das estruturas arqueológicas é passível de recu­
As estruturas e os pontos de sondagem foram peração in situ. A camada superficial apresenta alterações sig­
mapeados para registro das coletas (Fig. MJG- nificativas. As camadas mais profundas são afetadas por sul­
BRG 1). A escavação do Sítio Barragem será viá­ cos de erosão, pela ação de implementos agrícolas ou outras
vel no trecho inserido no interior da mata vizinha. atividades antrópicas.”

A classe D (sítio mal conservado) é assim des­


* * * crita:

“Está muito perturbado por retrabalhamento local de


Neste ponto, é colocada uma apreciação con­ caráter natural ou antrópico. A perturbação intensa compro­
junta do estado de conservação dos três sítios da mete, em grau elevado, tanto a estratificação, como a distri­
área arqueológica da Cachoeira de Cima. buição horizontal das estruturas arqueológicas.”
O Sítio Franco de Godoy se apresentou ini­
O Sítio Franco de Campos pode ser classifica­
cialmente comprometido pela implantação de pro­
do na classe B (sítio bem conservado), apesar de
jeto urbanístico (chácaras de recreio). Foi nesse mo­
algum retrabalhamento efetuado pela ação do Moji-
mento que a primeira etapa de pesquisas foi reali­
Guaçu. Esta classe é assim descrita:
zada. Em 1992, quando da retomada das escava­
ções, havia a iminência de profundas intervenções A maior parte das estruturas arqueológicas está
para a implantação do canteiro de obras da PCH. inalterada, especialmente nas camadas subsuperficiais. A ca­
mada superficial tende a apresentar um grau mais elevado de
O grau de com prom etim ento das estruturas re­
perturbação.”
manescentes era mais visível. Resumindo, pode-
se afirmar que nos dois momentos, FGD poderia Finalmente, o Sítio Barragem pode ser inseri­
ser inserido nas classes C e D, respectivamente. A do na classe D (sítio mal conservado). Esta situa-

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ção poderá, todavia, ser alterada para a classe C se vermelho (secundário), com pintura em vermelho,
a parte protegida pela mata dem onstrar um poten­ preto e branco.
cial mais interessante de respostas satisfatórias. A uma 5 (estrutura funerária U5), retirada du­
rante a campanha de 1992 (Sítio Franco de Godoy),
foi remontada e restaurada em laboratório por Luís
Os materiais arqueológicos Carlos Borges, sob orientação de Augusto Froehlich,
então chefe da Seção de Conservação e Restauro do
Os materiais arqueológicos coletados durante MAE-USP. A uma, possivelmente infantil, consti­
as pesquisas são basicamente de dois tipos: vasi­ tui um belo exemplo de artefato cerâmico comple­
lhas e fragmentos de cerâmica e ossos humanos. A to, compondo um conjunto de corpo e tampa. Apre­
cerâmica foi estudada por Márcia Angelina Alves sentou-se lisa e com pintura (do bojo até o pesco­
(campanha de 1992) e a proveniente das demais ço). A tampa, corrugada, foi recuperada parcialmen­
cam panhas está sendo estudada por E rika M. te. O levantamento métrico do artefato pode ser ob­
Robrahn González. O material ósseo foi estudado servado no quadro seguinte.
por Silvia Cristina Piedade. A seguir, é apresentado o quadro que sintetiza
Segundo Márcia A. Alves (1993), que já estu­ a procedência da cerâmica coletada em 1992.
dara a cerámica proveniente das escavações de 1979 As campanhas posteriores provocaram a cole­
e 80 (Alves, 1988), a cerâmica coletada em 1992 ta de novos materiais arqueológicos, especialmente
representa um conjunto complexo e diverso quanto fragmentos de cerâmica, nos sítios FGD, FCP, BRG
às técnicas decorativas (plástica e pintura). As téc­ e PAR. Este m aterial está sendo estudado por
nicas de montagem dos artefatos é a de roletes de González (1994). Neste ponto, apresentam-se os
argila (cerâmica acordelada). O tratamento da su­ primeiros resultados obtidos a partir da observação
perficie foi por alisamento. O conjunto estudado se dos fragmentos provenientes do Sítio Porto de Areia
refere aos sitios Franco de Godoy, Franco de Cam­ (PAR-072.236).
pos e Ponte Preta. O material consta de 34 fragmentos de vasi­
De um total de 460 objetos (459 fragmentos e lhas de cerâmica, 1 fragmento de massa de cerâmi­
um artefato completo, a urna 5), constatou-se o ca (possivelmente rejeito de matéria-prima) e 1 frag­
predom inio de elem entos lisos (291), seguidos mento de artefato cerâmico tubular. Todas as 36
daqueles com decoração plástica (88) e, por últi­ peças apresentam argila com grande quantidade de
mo, os pintados (81). Registraram-se as seguintes grãos mais grossos (areia) de espessura média a
técnicas decorativas da pasta da cerámica: por pres­ grossa (0,2 a 0,4 cm). Em raros casos, observa-se
são (tipo corrugado), por incisão (tipos ungulado e também a presença de cacos moídos como anti-
entalhado) e por pressão-inci são (tipos corrugado- plástico. As vasilhas foram confeccionadas por meio
entalhado e corrugado-ungulado). Com relação aos da técnica de roletes, largamente difundida entre os
fragmentos de cerám ica pintada, notou-se a pre­ grupos indígenas brasileiros. As peças foram aca­
sença de engobo branco (predominante) e engobo badas por meio do alisam ento das faces inter-

SÍTIO FRANCO DE GODOY


LEVANTAMENTO MÉTRICO DA URNA 5
ESTRUTURA FUNERÁRIA U5
CORPO DA URNA altura 31 cm
diâmetro da boca 42 cm
bojo carenado
base convexa
corpo liso, com
pintura
TAMPA DA URNA diâmetro 56 cm
borda lisa, direta
lábio arredondado
corpo corrugado

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ARQ.SALV.MJG
PROCEDÊNCIA DA CERÂMICA COLETADA EM 1992
estrut. / sondagem distribuição total

SÍTIO FRANCO DE GODOY


U5 (tampa) 50 corrugadas, 13 lisas 63 .
U5 (corpo) 20 pintadas, 36 lisas 56
adjacências de U5 7 pintadas, 1 lisa 8
S2 1 corrugada, 1 ungulada, 6 pintadas, 45 lisas 53
S9 2 corrugadas, 26 lisas 28
S10 20 lisas 20
SÍTIO FRANCO DE CAMPOS
SI 20corrug., lcor.-entalh., 25 pintadas, 96 lisas 142
S3 8 pintadas, 13 lisas . 21
S4 4 corrugadas, 1 cor.-ung., 9 pintadas, 24 lisas 38
superfície 3 unguladas, 1 entalhada, 5 pintadas, 2 lisas 11
SÍTIO PONTE PRETA
superfície 3 corrugadas, 1 ungulada, 14 lisas 18

na e extema, procedimento que deixou, em algu­ tupiguarani. Alguns atributos indicam, entretanto,
mas delas, uma fina camada de argila próxima à tratar-se de um material neo-brasileiro (ou de con­
superfície. As paredes apresentam espessuras vari­ tato): a presença restrita de antiplástico de caco
ando de 0,8 a 1,2 cm. A maioria dos fragmentos moído, as alças e, finalmente, os motivos decorati­
apresenta queima incompleta, identificada pela pre­ vos mais complexos, ausentes na cerâmica pré-co-
sença de núcleos escuros nas seções transversais. lonial. A grande porcentagem desses atributos na
Poucos indicam queima em ambiente redutor (com coleção indica a possibilidade de se tratar de uma
deficiência de oxigênio), resultando em fragmentos cerâmica bastante recente.
de argila totalmente negra (tanto na superfície, como O material ósseo, proveniente do Sítio Franco
na seção transversal). de Godoy, é constituído por restos esqueletais hu­
Das peças analisadas, 25 apresentam decora­ manos coletados pelo Sr. José Edson Franco de
ção plástica na superfície extema dos tipos corru­ Godoy. Com o início do programa de salvamento
gado, ungulado, escovado e vários motivos incisos. arqueológico, vislumbrou-se a possibilidade de se
Em 14 peças, entre lisas e decoradas, observa-se a estudar esse material, único até o momento. Neste
presença de alças com formato reto ou em arco. Al­ ponto são sintetizadas as principais observações
gumas apresentam decoração ungulada ou incisa. feitas por Silvia Cristina Piedade, responsável pela
Quanto à forma, foi possível reconstituir apenas 3 análise.
vasilhas, 2 com contorno infletido e 1 com contorno O material em questão deu entrada no Labora­
simples. Os formatos variam de semi-globular a tório de Arqueologia do MAE em meados de 1992,
cônico. Por fim, deve-se mencionar a presença de constando de alguns ossos e dentes colados em fel­
fragmento de artefato tubular, possivelmente parte tro verde, em uma pequena vitrine. Tal arranjo fora
de um cachimbo. idealizado pelo coletor, que forneceu algumas in­
A proveniência das peças (leito do rio), bem formações a propósito da recuperação dos ossos. As
como a forma com que se deu sua coleta, levantam umas que os continham foram retiradas inteiras,
a possibilidade de se tratar de conjunto misturado, após ter sido escavada a terra ao seu redor e aguar­
proveniente de diferentes locais ou, mesmo, de ca­ dada a secagem completa das peças. Apresentavam,
madas distintas de um mesmo sítio. Sua análise re­ na metade superior, sedimento compactado, onde
vela, entretanto, características bastante homogê­ estavam os ossos em posição vertical. Na um a 1
neas, sugerindo contar-se com um mesmo padrão estavam os ossos da estrutura funerária 1 (U l); na
tecno-morfológico. Em primeiro lugar, sem dúvida um a 2 (estrutura funerária 2 - U2), também havia
se trata de cerâmica relacionada com a tradição alguns ossos. Na um a 3 (estrutura funerária 3 - U3)

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M O R A IS , J.L. S a lv a m e n to a rq u e o ló g ic o n a á re a d e in flu e n c ia d a PCHMoji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

foram encontrados apenas dentes, os quais foram morfológica (oito molares, dois pré-molares, qua­
misturados com os das primeiras urnas. Preliminar­ tro caninos, um incisivo central inferior, um incisi­
mente, os ossos foram lavados com escova macia, vo central superior e dois incisivos laterais). Desses
água e sabão. Posteriormente, foram colados e en- dentes, três molares apresentavam cárie.
vidraçados, fazendo parte de uma pequena exposi­ O Sep. 3 foi exumado em 14 de agosto de 1979.
ção particular mantida pelo Sr. Franco de Godoy. Dele foram preservados apenas nove dentes perten­
No laboratorio, o material, agrupado em Sep. 1,2 e centes a uma criança: três incisivos, dois molares,
3, foi inventariado e descrito como se segue. um pré-molar e três dentes que se apresentavam
O Sep. 1 foi exumado em 28 de julho de 1979. inclusos por ocasião da morte.
Apresenta ossos gráceis, suturas sagitais soldadas O material em questão se refere, portanto, a três
e molares com baixo grau de desgaste, o que leva a indivíduos: um adulto, um adulto jovem e um a
crer se tratar de um indivíduo jovem. Associado a criança. Infelizmente, o conjunto é constituído por
este material, encontrou-se um calcáneo e um frag­ alguns ossos longos sem epífises distais ou proxi-
mento de osso longo de mamífero de porte médio. mais, o que impede a tomada de medidas para o
Todavia, o coletor não soube informar se o mesmo cálculo da estatura. A ausência do crânio é um fator
foi encontrado dentro da urna ou lá colocado poste­ que dificulta integrar estes indivíduos em estudos
riormente. Os itens do Sep. 1 são elencados em se­ de população, restando apenas os dentes como uma
guida: boa fonte de informações.
Tanto o indivíduo adulto, como o adulto jovem
Crânio: sete fragmentos que não apresentam a menor
possibilidade de remontagem e nem permitem a tomada de apresentam ocorrência de cáries, fato comum em
medidas. Em três destes fragmentos aparecem sulcos parale­ populações cujo padrão de subsistência foi a agri­
los de origem não identificada. cultura. Esta patologia é causada pela ação de bac­
térias, somada a fatores como higiene e resistência
Mandíbula: pequena porção central em mau estado de
conservação, com ausência de dentes p o st morten\ na parte natural do indivíduo. O tipo de alimentação tam­
inferior ocorrem sulcos bem marcados, paralelos, sugerindo bém influiu no baixo grau de desgaste: os alimen­
a ação de roedor. tos provavelmente recebiam tratamento antes de
serem ingeridos (cozimento). Registra-se, nesse
Dentes: três molares, sendo um com cárie na coroa e
pouco desgaste, outro com cárie na coroa e maior grau de caso, a ausência de componentes abrasivos. Os in­
desgaste e, finalmente, o último com pouquíssimo desgaste, cisivos superiores apresentam forma de “pá”, ca­
cárie de colo e na coroa. racterizada pelo exagerado desenvolvimento das
Ossos longos: fêmur direito fragmentado na sua por­
arestas marginais das faces linguais, formando uma
ção mesial, com ausência de ambas as epífises; fêmur esquer­ depressão no centro do dente. Esta é uma caracte­
do apresentando apenas a porção mesial da diáfise. Tíbia es­ rística morfológica do grupo racial mongolóide que
querda apresentando pequena porção da diáfise próxima à aparece nos indígenas pré-históricos, fato ainda não
epífise proximal e parte central da diáfise; tíbia direita apre­ interpretado pelos bio-antropólogos.
sentando a porção central da diáfise. Úmero direito e esquer­
do, ambos representados pela porção central da diáfise. Ulna
direita e esquerda apresentando a porção central da diáfise.
Considerações finais
Rádio direito, que apresenta a porção central da diáfise.

O Sep. 2, exum ado em 15 de agosto de 1979, A partir deste ponto cabem algumas conside­
apresentou apenas as porções centrais das diáfises rações finais concernentes à etapa que se finalizou
da tíbia direita e do fêmur direito e esquerdo. Apre- com o enchimento do reservatório da PCH Moji-
sentavam-se em mau estado de conservação, com Guaçu. E claro que o caráter “final” refere-se ape­
descamação, esmagamento e deformação na super­ nas ao limite temporal do término das obras e não
fície causadas, em alguns casos, por atividade de da pesquisa. Nesse sentido, a investigação arqueo­
roedor e, em outros, por provável ação antrópica. lógica da bacia do Rio Moji-Guaçu e, mesmo, da
Segundo o coletor, nesta um a foram encontrados área de influência da PCH, está apenas começando.
alguns dentes que acabaram se misturando com os As verificações encaminhadas até o momento já de­
de outras umas. Com o os ossos do Sep. 2 sugerem linearam o grau de elevada importância dos episó­
ser de um indivíduo adulto, foram separados os den­ dios relativos às ocupações pré-históricas. Deixar a
tes de a d u lto qu e a p re se n ta v a m se m e lh a n ç a bacia do Moji-Guaçu à margem da arqueologia do

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Sudeste do Brasil seria fomentar uma lacuna talvez ção de fatores ambientais favoráveis para a con­
irreversível. vergência de grupos indígenas. Tais fatores podem
Assim, os sítios Franco de Campos e Barra­ ser elencados e comentados. O rio, até há pouco
gem devem ser retomados, pois certamente ainda bastante povoado por expressiva ictiofauna migra­
apresentam farto potencial de respostas plausíveis tória, representou um potencial importante para
e, sem dúvida, inéditas. Resta questioná-los e a aquisição de alimentos. Seus acidentes, represen­
melhor forma de fazê-lo é por meio do encaminha­ tados por cachoeiras e corredeiras, concretizaram
mento de escavações sistemáticas. Acredita-se que marcos referenciais, pois localm ente constituem
o Sítio Franco de Godoy já tenha chegado ao limite pontos propícios para a pesca, principalmente na
do fornecimento de dados inéditos. Eventualmente, piracema. O ambiente florestal, onde a biodiver­
poderá fornecer esparsas evidências de cerâmica não sidade atinge seu clímax, teve papel indiscutível
estruturada. Seria muita sorte recuperar ainda algu­ quanto ao fornecimento de recursos. A litologia ga­
ma outra estrutura de importância palpável. rantiu solos férteis para a prática da agricultura de
O enchimento do reservatório da PCH Moji- subsistência, além de propiciar atividades mine-
Guaçu deverá abrir novas perspectivas com rela­ ratórias ligadas à exploração dos barreiros, impres­
ção ao uso múltiplo de suas águas. Chácaras de cindíveis para a fabricação de artefatos de cerâ­
recreio e outros tipos de urbanização deverão ocor­ mica. E, ao que parece, a situação topomorfoló-
rer nos próximos anos, provocando uma ocupação gica de implantação de aldeias junto a cachoeiras
mais densa do seu entorno. Tal fato poderá eviden­ se repete, haja vista os sítios Ponte Preta e Jardim
ciar e, mesmo, destruir eventuais sítios arqueológi­ Igaçaba.
cos ali situados. Para atenuar o problema é necessá­ Quanto à produção de artefatos recuperáveis
rio que se planeje um sistema de monitoramento pela p rática arq u eo ló g ica, v erifico u -se tênue
periódico. Nesse caso, as municipalidades locais incidência de materiais líticos lascados ou polidos.
deverão estar necessariamente envolvidas, posto De fato, não há disponibilidade de boa matéria-
que as questões de urbanismo são de competência prima para o lascamento. As rochas granitóides,
exclusiva dos governos locais (não se esqueça o presentes no arcabouço litológico regional, não têm
caso do Sítio Jardim Igaçaba). Sugere-se, portan­ boa fratura conchoidal, o que as inviabiliza para o
to, a união de esforços da empresa (CESP), da uni­ lascamento. Para o polimento estas rochas seriam
versidade (USP) e das municipalidades de Moji- viáveis. Todavia, não houve registro da presença
Guaçu, Moji-Mirim e Itapira para a implementação de objetos de pedra polida. Resta pensar que o
de esquemas permanentes de monitoramento da in d íg en a p ré-h istó ric o local u tiliz a v a ou tras
nova orla aquática. m atérias-prim as perecíveis para a produção de
Caso a em presa ou as prefeituras optem pela objetos de uso cotidiano, em substituição àqueles
criação e manutenção de áreas de recreio ou de fabricados a partir da pedra. Tais artefatos, todavia,
unidades de conservação ambiental, os sítios ar­ não permaneceram no registro arqueológico.
queológicos eventualmente existentes poderão in­ A propósito, também é digna de nota a ausên­
tegrar tais projetos. Seria interessante, mesmo, a cia de sítios arqueológicos resultantes da ocupa­
criação de uma pequena m ostra permanente a res­ ção de caçadores-coletores (populações geralmente
peito dos principais itens ambientais do vale mé­ mais antigas) nesse intermezzo que é o contato
dio do M oji-Guaçu incluindo, nesse caso, os sítios entre o cristalino antigo e a depressão periférica.
arqueológicos. Talvez seja prematura qualquer manifestação a pro­
Este artigo buscou apresentar sucintamente os pósito dessa ausência. Estudos mais aprofundados
principais episódios ligados ao desenvolvimento no alto e no baixo vale talvez explicassem a situa­
do programa de salvamento arqueológico da área ção verificada no vale médio do M oji-Guaçu. Fica
de influência da PCH Moji-Guaçu. Foram levan­ a sugestão.
tadas áreas até então inéditas com relação ao ap- Finalizando, afirm a-se que o povoam ento in ­
proach arqueológico. A concentração de sítios no dígena de produtores de cerâm ica da tradição
entorno da Cachoeira de Cima é algo digno de nota, tupiguarani foi denso e antigo no vale do M oji-
fato que parece ser realmente importante para a Guaçu. O registro cronológico do Sítio Franco de
compreensão do povoamento pré-histórico regio­ G odoy dem onstra que essa ocupação data de
nal. Neste local parece ter havido uma concentra­ 1.500 anos antes do presente, que significa ser a

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MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência daPCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

mais antiga aldeia ceram ista do Estado de São Equipe de trabalho


Paulo.
A pesquisa arqueológica do vale do Moji-Guaçu, Guaçu foi possível graças ao trabalho de pesquisado­
res, técnicos e estagiários, a saber: equipe de campo - José
juntamente com as demais realizadas nos vales do
Luiz de Morais (coordenador), João Carlos Alves, Daisy de
Paranapanem a, Tietê e Ribeira de Iguape, pro­ Morais e José Edson Franco de Godoy; equipe de laboratório
porcionará o melhor entendimento da ocupação e do - Márcia Angelina Alves, Erika M. Robrahn González, Sil­
cotidiano das populações indígenas pré-coloniais, a via Cristina Piedade, Luís Carlos Borges, Augusto Froehlich,
partir de sua intensificação e aprofundamento. Gilberto Bueno e Gabriel Silva Pimentel.

MORAIS, J.L. Salvage archaeology in the PCH Moji-Gua?u Reservoir area. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

ABSTRACT: This paper presents data resulting from the salvage research carried
out in the PCH Moji-Guaçu Reservoir area. Perfomed without environmental license,
the archaeological rescue was however necessary.
Prehistoric villages (Tupiguarani sites) were surveyed and excavated. Ceramic
wares have been found in the Cachoeira de Cima banks, near Moji-Guaçu town.
Evidences of neobrazilian occupations have also been registered.

U N ITERM S: M oji-G uaçu Reservoir - Salvage archaeology - Prehistoric


horticulturalists.

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Bases Cartográficas

MAE-USP MAE-USP
Desenho n. ARQ.SALV.MJG 01 Desenho n. ARQ.SALV.MJG 02
Sítio Franco de Godoy (FGD-044.242)- Implanta- Sítio Franco de Godoy (FGD-044.242) - Planta
ção da Aldeia Pré-Histórica. Escala 1:1.000,1992. das Escavações - 1980. Escala 1:160,1992.

97
MORAIS, J.L. Salvamento arqueológico na área de influência da PCH Moji-Guaçu. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 77-98, 1995.

MAE-USP CESP
Desenho n. ARQ.SALV.MJG 03 Desenho n. CTH-MG-01/013-0013
Sítio Franco de Godoy (FG D-044.242) - Planta Usina Moji-Guaçu - Levantamento Plani-Alti-
das Estruturas Habitacionais. Escala 1:50,1992. métrico e Batimétrico. Escala 1:1.000, s/d.
CESP CESP
Desenho n. OC-MG-013 Desenho n. MG-GL-72
Alto Moji-Guaçu: Levantamento Plani-Altimé- Levantamento Topográfico e Cadastral do Re­
trico. Escala 1:2.000, Fls. 1 a 9, 1989. servatório da Usina Moji-Guaçu - Planta Geral.
CESP Escala 1:20.000, 1993.
Desenho n. 008-CP-UMG-A1-E236.A IBGE
Aproveitamento Múltiplo do Rio Moji-Guaçu - Carta do Brasil. Escala 1:50.000, folhas topo­
Projeto Executivo - Planta de D esvio do Rio, gráficas:
la. Fase. Escala 1:500, 1991. Rio Capetinga, 1971; Moji-Guaçu, 1972; Aguaí,
CESP 1972; Águas de Lindóia, 1972; Cosmópolis,
Desenho n. CT-00.01/014.015 1974; Conchal, 1974; Amparo, 1983.
Obra AMMG-2080 Implantação Geral. Escala
1:1.000, 1992.

Recebido para publicação em 19 de novembro de 1995.

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

A OCUPAÇÃO RIBEIRIN H A PR É-C O LO N IA L


DO M ÉDIO PARANAPANEMA

Erika Marion Robrahn González*

ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev.


do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

RESUMO: No andamento das pesquisas vinculadas ao “Projeto Paranapanema”


realizaram-se, durante o ano de 1994, prospecções extensivas às margens do refe­
rido rio. Seu reconhecimento arqueológico se mostra particularmente interessante
um a vez que as demais porções do médio vale se encontram submersas devido à
construção de três Usinas Hidrelétricas, para as quais não foram realizadas pes­
quisas sistemáticas de salvamento. A área investigada constitui, portanto, o últi­
mo trecho não inundado do médio curso do Paranapanema, onde ainda é possível
reconhecer as características da ocupação pré-colonial ribeirinha, com todas as
suas implicações para a compreensão dos assentamentos indígenas desenvolvidos
na região.

UNITERMOS: Arqueologia - Estado de São Paulo - Paranapanema - Ourinhos


- Ceramistas - Caçadores-coletores.

O trecho definido com o “B acia M édia do Quanto aos grupos ceramistas, a proposta de
Paranapanem a”, que compreende as meso-regiões com preender o significado do grande leque de
do P ard o /T u rv o , P ira ju , O urinhos e C anoas variações que seus sítios apresentam ao longo de
(conforme definições de Morais, 1990a) apresenta, todo o Paranapanema (tanto intra como inter-sítios)
sem dúvida, uma grande quantidade e diversidade levou à delimitação de uma área-piloto de pesquisa
de evidências arqueológicas, atestada por inúmeros abrangendo justam ente a Bacia Média, para a qual
trabalhos ali desenvolvidos. está-se procedendo a uma reorganização e análise
No atual direcionam ento do Projeto Parana- dos dados disponíveis, além de definir as estraté­
panema,1onde se destaca a efetivação de uma pers­ gias para o desenvolvimento de trabalhos de campo
pectiva regional, pesquisas sistemáticas voltadas pelo método de amostragem (Robrahn González,
à ocupação de grupos caçadores e coletores têm 1995).
não apenas levado à identificação de dezenas de No andamento destas pesquisas, durante o ano
sítios, mas principalm ente permitido analisar suas de 1994 teve-se a oportunidade de realizar pros­
características de distribuição no espaço, im ­ pecções extensivas às margens do Paranapanema,
plantação na paisagem e indústrias associadas no trecho projetado para a implantação da UHE
(Morais, 1990b). Ourinhos (Mapa 1). Seu reconhecimento arqueo­
lógico se mostra particularmente interessante: uma
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo. Pós-Graduação, doutoramento.
vez que nas áreas adjacentes e subm ersas das
(1) Sob a coordenação geral do Prof. José Luiz de Morais, do represas de Salto Grande, Xavantes e Jurumirim não
MAE/USP. foram realizadas pesquisas sistemáticas de salva-

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

SÍT IO LÍT IC O A C É U A B E R T O
B A C IA H ID R O G R Á F IC A D E C O N T R IB U IÇ Ã O
SÍT IO LÍTICO E M A B R IG O
LIM ITE M U N IC IP A L
SÍT IO C E R Â M IC O A C É U A B E R T O
S ÍT IO S S P - S C
SÍT IO C O M IN S C R IÇ Õ E S R U P E S T R E S E M A B R IG O
S ÍT IO S P R - J A
Á R E A D E O C O R R Ê N C IA A R Q U E O L Ó G IC A

Mapa 1 - Área de pesquisa e localização dos sítios.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

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mentó, este constitui o último trecho não inunda­ prim eira ocupação humana do vale do Paranapa­
do do médio curso do Paranapanema, onde ainda nema (com datações de mais de 4.000 anos AP -
é possível reconhecer as características da ocupa­ Pallestrini et alii 1981/82) e do Brasil M eridional
ção pré-colonial ribeirinha, com todas as suas como um todo.
implicações para a compreensão dos assentamen­ As variações que os três sítios apresentam,
tos indígenas desenvolvidos na região. d escritas a seguir, podem re fle tir d iferen ças
Com o verem os adiante, a área se m ostrou funcionais entre unidades de um mesmo sistema
efetivamente fértil, apresentando inclusive evidên­ de assentamento, podem indicar a existência de
cias arqueológicas pouco com uns para o vale. grupos caçadores-coletores sócio-culturalm ente
Levantam, assim, uma série de questões referentes distintos no vale, bem como podem constituir um
ao seu significado e relações com o contexto mais misto de ambas as situações.
am p lo em q ue se in se re m , c u ja s p rim e ira s Variações ocorrem principalmente na localiza­
avaliações são apresentadas no final deste texto. ção dos sítios na paisagem , em sua estrutura,
tam anho e q u an tidade de v estíg io s m ateriais
associados.
Os assentam entos arqueológicos Xavantes e Xavantes 2 constituem assenta­
m entos a céu -ab erto e estão im p lan tad o s em
Uma vez que a área ainda não havia sido objeto encosta de morrote suave à beira do Paranapanema,
de pesquisas arqueológicas, o objetivo maior do com material aflorando na vertente que leva ao rio
trabalho foi realizar um reconhecimento inicial, (Mapa 1). Divergem consideravelmente, entretanto,
procurando investigar porções diversificadas da no tamanho e quantidade de material associado.
paisagem no intuito de identificar diferentes formas Xavantes apresenta medidas de 380m no eixo L -0
de aproveitamento do meio físico, examinando a e 290m no eixo N-S (podendo ser ainda maior em
natureza e contexto dos vestígios arqueológicos direção sul - Figura 1) e coletas totais de superfície
presentes. no leito das estradas que cortam o sítio forneceram
Foram, assim, ao todo identificados seis sítios uma coleção de 220 peças, descritas adiante.
(Mapa 1). Embora não representem, em absoluto, Já em Xavantes 2, o material ocorreu num eixo
a totalidade de evidências arqueológicas da área, de lOm (Figura 2) e coletas totais de superfície
co n stitu em bom in d ic ad o r de seu p o ten cial. forneceram apenas 12 peças. A maior parte (58,3%)
Compreendem: tem como m atéria prim a o basalto e o restante
(41,7% ), o arenito silicificado. Predom inam as
- Sítios líticos: dois a céu-aberto (Xavantes e Xa-
lascas e seus fragm entos (41,6% ), contando-se
vantes 2) e um em abrigo (Ribeirão Claro 2)
ain d a com um n ú cleo (8,3% ) e re síd u o s de
- Sítios cerâmicos: dois a céu-aberto (Ribeirão
lascamento (33,3%). Como artefato tem-se duas
Claro e Ribeirão Claro 3)
lascas retocadas (16,6%), uma com gume convexo
- Sítio em abrigo com arte rupestre: um sítio
e outra constituindo peça com ponta.
(Jacarezinho)
Certamente as variações apresentadas entre
ambos os sítios são, em parte, resultado do grau
Os assentamentos de destruição, uma vez que Xavantes parece estar
de caçadores-coletores
razoavelmente conservado e Xavantes 2 pratica­
mente destruído. Apesar disto, os sítios devem ter
As semelhanças tecno-morfológicas apresen­
sido originalmente bastante distintos, uma vez que
tadas pela indústria em pedra lascada dos três sítios
o próprio tamanho do morrote onde Xavantes 2 está
id en tificados, bem com o sua d ivergência em
lo c a liz a d o n ão c o m p o rta ria um s ítio co m o
relação à indústria dos sítios cerâmicos, permite
Xavantes. Além disto, em bora X avantes esteja
supor que se tratem de assentamentos relacionados
m e lh o r co n serv ad o , já so freu v ário s arad o s
a grupos caçadores-coletores. R epresentam a
m ecânicos e nas estradas onde o m aterial foi
coletado transitam veículos pesados; mesmo assim,
(2) Apenas para a represa de Xavantes, conta-se com o resul­ artefatos, lascas e delicadas m icrolascas de retoque
tado de prospecções extensivas e desenvolvidas apenas em afloram com frequência, apontando para um a
parte de sua área (Chmyz, 1972; Chmyz et alii, 1968). efetiva maior densidade de vestígios.

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ROBRAHN GONZALEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 1 - Sítio Xavantes.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 2 - Sítio Xavantes 2.

Já o terceiro sítio lítico identificado, Ribeirão que logo cede em vertente bastante acentuada
Claro 2, apresenta variações na própria estrutura, (Figura 3). Apresenta bom estado de conservação.
uma vez que se trata de um abrigo, além de se Observações de superfície revelaram a presen­
localizar em m eia/alta encosta íngreme e rochosa ça de oito fragmentos líticos lascados, todos em
da margem esquerda do ribeirão Anhumas (Mapa arenito silicificado, dos quais sete são lascas e seus
1). Trata-se de um pequeno abrigo em arenito, com fragmentos e um resíduo, nenhum com retoques
6m de com primento e 4,7m de largura de boca, ou sinais visíveis de utilização.
afunilando para o interior. O espaço é reduzido Sem dúvida, a coleção que permite maior deta­
pela presença de grandes blocos no chão e pela lhamento de análise, tanto qualitativa como quanti­
ausência de área livre na parte externa do abrigo, tativa, é a de Xavantes. Predom inam peças em

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ROBRAHN GONZALEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
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Fig. 3 - Sítio Ribeirão Claro 2.

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e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

arenito silicificado (61,5%), seguidas pelo silexito alongada (Figura 6a). Os retoques são invadentes,
(35,3%) e pelo basalto (3,2%). M uitas apresentam seguidos de retoques contínuos, em escam as e
córtex de ação hídrica, comprovando uma coleta subparalelos. Os tamanhos variam de 12 a 6 cm,
de m atéria prim a nas cascalheiras próxim as às atestando alto grau de reciclagem. Note-se que a
margens do Paranapanema. peça retratada na Figura 5 a apresenta uma reentrân­
Das 220 peças numeradas, conta-se com lascas cia no flanco esquerdo, característica bastante
e seus frag m en to s (80,9% ), nú cleo s (5,9% ), comum na indústria lítica do Paranapanema.
artefatos (9,5%) e resíduos (3,7%). Além destas, Tem-se, por fim, um fragmento de ponta projétil
foram coletados 110 micro vestígios de lascamente, (Figura 6b), originalmente de formato triangular,
atestando um alto grau de p rocessam ento do com bordos convergindo em ponta. Embora bifacial,
material na área. Indicam, ainda, o emprego da esta peça apresenta a grande m aioria dos retoques
técnica de debitagem por pressão, resultando em em apenas um a face (bifacialidade discreta). É
artefatos morfologicamente bastante bem definidos. interessante notar que pontas projéteis não são
A indústria se caracteriza pela obtenção de abundantes na arqueologia do vale do Paranapa­
lascas, utilizadas enquanto suporte para a maioria nema. Quando ocorrem, estão em número reduzido.
dos artefatos, onde se incluem as lascas retocadas
(com gumes retilíneos, convexos e denticulados) e Os assentamentos de
um seixo retocado para a obtenção de gume bifacial ceramistas agricultores
(Figura 4).
Dentre os tipos mais elaborados tem-se raspa­ Os dois sítio s cerâm ico s id e n tifica d o s se
dores bilaterais (“lesm as”), constituindo peças localizam na margem esquerda do Paranapanema,
plano-convexas fusiformes retocadas unilateral­ sobre terraço flu v ial (M apa 1). E ncontram -se
mente, com form a arredondada (Figura 5a e b) e próximos ao atual leito do rio, a ponto de Ribeirão

Fig. 4 - Artefato litico lascado - Sítio Xavantes.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 5 - Artefatos líticos lascados - Sítio Xavantes.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 6 - Artefatos líticos lascados - Sítio Xav antes.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Claro 3 ter sido identificado através da prospecção ral e caco moído com espessura média de 0,3cm,
dos barrancos que o ladeiam: a estratigrafía mostrou podendo chegar a 0,5cm. A espessura m édia da
uma camada escura associada a material arqueoló­ parede dos vasilhames é de 0,8 a l,3cm (mínimo
gico entre 10 e 20cm de profundidade que, como de 0,5 e máximo de l,8cm ). Diferentes marcas de
veremos adiante, deve corresponder ao vestigio de qu eim a na seção tran sv e rsal dos frag m en to s
um dos vários fundos de cabana que constituem a indicariam a utilização de fogueiras abertas, onde
estrutura da aldeia. um maior controle do processo resulta em peças
A atual utilização das áreas dos sítios enquanto de queima incompleta. A técnica de manufatura é
pasto ou plantação de eucaliptos dificultou a obten­ a de roletes. No acabamento das peças, ambas as
ção de dados sobre m orfologia e tamanho. No cas« superfícies são sempre alisadas.
de Ribeirão Claro 3 foi possível identificar clara­ Através do desenho das bordas reconstituíram-
mente apenas duas manchas no extremo NO do sitio se quatro formas de vasilhame para Ribeirão Claro
(Figura 7). Constituem porções mais escuras de 3 (Figura 9a-d) e três para Ribeirão Claro (Figura
terra, onde se concentram vestigios arqueológicos 9c-e), entre contornos simples e complexos. Quanto
líticos e cerâmicos. As dimensões (Mancha 1 com à decoração, embora ambos os sítios apresentem a
6 X 2m; Mancha 2 com 9,5 X 9m), embora parciais, plástica e a pintada, em Ribeirão Claro 3 os tipos
fornecem uma primeira idéia da grandeza destas parecem ocorrer equiparadamente, enquanto em
estruturas. Distam 4,5m entre si. Indícios de uma Ribeirão Claro a pintada parece predominar.
terceira mancha em estratigrafía aparecem a 50m A decoração plástica em R ibeirão Claro 3
de distância, sugerindo uma continuidade do sítio ocorre nos tipos corrugado (Figura 10), escovado
nas imediações do rio. A ocorrência de um frag­ e ungulado. Em Ribeirão Claro apenas um frag­
m ento cerâmico a 150m para o interior do barran­ mento apresentou linhas incisas sugerindo formar
co exige maiores investigações em profundidade, figuras geométricas. Em ambos os sítios ocorrem
de forma a verificar se faz parte do mesmo sítio. apenas na superfície externa.
A análise de amostras de sedimento indica que Já a decoração pintada ocorre em ambas as
a porcentagem de matéria orgânica presente nas superfícies. D evemos notar que fragm entos de
áreas de mancha é, no mínimo, 100% superior à ombro mostraram, em vários casos, que a linha de
área periférica entre m anchas (M ancha 1 com inflexão divide campos distintos (para um lado
4,33% de matéria orgânica, M ancha 2 com 3,88% tendo-se somente engobo, por exemplo, e para o
e área entre manchas com 1,94%). Já a análise outro lado pintura sobre engobo, como mostra a
granulom étrica indica a presença de argila apenas Figura 11). Assim, consideramos a possibilidade
nas áreas entre manchas. Em relação à porcentagem de que os motivos apresentados pelos fragmentos
de areia as posições se invertem, havendo maior podem corresponder a apenas parte da decoração
registro na am ostra entre manchas (93%) do que dos vasilhames.
nas manchas (ambas com 88%). Estes dados vêm Os motivos, associáveis em diferentes com bi­
reforçar a argumentação de as manchas, comuns nações, são compostos por engobo branco; engobo
em sítios cerâmicos do Paranapanema, constituírem branco sobreposto por pintura, faixas ou traços
áreas de ativ id ad e d om éstica, form adas pelo vermelhos paralelos, circulares, formando ângulos
acúmulo de m atéria orgânica e vestígios da cultura de 90 graus ou em ziguezague; faixas vermelhas
m aterial, correspondendo a estruturas do tipo sobre o lábio ou no ângulo do ombro; faixas pretas
“fundo de cabana” . no ângulo do ombro; e engobo vermelho.
Já para o sítio Ribeirão Claro, observações de Quanto ao material lítico, dentre as poucas
su p e rfíc ie b astan te lim ita d as p ela vegetação peças observadas predom inam grandes lascas
indicaram apenas a presença de vestígios ao longo brutas, além de percutores e núcleos. Os artefatos
de 81m (Figura 8). se resumem a raras lascas retocadas, com retiradas
O material diagnóstico de ambos os sítios é a de tamanho médio feitas apenas para dar gume ao
ce râm ic a, cu jas c a ra c te rístic a s te cn o ló g ica s, bordo. Por outro lado, observa-se a presença de
bastante semelhantes, englobam antiplástico mine- peças brutas diretamente utilizadas (sem retoques).
Nenhuma preocupação em obter formas específicas
(3) Elaboradas pelo Depto. de Ciências Ambientais da de artefato foi observada, definindo uma indústria
UNESP, Campus de Presidente Prudente. técnico-morfologicamente simples.

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e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 7 - Sítio Ribeirão Claro 3.

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e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 8 - Sítio Ribeirão Claro.

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e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

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e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 11 - Vasilhame com pintura - Sítio Ribeirão Claro.

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Por fim, o sítio Ribeirão Claro forneceu ainda coloniais que se desenvolveram na região. A
outra categoria de artefato: adornos confeccionados inexistência de marcas evidentes de revolvimento
em sem entes de coquinho. A sso ciad o a um a do solo poderia garantir, entretanto, a conservação
concentração cerâm ica foram observadas duas de materiais em estratigrafía.
peças sim etricam ente perfuradas e cortadas em
fo rm a trian g u lar. N ão foram até o m om ento
D iscussão final
encontradas em outros sítios cerâmicos do vale.
Embora os dados obtidos ainda estejam sendo
Sítio em abrigo analisados, alguns itens se mostram particularmen­
com arte rupestre te notáveis. Confirmam, por um lado, a riqueza ar­
queológica da área; por outro lado, a presença de
O abrigo Jacarezin h o está localizado em elementos pouco comuns no vale leva a uma discussão
bloco testem unho de arenito Fum as, sobre terraço mais am pla de seu significado, que certam ente
fluvial (M apa 1). A presenta consideráveis di­ expande os limites territoriais da área pesquisada.
mensões, com 30m de extensão por 30m de altura, A presença do fragmento de ponta projétil no
ten d o 5m de co m p rim en to de área ab rig ad a sítio Xavantes é o primeiro deles. Embora estes
(Figura 12). Por toda a extensão das paredes exis­ artefatos ocorram de forma abundante em todo o
tem inscrições rupestres (gravuras), em diferentes sul do B rasil, em São Paulo sua presença foi
níveis de conservação. largamente registrada apenas no vale do Ribeira
O local é hoje largamente aproveitado, com ­ de Iguape (que em grande parte de seu percurso
prometendo grande parte dos grafismos. A constan­ faz divisa com o Estado do Paraná - De Blasis,
te utilização de fogueiras em seu interior acelerou 1988). Já no Paranapanem a e demais porções de
o descolamento de grandes placas contendo inscri­ São Paulo são bastante raros (Morais, 1983; Faccio,
ções, que provavelmente se encontram em meio 1992). Ao que tudo indica estariam relacionados a
ao sedimento. grupos caçadores-coletores mais antigos, consti­
Observa-se grande concentração de figuras no tuindo a transição entre os caçadores adaptados ao
extremo esquerdo do abrigo e tênues inscrições no ambiente pleistocênico e os caçadores generaliza­
centro e à direita, talvez encobertas e/ou danificadas dos de am bientes h o lo cên ico s d iv ersificad o s
pelas ações antrópicas posteriores. As gravuras (Schmitz, 1984; Kem, 1982).
ocorrem em diferentes motivos, sempre em baixo N este sen tid o , é im p o rta n te n o ta r q ue a
relevo, alcançando do nível do solo até aproximada­ presença, no Paranapanema, de sítios líticos com
mente 2m de altura. Análises iniciais mostram uma um a indústria distinta da anterior (artefatos de
profusão de motivos geométricos. Predominam os maiores proporções, sobre lascas espessas e blocos,
tridígitos com ou sem prolongam ento do sulco utilizando sempre a percussão direta e onde o biface
m ediano, além de grande ocorrência de traços curvo, ou “boomerang”, é seu “fóssil-guia”) levanta
cruzados em “xis” e estrelas com variações no a possibilidade de contarmos com, ao menos, duas
número de traços. Tem-se ainda traços paralelos ocupações de caçadores coletores no vale, embora
v e rtic a is co rta d o s po r p a ra le lo s h o riz o n ta is possivelmente em proporções bastante distintas.
(“grades”), composições de losangos e linhas para­ Quanto aos sítios cerâmicos, suas caracterís­
lelas em forma de “ziguezague” . ticas permitem relacioná-los à ocupação de grupos
E m bora não tenham sido ainda realizados T upi-G uarani que se desen v o lv eram no vale,
tra b a lh o s m in u c io so s ju n to aos g ra fism o s, em bora talvez pertencendo a ocupações distintas,
aparentemente parecem estar relacionados a um atestada pela diversidade de motivos decorativos
único estilo. A existência de motivos sobrepostos q u e su a s in d ú s tria s a p re se n ta m (c o n fo rm e
poderia resultar de um a seqüência de inscrições discussão em Robrahn González, 1995). Por outro
feitas ao longo do tempo, durante o período em lado, a p resen ça de artefato s em co q u in h o à
que o sítio foi ocupado. superfície de um deles indica, principalmente, seu
À su p e rfíc ie do ab rig o não p uderam ser bom estado de conservação, fundamental para o
identificados quaisquer vestígios arqueológicos objetivo de recuperar as características da ocupação
que pudessem fornecer pistas para um primeiro rib eirin h a do m édio vale. A d em ais, in d ic a a
relacionam ento deste sítio com as ocupações pré- potencialidade do sítio em fornecer outros vestígios
ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

Fig. 12 - Sítio Jacarezinho - abrigo sob rocha.

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ROBRAHN GONZÁLEZ, E.M. A ocupação ribeirinha pré-colonial do médio Paranapanema. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

perecíveis em bom estado de conservação, como O significado do conjunto destas ocorrências


ossos humanos ou material polínico, dificilmente a nível regional e extra-regional, bem com o a
recuperáveis em sítios a céu-aberto. identificação e caracterização dos sistem as de
Por fim , a presença de um sítio com arte assentam ento a que correspondem , constituem
rupestre exige maiores investigações, já que ainda problem as em discussão. Sem dúvida, o atual
não é possível levantar hipóteses sobre sua filiação andamento de uma série de pesquisas ao longo do
cultural, ou m esm o com preender sua possível Paranapanem a fornece uma quantidade cada vez
relação com os outros sítios rupestres do vale. Isto maior de subsídios às questões, em bora tenha-se
exigiria, além da escavação do solo, a classificação conhecim ento de sua am plitude tan to a nível
de seus motivos gráficos, obtendo subsídios para antropológico como da própria extensão geográfica
análises comparativas. a ser considerada.

ROBRAN GONZÁLEZ, E.M. The pre-colonial riverine occupation o f the Middle Paranapanema.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 99-116, 1995.

ABSTRACT: As part of the ongoing research developed by the “Paranapanema


P ro je ct” extensive surveys w ere carried out along this riv er in 1994. The
archaeological reconnaissance of this area is particularly interesting since the
remainning parts of the middle valley are now underwater due to the construction of
three hidroeletric dams, where however no systematic rescue research has been made.
The area studied is thence the only non-flooded recognition portion of the middle
Paranapanem a where it is still possible to recognize the pre-colonial riverine
occupation patterns, with all the implications to the understanding of the indigenous
settlements developed in the region.

UNITERMS: Archaeology - State of São Paulo - Paranapanema - Ourinhos -


Ceramists - Hunter-gatherers.

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Recebido p ara publicação em 10 de agosto de 1995.

116
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

RECURSOS POTENCIAIS DE GRUPOS CAÇADORES-


COLETORES DO MÉDIO RIO RIBEIRA (SP)

Walter M areschi Bissa*


Waldir M antovani**

BISSA, W.M.; MANTOVANI, W. Recursos potenciais de grupos caçadores-coletores do médio rio


Ribeira (SP). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

RESUMO: Estudos fitossociológicos realizados em duas áreas no domínio das


florestas tropicais do médio vale do Rio Ribeira mostram que a região apresenta
grande homogeneidade ecológica, embora existam diferenças locais. As condições
clim áticas e topográficas da região eram propícias para o assentam ento de
caçadores-coletores, que dispunham de uma variedade ampla de recursos vegetais
existentes, notadamente frutos, nas diversas épocas do ano.

UNITERMOS: Fitossociologia - Recursos végétais - Ocupaçâo pré-colonial


do M édio Vale do Ribeira.

Introdução matérias-primas para a confecção de instrumentos


(Leakey, 1981).
A econom ia baseada na caça e coleta foi uma Com o tem sido docum entado em diversos
característica estável e permanente em nossa evo­ trabalhos etnográficos e arqueológicos (Lee &
lução biológica, desde o Homo erectus até o Homo Devore, 1968; Jochim, 1976,1981; Binford, 1979
sapiens e, finalm ente, até o hom em m oderno e B ettinger, 1980), um a das principais conse­
(Leakey, 1981), anteriormente ao aprendizado gra­ qüências deste estilo de vida é a constituição de
dual do manejo de recursos vegetais e animais (do­ um núcleo social e econômico não muito numeroso
mesticação). São chamados caçadores-coletores os (acampamento-base), ao qual se associam diversos
grupos humanos que tinham sua dieta alimentar acampamentos-satélite, de uso sazonal e/ou esporá­
com posta por animais e plantas silvestres. Estes dico. Outro aspecto bastante comum é a divisão
grupos eram geralmente nômades, isto é, não ti­ sexual do trabalho, cabendo aos homens a maior
nham residência fixa permanente e se deslocavam parte da ocupação de caça e às mulheres a maior
periodicam ente, de acordo com a m udança das parte da coleta.
estações do ano ou a sazonalidade, e, como conse­ O registro arqueológico resultante dessas
qüência, com a disponibilidade de recursos ali­ ocupações consiste, quase sempre, de instrumentos
mentares, principalmente caça e coleta, além de de pedra lascada, como pontas de flecha, raspado­
res, furadores e, eventualmente, restos alimentares.
Estes vestígios são indicadores da capacidade tec­
nológica destes grupos, fornecendo ainda indícios
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
sobre demografía, dieta e atividades cotidianas.
São Paulo.
(* * ) Departam ento de E cologia Geral do Instituto de A distribuição espacial dos sítios na paisagem
Biociências da Universidade de São Paulo. (padrão de assentamento) reflete a estratégia adap-

117
BISSA, W.M.; MANTOVANI, W. Recursos potenciais de grupos caçadores-coletores do médio rio Ribeira (SP). Rev. do
Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

tativa destes grupos, fornecendo subsídios para se Situada sob domínio de climas de transição
estudar sua organização social e econômica (Chang, entre o Tropical Úmido (Af) da Planície Costeira
1972; Parsons, 1972). É evidente que nenhum estu­ do Ribeira, e o M esotérmico Úmido (Cfb) na Serra
do de padrões de assentamento pode desprezar uma de Paranapiacaba, a diversidade clim ática no Vale
avaliação m inuciosa dos recursos potenciais da do Ribeira é associada à sua complexidade geomor-
região enfocada, pois somente assim as possíveis fológica, ressaltando-se entre as variações locais
estratégias de captação de recursos (Higgs & Vita- as faces de exposição à radiação solar, mais frias
Finzi, 1972), sugeridas pela localização e distri­ quando voltadas ao sul, e à ação de ventos.
buição espacial dos sítios arqueológicos, poderão As sucessivas flutuações climáticas, ora na
ser corretamente dimensionadas e, mesmo, quan­ direção de climas mais úmidos, ora na de climas
tificadas. D esta forma, o detalhamento dos recur­ mais secos, durante o Quaternário, (Ab’Sáber, 1971)
sos ambientais, como a qualidade, quantidade e acarretaram, nos períodos de aridez, a retração das
distribuição dos recursos vegetais e animais, é in­ flo restas co steiras em refú g io s d esco n tín u o s
dispensável para se entender o verdadeiro poten­ (A b ’Sáber, 1977), fragm entando populações e
cial de sustentação de um a dada área de estudo, conduzindo à extinção local de muitas espécies
que por sua vez substancia a análise quantitativa e (Haffer, 1982).
demográfica dos sistemas de assentamento e das es­ A vegetação dominante é a M ata Atlântica,
tratégias adaptativas dos grupos humanos que ocu­ muito densa e com grande diversidade de espécies,
param essa mesma área em período pré-colonial. que se beneficiam das chuvas orográficas intensas
É dentro desta perspectiva que resolvemos que ocorrem durante todo o ano (Camargo et alii,
aplicar uma metodologia de estudos de vegetação 1972; Petrone, 1966). A floresta A tlântica apre­
(levantam ento fitossociológico) para o conheci­ senta alguns indivíduos que se sobressaem dos
mento da composição florística e da estrutura da demais, com até 40m de altura, e um conjunto cujas
vegetação nativa em duas áreas do médio vale do copas formam um dossel mais ou menos contínuo,
rio Ribeira de Iguape, sul do Estado de São Paulo, a 15-20m de altura. São plantas sem pre-verdes,
com o propósito de obter dados a respeito da cujos sistemas radiculares são predom inantem en­
quantidade e distribuição das espécies vegetais hoje te superficiais, form ando um a rede de tram a den­
encontradas na área, de modo a poder avaliar sua sa.
potencialidade, em term os de recursos de sub­ As declividades ocorrentes nas m ontanhas
sistência para os grupos humanos em estudo. A permitem um maior desenvolvimento das copas das
escolha desta região se deve não apenas por cons­ árvores do que se observa em regiões com topo­
tituir um a das últimas reservas naturais de Mata grafia plana. Isto se deve à menor competição entre
Atlântica do Estado, mas também por ser uma área elas, já que se dispõem em diferentes níveis. Essa
onde estudos arqueológicos sistemáticos têm se declividade permite, também, a penetração de luz
desenvolvido, evidenciando uma seqüência de ocu­ no interior da floresta, ainda que difusa, o que pro­
pações humanas sobretudo ao longo do Holoceno, porciona a ocorrência de muitas espécies de subma-
o que tom a pertinente a análise aqui encaminhada. ta e epífitas.
Predominam entre suas espécies as legumino­
sas, sapotáceas, moráceas, lauráceas, mirtáceas e
O ambiente euforbiáceas. Seus indivíduos suportam em seus
ramos e caules m uitas gesneriáceas, cactáceas,
A região do médio Ribeira é bastante monta­ aráceas, piperáceas, bromeliáceas, orquidáceas e
nhosa, com grandes amplitudes altimétricas, for­ samambaias epífitas. São também encontradas no
mando alguns vales bastante encaixados e outros interior da floresta muitas palmeiras, mirtáceas,
mais abertos, devido sobretudo à grande diversida­ rubiáceas, melastomatáceas e fetos arborescentes,
de lito-estrutural (Almeida, 1964; Batolla Jr. etalii, como o xaxim.
1981). Principalmente na porção nordeste da área O solo no interior da floresta é coberto por
de pesquisa há grandes zonas de relevo cárstico, musgos, samambaias, ervas, folhas, ramos, flores,
constituindo-se em uma das maiores províncias frutos, sementes e plantas jovens. A decomposição
espeleológicas do Brasil (Sanchez & Karmann, do material orgânico é extremamente rápida e a
1979). trama radicular, que existe no solo, promove o rea-

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proveitamento dos minerais num processo de cicla- volvida, aparecendo muitos indivíduos de pequeno
gem muito eficiente. porte. Já a área de am ostragem no Núcleo Santana
O conjunto de fatores acima relacionados con­ está localizada num vale fechado, onde a com peti­
dicionam nessa floresta a existência de muitas es­ ção das espécies por luz é m aior e, provavelmente,
pécies com poucos indivíduos, tom ando-a um a as características do solo calcário, juntam ente com
das mais ricas e diversas das regiões tropicais. as características mesoclimáticas (maior umidade
relativ a e m enor variação da tem peratura, por
A s áreas estudadas exemplo) favorecem o desenvolvimento dos indiví­
duos do dossel e emergentes, dificultando a sobre­
A s duas áreas estudadas localizam -se no vivência na submata.
município de Iporanga, respectivamente no bairro Pelas características climáticas locais, na área
rural de Bombas e no Núcleo Santana (área de pes­ de Bom bas o m esoclim a condiciona uma vegeta­
quisa e recreação do Parque Estadual do Alto Ri­ ção mais sazonal, num clim a mais seco em parte
beira), às margens do rio Betari (Fig. 1). do ano, enquanto na área do N úcleo Santana a
D evido à topografia local, a área amostrada vegetação é condicionada por clim a sempre úm i­
em Bombas está localizada num vale aberto, bas­ do, o que certam ente diferencia os períodos de
tante encaixado e de difícil acesso, com declividade floração das espécies nas duas áreas estudadas,
pouco acentuada, onde a luz solar é melhor dis­ refletidos nos períodos de oferecim ento de recur­
tribuída. Havendo penetração da luz solar na sub- sos alimentares às populações de caçadores-cole­
mata, a vegetação no interior da mata é bem desen­ tores.

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Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

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Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

N a região do Núcleo Santana observa-se que vales intermontanos, junto dos maiores afluentes,
o rio Betari corre num vale escavado em rochas dem onstrando que a área dispunha de abrigos
cristalinas, sobretudo filitos e calcários. Seu leito, (vales) e água em abundância, favorável à ins­
condicionado por um dique de diabásio, é composto talação de pequenas com unidades. E stas d is­
por matacões de vários tamanhos e a vegetação tribuíam-se nas porções médias e baixas dos vales,
reflete as diferentes composições do solo. Existem onde havia toda uma variedade de microambientes.
também a ação antrópica (desmatamento, retirada Caracterizam-se por uma indústria lírica tipoló­
de palmito, etc...) e escorregamentos naturais, que gicamente variada e de pequenas proporções, com
promovem diferentes estágios sucessionais. destaque para as pontas de projéteis, utilizadas na
caça diversificada. Na coleta de vegetais, lascas e
raspadeiras podem ter sido aproveitadas para
O contexto arqueológico extrair fibras, raspar cascas e polpas e cortar tubér­
culos (De Blasis, 1988).
O rio Ribeira ocupa uma posição bastante pe­ Sítios cerâmicos: estes são os de maior núm e­
culiar no planalto meridional brasileiro, pois é um ro na região do médio vale, indicando uma maior
dos poucos rios que nascem no planalto e desaguam densidade demográfica, distribuindo-se principal­
no litoral, ao invés de integrar-se à bacia do rio mente nos vales mais baixos e abertos, em áreas
Paraná. A conseqüência disto é a formação de um com relevo suave e terras férteis. Caracterizam-se
vale que apresenta um trecho de transição ambien­ pela presença de uma cerâmica simples, utilitária,
tal bastante fluido entre estes dois grandes dom í­ não decorada, indicando a prática da horticultura
nios geom orfológicos, geralmente separados de (Robrahn, 1989). É a ocupação mais recente da área,
maneira abrupta pela Serra do M ar (De Blasis, por volta de 600 anos AR
1988). Vê-se, assim, que a região do médio vale do
É justam ente este trecho de transição ambien­ Ribeira foi ocupada ao longo do Holoceno, cujo
tal que desperta maior interesse arqueológico, pois clima mais úmido (ao redor de 6.000 anos AP)
pode ter atuado como zona de contato e/ou transição permite a expansão das florestas e o recuo dos am­
cultural entre ocupantes do litoral e do planalto, bientes abertos, favorecendo o assentamento dos
geralmente considerados portadores de tradições caçadores-coletores.
culturais bastante distintas.
A região do médio vale apresenta vestígios
arqueológicos perfeitamente distintos, associados M aterial e m étodos
a três diferentes horizontes de ocupação pré-
colonial, distanciados cronologicamente. São eles: O método utilizado para a análise da vegetação
Sítios concheiros: constituem a mais antiga foi o de quadrantes (Cottam & Curtis, 1956), que
ocupação da área (por volta de 10.000 anos AP - consiste no estabelecimento, dentro da formação
Collet & Loibl, 1988), grupos de caçadores, pesca­ estudada, de pontos ao acaso, que funcionam como
dores e coletores cujos sítios caracterizam-se prin­ centros de círculos divididos em quatro partes ou
cipalmente pela presença abundante de conchas de quadrantes (Martins, 1978). Foram amostrados 100
M egalobulimus sp., terra preta e sepultamentos. pontos, dos quais os ímpares tiveram amostrados
São pouco numerosos na área de pesquisa e tendem também indivíduos da submata, com até 20 cm de
a se concentrar junto aos rios maiores, como o Ri­ perímetro do caule a 1,30 m de altura do solo. Em
beira e o Pardo (Fig. 1). Os vestígios materiais, pon­ cada quadrante foi amostrado o indivíduo mais pró­
tas e anzóis, reforçam a hipótese que a caça e a ximo do centro do círculo. De cada indivíduo foram
pesca devem ter tido um papel importante nas ati­ anotados a espécie (quando conhecida), a altura, o
vidades de subsistência e dieta destes grupos, além perímetro, a sua distância do ponto de amostragem,
de coleta de moluscos, complem entada possivel­ além da coleta de material botânico para posterior
mente por vegetais (frutos, raízes e ervas) encon­ identificação. Este material foi prensado e seco em
trados com facilidade na mata (Barreto, 1988). estufa.
Sítios líticos: bem mais numerosos, estes sítios A partir dos dados de campo foram elaborados
cuja ocupação ocorreu por volta de 1.500 anos AP, dendrogramas de classes de altura, com intervalos
concentram-se mais frequentemente nos fundos dos de lm (Fig. 2).
BISSA, W.M.; MANTOVANI, W. Recursos potenciais de grupos caçadores-coletores do médio rio Ribeira (SP). Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

Resultados e discussão recursos potenciais disponíveis (vegetais) nas dife­


rentes porções da região, apresentam uma certa ho­
Comparando os dendrogramas de classes de mogeneidade, embora existam diferenças locais.
altura (Fig.2), verificamos que a porcentagem de Exemplificando, podemos citar o palmiteiro
distribuição das classes de altura na vegetação (Euterpe edulis), que apresenta uma densidade de
amostrada na área de Bombas apresenta-se mais 450 ind/ha no dossel e 409 ind/ha na submata, para
irregular (65,5% dos indivíduos encontram-se na a área de Bombas, e 207 ind/ha no dossel e 282
submata; 23% dos indivíduos compõem o dossel ind/ha na submata, para a área do Núcleo Santana.
e 11,5% representam indivíduos emergentes, ou Isto demonstra que a área de Bombas, por estar
seja, há um grande núm ero de indivíduos de localizada num vale aberto voltado para o continen­
pequeno porte). te, apresenta condições climáticas e topográficas
N a área am ostrada do N úcleo Santana, a mais propícias para o crescimento do palmiteiro
porcentagem de distribuição dos indivíduos na do que a área do Núcleo Santana, que está encai­
vegetação apresenta-se bem mais regular (48,0% xada num vale fechado. Portanto, o palmito é um
dos indivíduos encontram-se na submata; 38,5% recurso disponível em maior quantidade, por um
dos indivíduos compõem o dossel e 13,5% repre­ período mais longo na região de Bombas, o que
sentam indivíduos em ergentes, ou seja, há um pode representar um atrativo adicional para ex­
número maior de indivíduos que apresentam porte pedições de grupos caçadores-coletores nesta área.
maior que no caso anterior). Isto se reflete nas dife­ Com relação à vegetação nativa coletada nas
rentes densidades de árvores obtidas nas am ostra­ duas áreas estudadas do médio vale do Ribeira,
gens (2.688 ind/ha na submata e 3.731 ind/ha no ela é diversificada, e pode ter sido aproveitada o
dossel e emergentes), e da área de Bombas (5.348 ano inteiro pelos grupos humanos que habitaram a
ind/ha na subm ata e 4.386 ind/ha no dossel e região. Podemos levantar a hipótese que foi utili­
emergentes). zada uma grande variedade de frutos na alimen­
Quanto aos recursos alternativos, como frutos, tação, como tamanqueiro (Aegiphilla sellowiana),
raízes e tecidos meristemáticos, as populações na­ tapiá (A lchornea triplinervia), m arm elinho do
tivas que habitaram a área do Núcleo Santana dis­ campo (.Alibertia concolor), fruta de paraó (A lio -
punham deles na maior parte do ano, pois o clima phyllus p etio lu la tu s), tucum do brejo (B actris
mais úmido contribui para o oferecimento contínuo setosa), murici (Byrsonima ligustrifolia), gabi-
desses recursos. Já na área de Bombas, há ofere­ robeira (Campomanesia gabiroba), peroba-branca
cimento sazonal de recursos, notadamente frutos. ( C hrysophyllum gonocarpum ), ju ru té (C ordia
A caça está condicionada à heterogeneidade sellowiana), maria-mole (Dendropanax cuneata),
das florestas localizadas em áreas de mesoclima m orototó (D idym opanax m orototoni), pitanga
não sazonal (Núcleo Santana), onde os animais (.Eugenia uniflora), simbiúva (Hirtella hebeclada),
eram atraídos pela diversidade dos frutos existentes tajuva (M aclura tinctorià), cam bucá (M arliera
nas diversas épocas do ano. Assim, os caçadores- tomentosa), camboatá (M atayba elaeaguinoides),
coletores dispunham de uma maior diversidade de ca n e la -p re ta -v e rd a d e ira (N e cta n d ra m o llis),
recursos animais para sua subsistência. Por outro canela-im buia (O cotea p o ro sa ), can ela-p ard a
lado, o mesoclima sazonal na região de Bombas (Ocotea puberula), pau de tamanco (Pera glabra-
também favoreceria a concentração no oferecimen­ ta ), fru ta de m acaco (P o so q u eria la tifo lia ),
to de recursos e, portanto, a presença de animais azeitona do mato (Rapanea ferruginea), bacopari-
em determinados períodos do ano. miúdo (Rheedia gardneriana), araticum -pitayá
Baseando-se nos resultados obtidos, podemos (.R ollinia m u co sa), fruto de pom bo ( Tapirira
concluir que a região do médio vale do Ribeira é marchandii), bicuíba-vermelha (Virola oleifera),
constituída por núcleos heterogêneos de vegetação maria-preta (Vitex polygam a), pindaíba (Xylopia
que, quando comparados através de uma perspecti­ brasiliensis). Outras partes dos vegetais provavel­
va regional, apresentam grande homogeneidade mente eram consumidas, como a polpa do ingá-
ecológica. Isto fica mais evidente quando confron­ cipó (Inga edulis) e ingá-mirim (Inga marginata),
tamos as informações obtidas através dos questio­ além do palmito de Euterpe edulis.
nários aplicados aos moradores locais, pela equipe Das cento e trinta e cinco espécies estudadas,
do Prof. Paulo A. D. De Blasis, mostrando que os algumas possuem em sua casca substâncias que

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Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

contêm material corante, entre elas citamos: cange- admitindo uma população relativamente reduzida,
rana (Cabralea cangerana), ingá-m irim (Inga as áreas circunjacentes aos sítios arqueológicos per­
marginata) e cuipeúna (Tibouchina mutabilis). mitem, em termos de captação de recursos, um
A lém das espécies citadas, podem os m en­ acesso fácil (com viagens de aproximadamente dois
cionar a fruta de paraó (Allophyllus petiolulatus), dias), colocando ao alcance dos caçadores-coletores
ingá-cipó (Inga edulis), ingá-mirim (Inga margi­ uma variedade de recursos vegetais e animais, des­
nata), guaianã (Lonchocarpus muehlenbergianus), de a pesca no Ribeira até a caça e coleta nos morros
camboatá (M atayba elaeaguinoides), capororoca- florestados do planalto.
branca (Rapanea umbelata) e branquilho (Sebas­ Com base nos dados de campo, confirma-se,
tiana serrata), cuja madeira pode ter sido aprovei­ assim, a hipótese que os recursos vegetais e animais
tada como carvão, além do amor-seco (Alchornea provavelmente eram suficientes para sustentar uma
glandulosa), abacateiro-roxo (Hyeronima alchor- comunidade de caçadores-coletores o ano inteiro,
neoides) e bicuíba-vermelha (Virola oleífera), cuja conforme indicam os padrões de assentamento e
madeira leve se presta para a fabricação de canoas as estratégias de subsistência. Da mesma forma,
(Pió Correa, 1984; Lorenzi, 1992). os recursos naturais do médio Ribeira forneceram
As utilidades aqui apresentadas provavelmen­ um a com plementação rica e variada para a dieta
te representam apenas uma pequena parte das pro­ dos grupos horticultores que, com grande densida­
priedades das plantas que os grupos pré-históricos de demográfica, ocupavam a região pouco antes
conheciam e aproveitavam. do contato com os europeus.
M ediante o exposto acima, podemos concluir
que os grupos pré-históricos da região do médio
vale do Ribeira dispunham de diferentes variedades Agradecim entos
de recursos vegetais. O padrão de assentamento
dos caçadores-coletores proposto por De Blasis Aos Profs. Paulo A. D. De Blasis e Eduardo
(1988:137-138), “que sugere círculos de 10 Km de G. Neves, pelas valiosas colaborações, sem as
raio dem onstrando que existe um espaçam ento quais este trabalho não poderia ser realizado;
regular entre os acampamentos-base, obedecendo Gilberto Bueno e Joaquim de Brito, pela cola­
a regras territoriais possivelmente ligadas à capta­ boração nas etapas de cam po, D enise D. P. de
ção de recursos”, indica que o sistema de assenta­ Souza, pelas ilustrações e ao Museu de Arqueo­
mento em questão estende-se por vários trechos lo g ia e E tn o lo g ia, p elo fin an c iam en to d esta
do médio Ribeira. A partir desta perspectiva, e pesquisa.

BISSA, W. M .; MANTOVANI, W. Potential resources of hunter-gatherers groups in middle Ribeira


River (SP). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 117-124, 1995.

ABSTRACT: Phytosociological studies carried out in two Atlantic rain forest


areas in the middle valley of the Ribeira river, show that the region presents a great
ecological homogeneity, although there are some local differences. Climatic and
topographic conditions of the region are appropriate for the settlement of hunter-
gatherers, who had at their disposal a wide range of vegetable resources, mainly
fruits, available at different times of the year.

UNITERMS: Phytosociology - Vegetable resources - Precolonial ocupation of


the Ribeira middle valley.

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BISSA, W.M.; MANTOVANI, W. Recursos potenciais de grupos caçadores-coletores do médio rio Ribeira (SP). Rev. do
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de de São Paulo.

Recebido p a ra publicação em 24 de agosto de 1995.

124
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

ANALISANDO SISTEMAS DE ASSENTAMENTO EM ÂMBITO


LOCAL: UMA EXPERIÊNCIA COM FULL-COVERAGE SURVEY
NO BAIRRO DA SERRA

Paulo A. D. De Blasis*
Walter F. M orales**

DE BLASIS, P.A.D.; MORALES, W.F. Analisando sistemas de assentamento em âmbito local: uma
experiência com full-coverage survey no Bairro da Serra. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

RESUMO: Este artigo discute a abordagem metodológica de um a pesquisa


arqueológica realizada em um pequeno vale situado na bacia do médio Ribeira,
sul do Estado de São Paulo, uma área bastante montanhosa e densamente florestada.
O objetivo principal do projeto é investigar as características locais de um sistema
de assentamento formado por agrupamentos de sítios líticos de ampla dispersão
regional, assim como examinar os padrões de uso do espaço de uma comunidade
rural contemporânea (o Bairro da Serra) que hoje ocupa o mesmo local. Em função
da baixa visibilidade dos vestígios arqueológicos, um programa de prospecção de
cobertura total (full-coverage survey), com uma malha sistemática de testes de
sub-superfície, foi aplicado em todo o vale, com excelentes resultados em termos
da evidenciação de diferentes unidades de assentamento (inclusive a presença de
um horizonte de ocupação do período cerâmico antes desconhecido) e seus pa­
drões de distribuição.

U N IT ER M O S: P rospecção arqueológ ica - M etodologia

Este artigo apresenta e discute os aspectos me­ ticas e intensivas (conhecidas na literatura como
todológicos das pesquisas de campo realizadas em full-coverage survey) foram realizadas escavações
1994 em um trecho do ribeirão Betari, afluente da parciais em cinco sítios daquela localidade, além
margem esquerda do rio Ribeira de Iguape em seu de sondagens em vários outros. Foram, ainda, reali­
médio curso, entre as cidades de Apiai e Iporanga, zadas prospecções extensivas em vários trechos da
sul do Estado de São Paulo (Figura 1). Os trabalhos região do médio Ribeira, e uma série de caminha-
desenvolvidos envolveram essencialmente um pro­ mentos no vale do rio Betari e áreas adjacentes,
grama de prospecções intensivas em uma área fe­ para análise de aspectos relacionados à territoriali­
chada, o Bairro da Serra, no médio vale do rio dade dos sítios. Após a contextualização do projeto
Betari. Em paralelo a estas prospecções sistemá­ e uma breve descrição das campanhas, são discuti­
dos e avaliados os métodos aplicados em campo e
seu produto direto, isto é, os sítios arqueológicos
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo.
identificados. A análise detalhada dos dados obti­
(**) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de dos e dos sistemas de assentamento em questão,
São Paulo. Aluno especial de pós-graduação, mestrado. em andamento, será objeto de outro trabalho.

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DE BLASIS, PA .D .; MORALES, W.F. Analisando sistemas de assentamento em âmbito local: uma experiência com full-
coverage survey no Bairro da Serra. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

tig. 1 - Bacia ao rweirao tfetari e adjacências, com destaque na area-joco de pesquisa, tonte: tolha Apiai (SG. 22-X-B-V) 1:100.000, Diretoria do
Serviço Geográfico do Ministério do Exército, 1971.

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DE BLASIS, P.A.D.; MORALES, W.F. Analisando sistemas de assentamento em âmbito local: uma experiência com full-
coverage survey no Bairro da Serra. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

O contexto da pesquisa caracterizados pelos sítios líticos. Por último, houve


uma intensa ocupação de todo o médio vale por
A esfera original de interesse deste projeto são grupos ceramistas e horticultores, também prove­
os agrupamentos de sítios líticos distribuídos por nientes do planalto (para um a análise extensiva
todo o médio vale Ribeira, sul do Estado de São destas ocupações do médio vale do Ribeira con­
Paulo. Estes sítios pequenos são assim denom ina­ figuradas pelos sítios concheiros e cerâmicos, ver
dos em função de uma indústria lítica lascada ca­ Barreto, 1988 e Robrahn, 1989, respectivamente).
racterística, predominantemente em sílex, bastante O objetivo essencial deste levantamento in­
curada, com uma grande diversidade de lascas e tensivo de campo em uma área pequena e específica
utensílios plano-convexos amplamente retocados foi delinear, em âmbito local, as características
e reciclados, incluindo uma variedade de pontas funcionais e distributivas das diferentes unidades
projéteis bifaciais (De Blasis, 1988, 1989). São de assentamento no interior de um dos agrupamen­
encontrados por toda a região montanhosa e densa­ tos de sítios líticos, os quais caracterizam o padrão
mente florestada do alto e médio Ribeira, concen- de assentamento destes grupos em âmbito regio­
trando-se nos terrenos mais baixos e aplainados nal. A intenção foi realizar uma abordagem “ao
dos fundos de vale. nível da com unidade” (no sentido de Flannery,
Estudos anteriores, analisando vários destes 1976; ou então “semi-micro”, no sentido de Clarke,
agrupamentos dispersos pelo alto e médio vale, 1977), de modo que problemas como concom itân­
estabeleceram alguns parâmetros para o sistema cia, articulação e demografía pudessem ser adequa­
de assentamento que estes sítios líticos configuram. damente analisados.
O padrão detectado em âmbito regional mostra que Assim, tendo como referência o padrão de as­
os agrupamentos de sítios líticos, interpretados ex­ sentamento regional, o objetivo central do projeto
ploratoriamente como bases residenciais de caça- é investigar a hipótese de que a concentração local
dores-coletores de época relativamente tardia (fi­ de vestígios - o agrupamento - corresponde a uma
nal do Arcaico, cerca de 1.500 anos atrás) encon­ configuração sociológica, a “com unidade”, even­
tram-se distanciados entre si com uma certa regula­ tualm ente m ascarada por palim psestos gerados
ridade, ocupando os vales intermontanos formados pela ocupação prolongada e sucessivas reocupa-
pelos afluentes do Ribeira, e coincidindo notavel­ ções, além de distúrbios pós-deposicionais de
mente com os assentamentos rurais contemporâ­ outras naturezas (Binford, 1980 e 1983; Schiffer,
neos. 1987; Bamforth, 1991; Carr, 1991). Tendo em vista
No interior de cada agrupamento os sítios líti­ o objetivo de fechar o foco para o espaço local,
cos têm densidade desigual, sendo alguns poucos para as atividades que possam ser identificadas no
mais densos e complexos enquanto outros, mais interior dos sítios de um mesmo agrupam ento,
discretos, parecem articular-se em tom o daqueles. propôs-se um programa de prospecções sistemáti­
Além destes agrupamentos, ocorrem ainda alguns cas e escavações utilizando técnicas de am ostra­
sítios isolados, interpretados tentativamente como gem (Binford, 1982; Kent, 1984 e 1987; Carr, 1984,
acampamentos temporários, territorialmente inte­ Ferring, 1984; Munday, 1984; Kroll & Price, 1991).
grados às bases residenciais (para estas análises Tal programa foi aplicado em um destes agrupa­
ver De Blasis 1988, 1990 e 1991). mentos situado no trecho intermediário do vale do
As pesquisas anteriores evidenciaram, tam ­ rio Betari, bem no coração do médio Ribeira, um
bém em âmbito regional, outros sistemas de assen­ local conhecido como Bairro da Serra.
tamento além daquele configurado pelos sítios lí­
ticos. T rata-se dos sítios concheiros (tam bém
conhecidos como sambaquis fluviais) e cerâmicos, A área-foco de atuação
que caracterizam a ocupação do médio vale do Ri­
beira por outros grupos e culturas distintas. Apesar A pesquisa de campo concentrou-se em um
da ausência de parâmetros cronológicos seguros, trecho do vale do rio Betari, afluente da margem
há indícios de um a m aior antiguidade para os esquerda do Ribeira em seu médio curso, na altura
grupos caçadores-coletores dos sítios concheiros, da cidade de Iporanga (Figura 1). O local foi esco-
aparentemente provenientes do litoral, aos quais slhido não apenas devido ao fato de concentrar um
se seguiram os grupos de caçadores planálticos bom número de sítios líticos já cadastrados, mas

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também por caracterizar a associação com um bair­ (para maiores informações acerca das caracterís­
ro rural contemporâneo bastante antigo, o que pode­ ticas ambientais da região, ver a descrição da área
ria servir para enriquecer a hipótese de trabalho. e a bibliografia indicada em De Blasis, 1988).
Contou ainda na escolha a facilidade de acesso e a Este vale central e intermontano do Betari abri­
inserção tipicamente intermontana deste vale no ga um bairro rural bastante grande e antigo, cha­
contexto ambiental da região do médio Ribeira. mado Bairro da Serra, assim como numerosos sítios
O Betari é um rio de corredeiras, encachoei- arqueológicos que testemunham um antigo e cons­
rado, e corta profundamente os filitos e calcários tante interesse de diferentes sociedades humanas
que predom inam neste trecho de serras altas, por esta região que, pelo menos até o final da déca­
formando um extenso canyon de cerca de 12km de da de 70, viveu sempre em grande isolamento, man­
extensão. A área-foco de atuação deste projeto tendo contatos quase que unicamente com os bair­
encontra-se na altura do médio curso do Betari ros rurais e pequenas cidades adjacentes como Pi­
onde, devido a processos de erosão diferencial, o lões, Itaoca, Iporanga, Fumas e Apiaí, e mais remo­
canyon se abre subitamente em um trecho aplaina­ tamente com cidades próximas como Eldorado,
do de bom tamanho, com terrenos formados por Capão Bonito e Sorocaba.
morros residuais e terraços de diversas fases de Ainda hoje seu isolamento é considerável, pre­
sedimentação - os mais altos e consolidados, mais servando muitos elementos de um estilo de vida
antigos, na porção norte, os mais recentes, ainda bastante arraigado no tempo, inclusive nos aspectos
episodicamente inundáveis no verão, na porção sul da organização social em uma economia que, em
do pequeno vale. Este trecho de terrenos quaterná­ parte, permanece basicamente voltada para a sub­
rios encontra-se sempre cercado das altas cristas, sistência. Este sistema de assentamento contempo­
formando um a área aberta mas encaixada no inte­ râneo, que ocorre dispersamente por todo o médio
rior das serras (Figura 2). vale do Ribeira, é de fundamental importância para
A paisagem do vale (e do bairro) é peculiar, o estudo dos padrões de ocupação desta região, as­
combinando a paisagem montanhosa circunjacente sim como para a percepção das características es­
com boas extensões de terrenos planos, adequados senciais do espaço local.
para agricultura e assentamentos humanos (Figura A área de atuação intensiva dos levantamentos
3). Neste trecho o ribeirão Betari, habitualmente de campo no rio Betari, o trecho do vale chamado
encaixado e pedregoso, meandra nos terrenos aplai­ de Bairro da Serra, foi em piricam ente definida
nados, e alterações de seu curso ainda se encontram pelos terrenos aplainados do fundo do vale e verten­
na memória dos moradores mais velhos do bairro. tes adjacentes (Figura 2). Seus limites variaram
Nas prospecções detalhadas desta pesquisa foi pos­ em função das condições do relevo, pois o pequeno
sível mesmo identificar trechos de seu páleo-canal vale da Serra é cercado por serras com encostas
ao longo do vale. bastante abruptas, de modo que as prospecções es­
Alguns de seus tributários locais, pequenos tenderam-se mais onde a inclinação das vertentes
córregos provenientes das serras circunjacentes, permitia. De um modo geral, a cota de 200 metros
são drenagens subterrâneas como o Alambari e o s.n.m. serve como uma aproximação da área siste­
Ouro Grosso, que alcançam o Betari após atra­ maticamente esquadrinhada; frequentemente, en­
vessar longas cavernas nas lentes de calcário. O tretanto, as prospecções alcançaram, vertente aci­
clima local é quente e úmido, e a grande amplitude ma, cotas mais altas que esta. A área total do trecho
altimétrica entre o fundo do vale e as serras que o trabalhado sistematicamente é de aproximadamen­
flanqueiam (cerca de 500 metros) o tomam bastante te 3km2.
abafado, sobretudo no verão. No invemo, por outro A área já fora visitada e prospectada anterior­
lado, o clim a neste vale abrigado dos ventos é mente. Em 1981, por ocasião dos primeiros levanta­
ameno e agradável (em contraste com a fria cidade mentos sistemáticos no médio vale do Ribeira, fo­
de Apiaí, na crista do planalto, a apenas 20km de ram ali identificados quatro sítios líticos, aos quais
distância), mas as noites podem ocasionalmente se somaram nos anos seguintes outros onze, além
alcançar temperaturas bastante baixas, inclusive de um sítio cerâmico e outro relacionado à ocupa­
com geadas. A vegetação dom inante é a Mata ção mais recente (“serrana”), perfazendo um total
Atlântica, densa e luxuriante, já bastante marcada de dezessete sítios já conhecidos no bairro, identi­
pela interferência humana nos arredores do vale ficados com a sigla BS (De Blasis, 1988). Esta foi

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coverage survey no Bairro da Serra. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

Fig. 2 - Trecho do vale do rio Betari onde se encontra o Bairro da Serra, área-foco de atuação. Fonte:
Folha V-12 (1:10.000), DAEE, 1957.

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Fig. 3 - Vista do baixo vale na área de atuação, mostrando os terrenos aplainados cultivados, assenta­
mentos do bairro (à esquerda) e as montanhas no entorno. A direita na foto, no centro da área aberta
atravessada pela estrada, encontra-se o sítio cerâmico BS 19 (Foto: Paulo De Blasis).

uma das razões para a escolha deste local para a locais em alguns momentos causaram empecilhos
aplicação do programa de prospecção intensiva, para o exame de alguns trechos da área de atua­
pois não apenas a probabilidade de identificar todos ção, só resolvidos com um bom investimento em
os sítios da área era maior, como tomar-se-ia possí­ conversações e argumentos. Neste sentido, foram
vel realizar comparações em termos de eficácia e decisivos a postura sempre cordial da equipe e o
produtividade (enfim, relação custo/benefício) entre cuidadoso e sistemático trabalho de fechar todas
este levantamento e os anteriores. as sondagens e “buracos” feitos, dando atenção aos
proprietários no momento da escolha dos locais a
serem escavados, e minimizando ao máximo o im­
As cam panhas de campo pacto provocado pelas intervenções. Foi possível
mostrar na prática que a pesquisa arqueológica,
mesmo quando estavam em jogo escavações siste­
As pesquisas de campo no Bairro da Serra fo­ máticas nos espaços doméstico, de trabalho e de
ram realizadas em cinco campanhas ao longo do circulação do bairro, não provocavam qualquer pre­
segundo semestre de 1994. A metodologia utilizada juízo aos proprietários do terreno, quer fosse usa­
se desdobra em dois programas básicos, desenvol­ do para moradia ou cultivo.
vidos simultaneamente: prospecção sistemática do Na primeira campanha foi realizado um reco­
fundo de vale e seu entorno e escavações amostrais nhecimento detalhado do terreno, através de cam i­
em sítios selecionados. A prospecção sistemática nhadas por toda a área de atuação. Além de adquirir
demandou muito mais tempo e esforços do que fora maior intimidade com o vale e o espaço físico do
previsto, mas também se revelou extremamente im­ bairro, foi possível também um maior contato com
portante e bem sucedida, definindo mesmo o futuro seus moradores, acostumando-os aos poucos à pre­
da pesquisa. As escavações amostrais, por outro sença da equipe e aos trabalhos de prospecção em
lado, resvalaram em diversas dificuldades, sobretu­ seus terrenos. Todos os dezesste sítios até então
do devido ao estado de conservação dos sítios. conhecidos foram revisitados e cuidadosamente
O “preparo psicológico” dos moradores, feito observados, com coletas ocasionais de superfície.
desde a primeira campanha e ao longo de todas as Com alguns moradores foi possível já com binar
seguintes, foi indispensável para levar a bom termo as intervenções (escavações) em seus quintais, pla­
as pesquisas, como se viu depois. Apesar da exce­ nejadas para a seqüência das pesquisas. Nesta cam ­
lente e não raro carinhosa receptividade da popu­ panha foram descobertos dois novos sítios cerâ­
lação serrana, conflitos fundiários e “diz-que-diz” micos (BS18 e BS 19) que, juntam ente com BS9

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coverage survey no Bairro da Serra. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

(Tio Grande) já conhecido, definiram a presença Existem certamente outros sítios líticos e cerâmicos
de um horizonte de ocupação do período cerâmico na área, interessante e promissora para futuras pes­
no vale, até então praticam ente desapercebido. quisas.
Na segunda campanha, mais longa e com equi­ Na terceira campanha, mais curta, deu-se pros­
pe mais numerosa, foram realizadas escavações no seguimento às prospecções sistemáticas, tendo sido
sítio cerâmico BS 19 e sondagens em outros seis trabalhadas as parcelas 1C, 1D, 2A e 2B (Figura
sítios (cinco líticos e um cerâmico), iniciando-se 4). Em 1C, foram encontradas duas concentrações
ainda o programa de prospecções sistemáticas no bastante discretas de fragmentos cerâmicos acom ­
lado mais baixo do vale. As escavações em BS 19, p anhando peq u en as fo g u eiras (sítio s BS21 e
que configura um aldeamento de razoáveis propor­ BS23). A parcela 2B consiste na grande colina
ções do período ceram ista, tiveram um caráter central do vale, no topo da qual foi encontrado
bastante expedito. O terreno onde se assenta o sítio, BS22, o maior dos sítios líticos do Bairro da Serra.
que já fora arado, seria gradeado dali a cinco dias, O sítio foi sondado intensamente (20m2) e apro­
para posterior plantio de arroz e milho. Trabalhando ximadamente delimitado, decidindo-se escavá-lo
com grande agilidade, a equipe delimitou parte do na etapa seguinte. Foram ainda prospectados a par­
sítio através de nove trincheiras de grande extensão, cela 2A, onde outro pequeno sítio cerâm ico foi
tendo também evidenciado e mapeado numerosas plotado (BS24), o pequeno vale lateral da Aberta
estruturas. Os dem ais sítios líticos trabalhados Funda (parcela ID) e o Lajeado, um trecho monta­
nesta etapa (BS1, BS3, BS 14, BS 11 e BS 15) eram nhoso contíguo a oeste do vale (ver Figura 1).
bastante rarefeitos e estavam quase totalmente des­ Na quarta campanha foi realizada a prospec-
truídos, tendo sido possível delimitar apenas BS 14. ção sistemática de todo o lado ocidental do vale
Foi sondado também o sítio cerâmico BS9 (Tio (parcelas 2D e 3D) e também do flanco oriental
Grande) que, situado sobre um pequeno patamar (parcelas 2C e 3C). N estas prospecções foram
de baixa vertente, revelou uma certa densidade de encontrados seis sítios cerâmicos (BS25, BS26,
vestígios em movimento descendente pelas ver­ BS27, BS28, BS30 e BS31) e três líticos (BS29,
tentes. O programa de prospecções sistemáticas do BS32 e BS34), todos de pequenas dim ensões.
Bairro da Serra foi iniciado com a investigação das Outro sítio lítico (BS2) e um antigo assentamento
parcelas 1A e 1B (Figura 4), resultando na identi­ do bairro rural, local de provável assentamento pré-
ficação de um pequeno sítio cerâmico (BS40) não colonial (BS38), foram intensamente sondados. Em
longe de BS 19, no meio da planície do baixo vale. BS22, o sítio lítico mais denso localizado na etapa
A inda nesta cam panha foi realizada um a anterior, foram realizadas extensas escavações in­
viagem de reconhecimento ao vale do rio Pilões, cluindo a abertura de quatro trincheiras e seis pe­
um trecho serrano a leste do Bairro da Serra, onde quenas áreas de decapagem para a evidenciação
tam bém se encontra um bairro rural, cham ado de estruturas.
Porto da Barra dos Pilões. Para alcançar esta área Na quinta e última campanha, já entrando de­
foi necessário cruzar o rio Ribeira em uma pequena zembro, época em que as chuvas e o calor pratica­
balsa presa a um cabo de aço e movida pelo própria mente inviabilizam a pesquisa arqueológica nesta
correnteza do rio, percorrendo em seguida uma região, foram concluídas as prospecções sistemá­
terrível estrada de 8km. Esta comunidade contem­ ticas (parcelas 3A, 3B e o fundo de 2D) e com ­
porânea, ainda hoje bastante isolada, se encontra plementadas as escavações em BS22, com a abertu­
na confluência do rio dos Pilões com um grande ra de duas novas trincheiras e cinco sondagens, e
afluente, um trecho de colinas suaves cercadas de ainda a abertura de mais outra área de decapagem,
serras altas. No topo da colina maior, onde se en­ para evidenciação de um conjunto de pequenas fo­
contram a pequena capela de São José e o cemitério gueiras em profundidade. Além disso, foram rea­
do bairro, foi identificado um sítio lítico de bom lizadas escavações em outro sítio lítico pouco denso
tamanho e ainda bastante denso, apesar de ter sido (BS4), com a abertura de quatro trincheiras. Nesta
“descascado” com m áquina de terraplenagem . etapa foi realizada uma expedição à região vizinha
Além dos vestígios líticos foram também encon­ de Itaoca, revisitando-se sítios concheiros e líticos
trados escassos fragmentos cerâmicos, indicando já cadastrados (Barreto, 1988 e De Blasis, 1988),
a presença de um nível de ocupação do período com destaq u e para os aflo ram en to s de rocha
cerâm ico no local, destruído pela terraplenagem. silicosa do Pavão, nas encostas do vale do ribeirão

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Fig. 4 - Divisão da área de atuação em zonas e parcelas utilizadas nas prospecções.

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coverage survey no Bairro da Serra. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5. 125-143, 1995.

Santo Antonio, de onde parecem provir as m atéri­ ao padrão já descrito para estes sítios (De Blasis,
as primas utilizadas no Betari. 1988, 1990) - mas nem por isso menos importantes
Assim, apesar de já se entrar um pouco na na análise sistêmica do conjunto de sítios, do siste­
época das chuvas e do calor intenso, foi possível ma de assentamento.
concluir a contento as pesquisas de campo progra­ Os desenhos de amostragem mais comumente
madas, com pletando as prospecções sistemáticas utilizados (p.e. Plog & Hill 1971; Redman, 1974;
e realizando um amplo espectro de escavações em Mueller, 1975; S. Plog, 1976; Schiffer et al, 1978;
sítios líticos, como previsto. Além disso, foram para uma análise retrospectiva ver Wobst, 1983) têm,
também evidenciados vários sítios cerâmicos não em geral, o objetivo de reconhecer a distribuição
previstos, sendo que um deles, o maior (BS 19), foi dos sítios - quase sempre os maiores - em um dado
parcialmente escavado. Estes resultados podem ser universo de pesquisa, e não pareciam indicados para
considerados bastante positivos, como se verá na resolver o problema colocado pelo pequeno agrupa­
discussão encam inhada em seguida. mento de sítios em estudo, onde o conhecimento
detalhado do uso do espaço no interior do agrupa­
mento é um objetivo essencial da pesquisa, e onde
As prospecções intensivas algumas unidades mínimas de análise exibem di­
(full-coverage survey) mensões extremamente reduzidas, como é o caso
de vários dos sítios cerâmicos encontrados.
Como exposto anteriormente, um dos objeti­ A opção foi, portanto, por um método de cober­
vos dos levantamentos de campo era uma estim a­ tura total (full-coverage survey), que permitisse
tiva bastante precisa da quantidade, variedade e identificar a totalidade, a diversidade e a distribui­
distribuição dos sítios líticos no interior do agru­ ção dos sítios arqueológicos relacionados aos
pam ento local, de modo a analisar as evidências sistemas de assentamento em estudo presentes na
de concomitância, articulação e integração funcio­ área de atuação, focada para o interior de um agru­
nal que exibissem, procurando, assim, definir em pamento de sítios, um espaço privilegiado para a
âmbito local as características do sistema de as­ análise das atividades de âmbito local (Binford,
sentamento que estes sítios configuram. 1982). O exame da bibliografia disponível (ver Fish
Desde o primeiro período de campo ficou claro & K ow alewski, 1990 para uma sistem atização
que não seria possível obter uma estim ativa da deste tema) indica que raram ente tais métodos
totalidade de sítios no pequeno vale do Bairro da haviam sido aplicados em áreas florestadas (ou co­
Serra sem executar levantamentos sistemáticos, bertas por tiguera e vegetação secundária) ou mes­
sobretudo tendo em vista os recém descobertos mo com considerável adensamento populacional.
sítios cerâmicos, na maioria extremamente discre­ H abitualm ente, estes levantam entos vêm sendo
tos. M ais ainda, estes levantamentos teriam de ser executados por observação de superfície (foot sur­
sub-superficiais (shovel-testing) pois as condições vey) de grandes áreas de terrenos abertos, quase
do terreno - quintal, cultivo, pasto, tiguera, vege­ sempre áridos ou semi-áridos, o que implica em
tação secundária - implicavam em péssima visibi­ boa visibilidade de superfície. Decidiu-se, então,
lidade para vestígios à superfície, à exceção dos considerando-se a extensão relativamente pequena
terrenos recentemente arados para cultivo, encon­ da área a ser prospectada, realizar levantamentos
tr a d lo s no final de julho e início de agosto. sub-superficiais sistem áticos (Lightfoot, 1986;
A maior parte dos sítios líticos já fora cadastra­ Nance & Bali, 1986) pois, apesar de muito mais
da nos levantamentos de campo anteriores (identifi­ trabalhosos e demorados, deveriam trazer os resul­
cados através de indicações dos moradores locais, tados esperados, expectativa esta plenamente con­
e tam bém a partir das características recorrentes firmada.
do padrão de implantação destes sítios na paisagem Primeiramente, a área foi dividida em “zonas”
regional), tendo sido objeto de coletas totais de (alto, médio e baixo vale) e “parcelas” , trechos do
superfície (Lewarch & 0 ’Brien, 1981; Lightfoot, terreno contíguos e mais ou menos homogêneos,
1986; Schlanger & Orcutt, 1986; Redman, 1987). que pudessem ser trabalhados em uma mesma se­
Portanto, o desafio era identificar justamente aque­ qüência operacional. A área de pesquisa foi, assim,
les assentamentos menos óbvios - pequenos, ou repartida em três zonas e doze parcelas (Figura 4).
implantados em uma situação incomum em relação Em seguida, se em terreno plano, estabeleceram -

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se linhas retas, paralelamente orientadas com auxí­ nhas paralelas, perfazendo um total de mil e três
lio da bússola e referências visuais no terreno, e testes sequenciados (aproximadamente um teste
regularm ente espaçadas em 20 ou 25 metros. Em para cada 200m2, tirando os terrenos inconsoli-
cada linha, testes com enxada (shovel-testing) eram dados ou cobertos por edificações), além de testes
realizados de 10 em 10 metros, alcançando uma aleatórios e diversas sondagens de um metro qua­
profundidade m édia entre 20 e 30cm no terreno. drado em locais específicos.
Quando se tratava de uma parcela colinar, por outro
lado, as linhas eram apontadas em convergência
para o topo e não necessariamente retas, mas acom­ Os sítios arqueológicos
panhando as nuances das vertentes (Figura 5). do Bairro da Serra
O padrão acima, na verdade, sintetiza uma cer­
ta variabilidade na aplicação do método, pois às Foram cadastrados na área de atuação do pro­
vezes terrenos planos e ondulados se integram, e grama de prospecções intensivas vinte e três novos
também porque se experimentou o método desde o sítios que, somados aos dezessete anteriormente
início, aperfeiçoando-o conforme as características cadastrados, perfazem um total de quarenta sítios
do terreno ao longo do trabalho. Naqueles lugares no Bairro da Serra (siglados BS e numerados se­
em que se detectaram vestígios, ou onde a topografia qüencialmente). Deste total, vinte (50%) são sítios
do terreno era sugestiva, os testes de sub-superfície líticos, associados a assentamentos de caçadores-
eram intensificados, eventualmente com plem en­ coletores do período Arcaico tardio; quinze (37%)
tados por sondagens de lm 2, quando os vestígios são sítios cerâmicos, associados a uma ocupação
em profundidade foram coletados em níveis artifi­ de grupos horticultores do período pré-contato; fi­
ciais de lOcm, e feitas observações estratigráficas. nalmente, cinco outros sítios (13%) são de época
Esta m etodologia revelou-se extremam ente mais recente, associados aos ancestrais dos atuais
eficiente no processo de detectar conjuntos discre­ ocupantes do vale. Na Figura 8 (abaixo) pode-se
tos de vestígios arqueológicos, inclusive alguns de observar a localização e distribuição dos sítios ca­
dimensões bastante diminutas. De fato, além de dastrados no Bairro da Serra.
alguns novos sítios líticos que ainda não eram co­ Como se percebe na Tabela 1 (abaixo), os sítios
nhecidos, foi possível descobrir toda uma ocupação líticos concentram-se na porção mais alta do vale
do vale no período ceramista definida por dezoito (zona 3), com terraços mais antigos e ondulados, e
sítios, dos quais só se conhecia até então um único também mais altos em relação ao rio Betari. Estes
sítio. Além disso, alguns sítios associados à ocupa­ terrenos mais antigos são também os mais sujeitos
ção contemporânea do vale, assentamentos antigos à erosão, acentuada pela ocupação da comunidade
ligados à história do próprio bairro rural, foram rural contemporânea, que tem pelo menos cerca
também cadastrados e seus moradores identifi­ de 200 anos de história contínua neste local, e cujas
cados através de depoimentos dos habitantes mais características locacionais coincidem com os sítios
idosos, de modo a investigar alguns aspectos (so­ líticos em cerca de 92% dos casos. Esta é, sem
bretudo históricos) do sistema de assentamento que dúvida, a causa principal do processo de desapare­
caracteriza a comunidade contemporânea. cimento gradual pelo qual passam estes sítios, que
Apesar de não planejado para tanto, este dese­ estão se tornando mais e mais invisíveis a cada
nho de prospecção revelou também ocorrências dia. Foram cadastrados no Bairro da Serra um total
esparsas de vestígios líticos e cerâmicos, geralmen­ de vinte sítios líticos, quinze (75%) dos quais eram
te um ou dois líticos ou cacos dissociados de quais­ já conhecidos, sendo, inclusive, BS1 a BS4 os pri­
quer outras evidências observáveis. No total, deze­ meiros sítios plotados no Projeto M édio Ribeira,
ssete ocorrências deste tipo foram registradas e ma­ ainda por ocasião dos levantamentos de contextua-
peadas. Neste sentido, convém ressaltar que com lização arqueológica para o estudo do Abismo
a aplicação deste método é bastante difícil (ainda Ponta de Flecha (Barreto et alii, 1982 a e b; este
que não seja impossível) deixar de detectar qual­ sítio paleontológico e arqueológico está situado em
quer concentração de vestígios arqueológicos, mes­ um colo da serra adjacente, a oeste do fundo do
mo as mais discretas. A título de exemplo, apenas vale, ver Figura 2). Os cinco novos sítios (25% do
nas parcelas 3A e 3B, com uma área aproximada total) foram identificados por ocasião dos levanta­
de 0,4km2, foram investigadas sessenta e duas li­ mentos intensivos reportados neste capítulo.

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Fig. 5 - Exemplo dos alinhamentos usados nas prospecções: a cobretura das parcelas IA, 1B, 1C e 1D

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Como se vê, não são muitos os novos sítios seja composta de vestígios bastante discretos (al­
líticos encontrados na área-foco de pesquisa, o que guns sítios, como BS21 e BS23, são constituídos
confirma a idéia de que, nas análises anteriores apenas por uma pequena fogueira e uns poucos
(De Blasis, 1988), dispunha-se de uma amostra fragmentos cerâmicos, com área de cerca de 5 a
significativa dos sítios existentes no local. Por outro 6m2), no baixo vale, nas proximidades da confluên­
lado, este programa de levantamentos sistemáticos cia do córrego Areias no Betari, foi encontrada uma
de 1994 (full-coverage survey) permitiu identificar aldeia de proporções surpreendentes (BS 19), com
o que se supõe seja a totalidade dos sítios ainda uma área de pelo menos 6.000m2, que até então
visíveis (isto é, não totalmente destruídos) da área, passara praticamente desapercebida. Assim, ainda
como permitiu também identificar um sítio grande que alguns poucos destes sítios cerâmicos dim i­
e denso (BS22) até então desconhecido, localizado nutos possam ter escapado da “malha fina” da pros-
no topo da colina central do vale, além de também pecção (sobretudo nos trechos mais urbanizados
permitir uma avaliação em detalhe das condições do bairro), foi encontrada certam ente a grande
gerais de conservação destes sítios. Estes novos maioria deles, o que é suficiente para perceber sua
dados alteram significativamente o quadro anterior distribuição pelo vale, assim como entender as
e abrem novas perspectivas de análise das caracte­ características do padrão de assentamento desta
rísticas deste sistema de assentamento em âmbito sociedade ceramista e horticultora, o que também
local (o que será feito em outro trabalho). será objeto de outro trabalho.
Os sítios cerâmicos, por sua vez, têm uma dis­ Os sítios recentes, por sua vez (aqui desig­
tribuição mais equitativa por toda a área, concen­ nados “serranos”, em alusão ao Bairro da Serra,
trando-se ligeiramente no baixo vale, onde predo­ nome atual da localidade), exibem, às vezes, ruínas
minam os terrenos sedimentares mais recentes, de fundações e paredes, como é o caso de BS5
baixos e úmidos, mais sujeitos às cheias de verão. (Figura 6), BS38 e BS39; de alguns assentamentos
Isto conservou estes sítios razoavelmente bem, pro- mais simples, entretanto, somente restos do fogão
tegendo-os da erosão. O uso contemporâneo destes de barro continuam visíveis. Por outro lado, conjun­
terraços, utilizados principalmente para cultivo, fez tos de cerâmica colonial ou mais recente aparece
com que os sítios ali presentes se preservassem um em vários locais sem restos de edificações, como
pouco melhor, apesar de alguma dispersão dos em BS35 e BS36, provavelmente restos de assenta­
vestígios mais superficiais provocada pelo arado mentos ainda mais antigos. Apenas estes cinco sí­
(Roper, 1976) e, naqueles sítios situados sobre coli­ tios relacionados à história do bairro rural foram
nas baixas, pelo movimento descendente verten­ cadastrados, tendo sido plotadas outras ruínas na
tes abaixo (Rick, 1976), principalmente quando área, ainda não identificadas, mas, em geral, mais
roçados. Embora a maioria destes sítios cerâmicos recentes e relacionadas às duas gerações imediata-

TABELA 1

Implantação e distribuição dos sítios do Bairro da Serra

líticos cerâmicos serranos totais %

terraço antigo 10 (50%) 3 (20%) 4 (80%) 17 42


terraço recente 6 (40%) 6 15
baixa vertente 5 (25%) 5 (33%) 10 25
colina baixa 4 (20%) 1 (20%) 5 13
colina média 1 ( 5%) 1 (07%) 2 5
totais 20 15 5 40

zona 3 15 (75%) 5 (33%) 4


zona 2 4 (20%) 4 (27%) 1
zona 1 1 (5% ) 6 (40%)
Os percentuais internos da tabela se referem à frequência dos tipos de implantação e das zonas onde se encontram por categoria de sítio

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mente anteriores da comunidade. Por outro lado, outro. Além disso, buscou-se evidenciar estrutu­
alguns assentamentos ainda hoje ocupados pare­ ras de com bustão datáveis, bem contextualizadas,
cem tê-lo sido por um longo tempo, com significa­ que pudessem fornecer um contexto cronológico
tiva degradação dos locais onde se encontram, com consistente para a análise dos sistemas de assen­
perdas de até um metro de solo, certamente fatais tamento em pauta.
para os vestígios arqueológicos em estudo. Nesse sentido, foram feitas escavações amos­
trais em quatro sítios líticos (20% deles), e son­
dagens em outros oito, de acordo com a tabela abai­
As escavações xo. Foram também realizadas escavações amos­
trais na grande aldeia do período ceramista (BS 19),
De acordo com o projeto inicial, a perspectiva encontrada na parte mais baixa do vale.
era escavar am ostralmente cerca de 10% do total As escavações foram realizadas sob duas orien­
de sítios levantados, de modo a perceber variações tações distintas, de acordo com as condições do ter­
intra e inter-sítio que pudessem caracterizar áreas reno. Em havendo uma residência contemporânea
de atividade (Kent, 1984, 1987), por um lado, e (e suas dependências) sobre o sítio, buscou-se
variabilidade funcional e articulação dos sítios, por delimitá-lo e amostrar suas variações internas atra­

Fig. 6 - Detalhe do sítio “serrano” BS5. O sítio é caracterizado pelo alinhamento de pedras que se
percebe no solo em prim eiro plano, restos das fundações da antiga “Casa G rande" do bairro, dem oli­
da em 1969. Seus esteios e vigas foram reutilizados em contruções subseqüentes, como a casa de pau-
a-pique construída sobre o sítio (Foto: Silvia Portugal).

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vés de sondagens, aleatoriamente distribuídas em abertura de longas trincheiras acompanhadas, em


função das possibilidades em cada caso, mas bus­ BS 19 e BS22, de pequenas áreas de decapagem
cando sempre, na medida do possível, examinar para evidenciação de estruturas de com bustão e
equitativamente as quatro parcelas do sítio defini­ zonas de maior concentração de vestígios. Nestes
das pelos eixos ortogonais N-S/E-W. dois sítios (um cerâmico e o outro litico), os m aio­
res da área de pesquisa, estruturas e uma maior
quantidade de vestígios foram detectadas em sub-
TABELA 2 superfície, justificando as escavações mais amplas.
BS 19 configura uma área de aldeamento do perío­
Área escavada nos sítios do Bairro da Serra (em m2)
do ceramista situada sobre um amplo terraço de
sedimentação fluvial, e as escavações tiveram de
sítio sondagens trincheiras decapagem total %
se realizar em apenas cinco dias, quando se inicia­
BS1 5
ria o plantio de arroz e milho. Em BS22, pelo me­
BS2 12
BS3 5
nos 40cm dos níveis superiores do sítio haviam já
BS4 1 59 60 20
sido eliminados pela terraplenagem do terreno. As­
BS5 2 sim, as escavações exploraram apenas o “fundo”
BS8 7 do sítio que, no entanto, forneceu ainda muitas evi­
BS10 2 dências. Em BS4, um sítio litico de pequenas di­
BS11 2
mensões, foi possível delimitá-lo e perceber as ati­
BS12 4
BS13 2 vidades concentradas em uma área bastante re­
BS14 23 6 duzida. Assim, durante as campanhas de 1994 fo­
BS15 1 ram escavados 457m2 que, somados aos 17m2es­
BS16 2 cavados nas campanhas anteriores, perfazem o to­
BS17 3
tal de 474m2 de área escavada no Bairro da Serra.
BS19 1 150 18 169 2
BS22 25 92 45 162 9
BS35 5 ***
BS36 4
BS37 4
Com respeito à metodologia aplicada em cam­
- área total escavada: 474 m2
po, pode-se dizer que os resultados foram muito
A coluna % refere-se ao percentual estimado de área pesquisada
positivos. As prospecções sistemáticas (full-cove-
nos sítios escavados.
rage survey) foram extremamente eficientes para
A intensidade da amostragem dependeu da evidenciar em detalhe a distribuição e as caracte­
natureza e quantidade dos vestígios encontrados, rísticas diferenciais dos sítios que compõem os sis­
variáveis estas relacionadas principalmente com o temas de assentamento de diferentes populações
estado de conservação do sítio. Percebeu-se que em diferentes momentos de ocupação do vale do
nos sítios líticos pequenos e ralos, geralmente su­ Bairro da Serra, assim como a intensidade de cada
perficiais, em sua maior parte erodidos pelo uso um deles na área amostrada. Tendo em vista que
contínuo ao longo da história recente do bairro, era esta área era considerada “bem am ostrada” ante­
inútil insistir nos aspectos de diferenciação interna riormente, a grande quantidade e variedade dos no­
no uso do espaço, buscando-se, então, sobretudo vos sítios detectados deixa clara a eficácia da meto­
sua delimitação. Este foi o caso de BS1, BS2 e dologia de prospecção intensiva empregada, de­
BS 14 (Figura 7), onde os resultados desestimula- monstrando a fragilidade dos levantamentos expe­
ram a aplicação desta metodologia na escavação ditos e superficiais quando está em jogo um a aná­
de outros sítios semelhantes. Entretanto, foram lise mais detalhada das características dem ográfi­
ainda sistematicamente sondados os sítios BS3, cas e funcionais de um sistema de assentamento
BS11, BS12, BS13, BS15, BS37 e BS38. A estes específico.
somam-se BS8, BS 16 e BS 17, sondados anterior­ O método de prospecções intensivas, ou de
mente (De Blasis, 1988: 63-64). cobertura total {full-coverage survey), revelou-se
Dois sítios líticos (BS4 e BS22) e um sítio ce­ surpreendentemente eficaz em relação aos vestígi­
râmico (BS 19) foram escavados com maior inten­ os da ocupação ceramista no Bairro da Serra. De
sidade. A metodologia nestes sítios privilegiou a fato, já se conhecia um sítio cerâmico no local, Tio

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Fig. 7 - Vista de um assentamento rural do Bairro da Serra, onde se observa a casa, o quintal e a horta
adjacente. Sob este assentamento encontra-se o sítio BS 14 (Foto: Paulo De Blasis).

Grande (BS9), e fragmentos rarefeitos de cerâmica disso) de vestígios presentes no vale e, assim,
Itararé haviam aparecido ocasionalmente junto aos explorar com maior consistência aspectos relacio­
vestígios dos sítios líticos, e também dispersos no nados à distribuição dos assentamentos, caracterís­
amplo terraço do baixo vale. Entretanto, os cator­ ticas funcionais das relações entre os sítios e, inclu­
ze novos sítios cerâmicos plotados, um dos quais sive, questões com o subsistência e dem ografía
bastante grande e denso (BS 19), constituem uma podem ser abordadas de maneira muito mais obje­
surpresa por serem inesperados, revelando uma tiva. Dispor da totalidade dos sítios de uma área,
densidade de ocupação da área que havia até en­ com certeza, permite maior eficácia nas decisões
tão passado desapercebida, apesar de se conside­ relativas à escolha de sítios para escavação, e quan­
rar o B air-ro da Serra como uma área que já havia do se dispõe de amostras de vários deles análises
sido “bem exam inada” . C onsiderando que boa envolvendo articulação e concomitância podem ser
parte destes sítios cerâmicos são extremamente dis­ realizadas com muito maior clareza e eficiência.
cretos, mas apesar disso bastante importantes para As escavações em alguns casos excederam as
a com preensão do sistema de assentamento local, expectativas em termos de área escavada e perm i­
fica novam ente registrada a eficácia do método e tiram uma compreensão eficiente do estado de con­
sua adequação quando se trata de buscar a totali­ servação dos sítios e suas dimensões. A investiga­
dade dos vestígios arqueológicos presentes em uma ção do espaço interno dos sítios, no entanto, resva­
dada área de pesquisa. lou na má conservação da m aioria deles. Além
Assim, a partir deste levantamento toma-se disso, o trabalho em BS 19 e BS22 mostrou que a
possível - para ambas as ocupações detectadas - abertura de superfícies de decapagem, se e quando
trabalhar com a totalidade (ou algo muito próximo possível, é o método que fornece a m elhor com-

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Fig. 8 - A área de pesquisa com os sítios conhecidos antes do programa de prospecções intensivas
(acima). Como se vê, a ocupação do período ceramista quase não fo ra detectada. Abaixo, a distribui­
ção dos diversos tipos de sítio identificados na área de pesquisa, após o programa de prospecções
sistemáticas, incluindo os sítios anteriormente conhecidos.

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preensão do espaço, da articulação espacial dos cional - algo assim como uma “arqueologia proto­
vestígios. Sondagens e trincheiras, muito eficientes urbana” - sem causar traumas ou conflitos de maior
para localizar as estruturas e as diferenciações de monta. Ao contrário, o trabalho no bairro mostra
densidade de vestígios, são sofríveis, no entanto, que se pode mesmo despertar o interesse da com u­
para melhor definir e caracterizar aquilo que evi­ nidade em tom o da história do local onde vivem,
denciaram. Isto explica a abertura de áreas de deca- em um a certa m edida sua pró p ria história. A
pagem nestes sítios, aproveitando o fato de que o experiência m ostra também que, mesmo se os síti­
nível arqueológico encontrava-se em sub-superfí- os encontrados quase sempre estão em mau estado
cie, o que permitiu detectar algumas evidências de de conservação, ainda assim m uita inform ação
variação no uso interno do espaço do assentamen­ arqueológica pode ser obtida com a utilização de
to. métodos adequados, procurando ajustar a acuidade
Concluindo, os resultados foram bastante aus­ das observações ao âmbito da problemática previa­
piciosos, tanto em relação à eficácia da m etodolo­ mente proposta. Esta perspectiva implica não ape­
gia de campo empregada, quanto aos dados pro­ nas na adoção de um esquem a de pesquisa em
duzidos, que permitiram a retom ada de problemas m ulti-estágios, como preconizado por Redman
relacionados aos sistemas de assentamento ante­ (1973), mas, sobretudo, na necessidade de se traba­
riormente identificados em âmbito regional em uma lhar com hipóteses a serem testadas, que conduzam
perspectiva que privilegia a localidade, o espaço a pesquisa e confiram coerência às opções metodo­
da comunidade. A abordagem de campo adotada lógicas que venham a ser adotadas em cada caso.
também permitiu o estudo, em um mesmo espaço,
das sucessivas populações que ali se instalaram,
explorando com parativamente suas características Agradecim entos
em term os de padrão de assentam ento, subsis­
tência, tecnologia e demografía.
Embora cada uma destas ocupações apresente Este trabalho não poderia ter-se realizado sem
seus próprios problemas, o fato de se referirem ao o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
mesmo espaço permite algumas inferências de ca­ Estado de São Paulo (FAPESP), que custeou as
ráter comparativo. Além disso, a inclusão da comu­ pesquisas de campo através de uma bolsa de auxílio
nidade contemporânea (e sua história) neste estu­ à pesquisa. Gostaríamos de agradecer também aos
do abre espaço para perspectivas de análise ainda colegas e amigos, pesquisadores e estagiários do
pouco comuns na arqueologia brasileira. Os resul­ MAE e do Museu Nacional (RJ), cuja colaboração
tados obtidos na pesquisa de campo da área-foco em campo foi preciosa: Eduardo Neves, M aria
de atuação parecem mesmo ideais para explorar a Dulce Gaspar, Cristina Tenório, Silvia Piedade,
idéia de “com unidade” em três momentos dife­ Marília Cury, Paulo Jacob, M árcia Barbosa, Carlos
rentes, um associado a supostos caçadores-coleto- Bordignon, Daniela Klokler, Tamima M ourad e
res, outro a grupos ceramistas/ horticultores e, final­ Letícia Motta. Não poderíamos esquecer Juraci de
mente, à comunidade contemporânea, cuja cultura Andrade, Pedrinho da Motta e Alcides Monteiro,
tradicional parece trazer inúmeros traços e influên­ cuja dedicação e empenho nos trabalhos de campo
cias que remontam a um passado longínquo, cujo permitiram sua conclusão a contento. Agradecemos
registro arqueológico com eça a se revelar. finalmente a Maurício Allegrini e Marcos Aidar
Neste sentido, a experiência comfull-coverage por nos cederem sua deliciosa “base de cam po” no
no Bairro da Serra serviu também para mostrar que Bairro da Serra, e à toda população do bairro, cujas
é perfeitamente possível realizar pesquisa arqueo­ m anifestações de apreço e am izade não esque­
lógica em áreas com um certo adensamento popula­ ceremos jamais.

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DE BLASIS, P.A.D.; MORALES, W.F. Analysing local settlement systems: an experience with
full-coverage survey in the middle Ribeira Valley, São Paulo State. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e Etnologia, São Paulo, 5: 125-143, 1995.

ABSTRACT: This article discusses the methodological approach and the research
design of an archaeological survey conducted on a small valley in the middle Ribeira
basin, south of São Paulo state, a very hilly and forested environment. The main
expectation of the project was understand the local characteristics of the Archaic
period settlement system, as well as of the contemporary traditional community that
still lives in the same place. Due to low surface visibility in the area, full-coverage
survey has been applied with a tight grid of sub-surface test pits all over the valley,
with excellent results in terms of discovering many different kinds of sites (including
a whole occupation from the ceramic period) and its spatial distribution patterns.

UNITERMS: Archaeological research design - Full-coverage survey

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Recebido para publicação em 29 de novembro de 1995.


Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

A TRADIÇÃO ITAPARICA E AS INDÚSTRIAS LÍTICAS PRÉ-


CERÂMICAS DA LAPA DO BOQUETE (MG - BRASIL)

Emílio Fogaça*

La valeur théorique attribuée p a r l ’anthropologie


évolutionniste moderne à la technologie est historique­
m ent contingente. L ’homme est aujourd’hui dépendant
des machines et, en termes d ’évolution, l ’avenir de la
culture paraît assujetti au progrès de cette panoplie.
Au demeurant, q u ’est-ce que la préhistoire, sinon un
inventaire d ’outils, car, comme l ’a dit fo r t justem ent
un archéologue connu, “les gens, eux, ils sont m o rts”.
(Sahlins, 1972)
Whatever the meaning o f these diferences, they exist.
(Bordes, 1979)

FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG -


Brasil). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

RESUMO: As primeiras indústrias líticas do holoceno no Planalto Central do


Brasil são agrupadas por alguns arqueólogos dentro de um horizonte paleo-índio
denominado Tradição Itaparica. As coleções estudadas provêm majoritariamente
de sondagens em abrigos. As comparações entre indústrias baseiam-se sobretudo
em descrições de instrumentos retocados. Neste artigo, procura-se discutir a vali­
dade de tais atribuições culturais a partir da análise tecnológica das primeiras
indústrias da Lapa do Boquete (1200-8000 AP). Levanta-se, então, a hipótese da
coexistência de estratégias acuradas e expeditas. Por fim, sugere-se a identificação
no material de características que podem ressaltar de comportamentos oriundos de
necessidades não funcionais, portadores talvez de signos de uma real identidade
étnica.

UNITERMOS: Arqueologia de M inas Gerais - Caçadores - Litico - Tradição


Itaparica.

Pretendo tratar aqui de alguns problemas meto­ As indústrias em estudo foram recuperadas em
dológicos ligados à caracterização de coleções líticas 30m2 escavados na Lapa do Boquete (vale do rio
recuperadas num único sítio e à sua inserção num Peruaçu, Minas Gerais) nos níveis arqueológicos
contexto mais amplo, macro-regional. V ili, VII, VI e V, datados entre 12000 e 7000 AP.
Enquadram-se portanto no que se convencionou cha­
(*) Setor de A rqueologia (M H N -U FM G ), bolsista da mar de períodos Paleo-índio e Arcaico Inferior. No
FAPEMIG. Planalto Central brasileiro, as indústrias desse in-

145
FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Re v. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

tervalo cronológico são agrupadas por alguns auto­ se em comparar as indústrias de Serranópolis com
res sob o termo Tradição Itaparica. indústrias de outras regiões. Reconhece, por seme­
Esse termo foi primeiramente utilizado por V. lhança tipológica e/ou coincidências de datações,
Calderón durante pesquisas realizadas na década material da Fase Paranaíba em sítios a céu-aberto de
de sessenta. Denominou Tradição Itaparica as in­ Goiás (Caiapônia) e de horizontes antigos da Tradi­
dústrias líticas que reconheceu através de escava­ ção Itaparica em estados do sudoeste (Minas Gerais
ção p o r nív eis a rtific ia is na G ruta do P adre e São Paulo - com algumas reticências) e do nordes­
(Pernambuco) e aquelas recuperadas em outros cinco te (Schmitz, 1980: 207-08, 1984: quadros anexos).
sítios superficiais, depósitos aluvionais não distan­ Destacando a raridade das pontas de projétil
tes da Gruta do Padre (Calderón, 1969: 136; 1983: líticas (que começam a surgir em tomo de 9000/
40-42). Dividiu sua Tradição em duas Fases: Fase 8500 AP), levanta a hipótese de que existiria no
Itaparica (a partir de 8000/7000 AP) e Fase São Brasil um horizonte Paleo-Indio sem pontas (Cen­
Francisco (a partir de 2500 AP). tro-Nordeste) e um horizonte com pontas (Planalto
Calderón estabeleceu a presença de lesmas Meridional). No Centro-Nordeste, tratar-se-iam de
como fóssil-guia de seu horizonte antigo. Preocu- culturas - ligadas a áreas de cerrado e caatinga - de
pou-se com a utilização de terminologias arbitrári­ caçadores-coletores generalizados. Servem igual­
as para a descrição de pontas de projétil e com a mente como argumentos para essas hipóteses o des­
ausência de m étodos estatísticos (os gráficos conhecimento de sítios de matança e, em Goiás, a
acumulativos de F. Bordes?) para a caracterização presença de vestígios alimentares indicadores da uti­
dos complexos industriais e sua comparação. Numa lização dos abrigos como habitações ocupadas du­
perspectiva de reconstrução histórico-cultural, rante todo o ciclo anual (Schmitz, Barbosa, Ribei­
Calderón assume a utilização dos conceitos de Tra­ ro, eds., 1978/79/80: 18-21).
dição e Fase para a identificação de migrações pré- Este me parece ser, em suas grandes linhas, o
históricas (Calderón, 1973: 25). contexto macro-regional hoje estabelecido para o
Mas foi durante os anos setenta que o termo se Planalto Central brasileiro. Constitui-se de dois con­
firmou na bibliografia graças às pesquisas pionei­ juntos referenciais associados:
ras em preendidas por P.I.Schmitz no Estado de
- uma sistematização de dados empíricos:
Goiás (principalmente em seu terço mais meridio­
uma sucessão de indústrias líticas pré-cerâmi­
nal, no sudoeste do estado, na região de Serra-
cas que se inicia por um período no qual predo­
nópolis). Em Serranópolis, nove abrigos foram son­
minam artefatos unifaciais, seguido de outro
dados (poços-teste de 2x2m) e um abrigo escavado
período de indústrias sem artefatos tipológi­
(GO-JA-01, 40m2), todos por níveis artificiais de
camente reconhecíveis, ambos associados, por
lOcm de espessura. Schmitz identifica na sucessão
vezes e em alguns sítios, a peças bifaciais;
industrial desses sítios duas Fases pré-cerâmicas:
- uma sistematização de idéias para inter­
Fase Paranaíba e Fase Serranópolis. A primeira
pretar os dados organizados: um amplo con­
caracteriza-se pela presença de artefatos plano-con-
texto sócio-cultural (determinado ecologica­
vexos considerados sem elhantes àqueles recu­
mente) cujo sistema econômico explicaria as
perados por Calderón (Schmitz, 1980: 207) e per­
indústrias do primeiro período; o desapareci­
tencentes à mesma Tradição Itaparica. Perduraria
mento dos instrumentos antigos explicar-se-ia
de 11000 a 9000 AP. A Fase Serranópolis se mani­
por variáveis ambientais independentes, impli­
festa pela presença de indústrias sobre suportes pou­
cando em novas estratégias adaptativas e em
co transformados que não se enquadram no esque­
novas indústrias líticas.
ma tipológico que descreve a Fase anterior (perten­
cendo assim a uma Tradição não definida). Obviamente, se ambos os conjuntos referenciais
Schmitz dirige suas análises para a descrição são construções lógicas, não é necessário haver en­
detalhada de tipos de artefatos (sem entretanto res­ tre eles uma relação de causa e efeito.
ponder às sugestões de quantificação de Calderón No entanto, as pesquisas realizadas segundo as
com a publicação de gráficos acumulativos para estratégias elaboradas pelo PRONAPA - ainda que
comparar as indústrias). Estabelece também a les­ postulassem a carência de informações arqueológi­
ma como fóssil-guia do horizonte antigo (Schmitz, cas no Brasil de então e a necessidade de definir
Barbosa, Ribeiro, eds., 1978/79/80:22). Preocupa- rapidamente grandes quadros do passado pré-his­

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

tórico - tinham como referencial teórico, explícita coletoras; os vestígios em cada classe de sítio
ou implicitamente, a reconstrução histórica das cul­ podem resultar de séries de comportamentos não
turas arqueológicas. (Mas sobretudo nos EUA já diretamente determinadas por normas culturais
se impunham - desde meados dos anos sessenta - rígidas, mas também por respostas circunstan­
outras perspectivas teórico-metodológicas, vincu­ ciais a co n tin g ên cias de d iv ersas origens
lando a prática arqueológica a outros referenciais: (Binford, 1977,1979). Assim sendo, a presença
antropologia cultural, paletnologia, geografia, teo­ de vestígios alimentares que caracterizam um
ria dos sistemas, etc.). ciclo anual de ocupação não permitiria supor,
Se foi então aceito pela maioria da arqueologia por extrapolação lógica, um ciclo anual (sem
brasileira este único referencial, houve também uma variações espaciais) representativo de toda a
relação circular entre a sistematização dos dados gama de necessidades técnicas de utilização da
empíricos e das teorias: na perspectiva da reconstrução pedra lascada;
histórico-cultural (na qual, convém lem brar, o 3) as escavações por níveis artificiais po­
determinismo ecológico é um conceito-chave) impor­ dem não permitir a distinção de curtos momen­
tava a identificação das semelhanças entre as cultu­ tos de ocupação; poços-testes de pequenas di­
ras materiais (cf. Binford, 1965; Cahen & Karlin, mensões não permitem distinguir diferentes áreas
1980; Texier, 1980). Gerava-se daí a utilidade das de atividades nem, mais especificamente, con­
tipologias como forma de sistematização dos objetos juntos fechados de vestígios concom itantes
líticos: ferramentas semelhantes vão significar cultu­ (.ensembles-clos, segundo Audouze: unité de
ras semelhantes em ambientes semelhantes. temps, unité de lieu, unité d ’action, sd.: 58);
Ao destacar-se para estudos tipológicos os obje­ 4) conforme já mencionado, no conjunto
tos (retocados) visualizados como ferramentas que dos objetos líticos recuperados, somente as pe­
intermediam as ações humanas e o meio ambiente (e ças retocadas foram selecionadas para estudo
cuja razão de ser não incorporaria valores não funci­ minucioso; as metodologias para análise dos
onais), construía-se assim uma ponte de trânsito rá­ aspectos que podem anteceder à produção de
pido entre a natureza e a cultura, esta última repre­ artefatos (Torrence, 1986), que podem definir
sentada por um conjunto de normas fossilizadas nas as estratégias de obtenção da matéria-prima
morfologías dos objetos estudados. (Meignen, 1980; Perlès, 1980; Demars, 1982)
Tais observações parecem-me necessárias para e os métodos de lascamento (Fish, sd.; Inizan,
poder vislumbrar a Tradição Itaparica sobre outro 1980; Cahen & Karlin, 1980; Sulivan & Rozen,
ângulo e caracterizar mais concretamente a relação 1985; Bleed, 1986) e, finalmente, o retoque que
entre ela e os achados da Lapa do Boquete que estudo. não visa exclusivamente a obtenção de formas
Os vestígios arqueológicos, quer se queira ou padronizadas (Flenniken, sd.; Bleed, 1986;
não, são apenas amostras de universos nunca com­ Odell, 1988) não foram ainda exploradas para
pletamente reconstituíveis (Gallay, 1986). a interpretação desses vestígios.
Na relação entre as amostras e o universo sobre
Essa seqüência de observações parecem-me
a qual é construída a Tradição Itaparica, destaco:
exemplificar aspectos das reflexões de Gallay (1986:
1) na caracterização macro-regional (Cen­ 126-157) a respeito das dificuldades de reconstituir
tro-Nordeste) da Tradição Itaparica, foram por a totalidade (ou quase) dos sistemas (e de suas
vezes considerados aspectos específicos dos interações) sócio-culturais que caracterizariam as
resultados alcançados em Goiás, tidos como re­ sociedades sem escritura extintas. Conforme desta­
presentativos de um horizonte antigo bem mais ca esse autor, na trajetória que vai de uma socieda­
vasto; de pré-histórica cuja dinâmica complexa permitia a
2) em Goiás, como em todos os outros esta­ coesão de seus membros e a sua sobrevivência até a
dos concernidos, o contexto pré-histórico é seleção (feita pelo arqueológo) de parte de seus ves­
reconstituído majoritariamente a partir das estra­ tígios materiais para estudo, uma série de fatores
tigrafías de abrigos; é, no entanto, bastante plau­ intervém, como se fossem malhas de peneiras, pro­
sível conceber tal classe de sítios como repre­ vocando perda de informação (le palimpseste du
sentativa de um aspecto parcial de sistemas de temps). Tais fatores tanto são naturais (erosão, con­
implantação que incorporam também sítios a servação diferencial dos vestígios, etc.) quanto de­
céu-aberto - seja de economias forrageiras ou terminados pelas estratégias da pesquisa.

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FOGAÇA. E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

Volto então às observações relacionadas acima Cabe, então, tratar das indústrias líticas anti­
para tentar destacar alguns fatores (ideológicos e gas da Lapa do Boquete.
metodológicos) envolvidos em cada etapa, a saber: Com efeito, seria possível agrupar as coleções
em dois grandes conjuntos distintos (Fases): do ní­
1’) a caracterização macro-regional: a par­ vel VIII ao VI (12000 - 8000 AP), foram recupera­
tir de amostras de vestígios de diferentes regiões dos instrumentos retocados unifacialmente (associ­
as similaridades das indústrias são postuladas ados, entretanto, no nível mais antigo a dejetos de
por um raciocínio analógico no qual as hipóte­ façonnage de peças foliáceas e a um fragmento de
ses construídas a partir das pesquisas em Goiás ponta de projétil). A partir do nível V (sem datações)
constituem o campo de referência externo (cf. desaparecem na área escavada os instrumentos re­
Gardin, 1979, citado por Gallay, 1986:116-117); tocados (bem como os nuclei), havendo ocorrência
toma-se então ato de fé, para alguns autores, que de novas variedades de sílex (Fogaça & Lima, 1991;
os sítios com indústrias antigas plano-convexas Prous, 1991; Prous et alii, 1992).
se localizem em áreas de cerrado e que a presen­ Dentro desses lim ites descritivos, pode-se
ça de pontas de projétil nos abrigos, mesmo ra­ vizualizar um parentesco entre as coleções antigas
ras, não seja significante no conjunto das indús­ e aquelas características da Tradição Itaparica.
trias, ja que para a caça diversificada no cerrado Mas a análise tecnológica do material fornece
tais armas não seriam necessárias (Barbosa, novas bases descritivas que permitem compreendê-
1992); lo enquanto amostras, definir outros ritmos de vari­
2’) a localização de diferentes classes de ação das indústrias e abrir, assim, caminho para
sítios em uma determinada região: ela depende, outras tentativas de interpretação.
dentre vários fatores, daquilo que os arqueólo­ Para tanto, o estudo empreendido privilegia a
gos anglo-saxões denominam obtrussivenes reconstituição das cadeias operatorias.
(Schiffer; Sullivan; Klinger, 1979): uma determi­ A classificação tecnológica e a contabilização
nada metodologia de levantamento e prospecção da parte já analisada do material do nível VIII (cerca
leva à descoberta de uma determinada classe de de 10% do total de dejetos recuperado), e da totalida­
sítio. (É necessário, entretanto, ressaltar que, para de dos instrumentos e nuclei (Fogaça & Lima, 1991)
os arqueólogos dedicados a estudos de arqueo­ permitiram esboçar as grandes linhas das cadeias
logia regional, a descoberta de sítios a céu-aber- operatorias adotadas (Prous et alii, 1992: 355). Foi
to enterrados e o controle de tais amostras perma­ então possível perceber que os vestígios líticos pre­
necem um problema maior [Caldarelli: seminá­ servados na área até então escavada representavam
rios realizados no IGPA/UCG durante o Projeto apenas alguns estágios das cadeias operatorias: ba­
de Pesquisa Arqueológica das UHEs Serra da sicamente façonnage de peças bifaciais, retoque
Mesa e Cana Brava, 1989-1990]); unifacial de suportes robustos, utilização de instru­
3’) a definição no âmbito de um sítio da mentos retocados, provavelmente refrescamento e
capacidade de resolução das metodologias de transformação formal de alguns destes e, também pro­
coleta de dados: conforme já mencionado, as vavelmente, produção de lascas médias para utiliza­
estratégias adotadas dependem, voluntariamen­ ção de gumes brutos cortantes (a verificação das possi­
te ou não, dos pressupostos teóricos da pes­ bilidades de refrescamento e transformação de instru­
quisa; mentos e de utilização de gumes brutos dependem
4 ’) a delimitação dos significados de uma ainda de análises tecnológicas de amostras maiores
indústria lítica: a variação observada no inves­ de dejetos - para caracterizar os possíveis rejeitos
timento técnico para a transformação de supor­ dessas atividades - e de análises traceológicas des­
tes (a presença do retoque unifacial e seu pos­ ses objetos não retocados, ambas já em curso).
terior desaparecimento) é considerada cultural­ Em linhas gerais, essa ruptura espacio-tempo­
mente significativa (transição, por exemplo, da ral percebida nas cadeias operatorias do nível VIII
Fase Paranaíba para a Fase Serranópolis) sem parece repetir-se também nos níveis VII e VI. No
que outras hipóteses relativas, por exemplo, a entanto, as pequenas lascas oriundas dos processos
variações funcionais dos assentamentos sejam de façonnage e de retoque das peças bifaciais, bas­
previamente esgotadas (cf. Fish, sd.; Binford, tante padronizadas no nível VIII (Fogaça & Lima,
1979; Bleed, 1986). 1991), não apareceram nos níveis VII e VI.

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

A grande maioria dos instrumentos retocados e 2aetapa: seqüência de retiradas menos lon­
dos nuclei recuperados do nível VIII inferior (o mais gas, relativamente largas e sub-paralelas, que
antigo descoberto até agora) provém de uma con­ deixam contra-bulbos profundos, por vezes não
centração próxima à parede oeste do abrigo (Prous et regularizados pelos retoques finais; dessa for­
alii, 1992: 362). Esta coincidência (área escavada/ ma, deixam as bordas com um delineamento
área de concentração de categorias específicas), de ligeiramente denticulado;
certa forma, superepresentaria os instrumentos e 3aetapa: retoques curtos, escamosos ou sub-
nuclei na coleção recuperada se a escavação tivesse paralelos, necessariamente mais semi-abruptos
se limitado aos poucos metros que concentram esse que as retiradas anteriores; esses retoques, nem
material. Caso não houvesse também documentação sempre contínuos, visam aparentemente refor­
tri-dimensional dos vestígios - para permitir análise çar determ inadas extensões dos gum es ou
espacial - e controle estratigráfíco dos níveis natu­ reavivá-los após o desgaste do fio bruto.
rais, esse viés amostrai não seria percebido.
Os processos, aqui bastante esquematizados,
Posto que não se dispõe de todas as etapas das
sugerem diferentes investimentos técnicos resultan­
cadeias operatorias, não é possível relacionar toda
do em peças mais ou menos padronizadas, simétri­
a variedade de objetos retocados a suportes brutos
cas segundo o eixo morfológico e com volume
que teoricamente serviriam para a sua confecção.
equilibrado. Porém, em vários casos, a morfología
Essa lacuna é superada parcialmente pela leitu­
final dos instrumentos parece ser resultante de estra­
ra diacrítica dos negativos de lascamento preserva­
tégias de retransformação e reaproveitamento de ou­
dos nos instrumentos. Na grande maioria das peças
tras peças (ver, por exemplo, Fig. 2:b). Tratam-se de
é possível diferenciar os negativos dos suportes ori­
artefatos trabalhados em toda a sua periferia ou que
ginais daqueles resultantes dos gestos posteriores de
apresentam gumes abruptos e retilíneos opostos a
façonnage (dos volumes) e retoque final (dos gumes).
bordas convexas menos trabalhadas (nesse caso, a
Foram aproveitadas como suportes para instru­
dissimetria morfológica não corresponderia às nor­
mentos plano-convexos sempre lascas robustas (mas
mas de um modelo padronizado mas talvez ao
com espessura relativa variável em relação à razão
refrescamento repetitivo de um dos gumes; a forma
Largura/Comprimento). Esses suportes seguiram uma
original só seria reconstituível caso fosse possível
nervura guia coincidente com o eixo de debitagem
remontar as peças resultantes de todo o processo).
ou então apresentam faces superiores lisas, sem
As lesmas, elas, foram recuperadas na sua mai­
nervuras longitudinais que resultassem em lascas com
oria nas quadras mais ao norte da escavação, onde
morfología C L. Os raspadores e raspadeiras plano-
parte da estratigrafía não indica o mesmo ritmo
convexos (Prous et alii, 1992) não parecem, portan­
sedimentar que na metade sul da zona escavada.
to, resultar de uma estratégia de pré-determinação
Somente o nível VIII pode ser claramente reco­
dos suportes estabelecida desde a debitagem dos
nhecido.
nuclei, mas de uma seleção aposteriori dos suportes
E difícil afirmar como seriam os suportes ori­
de módulos mais apropriados.
ginais das lesmas. As suas faces não trabalhadas
Esses suportes podem ser muito ou pouco trans­
são geralmente superfícies lisas, sobre as quais so­
formados. Podem receber retoques diretos, curtos, sub-
mente discretas convexidades ou indícios de ondas
paralelos e que afetam somente pequenas extensões
de percussão permitem supor tratar-se de lascas de
dos gumes (Fig. 2: a); podem também ser modifica­
debitagem.
dos por processos mais com plexos, com várias
As seqüências de gestos de transformação dos
seqüências de gestos (Fig. 1:a). Neste caso, distinguem-
suportes podem produzir, com retiradas invadentes
se basicamente três etapas de façonnage e de retoque:
a partir de ambos os lados, eretas longitudinais si­
I a etapa: retiradas relativamente longas e nuosas (Fig.3:a); quando as retiradas são mais cur­
paralelas, em um ou ambos os lados (em fun­ tas, preservam porções centrais lisas (Fig.3:b) -
ção, parece-me, da morfología original do su­ testemunhos (prováveis) das faces superiores dos
porte, simétrica ou não); em alguns casos, um suportes originais (que, nesses casos, podem ser os
dos lados pode ser transformado por retiradas mesmos que aqueles aproveitados para a fabrica­
mais abruptas (sem receber posteriormente re­ ção de raspadores e raspadeiras).
toques curtos nos gumes) que criam uma espé­ A peça a da Fig.3 resulta de seqüências de reti­
cie de dorso oposto à parte supostamente ativa; radas inicialmente efetuadas a partir de ambos os

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

3097

S u p e r f íc ie s d e r e t ir a d a s a n t e r io r e s
à o b t e n ç ã o d o su p o rte , s e p a r a ­
d a s p o r n e r v u r a lo n g it u d in a l

R e tira d a s N e g a t i v o d e r e t ir a d a a n t e r io r
de q u e e lim in a p a r t e d a m e t a d e
'f a ç o n n a g e ' e s q u e r d a o r ig in a l

R e t ir a d a d e r e g u la r iz a ç ã o
d o p e rfil d a n e r v u r a

R e t ir a d a s p r o v a v e l­
m e n t e a n t e r io r e s à
o b t e n ç ã o d o su p o r­
R e tira d a s d e r e g u la r iz a ç ã o
te q u e e li m i n a m a
d o v o lu m e d a p o r ç ã o p ro -
c o r n ij a e a c e n t u a m
x im a l q u e d e t e r m i n a m o
a c o n v e x id a d e d a
p e r ím e t r o o g i v a l d o t a l ã o
s u p e r f íc ie d e l a s c a ­
m e n te

F a c e s o r ig in a is n a s u p e r ­ R e t ir a d a 2: r e g u la r iz a R e t i r a d a 3: f e c h a R e t i r a d a s 4, 4' e 4":
f íc ie d e l a s c a m n e n t o o p erfil c ô n c a v o d a o â n g u lo fo r m a d o a c e n t u a m a c o n v e x id a d e
(lei' ) n e rvu ra por l e i ' d a s u p e r f íc ie

L a s c a m e n t o d o su p o rte R e t ir a d a s 6 ‘ e 6“: p rim e ira R e tira d a s 6, 7,8,9 e 10: R e to q u e s


s e q ü ê n c ia d e 'f a ç o n n a g e ' a c e n t u a m o â n g u l o s e m i-
rln mo+nrlp iprrln Hn / "ikN ri i /"i

Fig. 1 - Instrumento Unifacial

150
FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Re v. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

1 4 23-2

'F a ç o n n a g e ' d a e x tre ­


m id a d e a r r e d o n d a d a
d e s v ia d a

'F a ç o n n a g e '
d a b o rd a
s e m i-a b r u p t a

N e g a t i v o s d e reti­
r a d a s a n t e r io r e s à
o b t e n ç ã o d o su p o rte

E x p lo r a ç ã o d e n ú c le o S u p e r fíc ie d e la s c a m e n t o D e b ita g e m d o 'F a ç o n n a g e '


s u b -p ir a m id a l c o m 3 n e r v u r a s -g u ia s u p o rte e /o u re to q u e s
(o u c ô n i c o ? ) p e r p e n d ic u la r e s d o su p o rte

O n d a s d e p e r c u s s ã o re su l­
tan te s d e u m a te n ta ­
t iv a d e l a s c a m e n t o
o rto go n a l fr a c a ssa d a

' C ó r t e x in te r n o ' N e g a t i v o d e r e t ir a d a
a n t e r io r a o ' F a ç o n n a g e '

R e a p r o v e i t a m e n t o d e u m in s t r u m e n t o l o n g o ? In d íc io s :
- p o s i ç ã o a s s i m é t r i c a d o p o n t o d e i m p a c t o e b u lb o ;
- e x t e n s ã o d a s u p e r f í c i e ( n e g a t i v o ) a n t e r io r 1;
- a s u p e r f í c i e 1 e a f a c e in fe rio r s ã o p a r a le l a s , n ã o p a ­
r e c e m c o n v e r g ir a b r u p t a m e n t e .

Fig. 2 - Instrumentos Unifaciais

151
FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

P r o v á v e is n e g a ­
t iv o s a n t e r io r e s
à fo rm a ç ã o d a
e r e t a lo n g i t u d i n a l

R e to q u e s
e sp o n tâ n e o s

Retir

L a d o d ir e ito Lad o e sq u e rd o

'F a ç o n n a g e 'd o b o rd o 'F a ç o n n a g e ' d o b o r d o S e q ü ê n c i a fin a l d e R e to q u e s


e sq u e rd o d ir e ito a p a rtir d a c r e t a 'f a ç o n n a g e ' d o b o r-

U lt r a p a s s a g e m in t e n c io n a l
p a r a r e fr e s c a m ie n to d o g u m e ?

2 8 7 2 -2 0

Fig. 3 - Lesmas 3F,

152
FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Re v. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

lados que criaram a ereta sinuosa. Houve, então, Os principais argumentos para tais hipóteses são:
retiradas a partir desta ereta (cujos contra-bulbos
- tratam-se de peças de volume reduzido
acentuam a sua sinuosidade), opostas àquelas so­
não permitindo a obtenção de suportes de mó­
bre o lado direito. Duas hipóteses podem explicar
dulos necessários para a confecção de plano­
esse gesto: emagrecimento durante a fabricação ou
convexos robustos;
refrescamento após uso do artefato. Caso se trate de
- não há planos de percussão que corres­
retiradas visando emagrecer o lado direito da peça,
pondam a negativos de faces inferiores que po­
elas provocaram uma dissimetria volumétrica que
deriam indicar recondicionamento de nuclei ori­
distancia a peça do padrão tipológico da lesma.
ginalmente maiores (a este processo estariam
Um método de reavivagem de artefatos plano-con-
associadas lascas indicativas de refrescamento
vexos utilizando retiradas intencionalmente ultra-
de planos de percussão, não identificadas no
passantes a partir de eretas longitudinais foi com­
conjunto do material do Boquete, mas já recu­
provado no Estado de São Paulo, tanto pela presen­
peradas em outros sítios do vale);
ça dos artefatos quanto dos dejetos característicos
- os poucos nuclei mais volumosos (que
(Caldarelli, 1984: 251-255).
permitiriam a extração de suportes para plano­
Esse método não pode ser ainda proposto para
convexos menores), apesar de apresentarem
explicar a fabricação das lesmas do Boquete: não
negativos de lascas iniciais longas - que sugeri­
somente os negativos das retiradas a partir das eretas
riam descorticamento prévio para posterior de­
estão interrompidos por negativos de retiradas pos­
bitagem daqueles suportes, também longos - ,
teriores e opostas, que eliminam suas porções distais
apresentam, entretanto, seqüências de retiradas
- não permitindo saber se ultrapassariam as bordas
posteriores mais curtas (seriam então esses os
- bem como não foram identificados até agora os
suportes aí almejados?) (Fig.4: b,c);
dejetos característicos, lascas ultrapassadas apresen­
- em muitos nuclei, a quina periférica for­
tando nas partes distais negativos de retoques dos
mada pelo plano de percussão e pelas superfícies
gumes primitivos.
de lascam ento apresentam abrasão intensa
Os nuclei estudados provêm majoritariamente
provocada por percussões insistentes que produ­
dos níveis VII e VI, testemunham estratégias de
ziram lascas minúsculas e refletidas seqüencial­
debitagem a partir de um único plano de percussão,
mente (Fig. 4: b,d). Tratar-se-ia de posterior apro­
geralm ente um plano de fratura, resultando em
veitamento desses nuclei como rabots, de gestos
nuclei unipolares e cônicos (Fig.4: b-d). O único
inábeis visando a eliminação de cornijas (será que,
exemplar que apresenta três planos de percussão
uma vez abandonados, os nuclei seriam retoma­
explorados sucessivamente foi recuperado no nível
dos por aprendizes ?) ou de utilização de percutores
VIII (Fogaça & Lima, 1991: 113-115) (Fig.4: a).
inadequados (o que também é sugerido pela pre­
A maioria das peças preserva zonas corticais
sença m arcante de negativos de lascas de
opostas aos planos de percussão (devido, é claro, à
debitagem refletidas) ?; de qualquer forma, todas
exploração unipolar periférica). Somente uma peça
essas suposições afastam a possibilidade de ob­
sugere a exploração de seixos de sílex (Fig. 4:d),
tenção de suportes para plano-convexos.
obteníveis no leito do próprio rio Peruaçu, a algumas
centenas de metros em frente ao abrigo. Os outros A confirm ação da presença de várias cadeias
nuclei são todos preparados a partir de nódulos atual­ operatorias segundo objetivos diversos pode in­
mente disponíveis em leitos secos do vale, em depósi­ dicar a concom itância e/ou a alternância tem po­
tos exo-kársticos, e no cone de dejeção do Boquete. ral no abrigo de tecnologias expeditas e acuradas
A questão básica para a análise dessas peças é: (expedictive e curated, conform e o sentido dado
qual a relação entre os nuclei e os instrumentos por Binford, 1979). Para identificar tais fenôm e­
retocados recuperados? nos no registro arqueológico será necessário, atra­
As estratégias de debitagem desses nuclei in­ vés de análises espaciais, delim itar os conjuntos
dicam com certeza a produção de artefatos segundo fechados e, através de rem ontagens, verificar o
outros esquemas conceituais (distintos daqueles tipo de relação entre as diferentes estratégias.
deduzíveis da análise dos plano-convexos e das les­ Caso elas alternem -se ou se sucedam cronologi­
mas), talvez outras modalidades de utilização e de cam ente dentro dos níveis V III,V II e VI, será
manutenção de ferramentas (cf. Bleed, 1986). possível supor um a variabilidade na função do

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

abrigo (em concordância, é certo, com os resul­ tingências técnicas e funcionais (tipos de gume,
tados das análises das outras categorias de vestí­ de encabamento, de elementos para instrumen­
gios e de outros sítios). tos compósitos, etc.). Tais fatores podem levar
Talvez isto leve a repensar o status de fóssil-guia a uma maior ou menor padronização dos su­
conferido às lesmas dentro de um longo período até portes ou a um maior ou menor investimento
agora considerado homogêneo. Por outro lado, as da transformação dos suportes pelo retoque;
mudanças entre as camadas inferiores (VIII/VI - - estratégias de gestão de artefatos: sen­
Paleo-índio) e a V (Arcaico Inferior) verificadas atra­ do esta a última etapa, o essencial do sistema
vés do desaparecimento de instrumentos retocados, já está instalado (Perlés, 1987: 26), havendo
não devem esconder a continuidade da utilização de opções limitadas a serem consideradas. Basica­
tecnologia(s) expedita(s). Talvez esse tipo de conti­ mente pode-se propor como estratégias a pro­
nuidade seja tão significativo quanto as mudanças dução de artefatos no momento da utilização X
apontadas. produção antecipada dos artefatos (esta oposi­
Volto, por fim, aos problemas propostos no iní­ ção vai de encontro às idéias de Binford, 1979
cio do texto. e de Bleed, 1986).Elas se combinam seja com
Para levantar a possibilidade de uma variação rejeito rápido do instrumento, seja com sua
funcional do abrigo, que contribuiria para explicar manutenção prolongada. Os parâmetros em
a variabilidade das indústrias, considero necessário jogo podem ser ligados aos tipos de recursos
primeiramente interpretar essa variabilidade sem explorados (móveis ou estáticos, perecíveis ou
extrapolar o contexto do próprio sítio (ou da parte não) - que deverão ter influenciado também as
dele amostrada). Os exemplos de análises tecnológi­ etapas anteriores - , resultando na confecção de
cas fornecidos possibilitam afirmar que somente a suportes passíveis de serem retransformados ou
partir da reconstrução das cadeias operatorias tor- rigidamente associados a tipos precisos de fer­
na-se possível vislumbrar toda a gama de processos ramentas.
dinâmicos que intervém na concepção, utilização e
A concepção de tais estratégias e dos parâmetros
abandono dos artefatos de pedra.
que as determinam, além de eliminar o determinismo
Conforme proposto por Perlès (1987), as cadei­
da matéria prima como único ou principal fator de
as operatorias podem, para fins de análise, ser divi­
variabilidade, toma-se operacional também para en­
didas em três etapas simultâneas, caracterizadas por
saios de interpretações não funcionais da tecnicidade:
tres conjuntos de estratégias com plem entares e
a compreensão global das indústrias permite a iden­
interativas:
tificação de fenômenos tais como:
- estratégias de exploração das matérias
- preferências por determinadas matérias
prim as: nessa etapa entram em jogo fatores
primas não explicáveis técnica ou economica­
como: abundância das rochas localmente dispo­
mente;
níveis, qualidade das rochas (convém lembrar,
- presença de objetos superinvestidos tecni­
não só para o lascamento mas sobretudo para o
camente associados a artefatos mais simples;
para o tipo de utilização do artefato - percus­
-p resen ça de objetos de elevado custo téc­
são ou pressão - e para o efeito sobre o materi­
nico/econômico cuja forma original é mantida
al trabalhado - pele fina, couro, madeira, etc.
sistematicamente, etc..
o tempo disponível para aquisição (que impli­
ca também em considerar a possibilidade de Tais fenômenos abrem necessariamente perspec­
acesso ou não a determinadas fontes, devido, tivas de interpretação em níveis além do técnico ou
entre outros fatores, à divisão territorial entre do econômico, mas também pertencentes às esferas
grupos, podendo levar à produção de bens para que Binford (1962) denom inou sociotechnics e
troca), etc.; ideotechnics.
- estratégias de produção de artefatos', es­ O estudo tecnóligo (englobadas as experimenta­
sas estratégias podem variar, grosso modo, en­ ções e a traceologia) fomece os elementos para se
tre dois pólos: produção expedita e rápida X reconstruir com precisão o contexto técnico no qual
produção acurada (necessitando um alto inves­ os instrumentos retocados ganham vida. Permite que
timento técnico). Além de alguns fatores men­ estes sejam vistos com o entidades polissêm icas
cionados na etapa anterior, intervém aqui con­ (Audouze, sd: 58) pertencentes também ao universo

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FOGAÇA, E. A Tradição Itaparica e as indústrias líticas pré-cerâmicas da Lapa do Boquete (MG - Brasil). Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

do simbólico e, a í então, ao tradicional: portado­ cas, conselhos e opiniões que muito contribuíram
res de signos de uma identidade. para clarear as idéias apresentadas neste texto. O
trabalho pioneiro no Planalto Central do Professor
P.I. Schmitz, tanto no trato cuidadoso com os dados
Agradecimentos arqueológicos quanto na busca da compreensão das
dinâmicas das populações pretéritas, serve-me como
Expresso aqui meu reconhecimento aos Profes­ constante referência e fonte de aprendizado. A ele
sores A. Prous, S. Caldarelli e I. Wüst pelas críti­ gostaria de dedicar este trabalho.

FOGAÇA, E. Tradition Itaparica and early lithic industry of Lapa do Boquete (Minas Gerais,
Brazil). Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 145-158, 1995.

ABSTRACT: Some archaeogists have grouped the early holocenic lithic industries
of central Brazil in a wide paleo-indian horizon named Tradition Itaparica, which
remains are mostly found in rockshelters. The outline of the traditions deals only
with the descriptions of retouched stone tools found in little test pits. This paper
discusses these cultural markers using the technological analysis of Boquete
rockshelter early industries (12.000 - 8.000 BP). Some hypothesis are built about
time space relationships of curated and expedictives technologies. Some related item
are pointed that can be the result of non functional behaviours and so can be
understood as makers of a real ethnical identity.

UNITERMS: Archaeology of Minas Gerais - Hunter - Lithic - Itaparica


Tradition.
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ambiente, variedade de recursos e possibilidades de subsistência, exerceu, desde o
final do Pleistoceno e início do Holoceno, importância fundamental na fixação de
populações humanas, nas áreas centrais do Brasil.
Os grupos caçadores e coletores estabeleceram com este tipo de ambiente uma
relação bastante sábia, criando processos culturais singulares. A maior parte desses
processos continua de forma acentuada também na cultura dos grupos horticultores
e motiva o arqueólogo, de maneira geral, a incluir nos seus trabalhos inúmeras
possibilidades e a entender melhor a função do ambiente e a organização do espaço,
por populações de economia simples.

UNITERMOS: Arqueologia e Cerrado - Arqueologia do Brasil - Cultura e


Ambiente.

O Brasil possui sete grandes domínios morfo- • Domínio Roraimo-Guianense, situado


clim áticos e fitogeográficos (A b’Sáber, 1977), como um enclave dentro do Domínio Equato­
sendo que a maior parte, em função de sua história rial Amazônico, na fronteira entre Roraima,
evolutiva, mantém , de certa form a, um a inter­ Venezuela e G uianas. Constitui o dom ínio
dependência ecológica em que variados fatores úmido tropical da Gran Sabana, coberto por
exercem funções de amenizar, difundir, com ple­ vegetação campestre denom inada campos, do
m entar e, às vezes, suprir o todo. Rio Branco e Tumucumaque.
Esses domínios são os seguintes:
• D om ínio das C aatingas, situado em
• Domínio Equatorial Amazônico, situado áreas de depressões interplanálticas do N or­
no Norte e Noroeste do país, abrangendo os deste brasileiro, com clima de caráter semi-
baixos platôs tabuliform es, as grandes pla­ árido, drenagens intermitentes e sazonárias.
nícies, subsetores momelonizados florestados Constitui o Domínio do Trópico Semi-Árido,
e montanhas florestadas das encostas orientais coberto pela vegetação da caatinga, conhecido
andinas, até 600 metros de altitude. Constitui regionalmente por sertões secos.
o grande domínio do Trópico Úmido, coberto
• Domínio Tropical Atlântico, situado na
pela floresta úmida amazônica.
fachada atlântica tropical do Brasil, desde as
costas do Rio Grande do Norte até o Trópico
(*) Este artigo é dedicado ao Prof. Aziz A b’Sáber.
de Capricórnio. Em seu lim ite sul, prolonga-
(**) Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católi­ se pelo interior, em áreas do oeste paulista e
ca de Goiás - UCG. norte do Estado do Paraná. Constitui o Do-

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minio Tropical da Mata Atlântica, de caráter designações populares reflete sua totalidade eco­
úmido e superúmido. lógica, referindo-se apenas a um a m odalidade
fisionômica, às vezes associada a uma ou outra
• Dominio dos Planaltos Sul-Brasileiros,
configuração geomorfológica. No mesmo sentido,
cobertos por um velho núcleo de araucárias,
paradigm a p u ram en te b o tân ico não tem sido
situado em áreas planálticas subtropicais
suficiente para dem onstrar a totalidade e a im ­
atlânticas.
portância ecológica dos cerrados, uma vez que
• Dominio das Pradarias Mistas Subtro­ destaca ou enfatiza apenas parcelas fragmentadas
picais, situado na metade sul do Rio Grande de sua composição. Quando isso acontece, o caráter
do Sul e grande parte do Uruguai. Constitui o da biodiversidade, elemento marcante da ecologia
Dominio das Coxilhas, com campos e flo­ dos cerrados, não recebe a importância merecida,
restas-galerías subtropicais. nem sequer pode ser co m p reen d id a em seus
aspectos fundamentais.
• Dominio dos Cerrados, situado nos pla­
M odernam ente, a utilização do paradigm a
naltos centrais do Brasil, onde im peraram
biogeográfico tem demonstrado ser um referencial
climas tropicais de caráter subúmido, com
de fundam ental im portância para que se possa
duas estações - uma seca, outra chuvosa.
entender o Domínio dos Cerrados em sua globali-
Constitui o grande Domínio do Trópico Sub­
dade. Compreendendo os diversos matizes, tanto
úmido, coberto por uma paisagem que cons­
abertos com o u m b ró filo s, com o su b sistem as
titui um mosaico de tipos fisionômicos que
interatuantes e integrantes decisivos de um sistema
variam desde campos até áreas florestadas.
maior, o conceito biogeográfico tem ressaltado a
Esses sete domínios formam, na maior parte im p o rtân cia que os cerrados exercem para o
dos casos, intrincados sistemas ecológicos inter­ equilíbrio dos demais biomas do continente, além
dependentes. O Domínio dos Cerrados, dos cha- de demonstrar que a principal característica da sua
padões centrais do Brasil, pela posição geográfica, biocenose é a interdependência dos componentes
pelo caráter florístico, faunístico e geomorfológico, aos diversos ecossistemas.
constitui o ponto de equilíbrio desses variados Os cerrados exerceram papel fundamental na
dom ínios, uma vez que se conecta, através de vida das populações pré-históricas que iniciaram
corredores hidrográficos, com esses e com outros o povoamento das áreas interioranas do continente
domínios continentais. sul-am ericano. N a região dos cerrados, essas
Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo populações desenvolveram importantes processos
dom ínio fitogeográfico e m orfo-clim ático dos culturais que moldaram estilos de sociedades bem
cerrados, constituem a cumeeira do Brasil e tam­ definidas, em que a econom ia de caça e coleta
bém da América do Sul pois distribuem signi­ imprimiu modelos de organização espacial e social
ficativ a quantidade de água que alim enta as com ca racterísticas p ecu liares. Os p ro cesso s
principais bacias hidrográficas do continente. culturais indígenas que se seguiram a este modelo
O Domínio dos Cerrados abrange os Estados trouxeram pouca modificação à fisionomia sócio-
de Goiás, Tocantins, M ato G rosso do Sul e o cultural e, em bora ocorresse o advento da agri­
Distrito Federal. Inclui a parte sul de Mato Grosso, cultura incipiente exercida nas manchas de solo
o oeste da Bahia, oeste e norte de Minas Gerais, de boa fertilidade natural existentes no domínio dos
sul do Maranhão, grande parte do Piauí e prolonga- cerrados, a caça e a coleta, principalmente a vege­
se, em forma de corredor, até Rondônia e, de forma tal, ainda constituíam fatores decisivos na econo­
disjunta, ocorre em certas áreas do N ordeste mia dessas sociedades.
brasileiro e em parte de São Paulo. Ecologicamente, A partir do século XVIII, o panorama regional
relaciona-se às Savanas, e há quem afirme que os começou a sofrer sensíveis modificações, com o
cerrados são configurações regionalizadas destas. incremento da colonização que se em brenha pelo
No Brasil, este tipo de paisagem recebe denomi­ interior do País em busca de ouro, pedras preciosas
nações diferentes, de acordo com a região: gerais, e índios escravos. Nesse contexto, e a partir dessa
em Minas e Bahia, tabuleiro, na Bahia e outras data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos
áreas do Nordeste, e ainda campina, costaneira e e a exploração mais intensa dos recursos minerais,
carrasco, dependendo da região. Nenhuma dessas que com eçava a se incrementar, já provoca os

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primeiros sinais de degradação. Findo o ciclo da porque não apresenta esta característica; tampouco
mineração, a região dos cerrados permaneceu eco­ pode ser considerada uma unidade fitogeográfica,
nomicamente dedicada à criação extensiva de gado porque não se trata de uma área uniforme em termos
e à agricultura de subsistência. de paisagem vegetal. O mais correto é correlacionar
A lguns desses m odelos econôm icos ainda os diversos fatores que compõem sua biocenose, e
subsistem em espaços localizados até os dias atuais, defini-la como um Sistem a Biogeográfico. Um
e outros modelos ainda mais simples, baseados no sistema que abrange áreas planálticas - o Planalto
extrativismo, ainda são adotados por populações Central Brasileiro, com altitude m édia de 650
caboclas, habitantes atuais de espaços definidos. metros, clima tropical subúmido de duas estações,
O isolamento que a região manteve em relação solos variados e um quadro florístico e faunístico
às áreas mais populosas e economicamente dinâ­ extremamente diversificado e interdependente. A
micas do Brasil até meados da década de 60 fez fauna variada dos cerrados que transita noutros
com que este quadro permanecesse basicamente dom ín io s m o rfo c lim ático s e fito g e o g rá fic o s,
inalterado, fato que a implantação de Brasília alte­ também, por exemplo a caatinga, tem sua maior
rou consideravelmente, desestruturando os siste­ concentração registrada nessa região ou nesse Siste­
mas sociais implantados e causando entropias de ma Biogeográfico, em virtude das possibilidades
ordem biológica. alimentares que oferece durante todo o ciclo anual.
O potencial agrícola que os cerrados dem ons­ Há um estrato gram ínio que sustenta uma
tram, associado ao fato de ser uma das últimas re­ fauna de herbívoros durante boa parte do ano,
servas da terra capaz de suportar de modo imediato enquanto não está seco. A seguir, aparecem as
a produção de cereais e a formação de pastagens e flo res que, d u ran te um a d eterm in a d a ép o ca,
o desenvolvim ento das técnicas m odernas de substituem como alimento as pastagens. O final
cultivo, tem atraído recentemente grandes inves­ das floradas coincide com o início da estação
timentos e criado modificações significativas, do chuvosa, fazendo rebrotar os pastos secos, e ainda
ponto de vista da infra-estrutura de suporte. O fato com a m aturação de várias espécies frutíferas.
da não-exitência de um a política global para a Acompanhando os herbívoros e atrás também de
agricultura tem provocado o êxodo rural e o cres­ recursos vegetais, anim ais com outros hábitos
cimento desordenado dos núcleos urbanos. Todos formam uma complexa cadeia. Em termos vegetais,
esses fatores, em seu conjunto, têm provocado este S iste m a é co m p lex o e n u n ca p o d e ser
situações nocivas ao meio ambiente natural e so­ entendido como uma unidade: há o predomínio do
cial, com perspectivas preocupantes. cerrado (strictu sensu) como paisagem vegetal, mas
há também seus variados matizes, como campo e
cerradão, além de formações florestadas, como
O C errado com o Sistem a Biogeográfico m atas e matas ciliares, e ainda são com uns as
veredas e ambientes alagadiços.
A região dos cerrados se enquadra, em sua As áreas florestadas são constituídas pelas
quase totalidade, no interior da Província Zoogeo- matas ciliares que ocorrem nas cabeceiras dos
gráfica Cariri/Bororo de M elo-Leitão (1947) ou no pequenos córregos e rios, e em suas margens, como
D istrito Z oogeográfico Tropical, definido por tam bém se espalham em áreas m ais extensas,
C abrera e Yepes (1960). F itogeograficam ente, a c o m p a n h a n d o as m a n ch a s de so lo de b o a
porém, é tratada de forma particular, constituindo fertilidade natural. Por exemplo, as matas do rio
um a província própria; P rovíncia do C errado, Claro e outras vertentes do Paranaíba e o chamado
definida por Cabrera e Willink (Cabrera & Willink, “Mato Grosso de Goiás” . As veredas e ambientes
1980). Da mesma forma, Rizzini (1976), em sua alagadiços são mais abundantes a partir do centro
divisão fitogeográfica do Brasil, dispensa o mesmo da área nuclear (sudoeste de Goiás), em direção a
tra ta m e n to p a r tic u la riz a d o , in c lu in d o -a na norte e a leste. Para o sul, à medida que se aproxima
Subprovíncia do Planalto Central, em bora seus do pantanal matogrossense, as veredas tendem a
limites não coincidam com os limites da Província desaparecer, ficando apenas os am bientes alaga­
de Cabrera e Willink. diços com contornos diferenciados.
A região dos cerrados não pode ser entendida Nessa perspectiva, o Sistema Biogeográfico
com o uma unidade zoogeográfica particularizada, dos Cerrados pode ser subdividido em subsistemas

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esp ecífico s, ca racterizad o s pela fisionom ia e unidade homogênea, pois ostenta em seu domínio
com posição vegetal e anim al, além de outros uma série de ambientes diversificados entre si, pelo
fatores, apresentando a seguinte organização: caráter fisionômico e pela com posição vegetal e
Subsistema dos Campos; Subsistema do Cerradão; anim al. E stes am b ien tes co n stitu e m os seus
S ubsistem a das M atas; S ubsistem a das M atas subsistemas. Sua compreensão é de fundamental
Ciliares e Subsistemas das Veredas e Ambientes importância para se entender o sistema como um
Alagadiços. todo e o caráter da biodiversidade que ostenta. Esse
Essa diversidade de ambiente é um fator muito sistem a b io g e o g rá fic o é co m p o sto p o r seis
importante para a diversificação faunística, per­ subsistemas interatuantes.
mitindo a ocorrência de animais adaptados a am­ O S ubsistem a dos C am pos, o cupando as
bientes secos, com o tam bém adaptados a am ­ partes mais elevadas do sistema, apresenta mor-
bientes úmidos. Da mesma forma, propicia tanto a fologia plana denominada regionalmente chapa­
ocorrência de formas adaptadas a áreas ensolara­ dões ou campinas. Há forte ventilação durante
das e abertas como favorece a ocorrência de formas quase todo o ano, e a temperatura em geral é mais
um brófilas. Esses fatores atribuem ao Sistema baixa que nos dem ais subsistem as. A rede de
Biogeográfico caráter singular, distinguindo-o pela drenagem é insignificante. As vezes, aparecem
diversidade de formas vegetais e animais. pequenas lagoas, algumas perenes. A vegetação é
Estudos de paleoecologia demonstram que os arbustiva esparsa, e há uma com posição grami-
limites modernos do Sistema Biogeográfico dos nácea intensamente distribuída pela área. Durante
Cerrados não coincidem com os limites que deveria o Pleistoceno Superior, possivelmente esse Sub­
ostentar durante o Pleistoceno Superior e Holoceno sistema abrangia espaços geográficos maiores. Sua
Inicial. Estes extrapolavam em muito os limites presença atual pode ser explicada por fatores es­
da área core que hoje ocupa os chapadões centrais tru tu rais do solo, asso ciad o s a m ic ro clim as
do Brasil, prolongando-se na forma de “línguas” e especiais e ainda não totalmente refeitos da agres­
enclaves por grande parte da Amazonia Sul Ame­ são climática do Pleistoceno Superior.
ricana, alcançando áreas localizadas até mesmo ao O Subsistema do Cerrado constitui a paisagem
n o rte do rio A m azonas. Os m esm os estudos dominante do sistema. Ostenta um estrato gra­
dem onstram que, a par das regressões que este míneo diferenciado do campo pela ocorrência de
Sistem a sofreu em direção ao centro do Brasil árvores de pequeno porte e aspecto tortuoso, o que
simultaneamente à expansão da floresta úmida, foi, se explica pela teoria do escleromorfismo oligo-
apesar disto, o sistema sul-americano menos afe­ trópico. A rede de drenagem é boa e os solos são
tado pelas oscilações clim áticas do Pleistoceno de baixa fertilidade natural, mas não são uniformes.
Superior. Da mesma forma, no que diz respeito às Há formações de cerrado que ocorrem tanto em
m odificações na biom assa animal, foi um dos latossolos avermelhados como em solos arenosos,
sistemas sul-americanos menos afetado. Vale dizer dos quais são exemplos o sudoeste de Goiás e o
que a fauna que o caracteriza m odernam ente, oeste da Bahia, respectivamente.
representa, quando com parada com outros do­ Entre o Subsistema dos Campos e o Subsis­
m ínios continentais, quase 50% da biom assa tema do Cerrado, há uma paisagem intermediária,
animal que o caracterizava durante o Pleistoceno designada popularmente campo sujo. Não se con­
Superior e fases iniciais do Holoceno. Esse fato, sidera esta paisagem como um subsistem a à parte,
apesar das proporções, é significativo quando porque sua abrangência geográfica é pequena e,
comparado com a extinção animal que afetou outras ecologicamente, mostra as mesmas características
regiões do continente durante o Pleistoceno Su­ dos dois subsistem as, tendendo, ora m ais ora
perior e fases do Holoceno, que em alguns casos menos, para um ou para outro.
atinge a proporção de 98%. O Subsistema do Cerradão é, fisionomicamen-
te, mais vigoroso que o Subsistema do Cerrado.
Os Subsistem as do As árvores atingem de 10 a 15 metros de altura, e
Sistem a B iogeográfico dos C errados os solos demonstram maior fertilidade natural. Não
há um estrato gramíneo forte como no cerrado e as
Como foi mencionado, o Sistema Biogeográ­ árvores são mais encopadas. A rede de drenagem
fico dos Cerrados não pode ser tomado como uma é bastante significativa. A ntigam ente, alguns

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BAR BOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

botânicos classificavam esta paisagem como floresta Os Cerrados no quadro


xeromorfa, denominação que foi abandonada. evolutivo da flo ra brasileira
O Subsistema das Matas ocorre em manchas
de solo de boa fertilidade natural. Às vezes, adquire No trabalho intitulado “A organização natural
a configuração de ilhas, em meio a uma paisagem das paisagens inter e subtropicais brasileiras”, de
dominante de cerrado, conhecidas pelo nome de 1971, a p re se n ta d o no III S im p ó sio so b re o
capões e, às vezes, formam áreas extensas, com­ Cerrado, A b’Saber apresenta uma pequena síntese
pactas e homogêneas, como é o exemplo clássico d a ev o lu çã o da flo ra b ra sile ira , a p a rtir do
do M ato Grosso de Goiás. C re tá c e o até o Q u a te rn á rio , e n fa tiz a n d o a
O Subsistema das M atas Ciliares ocorre nas descoberta dos depósitos de caliches e sim ilares
cabeceiras dos pequenos córregos e rios, acompa­ no m eio de sedim entos do grupo Bauru e em
nhando-os pelas suas margens em estreitas faixas. outras form ações e Cretáceas do País com o dado
Essas faixas são muito variáveis quanto à confi­ da m aior im portância na com preensão do assunto
guração. Há locais em que se alargam em forma (A b’Sáber, 1971).
de bosque, e há outros onde praticamente desa­ Segundo o autor, o Cretáceo Inferior com por­
parecem, como é o caso de algumas áreas do médio tou grandes desertos no País (deserto de Botucatu).
Tocantins. D aí p ara fren te, porém , houve um a sensível
No S ubsistem a das Veredas e A m bientes atenuação da aridez, posto que a maior parte do
Alagadiços, as cabeceiras de alguns córregos e rios País tenha comportado climas quentes semi-áridos
são às vezes caracterizados por ambientes alaga­ e subúmidos, segundo se pode deduzir pelos tipos
diços, decorrentes do afloramento do lençol de água de sedimentos cretáceos e suas microestruturas:
ou ainda em virtude de características im per­ uma geografia de grandes lagos rasos, situados em
m eabilizantes do solo. N este locais, são muito depressões detríticas interiores, envolvidos por
freqüentes as veredas, que são paisagens nas quais terrenos semi-desérticos, de extensão subconti-
predominam os coqueiros buriti e buritirana, que nental. A p resen ça de calich es em áreas tão
às vezes se distribuem, acompanhando os cursos distantes como as do Triângulo M ineiro, Rubião
d ’água até a parte média de alguns rios, formando Júnior, São Paulo e nas chapadas do N ordeste
uma paisagem muito bonita. Há um estrato inferior (Apodi, Araripe), onde ocorrem, identicamente,
de gramíneas que se apresenta verde durante todo sedimentos calcíferos lacustres, denotando solos
ano. Em alguns locais, o afloramento do lençol do domínio dos pedocals para as áreas interla­
chega a form ar verdadeiras lagoas, rodeadas por custres, elaborados certamente em condições semi-
buritis (M auritia vinífera). Esta paisagem é mais áridas ou relativam ente ásperas, tem sido um
freqüente do centro do Sistema em direção a norte argum ento forte neste sentido. A esse tem po,
e a leste. Quando se aproxima do pantanal mato- portanto, a vegetação som ente poderia ser tipo
grossense, sudoeste do sistema, as veredas tendem subdesértico e, provavelmente devido à tipologia
a desaparecer, ao passo que as áreas alagadas geral dos solos, teria sido uma flora diferente de
aumentam. todas aquelas conhecidas atualmente no país.
O Sistem a Biogeográfico dos Cerrados é li­ O soerguim ento pós-C retáceo do P lanalto
mitado poi_juna série de com plexas formas ve- Brasileiro, a par com os fenôm enos de circun-
getacionais interm ediárias que adquirem co n ­ denudação que compartimentaram o grande bloco
tornos específicos em direção à caatinga e outras territorial que se iniciava no rio Grande do Sul e ia
configurações em direção à floresta am azônica terminar na margem sul da Bacia Amazônica, criou
úmida. outras paisagens, sob a vigência de climas bem
No aspecto fisionômico e em muitos pontos mais úmidos do que os do Cretáceo, e à custa de
da com posição faunística, florística e de ocupação drenagens que foram preferencialmente exorreicas,
humana, as áreas com savanas da América do Sul, isto é, com franca saída para o mar. Este esquema
que aparecem nas Guianas, Venezuela e Colômbia, novo de topografia, mais com partimentada e de
muito se assemelham ao Sistema do Cerrado e, se solos relacio n ad o s com clim as m ais úm idos,
não fosse o caráter da descontinuidade, poderiam p erd u ro u p o r lo n g o s p erío d o s do T erciário .
perfeitam ente estar incluídas como um subsistema Acredita-se que, do médio Terciário para frente,
do mesmo sistema. os solos p red o m in an tes en q u ad rav am -se nos

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BARBO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

dom ínios dos pedalfers. E sta foi, verdadeira­ nância de clim as úm idos e clim as secos, com
mente, a grande m udança global de condições predominância genérica de solos do domínio dos
ocorrida na evolução dos planaltos e das paisa­ pedalfers.
gens interiores do Brasil, do Cretáceo Superior A b ’Saber assin ala ainda que, a p artir do
para o Terciário. Terciário Médio para o Quaternário, é que foram
Na documentação dos fatos que comprovam ela b o ra d o s to d o s os “s to c k s ” da v e g e ta ç ã o
esta grande mutação global de ambientes, uma relacionados de forma mais aproxim ada com o
participação especial está reservada às pequenas quadro atual inter e subtropical brasileiro (matas,
bacias detríticas, nas quais foram poupados se­ cerrados, caatinga, araucárias, pradarias). Tais
dimentos, em alguns compartimentos de planaltos floras, ou stocks, a partir do Quaternário flutuaram
brasileiros. Estando o território em pleno soer- no espaço sob controle das sucessivas mudanças
guimento epirogênico no decorrer do Terciário e climáticas forçadas pela instável paleoclimatologia
sujeito a drenagens tropicais abertas, houve uma dos tempos quaternários.
extraordinária evacuação de detritos para a região
do Prata e para a plataforma continental, restando Problemas referentes à
apenas uns poucos locais de sedimentação interior, distribuição dos Cerrados no
sem remoção por erosão. Trata-se dos casos da Pleistoceno Superior e Holoceno Inicial
Bacia de Taubaté, Bacia de São Paulo, Bacia de
C u ritib a, B acia de R ezende, B acia de Volta Os contornos cartográficos, que atualmente
Redonda, Bacia de Atibaia, Bacias de Fonseca e caracterizam o Sistema dos Cerrados, representam
Gandarela, Bacias costeiras isoladas do Sudeste e um evento muito recente, de acordo com inúmeros
Sul do País (Ribeira, A lexandra, Pelotas). No estudos de paleoecologia. Durante o Pleistoceno
Nordeste e na Amazônia, ocorrem importantes Superior e as fases iniciais do Holoceno, a área
massas detríticas dos fins do Terciário ou início do coberta por vegetação de cerrado era m aior do que
Quartenário. A presença de enormes quantidades a atual área de abrangência.
de horizo n tes argilosos no entrem eio desses Os estudos de geom orfologia evidenciam a
depósitos docum enta que, anteriorm ente à sua existência, durante o Pleistoceno Superior, de duas
deposição, a paisagem regional possuía solos grandes áreas core de cerrado: uma situada nos
oriundos do intemperismo químico, tropical úmido, chapadões do Brasil Central e outra, nos tabuleiros
com espessos regolitos, sobretudo nas rochas e baixos chapadões amazônicos. Esses mesmos
cristalinas. Sem essa argilificação prévia, não seria estudos evidenciam um a possível conexão ou
possível a formação da matriz para o fornecimento extensão dessas formações até áreas de Roraima,
de detritos finos para as aludidas bacias, mesmo Guianas e lhanos do Orinoco.
porque a rem oção dos m antos argilificados e D a m esm a fo rm a, in ú m e ro s es tu d o s de
alterados somente seria possível através de uma p alin o lo g ia relatam a o co rrên cia de savanas
fase agressiva de erosão areolar, concomitante- (cerrados) nas diversas áreas hoje ocupadas pela
mente com uma barragem tectônica eventual em floresta equatorial úmida.
determinados compartimentos de planaltos ou por A m aior p arte dos au to res afirm a que o
meio de um a nova fase de “em baciamento”, como fenôm eno se deve às oscilaçõ es do clim a do
foi o caso da Amazônia. Pleistoceno Superior, e de grande parte do Holoce­
Deve ter havido sempre grande trânsito de no, que afetaram profundamente todos os grandes
sedimentos finos na direção do Prata e da pla­ domínios do continente.
taforma continental, tendo sido poupados apenas No que se refere à Amazônia, principalmente
parte daqueles que foram carregados para a bacia aos baixos chapadões, que sustentavam uma área
A mazônica e os que saíram dos compartimentos core de cerrado e hoje ostentam uma paisagem
intermontanos do Nordeste e se dirigiram para a florestada, os estudos indicam que, durante o
faixa onde hoje está a franja detrítica do grupo período mencionado, a região foi afetada por climas
B arreiras. Identicam ente, os sedim entos que mais secos que favoreceram a perm anência do
ficaram aninhados em alguns raros, porém alta­ cerrado, nos platôs, e da caatinga, nas depressões.
mente significativos, compartimentos de planaltos Buscando correlacionar os dados de paleoeco­
do Brasil de sudeste, documentam sempre a alter­ logia com os dados de botânica, principalmente

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BARBO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159 193, 1995.

com aqueles que tratam do xerom orfism o do O conjunto de todas essas observações faz
cerrado, parece, à prim eira vista, haver certa possível a afirmação de que as áreas atualmente
contradição, pois estas pesquisas evidenciam que cobertas por vegetação de cerrado nos Chapadões
a água não é fator lim itante no desenvolvimento C entrais do B rasil representam um retrato da
da “vegetação de cerrado” . Entretanto, quando a configuração que essas áreas ostentavam também
paleoecologia se refere a “clim a seco” , está se no Pleistoceno Superior, ou seja, onde há cerrado
referindo a um “seco” relativo, tendo sempre como atualmente sempre houve cerrado, pelo menos até
referência as condições do clim a atual da área; o parâmetro de tempo do Pleistoceno Superior.
portanto, essa aparente contradição nesse sentido O mesmo não acontecia nas depressões e nos
não existe. Todavia, outras questões devem ser vales, pois a expansão dos eixos de semi-aridez,
consideradas, tendo como base os aspectos ligados provenientes do nordeste brasileiro e canalizados
à d ifusão do cerrado. E ssas observações d e­ por essas áreas, raleou a vegetação existente e ainda
monstram ser pouco provável que a vegetação de permitiu a colonização por formas associadas a
cerrado, que ocupava os baixos chapadões da ambientes semi-áridos. A retração desses eixos, já
Amazônia, hoje recobertos pelas florestas, tenham no Holoceno, favoreceu a retom ada e a expansão
expandido a partir de outras áreas core, por razões por núcleos florestados existentes em ilhas de maior
puram ente clim áticas, ocupando, dessa forma, umidade. Fato similar aconteceu na Amazônia, e
áreas anteriormente cobertas por outra formação foi agigantado, à m edida que a forte um idade,
vegetal - no caso, florestas. associada a outros fatores, mudou as condições
Em prim eiro lugar, as condições edáficas edáficas, favorecendo a expansão das florestas
associadas a esse stock vegetal não favoreceriam, sobre os baixos chapadões.
de imediato, uma difusão em escala tão larga. Outro Quanto à área do Brasil Central, as flutuações
argumento contrário é que uma mudança climática clim áticas foram mais intensas nas depressões
para condições mais áridas, mesmo ocorrendo de interplanálticas que envolvem ou penetram os
m aneira lenta, provocaria denudação do solo, altiplanos e chapadões regionais, com a paisagem
ressecando-o e impedindo, dessa forma, a migração de cerrado tendo sido mais ou menos estável nas
das espécies por sementes, o que consequentemente regiões maciças e elevadas da área e os climas,
impossibilitaria, com o passar do tempo, a forma­ ora mais secos ora mais úmidos, sim ilares aos
ção de uma área típica de vegetação de cerrado. atuais climas de tipo goiano, mato-grossense ou
Se essas observações estiverem corretas, como sudanês, afetando áreas como a depressão situada
as pesquisas atuais tendem a conduzir, é possível entre o Espigão Mestre e o Altiplano de Brasília,
afirm ar que a vegetação de cerrado, que ainda no as depressões interplanálticas do Alto Araguaia, a
Pleistoceno Superior ocorria nos baixos chapadões área do pediplano Cuiabano e a calha central da
da Amazônia, não representa uma expansão ou Bacia do Paranã (A b’Sáber, 1971).
difusão a partir de outras áreas nucleares, mais
precisam ente dos Chapadões Centrais do Brasil e, Alguns elementos da ecologia
sim, deveria constituir a vegetação original da área,
que foi conquistada posteriormente pela floresta, O S iste m a B io g e o g rá fic o dos C e rra d o s
em função das modificações do clima e do solo, ab ran g e área de um a g ran d e za esp ac ial que
fato perfeitamente possível, como atestam alguns re c o b re q u ase d o is m ilh õ es de q u ilô m e tro s
estudos botânicos. q u a d ra d o s, re g iã o de m a ciç o s p la n a lto s de
Pode-se concluir, a partir dessas observações, estruturas com plexas e planaltos sedim entares
que as manchas de florestas, em forma de ilhas, com partim entados; cerradões ou cerrados nos
ex isten tes à época na região não constituíam interflúvios e florestas - galeria contínua, ora mais
“refúgios” no sentido de representarem retração de larga ora m ais estreita; cabeceira em ligeiros
um a form ação vegetal anteriorm ente ocupando anfiteatros pantanosos; solos de fraca fertilidade
uma área mais ampla. É mais positivo afirmar que prim ária em geral; drenagens perenes para os
essas m anchas florestadas constituíam núcleos cursos d ’água principais e secundários, com o
originais da floresta úmida que, com o advento de d esap arecim en to dos “cam inhos d ’ág u a” das
situações favoráveis, expandiram-se sobre outras vertentes e dos interflúvios na época das secas;
formações. interflúvios m uito largos e bastante espaçados

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entre si, com pouca ramificação geral da drenagem Nesse contexto, podem ser agregadas as ilhas
na área core dos cerrados; enclaves de matas e de matas e m atas-galeria, integrantes decisivas
m anchas de solos rico s ou áreas de cais de desse ecossistema.
nascentes ou de olhos d ’água perenes; ausência No mesmo trabalho, Kuhlmann e seus cola­
de m am elonização, calhas aluvionais de tipos boradores afirmam que nem sempre é possível
particularizados, em geral não-m eândricos nos retratar com fidelidade, no m apa, os tipos de
planaltos; níveis de pediplanação nos com parti­ vegetação através da interpretação de imagem de
mentos de planaltos, pedim entos escalonados e radar e landsat, observando-se apenas as gra­
terraço s com cascalh o s; sinais de flutuações dações cinzas; mesmo depois de serem efetuados
clim áticas e paisagísticas vinculadas nas depres­ vôos de comprovação a baixa altitude, persistem
sões interm ontanas centrais ou periféricas da muitas dúvidas. Por essa razão, toma-se importante
grande área dos cerrados; climas do tipo sudanés, a análise dos padrões de relevo, solo e geologia.
co m p re c ip ita ç õ e s e n tre 1.300 e 1.800m m , Esses padrões, quando cuidadosamente analisados,
concentradas no verão e relativam ente baixas no servem de indicadores dos tipos de vegetação.
inverno; enclaves de matas na form a de capões M esmo quando o cerrado recobre grandes
de diferentes ordens de grandeza espacial. chapadas e chapadões tabulares, sua hom ogenei­
A área continua dos cerrados inclui pratica­ dade é quebrada com frequência por vales, tanto
mente os Estados de Goiás e Tocantins, oeste e os estreitos e os profundos como os amplos e os
norte de M inas G erais e Bahia, leste e sul do rasos, nos quais, pelo afloramento do lençol d ’água
Estado de M ato Grosso, a totalidade do Estado ou pela m udança dos com ponentes m inerais e
de M ato G rosso do Sul, sul dos E stados do orgânicos dos solos somados a uma maior proteção
M aranhão e Piauí. D essa área contínua e maciça, contra o fogo, a vegetação m odifica-se inteira­
há finas ramificações que penetram em Rondônia, mente, ora para o tipo florestal ora para os campos
sul do Pará e São Paulo. As áreas disjuntas de limpos com buritis, constituindo esses últimos as
cerrados inclusas em outros tipos de vegetação, belas paisagens das veredas.
de tam anhos variados, ocorrem em diferentes Ao se estudar a ecologia dos cerrados, observa-
partes do Brasil, notadamente no Nordeste, São se que uma das características mais marcantes da
Paulo, Paraná e Amazonia. sua biocenose é a dependência de alguns de seus
Anteriorm ente, enfatizou-se a noção da di­ componentes dos ecossistemas vizinhos. Muitos
versidade de formas vegetais que com põem os animais têm seu nicho distribuído entre o subsiste­
cerrados, enquanto sistema biogeográfico. Essa ma do cerrado propriam ente dito e das matas.
diversidade de matizes que constitui seus subsiste­ Podem, por exemplo, passar grande parte do dia no
mas tem constituído certas dificuldades para os cerrado e abrigar-se, à noite, nas matas e vice-versa.
pesquisadores determinarem que tipo de fisionomia
corresponde à vegetação original do cerrado, ou Topografia
pelo menos aquela que, sem um a provável inter­
ferência humana, reflita as condições ambientais O que caracteriza essa área é a alternância de
predominantes. formas topográficas representadas pelos relevos
Assim, nesta perspectiva, o cerrado não pode planálticos, morros de altura variada e depressões
ser entendido como uma unidade fisionômica. O estreitas ou amplas. Dependendo da espessura e
trabalho de Kuhlmann et alii sobre interpretação da com posição dos solos, as fisionom ias dos
de imagens de radar e landsat acerca da cobertura cerrados e de outros tipos de vegetação podem estar
vegetal da região dos cerrados ressalta também essa nitidamente separadas ou podem confundir-se, em
preocupação, e os autores afirmam: contatos pouco nítidos.
O que se procura definir com o termo Há áreas de pequenas superfícies, em que
cerrado não é apenas um tipo de vegetação, q u ase to d as as fisio n o m ias, com o m atas de
mas um conjunto de tipos fisionomicámente nascente, de galerias e de vereda são encontradas,
distribuídos dentro de um gradiente que tem constituindo-se em mosaico vegetal. Os tipos de
com o limites, de um lado, o campo limpo e, vegetação que recobrem a grande área do pantanal
do outro, o cerradão (Kuhlmann et alii, 1983: de M ato Grosso têm sido considerados como uma
205). u n id a d e sob a d esig n a ç ã o de C o m p lex o do

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Pantanal. Essa expressão, em bora registrada por Em trabalho posterior, o mesmo autor afirma
um bom número de pesquisadores e consagrada que as deficiências minerais limitam o crescimento
na literatu ra científica, não deve ser m antida e, em conseqüência, causam acúmulo de carbohi­
quando se referir aos mapeamentos de 1:1.000.000 dratos. O excesso de açúcares é utilizado para
e maiores: o que na verdade se observa nessa formação de cutículas espessas, de esclerênquima,
extensa planície é a influência da topografia em para produção, em resumo, de estruturas que dão
função das enchentes periódicas. à planta o caráter escleromorfo (Arens, 1971).
M aior ou m enor tempo de perm anência da G oodland (1969), ao estu d ar os solos do
água superficial e subsuperficial está inteiramente Triângulo M ineiro, estabelece uma relação entre
dependente das feições topográficas e do solo. os gradientes de fertilidade do solo com as diversas
Variações de apenas alguns centím etros podem fisionomias dos cerrados. Variam, do cerradão ao
definir a ocorrência de matas, cam pos lim pos, campo limpo de cerrado, os seguintes fatores: pH,
carandazais, campos permanentemente inundados, percentagem de carbono e nitrogênio, m atéria
etc. (Kuhlmann et alii, 1983: 205). orgânica, teor Ca+++ Mg++, K+, Al+++, percentagem
de alumínio, fosfatos e relação C/N.
Solos Assim, o solo do cerradão ocupa a extremidade
m ais alta do g radiente, por ap resen tar teores
Em 1948, Waibel estudou a vegetação e o uso elevados de matéria orgânica (N, P, K) Ca, Mg e
da terra no Planalto Central do Brasil e, ao constatar pH mais alto, baixa relação C/N e quantidades
que em áreas muito limitadas sob mesmas con­ menores de alumínio.
dições climatológicas pode-se encontrar urna gran­ Há uma estreita relação entre a riqueza orgâ-
de variedade de tipos de vegetação, concluiu que nico-mineral do solo e as fisionomias do cerrado.
eles dependem principalmente das condições edá- O xeromorfismo resulta também em grande parte
ficas, que, por sua vez, dependem das rochas que da carência de m icronutrientes do solo. E ssa
originam os solos (Waibel, 1984). carência, ou oligotropismo, limita o uso dos produtos
O mesmo autor, baseando-se em conceitos dos de fotossíntese, os quais ficam acumulados em
agricultores locais, afirma que há dois grandes tipos determ inadas partes das plantas, dando-lhes o
de solos na região dos cerrados: os solos de matas aspecto escleromórfico. Também o nanismo das
e os solos dos campos. Análises têm sempre reve­ p lan tas do cerrado é atrib u íd o à carên cia de
lado que os solos de cerrados (isto é, de campos) micronutrientes, como N, P e S, que são indispen­
são sempre mais pobres que os de matas. sáveis para a síntese das proteínas que entram no
Alvim e Araújo, autores que também destacam desenvolvimento normal de novos tecidos.
a im portância do solo para a com preensão dos
cerrados, afirmam, por exemplo, que a distribuição Clima
desta paisagem em sua região fitogeográfica é
aparentemente controlada pelo solo, mais que por Em trabalho intitulado “Climatologia dos Cer­
qualquer outro fator ecológico. Segundo esses rados”, Reis (1971: 239) faz considerações sobre
autores, as plantas dos cerrados parecem ser o b in ô m io c lim a /v eg e taç ão . D esse trab a lh o ,
tolerantes a um baixo teor de cálcio e a um pH destacam-se algumas conclusões, como a de que a
baixo, o que não permite o crescim ento de árvores vegetação de cerrado não é xerófita - logo, estará
típicas das florestas (Alvim & Araújo, 1952). na dependência de um clima subúmido; a condição
Arens (1958 a,b) admite que o pronunciado clim ática que determ ina o cerrado é a m esm a
xeromorfismo (escleromorfismo foliar) do cerrado responsável pelo aparecimento da mata; um a vez
seja uma conseqüência das condições oligotróficas satisfeita a condição climática, o cerrado aparecerá
dos solos, que são geralmente ácidos e empobreci­ ou não, na dependência de fatores edáficos, de ordem
dos em bases trocáveis. Afirma ainda que um dos nutricional; as diferenças de regime hídrico e térmico
fatores principais seria provavelmente a relativa em certos limites não implicam em modificações
escassez de nitrogênio assimilável, o que pode origi­ sensíveis na fisionomia da vegetação do cerrado.
nar o escleromorfismo oligotrófico, fazendo com que Camargo (1971), considerando as influências
a vegetação peculiar do cerrado seja selecionada pela clim áticas do ponto de vista dos aspectos micro,
deficiência de minerais, à qual teria se adaptado. topo e macro climáticos, afirma que, dada a escassa

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cobertura vegetal, as temperaturas do ar e a umida­ m esm o no auge da seca, flo ração e b rotação
de variam muito no decurso do dia. O autor sugere abundantes antes das chuvas pareciam contradizer
que essa condição microclimática severa é antes a noção geral de que a existência dos cerrados fosse
conseqüência que causa da vegetação. Também o devido à escassez de água.
topoclima tem efeito limitado sobre a vegetação E ssas observações iniciais de R aw itscher
natural. Essa vegetação é encontrada sob várias conduziram a uma série de trabalhos posteriores
condições macroclimáticas. de outros pesquisadores, no sentido de desvendar
Um dos estudos mais exaustivos sobre clima­ o aspecto de xerom orfism o que caracteriza a
tologia do Brasil foi apresentado por Nimer (1977). vegetação de cerrado.
Dentre outras observações, o autor reconhece que O primeiro trabalho experimental foi conduzi­
o domínio de um clima quente e semi-úmido, com do pelo próprio autor, com a colaboração de Ferri
quatro a cinco meses secos, empresta ao clima da e Rachid, no cerrado de Emas - em São Paulo. Entre
região Centro-Oeste do Brasil uma notável homo­ as muitas conclusões, os autores afirmam que a água
geneidade, e esta, por sua vez, é reforçada pela não é um fator limitante da vegetação de cerrado
uniformidade de seu sistema geral de circulação (Rawitscher, Ferri & Rachid Edwards, 1943).
atmosférica. Em trabalho mais extenso, no qual observa o
A essa homogeneidade climática corresponde comportamento estomático e de transpiração, Ferri
uma paisagem vegetal constituída pelos cerrados, (1944) chega às mesmas conclusões, evidenciando
em sentido lato, quebrada localmente por outros que a vegetação de cerrado de E m as não se
componentes do meio natural, tais como topografia, comporta, apesar de seu acentuado xeromorfismo,
litologia e solos. como adaptada a condições de seca.
Em 1955, Ferri publicou um extenso trabalho
O caráter xeromorfo dos cerrados intitulado “C ontribuição ao conhecim ento da
e c o lo g ia do ce rra d o e da c a a tin g a . E stu d o
Revestindo o solo especialmente com gramí­ comparativo do balanço d ’água de sua vegetação”
neas, entre as quais repontam ervas, arbustos e (Ferri, 1955). Na introdução, o autor caracterizou
árvores em proporções variáveis, a vegetação do os vários tipos de vegetação que ocorrem no Brasil
cerrado impressiona especialmente pelo aspecto e indicou sua distribuição. A seguir, focalizou a
tortuoso de suas árvores e arbustos, cujos caules atenção nos ambientes em que vivem as plantas
com frequência recobrem-se de espessa casca, com dos cerrados (em Emas) e da caatinga (em Paulo
folhas coriáceas e brilhantes ou revestidas por um A fonso). A presentou, d epois, um a d escrição
d enso conjunto de pelos, em prestando esses fisionôm ica dos dois tipos de vegetação, cuja
caracteres ao cerrado, a aparência de vegetação composição florística também analisou. Entrou,
adaptada às condições de seca. finalmente, no estudo pormenorizado de problemas
Não é de estranhar, pois, que até recentes anos m orfológicos, principalm ente da anatom ia das
fo sse o cerrado cham ado frequentem ente de folhas, da transpiração, do com portam ento es­
“cam po seco” . C ontribuía para isso o fato de tomático, dos déficits de saturação, entre outros
ocorrer tal vegetação muitas vezes em regiões onde relativos a um grande número de espécies carac­
é comum um período de 4 a 5 meses totalmente terísticas dos dois tipos de vegetação que estudou
sem chuvas. e comparou.
Parece não haver dúvida quanto a ter sido Fatos já descritos em trabalhos anteriores
Rawitscher o primeiro a considerar seriamente a foram postos em destaque: grande profundidade
possibilidade de que a vegetação de cerrado não dos solos dos cerrados; abundância de água nesse
fosse condicionada pela falta de água (Ferri, 1973: solo; profundidade considerável dos sistemas ra­
288). d icu lares das p lan tas p erm an en tes; p resen ça
Levaram-no a isso observações casuais nas freqüente de estrutura xeromorfa na vegetação do
freqüentes viagens feitas em várias partes do Estado cerrado, como estômatos em depressões, epidermes
de São Paulo, onde visitou cerrados, principalmente revestidas por cutículas espessas e camadas cu­
em Emas, próximo a Pirassununga. ticulares ou recobertas por numerosos pelos ou
Folhas enormes que muitas plantas de cerrado escamas, presença de hipoderme e parênquimas
apresentam, ausência de sinais de murchamento incolores, células pétrias e esclerênquimas bem

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desenvolvidos, etc.. Todos esses elem entos são caso, a água é perdida apenas através da cutícula e
habitualmente correlacionados a condições xéricas. essa p erd a-tran sp iração cu ticu lar na caatin g a
E, no entanto, o estudo do com portam ento da geralmente é muito baixa. Mas até isso pode pôr a
vegetação do cerrado não indica a adaptação a tais planta em perigo, e então um dos m eios mais
condições, que, em verdade, não existem. eficientes de proteção contra a seca é reduzir
A grande maioria das plantas permanentes dos consideravelmente a superfície transpirante pela
cerrados transpiram livremente e com altos valores, queda das folhas. Isso é o que realmente ocorre, e
mesmo nos períodos de secas mais pronunciadas; planta após planta se despoja de suas folhas.
som ente poucas m ostram pequena restrição no Alguns indivíduos das espécies mais resistentes
consumo hídrico nessa época. persistem enfolhados, porém até eles derrubam
As plantas do cerrado mostram, quase sem suas folhas quando a seca é realmente severa.
exceção, estôm atos abertos durante todo o dia, Em contraste com as plantas permanentes do
mesmo durante a seca. Também é comum encontrá- cerrado, as árvores e arbustos da caatinga têm
los abertos à noite. estômatos de reações muito rápidas. A Spondias
Em geral, as reações estomáticas das plantas tuberosa, Arruda, por exemplo, reduz mais de 50%
permanentes do cerrado são lentas. O fechamento do valor inicial de sua transpiração em apenas dois
total das fendas estomáticas, quando se faz cessar m inutos após cessar o suprim ento de água e
o suprimento hídrico arrancando a folha da planta, c o m p le ta fe c h a m e n to e s to m á tic o em cin co
pode consumir uma hora ou mais e, às vezes, nunca minutos( Ferri & Laboriau, 1952).
se com pleta inteiramente. A transpiração cuticular A transpiração cuticular indica geralm ente
é habitualmente muito elevada, embora as cutículas valores muito baixos na caatinga, apesar de não
e as cam adas cuticulares sejam espessas. Os serem espessas as cutículas.
déficits de saturação das folhas são baixos em O autor considerou ainda que a caatinga vive
geral, mesmo na época seca. O valor mais alto em condições de seca muito mais pronunciada que
en contrado foi da ordem de 5% do conteúdo o cerrado e é fisiologicamente adaptada a essas
máximo de água. condições, embora não tenha um xeromorfismo tão
Embora restritas a um habitat muito mais seco, acentuado quanto o cerrado, o qual, no entanto, não
a m aioria das espécies dom inantes da caatinga apresenta adaptação fisiológica a ambiente seco,
(exceto as bromeliaceae, as cactáceas e as euphor- o que induz à conclusão de que o que im porta
biaceae suculentas) não apresentam xeromorfismo realmente é a adaptação fisiológica, mas o autor
tão acentuado quanto as plantas do cerrado. considerou que duas questões importantes devem
Assim , não são freqüentes cascas espessas ser resolvidas: 1) se a vegetação do cerrado não
nem folhas coriáceas ou pilosas. Cutículas grossas, vive, em geral, em am biente seco, por que é
e stô m a to s em d e p re ssõ e s, ab u n d a n te tecid o xeromorfa? 2) por que não se desenvolveram na
m ecânico são tam bém incom uns. Em bora com c a a tin g a , com m aio r fre q u ê n c ia , c a ra c te re s
x ero m o rfism o m enos p ro n u n cia d o que o da xeromorfos, ao lado dos mecanismos fisiológicos
v eg etação do cerrado, as plantas da caatinga de proteção contra a seca? não dariam eles proteção
revelam-se melhor adaptadas fisiológicamente para adicional às plantas contra a perda de água?
sobreviverem em condiões xéricas. O autor tentou responder a primeira questão
M esmo durante a época das chuvas, várias por meio de duas formas: a) o xeromorfismo do
plantas já revelam necessidade de restrição do cerrado nada tem a ver com proteção contra a seca,
consumo hídrico, ficando com estômatos abertos tendo-se originado por qualquer outra razão; b) a
somente nas primeiras ordens do dia; outras, após vegetação do cerrado pode, eventualmente, estar
fecharem os estômatos nas horas e condições mais sujeita a secas pouco severas, contra as quais basta
severas, reabrem -nos à tardinha. M uito poucas a proteção de pelos, cutículas espessas, estômatos
podem manter estômatos abertos durante o dia. aprofundados, etc.. A vegetação do cerrado não
À m edida que se agrava a seca, curvas de teria estado sujeita a um estímulo bastante forte,
transpiração indicativa de grande restrição no durante seu processo evolutivo, para desenvolver
c o n s u m o h íd ric o to rn a m -s e c a d a vez m ais e selecionar mecanismos fisiológicos de proteção
freqüentes. Por fim, quase todas as plantas mantêm contra a seca. Tal seleção teria ocorrido, entretanto,
os estômatos fechados durante todo o dia. Nesse no ambiente mais seco da caatinga.

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Com respeito à segunda questão, o autor com portamento estomático, mostrando estô­
considerou que, durante a evolução da vegetação matos abertos durante o dia, em quase todas
da caatinga, sempre que o xeromorfismo aparece as plantas nos três locais, confirma a conclusão
isolado não pode ser fixado, pois, não dando acima (Ferri & Coutinho, 1958).
p ro teção sa tisfató ria co ntra a perda de água,
Pelo que se pode concluir, a água não é fator
permitiu que morressem as espécies às quais isso
lim itante do desenvolvim ento da vegetação do
sucedeu. Quando surgiram apenas os mecanismos
cerrado nas três localidades consideradas.
fisiológicos de proteção contra a seca, eles puderam
Posteriormente, Ferri e outros pesquisadores
ser selecionados, pois, dando suficiente proteção
realizaram pesquisas similares em outras áreas de
às espécies que os envolveram, permitiram-lhes a
ce rra d o , em G o iân ia, P ern am b u c o (F e rri &
sobrevivência.
Lambert, 1960).
Por que, entretanto, não pôde ser selecionado
um núm ero m aior de espécies em que os dois
O agente fogo
grupos de m ecanismos de proteção apareceram
reunidos? Para explicar tal fato, o autor admitiu
Não se pode levar adiante qualquer estudo
que o xeromorfismo deve ser, de qualquer forma,
sobre os cerrados, se não se tomar em consideração
prejudicial às plantas no ambiente seco da caatinga.
o fogo, elem ento intim am ente associado a esta
Supôs que, devido à falta de água, a possibilidade
paisagem . A pesar de sua im p o rtân cia p ara o
de realizar fotossíntese ficasse restrita a um período
entendimento da ecologia desse ambiente enquanto
curto. Q uando o período da seca am eaça, os
conjunto biogeográfico, a ação do fogo nos cerrados
estômatos se fecham rapidamente, mas assim que
é ainda mal conhecida e geralmente m arcada por
o perigo se afasta, eles se abrem depressa e então
questões mais ideológicas que científicas. Também
nada deve dificultar o acesso de luz e de gás
não se pode conduzir seu estudo com base apenas
carbônico. Assim, os estômatos não devem estar
nas comunidades vegetais. O estudo do fogo como
em depressões, nem cobertos por pelos, mas, ao
agente será mais completo se também se observar
contrário, devem estar bem expostos, como, de fato,
a comunidade faunística e os hábitos que certos
geralmente acontece.
animais desenvolveram e que estão intimamente
O autor admitiu que se deveria pensar em valor
associados à ação, cuja assimilação, sem dúvida,
adaptativo de caracteres combinados, em relação
necessita de arranjos evolutivos caracterizados por
a conjuntos de processos, e não em valor adaptativo
tempo relativam ente longo. De algumas dessas
de um caráter isolado, em relação a um processo
observações, constata-se, por exemplo, que a perdiz
único. No presente caso, o xeromorfismo com bi­
(R hyn ch o tu s ru fe sce n s) só faz seu ninho em
nado com mecanismos fisiológicos de proteção
“macegas”, tufos de gramíneas queimados no ano
contra a seca teria, na caatinga, um valor adaptativo
anterior. D a v isita a várias áreas de cerrado
menor que a proteção fisiológica somente porque
im ediatam ente após grande queim ada, tem -se
a proteção adicional contra a perda de água que o
constatado que, apesar de as árvores e arbustos se
xeromorfismo daria à planta não compensaria o
m ostrarem enegrecidos superficialm ente, estes
prejuízo causado à sua fotossíntese.
continuam com vida, ostentando ainda, entre a
No cerrado, o xeromorfismo não seria prejudi­
casca enegrecida e o tronco, intensa microfauna.
cial, pois, devido à abundância d ’água, os estôma­
Fenôm eno sem elhante acontece com o estrado
tos mantêm-se abertos, em geral, o dia todo.
gramíneo: poucos dias após a queimada, mostra
Do estudo feito sobre a transpiração e o
sinais de rebrota que constitui elemento fundamen­
co m portam ento estom ático, F erri e C outiner
tal para concentração de certas espécies animais.
concluem:
O fogo é um elemento extremamente comum
A análise do andamento diário da transpi­ no cerrado, de tal forma antigo, que a maioria das
ração de diferentes espécies, na época, revela plantas parece estar adaptada a ele.
não existir um a diferença fundam ental de Ferri (1973: 297), com entando trabalho de
comportamento nas três regiões consideradas. Rachid Edwards sobre a ação do fogo em áreas de
Revela ainda não haver, em qualquer dessas cam po lim po e cerrado, inform a que a autora
lo c a lid a d e s , n e c e s s id a d e de a p re c iá v e l (Rachid Edwards, 1956) estudou especialm ente as
restrição do consumo hídrico. O estudo do gramíneas, grupo que constitui a massa da vegeta­

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ção baixa dos cam pos, e no qual existe grande térmico atmosférico montam rapidamente tempes­
número de espécies tunicadas. Entre elas destacam- tades magnéticas caracterizadas pela intensidade
se A r is tid a p a lle n s , Im p e ra ta b r a s ilie n s e s , dos trovões, relâmpagos e raios (Nascimento, 1987).
Tristachya leiotachya e Paspalum carim atum , Atualmente, a forma descontrolada de utiliza­
Flugge. Inform a ainda que a autora estudou duas ção do fogo pelo homem vem provocando sérios
espécies de Schizacaceae (Filicinae) - A nem ia desequilíbrios nesse sistema biogeográfico.
anthrisifolia e A. fulva.
Rachid Edwards indica neste mesmo trabalho Problemas relacionados
que as form ações túnicas são encontradas em com a difusão dos cerrados
plantas da vegetação baixa dos cam pos, como
Graminae, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae, etc.. O problem a da origem do cerrado, tanto no
Indica ainda que, segundo Bouillene e ta lii (1930),
sentido evolutivo como no sentido sucessional, nem
ocorrem também em Velloziaceae pontos vegeta­ sempre é tratado com a clareza e a distinção que o
tivos e, em função, com param-se aos catafilos que tema exige. Entretanto, levantar alguns dados é da
protegem as gemas dormentes. Tais elementos, maior importância para compreender alguns fatores
além de protegerem contra a perda da água, são
ligados à sua difusão bem com o às áreas de
eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte distribuição em épocas mais recuadas.
aquecimento por ele produzido. O primeiro problema para o qual se chama a
A autora ainda trata dos sistemas subterráneos atenção refere-se à difusão da vegetação de cerrado.
(bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódicos), que Não há muitos estudos nesse sentido, e os que
tam bém proporcionam resistência às condições existem referem -se às áreas p eriféric as, nem
adversas. sempre típicas. Todavia, apesar desse fato, esses
Arens (1958 a, b) afirma que o fogo é um fator estudos trazem alguns pontos elucidativos de
que acentua o o ligotrofism o, influindo dessa grande importância.
m aneira sobre conservação ou propagação do Em nota com plem entar que acom panha a
cerrado, e Goodland (1969) sugere que a ação do apresentação preliminar do mapa fitogeográfico do
fogo sobre m icroorganism os do solo é m uito Estado do Paraná, Brasil, Maak (1949) opina que
importante no cerrado, porém pouco conhecida. A as ilhas de cerrado que ocorrem no Paraná devem
produtividade primária é aumentada, pois há uma ser relictos de uma vegetação clímax, sendo as
aceleração da ciclagem dos nutrientes minerais. matas do Paraná a formação secundária de sucessão
N a m esm a linha de raciocínio, C outinho mais recente.
(1976) inform a que a ação do fogo no cerrado Comentando o trabalho de Maak, Ferri (1973:
aum enta o vigor da vegetação herbáceo-subarbus- 302) conclui, contrariam ente, que no local em
tiva, enquanto a arbustivo-arbórea o tem diminuído. q u estão os elem en to s de ce rra d o d evem ser
Isso significa, de acordo com o autor, um aumento considerados como invasores.
progressivo das áreas de campo sobre as áreas de Em 1960, C outinho e F erri, estu d an d o a
cerrado e áreas de cerradão. transpiração e o com portamento estom ático das
Outro dado importante a destacar, quando se espécies de cerrado que ocorrem na área m encio­
p rocura entender a ação do fogo ao longo da nada por M aak, Campo do M ourão, Estado do
história, é que a ação do hom em pré-histórico Paraná, afirmam:
brasileiro não funcionou como elemento perturba­
dor dessa paisagem porque, além da ocupação do “Próxim o do centro da cidade, encon­
interior do Brasil ser um fato relativamente recente, tramos um grupo de plantas que ocorrem em
era insignificante em termos populacionais para numerosos cerrados, e a vegetação que estu­
produzir perturbações em am plas escalas; suas damos não tem o aspecto típico dos cerrados
ações revestem -se de caráter puramente local. que conhecemos em outras localidades. (...)
Ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado Como foi mencionado acima, a vegetação que
deve ser buscada em causas naturais. O calor e as estudamos não constitui um cerrado típico. Os
variações do albedo sempre alto nas áreas provocam exemplares das espécies típicas de cerrado que
intensos movimentos convectivos na atmosfera, em encontramos eram, em geral, de pequeno porte
que a concentração da umidade e o forte gradiente e de troncos delgados. (...) Finalmente, deve-

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BARBO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

se anotar a ocorrência de num erosas plan- Se uma área coberta por floresta é devastada
tin h a s, sem d ú v id a alg u m a o riu n d as de pelo homem e se sementes de plantas de cerrado
sementes, o que não é freqüente em cerrados aí caírem logo, a situação é bem diversa: a superfície
velhos, bem estabelecidos em determ inada do solo é macia, tem um alto teor de coloides e uma
região. Tudo isso faz supor que a migração de boa capacidade de retenção de água. Aí as sementes
elementos de cerrado para aquela localidade é podem germinar logo e uma alta porcentagem de
relativamente recente” . plantas pode sobreviver. Com o correr do tempo,
Em trabalho de 1961, no qual reuniu dados e entretanto, as condições do solo conquistado pelo
observações próprias e de outros pesquisadores cerrado tornam-se cada vez menos favoráveis, até
referentes à ecologia dos cerrados, Ferri retoma o que a situação se equipare à descrita no início, com
tema da difusão do cerrado e focaliza, em especial, referência aos cerrados antigos.
o fato de que, após vários anos de pesquisas no C om o adendo às o b serv açõ es de Ferri e
cerrado, surpreendeu-se com a constatação de que colaboradores, acrescentem-se algumas das obser­
nunca encontrou plantinhas de espécies permanen­ vações do professor Binômio da Costa Lima, além
tes que p u d esse dizer, com se g u ra n ça , que de outras nossas. As observações de Costa-Lima
provinham de sementes (com exceção do caso já datam de 1950, ao passo que as nossas são de 1975,
mencionado de Campo do Mourão, que não é um quando efetivam ente passam os a acom panhar
cerrado típico). Reprodução vegetativa de vários aquele pesquisador em suas jornadas de campo.
tipos é responsável pela manutenção desta vegeta­ A mbos constatam os que em áreas onde a
ção em determinado local e pela sua expansão em vegetação original era constituída por matas, e
áreas adjacentes, mas a ocupação de locais mais quando estas são degradadas e abandonadas, sem
afastados só pode verificar-se por germinação de atividades que requeiram manejo do solo, a tendên­
sementes. cia é o aparecimento de espécies típicas da mata
E xperiências com sem entes de Stryphno- que formam uma paisagem de árvores de cresci­
dendron a d strin g e n s, D im orphandra m ollis, m ento rápido, retilín eas e finas, d enom inada
E rio th e ca g ra c ilip e s, K ielm eyera co riá cea , regionalm ente “capoeiras” . Esse fenôm eno foi
Annona coriácea, Aspidosperma tomentosum, etc. observado em várias localidades do sudoeste de
revelaram que não há dificuldade para a germina­ Goiás, em manchas de matas com cerrado nas
ção em condições de Laboratório. No cerrado, proximidades.
entretanto, as mesmas sementes não germinaram Quando a área de mata é degradada e aí se
ou o fizeram em porcentagem muito pequena. exerce algum a atividade de m anejo do solo,
M esm o quando houve algum a germ inação, a abandonada em seguida, observou-se que aumenta
sobrevivência final foi extremamente baixa. significativam ente a ocorrência de leguminosas
O autor acredita poder explicar o que se passa: num primeiro estágio. Em seguida, com eçam a
as sementes das plantas permanentes do cerrado surgir espécies típicas de matas. Em ambos os
são produzidas e dispersadas, via de regra, ao final casos, não se observa a invasão dessas áreas por
da época seca. Muitas são comidas por insetos e espécies de cerrado.
outros animais. M uitas m orrem pelo excessivo Constatamos também a retom ada da mata nos
calor solar. Algumas apenas são preservadas em seus aspectos originais em áreas onde atualmente
certos pontos mais abrigados. Nos cerrados antigos, ocorrem sítios arqueológicos e que foram degrada­
a superfície do solo é dura e tem um baixo teor de das para implantação de aldeias, por indígenas
coloides. Assim, quase toda a água das primeiras conhecedores da prática agrícola, com a abertura
chuvas corre pela superfície. As sem entes que de clareiras para suas roças. Essas áreas, depois
in iciam sua germ inação com estas prim eiras de abandonadas por essas populações, retomaram,
chuvas podem não encontrar água suficiente para com o passar do tempo, suas características pri­
prosseguirem em seu desenvolvimento. Mesmo que márias. Convém salientar que, nas áreas obser­
algum as plan tin h as consigam nascer, podem vadas, o período que separa a época do abandono
morrer em seguida, por falta de água, se alguns pelas populações indígenas até os dias atuais é de
dias sem chuva sobrevierem porque suas raízes 150 a 100 anos.
podem não ultrapassar, em tempo satisfatório, a Outras observações nestas áreas demonstram
camada superficial seca do solo. que, quando degradadas, brotam de imediato um

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conjunto de espécies que representam antigos que distribui água para as grandes bacias do con­
cultígenos com o feijão (Phaseolus sp.), algodão tinente. Assim, neste Sistema encontram-se rios
(Gossypium sp.), Guariroba (Syagrus olerácea). das Bacias Amazônica, do Prata, do Pantanal, do
Tal fato tem inclusive servido como indicador para São Francisco, além de pequena porção de algumas
localizar sitios arqueológicos correspondentes a bacias menores do nordeste. Isto permite a ocor­
grupos agricultores no centro do Brasil. rência de grande variedade de peixes e alguns rios,
Costa Lima tem constatado a invasão de áreas, como os que formam as bacias do Araguaia, Pan­
originariam ente com vegetação de cerrado, por tanal e Prata, são muito piscosos. Associa-se a este
espécies de matas sempre que essas formações fator o papel ecológico que os tributários repre­
ocorrem próxim as e quando algum a atividade sentam , sendo locais de desova preferidos por
altera os componentes do estrato inferior da vege­ inúmeras espécies. Algumas espécies de peixes
tação de cerrado, como, por exemplo, o pisoteio chegam a pesar mais de 100 quilos quando adultos;
do gado, sufocando o estrato gramíneo. e uma grande maioria atinge facilmente 20 a 30
quilos, havendo também várias espécies menores.
Alguns elementos da flo ra e fauna Numa listagem preliminar, Costa Lima (1976)
registra para este Sistema 62 espécies, sendo sua
A diversificação em variados ambientes é que distribuição da seguinte forma: 22 espécies são
atribuí ao Sistema dos Cerrados o caráter funda­ exclusivas das águas que correm para o norte, 17
mental da biodiversidade. Compreender a distri­ espécies são das águas que correm para o sul, 15
buição dos elementos da flora e da fauna pelos espécies ocorrem tanto nas águas do norte como
diversos subsistem as e seu ciclo anual é muito nas do sul e o restante é específico dos lagos das
importante para uma visão de globalidade. águas de norte.
No que se refere às espécies vegetais frutíferas,
o Sistema dos Cerrados se apresenta como um dos Distribuição dos principais elementos
mais ricos, oferecendo uma grande quantidade de da flora e da fauna pelos subsistemas
frutos comestíveis, alguns de excelente qualidade,
cujo aproveitamento por populações humanas dá- Os dados seguintes procuram dem onstrar
se desde os primordios da ocupação e, em épocas alguns elementos dessa biodiversidade e o caráter
atuais, são aproveitados de forma artesanal. As­ de interdependência dos diferentes subsistemas,
sociados aos frutos, outros recursos vegetais de tom ando com o base a d istrib u içã o de certo s
caráter medicinal, madeireiro, vinífero, etc., podem recursos vegetais, principalmente frutíferos, e as
ser listados em grande quantidade. Alguns desses formas animais.
recursos, frutíferos ou não, constituem potenciais Pelas características similares no que se refere
fontes de exploração econômica de certa grandeza, à distribuição desses elementos, alguns subsiste­
sendo que a pesquisa e o desenvolvim ento de mas foram agrupados em categorias mais amplas,
tecnologias podem viabilizar seu aproveitamento denom inadas biom as. Assim , o Subsistem a do
a curto prazo. Campo e o do Cerrado passam a constituir o bioma
O Sistema Biogeográfico dos Cerrados também Campestre. O Subsistema do Cerradão e da M ata
apresenta uma fauna variada, representada essen­ não sofreram modificação, constituindo respectiva­
cialmente por animais de médio e pequeno porte. m ente o B iom a do C erradão e o da M ata. O
No que se refere à avifauna, 935 espécies ocor­ Subsistema das Veredas e Ambientes Alagadiços
rem no Sistema; destas, 148 espécies são anotadas e o das M atas C iliares foram reunidos sob a
como próprias. d e s ig n a ç ã o de B io m a R ib e irin h o . A lg u m as
Da Costa (1981) registra 298 espécies de ma­ espécies têm sua ocorrência registrada em todos
míferos para o Sistema dos Cerrados e não con­ os biom as; por isso, além dos quatro biom as
sidera nesta listagem os mamíferos aquáticos. Os definidos, há um espaço reservado a essa categoria.
répteis listados para o Sistema representam 268
espécies o que corresponde a mais de 67% do total D istribuição de recursos vegetais p o r biomas
citado para o Brasil.
Já foi mencionado que o Sistema Biogeográ­ No Bioma Campestre, há grande concentração
fico dos Cerrados se assemelha a uma cumeeira, de recursos vegetais, representados essencialmente

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por frutos comestíveis. 37% das espécies listadas, 15% dos mamíferos são comuns a todos os
englobando todos os recursos e não somente frutos, biomas.
têm sua ocorrência neste bioma, sendo que 34% Embora possam ser visíveis durante todo o
são exclusivos e o restante é registrado também ano, os mamíferos campestres estão mais concen­
noutros biomas. trados nos meses de setembro, outubro, novembro,
No Biom a do Cerradão, a distribuição dos dezembro e janeiro. Esta época coincide com as
recursos vegetais não é significativa, apenas 4% floradas e rebrota dos pastos afetados por quei­
têm sua ocorrência registrada aí, sendo que 3% são madas naturais ou antrópicas do ano anterior. Coin­
exclusivos. cide também, principalmente a partir de novembro,
No Bioma Ribeirinho, não é também significa­ com a época de maturação dos frutos. As espécies
tiva a distribuição dos recursos vegetais, no que se insetívoras também encontram, nesta época, farto
refere à quantidade de espécies. Entretanto, isto é recurso, propiciado pela revoada e multiplicação
m uito relativo, pois algum as espécies que aí de certas espécies de insetos.
ocorrem fornecem grande quantidade de massa Outros mamíferos carnívoros também estão
alimentar. 9% dos recursos listados ocorrem neste mais concentrados em setem bro, outubro, no­
bioma; desses, 6% são exclusivos. vem bro, dezem bro e janeiro, acom panhando a
Englobando não somente os frutos, o Bioma co n cen tração dos m am íferos cam p estres. Os
da Mata, apresenta-se como o de maior concentra­ mamíferos habitantes do Bioma Ribeirinho podem
ção dos recursos vegetais, reunindo 50% deles, ser mais visíveis e concentrados nos meses secos,
sendo que 44% são exclusivos. principalmente junho, julho, agosto e setembro.
Nenhum recurso vegetal é comum a todos os
biomas. Distribuição de aves p o r biomas

Distribuição de recursos 33% das aves podem ser en co n trad as no


vegetais p o r época do ano Bioma Campestre, sendo que 10% são comuns a
outros biomas.
A distribuição dos recursos vegetais, principal­ 24% das aves são encontradas no B iom a
mente dos frutos, tem sua maior concentração nos Cerradão e não há formas exclusivas.
meses de novembro, dezembro e janeiro, época que Da mesma forma que o Bioma do Cerradão, o
coincide com o auge da estação chuvosa. Essa Biom a da M ata no Sistem a dos C errados não
concentração diminui proporcionalmente à medida apresenta formas exclusivas de aves, mas 9% das
que se distancia da época chuvosa. Todavia, com espécies com uns a outros biom as podem ser
excessão de maio, os meses que correspondem à encontradas aí.
ép o c a se ca , m esm o em q u a n tid a d e m enor, 25% das espécies avícolas também são regis­
apresentam certa regularidade de recursos. tradas no Bioma Ribeirinho. Dessa porcentagem,
24% são exclusivas.
Distribuição de mamíferos po r biomas 9% das aves são freq ü en tes em todos os
biomas.
32% dos mamíferos listados têm sua ocorrên­ A m aio r p arte das aves do S iste m a dos
cia registrada no B iom a C am pestre; 17% são Cerrados põe seus ovos durante a estação seca,
exclusivos e 15% são comuns também a outros mais especificamente em junho, julho e agosto. As
biomas. aves campestres estão mais concentradas no início
No Bioma do Cerradão, ocorrem 15% dos da estação chuvosa.
mamíferos, mas nunca de forma exclusiva, ou seja,
os m am íferos listados aí são com uns a outros Distribuição de répteis por biomas
biomas.
16% dos mamíferos ocorrem no Bioma da 34% dos répteis do Sistem a dos C errados
M ata; desses, 5% são exclusivos. podem ser encontrados no Bioma Campestre, sendo
No Bioma Ribeirinho são registrados 22% dos que 17% são formas exclusivas. Todas as espécies
mamíferos, sendo 8% exclusivos. campestres são representadas por formas pequenas.

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N enhum a form a de réptil é listada para o Bioma sistemas físicos e culturais até então estruturados
do Cerradão. e p o r flu tu a çõ es no esp aço p o r p arte d esses
25% podem ser encontrados no B iom a da sistemas, culminando com a redução de áreas com
Mata, sem exclusividade. savanas e início de desertificação em certos setores,
41% são encontrados no Biom a Ribeirinho, fatos que acentuam o processo de redução faunís-
sendo que 25% são exclusivos; nesse bioma também tica, principalmente a fauna de gigantes na parte
são registradas as formas maiores dessa classe. centro-norte ocidental do continente.
A m aior parte dos répteis campestres é mais Parece claro que essas m ovim entações hu­
facilmente encontrada na época chuvosa. Entretan­ manas estejam relacionadas com modificações de
to, os répteis maiores, como jacarés e tartarugas, ordem am biental, mesmo que essas sejam m e­
habitantes do biom a ribeirinho, são mais visíveis diatizadas pela cultura. Os sistemas culturais são
durante a estação seca, época que coincide com a de certa forma desestruturados, e as populações
postura. são impulsionadas a buscarem novas formas de
planejamento ambiental/social e novas alternativas
D istribuição de peixes de sobrevivência. Nesse contexto, as áreas abertas,
p o r bacias hidrográficas representadas especialmente pelos cerrados ainda
existentes em manchas significativas nos baixos
48% dos peixes ocorrem na Bacia Araguaia/ chapadões da Amazônia, devem ter exercido papel
Tocantins, 27% nos tributários da Bacia do Paraná/ fundamental no favorecimento de novas expectati­
Platina e 25% ocorrem em ambas as bacias. A vas de sobrevivência e novos arranjos culturais,
m aior concentração dos peixes coincide com a desencadeando os processos iniciais de colonização
época da seca, p rincipalm ente junho, ju lh o e das áreas interioranas do continente.
agosto, quando acontece a piracema, ou seja, a Essa colonização dá-se preferencialmente em
subida para postura, seguida da descida dos cursos áreas de formações abertas. O início acontece de
d ’água por grandes cardumes. form a acanhada, mas algum tem po depois já é
possível constatar a formação de um horizonte
cultural fortemente adaptado às novas condições
Outros recursos animais ambientais, principalmente quando se aproxima da
grande área core, das formações abertas, existente
M ultiplicam moluscos em certa quantidade no nos chapadões centrais brasileiros, cujas caracte­
Bioma Ribeirinho e no Bioma da M ata e também rístic a s físic as e b io ló g ica s m a n têm -se com
ao longo de paredões rochosos mais úmidos. A alteração pouco significativa quando com parada
m aior concentração acontece na estação chuvosa. com m odificações que afetaram outros biom as
O mel silvestre pode ser encontrado em todos continentais durante o Pleistoceno Superior e fases
os biomas, principalm ente no tronco das árvores e iniciais do Holoceno.
nas fendas rochosas. A época da coleta mais farta Os estudos sobre a indústria lítica que compõe
coincide com a estação chuvosa. Nesse sentido, as esse grande horizonte cultural que se form a nos
abelhas indígenas (meliponinae) constituem um Cerrados, quando com parados com outros sobre
g ran d e p o te n cia l a ser estudado e explorado as indústrias líticas do continente, situadas mais a
racionalm ente. oeste e mais recuadas tem poralm ente, parecem
dem onstrar que alguns traços tecnológicos são
A ocupação dos cerrados p or m antidos, porém aperfeiçoados de fo rm a sui
bandos de caçadores e coletores g e n e r is, o rig in a n d o u m a in d ú s tria ta m b é m
bastante singular e assustadoramente homogênea.
O registro da pré-história sul-americana de­ Processo quase que similar ocorre com relação à
m onstra intensa m ovim entação adotada por po­ economia de subsistência.
pulações hum anas nos sistem as andinos e pré- O estudo de algumas áreas cujos vestígios
andinos, principalm ente a partir de 12.000 anos estão preservados demonstra, quando com paradas
A. P.. Essa movim entação coincide com mudanças às áreas do oeste, um a ten d ên cia crescen te à
am bientais m aiores de cunho continental, com generalização que, em pouco tempo, difunde-se
matizes localizadas, responsáveis por entropias nos como sistema econômico básico.

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De onde vieram estes povoadores iniciais é um possível que as populações que alcançaram
problem a para o qual ainda não se tem m uita São Raimundo Nonato e Lagoa Santa não mi­
clareza, mas algumas áreas do oeste merecem mais graram pelo cerrados dos chapadões centrais,
atenção que outras, porque podem ter funcionado pois seus vestígios não foram encontrados
como centros dispersores. O estudo comparativo nesta região, ou, se migraram, os vestígios
de v ariá v eis bem d e fin id a s in e v ita v elm en te estão mascarados com a indústria que constitui
conduzirá a algumas respostas. a tradição Itaparica. Quanto à prim eira hi­
N esse sentido, o horizonte cultural que se pótese, apesar de a am ostragem ser signi­
formou nas Savanas e formações xerófilas, na área ficativa, os espaços não foram esgotados e as
andina, representado principalmente pelas áreas escavações não avançaram em profundidade
nucleares de El Abra e Ayacucho, cujas explorações suficiente, portanto, ainda não se tem ele­
das formações abertas já apontam elementos muito mentos definitivos para confirmá-la, embora
significativos, devem conveter-se num ponto de a m aior parte dos dados direcionem neste
investigação inicial. sentido. Quanto à segunda hipótese, a análise
Entre 12.000 e 11.000 anos A.P., dois sistemas minuciosa e comparativa do material prove­
ocupacionais bem definidos já estão definitivamen­ niente de pelo menos três áreas nucleares da
te implantados no interior do continente. Trata-se tradição Itaparica: Serranópolis, Caiapônia em
da área nuclear do Vale do Guaporé, nas quebradas Goiás e Gerais, na Bahia, não a confirma;
do planalto brasileiro, cuja cobertura vegetal é
caracterizada pelos cerrados, e a região das coxilhas 2) se a antiguidade das ocupações de São
gaúchas, cujas ocupações se relacionam com as Raimundo Nonato e Lagoa Santa for anterior
ocupações das estepes patagónicas, formando com às ocupações dos cerrados, e se a migração
essa um horizonte cultural descontínuo. não se deu por esse ambiente, é possível que
As o cupações das cox ilh as gaúchas não as populações atingiram essas área por via das
demonstram nenhum tipo de relacionamento com caatingas, migrando ao longo das depressões
as ocupações que se instalam imediatamente nos do rio Am azonas pelas duas m argens, as­
cerrados dos chapadões centrais do Brasil. Pelo sentando-se de forma mais duradoura em São
contrário, estão mais relacionadas com as ocupações Raimundo Nonato e posteriormente em Lagoa
das estepes patagónicas, com processos evolutivos Santa, cuja m igração efetuou-se pelas caa­
similares e muito diferentes dos processos adotados tingas da depressão Sanfranciscana. A inexis­
ou desenvolvidos pelas ocupações que formam o tên cia de v estíg io s entre São R aim u n d o
Grande Horizonte Cultural dos Cerrados. Nonato e Lagoa Santa, situados nessa faixa
Já as ocupações do vale do Guaporé guardam cronológica, bem com o a inexistência dos
ligeiras relações tanto com as ocupações das savanas mesmos vestígios na depressão amazônica e
localizadas mais para oeste e mais antigas como as a falta de cronologias mais antigas no oeste
ocupações localizadas nos cerrados do leste, ins­ do continente não corroboram essa afirmação.
taladas em épocas ligeiramente mais recentes. A possibilidade da migração via formações
A indústria lítica demonstra certa transição abertas da V enezuela e G uianas esb arra nos
evidenciada por uma desestruturação, e por uma mesmos obstáculos para comprovação.
posterior adaptação exitosa. Assim, de acordo com os dados disponíveis
Esse esquema explicativo seria perfeitamente até o presente momento, envolvendo amostragem
compreensível se já não existisse no interior, em significativa em M ato G rosso do Sul, quase a
ambiente similar, o registro das áreas ocupadas de totalidade de Goiás, grande parte do Tocantins,
São R aim u n d o N o n ato e L agoa S anta. N ão oeste da Bahia e grande parte de Minas Gerais, a
tomando em consideração a área Central, na Bahia, ocupação efetiva do interior do continente sula-
em virtude de as informações serem prematuras. mericano inicia-se com a implantação do Horizonte
A questão, entretanto, pode ser resolvida por uma dos Cerrados a partir de 11.000 anos A.R. Esse
das duas formas seguintes: horizonte é caracterizado por uma indústria lítica
1) se a época das ocupações destas áreas for muito homogênea, que constitui a tradição Ita-
realmente anterior à ocupação das áreas dos parica, intimamente ligada às formas de exploração
cerrados dos chapadões centrais do Brasil, é dos cerrados, com mecanismos adaptativos res-

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ponsáveis por um sistema económico, que perdura seguinte questão: o que tem essa paisagem em
por dois mil anos quase sem alteração, a não ser especial para atrair populações com econom ia de
aquela decorrente da migração. caça e coleta, favorecendo ocupações duradouras
As populações dominadoras da tecnologia que e homogêneas?
criou a industria que constitui a tradição Itaparica Tentou-se responder essa indagação cruzando
colonizaram um a área de grandeza espacial com algumas informações:
cerca de dois milhões de quilômetros quadrados:
desde M ato Grosso, Goiás, Tocantins, até áreas Clima
com cerrados no oeste da Bahia, norte e oeste de
Minas Gerais e áreas com enclaves de cerrados em Com relação ao clima, tanto em relação aos
ambientes dominados por caatingas do nordeste limites atuais como aos limites antigos, a área do
brasileiro, notadamente Pernambuco e Piauí. Essas Sistema Biogeográfico dos Cerrados se caracteriza
localidades, em conjunto, revelam o alcance dessa pela falta de excessos e por um ciclo climático e,
tradição e a maneira homogênea de organizar o em conseqüência, tam bém biológico, bastante
espaço, também revelam a importância que o Sis­ h o m ogêneo, fato que p erm ite às p o p u laçõ es
tema Biogeográfico dos Cerrados exerceu nesses humanas de econom ia simples a adoção de um
processos iniciais de ocupação por populações hu­ planejamento também homogêneo.
manas.
Geomorfologia
Os processos culturais
associados à ocupação inicial Tanto nas áreas atuais como na periferia dos
seus lim ites antigos há grande o co rrên cia de
O panorama do povoamento das áreas centrais abrigos naturais, elemento fundamental para esses
do continente sul-americano começa a se definir a grupos humanos em determinada época do ano.
partir de 11.000 anos A.P. e, para tal, contribui em
muito o advento no Planalto Central do Brasil de Recursos vegetais
um complexo cultural denominado pela arqueo­
logia “tradição Itaparica” . O assunto já foi discutido na prim eira parte
Há 10.000 anos, essa tradição está implantada do documento referente aos recursos dos cerrados,
sobre mais de 2.000 Km de extensão. É quase certo entretanto, faz-se oportuno reforçar a informação
que ela cobriu a área dos cerrados dos chapadões de que o Sistem a Biogeográfico dos C errados
centrais do Brasil e suas extensões. Pelos processos fornece fibras, lenhas, folhas ásperas que são
a que estão associadas, sua implantação na área utilizadas para acertar superfícies, palhas de pal­
reveste-se num marco referencial de fundamental meiras para cobertura de abrigos, etc., mas o im­
importância para com preender os processos cultu­ portante a ressaltar nesse item é que, de todos os
rais que caracterizam o alvorecer do povoamento sistemas biogeográficos da América do Sul, este é
humano nas áreas centrais da América do Sul. o que fornece maior variedade de frutos com es­
Por volta de 9.000 anos A .P , ou um pouco tíveis. E embora a maturação da maior parte esteja
mais tarde, essa cultura perde suas características relacionada à época da estação chuvosa, a grande
básicas, representadas pela adoção de artefatos bem variedade p ossibilita a distribuição regular de
trabalhados e se transforma em indústria de lascas, outras espécies durante todo o ano.
com poucos retoques, assinalando um a nova
tendência à especialização. Recursos animais
Os estudos arqueológicos têm demonstrado
um a íntim a relação entre a cultura da tradição A par das informações neste sentido já discuti­
itaparica e a área dos Cerrados. O nível dessa rela­ das tam bém na prim eira parte do docum ento,
ção é evidenciado não só pelo m anejo paleo- resolveu-se buscar algumas respostas correlacio­
ecológico, mas também pelos restos de alimentos nando os mapas com a vegetação dos cerrados e
associados a esta cultura encontrados nas esca­ os contornos das províncias zoogeográficas da
vações arqueológicas e a própria distribuição dos América do Sul estabelecidas por Cabrera e Yepes
sítios arqueológicos. Resta, portanto, esclarecer a (1960) e Melo Leitão (1947).

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BAR BO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

D esse estudo, constatou-se estreita relação era similar e as duas áreas estavam conectadas, e
entre um a fauna bastante peculiar que define essas também porque as áreas florestadas primeiro se
províncias zoogeográficas com as áreas de vege­ ad en saram nas am plas p la n ícies rib eirin h a s,
tação aberta, cerrado, caatinga e áreas de transição. constituindo ambientes umbrófilos e, consequente­
Também constatou-se, e isso é um dado importante, mente, verdadeiros obstáculos para determinadas
que, em bora essa fauna peculiar transite nesses espécies adaptadas a áreas ensolaradas. Alie-se a
ambientes, é na área de vegetação dos cerrados que este fato o obstáculo constituído pelo próprio rio
se dá sua m aior concentração. Os elementos para Amazonas. A migração faunística é acompanhada
ex p licar esse fato são a ocorrência do estrato no mesmo sentido por populações hum anas aí
gramíneo, flores e frutos e a diversidade de am­ situadas.
bientes que caracterizam o Sistema dos Cerrados, A compreensão dessas afirmações é mais clara
permitindo o estabelecimento de uma complexa quando associada ao panorama da pré-história do
cadeia biológica. continente e da configuração paleoambiental que
imediatamente antecedeu à formação da cultura da
Processos de adaptação tradição Itaparica no centro do Brasil.
A revisão da pré-história da América do Sul
O fato de existir um a fauna que elege os revela a existência, em períodos anteriores ao
cerrados como ambiente prioritário, associado à povoamento do interior do Brasil, de um Horizonte
grande variedade de frutos, ocorrência de abrigos Cultural que atuava em áreas de savanas e outras
naturais e clim a sem excessos, exerceu papel formações abertas, estabelecido em áreas do leste
importante na fixação de populações humanas, bem Andino ou tendentes a esta orientação e quase à
como no desenvolvimento de processos culturais borda da área nuclear da vegetação de cerrados dos
específicos. Porém, quando se refere à cultura da chapadões baixos da Amazônia. Esse horizonte
tradição Itaparica e sua fixação no Sistema Bio- cultural, que recebe a denominação de “Horizonte
g eográfico dos C errados do centro do Brasil, Descontínuo das Savanas e Formações X erófilas”,
constituindo nessa área um horizonte cultural com ocorre na área de form a não hom ogênea desde
2 .0 0 0 anos de d u ra ç ã o , re sta um a sé rie de aproxim adam ente 15.000 até 12.000 anos A.P..
indagações relacionadas às origens desse processo. Suas principais categorias espaciais são represen­
N este sentido, algum as afirm ações podem ser tadas por el Abra, Ayacucho e Guitarrero I, que
organizadas. englobam um conjunto de com plexos culturais
O protótipo dessa cultura representa um a similares que caracterizavam um sistema de coleta
ex p a n sã o ac o m p a n h ad a de ap e rfe iço a m en to e caça, no qual os anim ais de grande p o rte,
adaptativo de antigas culturas de savanas e de atualmente extintos, constituíam uma alternativa
outras formações abertas, situadas mais para oeste alimentar de grande importância.
do continente, as quais, por motivos ambientais, A observação sobre a formação deste horizonte
tiv e ram que ad o tar novos p la n eja m e n to s de e sua configuração espacial e temporal demonstra
subsistência, aperfeiçoando a coleta vegetal e uma fase de implantação situada entre 15.000 a
enfatizando a caça generalizada, em detrimento da 14.000 anos A.P., acompanhada por uma fase de
especializada. Os processos iniciais desse aper­ expansão que caracteriza o período de 14.000 a
feiçoamento situam-se na área core da vegetação 13.000 anos A.P., fase que é seguida por fragmenta­
de cerrados, ainda presente à época nos baixos ção de algumas áreas, provocada por migrações
chapadões da Amazônia. para leste e que caracteriza o período de 13.000 a
À m edida que os reflexos das mudanças cli­ 12.000 anos A.P.. A partir desta época, a principal
m áticas tornam -se m ais efetivos na área, pos­ área cultural ainda habitada das savanas colom­
sib ilitan d o o avanço das antigas m anchas de bianas fragmenta-se, propiciando migrações para
florestas sobre área de cerrados, intensifica-se um o interior do continente.
movim ento faunístico. Algumas formas migram O desaparecimento deste horizonte coincide
em várias direções; a maior parte, entretanto, migra com uma época de grande instabilidade climática
para leste e sudeste, no sentido da outra grande que marca o limite entre o Pleistoceno e o Holoceno.
área core de vegetação dos cerrados dos chapadões Coincide também com o início do avanço das áreas
centrais do Brasil. Isso acontece porque a vegetação florestadas sobre áreas de caatinga nas depressões

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BAR BO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

e áreas de cerrado nos baixos platôs da Amazônia. grandes áreas de vegetação aberta, onde hoje ocorre
Essas significativas m udanças do clim a e seus a flo re sta ú m id a am azô n ica. E ssas áre as de
reflexos nos biomas certam ente intui nas popu­ vegetação aberta eram caracterizadas pela ocorrên­
lações humanas aí estabelecidas a necessidade de cia de caatinga, nas depressões, e cerrados, nas
se buscar novas alternativas e planejam ento de partes mais elevadas. Esses estudos evidenciam
subsistência, o que im plica em novos arranjos também que o Sistema dos Cerrados dos chapadões
sociais. Esse fenômeno não parece ser exclusivo centrais do Brasil foi o menos afetado pelas oscila­
das populações que constituem esse horizonte ções do Pleistoceno Superior e do Holoceno Inicial.
cultural. Muito pelo contrário, a revisão da pré- A essas observações de ordem física acres­
história do continente dem onstra intensos m o­ c e n ta m -s e o b s e rv a ç õ e s b io ló g ic a s , a p a rtir
vimentos ocorridos nesta época nas áreas povoadas principalm ente dos estudos de H affer (1969),
do oeste. Esse período coincide tam bém com o Vanzolini (1970) e Brown Jr. (1977).
agravamento de um processo de drástico empobre­ Após estudos de algumas espécies de aves da
cimento qualitativo e quantitativo representado por região amazônica, Haffer postula que várias vezes,
uma grande extinção da biom assa de megafauna. durante o Quartenário, a floresta úmida teria sido
Por volta de 12.000 ou, quando muito, 11.000 reduzida a manchas, conservadas em local de maior
anos A.P., os ecossistemas tropicais já se mostra­ umidade, a que denomina refúgios, separados entre
vam bastante alterados em relação à composição si por formações abertas. Essa situação, segundo
faunística. No caso das áreas tropicais situadas o autor, provocou o isolamento, às vezes longo, de
entre o Andes e a área core dos cerrados, ainda populações anteriormente interatuantes da fauna
presente se encontra bastante reduzida ou quase selvática, agindo, assim, para a diferenciação em
totalm ente extinta neste período. O rareamento da raças, subespécies ou até espécies completas.
biom assa de megafauna afetou a subsistência de O autor afirma que esse arranjo paisagístico
agrupamentos humanos, impulsionando-os para a criou oportunidades para que a fauna não-selvática
busca de novas alternativas e para o desenvolvi­ pudesse expandir-se desde o sul até as terras baixas,
mento de novos mecanismos de subsistência. Um atravessando-as. Populações relictuais em parques
dos p o n to s de c o n v e rg ê n c ia , ta lv e z o m ais de savanas isoladas, especialmente no interior das
importante, era constituído pelas áreas de vegetação Guianas e entre alguns tributários meridionais do
de cerrados, já bastante reduzidas mas ainda Amazonas, testemunham antiga continuidade da
existentes à época, nos baixos platôs amazônicos, v e g e ta ç ã o a b e rta , te n d o e s sa c o n fig u ra ç ã o
configurando-se na forma de faixas estreitas que influenciado nas rotas de dispersão.
se co n e ctav a m com a grande área core dos Enquanto Haffer constatava a ocorrência de
chapadões centrais do Brasil. flutuações climáticas e de mudanças no quadro da
N esse biom a, a concentração de recursos paisagem vegetal, baseado nos padrões de distri­
vegetais associada a uma grande percentagem da buição das aves, Vanzolini chegava à conclusão
biom assa anim al representada por anim ais de similar, analisando a variedade e grau de dife­
médio e pequeno porte constitui-se num a fonte renciação exibidos por dois gêneros de lagartos
alternativa de singular im portância para essas selváticos: Coleodactylus e Anolis. O autor acredita
p o p u laçõ es, que len tam en te aperfeiço am um que o padrão de diferenciação das espécies desses
sistema de coleta e caça generalizadas. gêneros só pode ser explicado mediante aceitação
A revisão da paleoecologia do continente, da ocorrência de significativas oscilações clim á­
englobando o período situado entre o Pleistoceno ticas na Amazônia, capaz de afetar os quadros
Superior e o Holoceno Inicial, dem onstra que os vegetais.
atu ais d o m ín io s b io g e o g rá fic o s rep rese n tam N a mesma linha, seguem as conclusões de
fenômenos recentes e que esse período é marcado Brown Jr. a partir de estudos da biogeografia de
por grandes transformações que representam uma algumas espécies de borboletas neotropicais. O
re v o lu ç ã o na co m p o siç ã o b io g e o g rá fic a do autor demonstra haver forte relação entre os centros
continente. de distribuição e evolução de algumas espécies e
Há inúmeros estudos sobre paleoecologia do subespécies com fatores ligados à evolução das
continente para o referido período que comprovam paisagens, especialm ente na Amazônia, durante o
essa afirm ação e evidenciam a ex istê n cia de Pleistoceno e Holoceno.

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

Inferindo aos seus estudos observações de estimadas mediante glotocronologia (Greenberg,


clima, topografia e solo, Brown Jr. afirma que os 1960; Noble, 1965; Rodrigues, 1958), constata-se
sistem as ecológicos das florestas neotropicais, que este movimento que motiva uma diversificação
distintos genética e taxonómicamente dos sistemas lingüística culm ina com a form ação de alguns
v izinhos e co-evolutivos em escala regional, troncos atuais dentre os quais o M acro-Jê, num
sofreram uma influência bastante clara e forte do período situado ao redor de 10.000 anos A.P..
longo período paleoecológico, frio e seco, que Portanto, o mesmo período em que tam bém se
caracteriza a última época glacial, e que sua relativa atinge o clímax da cultura da tradição Itaparica.
v isc o sid a d e p erm itiu a rete n çã o de padrões A tentativa de uma projeção em direção a
regionais derivados dessa época até o presente. épocas mais recentes tendo com o base dados de
Im portantes e fundamentais correlações de arqueologia e etnografía evidencia que a vegeta­
Meggers (1976), tomando dentre outras categorias ção dos cerrados constitui elemento fundamental
a lingüística, vêm complementar ainda mais este para essas sociedades Jê do Planalto, sobre a qual
panorama, no conhecimento dos processos cultu­ exercem um controle rigoroso e dem onstram
rais iniciais das áreas centrais da América do Sul. grande conhecimento, embora tenha havido signi­
T o m a n d o a c la s s ific a ç ã o p ro p o s ta por ficativas mudanças tecnológicas no decorrer do
Greenberg (1960), que combina todas as línguas tempo.
sul-am ericanas em quatro troncos ancestrais, e
c o m p a ra n d o -se as lo c a liz a ç õ e s dos g ru p o s A ocupação do interior do
associados ao Jê-Pano-Caribe com os mapas dos continente no Holoceno Inicial
refúgios, Meggers sugere que a dispersão teve lugar
durante o episódio mais antigo de redução da Neste período, o homem assegurou a ocupação
floresta. De fato, as rotas postuladas por Haffer para de todo o Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do
a intrusão e a difusão da fauna não-selvática na Brasil. Sobre a vida deste homem existem algumas
A m azônia desde os am bientes abertos do sul informações fidedignas.
passam próximo ou através das áreas ocupadas O início do H oloceno trouxe o recuo da
pelos falantes de línguas pertencentes a este tronco. glaciação, com todas as suas conseqüências: os
Se e sta c o rre la ç ã o é v álid a, im p lic a que a ventos frios regridem, com a diminuição das calotas
reconstituição da selva, uns 10.000 anos A.P., glaciais e andinas, a corrente fria de Falkland se
introduziu no centro da A m azônia um a cunha retrai, a corrente quente do Brasil se esparrama pelo
ecológica que isolou os grupos do norte e do sul litoral nordestino; com o derretimento do gelo, o
durante um tem po suficiente para perm itir a nível do mar sobe, a tem peratura e a umidade
diferenciação do Jê-Pano-Caribe em subfamilias. au m en ta m e se p ro d u z a tro p ic a liz a ç ã o do
Quando o período de aridez entra no processo ambiente. Aparentemente, isto não acontece de
final, a floresta úmida começa a avançar sobre as forma unilinear, mas com oscilações que, no todo,
form ações abertas, fazendo com que estas se representam um crescimento do calor, da umidade
retraiam , e o cerrado in icia um p rocesso de e do nível do m ar até alcançar o m áxim o no
regressão em direção à sua área core, provavel­ altiterm al ou ótim o clim ático europeu, entre
mente também algumas populações humanas aí a p ro x im ad am en te 6 .5 0 0 a 4 .0 0 0 anos A.P..
situadas, em sua m aior parte associadas a este Naturalmente, as condições gerais são matizadas
tronco lingüístico ancestral (Jê-Pano-C aribe), localmente por fatores diversos, dos quais o relevo
acompanham esta regressão e se instalam na área parece ter papel saliente.
core dos cerrados do centro do Brasil, onde, nos Provavelmente, a vegetação continua aberta
períodos imediatamente posteriores, atingem um durante todo o período; talvez no Nordeste se torne
clím ax adaptativo. A grande hom ogeneidade ainda mais rala.
lingüística que caracteriza a parte central do Brasil Com o au m en to g eral da te m p e ra tu ra e
como um grande domínio de línguas Jê, estrita­ provavelmente um aumento mais lento da precipi­
mente relacionadas com as form ações abertas, tação por volta de 9.000 a 8.000 anos A.P., talvez
apóia esta situação. mais cedo no Piauí, instala-se um período muito
Se se cruzam estes dados com os períodos de seco, responsável por mudanças tecnológicas e
maior diversificação das línguas sul-americanas, culturais e pela migração de populações.

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Entre aproximadamente 11.000 e 8.500 anos Também aparecem caroços de frutos, principal­
A .P., industrias de lám inas unifaciais, em que mente de palmas. Estes alimentos provêm de um
predom inam furadores e raspadores term inais ambiente diferenciado, onde se reúnem campos
encamados, parecem formar um grande horizonte, limpos, cerrados, cerradão, matas tropicais e am­
cobrindo uma área que inclui Pernambuco, Piauí, bientes ribeirinhos e palustres.
Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, talvez Para outras localidades, as informações ainda
parte de São Paulo. Uma grande parte desses sítios são escassas, quer porque faltam os restos de ali­
pode ser incluída na chamada tradição Itaparica. mentos, quer por não terem ainda sido analisados.
Um pouco mais tarde, entre 9.000 e 8.000 anos Sobre a captura da maior parte dos animais,
A .P., ap a re c e m iso la d a s p o n ta s de p ro jé til não temos conhecimento se seria o dardo com ponta
pedunculadas no m esm o contexto da tradição de pedra finamente trabalhada, característica dos
Itaparica ou em outros, como em Cerca Grande - caçadores de grandes gregários da mesma época
MG (Hurt & Blassi, 1969), em Serranópolis - GO, nas estepes americanas do Norte e do Sul, ou se
datadas entre 8.700 e 8.400 anos A.P. (Schimitz, outra técnica era utilizada. O caçador do planalto
1984) em São Raimundo Nonato - PI, datadas de e do Nordeste chegou a conhecer as pontas de pedra
8.400 A.P. e talvez em Alice Boér - SP, Estado de já no fim do período, mas elas aparecem muito
São Paulo. esporadicam ente, ao lado de pontas, tam bém
A economia é a de um caçador e coletor ge­ esporádicas, em osso.
n eralizado que explora principalm ente nichos Também os alimentos vegetais eram de tra­
diversificados, onde num extremo está o cerrado, tam ento fácil, sendo a m aior parte frutos de
a caatinga, ou o campo, no outro extremo, a mata consumo imediato, sem m odificações notáveis,
e, no meio, várias formas vegetais transicionais, exigindo no máximo a quebra de noz das palmas
como o agreste ou o cerradão. para aproveitamento de suas amêndoas.
Os assentam entos desse homem dão-se em A transformação das outras matérias-primas,
grutas ou abrigos calcários, areníticos ou quartzíti- como pedra, peles, ossos, chifres, cascos, poderia
cos, nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, exigir instrumentos mais acabados.
Piauí e no alto das colinas em Goiás. Alguns destes Os artefatos mais importantes e mais freqüen­
sítios apresentam bastante permanência, como no tes no contexto instrumental deste horizonte são
sudoeste e centro de Goiás, porque os recursos eram u n ifaciais, isto é, têm um a face plana e não
abundantes, ao passo que a maior parte são de trabalhada, a outra convexa e transformada. Uma
acam pam entos tem porários. Com o nos locais grande parte é feita de lâm inas, lascadas por
geralm ente estão reunidos recursos m inerais, percussão e retocadas por percussão ou pressão.
vegetais e anim ais em nichos diversificados, é Outras são feitas a partir de lascas. Serviam para
possível que a maior parte dos acampamentos seja as funções de cortar, furar, raspar, alisar, esmagar
de atividades múltiplas; com uma certa frequência, e quebrar. Na term in o lo g ia dos arqu eó lo g o s,
aparecem sítios da apropriação e preparação de aparecem com o raspadores, fu rad o res, facas,
minerais, mas ainda não se tem notícia de sítios de talhadores, machados, alisadores ou mós, discos,
matança. quebra-cocos ou bigornas, bolas e percutores; entre
O regime alimentar desse caçador generali­ os cinco últimos, alguns são pisoteados ou alisados,
zado pode ser estudado com bastante precisão nos o que representa uma utilização muito antiga desta
abrigos do sudoeste de G oiás, onde os restos técnica de preparar artefatos de pedra.
alimentares são abundantes e bem conservados. Os Nos locais de ambiente rico e matéria-prima
animais caçados são das espécies mais variadas e mineral abundante, como no sudoeste e centro de
de todos os tam anhos, desde cervos, veados, Goiás, os restos de artefatos e resíduos de las-
capivaras, macacos, tamanduás, tatus, tartarugas, camentos podem chegar a centenas de milhares em
lagartos, emas, todo tipo de aves e pequenos peixes; escavações relativamente pequenas, e neles se pode
também se recolhiam ovos de emas. Os moluscos acompanhar todo o processo de manufatura, desde
estão ausentes neste período, mas vão ser alimento o momento em que as lascas são desprendidas dos
básico no seguinte. Os animais classificados são blocos, sua redução e conformação como instru­
todos de espécies holocênicas, não tendo aparecido mento e sua rejeição depois de quebrado ou inuti­
até hoje nenhum exem plo de espécie extinta. lizado. As peças são grandes e bem acabadas. Na

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região de Lagoa Santa, pelo contrário, os artefatos Atividade de coleta


são quase indistinguíveis dos detritos de lasca-
mento, pela deficiência de rochas adequadas. A atividade de coleta de frutos era mais sig­
A m atéria-prim a desses artefatos e o local em nificativa durante a estação chuvosa, que atual­
que a m esm a é apanhada estão ligados às dis­ mente corresponde principalmente aos meses de
ponibilidades locais. No sudoeste de G oiás, o outubro a janeiro, e poderia ser exercida no bioma
quartizito ou arenito silicificado usado encontra- campestre, no bioma da mata e no bioma ribeirinho.
se nas próprias paredes dos abrigos ou nos blocos A m aior q uantidade de frutos com estív eis se
desgarrados dos mesmos; nos sítios sobre colinas, restringe ao bioma campestre.
a m atéria-prima provém dos eixos que recobrem
seu topo e seus flancos, e se origina da decom­ Atividade de cata ou apanha
posição do arenito Furnas, no qual estavam in­
Os ovos das aves poderiam ser mais facilmente
crustados como veios. Em outros lugares, geral­
conseguidos no auge da estação seca, p rin ci­
mente a matéria-prima é selecionada entre os seixos
palmente nos meses de julho e agosto. O maior
transportados pelos rios.
fornecimento desse tipo de recursos provém das
M atéria-prima muito importante também são
ninhadas de ema (Rhea americana), encontradas
as peles, os cascos, os ossos, os dentes e chifres
essencialmente no bioma campestre. Os ovos de
dos animais caçados; por isso, os ossos da caça
répteis, como a Tartaruga (Podocnemis expansa)
estão quebrados, cortados, apontados; ossos longos
e o Jacaré (Caiman crocodilus), também seriam
de veados eram afinados para produzir espátulas.
obtidos na estação seca. As atividades neste sentido
Num clima frio de planalto e Nordeste, e para
se restringiam ao bioma ribeirinho.
uma população desabrigada, o abastecimento de
Os insetos que poderiam servir de alimento
lenha era im portante, mas sem problem as. Em
seriam representados principalmente por larvas de
muitos lugares, os abrigos naturais são numerosos
algumas espécies voadoras e Tanajura (fêmeas de
e o homem os utilizou intensamente, sempre que
Atta sp), conseguidos em abundância no início da
ofereciam condições de habitabilidade, uma das
estação chuvosa, cuja atividade de apanha se
quais era água próxima, mas também acampava
restringia principalmente ao bioma campestre.
ao ar livre, na vizinhança de abrigos ou em lugares
A apanha de mel silvestre poderia ser mais
onde eles não existiam. Na maior parte da área,
facilmente exercida durante a estação chuvosa.
mesmo nos tempos de seca, pode-se conseguir água
boa, abundantemente, sem esforço, mas abrigos
Atividade de caça e de pesca
grandes foram rejeitados, temporária ou permanen­
temente, por falta desse líquido. A caça de m am íferos poderia ser exercida
Pelo tipo, distribuição e quantidade de resíduos durante toda época do ano. Os mamíferos campes­
encontrados nos acampamentos, infere-se que os tres estariam mais concentrados na estação chuvosa
grupos m igrantes eram pequenos, com postos e os m am íferos ribeirinhos poderiam ser mais
provavelmente por algumas famílias cada um, que facilmente caçados no meio da estação seca.
se moveriam como bandos frouxos dentro de um A caça de aves era desenvolvida, principal­
espaço delimitado. mente, nos prim eiros meses correspondentes à
estação chuvosa.
O modelo de planejam ento Os répteis de pequeno porte poderiam ser
am biental adotado pelas populações caçados mais facilmente na estação chuvosa, ao
de caçadores e coletores nos cerrados passo que os répteis de porte maior, como tartaruga
e jacaré, poderiam ser abatidos na época seca.
A observação sobre a distribuição dos prin­ A atividade pesqueira estava restrita essen­
cipais recursos de subsistência no Sistema dos Cer­ cialmente à época seca.
rados possibilita a organização de um diagrama
de abastecimento que espelha as possibilidades de Ciclos de abastecimento
obtenção desses recursos por populações de eco­
nomia simples, baseado na época de maior con­ Combinados todos os recursos, as populações
centração. com economia de caça e coleta habitantes do Siste-

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m a dos Cerrados poderiam conseguir alimentos m assa da fauna de gigantes nos am bientes tro­
durante todo o ano. E, de certa forma, não deveria picais. Entretanto, fica aberta a possibilidade da
existir época de penuria total, em função da escas­ existência de rem anescentes desses animais em
sez de alimentos. alguns núcleos específicos. Na localidade de Pau
A época de maior variedade alim entícia cor­ Ferrado, município de Jaupaci, foi encontrado sítio
responderia à estação chuvosa. Essa variedade da tradição Itaparica, em terraço, nas proximidades
seria, de certa forma, com pensada na seca pela de um grande jazim ento fossilífero, segundo cons­
grande quantidade de peixes. Assim, os recursos tatamos o pesquisador Luiz Eurico M oreira e eu.
combinados poderiam oferecer anualmente uma
alim entação balanceada de proteínas, açúcares, M odelo simples das relações
vitaminas e sais minerais. Entretanto, esse pro­ espaciais e comportamento cultural
vimento está ligado à estação chuvosa, em função das populações de caçadores coletores
dos frutos, sendo que na estação seca era reduzido.
O abastecimento de água não seria problema Tendo como base as observações advindas do
no Sistema dos Cerrados mesmo durante a estação ciclo de abastecimento elaborado para o Sistema
seca, e ainda levando-se em consideração os aspec­ dos Cerrados, é possível construir um “modelo”
tos climáticos do final do Pleistoceno e Holoceno que possa refletir a organização espacial e compor­
Inicial. tamento cultural das populações de caçadores e
O abastecimento de matéria-prima para fabri­ coletores durante a estação chuvosa e durante a
co de instrum entos e utensílios era facilm ente estação seca.
assegurado. Rochas para a fabricação dos instru­
mentos existem nos abrigos, são abundantes nas
Estação chuvosa
colinas e no leito dos rios e córregos do Sistema.
Os ossos de certas espécies animais parecem ter Na estação chuvosa, o Sistema Biogeográfico
sido altam ente valorizados para o fabrico de dos Cerrados fornece uma grande variedade de
instrumentos, como espátulas e furadores. Havia recursos representada por frutos, insetos com estí­
peles que tinham várias utilidades e abundância veis, mel silvestre, moluscos, mamíferos, aves e
de m atéria-prim a vegetal. O com bustível para pequenos répteis. Esses recursos se distribuem
cozinha, calefação e ilum inação era fácil de se pelos biomas Campestre, do Cerradão, da M ata e
conseguir. Ribeirinho, possibilitando em cada um o exercício
Os abrigos naturais parecem ter sido os pontos de atividades de cata ou apanha, coleta e caça.
de referência territorial. No Sistema dos Cerrados, Essas atividades exigem uma divisão sexual e
em função dos aspectos geomorfológicos, eram etária do trabalho e, fundamentalmente a atividade
numerosos, amplos, cômodos e estrategicamente de caça, a divisão em bandos menores.
localizados. Diversos, por suas condições, foram Essa grande diversidade de recursos é acom ­
ocupados mais intensamente, ao passo que outros panhada por um a restrição im posta pela estação,
eram ocupados esporadicamente. que é a necessidade de abrigos, principalm ente
A distribuição do material no interior desses nos períodos noturnos e nos períodos de preci­
abrigos poderia indicar que a população não era pitação mais prolongada. Nesse contexto, o abrigo
m uito densa, não chegando a preencher todo o n atu ral se rev este de im p o rtâ n cia cap ital. A
espaço. necessidade do abrigo condiciona deslocam entos
A caça disponível seria a que se conhece pelas a curta distância, ou seja, distância suficiente para
escavações de alguns abrigos, e que consiste em alcançar o abrigo, ao menos no período noturno.
representantes da fauna atual, predominando ani­ A ocupação do abrigo, em função do espaço,
m ais de p o rte m édio a p eq u e n o , fa c ilm e n te com odidade, obtenção e distribuição dos alim en­
transportáveis do local de abate para o sítio de tos, im p licaria na d ivisão de grupos m aiores
habitação. D essa forma, seria pouco provável a (m a c ro b a n d o s) em g ru p o s m e n o re s (m ic ro -
existência de “Sítios de matança” característicos bandos).
de caçadores pleistocênicos especializados. Os A o cu p ação do abrigo asso ciad a à b aix a
dados de P aleontologia apontam o período de mobilidade e à disponibilidade de recursos variados
13.000 a 12.000 anos A.P. para uma extinção em bem co m o ao p e río d o de p re c ip ita ç ã o m ais

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prolongado brindariam a população com horas de tecnológicas. As condições ambientais encontradas


ociosidade que favoreciam a criação. Provavel­ pelos horticultores indígenas não parecem ter sido
mente, algumas manifestações rupestres surgiram muito diferentes das conhecidas pelos primeiros
nestas circunstâncias. colonizadores de origem européia, e foram explo­
radas diferencialmente.
Estação seca O P lanalto C entral já era ocupado desde
11.000 anos A.P. por um a população hum ana
Na estação seca, a maior parte dos recursos com posta de caçadores e/ou coletores. As etapas
que o Sistema do Cerrado oferece está concentrada m ais antigas da evolução desses hom ens pré-
no Bioma Ribeirinho. Nesse bioma, podem ser cerâm ico s são m ais co n h ecid as que as m ais
exercidas atividades de apanha de ovos de grandes recentes, nas quais se transformariam em cultiva­
répteis, caça desses répteis e de algumas espécies dores e ceramistas. Nos locais em que se encontram
de mamíferos e essencialmente a pesca, em função depósitos estratificados em abrigos, com o em
da abundância dos cardumes. No Bioma Campes­ Serranópolis-GO, há uma descontinuidade entre as
tre, apenas a cata de ovos de aves se reveste de camadas do homem sem cerâmica e a do ceramista;
importância. as próprias datas indicam um hiato muito marcado
A cata de ovos implica na divisão sexual e entre am bas as ocupações. Nas áreas onde as
etária do trabalho e a caça, em divisão do bando, aldeias de ceram istas se levantaram ao ar livre
mas essas atividades não se revestiam da importân­ ainda não foram encontrados sítios pré-cerâmicos
cia da pesca, uma tarefa coletiva. q ue p u d e sse m a p o ia r e s tu d o s de tra n s iç ã o
As áreas mais piscosas são os vales amplos e tecnológica e/ou cultural.
esp raiad o s, lagoas e lagos que estão sem pre Desta maneira, sem transição, aparecem no
distantes das áreas com abrigos naturais. E certos Sistema os Cerrados grupos ceramistas e os cul­
pontos, em função de características peculiares, tivadores de plantas que os arqueólogos separam
deveriam exercer atração sobre essas populações, em quatro ou cinco tradições tecnológicas diferen­
exigindo deslocam ento a longa distância, por tes. Estas classificações ainda são altamente hipo­
períodos longos. As características da estação, que téticas e será necessário um longo trabalho de aná­
perm ite acam pam entos ao ar livre, facilitariam lise e comparação não apenas dos elementos ce­
longos deslocamentos e alta mobilidade. râmicos e líticos, mas de todos os outros dados para
Assim , enquanto a estação chuvosa se ca­ se obter conhecimentos fidedignos sobre as po­
racterizaria pela ocupação dos abrigos, baixa mo­ pulações, sua vida e sua história; os existentes são
bilidade e fragmentação grupai, a estação seca se indicativos e conjeturáis. M esm o cronologica­
caracterizaria pelo abandono dos abrigos, alta mente, as inform ações se apresentam escassas,
mobilidade e união em macrobandos, exigida pela apoiando-se em um pequeníssimo número de datas
atividade de pesca e para maior controle do ter­ de C l 4, que não m arca nem o com eço nem o
ritório. transcurso completo da ocupação.
A observação dos frutos corroídos por animais O apoio na etno-história proporciona algumas
encontrados no interior do abrigo e em estratigrafía hip ó teses, ainda não testad as, com relação à
dem onstra que os frutos com essas marcas, prin­ continuidade destes cultivadores pré-históricos no
cipalmente amêndoas e jatobá, são típicas da esta­ período colonial. Cronologicam ente, o primeiro
ção seca. E esses animais roedores não poderiam grupo ceramista, e provavelmente cultivador, é o
ter habitado os abrigos na mesma época em que as denominado fase Pindorama, estudada num abrigo
populações humanas. do médio-norte do Tocantins, que atesta o uso de
cerâmica ao menos já no século V a.C. (há duas
A ocupação dos cerrados outras datas, em camadas inferiores, de quase 2.000
p o r horticultores de aldeias anos a.C., para as quais não se pode assegurar
plenamente o uso da cerâmica). Esta data não deve
O Sistema dos cerrados tem sido o palco no causar estranheza, uma vez que próxim am ente,
qual as p opulações indígenas desenvolveram tanto no Pará (tradição Mina, 3.000 anos a.C.),
culturas diferentes, em conformidade com suas como em Minas Gerais (tradição Una, 2.000 anos
origens, seu tempo histórico e suas possibilidades a.C.) ela já era usada desde muito antes. Tendo a

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pesquisa na área da fase Pindorama sido provisoria­ pouco mais recentem ente que os horticultores
mente interrom pida, não se pode avaliar o que Aratu/Sapucaí. Sua origem também é desconhecida
representa o seu m aterial, nem com relação à e todos os indicadores levam a p en sar num a
entrada da cerâmica e/ou da horticultura na região economia baseada no cultivo da mandioca amarga
do m édio T ocantins, nem com relação à sua e na pesca, mas, em concreto, desconhece-se seus
continuidade em tempos coloniais. restos alimentares, que só poderiam ser estudados
A fase Jatai, outro grupo reconhecidamente em a b rig o s. E ram p o p u la ç õ e s n u m e ro sa s e
horticultor, cujos restos aparecem em numerosos certamente desembocaram em grupos coloniais.
abrigos de Serranópolis e Caiapônia, no Estado de Finalmente, a tradição Tupiguarani,1 além de
Goiás, poderia ser um invasor na área. Isto porque um certo número de sítios na bacia do Paranaíba,
os seus refugos, acumulados desde 1.000 anos d.C., tem apenas o cu p açõ es esp arsas na b acia do
aparecem em descontinuidade com os restos dos Araguaia e mais rarefeitas ainda no resto do Estado
últimos caçadores/coletores locais. A tradição Una, de Goiás, como se tivesse enfrentado dificuldades
à qual a fase é atribuída, encontra-se em direção na ocupação do espaço, no qual dois outros grupos
leste até o mar, b eirando sem pre a fro n teira de horticultores aldeões já estavam fortem ente
meridional dos horticultores aldeões da tradição estabelecidos. Pertence ao ramo do Sudeste, que
A ratu/Sapucaí. Com o as pesquisas publicadas os arqueólogos denominam “subtradição Pintada”
sobre as áreas dos dois Mato Grosso são ainda (ou, como querem alguns, Tupi), em oposição aos
escassas, não se pode nem especular sobre suas do Sul, denominados “subtradição Corrugada” (ou,
origens, que poderiam ser tanto orientais quanto ainda segundo os mesmos, G uarani). Também
ocidentais. Já eram cultivadores de numerosas parecem ter construído sua econom ia sobre a
p la n ta s, en tre as q u ais se d e sta c a o m ilho. utilização de mandioca amarga, dado a ser compro­
A p aren tem en te, chegaram até a co lonização vado concretamente, através dos restos alimentares
européia, mas supõe-se que sem ligação genética ainda desconhecidos. Sua expansão, excetuando
e/ou cultural com os horticultores que construíram talvez a bacia do Paranaíba, se afigura recente
suas aldeias a céu aberto, em áreas de relevo mais quando relacionada às duas tradições de aldeões
suave, ocuparam áreas acidentadas, com predo­ anteriores.
mínio de cerrado. A fase Palma, no nordeste do Em resumo, tem-se grupos, aparentem ente
Estado de Goiás e sudeste do Tocantins, ao menos pouco num erosos, em áreas acidentadas, com
em alguns aspectos, se assem elha à fase Jatai, dom ínio dos cerrados, cujas h abitações eram
inclusive na cronologia. predominantemente os abrigos; e tem-se grupos
Os h o rtic u lto re s que co n stro em grandes muito numerosos, em áreas abertas, com mata ou
aldeias a céu aberto junto à mata de galeria ou na mata de galeria, com as aldeias nas colinas ou na
m ata contínua são divididos em três tradições beira dos rios e lagos; se entre os dois grandes
tecnológicas e provavelmente culturais. A tradição grupos os contatos parecem ter sido mínimos, o
Aratu/Sapucaí, com dispersão geral mais oriental, mesmo não acontece entre as tradições dos três
tem sítios no centro-leste do Estado de Goiás. conjuntos de aldeãos, que eram marcados ao longo
Apesar de as datas só recuarem até o século IX, de fronteiras definidas, indicando dom ínio de
sua primeira ocupação deve remontar aos primeiros territórios exclusivos.
séculos de nossa era; seu lugar de origem também S obre o m odo com o os d iv erso s grupos
ainda é desconhecido; todos os indicadores levam exploravam o ambiente, dominavam o território e
a p e n s a r n u m a e c o n o m ia com a u s ê n c ia de deslocavam suas aldeias, há uma boa am ostra para
mandioca amarga, mas provavelmente baseada em um a das áreas m ais densam ente povoadas da
tubérculos e talvez em m ilho; por não serem tradição Aratu: o Mato Grosso de Goiás.
encontradas ocupações em abrigos, são desconhe­ Sobre a produção simbólica preservada nas
cidos os restos de suas plantas cultivadas e das
nativas recolhidas. Eram populações numerosas e
certamente desembocaram em grupos coloniais.
( 1 ) 0 termo “Tupiguarani” é utilizado para designar urna
A tradição Uru, com dispersão mais ocidental,
tradiçào ceram ista (sistem a classificatòrio usado pela
apresenta marcados aspectos tenológicos am azô­ arqueologia), diferentemente de “tupi-guarani”, utilizado para
nicos e parece ter chegado ao Planalto Central, um designar urna famflia linguistica.

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gravuras de lajedos e ñas paredes dos abrigos, por por outro lado, esta planta como fundamental para
enquanto existem alguns trabalhos descritivos que os horticultores aldeões vizinhos, representados
v isa m p rin c ip a lm e n te à d o c u m e n ta ç ã o dos pelas tradições Uru e Tupiguarani.
fenômenos antes que dasapareçam, e não propria­ Os K ayapó do Sul são reg istra d o s pelos
mente à sua compreensão. bandeirantes nesta área desde 1726, mas provavel­
O desconhecimento da biologia das popula­ m ente já foram contactados no fim do século
ções, em parte porque não foram encontrados os anterior. Devido à resistência que o forte contin­
restos correspondentes e em parte porque os raros gente de seus homens opôs à colonização branca,
esqueletos encontrados não foram ainda conve­ foram violentam ente com batidos desde 1739;
nientem ente estudados, é certam ente um a das pacificados em 1781, foram os habitantes de suas
deficiências mais sérias. quatro aldeias reunidos no aldeamento de M aria I.
Nesse momento, já parecem altamente dizimados,
Considerações sobre a ligação de sobrando apenas 687 indivíduos, de uma população
fases arqueológicas com tribos coloniais que era estimada em 3.000 índios. Em 1813, os
129 homens sobreviventes foram transferidos para
A pesar de as penetrações bandeirantes em São José de Mossâmedes. Em 1910, tem-se notícia
da sobrevivência de 30 a 40 indivíduos abaixo do
busca de escravos, ouro e pedras preciosas terem
Salto Vermelho, no rio Grande (Araguaia), que
causado imensos prejuízos à população e à cultura
indígena, a fixação do povoam ento branco do posteriormente também desapareceram.
O território da tradição Uru era ocupado no
Sistema dos Cerrados foi relativamente recente,
período colonial predominantemente por índios Jê
dando aos grupos autóctones um espaço que
permitiu sua sobrevivência por mais tempo, alguns Centrais, linguisticam ente muito diferentes dos
Kayapó do Sul, embora da mesma grande denom i­
inclusive até os dias atuais.
nação Jê. Os grupos mais conhecidos eram os
Que representam essas populações indígenas
coloniais com relação às fases e tradições arqueo­ Goyá, os Akuen-Xavante e os Akroá. A rqueoló­
lógicas? Ou, em outras palavras, é possível unificar gicam ente, não se pode captar a diferença lin­
a histó ria feita pelos arqueólogos com a dos güística, mas constata-se a fronteira da língua na
cerâmica e em outros elementos, especialmente na
etnógrafos?
Em bora as conexões aqui propostas sejam utilização da mandioca amarga que nestes grupos
altamente conjeturáis e de comprovação empírica parece básica, sendo inexistente entre os Kayapó
do Sul.
d ifíc il, e além d isso ap e n as a p re se n ta m -se
sugestões para algumas tribos, as especulações Entre estes grupos, os Goyá, estabelecidos nas
apresentadas podem transformar-se em hipóteses nascentes do rio Vermelho, foram contactados já
testáveis e fechar uma lacuna das mais sérias nos em 1647. Apesar de numerosos, parecem ter sido
estudos das populações indígenas. pacíficos em relação às prim eiras entradas do
O território atribuído aos Kayapó do Sul, do branco, facilitando a exploração das riquezas e, ao
gupo Jê do Norte coincide, até nos detalhes, com a mesmo tempo, o seu próprio cativeiro. Finalmente,
o corrência de sítios da fase M ossâm edes, da no começo do século XVIII, na confluência do rio
tradição Aratu; isto tanto de forma positiva, na dos Bugres com o Vermelho, eles opõem resistência
medida que dentro do território se repetem os sítios à e x p lo ra ç ã o , m as com p o u co ê x ito , sen d o
Mossâmedes, como negativa, de maneira que os rapidamente exterminados. Exatamente ali estão
mesmos não aparecem fora desse território. Há os sítios da fase Itap irap u ã (T radição U ru) e
tam bém coincidência no material, na forma da exclusivamente eles.
aldeia e nos cultivos; os cultivos registrados para Mais para o Norte, são assinalados, já em
os Kayapó do Sul são a batata-doce, o inhame e o tempos coloniais, os Akuen-Xavante, que teriam
m ilho, com exclusão da m andioca am arga; a am eaçado seguidam ente o arraial de Pilar. Em
a u s ê n c ia de m a n d io c a am arg a é ta m b ém a 1788, teriam sido aldeados 3.500 indivíduos no
inferência conseguida a partir de observação das Carretão, perto de Crixás, Goiás. Segundo alguns
formas de cerâmica da fase Mossâmedes, usando informantes, o aldeamento poderia ter chegado a
modelo testado por Brochado (1984), que atesta, contar 5.000 índios, mostrando que o grupo era
realmente numeroso, mas não resistiu, deslocando-

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se a parcela mais avessa aos brancos para a margem seus assaltos, teriam sido logo atacados, não só ao
esq uerda do T ocantins (1824), depois para o longo do rio M aran h ão e do rio das A lm as,
Araguaia (1859), acabando por se estabelecer nos formadores do Tocantins, mas também no rio Claro
campos do rio das M ortes, onde é conhecida como do Araguaia. Em 1824, estariam localizados na
Xavante. Na região de sua principal atuação, são margem direita do Araguaia, ao sul do rio Crixás e
conhecidos exclusivamente sítios da fase Uruaçu na margem esquerda do rio Tocantins, entre este e
(Tradição Uru). o rio Santa Tereza.
Uma outra fase da tradição Uru, localizada no Em bora os dados em píricos concretos para
baixo rio Vermelho e sobre o Araguaia, encontra- ligar os fenômenos pré-coloniais com os coloniais
se em território antigo dos Karajá, em local onde ainda sejam muito escassos, há um fato que é de
os mesmos ainda hoje têm sobreviventes. Material grande importância: seria difícil explicar que a
de uma tapera Karajá de 50 anos atrás, estudada população horticultora, firmemente estabelecida no
nesse local por W üst (1975), apresenta diferenças local, encontrada pelos primeiros bandeirantes, não
mínimas com relação ao restante da fase, encai­ fosse a que ali se desenvolveu nos séculos ante­
xando perfeitam ente numa seqüência de sítios da riores. Em favor de sua estabilidade, falam as
fase Aruanã. numerosas taperas de aldeias sucessivas da mesma
Os Karajá pertencem ao tronco Macro-Jê, mas cultura e tecnologia, que em quase todas as fases
constituem um a fam ília lingüística ainda não arqueológicas se justapõem durante muitos séculos
classificada (Melatti, 1970). Eles têm seu habitat no mesmo local. O fato de que os sítios de um local
ao longo da m argem direita do rio A raguaia, apresentem m atizes cu ltu rais d iferen tes com
estando seu limite meridional na proximidade de relação às de outro relativamente próximo leva os
A ruanã, G oiás, jun to à desem bocadura do rio arqueólogos a darem nomes diferentes às séries de
Vermelho, exatamente onde foi encontrado material sítios que daí resultam. Não se negam com isso os
que possibilitou a criação da fase Aruanã (Tradição deslocamentos de fronteiras, que são bem claros
Uru). ao longo do rio U ru/Alm as na parte antiga do
Os sítios Tupiguarani dispersos na bacia do povoamento horticultor, nem tentativas de entrada
Tocantins (fase São D om ingos) e talvez os da de outros grupos, sem deslocar os habitantes já
margem do rio Claro (fase Iporá), facilmente podem estabelecidos, como os Tupiguarani, ao longo do
resultar de antigos acampamentos Tupi, conhecidos rio Claro. Estes fenômenos estão bastante bem
como Canoeiro, hoje Avá-Canoeiro, cuja presença compreendidos. O que se constata como regra geral
é registrada a partir de 1780. Alguns indivíduos é que os primeiros habitantes encontrados pelos
so b rev iv em atualm en te errantes na b acia do brancos nos diversos locais foram os que aí se
Tocantins. desenvolveram.
G eralmente se afirma que os Canoeiro teriam Também não se pode aceitar o argumento de
chegado à região no período colonial, sendo que a colonização do litoral pelos portugueses já
descendentes dos Tupi, vindos da costa, foragidos tenha afetado os grupos na sua estrutura dem o­
de bandeiras, posteriorm ente m estiçados com gráfica e cultural ou os tenha tornado instáveis
negros quilombolas. A extrema escassez de sítios antes de o branco os alcançar diretam ente. O
d isp e rso s em g randes ex ten sõ es p o d eria ser comportamento pacífico dos Goyá, um dos pri­
indicador de ocupação recente. Teriam vivido meiros grupos atingidos pelas bandeiras paulistas,
p rin cip alm e n te nas m atas próxim as dos rios poderia ser indício de que a instabilidade, e com
Maranhão, Paranã e M anoel Alves e da Barra do isso o conflito, ainda não se tinham instalado, como
Palma, onde estariam suas aldeias. A principal conseq ü ên cia da in seg u ran ça prov o cad a p o s­
delas, entretanto, ficaria entre as montanhas além teriormente pelo branco. As bandeiras chegaram
do rio Duro, onde povoadores lusos então dificil­ na região rapidamente em busca de mão-de-obra,
mente penetrariam . Para além do M aranhão, a ouro e pedras preciosas, não dando tempo à outra
oeste, possuíram ainda os descampados até Amaro onda de desestruturação para atingir o local antes
Leite (hoje Mara Rosa) e Piedade. Teriam destruído deles.
os arraiais de Tesouras (da freguesia de São Félix), Esses contatos diretos dos bandeirantes, que
Cocai, Água Quente e Amaro Leite, e dizimado a ainda encontraram as tribos plenamente instaladas,
população de Crixás e da Vila do Pilar. Devido a com suas aldeias, seus roçados, seus campos de

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c a ç a e c o le ta , com o h a v ia sid o em ép o c as engloba 26 povos de características cu ltu rais


anteriores, provocam não só uma desagregação diferenciadas.
social, com o a dim inuição da população por O g ru p o in d íg e n a G u a ja já ra , de lín g u a
escravização, guerras e doenças, mas uma dete­ Tenetehara, fam ília Tupi-Guarani, tronco Tupi,
rioração econômica, com a ocupação de espaços habita o centro-sul do M aranhão, em áreas dos
vitais para os cultivos, com a pilhagem das roças, m unicípios de Bom Jardim , Grajaú e Barra do
a desorganização dos espaços de cada aldeia, Corda. De acordo com dados de 1982/83, estima-
levando os grupos à guerra, primeiro contra os se uma população de 6.776 indivíduos.
arraiais brancos, mas logo também entre si. Os Urubu-Kaanor, grupo indígena de língua
Se fosse possível ter uma etnografía das po­ Urubu, pertencentes à família Tupi-Guarani, do
pulações no momento inicial do contato, realizado tronco Tupi, habitam o noroeste do Estado do
pelos bandeirantes paulistas, certamente ter-se-ia Maranhão, em áreas de transição entre o Domínio
uma visão mais completa da vida pré-colonial; a dos Cerrados e o Domínio Equatorial Amazônico,
imagem que os viajantes e etnógrafos do século nos municípios de Carutapera, Cândido Mendes,
XIX oferecem das populações então sobreviventes, T uriaçú e M onção. P ossuem um a p o pulação
com absoluta certeza, já é falsa, porque o impacto estimada em 494 indivíduos, de acordo com dados
violento da colonização, primeiro desestruturando de 1982.
e depois reestruturando a sociedade, a economia e Ainda não há informações precisas sobre a
talvez partes consideráveis da cultura, já havia sido língua falada pelo grupo indígena Guajá, que habita
absorvido. Se isto parece verdadeiro para as desde o centro-sul do M aranhão até o norte do
p o p u la çõ e s ainda num ero sas que assolaram Estado do Tocantins, possuindo uma população
desesperadas os arraiais brancos antes de serem estimada em 240 indivíduos, dos quais 150 estão
“pacificados”, o é muito mais para as já reduzidas, sem contato, de acordo com dados de 1982. Este
que foram aldeadas e completamente deculturadas grupo situa-se nos m unicípios de Bom Jardim,
sob o domínio do colonizador. Santa Luzia e Imperatriz, no Maranhão e Goiatins,
Os seus descendentes, que hoje sobrevivem no Tocantins.
na medida que levam uma vida tribal, devem ter O grupo indígena Tembé, como os Guajajára,
reorganizado mais de uma vez sua sociedade e sua fala a língua Tenetehara e habita a área indígena
cultura com os restos que salvaram do impacto Turiaçu, no noroeste do Maranhão, já nas transição
co lo n ial, rea d ap ta n d o -a s conform e as novas p ara o D om ínio E q u ato rial A m azônico. Sua
condições e necessidades. Por isso, mais que uma população é estimada em 130 indivíduos.
verdadeira continuidade cultural, deve-se imaginar Os Gavião (Pukobyé) são um grupo indígena
uma continuidade populacional, que em nenhum pertencente à família Jê, do tronco Macro-Jê que
momento enfrentou maior desafio e foi obrigada a fala a língua Timbira e habita nas proximidades
maior criatividade que nos três séculos de expansão do município de Amarante, Estado do Maranhão,
colonial. com população estimada em 306 indivíduos, de
acordo com dados de 1983.
Os sobreviventes O grupo indígena Krikati fala a língua Timbira
e habita o município de Montes Altos, no Estado
Sem considerar a área do Parque Nacional do do Maranhão, com população estimada em 325
Xingu, que mesmo possuindo alguns elementos do indivíduos, com base em dados de 1983.
Sistema dos Cerrados é integrante do Domínio O grupo indígena Krikati/Gavião, de língua
Equatorial Amazônico, ou Trópico Úmido, e sem Timbira, habita áreas do município de Barra do
considerar também alguns povos que vivem em Corda, no Maranhão. Não se conhecendo dados
áreas disjuntas de Cerrados, com o os Pareci e de demografia.
N am bikw ara, a área contínua do Sistem a dos T im bira (Pukobyé) é um grupo in dígena
C e rra d o s dos ch a p ad õ e s c e n tra is do B rasil falante da língua T im bira e h ab ita terras do
a p re sen ta um a p o p u la çã o in d íg e n a atual de município de Grajaú, no Estado do Maranhão, com
aproxim adam ente 44.118 índios, distribuídos população estimada em 21 indivíduos, de acordo
principalmente em terras do Maranhão, Tocantins, com dados de 1983.
G oiás e M ato G rosso do Sul. Esta população O grupo in d íg en a C an ela A p an iek a fala

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também a língua Timbira e habita em terras do 102 indivíduos, de acordo com dados de 1982.
m u nicípio de B arra do C orda, no M aranhão, O grupo indígena Tapirapé fala a língua dos
possuindo uma população estimada em 274 indíos, Tapirapé, fam ília T upi-G uarani, tronco Tupi e
de acordo com dados de 1983. habita os municípios de São Félix, no Estado de
Os C anela R am kokam ekra são um grupo Mato Grosso, e Santa Terezinha, no Tocantins.
indígena também falante da língua Timbira. Suas Possui uma população estimada em 180 índios,
aldeias estão situadas no município de Barra do segundo dados de 1981.
Corda, no Maranhão. Possuem uma população de Avá-Canoeiro é um grupo indígena falante de
718 índios, de acordo com dados de 1983. uma língua ainda não precisamente definida, que
O grupo indígena Bakairi, que fala a língua pertence à família Tupi-Guarani, do tronco Tupi.
dos Bakairi, da família Karib, ainda não devida­ Habita os municípios de Formoso do Araguaia,
mente classificada em troncos. Habita os municí­ Cristalândia, Cavalcante e Minaçu, possuindo uma
pios de Chapada dos Guimarães e Nobres, a leste população estimada em 101 índios, de acordo com
de Mato Grosso, com população estimada em 448 dados de 1981/83.
índios, de acordo com dados de 1983. O grupo Xerente fala a língua dos Akuen, da
Borôro é um grupo indígena falante da língua família Jê, tronco Macro-Jê. Habita o município
dos Borôro, da fam ília Borôro, pertencente ao de Tocantínia, no Estado do Tocantins, com popu­
tronco Macro-Jê. Suas aldeias estão distribuídas lação estimada em 850 índios, de acordo com dados
nos m unicípios de Rondonópolis, General C ar­ de 1984.
neiro, Poxoréu, Santo Atônio do Leverger e Barão Os Krahó, grupo indígena que fala língua dos
de Melgaço, no Estado do Mato Grosso. Possuem Timbira, família Jê, tronco M acro-Jê, habitam os
uma população estimada em 752 índios, de acordo municípios de Goiatins e Itacajá, no Estado do
com dados de 1980/83. Tocantins e possuem uma população estimada em
X avante - o grupo indígena X avante fala 894 índios, segundo dados de 1983.
língua dos Ekuen, da família Jê, do tronco Macro- Os Apinayê - grupo indígena que fala língua
Jê. Suas aldeias se distribuem pelos municípios dos Timbira, da fam ília Jê, tronco M acro-Jê -
de B arra do G arças, C hapada dos G uim arães, habitam o município de Tocantinópolis, Estado do
General Carneiro e Poxoréu, no Estado de Mato Tocantins e possuem uma população estimada em
Grosso. Possui uma população estimada em 4.413 508 índios, de acordo com dados de 1983.
índios, de acordo com dados de 1983. O grupo indígena Guarani fala a língua dos
Os Javaé/K arajá falam a língua dos Karajá, G uarani, fam ília T u p i-G u aran i, tro n co Tupi.
ainda não classificada em fam ília, pertencente Habita, em sua grande maioria, os municípios de
ao tro n c o M a c ro -Jê . As p rin c ip a is a ld e ia s Amambaí, Sete Quedas, Eldorado, Douradinha,
lo c aliza m -se nos m unicípios de F orm oso do Dourados, Caarapó, Bela Vista, A ntônio João,
A raguaia e C ristalândia (Ilha do Bananal), no Ponta Porã, Tacuru, Arai M oreira e Novo Mundo,
E stado do Tocantins. Possuem um a população no Estado de Mato Grosso do Sul, um pequeno
estim ada em 388 índios, segundo dados de 1980/ grupo habita o munícipio de Araguaína, no Estado
83. do Tocantins. Possui uma população estimada em
O grupo indígena Karajá fala também a língua 12.445 índios, segundo dados de 1981/83.
Karajá, com uma aldeia situada em Aruanã, Goiás, O grupo indígena Kadiwéu fala a língua dos
e os demais se distribuindo pelos municípios de Kadiwéu, da família Guaikuru, ainda não classifi­
São M iguel do Araguaia, Formoso do Araguaia, cada em tronco. Habita áreas do Município de Porto
Luciara, Conceição do Araguaia, Pium, Dueré, M urtinho, no Mato Grosso do Sul e possui uma
C ristalândia e Santa Terezinha, no E stado do população aproxim ada de 850 índios, segundo
Tocantins. Há também o registro de um pequeno dados de 1983.
grupo em São Félix, no Estado de Mato Grosso. Os Terêna - grupo indígena que fala língua
Possuem uma população estimada em 1.194 índios, dos Terêna, da fam ília Aruak, tronco A ruak -
de acordo com dados de 1976/82. h ab itam áreas dos m u n ic íp io s de M ira n d a ,
Os Karajá do Norte (Xambioá) falam a língua Aquidauana, Anastácio, Dourados, Sidrolândia,
dos Karajá, com aldeia situada no município de Nioaque, todos no Estado de Mato Grosso do Sul.
Araguaína, no Tocantins, e população estimada em Possui uma população aproximada de 9.711 índios,

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

de acordo com dados de 1983. indígenas como as de Goiás são o resultado final
Sobre o grupo indígena Cam ba não se tem de um longo processo de experimentação, coleta,
informações lingüísticas. O grupo habita áreas do cu ltiv o e d o m e stic a ç ã o , d e s e n v o lv im e n to e
município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, em préstim o de técnicas e ajustam ento da so­
com população aproximada de 2.000 individuos, ciedade. Talvez a transição do período úmido e
segundo dados de 1979. quente do altitermal para um período mais seco e
ameno fosse a ocasião. Em Goiás se desconhece
ainda por completo todo o processo e, depois dos
Idéias para urna Historia caçadores, encontram-se de repente, já formados,
os horticultores ceramistas, num tempo em que o
A região do Cerrado é ponto de encontro entre am biente supostam ente já era o atual. O mais
a A m azonia, o N ordeste e o Sul. O planalto, antigo até agora detectado é o da fase Pindarama,
revestido de cerrado, é recortado pelos rios das três supostamente horticultor, que já utiliza cerâmica
grandes bacias brasileiras (Amazonas, Paraná e desde 500 anos a.C. pelo menos. Depois, aparece
São Francisco), acompanhadas de matas de galeria, a tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupi-
ora mais ora menos largas. No encontro dos rios guarani.
das três bacias, formou-se uma extensão maior de As diferentes tradições cerâmicas de horti­
floresta, conhecida como Mato Grosso de Goiás. cultores exploram ambientes diferentes e cultivos
As áreas de mata oferecem solos para cultivo, a diversos. A tradição Una coloniza vales enfurna­
serem aproveitados no começo das chuvas de verão. dos, geralmente pouco férteis, com predominância
O cerrado é muito rico em caça e frutos, que podem de cerrados, usando como habitação os abrigos e
complementar a agricultura no começo das chuvas. grutas n atu ra is e com o eco n o m ia um a fo rte
Os rios proporcionam muito peixe, no tempo da associação de cultivos nos quais predomina o milho
seca. de caça e de coleta. Imagina-se que a população
Muito antes dos horticultores ceramistas, os Una distribuía-se em pequenas sociedades, aptas
caçad o res/co leto res p ré-cerâm icos haviam -se a explorar os recursos diversificados que poderiam
esparramado pelo território, utilizando os recursos alcançar do seu ponto de instalação: o rio mais
de acordo com suas necessidades e em conformi­ próximo, a pequena mata de galeria, o cerrado e
dade com sua tecn o lo g ia. N ão se tem ainda muitas vezes o campo no alto do chapadão. Este
nenhuma idéia de quando e como se instalaram os am biente não é d isp u tad o pelos grupos, que
cultivos. Aparentemente, eles não surgiram ali, constroem suas aldeias em áreas abertas.
porque as diversas tradições tecnológicas até agora Os primeiros aldeões conhecidos foram os da
estudadas pertencem a horizontes mais ampios e a tradição Aratu/Sapucaí. Seu domínio era os con­
datas mais altas, sendo atribuidos a horticultores trafortes baixos das serras do centro-sul e leste de
instalados fora do estado; faz exceção a tradição G oiás, especialm en te as áreas férteis e m ais
Uru, até agora só conhecida no oeste de Goiás, mas florestadas do Mato Grosso de Goiás, onde pu­
que certamente ultrapassa seus limites em direção deram in stalar um a econom ia fortem ente d e­
ao Mato Grosso, o que ainda não foi pesquisado. pendente de cultivos, mas provavelm ente sem
Os cultivos poderiam ter chegado através da dispensar a exploração dos frutos do cerrado, a caça
migração de grupos horticultores, ou pela acultu­ e a pesca. Sua população era numerosa e nenhum
ração dos ca ça d o re s/c o leto re s anteriorm ente outro grupo conseguiu infiltrar-se no seu território
presentes, que os poderiam ter recebido de vizinhos. que, por seus recursos, deveria ser muito am bicio­
É possível que am bos os fenôm enos tenham nado. Suas aldeias populosas podiam permanecer
o co rrid o um com um as e o u tro com outras longamente no mesmo lugar e, quando desejável,
po p u laçõ es h o rtic u lto ras da p ré-h istó ria dos d eslocar-se para um espaço próxim o, po is o
Cerrados. território era fértil e estava sob seu dom ínio.
Não se pode resumir todo o jogo do povoa­ Tam bém o sistem a de c u ltiv o , b a se a d o em
mento em deslocamentos de grupos já prontos, pois tubérculos e provavelmente no milho, pôde resistir
so b ra a p erg u n ta : onde estes se form aram ? ao avanço dos grupos mandioqueiros da tradição
Certamente, como nas outras áreas do mundo, os Uru e da Tupiguarani.
sistemas agrícolas desenvolvidos por populações A tradição Uru chega mais tarde e domina o

190
BAR BO SA, A .S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

centro-oeste do Estado. Avançando ao longo dos p ro cedência im ediata de lá, a trad ição A ratu/
rios, ocupa terrenos mais baixos, provavelmente Sapucaí faz parte de uma tradição mais do centro-
de pouca utilidade para os aldeões que se haviam nordeste. A tradição Una, com menos dom ínio
instalado antes, mas importante para eles por causa sobre as áreas abertas, disputadas pelos aldeões
da locomoção e principalmente da pesca. Dessa da tradição anterior, se comprime numa faixa entre
forma, criou-se entre os dois grupos um a fronteira estes e as populações coletoras-cultivadoras do
b a sta n te e stá v e l, m as nem sem p re p ac ífica . planalto meridional, tradicionalmente conhecidas
Aparentemente, a tradição Aratu é mais receptiva, p o r suas ald eias de casas su b te rrâ n eas. N ão
aceitando elem entos tecnológicos selecionados, obstante esta sua posição marginal, é nela, fora da
entre os quais não está a m andioca e seu processo Amazônia, que estão as datas mais antigas para a
de tra n s fo rm a ç ã o , a c e ito ap e n as em lo c a is cerâmica; talvez seja ela uma forma de cultura ante­
restritos. rior ao desenvolvimento dos aldeões e, quem sabe,
A tradição T upiguarani parece ser a m ais a origem deles.
recente, tendo um certo domínio sobre o vale do Com exceção do Tupiguarani, os representan­
Paranaíba; a partir dele, acompanha seus afluentes, tes das outras tradições viveram no territó rio
indo acam par nos abrigos anteriormente habitados durante séculos sem muita movimentação, numa
pela tradição Uru. Há também aldeias dispersas terra que era deles. Entre 70 e 100 gerações de
na bacia do alto Araguaia, mas aparentemente sem h o rtic u lto res de fro n te ira, até o d ia em que
muita autonomia, convivendo às vezes na mesma irrom peram na área, em grandes destacamentos
aldeia com grupos horticultores de outras tradições. armados, homens diferentes, não interessados em
Os Tupiguarani da bacia do Tocantins têm aldeias plantar, colher e caçar, nem em construir aldeias
ainda mais dispersas e, recentem ente, como se entre o cerrado e a mata, ou à beira da lagoa ou do
realmente fossem, tal qual se imagina, populações rio. Queriam levar gente, pedras brilhantes e ouro.
vindas já no período colonial, enfrentaram não Era o caos. Roças pilhadas, aldeias dem olidas,
apenas os demais índios aldeões já instalados, mas mulheres violentadas, terras de cultivo invadidas,
também os colonizadores brancos que os teriam pessoas morrendo de doenças desconhecidas. A
trazido. guerra foi a solução ditada pelo desespero. A
Se a tradição Uru e a tradição Tupiguarani, derrota, o aldeamento, a desmoralização, a extinção
ambas mandioqueiras, parecem mais próximas das ou a fuga foram as conseqüências.
culturas amazônicas, em bora talvez não tenham

BARBOSA, A .S. Pilgrims of the Cerrado. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
5: 159-193, 1995.

ABSTRACT: The Cerrado biogeographic system exerted, through the diversity


of environment, variety of resources and possibities of subsistence, since the end of
Pleistocene and the beginning of Holocene, fundamental importance in the settlement
of human populations in the central areas of Brazil. The hunter-gatherers groups
have established with this kind of environment a very wise relationship which gave
rise to singular culture processes. Most of these processes continuate an accentuated
form also in the culture of the horticultural groups and motivate the archaeologist, in
a general way, to include a manifold of possibilities in his works, as well as to better
understand the function of the invironment, and the organization o f space, by
populations endowed with simple economies.

UNITERMS: Archaeology and Cerrado - Archaeology of Brazil - Culture and


environment.

191
BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

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Recebido p a ra publicação em 11 de setem bro de 1995.

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

VILLAGE FISSIONING IN AMAZONIA: A CRITIQUE OF


MONOCAUSAL DETERMINISM

Eduardo Goes Neves*

NEVES, E.G. Village fissioning in Amazônia: a critique of monocausal determinism. Re v. do Museu


de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

RESUMO: Esse trabalho faz uma crítica a teorias deterministas que postulam
a existência de fatores am bientais lim itantes ao desenvolvim ento cultural na
Amazônia. Dois estudos de caso baseados em dados etnográficos são apresentados
para em basar essa crítica. Como alternativa, é sugerida uma hipótese baseada no
conceito de “modo de produção doméstico”.

UNITERMOS: Determinismo ecológico - M udança cultural na Amazônia -


M odo de produção doméstico.

Introduction the role of climatic changes as mechanisms prevent­


ing demographic growth (M eggers, 1977, 1979,
For almost half a century, the leading Amazo­ 1982; M eggers & Danon, 1989), among other to­
nian archaeologists have disagreed on alm ost pics.
everything related to the pre-colonial history of the That most of these questions remain unanswe­
region. The disagreements ranged from consider­ red is not surprising in light of the vast size of
ations about the poverty of the environment relative Amazonia and the logistical and methodological
to the support of long-term human occupations problems related to doing archaeological fieldwork
(Lathrap, 1968a, 1970, 1977; M eggers, 1954, there. It is possible though to identify at least one
1970, 1977, 1979, 1982, 1989; Meggers & Evans, basic issue that divides the group of scholars
1957, 1983; M eggers et al, 1988); the loci of sup­ outlined above. On one side there are the ones that
posed centers of cultural innovation within or out­ support a notion of marginality for Amazonia. In
side A m azonia (Evans & M eggers, 1968; Lathrap, this perspective Amazonia is a peripheral area in
1970, 1973, 1974, 1977; Meggers & Evans, 1957, South America in terms of cultural development,
1983); the relative importance of manioc or maize a recipient of populations and cultural innovations
as m ajor food staples for flood plain societies originated elsewhere. This general point of view
(Lathrap, 1970; Lathrap, Gebhart-Sayer & Mester, has as its stronger proponent Betty M eggers of the
1985; R oosevelt, 1980); the use of linguistic Smithsonian Institution, and her Brazilian coll­
evidence in setting clues to explain the origin and eagues of the PRONAPABA (Programa Nacional
patterns of distribution of pre-colonial societies (La­ de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazónica).
thrap, 1970, 1972; M eggers, 1977, 1979, 1982); On the other side, the late D onald Lathrap and
Anna Roosevelt, although often in disagreem ent
with each other, have similarly maintained priority
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de for Amazonia in terms of various broad innovations
São Paulo. in the Americas such as, for instance, the origins

195
NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

of food production (Lathrap, 1977) and pottery available data on native South Americans, but due
(Roosevelt et al, 1991). to Steward’s editorship, it was also an attempt to
W hile M eggers has repeatedly postulated a classify Amerindian societies according to a deve­
relatively late and discontinuous peopling of lopmental framework based on a combination of
Amazonia (Meggers & Evans, 1983), characterized geographical and ecological principles. Stew ard’s
by se ttle m en ts o f short duratio n due to soil ideas were clearly appealing to archaeologists
depletion or drastic climatic changes (Meggers, working in Amazonia. He presented a developmen­
1954,1974,1985,1991; Meggers & Danon, 1989); tal sequence that could only be assessed through
Lathrap and Roosevelt have individually empha­ archaeology and it dealt with a set of phenomena,
sized the long-term occupation of A m azonia, related to adaptive patterns, that were potentially
mainly along the floodplains, which they believe identifiable in the archaeological record.
would have been continually occupied by semi- Regardless their differences, Meggers, Lathrap
sedentary populations at least from the beginning and Roosevelt all share a basic assumption derived
o f the H olocene. Such su ccessfu l long-term from the ecological approach: they all emphasize
adaptation would be guaranteed by an effective the basic distinction between floodplain - “varzea”-
exploitation o f a com bination of riverine and and hinterland - “terra firm e”- environm ents in
terrestrial resources (Lathrap, 1968b, 1970, 1977; Amazonia (Lathrap, 1970; Meggers, 1971; Roose­
Roosevelt, 1989). velt, 1980). According to this distinction, popula­
The archaeological data to support either side tions settled along the major floodplains of the
is still fairly scanty, so one’s given perspective Amazonian whitewater rivers could have a perm a­
remains more a matter of faith than a matter of fact. nent and predictable intake of animal protein and
To counterbalance the lack of data from the ground, fat through fishing and intensive cultivation of
archaeologists have turned to ethnographies and staples like manioc, maize and beans. The densely
early colonial chronicles to support their contending populated villages the Europeans found along the
perspectives. Both sets of data have also their own Amazon and its major tributaries in the sixteenth
problems, sometimes overlooked by archaeologists century or the mounds of M arajo Island would be
too eager to find in them the confirmation of their then supported by these productive activities.
beliefs. Early chronicles are not numerous and often In the hinterlands, on the other side, major
vague, while late nineteenth century and twentieth ecological constraints would determine the ephe­
centuries ethnographies represent societies that meral existence of the settlements. The poverty of
were likely to have been deeply transformed by the the soils, the scarcity of terrestrial games, and the
European conquest. distance from the major streams would limit hinter­
In their search for subsidiary arguments to land populations in terms of cultivation and fishing.
support their contending claims, archaeologists As a consequence, a fragile subsistence strategy
working in Amazonia have also - even if from developed in these settings, based on slash and bum
different perspectives - systematically turned to cultivation of manioc, hunting, gathering and fish­
ecological data. Ecological anthropology has had ing. Because of this productive basis, this adapta­
an important influence on Amazonian archaeology tion was not able to support large, stable settle­
since the 1940s (see for instance Meggers, 1954, ments (Lathrap 1970; Meggers, 1971; Roosevelt,
1970, 1982, 1989; Meggers & Evans, 1957, 1983; 1980). Two major environmental forces would then
Lathrap, 1968a, 1968b, 1970, 1977; 1980; Roose­ account for the short duration, small size and low
velt, 1989, 1991a, 1991b), partially because of population density of hinterland settlements: a scar­
Julian Stew ard’s work as the editor of the “Hand- city of predictable and reliable sources of animal
2
book of South American Indians” . The “Hand­ protein; and the poor quality of soils for intensive
book” was not only a com pilation of the then agriculture. The seemingly lack of archaeological
evidences for densely populated villages in the
hinterlands were taken as a confirmation of this
(1) This latter point has emphatically been stressed by Myers belief. Given the underlying evolutionist back­
(1973) and Roosevelt (1989).
ground of cultural ecology, constant village move­
(2) Roosevelt (1980) and Hames & Vickers (1983) provide
thorough reviews on the influence of cultural ecology on ment and fissioning were identified as major obsta­
archaeological and ethnographic works done in Amazonia. cles to the development of complex forms of social

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NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

organization. The basic assum ption here is the cesses o f village fissioning or movement for Ya­
belief that a “large, nucleated, sedentary population nomami and Kayapo “population blocs” dating
is a necessary condition for the development of a back from the beginning of the twentieth century,
complex society” (Gross, 1975: 526). w hat w arrants a com parative analysis for the
There are, however, at least four major pro­ purposes of this paper. In each case, a brief sketch
blems with the above assumptions. First, the divi­ on the history, productive econom y and social
sion hinterlands/floodplains as the two basic eco­ structure of each of these societies will be presented
systems units, when it becomes clearer that the before the data on movement and fissioning are
ecological diversity of Amazonia is much wider laid out.
(Moran, 1990: 137). Second, the assertion that agri­
cultural soils and animal protein represent scarce The Yanomami-Hayiamo case
resources in the hinterlands, when there are no data
enough to support this claim (Beckerman, 1979; Yanomami is a generic denom ination for a
Carneiro, 1957; Chagnon, 1983; M oran, 1990). population of around 25,000 people linguistically
Third, the passive way these hypotheses focus and culturally divided into four wide subgroups.
native Amazonian populations, ignoring the trans­ They occupy a territory of around 192,000 sq km
formations they perform over the environment in in the Parima highlands and in the headwaters of
order to overcome possible limiting factors (Balée, the Orinoco River, on the border o f Brazil and
1989). F ourth, these assum ptions all share a Venezuela. The degree of direct contact between
monocausal determinism, or the belief that a single these groups and the national governm ents is
environm ental variable can account for a range of variable. Some of them are still officially without
social processes. contact, others are regularly visited by medical
The discussion of this latter issue will take the team s, governm ent officials, anth ro p o lo g ists,
remainder of this paper. It will be shown that among missionaries and gold miners. In the last decade,
two contemporary Amazonian Indigenous socie­ the systematic invasion by goldminers of Brazilian
ties, the Yanomami and Kayapo, documented vil­ Yanomami land has precipitated a severe increase
lage fissioning and movement were consistently in mortality rates, what makes it difficult to assess
the outcome of political tensions rather than of eco­ the current size of their population.
logical limitations. The implications of these data Until recently, the Yanomami were undergoing
will be further discussed and it will be suggested both geographic and economic expansion. Their
that by shifting the unity of analysis from focusing original homeland was in the Parima highlands,
on what is produced, to focusing on how produc­ and from the end of the eighteenth century on they
tion - and distribution, consumption and repro­ started migrating to the southwest, settling in the
duction - are realized another explanation to village lowlands around the Upper Orinoco and some of
fissioning and movement can be attained. its tributaries, a territory that was formerly occupied
by Carib and A raw akan populations that were
decimated earlier in the Colonial period (Hames,
Two case studies: 1983: 426). The two major causes of such expan­
village fissioning among two sion were the introduction of Old World crops, like
Yanomami and Kayapo population blocs plantains, bananas, and sugar cane, as well as the
introduction of metal tools (Colchester, 1984: 293).
The Y anom am i and K ayapo are different Before these technological innovations, Yanomami
Indigenous societies with different histories and subsistence was characterized by a higher emphasis
located in widely different areas of the Amazon on trekking, hunting and cultivation of small plots
Basin. There are however available data on pro- of land with peach palms, maize, sweet and bitter
manioc (Colchester, 1984: 308).
(3) Lathrap’s concept o f “house garden” (1977) can be seen
as an attempt to model changes in the environment made early
by Amerindian societies. In the same way, Roosevelt (1989) (4) A “population bloc” refers to a group of villages that share
has pointed out to a wider ecological diversity in the and recognize a common historical origin which is identifi­
hinterlands than previously believed. able in time (Chagnon, 1974: 71).

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NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

The bulk of the Yanomami diet comes from belonging to other lineages (Chagnon, 1975: 99).
gardening (Chagnon, 1983: 59). Plantains and The exchange of women between different lineages
bananas represent the main cultigen, providing also represents an attempt to nullify the internal
almost 75% of their food (Chagnon, 1973: 127). opposition that results from the division of the
Land is not privately owned and, while depending society in exogamic patrilineages, since such di­
on the community approval, the choice of a plot vision provides the basis for the formation of dif­
for a new garden is personal. Individual gardens ferent, and eventually conflicting, political groups
can either be isolated in different plots or grouped (Lizot, 1971b: 149).
together according to kinship links, but their cul­ The maximum size of a village is constrained
tivation is always the duty of a nuclear family by the amount of relatedness or degree of solidarity
(Chagnon, 1983:67;Lizot, 1971b: 155). According betw een individuals (Chagnon, 1975: 96). For
to Lizot (1971b: 156), a higher production can be C hagnon (1975: 98), the degree o f solidarity
verified on gardens of important leaders of the local between individuals - and by this he means internal
com m unity, since they are the responsible for cohesion or social bonding - springs from three
providing food and allucinogenic snuff for ritual sources: kinship relations, marriage ties, and the
occasions. Hunting is both collective and individual influences of political leaders. The possibility of
and there was plenty of animal protein resources these elements to maintain internal cohesion is
in the Yanomami territory, at least until the 1970s weakened by population growth because as villages
(Chagnon, 1983: 57). become larger, the average amount of relatedness
Village size and population is variable, being among the members goes down (Chagnon, 1975:
higher - an average of 76 inhabitants - at the center 102-103), in the same way that the integration of
and smaller - average of 53 inhabitants - at the families into the local com m unity becom es in­
periphery of the Yanomami territory (Chagnon, creasingly fragile. Village fissioning is thus favored
1973: 134). A Yanomami village is composed by by the loosening of kinship ties provided by popula­
groups of extended or nuclear families, called “te- tion growth and when it happens it keeps close kin
ri”, clustered together in a circular structure, called together but separates them from more distant kin
“shabono”, that at a first sight resembles a single (Chagnon, 1983: 141). Consequently, the potential
communal house. In fact however, every family line of cleavage is furnished by the division in
builds and owns its own part of the shabono (Chag­ patrilineages (Lizot, 1971a: 39).
non, 1983: 116; Lizot, 1971a: 42) and it is the But fissioning has its costs. Individuals have
family-owned dwelling, the teri, that composes the to consider the burden of opening new gardens;
basic economic unity of the village (Lizot, 1971a: the costs of transporting heavy plantain seedlings
40). The teri is the space where mutual support is across sometimes broad areas; and the fact that
perform ed trough the sharing of activities, the when a runaway group finds temporary shelter in
sharing of meat and assistance to elder or disabled an allied village, the hosts m ight dem and and
people. receive their women without reciprocating in kind
The ideal pattern of post-marital residence is (Chagnon, 1983: 147). Most importantly, a smaller
patrilocality w ith tem porary uxorilocality; the village is much more powerless when confronted
descent is patrilineal; and preferential marriage is by an enem y’s raids. Several mechanisms exist,
between bilateral cross-cousins (Chagnon, 1983: such as chest-pounding duels and other forms of
124-128; Lizot, 1971a: 39). Therefore, the structure in stitu tio n aliz ed co n fro n tatio n , that serve to
o f the society is characterized by a division into attenuate internal conflict and avoid fissioning. The
two intermarrying moieties (Chagnon, 1983: 128). most alleged reasons for internal conflict are quar­
Politically strong individuals tend to have more rels about women, and for leadership roles in the
than one wife, and they attempt to get the support local group (Chagnon, 1983: 113,124) as well ac­
of men of other lineages by promising them their cusations of sorcery (Hames, 1983: 409).
w ives’ unborn daughters (Chagnon, 1983: 124). It The patterns of fissionning over time o f a
is the possibility of having more than one wife, particular Yanomami population bloc are instruct­
and consequently to control a larger number of ive here. The data to be used here comes from the
female offspring, that enables leaders to strengthen Haiyamo population bloc in the Padam o River
their position through the mobilization of men Basin in Venezuela (Hames, 1983).

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S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

In 1976 the Haiyamo bloc was com posed of 409). Table 1 depicts a summary of the settlement
eight villages, with a total com bined population of history of the Haiyamo bloc.
412 people. Their ancestors originated in a village As the data show, am ong the 22 moves, 6
called Teemoba prior to 1920(Ham es, 1983:407). resulted from village fissioning; 4 were a direct
Figure 1 illustrates the settlement history of the result of raids from more powerful enemies; 4 resul­
Haiyamo bloc, with the location of the villages that ted from fear of raids but always combined with
have been occupied and abandoned since 1920, as another reason (“asked to leave by the Ye’kw ana”,
well as indications of the patterns of fissioning of “lack of garden land”, “abduction of w om en” ,
these villages. “desire to be nearer allies”); 3 resulted from con­
As the map indicates, the Haiyamo bloc villa­ tacts with the Ye’kwana Indians; 2 from sorcery
ges are currently located along the Padamo River. and witchcraft; 1 from trekking; 1 from abduction
The distance between them ranges from 4 to 24km, of women; and 1 from a poor garden site.
with a mean of 11km. The average village popu­ The above data show that village fissioning
lation is 52, ranging from 23 to 92 (Hames, 1983: was the major single reason for the macromoves
407). The village of Teemoba (Figure 1), is the of the Haiyamo bloc villages, accounting for 27.3%
oldest place that the senior members of the Haiya­ of them. In only three situations - “lack of garden
mo bloc villages recognize as their ancestors’ ho­ land”, trekking”, “poor garden site” - or 13.6% of
meland, and it was occupied from about 1915 to the cases, a macrom ove was done for explicit
1920 (Hames, 1983: 408). After this, the members subsistence reasons. Subsistence alone cannot
of the Haiyamo bloc had to leave their territories therefore account for these processes.
in the Ocamo River because of raiding from other
villages, and by the late 1930s they arrived in the The Kayapó-Gorotire case
Padamo Basin (Hames, 1983: 408).
In his analysis of the settlement history of the Among the Kayapó, the picture is similar. The
Haiyamo bloc, Hames presents the different causes Kayapó are a Gê speaking group inhabiting diffe­
that promoted the fissioning of these villages over rent territories between the mid Tapajós and Tocan­
a period of about 55 years. Two basic types of villa­ tins basins in south-central Amazonia. Using data
ge movement were identified. The first, called “ma­ drawn from the Kayapó living in reservations, one
crom ove”, results in the relocation of new villages has a figure of around 4,000 people settled in 8
at least several kilometers away from the original discontinuous reservations, with a total area of
village, being a result of either village fissioning 5 ,3 7 6 ,6 5 0 ha (C E D I/M U S E U N A C IO N A L ,
or warfare. M acrom oves resulted usually from 1987).
political causes and rarely from factors related to In the same way as the Yanomami, the Kayapó
subsistence (Hames, 1983:415). The second type, were an expanding population until regular contacts
called “micromove”, designates movements from were established with the national society. In his
50m to 1km every 4 to 5 years and they result from “Mapa Etnohistórico do Brasil e Regiões A dja­
the ecology of swidden agriculture. Micromoves centes”, Curt Nimuendajú proposes a southeastern
do not result from the tensions that lead to village origin for the Kayapó, in the savanna region of the
fissioning but rather they “are not really moves at A raguaia River Basin. According to this hypo­
all” (H am es, 1983: 419), since, although new thesis, the Kayapó have only occupied the area
gardens need to be opened, hunting, fishing, gather­ they currently settle after the Tupi: populations that
ing and gardening territories are basically the same lived there were exterminated or pushed away by
of the former village. Thence micromoves tend to the P ortuguese before the eig h teen th century
have no influence on potential village growth. (A rnaud, 1987: 7; N im uendajú, 1981, 1982).
In 55 years, 22 macromoves have been recor­ Conversely, Joan Bamberger (1968: 374) considers
ded for the Haiyamo bloc. The moves ranged from the Kayapó as traditional inhabitants of the same
5 to 42km, with a mean of 16.7km and a average area even before the arrival of the Portuguese.
of one move every 9.2 years. As a result of these However, if one considers that until the 1950s,
moves, the population of the Haiyamo bloc was, warfare and village fissioning were driving Kayapó
in the mid 1970s, living around 100km away from sub-groups such as the M ekranoti to new territo­
their ancestors’ village of Teemoba (Hames, 1983: ries westward from their original villages (Werner,

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S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

Fig. 1 - Haiyamo population bloc settlement history (1920-1976). Dots indicate form er Yanomani Village
sites, arrows show direction o f movement, stars indicate current (1976) Yanomani Villages, and triangles
show Yekwana Villages. (Adapted from Hames (1983: 406).

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NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

T A B L E 1 - (Hames, 1983: 416)

Causes o f Micromoves for the Yaiyamo Population Bloc

Cause o f move N %

Garden land too distant 12 35


Garden land of good topography used up 6 18
Well-drained soils used up 4 12
Deteriorated village structures 3 9
Poor so il3 3 9
Unattractive village siteb 2 6
High levels o f insect pests 1 3
More attractive stream nearby 1 3
Too many large and hard trees for easy garden-making 1 3
Unpleasant, ugly, or tiresome site 1 3
34 100
3 C rops yielded poorly on these soils, forcing a quick move.
b A m uddy village site that took a long tim e to dry out during the rainy season.

1983), N im u en d ajü ’s hypothesis seem s more terials for several years (Posey, 1986: 174-175).
plausible. Therefore a garden is never completely abandoned
Regular relations between the Kayapo and and the Kayapo keep visiting them even after
Brazilian society were established in the nineteenth villages are relocated. Every nuclear family, the
century. In 1860 a first mission was established basic unit of production and consumption, keeps
and around the end of the century, it was composed at least two or three gardens in production at the
of four villages with almost 5,000 people, the lar­ same time (Bamberger, 1968: 376).
gest of them inhabited by 1,500 individuals. Howe­ Follow ing the characteristic pattern of Ge
ver, the intensification of contact and the spread of societies, Kayapo villages are circular, with a
western diseases promoted the extinction of this central plaza, and the houses are located at the
sub-group in the twentieth century (Posey, 1987: periphery of the circle. Every house has its location
139). determined by norms that are followed when a new
As among other Gê societies of Central Brazil, village is built in another place (Vidal, 1977: 63).
Kayapo economy is characterized by a strong em­ Kayapo houses are occupied by uxorilocal extended
phasis on hunting and gathering, activities which families, and although there are no clear internal
are sometimes performed in trekking expeditions divisions, every nuclear family owns a discrete
that can last from a few days to several months spatial unit, characterized by a fire and the presence
(Werner, 1983). Because of this, the Kayapo were of personal possessions. Even within the extended
formerly considered to be “true” hunter-gatherers, uxorilocal family, the nuclear family remains an
which is absolutely not the case. Studies of time independent core of production and consumption,
allocation am ong the M ekranoti-K ayapo have and there are no forms of prescribed cooperation
shown that in one year they spent almost the same betw een nuclear fam ilies (A rnaud, 1987: 80;
amount of hours (456.6 and 441.8 respectively) in Turner, 1979b: 180). Descent is bilateral (Vidal,
getting wild foods and gardening (Gross et al, 1977: 54). For Turner (1979b: 181), “the uxorilocal
1979: 1047). residence pattern can be understood in dynamic
Swidden cultivation accounts for more than term s as a se ttin g for ex ch an g e o f sons fo r
one half of the total food production (Turner 1979a: daughter’s husbands, in a way that exploits m en’s
149) and manioc and sweet potato are the basic control over women (and to some extent m other’s
staples providing more than 80% of the energy yield control over their daughters) to gain control over
from cultivation (Gross et al, 1979: 1047). New m en” . T here are no strict m arriage rules, but
gardens are opened every 2 or 3 years, but old gar­ individuals cannot marry close relatives, and, most
dens keep producing fruits, medicines and raw m a­ importantly, two brothers can never belong to the

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same extended uxorilocal family after they marry offering advice which others can refuse to accept
(Vidal, 1977: 128). (Wemer, 1981: 370). For Wemer (1981: 371), there
Corporate groups have an important role in the are few absolute differences in power among the
organization of the society and every individual, Mekranoti, but there is inequality in opportunities
male or female, adult or child, belongs to one of to acquire it.
th ese groups. C ontrary to other G e-speaking The process of transmission of names exem ­
groups, Kayapo society is not currently divided into plifies this point: some names allow one access to
moieties, although this could have been the case positions of prestige in ritual (Bamberger, 1974:
in the past (Turner, 1979b: 209). Corporate groups, 363). The required ceremonial activities related to
like m en’s societies or age groups, compose distinct the transmission of a great name, which can last
political and econom ic entities, and tasks like up to four months, can be organized only by parents
trekking, the opening of a new garden, or division that have prestige and influence strong enough to
of game meat can be performed collectively by such mobilize people to work for them or to donate part
groups (Vidal, 1977: 137; Werner, 1982: 342). of their garden production in the supporting of the
Because of the uxorilocal residential rule, women ceremonies (Bamberger, 1974: 367). Correspon­
tend to spend most of their lives in the same house dingly, it is likely that the offspring of powerful
with their sisters, mother, and female offspring. men will receive more prestigious names than ave­
Boys, conversely, leave their parents’ house at an rage people. Although such an incipient concentra­
early age to reside in the m en’s house. After his tion could eventually lead to the formation of dis­
first child is bom, a man moves to his father-in- tinct, dominant groups, the political instability and
law ’s house, where he will eventually reside until the consequent pattern of village fissioning that
he is powerful enough to constitute an extended characterizes Kayapo society inhibits the develop­
family himself. Thence, marriage and the consti­ ment of more established forms of hierarchical poli­
tution of a fam ily m ark first the transition to tical organization.
adulthood and then the possibility of attaining Corporate groups like m en’s societies or age
political prestige am ong Kayapo men (Turner, groups constitute the lines o f cleavage when a fis­
1979a: 160). The uxorilocal pattern of residence, sion happens (Frikel, 1963: 151; Turner, 1979b:
and the consequent use of women as a means to 213; Vidal, 1977: 139). Therefore, contrary to the
attract potential allies, represents an effective way Yanomami case, village fissioning among the Ka­
through which seniors strengthen their political yapo tends to separate blood relatives and close
status in the local group. For Turner (1979a: 159), kin because of the structural importance of corpora­
the uxorilocal pattern enables seniors to extend the te groups. The reasons that led to past fissions were
control of women they exert in the nuclear family, variable: disagreements about the way the group
which is the basic productive unit, to the control should relate with Brazilians (Frikel, 1963: 151);
over other men (sons-in-law and brothers-in-law) cases of adultery (Vidal, 1977: 25); fights for wo­
who become incorporated to the family through men (Bamberger, 1979:133); and political disputes
marriage. between corporate group leaders (Am aud, 1987:
Therefore, the possibility of having a large 81). In the same way as the Yanomami, the Kaya­
number of offspring constitutes an important point po have a set of mechanisms that aim to attenuate
in strengthening one’s status within the local group conflict and avoid fissioning because they are aware
(Turner, 1979b: 205). Dennis Wemer (1982: 343) of the fact that smaller villages are militarily wea­
noticed that in the M ekranoti village where he ker. If the leaders’ word is not strong enough to
worked the main leader had more adult sons than alleviate the tensions, forms of ritualized combat
anyone else. There is no specific descent rule for are undertaken in order to reestablish internal cohe­
leadership, and the main criteria that qualify one sion (Bamberger, 1979: 139; Nimuendaju 1982:
as a leader are “ambition”, “intelligence”, “knowl­ 239).
edge of civilized ways” and “generosity" (Bamber­ The patterns of fission of the Kayapo-Gorotire
ger, 1979: 139; Wemer, 1982: 345). In the same population bloc will be examined. The data here
way as among the Yanomami, leadership is transfe­ are not so explicit as with the Hayiamo bloc, but
rable from one situation to other - like war or ritu­ they are still revealing. The Gorotire bloc is compo­
al - and the role of leaders is limited mainly to sed of five villages located along the Xingu, Fresco

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and Riozinho rivers (Figure 2).5 Around 1850, ma­ causal determ inist ways. Perhaps an approach
jo r divisions already existed among the Kayapo in­ correlating social organization with the organiza­
cluding three m ajor subgroups: the Xikrin, the Ira- tion o f production could bring better explanation
amkaire, and the Gorotire. Towards the end of the for this problem. The concept of “kin-ordered mode
nineteenth century, the Gorotire were already settled of production” will be now presented as a alter­
in the Fresco River area (Amaud, 1987: 82-83). n ative tool to ex p lain v illag e fissio n in g and
The first major fissioning among the Gorotire m ovem ent am ong co n tem p o rary In d ig en o u s
themselves happened sometime between 1905 and Amazonian societies.
1910. After a duel between two leaders of different As elaborated by Marx, the concept of “mode
m en’s societies, one of them left the village with of production” was proposed mainly to understand
250 men, forming the Kubenkragnoti group that the h isto ric a l d ev e lo p m e n t o f c a p ita lism in
moved to the Upper Irirf River (Arnaud, 1987: 84). Europe. During the nineteenth century anthropo­
The second m ajor fissio n in g o f the G orotire logy was beginning to develop as a discipline in
occurred in the 1920s and was also a result of the social sciences and system atic know ledge
rivalries between leaders of m en’s societies. As a about “prim itive” populations was still scanty. As
consequence of this fissioning, one of the new a co n seq u en ce, M a rx ’s k now ledge about the
groups - called Kararao after a leader of m en’s structure and functioning of A m erindian popula­
society - moved downstream to the confluence of tions was scarce, if not nil (Hobsbawn, 1964: 26;
the Xingu and Irirf rivers. The third major fissio­ M eillassoux, 1972: 97). Therefore, one needs to
ning happened in 1936 and promoted the formation rely on further developm ents of the concept o f
of the Kubenkrakegn group, that remained in the mode of production to apply it to the study o f
Riozinho River area, while the Gorotire moved native Amazonian populations.
down to the Fresco River (Arnaud, 1987). Shortly The basic premise of the concept of mode of
after they fissioned from the Gorotire, the Kuben­ production is the distinction between “w ork” and
krakegn fissioned again; one of the groups, with “labor” . W hile labor is always socially mobilized,
250 people, joined the Kubenkragnoti and the other, work is the individual spend of energy to produce
with 400 people, moved down to the Xingu River further energy (Wolf, 1982: 74). This distinction
(Arnaud, 1987: 87). a llo w s the re c o g n itio n th a t the d e te rm in is t
During the 1940s the Gorotire were already hypothesis previously mentioned deal solely with
being assisted by the federal governm ent, but the work process, rather than with the labor process,
internal conflicts continued and in 1942, one of the for they focus only on the extraction of energy from
leaders of the group was killed by a young emerging nature w ithout considering the social relations
leader (Arnaud, 1987). Conflicts within Kayapo m ediating these procedures. Their potential to
society have continued until the present. The fact explain social phenomena is therefore very weak.
that the Kayapo now live in reservations together A mode of production is com posed by the
with the increase, since the early 1970’s, of the combination of forces of production and relations
occupation of Southeastern A m azonia by non- of production. While “productive forces determine
Indians reduces the efficiency of village fissionning the degree of control over natural resources, the
as a conflict-solving strategy. relations of production are those institutions and
social mechanisms that determine the way in which
(at a given stage of productive forces) labor power
Discussion is combined with the available means of product­
ion. Regulation of access to the means of product­
The evidence presented above suggests that ion also determines indirectly the distribution of
subsistence needs were not necessarily the major so c ia lly p ro d u c e d w ea lth . T h e re la tio n s o f
fac to r acco u n tin g for v illag e m ovem ent and production express the distribution of social power”
fissio n in g am ong tw o h in te rlan d A m azonian (Habermas, 1979: 138-139).
Indigenous populations. The explanation for such
a phenom ena cannot thence be sought in mono-
(6) “Contemporary” is used here to indicate societies that have
been ethnographically documented in the last hundred years
(5) This figure is valid for the mid 1980’s. or so.

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Fig. 2 - Villages of the Kayapd-Gorotire population bloc around the early 1980's. From Arnaud (1987:126).

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S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

In the case of contemporary hinterland native the possibility o f making political alliances: “it is
Amazonian societies, every individual potentially the significance of sexual access for the establish­
has access to the means of production. Land is avai­ ment of both male autonomy and adult coopera­
lable; individuals have the required knowledge and tive relations that turn wives into valuables to be
opportunity to make their own tools for gardening, exchanged and guarded” (Collier & Rosaldo, 1981:
hunting, fishing, or gathering; kinship relations are 292).
not strong enough to coerce individuals to long­ Since marriage is important, it is regulated by
term compulsory or exploitative labor; and more rules that narrow the range of individuals’ options,
importantly, the nuclear family constitutes in most and this is the way kinship furnishes the ideology
cases the basic autonomous unity of production and for the control of reproduction and the formation
consumption. Consequently, if one is to apply the of political alliances within the local community.
concept of mode of production to the study of these Therefore, a discussion of the kin-ordered mode
societies, one needs to move away from studying has to also encompass an analysis of the ways poli­
the control of the means of production and verify tical prestige is assured: the control of the flow of
the other ways political prestige and status can be women through marriage as it is determined by
obtained through the control of the labor process. kinship.
In other words, one needs to focus on the relations The problem under discussion here - village
of production. movement and fissioning - can be seen as an indi­
Among native Amazonians, kinship is a major cator of the tensions intrinsic to the kin-ordered
force in the organization of production. For Eric mode of production. By identifying these tensions,
Wolf (1982: 91), “kinship can be understood as a by understanding why they arise and how people
way of committing social labor to the transforma­ manage to resolve the problems they engender, one
tion of nature through appeals to filiation and mar­ can arrive at a more satisfactory explanation for the
riage, and to consanguinity and affinity. This labor reasons behind village movement and fissioning.
can be mobilized only trough access to people, such As stated above, one of the basic characte­
access being defined symbolically” (Wolf, 1982: ristics of the kin-ordered mode is the fact that every
91). Wolf named this particular pattern of mobi­ individual has access to the means of production,
lization of labor “kin-ordered mode of production” . and that the household composes the basic unity
In the kin-ordered mode of production, the mobi­ of production and consumption. There are certainly
lization of labor operates through the control of peo­ tasks that can be performed collectively - like the
ple, and not through the control of the means of opening of a garden or trekking expeditions - and
production. there are reso u rces th at are o b tain ed trough
In kin-ordered societies the control of subsis­ exchange, but nevertheless the household remains
tence is exercised through the control of the means as the basic productive unit in kin-ordered socie­
of physiological reproduction, or in other words, ties. As shown above, even in cases of extended
the control over women and m arriage policies uxorilocal families, like the Kayapo, every adult
(Meillassoux, 1972: 100). For Meillassoux (1972: couple is responsible for assuring the basis of the
102) societies similar to the ones under discussion subsistence for themselves and their offspring. As
here “rely less on the control of the means of mate­ stated by Sahlins (1972: 93): “The household in
rial production than on the means of human repro­ tribal societies is not the exclusive owner of its re­
duction: subsistence and women. Their end is re­ sources: farmlands, pastures, hunting or fishing ter­
production of life as a precondition to production”. ritories. But across the ownership of greater groups
W olf ( 1982: 93) contends that the two major sour­ or higher authorities the household retains the
ces of power in the kin-ordered mode are control primary relation to productive resources” .
of women and parentage. The first allows for prero­ It is in the independence of the household as
gatives over the labor of females, offsprings and an unit of production and consumption that one
affines; the second organizes the range of potential finds the key for conflict solving in kin-ordered so­
allies trough appeals to descent, lineage, or relate­ cieties. Kinship relations are not strong enough to
dness. maintain solidarity under situations where it could
Marriage marks the transition to full maturity, be more favorable for individuals to leave and form
the introduction of an individual to adulthood and new villages. According to W olf (1982: 95): “con-

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NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
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flict resolution encounters an ultimate limit in the the monocausal determinism and arrive at a more
structural problems of the mode itself. Cumulative dynamic picture of the functioning and change of
conflict often exceeds the capacity of kin-based me­ native Amazonian societies. The concept of a kinor-
chanism s to cope with them” . The economic inde­ dered mode of production was employed here in
pendence of the household is also a major force the explanation of village fissioning among two
that promotes the characteristic pattern of leader­ native Amazonian societies. Because it links social
ship weakness in kin-ordered societies where a lea­ organization and the organization of production, it
d er’s success will normally depend more on his m ight be indicate a way to avoid monocausal
personal charisma than in his status of leader per deterministic thinking. It demonstrates that the con­
se. trol of people through kinship is the major organiz­
Based on the foregoing discussion, at least two ing force among the societies discussed here. It also
major sources of conflict within kin-ordered socie­ demonstrates that such control is not always effecti­
ties can be identified. The first happens between ve, that kinship links cannot accommodate political
age groups, as they represent married versus un­ differences. When open conflict emerges, village
married man, or elders versus juniors (Wolf, 1982: fissioning might be the best solution to deal with
94). In this case, conflict arises around the need of them.
juniors to obtain women, which are controlled by The data for the Yanomami and Kayapo popu­
seniors, to assure their own economic and political lation blocs presented above suggest that intra villa­
autonomous status in the local group. The second ge political instability is a major force accounting
source of conflict is between corporate groups like for village fissioning. This political instability is
moieties (Turner, 1979b: 210), or lineages (Chag- directly related to the way production is organized
non, 1983: 141). among these societies. The independence of the
Finally, using the elements presented above, household or the nuclear family as units of produc­
it can be stated that village fissioning is a major tion and consumption hinders the development of
way to handle internal conflicts at the local group. stronger means of social control. This independence
Given the economic independence of the house­ springs basically from the lack of mechanisms for
hold, and the weak leadership characteristics of the control of the means of production and also from
kin-ordered societies, village fissioning is the major the relative availability o f resources. The control
way through which the problems that arise from of women and kin, although effective in the short
internal conflict are resolved, at least in the sense run, is not solid enough to assure any kind of poli­
of avoiding open armed confrontation. Interestingly tical continuity at the village level. Thence, leader­
enough, the data about the Yanomami and Kayapo ship is weak, not hereditary and ineffective in the
presented above show that most currently enemy administration of internal conflict.
groups formerly belonged to a same local group In the long run, this instability could also ac­
that fissioned. count for the patterns of descent for native Amazo-
nians. Robert Murphy (1979) believed that the ge­
nealogical shallowness of Amazonian kinship is a
Conclusions result of the lack of rights of ownership of resources
such as land, fishing spots and hunting territories.
The concept of mode of production provides a The abundance of these resources hinders the deve­
theoretical framework that only makes sense when lopment of effective mechanisms for control of pro­
confronted w ith phenom ena of the real world. duction because individuals always have the poten­
W hen such a task is accomplished, we can avoid tial to leave if conflict arises at the level of the local
group. Even in the case of the Yanomami where
patrilineages do exist, the pattern of constant fis­
(7) See Johnson and Earle (1987: 122-123) for a recent evolu­ sioning impedes the formation of long-lasting clans
tionist attempt to explain this pattern of leadership. On the or lineages.
other hand, the archaeologist Michael Heckenberger (pers.
One of the major challenges for archaeologists
com.) believes that in the South American lowlands the weak
working in Amazonia is to understand social dyna­
leadership patterns documented ethnographically could be a
result o f the population reduction promoted by the European mics in pre-colonial times, when population densi­
conquest. ties were higher and wide-ranging trade networks

206
NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

existed, making resource distribution and availa­ determinism is not adequate to explain social phe­
bility different from what they are today. In pre­ nomena among contemporary Amerindian socie­
colonial times is possible that what Cameiro (1970) ties. It is therefore even weaker as an explanatory
has called “social circumscription” existed in some tool for the archaeological record.
areas. If this was the case, higher population den­
sities could have stimulated agricultural intensifi­
cation and also the development of forms of resour­ A cknowledgm ents
ce ownership unlike those characteristic of contem­
porary Indigenous Amazonian societies. Therefore The first version o f this paper was written in
patterns of social organization before the conquest 1990. It has since then been improved by comments
may have been quite different from what they cur­ made by Richard Wilk, Emilio Moran, Nick Shorr,
rently are (Roosevelt 1989). Euphly Jalles Filho, N orm an Yoffe and Jam es
The ideas presented here need to be tested with Petersen. It is now published due to the encoura­
further data in order to assess their usefulness but gement of José Oliver and Maria Isabel D ’Agostino
the above discussion suggests that monocausal Fleming. To these colleagues my appreciation.

NEVES, E.G. Village fissioning in Amazonia: a critique of monocausal determinism. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 5: 195-209, 1995.

ABSTRACT: Deterministic theories proposing the existence of limiting factors


to cultural development in Amazonia are criticized here. An alternative hypothesis
based on the concept of “domestic mode of production” is suggested based on the
discussion of two case studies.

UNITERMS: Ecological determinism - Cultural change in Amazonia - Domestic


mode of production.

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Recebido p a ra publicação em 9 de novembro de 1995.

209
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 211-222, 1995.

LITERACY AND SOCIAL STATUS OF


ARCHAIC ATTIC VASE-PAINTERS*

H. A. Shapiro**

SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 211-222, 1995.

RESUMO: Recentemente, novas evidências levaram alguns estudiosos a ques­


tionar a visão tradicional que considera os ceramistas e pintores atenienses banausoi
de baixo estatuto social cujas vidas raramente ou nunca cruzaram com as da aristo­
cracia (Keuls, 1989: 149-67). A evidência diz respeito principalmente à geração
dos pioneiros das figuras vermelhas, que são excepcionais em seu forte senso de
identidade e deliberada referência seja de um a outro deles, ou a seus patrões. O
campo de encontro era o simpósio.
Este trabalho enfoca um período anterior, os meados de séc. VI, e certas inscri­
ções em vasos que sugerem não somente um elevado grau de instrução de parte do
pintor, mas também uma familiaridade com vários gêneros de poesia de simpósio
ou de outro tipo.
Essas incrições métricas, algumas em vasos modestos, sob outros aspectos, e
não coletadas previamente, atestam o poder de difusão da “cultura da canção” da
G récia arcaica descrita por J. Herington (1985). Estes e outros exemplos implicam
em que a estrutura social da Atenas do arcaico inicial, na esteira das reformas de
Sólon, não era rigidamente estratificada; antes, artesãos conviviam livremente com
os aristocratas, frequentemente unidos pelo gosto que compartilhavam pela poesia
e pela canção.

UNITERMOS: Vasos gregos - Atenas - Pintores de vasos áticos arcaicos -


Escrita.

The traditional view of Athenian potters and (Tiverios, 1976: 15-17) or Amasis, whose name
vase-painters is of banausoi, artisans of low social suggests an Egyptian origin (Boardm an, 1987;
status, sometim es slaves, whose lives seldom if Isler, 1994), to cite just two prominent examples -
ever intersected with those of the aristocrats who placing them outside the bounds of the Athenian
purchased some of their finest wares (Scheibler, citizenry altogether. Yet there are at least as many
1983: 120-33; Sarian, 1993). Many workers in the with good Athenian names, even occasionally na­
Kerameikos, it is often pointed out, have names mes that occur in well-known families, though it
that betray a foreign origin - Lydos, the Lydian is usually not possible to determ ine if there is an
actual family connection. Thus, for example, the
Andokides who was a well-known potter in the
(*) This paper was delivered at the 10th Congress of the Fédé­ years around 530 (Beazley, 1986:69-72) could well
ration Internationale des Associations d ’Études Classiques
be related to the Andokides who was tamias of
in Québec on August 25, 1994. I thank H. Sarian for the
opportunity to publish it here. Athena about 550 and ancestor of the great orator
(**) University o f Canterbury, New Zealand. of the late fifth century (cf. Shapiro, 1989: 72). It

211
SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São
Paulo, 5: 211-222, 1995.

was in A ndokides’ workshop that the red-figure ship of painter and patron in a very different light.
technique was probably invented (Cohen, 1978: A red-figure psykter of the late sixth century, now
105-239), so we may suppose that it was one of in the J. Paul Getty Museum (Figs. 1-2), depicts a
the largest and most successful of its time. gathering of young athletes and other youths, mos­
It has often been suggested that the signature tly grouped into pairs with more or less explicitly
on vases with epoiesen refers not to the potter but erotic overtones (Frel, 1983:).' M ost are labelled,
to the workshop owner (Robertson, 1972; Eisman, and many of the names are familiar from kalos-
1974). If this is correct, then in a few instances, as inscriptions on other vases of the period: Ambrosios
w ith A ndokides, N ikosthenes, and Pam phaios and Euthydikos; Hegerthos and Andriskos; Melas
(Immerwahr, 1984), we might imagine that, in the and Antias. There is one great surprise: Leagros,
social climate of post-Solonian Athens, owning a the reigning beauty of the day (to judge from his
successful potter’s shop that exported extensively enormous popularity in vase-inscriptions) is wooed
overseas had become a respectable occupation for by none other than the vase-painter Euphronios
a man of good family. John Boardman has recently (Fig. 2). Is this to be taken at face value, or could it
intimated that the black-figure master painter/potter be some kind of elaborate joke? The less than beau­
Exekias could even have belonged to the family of tiful Leagros (cf. Keuls, 1989: 162, who describes
Solon, w hose fa th e r’s nam e was E xekestides him as a “chinless wonder”) verges on a caricature,
(Boardman, 1978: 24). and Martin Robertson has recently suggested that
The very fact that aristocrats must from time the drawing on the vase is itself a kind of caricature,
to time have bought or commissioned vases directly “a rude parody... of the Pioneers” (Robertson 1992:
from the potters’ shops is a strong a priori argu­ 26). Previously the vase had been attributed to
ment that there was at least some interaction, as is Smikros (Frel 1983: 150), a close, slightly younger
the existence of a large number of kalos-inscrip- colleague of Euphronios, who gave the name Smi­
tions praising the beauty of the jeunesse doreé, kros to a participant in the symposium on one of
many of them identifiable from other sources (Ro­ his most ambitious vases (Fig. 3; Beazley, 1963:
binson and Fluck, 1932). In recent years, the basic 1619; Vermeule, 1965; Beazley, 1971: 322; Car­
assumption that the finest vases were made for penter, 1989: 152).2 Smikros in turn produced a
aristocratic patrons has been challenged, particular­ self-portrait of sorts in an elaborate symposium
ly by M ichael Vickers and David Gill (Vickers and scene that comes close to the spirit of Euphronios’
Gill, 1994). They argue that the Athenian aristocra­ krater.3 Even if such elements are meant in jest -
cy only dined off gold and silver plate, the black- the very notion that a Smikros would be invited to
and red-figure vases being cheap imitations. There the poshest party in town, or that Euphronios would
is much evidence that makes this thesis untenable court the most sought-after prize in the palestra -
(Robertson, 1992: 4-5), including, I believe, the they cannot be strictly in-jokes among the painters.
longer vase inscriptions that I shall be discussing The very fact that their patrons could also share in
later in this paper. These were surely not copied the joke presupposes a certain degree of social inti­
from another medium, but were added directly by macy, even comraderie.4
the painter. But in any case, such evidence as the
existence of kalos names does not allow us to speci­
fy the nature of the interaction between patron and
painter. Was it strictly a business transaction, or (1) Malibu, J. Paul Getty Museum 82.AE.53; Figs. 1-2 here
might there have been other forms of social inter­ reproduced from Frel 1983: 149. figs. 10.2 and 10.6.
(2) Munich, Antikensammlungen 8935; Fig. 3 here from a
course between the potters and painters and their
photo courtesy o f the Staatliche Antikensammlungen.
clientèle? Do the kalos-inscriptions imply that these (3) Stamnos. Brussels A 717; Beazley 1963: 20, 1; Beazley
handsome upper-class youths paraded themselves 1971: 322; Caipenter 1989: 154; CVA (Brussels 2) pll. 12-13.
through the potters’ quarter and caught the eye of (4) The tendency of painters of the Pioneer Group to refer to
the artisans there, or were these names simply dicta­ one another on their vases, usually in a lighthearted fashion,
ted by the patron to an obliging painter (cf. Webster, is well attested. Cf. the amphora by Euthymides with the chal­
lenge wc; o u S e t t o t e Ed^povioc;: Munich 2307; Beazley 1963:
1972: 21)?
26,1; Linfert (1977); Engelmann (1987) and the hydria by
A startling new piece of evidence, first publis­ Phintias with a hetaira toasting Euthymides: Munich 2421;
hed a dozen years ago, seems to cast the relation­ Beazley (1963): 23-34,1.

212
SHAPIRO, H.A. Literacy and social status o f archaic attic vase-painters. R ev do Museu de A rqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

F ig .l - Red-figure psykter J.Paul Getty M useum, Malibu.

213
SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de A rqueologio e Etnologio, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

Fig.2 - Detail o f Fig.1: Euphronios and Leagros.

But the Euphronios krater in M unich (Fig. 3) cords a good selection of the skolia (15.694C-
has another unusual feature that may suggest a dif­ 696A), and ours follows a typical pattern for the
ferent approach to the question, what knowledge opening line, the invocation of a divinity, or a group
or experience did the vase-painters have of the of related divinities. One, for example, calls on
world of the Athenian aristocracy. One of the sym- D em eter, m other o f P loutos, and P ersephone
posiasts, Ekphantides, spontaneously throws back (15.694C). Ours probably named Artemis in the
his head and bursts into song, the words issuing second line and may well have referred to their
from his mouth: mother Leto and their birth on Delos. One of the
skolia quoted by A thenaeus was on this very
v 6 ttoM o v , o e te kou p a K a i< p a v >
subject (Vermeule, 1965: 39). Invocations to Apollo
O Apollo, you and blessed (Artemis)
as son of Leto also occur twice at the beginning of
The verse is in Hipponactean metre, one of se­ the Theognidea.
veral Aeolic metres commonly used in the Attic Such verses were evidently com posed and
skolia, or drinking songs. Vermeule identified the sung only within the symposium setting. How, then,
metre as glyconic (Vermeule, 1965: 38), while did Euphronios know them, unless he also had first­
Beazley had suggested completing the line with a hand experience of the kind of sym posium he
Phalaecian (Beazley, 1963: 1619). Athenaeus re­ depicts?

214
SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

Fig.3 - Red-figure calyx-krater by Euphronios. Staatliche Antikensammlungen, Munich.

215
SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

Such exam ples of sympotic verse on Attic symposium itself and the courting of boys in the
vases are, to be sure, rather rare, but sufficiently palestra. A third instance, again in black-figure but
w ell-attested to be significant (Hurwit, 1990: 194- about contemporary with the Euphronios krater, is
96). The most remarkable to come to light in recent even more unexpected because the setting is defi­
years is on a small black-figure tripod-pyxis attribu­ nitely non-aristocratic. On a pelike in the Vatican,
ted to the Amasis Painter and found in the German an oil seller fills a small jug from a large pelike
excavations of the sanctuary of Aphaia on Aegina that sits on the floor beside him (Fig. 6).6 A custo­
in the early 1970’s (Figs. 4-5; M. Ohly-Dumm, mer or co-worker sits opposite him and seems to
apwdBothmer, 1985: 236-38).5 Once again the me­ be playing with the dog. Such scenes of banausoi,
tre is an Aeolic one, the Major Asclepiadean, that though not very numerous, do several times occur
could be used for drinking songs: on pelikai, in part to illustrate the uses to which
the shape was put (Shapiro forthcoming). Stret­
"HAiog oiSev K a i cyoj povog
ching from one figure to the other is the opening
auTw qT T a iS a xaAov
line of an impromptu hymn:
This is clearly a snippet of paederastic verse.
’O Zcu TTCíTcp a ’í0£ nAoúaiog y £ v < o íp a v >
“The sun and likewise I alone know a handsome
boy” is the translation of Henry Immerwahr, taking “O Zeus, would that I might become rich!”
auTwg (with long o) adverbially (Immerwahr, 1990: The metre is again Aeolic and the invocation to
36). The lover wants to keep his beloved for him ­ Zeus reminiscent of skolia like the one on Euphro­
self, away from the gaze of others. Only Helios sees nios’ krater, only the sentiment somewhat less lofty.
everything on earth, a conventional idea in Greek In fact the diction recalls even more closely another
poetry, expressed, for exam ple, as A eschylus’ type of skolion of which Athenaeus records two
Choephoroi 985, where Orestes calls upon Helios, examples. One reads:
o t t q v t ’ e t t o t t t c u c jv to witness the cloak in which
£Í0£ Aúpa xaAa y cv o íp av ¿A£(|)avTÍva,
Agamemnon was ensnared and slain.
Kaí p£ KaAoi TTa'iScc; c|)£poi£v A io v ú aiov
The erotic poem on our vase has no relevance
ég x°póv
to the scene alongside which it is painted (the com­
bat of Herakles and Kyknos), but there is an appro­ “Would that I might become a lovely ivory lyre,
priate scene elsewhere on the vase: three pairs of and that beautiful boys might take me to the chorus
erastes and eromenos courting (Fig. 5). Part of one of Dionysos.”
boy’s name is preserved, Aprophasistos, translated In the context of the oil m erchant’s shop on
by Martin Robertson as “nothing loth” (apud Both- the Vatican pelike, the verse turns the scene into a
mer, 1985: 237). The Amasis Painter is elsewhere gentle parody of the symposium, in which two wor­
quite sparing with inscriptions, and the one on this king stiffs daydream of being leisured aristocrats.
vase is most unusual for him (or any other painter, The painter’s sense of humor perhaps reflects a
for that matter). That, as well as the unusual prove­ feeling of kinship or empathy with his fellows in
nance, suggests a special commission, yet the ins­ the oil business, who must have had close ties to
cription is, according to Immerwahr, compatible the pottery industry. The humor in fact extends to
with the painter’s handwriting and so could not, the reverse of the pot (Fig. 7). In a different vignette,
say, have been added by the purchaser (Immerwahr, which may be only loosely related to the first (the
1990: 37). If the hand is smaller and more cramped setting has moved outdoors), the oil merchant, who
than the Amasis Painter’s usual, that is no doubt has perhaps been accused of shortchanging a custo­
in order to squeeze it into the limited space - the mer, exclaims:
same reason the inscription has been displaced from
qSq p£ v q5q t t A £ 0 < v > , Trap|3£|3aK£v
the more crowded scene in which it properly belongs.
In both examples considered thus far, Euphro- “It’s already full. It’s spilling over!” Although
nios and the Amasis Painter demonstrate their fa­ the wording probably captures a typical speech pat­
miliarity with sympotic verse in settings that evoke tern of colloquial Attic Greek, at the same time it
the social milieu of the Athenian aristocrat: the

(6) Vatican 413; Albizzati 1925-39: pi. 61. Figs. 6 and 7 here
(5) Figs. 4-5 reproduced from Bothmer 1985: 236-37.
reproduced from photos courtesy o f the Vatican Museums.

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Paulo, 5 :2 1 1 -2 2 2 , 1995.

Fig.4 - Black-figure tripod-pyxis by the Am asis Painter, Aegina.

appears to be metrical, based on a succession of still knew enough about what went on at them to
cretics, usually considered a Doric metre (West, render such scenes in sharply observed and sympa­
1982: 54-55). The use of a Doric form with long thetic detail, complete with authentic fragments of
alpha in the final word would be consistent with the kind of verse spontaneously composed on these
this. Possibly the doricisms reflect the non-aristo- occasions. The notion that a “humble” painter could
cratic status of the speakers. h im self com pose a snatch of verse, as on the
If the preceding examples of what an Archaic Vatican pelike, is not so astonishing when we con­
vase-painter might write on his vases suggest any­ template the nature of the “song culture” of Archaic
thing about the place these m en occupied in Greece that John Herington has so compellingly
Athenian society, it is perhaps that they had no fixed described (Herington, 1985). Indeed, as the second
place, contrary to our usual notion of the rigid social speaker on the pelike illustrates, even conversa­
stratification of sixth-century Athens. Their profes­ tional speech tends to slip easily into metre in this
sion brought them into contact with a broad cross- period. He may be the opposite o f M o liere’s
section o f their fellow Athenians, and they moved bourgeois gentilhomme, who didn’t realize he was
easily between aristocrats and other banausoi. If speaking prose.
they did not actually attend the symposia of the The “song culture” encompasses many other
wealthy (and they might have, on occasion), they aspects of life as well, some of them, unfortuna­

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SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

Fig.5 - Black-figure tripod-pyxis by the Am asis Painter, Aegina.

tely, not docum ented at all in the small corpus of How these painters of the period of the Persian
surviving vase inscriptions. One instance that may Wars acquired their literary sophistication is ano­
seem unremarkable, almost predictable, but is no ther question. I have deliberately focussed on an
less unique for that, appears on an as yet unpublis­ earlier period in this paper, in order to consider the
hed black-figure loutrophoros of the mid-sixth cen­ role of the vase-painters in a society o f very limited
tury attributed to the painter Lydos.7 The vase itself literacy. And here I believe that their familiarity
is a nuptial vessel, used to carry water for the bridal with several genres of occasional verse, their ability
bath. Amid the figures in the wedding procession to transcribe it onto a vase and perhaps even to
is written a bit of the wedding song: HYMEN AIE compose it spontaneously, must separate them from
YMENAIE. This loutrophoros was found, along most of their fellow banausoi.
with hundreds more like it (cf. Travlos, 1971: 361, Archaic Athens was, in the end, a very small
363, fig. 466) in the sanctuary of Nymphe at the town, and the familiar model of segregation by so­
foot of the Akropolis, probably all dedications of cial class would simply not have worked in practise.
newly-wed couples. The inscription does not add While mixing with men of a higher class does not,
anything new to the corpus of lyric poetry, as the of course, imply moving up to a higher class - sla­
others we have looked at could be said to do, but ves, after all, probably spent a lot o f time in the
in adding the sounds of the wedding to the visual complany of their masters - in the case of free-
image (cf. Oakley and Sinos, 1994: 11), it uses the born potters and painters I believe the frequent con­
power of the written word to bring the scene to life. tact must have led to a greater degree of acceptance
By the early fifth century, the “song culture” than was accorded most members of the urban
was already on the wane. In vase-painting this is proletariat. We know that professional musicians
evident in the prevalence of book rolls in school and poets, like Anakreon, were welcome guests at
scenes, some of them carrying identifiable passages the Athenian symposium, because they provided
of epic verse (Im m erw ahr, 1964). In the m ost the more refined entertainm ent (Pellizer, 1990;
famous example, by Douris, the opening lines of Kurtz and Boardman, 1986). Although vase-pain­
an epic poem are inscribed on the open book roll.8 ters probably never enjoyed the same status as fine
artists, might they not have been invited along as
well, precisely in order that they might be better
(7) Akropolis; Beazley 1970; 45. I thank M. Tiverios for
showing me a photo o f this vase. able to render the symposium scenes that their pa­
(8) Berlin 2285; Beazley 1963: 431,48. trons favored?

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SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sâo
Paulo, 5: 211-222, 1995.

Fig. 6 - Black.-fi.gure pelike, Vatican Museums.

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Paulo, 5: 211-222, 1995.

Fig. 7 - Black-figure pelike, Vatican Museums.

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SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 5: 211-222, 1995.

SHAPIRO, H.A. Literacy and social status of archaic attic vase-painters. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e Etnologia, São Paulo, 5: 211-222, 1995.

ABSTRACT: In recent years, new evidence has led some scholars to question
the traditional view of Athenian potters and painters as banausoi o f low social
status whose lives seldom if ever intersected with those o f the aristocracy (Keuls,
1989: 149-67). The evidence pertains mainly to the generation of the red-figure
pioneers, who are excepcional in their strong sense of identity and self-conscious
reference to each other and to their patrons. T heir m eeting ground was the
symposium.
The presente paper focuses on an earlier period, the mid-sixth century, and on
certain vase inscriptions that suggest not only a high degree of literacy on the part
of the painter, but also a familiarity with several genres o f sympotic and other
poetry.
These metrical inscriptions, some on otherwise modest vases and not previously
collected, attest to the pervasiveness of the “song culture” of Archaic Greece
described by J. Herington (1985). These and other examples imply that the social
structure of Early Archaic Athens, in the wake of Solon’s reforms, was not a rigidly
stratified one, but rather artisans mixed freely with aristocrats, often joined through
their shared tastes for poetry and song.

UNITERMS: Greek vases - Athens - Archaic Attic vase-painters - Literacy -


Social status.

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Recebido para publicação em 18 de dezembro de 1995.


Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

ANOTAÇÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE


MONSTROS NAS MOEDAS GREGAS*

Maria Beatriz Borba Florenzano**

FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Rev. do
Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

RESUMO: Se quisermos compreender o caráter da moeda na Antiguidade grega


é indispensável que a analisemos sob diferentes pontos de vista. Com efeito, a
moeda além de instrumento de troca e de medida de valor, participava de um
conjunto mais amplo de objetos impregnados de funções mágicas ou religiosas. A
própria imagem escolhida como tipo m onetário, subjazia um caráter apotropaico -
“alexíkakos”- que ao fixar uma energia divina invocava proteção. Neste sentido, a
representação de monstros atuava como uma fixação de poderes maléficos de sorte
a anulá-los, de acordo com o princípio da magia simpática de que “o símile bane o
sím ile” . Por outro lado, como objeto, a moeda poderia funcionar como amuleto, se
pendurada ao pescoço. Quando deixada em locais sagrados, cumpria a função de
aplacar alguma divindade de sorte a dar proteção ao ofertante.

UNITERMOS: Função apotropaica da moeda grega - Monstros e apotropaismo


- M oeda como amuleto.

As im agens m onetárias sua própria moeda. Era, com efeito, o que ocorria:
na Grécia arcaica e clássica cada cidade-estado suficientemente rica para ter
acesso a um metal precioso ( em especial a prata)
Ao estudarmos as imagens representadas nas e para manter atividades que implicassem o uso
moedas gregas, o que primeiro salta aos olhos é, da moeda, tais como o comércio, a execução de
sem dúvida, a sua grande variedade. Em sendo a obras públicas, a arrecadação de impostos, a guerra,
em issão m onetária um monopólio do Estado e em emitia, ainda que nem sempre com regularidade,
estando a Hélade dividida em inúmeros pequenos suas próprias moedas.
Estados, nada mais natural que cada um tivesse a Apesar da enorme variedade de tipos m onetá­
rios1 que esta prática provocava, é possível, hoje,

(*) Devo a Thomas Martin a idéia desta reflexão sobre a repre­


sentação de monstros nas moedas gregas. Agradeço a ele a sem o estímulo dado pelo Grupo de Trabalho sobre “Os
oportunidade de expor minhas idéias e de discutí-las com clas- Sentidos do Apotropaico”, organizado pela própria Profa.
sicistas durante uma palestra no Holy Cross College (U.S. A.) Sarian, e sem a troca de idéias sobre a religião grega com
em 1994. Uma primeira versão deste texto foi apresentada Elaine Hirata, este pequeno artigo não teria sido possível.
durante o Encontro Nacional da SBEC de 1995, no Rio de (**) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
Janeiro. Agradeço a Haiganuch Sarian os comentários feitos São Paulo.
na ocasião e as indicações bibliográficas principalmente no (1) “Tipo monetário” é o termo técnico empregado em estu­
que diz respeito às comparações de representações monetárias dos numismáticos para indicar o conjunto das representações
com a iconografia das gemas e dos amuletos antigos. Por fim, de anverso e de reverso de uma moeda.

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FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

identificar um traço comum a uma boa parte dessas nas de Panticapeum, o grifo nas de A bdera e nas
representações. Este traço diz respeito à íntima as­ de Teos, o hipocampo nas moedas de Siracusa ou
sociação dos tipos monetários gregos com o poder o touro adroprosopo em tantas moedas como as de
emissor. É ponto pacífico entre os especialistas que Gelas, Neápolis na Campânia, e as da A cam ânia?
as moedas gregas trazem figuras de significado É evidente que todas essas representações têm
em blem ático e heráldico que revelam caracterís­ a ver com algum episódio lendário da cidade
ticas específicas do Estado emissor: elementos do emissora: o Pégaso, afinal, foi domado por Bele-
reino vegetal ou animal, referências imediatas aos rofonte no local da fundação de Corinto, a pantera
produtos típicos ou a aspectos físicos da localidade alada era a guardiã das minas de ouro setentrionais,
(a vinha em Naxos, a espiga em Metaponto, o atum o touro androprosopo era a figuração do poder
em Túrio; o silphium em Cirene); divindades cul­ fertilizador dos rios e assim por diante. Mas porque
tuadas regionalmente ou fundadoras da pólis e os ju sta m e n te m o n stro s são os esco lh id o s para
seus atributos (Taras e o golfinho em Tarento, Atena simbolizar a cidade em issora e não outros heróis
e a coruja em Atenas, Zeus e o raio em Olímpia); ou divindades protetoras?
elementos fonéticamente relacionados ao nome do A resposta a esta questão só pode ser encon­
Estado emissor (a foca OwKq em Focéia, a rosa trada, no nosso ver, através de uma análise da ico­
póóov em Rodes, o aipo oéXivov em Selinonte, a nografia monetária grega feita à luz das práticas
foice ÇáyKÀov em Zancle). religiosas e da religião grega como um todo; através
Estas representações figuradas encontravam da definição de pontos de com paração entre as
seu caminho nas moedas gregas por motivos mui­ imagens monetárias e as outras imagens criadas
to variados. São representações geográficas ou mí- pelos gregos e através da compreensão do objeto
tico-religiosas que de uma maneira ou de outra sa­ “moeda” não apenas como uma medida de valor e
tisfaziam as necessidades do poder político cons­ um instrumento de troca mas como um suporte
tituído fosse ele democrático, oligárquico, tirâni­ especial de imagens religiosas.
co. Assim, eram escolhidos tipos que simbolizavam
a comunidade como um todo, outros que serviam
para divulgar o prestígio de governantes únicos e O que são monstros
outros ainda que se referiam claramente a grupos
pequenos que haviam se instalado no poder da cida­ Comecemos pela definição de monstro. Em
de. A moeda, através destas imagens emblemáti­ português, a palavra monstro designa “tudo o que
cas, foi, durante toda a Antiguidade, um importante é contra a ordem regular da natureza” ou ainda “um
veículo de afirmação política, que ultrapassava os animal que no todo ou em algumas das suas partes
limites mais estreitos do poder emissor e se impu­ se afasta da estrutura ou da conformação natural
nha no mercado diante das outras comunidades, dos da sua espécie ou sexo” (Dicionário da Língua
próximas ou distantes. Portuguesa de Laudelino Freire). Esta é a definição
Do ponto de vista de uma interpretação geral dada também por Festo (146, 32) aos monstros:
como esta - que é comumente adotada para a icono­ “chamamos monstro aquilo que excede os modos
grafia monetária grega e pela qual um tipo monetá­ naturais: por exemplo, uma serpente com pés, um
rio é o emblema de alguma qualidade característi­ pássaro com quatro asas, um homem com duas
ca, de alguma virtude ou vantagem do poder em is­ cabeças, um fígado que se dissolve na cocção” . Já
sor - como encaixar, como entender, a representa­ Lucrécio (V, 837-854 e 878-924) nos diz que mons­
ção de monstros nada benfazejos? Como compre­ tros são, por um lado, os órgãos disparatados, que
ender a im agem do M inotauro das moedas de nascidos da terra estão destinados a perecer imedia­
Cnossos, monstro nascido de uma união entre Posi- tamente, sem responder aos foedera naturai e, de
dão e Pasífae, mulher de Minos, e que, aprisionado outra parte, são as imagens mentais puramente oní­
no labirinto, devorava jovens todos os anos? Que ricas que pela união de elementos heterogêneos fa­
interpretação dar à Quimera das moedas de Sicione, zem crer na existência de seres vivos tais com o os
animal fantástico, meio leão e meio cabra e serpente centauros.
que devastava plantações e que vomitava chamas? Acrescente-se a estas definições o fato de que
E porque a G orgona aparece nas m oedas de em latim, normalmente, a palavra monstra (neutro
Neápolis, o Pégaso nas de Corinto, a pantera alada plural) podia também designar um fato prodigioso,

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FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

um a mensagem ou um aviso dos deuses os quais etnográfica com comunidades caçadoras do norte
valiam -se de uma anormalidade da natureza para da Europa mostraram como este tipo de sociedade
se manifestar (por exemplo, Cícero, De Divina- preservava alguns ossos - o crânio e os ossos longos
tione, 1,93). Neste sentido, é que Festo faz referên­ das pernas - , a pele ou o focinho dos animais caça­
cia ao fígado em pregado pelos áugures para suas dos, partes que eram integradas em rituais propicia-
adivinhações que, anomalamente, se desfazia na dores da preservação da espécie (Bayet, 1974:694).
cocção. Este em prego da palavra monstra remete- Da mesma forma, o chamã que realizava os
nos à própria origem religiosa da palavra e ao en­ rituais indispensáveis ao sucesso das empreitadas
volvim ento destes seres anormais com algum tipo humanas, vestia-se com máscaras ou com a própria
de poder divino (Bayet, 1974: 687). pele do animal, tanto para m im etizá-lo e assim
Entre os gregos, ainda que a literatura e a poder dele se aproximar, quanto para impregnar a
m itologia estejam repletas de seres monstruosos, si próprio e o grupo das qualidades superiores dos
não conseguim os encontrar um termo único que animais, i. e., para melhor ver, melhor escutar, ser
pudesse ser aplicado a todos os seres fantásticos. mais rápido de sorte a poder dominá-los. E preciso
Cada monstro, com a sua disformidade peculiar, lembrar que há pinturas em cavernas da época do
recebia um nome específico, como a Medusa, o paleolítico superior (Caverna de Trois Frères, na
M inotauro, os Hipocampos, a Quimera, e assim França) que representam figuras estranhas, prova­
por diante. Podem receber também um adjetivo velmente seres humanos disfarçados de animais.
como a Equidna que em Hesíodo é definida como Talvez, possam ser vistas aqui as representações
TréÂwpov, isto é, de tamanho exagerado e, portanto, de chamãs com sua indumentária ritual, aparecendo
monstruosa (Teog., 297). De toda forma, é possível como figuras anômalas, misturadas, meio homem,
classificar os “m onstros” gregos em quatro cate­ meio animal. Ainda de acordo com Bayet, são estes
gorias: 1. os seres humanos de estatura simples­ os primeiros monstros, criados voluntaria e artifi­
mente exagerada; 2. seres humanos com alguma cialmente pelos homens (1974: 710).
característica extraordinária, como por exemplo ex­ Em qualquer caso, tanto considerando as pin­
cesso ou deficiência de membros e órgãos normais; turas realistas quanto os rituais em que o chamã se
3. criaturas com binando as formas de dois ou mais apropria dos poderes animais, o que se procura é a
animais; 4. criaturas combinando as formas huma­ eficácia, a consecução de um objetivo definido, a
na e animal (Harvey, 1987: 346). São todos seres caça e a sua constante reprodução.
que possuem poderes especiais, que diferem em O monstro de época clássica descende desta
muito das capacidades puramente humanas. valorização de poderes animais que era tão espe­
Alguns autores foram procurar a origem dos cífica das “civilizações da caça” pois, é através de
m onstros da arte e da literatura grega e romana uma acentuação dos poderes de um ou outro animal
nas chamadas “civilizações da caça” do paleolítico que se define a fórmula desses seres fantásticos de
superior (Bayet, 1974: 687-705). época grega e romana. Estes podem ser definidos
Em uma economia fundamentada na destrui­ como “formas imaginárias de um conjunto pseudo-
ção dos animais para a alimentação e ao mesmo orgânico que evoca um ser com múltiplos poderes,
tempo na sua preservação e continuidade, faziam- não valorizados por atributos, mas que concentram
se necessários alguns procedimentos que garantis­ em seu próprio corpo as forças que não são ofereci­
sem a sobrevivência do grupo. Entre estes procedi­ das pela natureza.” (Bayet, 1974: 722). Mesmo que
mentos encontramos as pinturas realistas de ani­ mais tarde - entre os gregos e os romanos - , estes
mais nas cavernas que foram interpretadas como seres fantásticos tenham suas funções modificadas
uma busca de eficácia na caça: é como se a repre­ e reduzidas e que de seus poderes exclusivos não
sentação realista dos animais mortos criasse as dependesse mais a sobrevivência do grupo, eles
condições necessárias à sua ressurreição, o que era ainda são seres que concentram uma força extraor­
indispensável para a continuidade do grupo. Ao dinária, fora do que a natureza pode proporcionar
representar o animal, vítima nas caçadas, o homem aos seres comuns, força que pode eventualmente
procurava captar suas energias em um desenho, ser dominada pelo homem e colocada à sua dispo­
possibilitando que ele continuasse vivo. sição.
Por outro lado, as escavações arqueológicas O monstro é, então, um ser que soma as quali­
em sítios do paleolítico superior e a com paração dades do homem ou de um animal àquelas de um

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Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

outro ser e que por isso possui poderes incomuns. a imagem tinha o poder de fixar determinadas ener­
O que é um pégaso a não ser um cavalo que dotado gias; de colocá-las sob controle e ao mesmo tempo
de asas aumenta ainda mais sua velocidade? O que de propiciá-las. Esta crença fundamentava-se na
é o M inotauro, além de um homem que dotado de crença comum entre os povos pré-industriais - e
um a cabeça de touro, dá maior intensidade à sua os gregos não eram uma exceção - de que certos
força bruta ou à sua força de fertilidade ? Ou a objetos como as pedras, as plantas, os animais ou
Q uim era que reúne em um único organismo as mesmo qualquer objeto fabricado pelo homem, po­
qualidades de três animais? deria ter - devido a circunstâncias particulares -
um poder ou uma energia interna denom inada co-
A “eficácia” da imagem mumente pelos antropólogos como maná. De acor­
do com a mesma crença, uma imagem pode su­
Outro traço que nos interessa nas pinturas bstituir em alguma medida a “energia” de um obje­
realistas feitas no interior das cavernas em época to. Assim a representação de uma lança, de um
pré-histórica, diz respeito à eficácia de uma repre­ raio, de uma espiga de trigo, de um animal, e, por­
sentação figurada. Trata-se da questão de que os que não, de uma divindade, estariam igualmente
antigos atribuíam certos poderes às imagens; que impregnadas de energia. Através da representação
esperavam algum tipo de ação delas, da mesma de um objeto ou de uma divindade, o homem proce­
forma que tinham a expectativa de que os rituais dia a uma recarga ritual da sua energia intema. Da
que executavam para os deuses fossem eficazes. mesma maneira que um sacrifício ou um a libação
Entre essas imagens, as imagens dos monstros ti­ repetiam ritualisticamente um episódio mítico, re­
nham uma eficácia própria. novando sua eficácia e força. (Eliade, 1954: 31-
Mas, que tipo de eficácia os gregos, especifi­ 35).
camente, esperavam das imagens? No caso da Gré­ M uitos outros rituais tam bém tinham essa
cia pré-clássica, acreditamos que ela estivesse mui­ função de fixação e de controle de energias -
to ligada à forma de religiosidade que nesta época Saipóvia - que poderiam tomar-se perigosas. Entre
seguia basicamente o princípio do do ut abeas, ou os gregos (e entre muitos povos, mesmo em época
seja “eu dou para que você possa ir embora e ficar contemporânea) é necessário, por exemplo, enterrar
longe” e não a fórmula que mais tarde predominou o morto de acordo com rituais determinados para
na Grécia do do ut des segundo a qual “eu dou que sua “alma” não vague solta pelo mundo fazen­
para que você me dê” (Harrison,1961: 7). Assim, do o mal para os vivos (Kurtz e Boardman, 1971).
podemos dizer - de uma maneira simplificada - A mesma crença está por trás do costume - docu­
que rituais, sacrifícios, libações estavam vincu­ mentado na Grécia desde época arcaica - de erigir
lados à vontade de afastar possíveis males provo­ um troféu depois de vencer uma batalha, usando
cados por forças desconhecidas, espíritos, fantas­ para tanto as armas dos vencidos para que suas
mas, demônios - ôaip ó v ia - como os gregos cha­ “almas” fossem “presas”, colocadas sob controle,
mariam. O caráter de proteção da religião grega e não voltassem para uma vingança sobre os vito­
nesse período, se não predominava, era responsável riosos (Picard, 1957: 25-26).
por uma boa parte dos rituais realizados e, sem Em seu estudo sobre o poder mágico das está­
dúvida, por uma boa parte das imagens criadas tuas na Grécia arcaica e clássica, Faraone (1992)
(Faraone, 1992: 10). demonstra como os gregos acreditavam na força e
Mas através de quais mecanismos poderia ser no poder destes objetos. Segundo os estudos deste
atribuída “eficácia” protetora às imagens? Nas autor, na Grécia clássica, estátuas de deuses e de
cavernas do paleolítico superior, supõe-se que o outras divindades podiam aparecer danificadas pro­
realismo das representações garantia a reprodução positadamente, como para eliminar o seu poder.
dos animais mortos, protegendo, portanto, o grupo Outras vezes, estátuas eram colocadas nos limites
da escassez de caça. Como vimos, a representação da cidade com a finalidade clara de afastar os inimi­
fiel do animal vivo parecia querer mostrar que ele gos - com o a estátua de A poio m irando suas
sempre estaria vivo, à disposição do caçador. A flechas envenenadas em direção oposta à da cidade,
pintura conservaria, assim, a energia do animal. ou seja contra eventuais inimigos (Faraone, 1992:
É possível dizer que entre os gregos, assim 61-62). Muitas delas eram posicionadas às portas
como entre os homens das “civilizações da caça”, das casas ou em cruzamentos (id.: 7). Outras eram

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Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

ainda trancadas em templos a fim de que suas ener­ fazejas” que fossem, sempre tinham um lado aterro-
gias maléficas não se espalhassem (id.: 74 e ss.). rizador. Quando enfurecidas podiam trazer à pólis
Ao conceber um a imagem , o hom em traça grandes desgraças, com o a fome, as epidemias, as
cada detalhe, mede, calcula cada proporção e, por­ pragas. Inútil lembrar aqui os numerosos exem ­
tanto, aprende a conhecer e assim a controlar o que plos de deuses que, contrariados por alguma ação
está reproduzindo. Uma imagem carregada de ener­ humana, revelavam o seu lado terrível. Zeus, Apo-
gia, deve ser, sem dúvida eficaz. Ao representar lo, Atena, Ártemis, Deméter, enfim, praticam ente
um objeto (uma arma, um escudo, uma espiga) ou todas as divindades do panteão grego tinham pode­
um a divindade, a sensação deve ser de controle res que podiam ser dirigidos para um lado e para
sobre aquelas energias representadas, de ordenação outro. Todas eram divindades que deviam ser invo­
destas energias e de eventual uso em favor próprio. cadas, propiciadas; todas precisavam ter seus pode­
Ainda um outro conceito deve ser lembrado res e energias controladas, colocadas “a favor”, exa­
com relação à eficácia de uma imagem. Trata-se tamente como os monstros.
do raciocínio - característico da religião antiga - de No caso das representações monetárias, acre­
que alguém pode com bater uma energia indese- ditamos que os antigos gregos, ao escolher os tipos
jada com um a energia igual a ela. Como se fôsse­ que iriam figurar em suas moedas, agiam segundo
mos com bater o fogo com o próprio fogo; o princí­ esse princípio básico da eficácia da imagem. Na
pio que em latim se exprime através da locução moeda, emblema da comunidade ou do poder cons­
similia sim ilibus curantur ou em inglês like ban- tituído, a imagem adquiria uma dupla função: não
ning like (Faraone, 1992: 36-38 e Siebers, 1983: 1 apenas identificava o poder em issor a uma força
e ss.). Existem inúmeros testemunhos seja de época divina ou extraordinária, como também invocava
arcaica, clássica ou helenística, que mostram como esta força para a proteção deste.
os gregos se valiam deste tipo de procedimento para Muitos dos tipos monetários da Grécia arcaica
afastar certos tipos de problemas. O exemplo mais e clássica - inclusive a representação de monstros
elucidativo e nítido é o da cabeça da Gorgona: - podem, sem dúvida, ser inseridos neste mesmo
Perseu carregava a cabeça maltratada de Medusa contexto de fixação e propiciação de poderes extra­
como uma prova de que ele a matara e ao mesmo ordinários. Vejamos alguns exemplos. Ao represen­
tempo a fim de proteger-se e afugentar quem o per­ tar a deusa Atena em suas emissões, não estaria a
seguia. M ais tarde, ele a dá para Atena, sua prote­ pólis de Atenas invocando a deusa, propiciando-a
tora, que a coloca em sua égide, tornando-se o e, ao mesmo tempo, tomando os poderes dessa di­
exemplo mítico que será repetido cada vez que o vindade como seus próprios? Qual era a expectativa
gorgoneion é colocado sobre um escudo, equipa­ dos acragantinos de Agrigento na Sicília ao repre­
mento militar defensivo, por excelência. sentar em suas moedas a imagem da águia de Zeus
O mesmo conceito está por trás do caráter no ato de estraçalhar uma presa? Não era esse um
protetor que era atribuído ao espelho no mundo meio de propiciar o deus, reconhecendo os seus
grego e romano e em muitas outras sociedades. Um poderes e invocando a sua proteção? Um outro
espelho colocado à porta, supostamente deveria exemplo, que vem da cidade de M etaponto con­
afastar - ao refletir a mesma imagem - os males firm a esta interpretação. Em muitas moedas dessa
que por ali se apresentassem (Budge, 1978: 489). cidade aparece a imagem nítida de um gafanhoto
pousado sobre uma espiga de trigo. Metaponto esta­
va localizada, como se sabe, em uma das regiões
O caráter apotropaico m ais férteis da M agna G récia e seu principal
das im agens m onetárias produto, inclusive para exportação, era o trigo. Ora,
todos sabemos que o gafanhoto é uma praga que
Se inserirm os as representações monetárias aterroriza qualquer agricultor. De que outra manei­
neste contexto mais amplo da religião e da magia ra, portanto, entender esta representação a não ser
gregas, veremos que as representações de monstros como um exorcismo contra a praga?
fazem tanto sentido quanto aquelas de divindades Os princípios da eficácia protetiva da imagem
políades ou de seus atributos. e do “símile bane o sím ile” podem ser aplicados
Devemos considerar que também as divinda­ da mesma maneira na interpretação dos tipos m o­
des olímpicas por mais generosas e, digamos, “ben- netários que trazem a imagem de monstros. Não

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FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Re v. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

seria a representação do Minotauro uma fixação questões levantadas pela moeda como objeto im­
da fúria desse monstro e uma maneira de afastar pregnado de magia.
os males da cidade de Cnossos? Não teria a imagem Com efeito, a moeda desde a sua origem possui
da Q uim era das m oedas de Sicione a m esm a um duplo aspecto. De um lado tem funções econô­
função? E o touro androprosopo identificado aos micas definidas, como instrumento facilitador das
rios das cidades, imagem tão comum em várias trocas e como medida de valorização de mercado­
cunhagens da Sicília e da Magna Grécia, não seria rias. Funções estas conhecidas e que não nos inte­
uma tentativa de atrair para os cursos de água da ressam aqui diretamente. Por outro lado, a moeda
cidade a potência fertilizadora dos touros, prote­ já nasce entre os gregos modelada por aspectos má­
gendo a população de secas e da conseqüente falta gicos e religiosos. Aliás, em praticamente todas as
de alimentos? Na verdade, toda representação de sociedades humanas, os objetos que intervem nas
monstro em moeda pode ter uma explicação seme­ trocas - pedras, plumas, sementes - e que portanto
lhante a esta. “transformam-se” em outros objetos indispensáveis
Não podemos ignorar, entretanto, que cada à vida, são vistos como manifestações de um poder,
imagem monetária tem uma justificativa específica. de uma força especial, diferente daquela que a
Como vimos, nada mais natural que Atena fosse posse de coisas comuns oferece às pessoas. Com
representada nas moedas de Atenas, ou Zeus na­ efeito, já no começo do século, M auss chamou a
quelas de Olímpia, ou Taras nas de Tarento. A esco­ atenção para a magia inerente aos objetos conside­
lha de monstros como representação monetária, rados valiosos do ponto de vista econômico, do
deve também possuir justificativas pontuais em ponto de vista de sua importância ou raridade para
cada uma das oficinas emissoras de moedas. Assim um determinado povo (Mauss, 1923-24).
o Minotauro é representado nas moedas de Cnossos Tomemos a moeda, em primeiro lugar, quanto
e não em outras moedas; a divindade fluvial Gelas à matéria prima de que é feita, o metal. No M edi­
- um touro androprosopo - é representada na cida­ terrâneo especificamente, o metal, desde muito
de de Gela, e não em outro lugar; o Pégaso aparece antes da criação das moedas no último quartel do
nas moedas de Corinto já que de acordo com algu­ século VII a.C., possuía um enorme valor. A rarida­
mas tradições havia sido domado por Belerofonte de deste material na área, a especialização requeri­
na região; a pantera alada, pela tradição, guardiã da para o seu trabalho, e mais ainda, a sua grande
das minas do norte, aparece em moedas de Pantica- maleabilidade e a durabilidade e a eficiência dos
peum às margens do Mar Negro, e assim por diante. objetos com ele fabricados, tornavam-no muito va­
Mas há uma explicação global, que torna as lioso. O grande classicista L. Gernet, preocupado
representações de monstros em moedas tão ‘nor­ com a noção mítica do valor entre os gregos, de­
m ais’ quanto a de qualquer outra divindade. Esta monstrou como objetos metálicos encontravam-se
explicação se encontra na própria religião grega, no centro de importantes mitos, como aqueles de­
na crença de que uma imagem podia ser carregada senvolvidos em tom o do colar de Erifila, o anel de
com a energia dos objetos ou das divindades Policrates ou o tripé dos Sete Sábios (Gernet, 1948).
figuradas. No caso específico da moeda, devido ao Outro ponto a ser considerado é que grandes
seu caráter emblemático, a eficácia esperada tinha quantidades de metal cunhado ou metal bruto foram
um caráter protetor, independentemente de ser ela depositadas em templos e santuários em todo o
um monstro ou uma divindade olímpica. E este, mundo grego, nos períodos arcaico, clássico e
no nosso entender, o traço comum que está por trás também helenístico. Por uma questão de segurança
da escolha das representações de monstros nas ou por uma questão religiosa, o metal, fruto de taxas
moedas da Grécia antiga. cobradas ou de oferendas, misturava-se aos bens
de uma divindade. Os templos e santuários funcio­
navam como repositórios das riquezas em metal
O caráter apotropaico das cidades, ofereciam a elas em préstim os e,
das moedas como objeto portanto, funcionavam em muitos casos como ver­
dadeiros “bancos” (Bogaert, 1968: 279 e ss.). Os
Nossas observações sobre a representação de monarcas helenísticos entre tantos outros com an­
monstros nas moedas gregas ficariam prejudicadas dantes militares, quando necessitados de recursos
se não tocássemos, ainda que rapidamente, nas para dar continuidade às suas campanhas, não he­

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Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

sitaram em assaltar templos e santuários. O castigo culo através da estátua de Hermes no mercado de
divino não tardava também em acometê-los: suas Farai, era preciso depositar uma moedinha de bron­
frotas eram destruídas, seus exércitos atacados por ze (VII, 22, 2). Escavações arqueológicas têm tra­
epidemias (por exemplo, Diod.Sic. 27,4,3, sobre o zido à luz inúmeros achados de moedas esparsas
ataque feito por Pirro ao templo de Perséfone em depositadas em pequenos santuários agrestes, loca­
Lócris e o conseqüente castigo). lidades sagradas, bicas de águas, fontes naturais
Havia, portanto, qualquer coisa de sagrado a de águas termais, pequenos lagos ou bosques. Tam­
respeito do dinheiro, da riqueza contada em metal bém nos recintos sagrados de grandes santuários
na antiguidade grega. como os de Olímpia, Delfos e Dodona, foram en­
No caso das moedas propriamente ditas, i.e., contradas moedas de pouco valor, sem dúvida de­
estes pequenos discos metálicos com impressões positadas como oferendas a alguma divindade, na
gravadas de ambos os lados, há mais do que sim­ expectativa de uma proteção contra algum mal. Es­
plesmente o metal e a imagem. Aprofundando-nos tas moedas são, na maioria, peças que estavam em
no estudo dos usos que os antigos gregos faziam circulação no momento do depósito ou então pe­
destes objetos, veremos que além de instrumento ças fora de uso, danificadas, obliteradas. Outras
de troca e de m edida de valor, a moeda podia ser ainda, eram fabricadas nos grandes santuários para
usada com o um amuleto ou como um talismã. a finalidade específica de serem ofertadas e eram
A função destes objetos é a de proteger o por­ possivelmente adquiridas pelo ofertante no próprio
tador de qualquer malefício (amuleto) e de acentuar local (Gorini, 1978: 89).
a sua potencialidade e sorte, trazendo-lhe benefícios Vale a pena ressaltar, ainda, como também as
(talismã). Amuleto e talism ã são os dois lados de moedas podem ser aproximadas de objetos que fo­
uma mesma crença. O amuleto é fabricado para ram fabricados na antiguidade grega com a função
repelir o que é prejudicial e o talismã para incitar exclusiva de servir como amuleto. Refiro-me em
o que é benéfico. O uso deste tipo de objeto - amu­ especial às gemas gravadas, cuja destinação era, na
leto ou talism ã - repousa na crença de que as quali­ maior parte das vezes, o engaste em jóias, especial­
dades de um a coisa pode ser transmitida a quem a mente anéis. Com relação a esse tipo de objeto existe
usa pelo contato (Gaster, 1987: 243-246). uma bibliografia exaustiva, sendo o texto de Bonner
Ora, são inúmeras as referências a moedas (1950) o que primeiro classificou de modo mais ri­
utilizadas dessa maneira na Antiguidade. Em pri­ goroso os diferentes tipos destes amuletos. É preci­
meiro lugar, chamamos a atenção para as moedas so lembrar que os anéis, de forma geral, eram usa­
encontradas em contextos arqueológicos que tra­ dos não apenas para afastar o mal como também
zem perfurações. Estas foram algumas vezes inter­ para atrair o bem. O poeta cômico Antifanes (s. IV
pretadas com o “testes” da qualidade do metal. a.C.) menciona um anel desse tipo: “Não há nada
Entretanto, estes testes eram executados de muitas de errado comigo, e espero que não haja; mas, se
outras maneiras como, por exemplo, a raspagem depois de tudo meu estômago ou meu umbigo virar,
das bordas de uma peça ou a retirada de pequenas eu tenho um anel, comprado de Fertato por uma
porções de sua superfície. É muito mais provável dracma” (fr.177 Kock, citado por Bonner, 1950: 4).
que as p erfurações regulares encontradas em No Pluto de Aristófanes, o Homem Justo, quando
m oedas gregas, assim com o aquelas da Idade ameaçado por um chantagista, retruca: “Não dou a
M édia (época para a qual existem quer documentos mínima para você; estou usando este anel compra­
materiais quer textuais sobre o assunto), tenham do de Eudamos por uma dracma” (Pluto, 883, id.).
tido o propósito de prender a moeda junto ao pesco­ A com paração das gemas gravadas com as
ço, tornozelo ou punho (Gorini, 1978: 83). moedas ocorre em primeiro lugar pela proxim ida­
Um outro uso da m oeda com funções de am u­ de das técnicas de fabricação; gem as e cunhos
leto/talismã é atestado na Grécia antiga através tan­ (matrizes) monetários são gravados pelo mesmo
to de achados arqueológicos quanto de textos de tipo de artista ou artesão, provavelmente com as
autores antigos. Pausânias, por exemplo, cita expli­ mesmas ferramentas (Breglia, 1963: 154). As fi­
citam ente com o as pessoas curadas por conselho guras são pequenas - minúsculas até - , devem ade­
oracular depositavam moedas de ouro ou de prata quar-se ao contorno oval ou redondo das peças e
na fonte junto ao santuário de Anfiarau, em Oropos são gravadas no negativo, isto é, ao contrário. Uma
(1,34,3); ou ainda como para se obter um bom orá­ matriz de moeda destina-se a im prim ir o em blem a

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de um poder político em um disco metálico. As No caso dos amuletos mais recentes, do perío­
gemas gravadas - em especial as que eram engas­ do romano, foi dem onstrada a necessidade que ti­
tadas em anéis - serviam como sigilo do proprie­ nham de ser “consagrados” para que realmente ti­
tário e eram, portanto, também um emblema. vessem poder. Através de fórmulas mágicas, um
Existem gemas gravadas datadas desde as épo­ oficiante procedia à transmissão de poderes especí­
cas minóica e micênica. Especialmente no período ficos para cada um dos amuletos, de acordo com a
arcaico, são muito comuns as representações de finalidade desejada. Com relação às moedas e mes­
seres fantásticos, de monstros, de divindades e de mo aos anéis de metal, não possuímos elementos
alguns animais. A função mágica das gemas é, en­ que permitam afirmar com segurança que passas­
tretanto, atestada com segurança apenas a partir sem por esse ritual. Entretanto, entendemos que a
do século I da nossa era, quando as imagens grava­ função apotropaica desses objetos não fosse a única
das passam a ser acompanhadas por fórmulas ou e que, portanto, este tipo de “consagração” não era
dizeres “mágicos” como “concede-me uma graça”, totalmente indispensável. Um escudo portador do
“dai-me a vitória”, etc. Contudo, segundo Bonner, gorgoneion também não devia ser consagrado ri­
não seria abuso de imaginação enxergar um sentido tualmente antes de seu uso; nem por isso a imagem
mágico mesmo nessas gemas de época bem ante­ do gorgoneion deixa de ser apotropaica.
rior ao século I: representações de Apoio, Hermes
e Héracles provavelmente “eram usadas por atletas
para conseguir sucesso em seus jogos” e imagens Conclusões
de “animais fortes e ligeiros tomaram-se populares
por razões semelhantes” (Bonner, 1950: 6). Em Segue-se ao que acabamos de expor que se qui­
época romana, mesmo que muitas gemas trouxes­ sermos compreender a moeda na Antiguidade gre­
sem inscrições, certas representações - especifica­ ga é indispensável considerá-la sob diferentes as­
mente de monstros - bastavam-se a si próprias (Bon­ pectos. Além de uma função econômica como ins­
ner, 1950: 7). A imagem sem inscrições do gênio trumento de troca e como medida de valor a moeda
que possui a cabeça de galo, o tronco de homem e os participava - de modo consciente ou inconsciente -
pés de serpente é, por exemplo, muito comum nas de um conjunto mais amplo de objetos que estavam
gemas greco-egípcias (Delatte e Derchain, 1964:25). impreganados de funções religiosas e mágicas.
Se levarmos em conta o conservadorismo dos À própria imagem escolhida pelo poder emissor
rituais e da religião de modo geral, é muito provável para ser gravada nas moedas subjazia um caráter apo­
que Bonner tenha razão ao atribuir um caráter mági­ tropaico, que ao fixar uma energia divina invocava
co mesmo às gemas gravadas que não possuem ins­ proteção. Seres fantásticos ou monstruosos, que des­
crições e que datam de época anterior ao século I a.C. de a sua origem mantinham um relacionamento com
Ainda com funções de amuleto e de talismã, os forças supematurais, figuravam normalmente como
anéis metálicos sem engaste de gemas também asse­ emblemas cívicos nas moedas tanto quanto qualquer
melham-se, do ponto de vista iconográfico, às repre­ outra divindade políade. Como vimos, as representa­
sentações monetárias. M.-A. Zagdoun, classificando ções de monstros atuavam no interior da magia sim­
cerca de 300 anéis de ferro e de bronze encontrados pática cujo princípio básico do “símile bane o símile”
em escavações arqueológicas em Delfos, registrou a ressaltava a eficácia protetora deste tipo de imagem.
presença de inúmeras imagens praticamente idênti­ Além da intenção do poder emissor ao escolher
cas às imagens de moedas. Esses anéis foram encon­ um determinado tipo monetário para representá-lo, a
trados em contexto datado do século IV a.C., à entra­ moeda, ao entrar em circulação, adquiria muitas ve­
da de uma gruta consagrada a Pan e às Ninfas zes, nas mãos dos usuários, poderes especiais. Servi­
(Zagdoun, 1979: 113). Eles trazem a representação am de amuleto ou talismã quando penduradas a cor­
da cabeça de boi, típica das moedas da Fócida do dões no pescoço, braço ou perna; eram ofertadas em
mesmo período; da abelha; de Héracles com a cor­ santuários ou jogadas em fontes a fim de propiciar
nucopia; de Niké coroando um troféu; de Tétis sen­ uma divindade. O poder liberatòrio da moeda ofere­
tada sobre um hipocampo. Para todos esses modelos cia, por fim, ao seu possuidor um poder diferente
iconográficos a autora foi capaz de encontrar para­ daquele que a maioria dos outros objetos ofereciam:
lelos muito próximos na cunhagem grega do perío­ ele podia transformá-la em outros objetos que neces­
do, seja da Grécia continental seja da área colonial. sitasse ou trocá-la por uma proteção supematural.

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FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

Prancha I - 1. Cnossos. Minotauro correndo. S. /SN GCop. 368]; 2. Sicione. Quimera. S.IV a.C. [M A E /
USP 75/d.l.2]; 3. Gelas. Divindade fluvial Gelas. S. /M A E/U SP66/4.2/; 4. Corinto. Pègaso. /M uBB
49]; 5. Abdera. Grifo. S. VI-V a.C. [BM doubles, 1528]; 6. Quios. Esfinge. S. [M H N 18.2]; 7. Idalion
(Chipre). Esfinge. [B M doubles,2758]; 8. Siracusa. Hipocampo. S. IV a .C . /M H N 11.62]; 9. Neápolis
(M acedònia). Gorgoneion. Moeda perfurada. [B R 62]; 10. Abdera. Grifo. /M H N 13.19]; 11. Macedònia.
Gorgoneion no interior de escudo macedònico. S. lll-I l a.C. /B R 25#/; 12. Panticapeum. Grifo. S. IV
a. C. [B M doubles, 1639]; 13. Samos. Javali alado. [B R 88].
Abreviaturas: MHN - Museu Histórico Nacional/ Rio de Janeiro; MuBB - Museu e Arquivo Histórico do Banco do Brasil/ Rio
de Janeiro; M A E /U SP - Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo; BR - Coleção Bernardo Ramos/
Manaus; BM doubles - M onnaies grecques antiques provenant des doubles du British Museum des collections de feu le
général A .L.Bertier de la Garde et de divers autres amateurs. Genebra, Naville, 1923; SNGCop. - Sylloge Nummorum
Graecorum. The Royal Collection o f Coins and Medals. Danish National Museum. Vol. 3, Greece: Thessaly to Aegean
Islands. Republicação pela Sunrise Publications, N. Jersey, 1982.

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FLORENZANO, M.B.B. Anotações sobre a representação de monstros nas moedas gregas. Re v. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

Prancha II - 1. Atenas. Atena/Coruja. S.V a.C. /BM doubles, 1984]; 2. Elis. Cabeça de águia/raio
alado. S.V a.C. /B M doubles, 2200]; 3. Acragas. Aguia dilacerando presa/caranguejo e pistrix. S. V
a.C. /M H N 10.12]; 4. Metaponto. Espiga com gafanhoto/Aqueloo sacrificando. S.IV a.C. /N oe e
Johnston, 3111/2]; 5. Neápolis. Gorgoneion (ampliação); 6. Metaponto. Espiga com gafanhoto (ampli­
ação); 7. Macedônia. Gorgoneion no interior de escudo macedônico (ampliação).
Abreviaturas: MHN - Museu Histórico Nacional/ Rio de Janeiro; BM doubles - Monnaies grecques antiques provenant des
doubles du British Muséum des collections de feu le général A.L.Bertier de la Garde et de divers autres amateurs. Genebra,
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Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

FLORENZANO, M.B.B. Monsters as coin types in Ancient Greece. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 5: 223-234, 1995.

ABSTRACT: If we wish to understand the true character of Greek coins, we


are forced to consider it under its several aspects. Besides being a measure of value
and an instrument for exchange, coins belonged to a whole set of objects used with
magical and/or religious purposes. First of all, we can consider coin types apotropaic
in a sense that they were not ju st plain representations but were expected to have a
special efficiency. From this point of view, the representation of monsters would
act as a means to fix the m onster’s energy and at the same time fight it, under the
general principle of sympathetic magic of “like banning like” . On the other hand,
as objects, coins could be used as amulets and/or talismans, when hanged around
the neck. Coins could also be offered in sacred places and thus be considered as a
protective devices against eventual misfortunes.

UNITERMS: Apotropaic functions of coins - Represention of monsters and


the evil eye - Coins as amulets.

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R ecebido para publicação em 5 de dezem bro de 1995.

234
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

A COLEÇÃO CIPRIOTA DO MAE-USP: OS EXEMPLARES


DA IDADE DO BRONZE

Ana Claudia Torralvo*


Alvaro Hashizume Alle grette**

TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A. H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da


Idade do Bronze. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

RESUMO: Este artigo contém o estudo de quatro peças datadas da Idade do


Bronze pertencentes à Coleção Cipriota do M AE-USR Estas peças representam
momentos importantes na evolução cerâmica da cultura cipriota e refletem um
universo mais amplo onde Chipre figura como um ponto de convergência e difusão
entre o M editerrâneo oriental e ocidental.

UNITERMOS: Chipre - Enkomi I apithos - Cerâmica - Cronologia.

Introdução cimento da cultura micênica em Creta, já durante


os séculos XIII e XII a.C. (M apa 2). Mesmo sob a
A Coleção Cipriota do M AE-USP chegou ao influência desses contatos permanentes, Chipre de­
Brasil, doada pelo Museu de Nicósia - Chipre, em senvolveu uma cultura própria, manteve suas tradi­
1965. Pertencente ao Serviço M editerrânico e Mé- ções e participou ativamente da formação da cultu­
dio-Oriental desse museu, demonstra, a partir de ra ocidental.
exemplares que datam dos séculos XIX ao XVI Essa coleção apresenta quatro exemplares que
a.C., o papel preponderante de Chipre nos contatos cobrem as três fases da Idade do Bronze em Chipre,
entre o M editerrâneo ocidental e oriental (Mapa os quais serão analisados a seguir. Utilizaremos
1). Economicamente, a ilha esteve ligada, num pri­ as seguintes abreviaturas no decorrer do texto: RP
meiro momento, ao comércio oriental mantendo = Red Polished e W P = W hite Painted.
contatos com o Egito e a costa leste do M editerrâ­
neo, ou seja, Síria, Palestina e Anatólia. Depois, Catálogo
com a ascensão dos minóicos e a participação de
Creta no com ércio oriental, a posição estratégica
Jarro R ed P olished II (Inv. M A E - 65/1.2) (Figura 1)
de Chipre a tom a um ponto obrigatório de passa­
gem para as rotas com erciais que agora chegavam Quanto a seu estado de conservação apresenta-se como
a Creta. Esta posição solidifica-se com o estabele­ uma peça inteira, estando o gargalo e a borda restaurados.
Trata-se de uma vaso feito a mão e cozido, de superfície polida
e lisa, riscada, sem antiplástico visível. A argila apresenta
(*) Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia uma textura homogênea cinza rosada 5 YR 6/2 e 7,5 YR 7/
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2, castanha avermelhada clara 5 YR 6/3, engobo vermelho
Pós-Graduação, doutoramento.
(**) Membro estrangeiro da École Française d’Archéologie
d’Athènes. Departamento de Antropologia da Faculdade de (1) Para todas as peças constantes deste catálogo, foi utilizada
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São a tabelaMunsell Soil Colour Charts (1975) (Munsell Colour,
Paulo. Pós-Graduação, doutoramento. Baltimore).

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Cabo Andreas-Kastros

Mapa 1 - A ilha de Chipre durante a Idade do Bronze.

claro 10 R 5/3; interior do gargalo coberto de manchas ene­ categoria, porém não estamos seguros de sua pos­
grecidas na argila, sem pintura e extremamente riscada. São sível inserção na classificação cerâmica do Bronze
visíveis sinais de desgaste, com desaparecimento do engobo
Médio. A comparação com o material proveniente
e granulação da superfície na alça, na porção do gargalo opos­
ta à alça e na parte posterior do corpo. E um vaso sem pé, das necrópoles de Vounous-Bellapais (Dikaios,
com base plana, corpo ovóide invertido, gargalo tronco-cô- 1940) e de Philia mostra que determinados traços
nico, borda extroversa e alça vertical anular ligada ao garga­ são bem característicos do período, mas se tratando
lo e ao ombro; nota-se um pequeno botão no ombro, à direita de cerâmica comum não torneada e não decorada
da alça; a alça se fixa no gargalo pela sua inserção na parede,
é sempre difícil estabelecer uma homogeneidade
atravessando-a até surgir no interior do vaso; a pança é mais
protuberante na porção oposta à alça (Figura 2).
de traços tão claramente como para o material tor­
Este vaso mede 38,7cm de altura total e 25,3cm de neado e/ou decorado. Uma dúvida permanece devi­
diâmetro na pança. Foram identificados paralelos em: SCE do à questão da existência de um corpo globular
IV A l - jarro (jug), RP II, fig. LXXVI 1 (Cipriota Antigo extremamente alongado, o qual não é tão caracte­
II - III c. 2400-1800 a.C.), tipo IB ]lbb l. rístico no RP II como o foi na categoria do período
Este vaso pode ser situado sem receio dentro anterior, RP I. Um paralelo possível é oferecido
da tradição do Red Polished II, embora certos traços por Mac Laurin, a partir de uma peça da região
não pareçam ser completamente compatíveis com Centro-Sul da ilha (Mac Laurin, 1985).6
esta categoria, como ocorre com a associação do
bojo ovóide a um gargalo alongado tronco-cônico.
em sua identificação, na medida em que dispomos apenas de
Estes traços não pertencem especificamente a esta
dados sumários relativos a cada vaso (cf. prs. XV, Ia fileira,
peças 2 e 3; XVI, 2a fileira, n° 4 e XXVII, 2a fileira, n° 4).
(4) Cf. pr. XLIL, n° 1 e 3.
(2) Observou-se no gargalo, sob a alça, a seguinte anotação (SjC f.SC E IV 1A, pr. LXXV, n. 10, jarro tipo IB a3 do RPI e
dos registros originais de Chipre: C.(R/B) (2) 34.9/6(2). Frankel, CCA 7, peça 53, jarro tipo IB a3, RP I, p. 23 e 139, pr.
(3) Em SCE I, podemos verificar a presença de séries de jarros IV; ambos do Cipriota Antigo II-III.
com características similares, porém sem uma maior precisão (6) Cf. jarro, n° 4, fig. 10.

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

M apa 2 - 0 M ar M editerrâneo e a ilha de Chipre em seu contexto oriental.

Esta produção foi primeiramente identificada não havendo material originário de assentam en­
por M yres em 1899, classificada por Gjerstad em tos. Tal situação se alterou em 1974, quando no­
1926 e analisada quanto à fabricação, formas e vas escavações de tumbas e assentam entos em
características regionais por Stewart em 1962. No outras partes da ilha mostraram uma variação re­
entanto, todo o material estudado era essencialmen­ gional mais ampla do que a prevista pelos antigos
te proveniente de tumbas da parte norte da ilha, pesquisadores.

(7) E, mesmo assim, tais tumbas não oferecem muitas possi­ perturbação por novos enterramentos, fenômenos naturais e
bilidades de estudo, desde que houve a utilização coletiva e a saques.

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fig. 1 —Jarro Red Polished II - M AE 65/1.2

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fig. 2 - Perfil do Jarro Red Polished II - M AE 65/1.2 (por Ana Claudia Torralvo).

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Tigela R ed P olished I I B (Inv. M A E - 65/1.3) (Figura 3) gargalo é côncavo levemente curvado na borda. A argila é
modelada a mão, clara com engobo muito fino, apresenta uma
Apresenta-se como uma peça inteira, com lascado na restauração na borda e no gargalo. A decoração é composta,
borda, possível quebra de saliência na borda, desgaste da su­ no bojo, por linhas negras que se entrecruzam diagonalmente
perfície e concreções. Trata-se de um vaso feito a mão e cozi­ (em alguns pontos, passou a marrom); no gargalo são cinco
do com superfície externa lisa e polida, pintura vermelho es­ círculos paralelos (Figura 6).
cura 10 R 3/6 na base e na parte inferior do corpo; castanho O jarro possui uma altura de 12,05cm e uma largura
avermelhada escura 5 YR 3/3 no corpo (parte mediana) e máxima, tomada no bojo, de 7,30cm; a espessura da parede
cinza escura 7,5 R 4/0 preta na borda. A argila de coloração do vaso varia de 0,3cm na borda a 0,5cm no bojo.
castanho acinzentada 10 YR 5/2 e castanho acinzentada Quanto à coloração, o fundo claro é representado pela
escura 10 YR 4/2, com áreas de desgaste castanho aver­ tonalidade M71 - 10YR 7/4 (Brun très pâle). A pintura ne­
melhada clara 5 YR 6/3; a superfície interna é negra com gra equivale à tonalidade S73 - 2,5Y 4/0 (G ris foncé) e,
pontos de cor branca 2,5 YR 9/0, além de sedimento negro, onde passou a marrom é P35 - 5YR 5/3 (Brun rouge').
talvez resultante da degradação da superfície. Na parede ex­
terna média a coloração é vermelho escuro 10 R 3/6, com Tanto sua forma quanto a técnica utilizada para
pasta cinza avermelhada 5 YR 5/4, concreções rosadas 7,5 sua execução são descritas por Gjerstad, enqua­
YR 5/4 e castanhas muito claras 10 YR 8/3. É um vaso sem drando-o perfeitamente na categoria por ele estabe­
pé, com base convexa, corpo semi-hemisférico, borda reen- lecida, W P IV como descrito anteriormente na pu­
trante arredondada de linha irregular, pega arredondada ver­
blicação do catálogo sistemático do museu (Sarian,
tical sobre a borda, pequena saliência triangular canelada
quebrada na face externa da borda; a alça não é vertical, mas 1967: 23, n°4 e fig. 4 na p. 22 direita).
diagonal (Figura 4). Apresenta 9 ,lc m de altura total e Segundo Gjerstad, tais jarras de corpo globu­
15,26cm de diâmetro máximo. Foram identificados paralelos lar, gargalo estreito e côncavo e alça da borda ao
em SCEIV A l - tigela hemisférica com pega e alça, interior bojo são, em sua essência, correspondentes àque­
e bordas negras (knob-lug bowl), RP IIB, fig. CXXXIX 29
las do estilo Black Slip II e WP III, contudo, como
(Cipriota A ntigo I I - Cipriota M édio I c. 2400-1750), RP
IIB, fig. C XXXIX 33 (C ipriota A ntigo II - Cipriota A n­ pode ser observado na jarra em questão, os bojos
tigo IIIB c. 2400-1800), tipo XIII F2.8 globulares das jarras WP IV são mais regulares e
suas proporções mais harmoniosas. A argila é da
Este tipo de tigela é comum. Na verdade ele é mesma composição da usada nos jarros W P III, é
tão comum que tem sido difícil encontrar qualquer calcária e recebe um engobo muito fino, um creme
estudo centrado sobre este tipo de vaso. Em todo produzido a partir da própria argila, quase im per­
caso, pudemos notar que, particularmente, se en­ ceptível. A decoração geralmente é pintada em ne­
contra bem situado dentro da tradição cipriota, pois gro, como no caso deste jarro, mas também foram
a associação de três de seus atributos, da pega, da encontrados exemplares pintados em vermelho.
alça e da borda negra está bem documentada, corri­ A decoração do vaso identifica-se perfeitamen­
gindo nossa opinião anterior, segundo a qual ele te com a classificação posterior e mais refinada de
não estava claramente inserido na tradição cipriota. Âstrõm (1966: 33, fig. 91 e 1972) que a designou
Ele pertence a um tipo de vaso presente ao longo de como Tipo 1 ou White Painted IV-VI Cross Line
toda a produção Red Polished, bem definida por Style. O desenho corresponde ao motivo 48 de
Gjerstad, que descreve o exterior avermelhado bri­ Frankel (1974) que o destaca como característico
lhante, a borda e o interior enegrecidos como traços do Cross Line; originou-se no Pendent Line tendo
característicos das produções do RP II (Gjerstad, influenciado sobremaneira o Palestinian Bicrome
1926: 95), embora alguns autores sugiram que seja (Frankel, 1974: 26).
situada no Black Polished. Segundo Ãstrõm (1966: 48) é um estilo de
transição, aparecendo no final do Cipriota Médio
Jarro White P ainted IV (Inv. M A E - 65/1.4) (Figura 5) III, avançando no Cipriota Recente I, convivendo
com os novos estilos Base Ring e M onochrome.
Pequeno jarro globular de base arredondada, com gar­
galo longo e alça lateral vertical, ligando a borda ao bojo. O
Assim, podem os atualizar a classificação da peça
como um exemplar do WP IV-VI Cross Line do
fin a l do Cipriota M édio III, período entre 1650
(8) Cf. Webb, J. peça 1 e 2, tipo XIIIF2 a2 do RP II (Cipriota
Antigo II - Cipriota Médio II), p. 15 e 42. e 1550 a.C..
(9) Como foi inicialmente classificado este vaso, segundo
Sarian, 1967: 21. Podemos verificar o mesmo em SCE IV
A l, onde está identificado como Black Polished II, prs. (10) Sua forma, inclusive, corresponde àquela citada na fi­
CXXXVIII 17 e 24, CXXXIX 2-4 e CLIV 1. gura 2 de Gjerstad (1926: 169).

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fig. 3 - Tigela Red Polished II B - M AE 6 5 /1.3

Fig. 4 - Perfil da Tigela Red Polished II B - M AE 65/1.3 (por Ana Claudia Torralvo).

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fig. 5 - Jarro White Painted IV-VI Cross Line Style Fig. 6 - Perfil do Jarro White Painted 1V-VI Cross
- M AE 65/1.4 Line Style - M AE 65/1.4 (por Ana C. Torralvo).

Tigela M onochrom e (Inv. M A E - 65/1.5) (Figura 7) mas também não parece ser uma faixa pintada. Há traços de
engobo no interior (L57 - 7,5 YR 8/6 - Jaune rougé) na
realidade quase uma coloração ocre (Figura 8).
Tigela com alça, de altura equivalente a 6,60cm e mai­ O interior é de tonalidade mais homogênea, com traços
or diâmetro do bojo 13,10cm. Sua base é circular levemente de escurecimento muito leves próximos à borda no lado oposto
côncava; o rebordo estreita-se em direção da borda. A alça é à alça. Tal escurecimento teve origem certamente na queima; a
triangular, lembrando um estribo, aplicada entre o rebordo e cor é um pouco mais escura M25 - 2,5 YR 6/4 (Brun rougé).
o bojo, levemente inclinada para cima (Sarian, 1967: 24, n.5
e fig. 7 p.23 direita e acima). A argila é muito fina mas, visual­ Gjerstad (1926: 181-2) descreve tais vasos co­
mente, detectam-se antiplásticos grosseiros e partículas de mo feitos a mão e, como percebido na tigela do
mica, identificáveis pelo seu brilho peculiar. Tais antiplásticos MAE, a argila apresenta sempre grande quantidade
deixaram marcas de ranhuras quando da confecção do vaso o
de antiplásticos. Sua coloração fortemente aver­
qual foi certamente feito a mão. A argila é de tonalidade
avermelhada, indo de um tom mais forte (5YR 7/5 -J a u n e
melhada, como a cor do tijolo, é resultado da oxida-
rougé) na base até um tom mais claro, esbranquiçado, na bor­ ção durante a queima. Muitas vezes recebia uma
da (K51 - 10YR 9/2 - Blanc)', essa mudança não é gradual fina camada lustrosa a qual podia tanto ser negra

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fig. 8 - Perfil da Tigela M onochrome - M AE 65/1.5 (por Ana Claudia Torralvo).


TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

como marrom-avermelhada. Sjoqvist (1940: 30) estilística dentro do Bronze Recente. Para Mac
destaca o fato de essa camada amarronzada não Laurin, formas e decoração refletem as necessi­
cobrir a totalidade da superfície do vaso, deixando, dades de uma pequena comunidade, que retem sua
na cor natural da argila, as bordas. Também ressalta identidade nos vasos. Na medida em que ocorre a
o fato de que a forma é proveniente de tradições escolha de um tipo de argila e de técnicas de con­
antigas do Cipriota M édio diferenciando-se do fecção adequadas aos tipos de recipientes, não ha­
Base Ring pelo anel na base e a melhor qualidade veria muita variação em relação ao aspecto tecno­
da pasta (tb. em Âstrõm, 1972:91). O estilo Mono- lógico, ao menos no que se refere ao Cipriota An­
chrome é, em muitos aspectos, tratado como uma tigo e Cipriota Médio. Nesse sentido, defende-se
variedade rústica do grupo Base Ring I (Âstrõm, o estudo regional das formas, por serem maiores
1972: 70). A forma rasa e o contorno suave da peça variantes do que as técnicas (Mac Laurin, 1985:
demonstram a conexão tipológica com as formas 76).
das tigelas do Cipriota Médio, freqüente nos grupos Efetuando tal tipo de estudo, Mac Laurin de­
W PIII e IV. A alça em forma de estribo ou forquilha finiu sete regiões da ilha e dentro destas regiões
é uma regra entre as tigelas remontando também categorizou o material com critérios morfolólogi-
ao Cipriota M édio II e III, sendo característica da cos. Acompanhando seu estudo, situamos nosso
cerâmica cipriota. Âstrõm (1972: 93) apresenta um jarro de boca redonda dentro de um grupo de va­
exemplar semelhante e classifica-o na categoria F sos de estocagem, como uma forma derivada do
(roughly hemispherical w ith fla t or concave base jarro de pescoço largo (tankard), que por si deriva
and everted or m arked rim), tipo B (horizontal da ânfora, da qual difere por só possuir uma alça
wish-bone handle below the rim) ( Âstrõm, 1972, lateral (Mac Laurin, 1985: 76). Tanto o jarro quanto
SCE IV/1C fig. XLV, 4). Também salienta (1972: a pequena tigela hemisférica têm paralelos na re­
90-91) que esta é uma tradição difícil de distinguir gião da Planície Centro-Sul de Chipre, área não
do Red Polished IV e V sendo que possa ter deri­ compreendida no estudo de Stewart sobre o Cipri­
vado dessa cerâmica. ota Antigo.
Este tipo de alça em forquilha, facetada no O Red Polished basicamente constituía-se de
lugar de roliça, é uma prova da influência de protó­ quatro subcategorias com conotações cronológicas,
tipos metálicos. Podemos, apesar de o termo não tecnológicas e regionais próprias. O material estu­
estar com pletam ente definido, m anter a classifi­ dado por Stewart provinha de sítios localizados no
cação tipológica como M onochrom e e datar a Norte da ilha apenas (Lapithos, Vounous-Bellapais
peça do princípio do Cipriota Recente I, p or volta e Karmi), de onde se definiram os tipos RP I-IV. O
de 1550 a.C. RP V resultou dos trabalhos na região de Morphou
(Âstrõm, 1972: 69).
Notamos que a classificação de Stewart ba-
Desenvolvimento e seou-se essencialmente em aspectos morfológicos
relações entre os tipos cerâmicos dos vasos, sendo deixada de lado a questão técni­
ca de fabricação, motivo pelo qual ele efetuou seu
A partir disto, podemos passar a discutir os trabalho sobre aspectos formais da cerâmica, re­
possíveis passos a serem dados a fim de realmente conhecendo a impossibilidade de um estudo tec­
termos uma contextualização dessas duas peças nológico naquele momento (Stewart, 1962: 212).
dentro da produção cerâmica cipriota da Idade do Entretanto, em um estudo de outra autora que dis­
Bronze, sendo capazes de observar três estados cute o trabalho de Stewart, verificamos que seu
distintos neste período. critério de organização e classificação da cerâmi­
Em todo caso, o material para estudo se resume ca de acordo com a forma dos vasos não foi o úni­
em peças que não possuem aparentemente qual­ co empregado, pois estava implícito um agrupa­
quer projeção especial dentro do conjunto da cerâ­ mento com base no tipo de fabrico (Mac Laurin,
mica cipriota da Idade do Bronze, porém, elas po­ 1985: 73).
dem levar-nos a certas reflexões interessantes so­
bre as produções cerâmicas do período. A partir
do jarro RP II acima discutido, podemos perceber (11) Jarro, peça n. 4, fig. 10; tigela peça n. 7, fig. ^ (c la s s ifi­
um prosseguimento de sua tradição morfológica e cação de Mac Laurin, 1985: 77-78).

244
TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Conforme vimos acima, o jarro e a tigela se do RP II, agora associado com decoração plástica
situam em categorias bem específicas, as quais po­ (Stewart, 1962: 228).
dem ser encontradas dentro de um vasto índice tipo­ Uma outra autora contraria a posição de Ste­
lógico. Entretanto, devemos anotar um lapso im­ wart em relação à sua definição da antiga varieda­
portante no trabalho de Stewart no SCE: embora de do RP I, que ele denomina “Philia Culture”
ele descreva e classifique a cerâmica dentro destas (Belger, 1991: 29), e que não seria mais do que
categorias, não fornece exemplos do que realmen­ uma aberração regional de curta duração dentro
te constitui tais categorias. O autor não nos dá infor­ do RP I, não interferindo com o desenvolvimento
mações quanto aos elementos que definem precisa­ do Red Polished, estabelecido desde o material do
mente tais tipos e subtipos dentro de tal índice, Calcolítico, cónforme se verificou pela seqüência
sendo impossível situar uma peça dentro de uma cerâm ica de Vounous-Bellapais (Stewart, 1962:
categoria ou outra a não ser pela comparação visu­ 211). No entanto, a autora mostra que esta categoria
al com as pranchas, o que não é um método preci­ regional se apresenta em vários sítios da ilha,
so para identificação do material. especialmente ao Norte e ao Sul (Belger, 1991: 32).
Merrillees (cit. in Barlow, 1989: 51) descreveu Dentro dos novos trabalhos destacou-se par­
sucintamente que uma produção soma as caracte­ ticularm ente a pesquisa no sítio de A lam bra-
rísticas mais visíveis pelas quais um conjunto de Mouttes, pertencente ao Cipriota Médio, escavado
traços como forma, pasta, acabamento de superficie por uma equipe da Universidade de Cornell (Cole-
e decoração podem ser reconhecidos. Isso não im­ man & Barlow, 1979). O sítio forneceu mais de
plica necessariamente em uma caracterização cro­ 100.000 fragmentos cerâmicos, dos quais 99% per­
nológica ou geográfica dessas produções, desde tencentes ao RP III, sendo o resto composto de
que estes eixos estão sujeitos a revisões constan­ porções de Black Polished, White Painted e algu­
tes devido a novas descobertas ou pesquisas. mas amostras de RP II e RP IV. Com tal material,
Os trabalhos realizados após 1974 permitiram a datação fundada nas subcategorias de Stewart
a obtenção de informações adicionais e essenciais consagradas em SCE foi considerada impraticável,
quanto aos aspectos técnicos das produções Red pelo que se decidiu partir para a análise físico-quí­
Polished para o Cipriota Antigo e Cipriota Médio, mica dos fragmentos. Descobriu-se que o RP se
possibilitando a reclassificação do material com com punha de dois tipos diferentes de argila, uma
base nos critérios técnicos de fabricação, cobrindo originária de solos sedimentares e outra de solos
a lacuna deixada por Stewart. vulcânicos; eram usadas separadas ou combinadas,
Barlow (1989: 51) demonstra que o RP I e o aparentemente havendo um a relação entre os di­
RP II são produções associadas a sítios da costa versos tipos de fabricos e de formas com tais com ­
norte da ilha. Por outro lado, o RP III constitui uma binações. Descobriu-se que havia duas fontes de
categoria tão vasta e extensa que veio a ser dividida argila para os oleiros de Alambra, ambas dos m on­
em subgrupos, e por fim o RP IV revelou-se uma tes Troodos. Uma calcária da formação Lefkara e
categoria bastante restrita usualmente ligada à últi­ outra das formações ofiólitas dos lençóis de lava.
ma parte do Cipriota Médio. A partir disso, definiu-se que o RP de Alambra
Com o material publicado por Stewart em SC E constituía uma categoria em si, denom inada RP
IV IA, “The Early Bronze Age in Cyprus”, ele nota A, passível de identificação também em outros
uma relação cronológica entre algumas produções, sítios da ilha e não apenas naquele sítio específico
como na segunda variante do RP I (Cipriota Antigo (Barlow, 1991: 55).
I-II), com um engobe vermelho escuro polido com­ Outra conseqüência deste trabalho foi a desco­
parável ao melhor material do RPI (Philia) (Barlow, berta de que a pasta e o engobe do RP A são sem e­
1989: 53). Este seria o precursor do RP II (Stewart, lhantes aos do W hite Polished II, categoria que se
1962: 226) (principalmente Cipriota Antigo II) cujo considera como a caracterizadora do início do Ci­
m aterial comum seria igual ao melhor do RP I priota Médio (Barlow, 1991: 55).
aplicado a formas novas ou ligeiramente diferentes Com estes elem entos parece-nos que uma
(Stewart, 1962: 227). O RP III mostrar-se-ia como linha pode ser traçada mais seguramente, ligando
uma seqüência do RP II dentro do Cipriota Antigo o desenvolvimento do RP I e de sua variante Philia
III-C ip rio ta M édio III, m om ento em que se com o desenvolvimento do RP II, do qual ele parece
atingiria o ápice do fabrico polido característico ser conseqüência direta. Dentro do RP III percebe-

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

se a necessidade de um estudo tecnológico e morfo­ White Painted, principalmente de tipo II (Barlow,


lógico em maior profundidade, na medida em que 1991: 55). Contudo, a maior contribuição para o
a vastidão dessa categoria exige a identificação de estudo do W P foi a identificação de estilos indivi­
suas subcategorias, considerando a existência de duais divididos em classes W P III-IV Pendent
variantes particulares como o RP A e não de subti­ Line, IV-VI Cross Line, V Framed Broad Band e
pos regionais. VI Soft Triglyphic (Âstrõm, 1966: 90 e 92-93).
Ao mesmo tempo em que acabamos por lidar Fazendo esta diferenciação a partir dos modelos
com um material que em si não oferece maiores establecidos por Gjerstad, Âstrõm percebeu que
possibilidades de estudo, podemos perceber que essa classificação era representativa da cerâmica
este se encontra na linha de frente dos novos estu­ apenas do norte e centro da ilha. Com a abertura
dos sobre as conexões entre o Red Polished e as de novas escavações em diferentes regiões da ilha,
variações existentes no Cipriota M édio e Cipriota mais recentemente pode-se constatar que da tradi­
Recente que não tinham suas origens claras. ção WP, o Pendent Line, o Cross Line e o V são
O pequeno jarro W P IV -V I Cross Line e a ti­ predominantemente estilos cerâmicos desenvolvi­
gela Monochrome representam, num sentido mais dos no sul da ilha (Maguire, 1991: 64). Nosso jar­
amplo, o período de transição entre o Cipriota M é­ ro W P IV-VI CLS pertence a um a categoria muito
dio III e o Cipriota Recente I. comum segundo Frankel (1981: 88-106). Quanto
O jarro W P IV-VI Cross Line representa uma à forma e proporção, está inserido no m aior grupo,
tradição da cerâmica decorada do Leste de Chipre ou seja, ente 6,1 e 8cm de diâmetro da pança (=
que remonta à Idade do Bronze Antigo; já a tigela 66,5%) (p.89). Este grupo prevalece nos túmulos
Monochrome pertence à cultura da costa norte/no­ de Lapithos, mas está presente em menor quanti­
roeste da ilha, caracterizada pela cerâmica lisa, sem dade por toda a ilha. Quanto à análise da colora­
decoração. A pesar dessa origem espacialm ente ção, nosso exemplar (10YR 7/4 - coloração da
distante, ambas as peças pertencem a períodos peça) pertence ao grupo que incorpora mais exem­
temporais próximos, podendo ser quase contempo­ plares e que segundo Frankel (1981: 95) dem ons­
râneas e representam justamente o período de tran­ tra uma especialização com controle sobre a sele­
sição entre o Cipriota M édio e o Cipriota Recente. ção da argila e sobre a queima (esse grupo consti­
Nesse momento, diversas mudanças ocorrem na tui 51% da amostragem utilizada pelo autor).
ilha e são representadas materialmente por uma O M onochrome é uma categoria cerâm ica que
miscigenação das duas culturas, bem diferenciadas ainda apresenta sérios problemas de definição já
durante o Cipriota Médio, que terminam por cons­ que todas as categorias m onocrom áticas, com
tituir uma cultura única de características próprias qualquer que seja a tonalidade da cerâmica, com
no final do Cipriota Recente. ou sem decoração incisa, pode ser denom inada
As principais categorias cerâmicas encontra­ Monochrome. Âstrõm notou que é difícil distinguir
das nas escavações mais recentes, principalmente o M onochrome do RP V e do Coarse M onochrome
em necrópoles, são o R ed Polished e a série White (Âstrõm, 1972: S C E IV P art.lC , 90). Um exemplo
Painted (Frankel, 1988: 27 e fig.l - inclusive o disso são vários exemplares classificados como RP
exemplar q = Cross Line). III ou IV (Karageorghis, 1965, fig. 23) e classifi­
O R ed P olished é um estilo cerâm ico que cados por Âstrõm como Proto-M onochrome ou
abrange um longo período de utilização: mais ou Monochrome (Âstrõm, 1972,S C E IV P art.lC , 92).
menos 600 anos, ou seja, o Bronze Antigo e Médio O Coarse Monochrome de Kalopsidha é descrito
em Chipre. Diferentemente do RP I e RP II, os por  strõm (1966: 66) com o relacio n ad o ao
quais aparecem no Norte da ilha, o RP III já aparece M onochrom e mas m uito m ais g rosseiro, com
em toda parte, na maioria das vezes em forma de paredes finas, confeccionado com argila cor de
fragmentos provenientes dos assentamentos, o que tijolo ou cinza, com engobo marrom fosco.
demonstra sua disseminação pelas outras regiões Benson, na publicação da necrópole de Kou-
da ilha. Por exemplo, em Alambra, onde ocorrem rion-Bam boula (1972: 75), listou diversas catego­
dois tipos de argila diferentes, uma calcária e outra rias de cerâmica sob o título de Monochrome tendo
rústica, os produtos RP de argila calcária são muito notado que “M onochrome” é uma designação que
próximos, tanto do ponto de vista petrológico como abarca um amplo repertório de formas embora ne­
do ponto de vista químico, dos antigos exemplares nhuma corresponda exatamente aos tipos selecio­

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

nados por Sjõqvist (1940: 32, fig.6). Ampliou en­ Anatólia, conforme os exames petrográficos do ma­
tão esta classificação: M onochrome tipo 2 a 4 para terial cipriota que indicam fontes locais de argila.
jarras e M onochrome 3 a 7 para tigelas. Apesar de A situação de Chipre durante o Cipriota Médio
muitas tentativas como a de Benson, ainda não está reflete-se da seguinte forma: durante o Cipriota Mé­
claro qual a diferença entre Coarse Monochrome, dio I distinguem -se duas áreas culturais bem defi­
Proto-Monochrome e Monochrome propriamente nidas. A costa Noroeste é caracterizada pelos esti­
dito, incluindo-se nesse contexto algumas catego­ los geométricos enquanto o lado Leste da ilha é
rias mais recentes do RP (Pilides, 1991: 147). dominado por um estilo linear. Durante o Cipriota
O sítio de E n ko m i mostra uma tradição dife­ M édio I, o grande centro da ilha parece ter sido
rente de Monochrome, particular do Leste da ilha. Lapithos, um provável posto comercial de cobre
M uitos exemplares de tigelas do tipo 1 de Sjõqvist na costa Norte. Também são registrados vestígios
(1940: 32, fig. 6) seguem a tradição desse sítio onde datados do Cipriota Médio I em Galinopomi, Ayios
a frequência desse tipo de tigela nos túmulos for­ Iakovos, Sira, Kalopsidha, Alambra, Aspera, Dhe-
nece uma datação do Cipriota Recente I (Pilides, nia, Katydhata e Ayia Paraskevi. Os contatos com
1992: 293 e 303, fig.2 a e b). Este estilo parece ter o Egeu e a região Sírio-Palestina eram ainda espo­
tido uma evolução diferente por toda a ilha, deri­ rádicos mas, esse período é marcado pelo apareci­
vando-se de diferentes tradições do Cipriota Médio mento do W P II, cerâmica fina polida com decora­
e Antigo com o R ed Polished, Red Slip, Black Slip ção em marrom avermelhado e desenhos geométri­
e Base Ring. Foi o principal tipo cerâmico utilitário cos.
do Cipriota Recente sendo que as tigelas seme­ N a prim eira m etade do C ipriota M édio II
lhantes a este exemplar predominaram no Leste da desenvolve-se o WP III e, na segunda, o W P IV
ilha durante o Cipriota Recente I (Pilides, 1992: que sobreviveu e perdurou durante todo o Cipriota
296-7). Médio III. A característica de evolução de um esti­
lo para o outro é a degeneração que ocorre do WP
II para o W P IV, opaco e com decoração negra.
Contexto Nesse período, em Ayios Iakovos, desenvolveu-se
o W P III-IV Wavy Line Style. Já o W P III-IV Pen-
O R ed P olished Ware constitui a produção dentLine, de origem exata indefinida, também apa­
mais extensa ao longo do Cipriota Antigo. A identi­ rece, com certeza, na região Leste e caracteriza-se
ficação do material de Philia como uma variante pela linearidade de sua decoração, muito caracterís­
do RP I permite verificar que a aparente difusão tica dessa região. Lapithos continua sendo o centro
de tipos a partir da região Norte da ilha é menos mais importante da ilha, mas o Leste começa a ser
provável do que se supunha.. mais populoso que antes. O isolamento do período
Ao contrário do que se pensou, formas cerâmi­ anterior termina e são atestados contatos com o
cas do RP são provavelmente imitações de modelos Egito, Palestina e Síria. Há registros de cerâmica
anatólicos e não indícios de um influxo de popu­ W P III-IV Pendent Line em Ras Shamra e Kahum.
lações desta área durante o Bronze Antigo II. A No Cipriota Médio III aparece o W P Cross
releitura do material de Philia sugere que tal produ­ Line Style, originário do Leste de Chipre e deriva­
ção, abrangendo o centro, o norte e o sul da ilha, do do Pendent Line. A cultura no lado Leste e Oeste
indica um a fase transicional das produções calco- começa a ter um caráter comum (Âstrõm, 1957:
líticas para o Cipriota Antigo, sendo o RP a prin­ 278). Nesse período, os contatos com os povos vizi­
cipal evidência dessa transição. Isso significa que nhos já são bem fortes e caracterizam-se pelo seu
mesmo com a existência de tendências regionais aspecto comercial. Para a Síria e Palestina expor­
(Barlow, 1991: 33), ocorreu no Cipriota Antigo tavam-se grandes quantidades dos tipos feitos a
uma uniform idade de produção cerâmica. A idéia mão como o W P Pendent Line, Cross Line, Red
de uma fabricação homogênea em vários pontos Slip, Black Slip, etc.. O com ércio de cobre em
da ilha sugere uma inovação largamente difundida lingotes e barras ultrapassa o comércio de artefatos
em Chipre e rapidamente adotada que sugere um e produtos manufaturados. No final do Cipriota
contato estreito com a Anatólia, de onde teriam M édio III, Lapithos perde definitivam ente sua
sido imitadas novas formas cerâmicas. Não há indí­ importância e algumas fortalezas são construídas
cios que sugiram a introdução do RP a partir da como em Nitovikla.

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TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A.H. A coleção cipriota do MAE-USP: os exemplares da Idade do Bronze. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

Fica nítido um rompimento gradual de um for­ O Monochrome é uma variedade rudimentar


te regionalism o pré-existente, o qual dá lugar à do Base Ring I, diferenciando-se apenas pelo anel
unidade cultural evidenciada através da cultura ma­ da base, em alguns casos. Este estilo é encontrado
terial do Cipriota Recente. na maioria dos sítios do Cipriota Recente I como
Kalopsidha torna-se um sítio importante a par­ Nitovikla, Enkomi, Ayios Iakovos, Milia, Episkopi,
tir do Cipriota M édio II sendo um centro m etalúr­ Katydhata, Aspera, Ayia Paraskevi e Maroni. Sua
gico e de fabricação de alguns tipos cerâmicos distribuição pela ilha é homogênea, não permitindo
(Astrõm, 1966: 138) como WP Framed Caduceus, nenhuma conclusão mais precisa e definitiva de
Pendent Line e Cross Line. A cerâmica dessa re­ centros de fabricação. Somente após um completo
gião é extremamente conservadora, continuando a e minucioso estudo das características geológicas
ser produzida a mão mesmo após se conhecer o da argila e dos diferentes tipos de solo de Chipre é
torno. O Cross Line era exportado em abundância que será possível uma localização dos centros de
para a Síria. fabricação.

TORRALVO, A.C.; ALLEGRETTE, A. The MAE-USP Cypriot Collection: the Bronze Age pottery.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 235-249, 1995.

ABSTRACT: This article presents the study of four Bronze Age ceramic vases
belonging to the MAE-USP Cypriote Collection. These artifacts represent important
moments in the pottery evolution of the cypriot culture and reflect a wider universe
where Cyprus represents a point of convergence and diffusion between the eastern
and western Mediterranean Sea.

UNITERMS: Cyprus - Enkomi - Lapithos - Pottery - Chronology.

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249
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.

‘SIZANGA’

Fábio L eite*

LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.

RESUMO: Este texto aborda alguns aspectos de ‘Sizanga’ (Bosque Sagrado),


aparato social dos Senufo, sociedade negro-africana, e das relações que estabelece
no universo das práticas históricas, revelando formas de percepção e organização
da realidade segundo valores originários definidores da identidade profunda dessa
civilização.

UNITERMOS: África-negra - Senufo - ‘Sizanga’ - Socialização - Identidade


- Conhecimento.

‘Sizanga’,1 term o da língua Senari, falada do Marfim. É possível citar a maioria de seus gru­
pelos Senufo, sociedade agrária negro-africana, é pos: ‘D yam ala’, ‘Falafolo’, ‘Folo’, ( ‘Folonbele’),
uma formação florestal conhecida, em terminologia ‘Gbato’, ‘Gonzoro’, ‘Kadie’, ‘Kaine’, ‘Kafinbele’,
ocidental, por Bosque Sagrado. No conjunto da ‘Koroboro’, ‘Kasse’, ‘Kofolo’, ‘Kulele’, ‘Minianka’,
explicação Senufo do mundo, assume notável im­ ‘N anergue’, ‘N afara’, ( ‘N afana’, ‘N afanbele’),
portância por se constituir em universo de múltiplas ‘N ohw u’, ‘N yarhofolo’, ‘P alanka’, ‘P om poro’,
configurações estreitam ente ligadas a práticas ‘Sankem ’, ‘Sye’, ‘Tafire’, ‘Tagba’, ‘Tagponi’ e
sociais decisivas, como veremos mais adiante. ‘T agnaw a’, ‘T en eu re’, ‘T u d u g u ’, ‘T y em b ara’
A sociedade Senufo estende-se sobre um terri­ ( ‘Kiembara’, ‘Kiemgbara’, também chamados por
tório africano que cobre áreas da Costa do Marfim, ‘Tyebabele’), ‘Tyefo’ e ‘Yoli’. Quanto ao número
do M ali e do Burkina-Faso (ex-Alto Volta), ocu­ de in d iv íd u o s, som ente no D ep artam en to de
pando ainda pequena porção do Gana. Os limites Korhogo (Costa do Marfim) - área localizada nas
geográficos dessa ocupação, com exceção do Gana, savanas onde realizam os nossas pesquisas de
são estabelecidos ao norte pela localidade de campo entre os Senufo, eles são quase 300.000
Koutiala - abrangendo o Burkina-Faso e o Mali - (Coulibaly, 1978), mas não temos condições de
ao sul por Katiola, a leste por Bondoukou e a oeste fixar o número de pessoas que constituem seu
por Odienne, localidades estas situadas na Costa conjunto.
Alguns fatores definem fortemente ainda hoje
a identidade histórica Senufo, conforme já explici­
(*) Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo.
(1) ‘Sizanga’é um termo provavelmente composto pela pala­ tamente indicado em texto anterior (Leite, 1986).
vra ‘S i’, que corresponde à designação do que se convencio­ Origens ancestrais comuns é um deles, assim como
nou chamar "deforça v ita l”, e da palavra ‘Zanga’, que signi­ a ocupação de um território bem configurado.
fica lugar de recolhimento, de iniciação. É assim, o "lugar ‘Senari’, a língua Senufo, é elemento unificador
da vida ” (Ouattara, 1981). Acrescentamos aqui que para não
de seus grupos não obstante suas variações regio­
correr o risco de utilização errada, temos preferido não usar
em nossos escritos sinais gráficos indicativos da entonação
nais. A sociedade optou pelo modo agrário de
das palavras africanas, salvo quando se tratar de eventuais produção que exige a sacralização da terra e esta­
transcrições de autores. Por isso, as colocam os entre aspas, belece sua inapropriabilidade na conformidade das
apenas. normativas ancestrais. Não existe venda da força

OÇ1
LEITE, F. ‘Sizanga'. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.

de trabalho e os recursos básicos da produção são cabalmente sua socialização. Ainda mais, é o espa­
obtidos dentro da própria sociedade. Não há centra­ ço onde ocorrem outras cerimônias, rituais e atos
lização jurídico-adm inistrativa que abranja o con­ secretos relacionados com divindades, ancestrais
junto da sociedade, inexistindo as figuras do Estado e outras forças da natureza. ‘Sizanga’constitui um
e de um mandatário único que o represente. Outro aparato histórico concebido pelos ancestrais a fim
fator é a organização matrilinear do parentesco, que de, a partir da explicação da origem divina do
constitui a mulher na única fonte legitim adora de aparecimento da vida e do conhecimento, integrar
ascendências e descendências.“ Os Senufo criaram o homem nos processos sociais sem causar uma
um mecanismo disciplinador das práticas sociais ruptura crucial entre o natureza e a sociedade. Ele
- o ‘Poro’ - que atinge todo o complexo, o qual, é, assim, a fonte geradora do ‘Poro’, sistema estru-
no dizer de Ouattara (1979), estabelece os turador e regulador da sociedade, bem como instru­
direitos e deveres de cada um dos habitantes... ”. mento iniciático destinado a elaborar o homem
No ‘Poro’ são encontradas, por exemplo, as regras acabado, cuja configuração parece inseparável do
que orientam os processos de socialização e as ‘Sizanga’. ‘Sizanga’ é também a fonte geradora
formas de inserção dos indivíduos na sociedade dos modelos ancestrais básicos explicativos do
segundo valores extrem am ente precisos (Leite, mundo e do homem, recriados periodicam ente
1988). Outro elem ento marcante da identidade através das representações que sintetizam o teatro
desses voltaicos é o ‘Sizanga’, localizado nas adja­ sagrado Senufo, amálgama das relações existentes
cências das aldeias, que sintetiza e reproduz os entre n atu ral e social. É tam bém um espaço
principais valores Senufo e sua organização social, epistem ológico, propondo a p ro b lem ática do
assunto deste texto. conhecimento sintetizante que, através da inicia­
Não falaremos aqui sobre esses outros elemen­ ção, é transmitido de geração a geração, permitindo
tos reveladores da identidade profunda Senufo. a sobrevivência dos principais valores ancestrais
D esejam os abordar apenas alguns aspectos do que organizam a sociedade. ‘Sizanga’ é, dessa
‘Sizanga’. form a, o local da elaboração final do homem
‘Sizanga’ reproduz a imagem dos processos natural-social, ligando-se vitalmente aos processos
primordiais da criação do mundo, da emergência de socialização.
da vida e do homem, bem como de suas transforma­ Essas qualidades fundamentais levam a socie­
ções. É habitado por divindades, seres e forças dade a considerar essa formação florestal a síntese
desconhecidas, assim como pelos ancestrais, com­ de um universo sagrado, estando intimamente rela­
pondo um m undo irre d u tív e l que som ente é cionado à organização social dos Senufo. Essa
atingido e manipulado pelos detentores do conhe­ configuração abrangente é evidenciada, ao nível
cimento de seus mistérios e segredos, mas que está histórico, pelo fato de que uma localidade que não
em relação constante com a sociedade. ‘Sizanga’ possua o seu ‘Sizanga’ não é considerada autô­
é o universo privilegiado, no espaço terrestre, da noma, não é uma ‘K aha’ (aldeia) mas um ‘Vogo’
soberania de ‘Katyeleo’, princípio vital feminino (acampamento), conforme indicado por Ouattara
primordial, que então transparece como regente dos (1979). E continuará nessa situação até que se
processos ligados à evolução do hom em e da sacralize o seu ‘Sizanga’ respectivo, permanecendo
sociedade, presidindo os atos iniciáticos que sinte­ subordinado até então ao ‘ Sizanga’ da ‘K aha’ da
tizam esses processos. Esse espaço é mesmo, de qual se desmembrou.
certa maneira, aquele de um encontro vital e decisi­ Vejamos, resum idam ente, com o essas pro­
vo entre homem e divindade dentro da proposta de posições referentes ao Bosque Sagrado se mani­
sacralização, do indivíduo a fim de complementar festam.
Parece extremamente difícil tentar estabelecer
a época em que o ‘Sizanga’ foi concebido e criado
(2) Com o aparecimento da dominação colonial e depois sob a forma de aparato social, mas tudo leva a crer
do Estado, os países então configurados sob os moldes oci­ que isso ocorreu ao longo dos processos de sedenta-
dentais criaram figuras centralizadoras e regionais da admi­ rização dos Senufo, processos esses que provoca­
nistração oficial, como cantões e departamentos. Mas os
ram uma m utação na essência da organização
Senufo, enquanto complexo étnico, não possuem esses apa­
ratos, que lhes foram im postos. Sobre a organização social desses voltaicos. Com efeito, daí emergiram
matrilinear Senufo, vide Leite. 1986. outras tipologias das relações do homem com a

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terra, nascendo as aldeias. A necessidade de então porte, arbustos, folhagens, etc., enfim, uma vegeta­
estabelecer, integrar e difundir as principais norma­ ção densa que perm itiria o estudo das antigas co­
tivas sociais organizadoras da sociedade diante das berturas florestais hoje desaparecidas. Sua forma
novas perspectivas históricas, teria dado origem tende para o circular, ocupando, segundo Coulibaly
ao ‘Sizanga’ e ao ‘Poro’, que concretizam essa pro­ (1978), entre dois e quatro hectares. Nós conside­
posta. Assim , nessa sociedade agrária, ‘K aha’, ramos que as entradas que levam a seu interior são
‘Sizanga’ e ‘Poro’ são elementos complementares, dissimuladas ou, pelo menos, dificilmente visíveis
indissociáveis da explicação do mundo e da organi­ ao estrangeiro que o observa de uma certa distância,
zação da realidade. M as de qualquer m aneira, embora as trilhas ao ar livre que partem do espaço
considerando que os Senufo foram talvez os primei­ social em sua direção sejam bem demarcadas. De
ros ocupantes de seu território, nele se encontrando qualquer maneira, existem orlas em suas entradas
possivelmente desde o “primeiro milênio de nossa e somente após ultrapassá-las é que se com eça
e ra ” (Rougerie, 1977:77), a hipótese é a de que a verdadeiramente a penetrar em seu interior. Nós
configuração social de ‘Sizanga’ é de significativa nunca penetram os em um ‘Sizanga’ chegando
antiguidade. Nossos informantes, em sua lingua­ apenas a um de seus limiares. Assim, temos de
gem poética, disseram que o Bosque Sagrado existe nos servir da parca bibliografia existente e das
“desde sempre ”, “desde os primeiros ancestrais ” informações obtidas na pesquisa de campo - geral­
ou que “sempre fo i assim ”. A tese dessa grande mente bastante reticentes - para apresentar alguns
antiguidade de ‘Sizanga’ é reforçada ainda pelo dados sobre o que existe dentro dele.
fato de que se constitui na praticamente única teste­ No interior do ‘Sizanga’ existem caminhos
munha da grande vegetação florestal densa ainda principais e caminhos secundários. Os primeiros
existente numa região dominada pela savana. levariam a um espaço diferenciado, talvez em seu
‘S izanga’ é um espaço natural preservado, centro e sob a forma de clareira, sendo possível
altamente diferenciado, e uma formação florestal que estejam orientados segundo os pontos cardeais,
testemunha. De fato, como o território Senufo lo- mas as informações não permitem assegurar que
caliza-se em zona de savana, o ‘Sizanga’ destaca- isso seja aplicável a todos eles. Quanto aos cam i­
se fortem ente na paisagem sendo praticam ente nhos secundários, eles levariam a determinados
impossível deixar de notá-lo quando se percorre o locais e espaços destinados a certos rituais, seja a
território Senufo. Localiza-se sempre nos arredores lugar nenhum , podendo ou não, ainda, fazer
das aldeias, sua distância delas podendo variar, conexões com os caminhos principais. Registre-
mas é geralmente visível a partir das localidades. se a propósito que a fim de enganar o estrangeiro
O B osque S agrado é um a form ação florestal que penetre nesse espaço, existem dispositivos
bastante cerrada, principalmente se colocado em constituídos de “... fa lso s caminhos de acesso,
comparação com a savana, e possui uma variedade duplo sistema de lugares sagrados... “ homens
expressiva de grandes árvores,' árvores de menor de palha ” em lugar do encarregado real do culto,
etc. ’’(Holas, 1957:147, nota 1). Mas, é bem possí­
vel, senão certo, que esse sistema enganador seja
(3) Sobre a noção Senufo de aldeia e sua administração, vide
destinado também a aumentar as dificuldades dos
Leite, 1986.
(4) Em uma das aldeias que visitamos - aliás bastante isolada iniciandos que são recolhidos no Bosque Sagrado
- seu ‘Sizanga’ encontra-se suficientemente perto. Pudemos nas fases iniciáticas em que isso é previsto. Por
ouvir o som de tambores e de outros instrumentos de maneira outro lado, clareiras, pequenas ou maiores, locais
distinta. Tratava-se de uma cerimônia do ‘Poro’ e vários ini­ de abrigo, de rituais, de sacrifícios, objetos sagra­
ciados, vestidos com as roupas adequadas para essas ocasiões,
dos e litúrgicos, com pletam o espaço.
estavam se dirigindo ao ‘Sizanga’. A intervenção de um velho
iniciado, sobretudo indignada, nos fez partir em seguida, sen­
H olas (1957) registra que anteriorm ente o
do recomendado que nem mesmo voltássemos o olhar em dire­ ‘Sizanga’ era povoado por animais sagrados, como
ção ao Bosque Sagrado. Ao hesitarmos em partir imediata­
mente, fomos advertidos por nosso acompanhante Roger Soro, (6) Nós estivem os perto de vários ‘Sizanga’ e chegamos
ele mesmo um Senufo de outra localidade, de que isso poderia mesmo a uma de suas entradas. Mas nunca nos foi oferecida
ocasionar problemas imprevisíveis. permissão para entrar em um deles. Para que isso se tomasse
(5)Coulibaly (1978) cita nove espécies principais: ‘Bligia’, possível, foi-nos sugerida a possibilidade de passar por uma
‘Sapida’, ‘Cola’, ‘Cardiofolia’, ‘Antiaris’, ‘Africana’, ‘Ceiba’, “iniciação rá p id a ”, prática que existe e que condenamos
‘Pentadra’ e ‘Adansonia Digitata’. fortemente.

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Foto 1 - Um ‘Sizanga’, com pequena edificação em sua orla, destinada à guarda de objetos a serem
utilizados nas cerimônias que se passam em seu interior. (Foto: Fábio Leite)

a serpente ‘Pitón’, caimãs e peixes, que faziam s ív e l ( ‘M a d e b e le ’), o hom em ( ‘T y o lo b e le ’,


parte do universo mítico e litúrgico, os quais eram ’Nyábele j, a natureza ( ‘Blatyge ’, ‘Gunâ ’), a a l­
cuidadosamente tratados pelos dignitários respon­ deia ( ‘Sizangakpapigele’) .” (Ouattara, 1981:59).
sáveis. Era também o local onde se encontravam Dessa maneira, ‘Sizanga’ representa de início
as representações de totens das famílias através a imagem de um universo ainda não organizado
de estatuetas ou efígies. Entretanto, não obstante pelo homem. Mas representa também um universo
todos os fatores históricos contrários à preservação ligado ao aparecimento do ser humano e da socie­
de sua configuração originária, o Bosque Sagrado dade. Essa problemática é sintetizada pelo próprio
guarda ainda hoje, seguramente, uma expressiva ‘Sizanga’ de um lado, e, de outro, pelos seres de
representação material da sua simbologia e da arte origem social que fazem parte de sua natureza,
sagrada, de vez que sua importância para a vida reproduzidos e simbolizados pelo próprio homem
social continua vigorosa. Nesse sentido, as pala­ em seu esforço de explicar a vida e nela integrar-
vras de Ouattara - que indicam também a existên­ se plenamente.
cia de alguns elementos específicos no interior do Podemos indicar brevemente alguns desses
‘Sizanga’ - ganham importância: “Não é surpre­ representantes do im aginário social, de acordo
endente, aliás, encontrarmos no bosque sagrado principalmente com as indicações de Holas e obser­
termos de estrutura fam ilial, pois que o bosque vações pessoais que tivemos a oportunidade de
sagrado é a representação do mundo e da vida levar a efeito em algumas localidades Senufo.8
humana. Encontram os ali representados o céu ‘Sizanga’ é espaço específico para apareci­
( ‘Nien ’), os espíritos que povoam o universo invi­ mento de exemplares do bestiário sagrado Senufo,

(7) Os lugares originários de culto sofreram a ação iconoclasta


de adeptos de uma seita denominada “Massa ”, estrangeira à (8) Holas: 1957,1968 e 1978. As observações pessoais, para
espiritualidade Senufo. Esse movimento, vindo do Mali, durou esse caso, ocorreram nas localidades de Nenekry, Korhogo e
cerca de vinte anos. Niapieoledougou.

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com o, por exem plo, os m onstros ‘N asso lo ’ e sátira às práticas sociais e a situações (os ‘Kamao’),
‘K agba’, que reproduzem a forma de quadrúpedes, de representações ocorridas em ritos funerários
este último produzindo uma dança, ao longo de (os ‘Y aladiogo’). Um a menção deve ser feita ao
determinadas cerimônias, que constitui, segundo personagem ‘K outo’. Trata-se de ator m asculino,
Holas a imagem de um mundo paradisíaco per­ totalm ente escondido por vestes elaboradas com
dido, aquela que p recede o aparecim ento do fibras vegetais m ulticoloridas e por um capuz de
homem." (1978:248). cor negra. O ventre do ator é colocado em evidên­
As máscaras ocupam lugar de destaque nesse cia m ediante arranjos feitos sob as vestes e desti­
universo e os Senufo possuem um grande número nados a representar as últimas fases da gestação.
delas, geralmente aparecendo no ‘Sizanga’ ou dele O conjunto lem bra um a grande ave, talvez uma
vindo para outros espaços, destinadas a inúmeras galinha. Esse tipo, no contexto iniciático, repre­
práticas sociais como rituais de iniciação, funerais senta a figura da mãe, sim bolizando ‘K atyeleo’,
e legitimação de certas instâncias como, por exem­ divindade regente do ‘Sizanga’, princípio fem i­
plo, a de representar as gerações de iniciados, cada nino prim ordial ligado à organização m atrilinear
uma possuindo a sua, ligando-se pois a inúmeros dos Senufo que se manifesta, concretam ente, na
campos de conhecimento e, mesmo, das práticas venerável figura que na com unidade eterniza essa
políticas. Cita-se, dentre as mais conhecidas, as proposta, possuindo o mesmo nome de ‘K atyeleo’.
máscaras ‘K pelie’, ‘W abele’, ‘Korobla’, ‘Yabli- ‘K o u to ’ exerce ainda outros papéis: an u n cia
que’, uma das quais, ‘K orobla’, tivemos a inesque­ ritualm ente as m ortes e dança em público no
cível oportunidade de ver manifestar-se em ação. encerram ento dos funerais. Está, pois, com pro­
Essas máscaras aparecem por ocasião de certos metido com os ciclos sucessivos de aparecim ento
ritos iniciáticos ( ‘Kpelie’); simbolizam "m ásorte" e térm ino da existência visível. D iferentem ente
e doenças, mas podem expulsar influências nega­ de outros personagens disfarçados, ‘K outo’ pode
tivas que se abatem sobre as plantações ou, no tipo ser visto sem nenhum perigo pelos não-iniciados,
em que são pintadas de branco, fazer parte das ceri­ mulheres e crianças.
mônias destinadas ao aparecimento real ou sim­ Esses habitantes do ‘Sizanga’, dentre outros,
bólico de ancestrais ( ‘W abele’); ligam-se à proble­ integram a proposta de explicação do m undo
mática da morte e da separação eficiente dos princí­ através de arquétipos sociais. Constituem-se em
pios vitais constitutivos do homem, sendo com pa­ agentes dos modelos m ítico-históricos que são
nheiras dos cadáveres e dos ferreiros que, na forja, transm itidos à sociedade com certa frequência
produzem ruídos que penetram nas entranhas do através das representações que com põem o que
solo ( ‘Korobla’); podem simbolizar o desconhecido pode ser chamado de teatro sagrado Senufo. A
( ‘N iarou’) e as divindades da noite ( ‘Yeblique’). importância desses modelos não é pequena, pois
Além do bestiário sagrado e das máscaras, a de certa maneira encontram-se na base dos princi­
proposta Senufo de explicação do mundo concebeu pais aparatos sociais que entre os Senufo são,
também os atores travestidos. O papel desses per­ segundo os seus valores civilizatórios, geralmente
sonagens parece ser o de auxiliar ou complementar sacralizados. Para Holas, a exteriorização desses
a ação das grandes m áscaras ao longo de ceri­ modelos - quando agentes eficazes da sociedade
mônias e a dos dignitários delas encarregados. De são acionados - constituem-se em representações
qualquer maneira, esses atores manifestam-se em “... dramáticas, periódicas, cuidadosamente ela­
variadas circunstâncias. É o caso da recriação pú­ boradas, segundo temas m itológicos que fa zem
blica da história dos ancestrais e o exercício da parte da tradição sagrada constantem ente re­
transmitida... Assim, mantêm-se vivas as lembran­
ças históricas e os elementos constitutivos de uma
(9) Conforme depoimento de Gon Coulibaly, 1979, em
imagem do mundo sobre a qual repousa, com
Korhogo. A mesma informação foi obtida em Nenekry,
efeito, toda a edificação social.” (1978: 48).
1978.
(10) Vista na localidade de Nenekry, 1979, fora do ‘Sizanga’,
em local vedado às crianças e mulheres ainda em idade de
menstruar.
(11) Pudemos observar vários deles em Korhogo e em (12) A galinha é um tema que aparece em certas dimensões
Niapieoledougou, neste último caso ao longo de uma ceri­ da iniciação do ‘Poro’. Este seria a galinha-mãe com seus
mônia funerária cíclica. filhotes, os iniciandos.

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Não cabe discutir aqui como e em quais mo­ face de uma determ inada circunstância.15 Cabe
mentos precisos da vida social esses modelos se acrescentar ainda que essas exteriorizações drama­
exteriorizam, passando do plano da consciência ao tizadas da explicação Senufo do mundo exigem o
da sua reprodução material. Para tanto, teríamos domínio do conhecimento dos arquétipos ances­
de penetrar em um universo que não constituiu alvo trais de um grupo determinado, privilégio detido
de nosso trabalho. Pode-se entretanto registrar por um a confraria de sábios - os velhos iniciados
que essas representações se produzem como prática da com unidade - que acionam os atores e super­
social nos principais momentos que envolvem e visionam os acontecimentos.
atingem a comunidade. Dentre outras, propõem Do ponto de vista que nos interessa reter aqui,
explicações sintéticas das relações existentes entre consideramos que esses modelos e suas exterioriza­
o homem e a natureza dentro da ordem cósmica ções materiais envolvem a problemática do conhe­
universal, envolvendo toda um explicação a respei­ cimento e de seu acesso a ele segundo os padrões
to de seus eternos ciclos e etapas. Q uanto ao ancestrais, pressuposto básico da elaboração do ho­
homem, ligam-se aos diversos escalões do conhe­ mem natural-social e da sua integração ótima na
cimento, do mais elementar ao mais complexo e sociedade. Essa problemática também se configura
esotérico, por interferir ao longo dos processos de e se resolve no Bosque Sagrado. Vejamos de que
iniciação que propõem a transformação paulatina maneira.
do hom em natural em hom em natural-social, ‘Sizanga’ propõe ao homem a problemática
transm itindo-lhe a consciência dessas mutações do desconhecido, configurando-se como um misté­
vitais e integrando-o plenam ente na sociedade rio permanente colocado às vistas da comunidade.
segundo os valores ancestrais. Na liturgia, são Ele é habitado por seres atemorizantes, divindades
indissociáveis dos ritos agrários, dos cultos às boas e más, assim como pelos ancestrais, que ali
divindades e aos ancestrais, indispensáveis ao equi­ retomam e se manifestam com frequência. O medo
líbrio material, moral e espiritual da comunidade. instintivo de penetrá-lo e, mesmo, a interdição de
Estão também fundamentalmente ligados à proble­ fazê-lo por quem não esteja habilitado a enfrentar
mática da morte e do renascimento, à elaboração suas forças, servem tam bém para m anter essa
dos ancestrais e às relações entre vivos e mortos, imagem. Por outro lado, o mistério que envolve
produzidas ao longo dos ritos funerários e certas ‘Sizanga’ é reforçado pelas transfigurações que
cerim ônias secretas. Ou seja, nessa instância sofre pela ação humana, sobretudo ao cair da noite,
ligam-se não apenas à continuidade da própria domínio dos temores. Realmente, se bem que certas
sociedade e seus valores, como à continuidade que cerimônias ocorram à luz do sol, à noite, nas oca­
se configura no país dos ancestrais após o fim da siões necessárias, o Bosque Sagrado produz ruídos
existência visível, proposição básica e fonte de estranhos, ouvidos à distância. São os iniciados
legitim ação desses mesmos valores. É possível que se reúnem para cerimônias “fechadas”, ritos
também avançar que essas representações se pro­
duzem num espaço privativo e interdito aos não
iniciados - o ‘Sizanga’ - e em certos espaços públi­ (15) As manifestações esotéricas fazem parte do conhecimento
oculto que é revelado paulatinamente ao longo dos processos
cos, quando é o caso, compreendendo determinadas
de iniciação. Ou que são privativos apenas das sociedades
áreas das plantações, cem itério e até mesmo a secretas.
aldeia na dependência do efeito que se necessita, (16) Os Senufo não pretendem deter o conhecimento total,
se deseja e se pode transmitir à coletividade em que seria privilégio do preexistente. Isso explicaria a exis­
tência de diversas confrarias de sábios, as chamadas “socie­
dades secretas", altamente especializadas em domínios
precisos do conhecimento e que se diversificam em vários
(13) O estudo das propostas contidas nessa problemática pode pontos das áreas ocupadas por essa sociedade. Se todas
talvez revelar as concepções mais profundas da explicação estivessem juntas, o homem deteria o conhecimento total e
Senufo do mundo e do homem. Um notável trabalho feito seria então igual ao preexistente, o que é impossível.
nesse sentido, a partir do ponto de vista da sociedade Bambara, (17) E justamente esse conhecimento que se encontra em vias
é o de Zahan, 1960. de desaparecimento. As tentativas para ao menos registrar a
(14) Nós pudemos constatar entre os Senufo um notável entro- palavra desses sábios são tímidas se comparadas com o
samento entre a aldeia e o cemitério, não ficando estabeleci­ trabalho que isso representa. A nosso ver, somente o trabalho
dos definitivamente em casos observados os limites entre os em equipe poderia trazer algum resultado. Mas já é quase
dois espaços que, ao contrário, pareciam complementares. tarde demais.

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funerários e com unicações com os seres da noite e transm itir os principais valores sociais. Nesse pro­
ancestrais. Os não-iniciados, as m ulheres e as cesso, as representações do teatro sagrado e as m ás­
crianças, recolhidos na aldeia, sabem que homens caras significam, em última análise, o conhecimen­
qualificados estão estabelecendo relações com to de que é detentora a sociedade com o um todo,
forças tem íveis, mas ignoram com o e quais os tom ando-a capaz de decifrar o enigma proposto
meios para fazê-lo e dominá-las. pela explicação do mundo e do homem.
D essa m aneira ‘S izanga’ é um desafio ao Mas o processo de elaboração do homem se­
conhecimento e um enigma a decifrar. De fato, não gundo as propostas da sociedade não é simples e
obstante o seu caráter aparentemente irredutível, nela ‘Sizanga’ desempenha papel da mais relevante
ele pode ser acionado pelo hom em e, de certa importância, senão insubstituível.
maneira, dominado por ele. Mas antes tem de ser O ‘Sizanga’ é um centro irradiador da vida em
conquistado. Ou seja, em últim a análise, o Bosque sentido amplo, pois sintetiza o início do mundo e
Sagrado representa as dificuldades que se apresen­ do homem, bem como a organização e o desenvolvi­
tam para a conquista e obtenção do conhecimento. mento da sociedade. Realmente, é no ‘Sizanga’ que
O conhecimento está perto do homem e este sabe ocorrem os processos finais da iniciação do ‘Poro’
que é possível atingi-lo, mas é um mistério às vezes - a fase ‘Tchologo’ - dos quais emerge o homem
perigoso, enganador, é necessário m uita cautela natural-social idealizado pela sociedade. O Bosque
para penetrá-lo e familiarizar-se com seus múltiplos Sagrado, nesse campo, exerce um papel reparador
aspectos, como é o caso do próprio ‘Sizanga’. Essa das sucessivas dissoluções e recom posições do
conquista - tem ida mas desejada - já foi obtida homem ocorridas ao longo das fases iniciáticas que
por alguns homens, aqueles que têm o direito de antecedem o recolhimento nesse espaço diferencia­
penetrar no Bosque Sagrado e entrar em comunhão do. Essas fases propõem a passagem paulatina do
com ele. Esses homens conhecem e dominam seus homem natural ao homem natural-social e a cada
mistérios, pois que descobriram as suas vias de uma delas o indivíduo toma consciência de sua con­
acesso e percorreram os seus caminhos, que condu­ dição existencial através das revelações concernen­
zem a múltiplos objetivos, alguns mais importan­ tes a cada um dos níveis atingidos. Ora, o homem
tes, outros menos significativos, que às vezes po­ ao nascer e durante um certo período, é um ser
dem estabelecer conexões, às vezes conduzir a natural completo. Sua integração na sociedade vai
nenhum lugar. O Bosque Sagrado não é assim tirá-lo dessa condição paradisíaca e cada etapa de
apenas o universo mágico e misterioso proposto sua iniciação, produzida no quadro am plo dos
pelo imaginário saído das profundas relações que processos de socialização, corresponde de certa
os Senufo mantêm com a terra e o sagrado, mas maneira ao esfacelamento de uma das partes dessa
também a própria imagem do conhecimento. unidade. Inútil realçar que não se trata de um a
O acesso ao desvendamento e domínio desse divisão da personalidade, produzida pelo sentimen­
conhecim ento é aparentem ente sim ples: ele é to de agressão à natureza que se fundamenta na
obtido, segundo as regras ancestrais Senufo, pelo separação entre o homem e a terra, na apropriação
sistema iniciático estabelecido pelo ‘Poro’, com dos recursos naturais e dos instrumentos de traba­
suas etapas sucessivas - outros tantos caminhos lho, elementos desconhecidos pela sociedade Senu­
que levam ao ‘Sizanga’ - onde cada grau obtido fo originária. Tratam-se na verdade de mutações
corresponde a uma síntese da explicação do mundo, sucessivas que correspondem aos processos de
localizando diferencialmente o indivíduo em seu integração do homem na sociedade com a conscien­
interior e em suas relações com a natureza e a socie­ tização ótima das relações existentes entre o natural
dade de acordo com o conhecimento que correspon­ e o social, que é preciso unir.
de a esses graus. Ao atingir as orlas desse conheci­ A humanização progressiva do ser divino - o
mento, isto é, quando chegar a ocasião em que inte­ homem absolutamente natural - é um a imposição
grará o grupo de aspirantes ao último grau iniciá­ da sociedade devido aos processos históricos que
tico - ’Tchologo’ - o indivíduo com eçará realm en­ a constituem. D essa maneira, o indivíduo distan­
te a penetrar no ‘Sizanga’ para finalmente começar cia-se de seu estado natural e acaba reunindo um a
a conhecê-lo e desvendá-lo. A exteriorização do som a de consciência da sua condição natural-
d o m ínio do conhecim ento é dada assim pelo social, mas não a sua síntese. Mas o homem guarda
hom em perfeitam ente caracterizado, capaz de sempre, em sua essência, um a dimensão natural

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Foto 2 - Por vezes há até mesmo uma integração geográfica entre a aldeia, espaço social, e ‘Sizanga
espaço da natureza. (Foto: Fábio Leite)

abalada momentaneamente por esses processos de o esfacelamento relativo do homem natural pro­
socialização, as práticas históricas sendo substan­ duzido pelas sucessivas iniciações anteriores é um
cialmente diversas dos processos da natureza. Ao processo de sacralização do ser humano em sua
final do processo o homem deve recuperar de certa dimensão natural-social, pois de certa maneira ele
maneira sua condição primordial, portador entretanto passará a ser uma espécie de imagem do preexis­
de uma consciência histórica. Essa é a síntese vital tente, do qual já detém o sopro vital ( ‘Neri’) e o
que, chegado o momento, lhe é oferecida pelo princípio da imortalidade ( ‘Pile’), justamente sua
‘Sizanga’. dimensão mais histórica. Esse é o conhecimento
De fato, o preexistente Senufo, responsável pe­ possível, que assemelha o homem ao preexistente.
los processos primordiais da criação, é o único deten­ Mas esse processo reparador e sintetizador exi­
tor do conhecimento universal e o ser mais com­ ge absolutamente a “morte” do iniciando, ou seja,
pleto da natureza, sendo portanto lógico que o ini­ o desaparecimento da personalidade anterior que
ciando, que se encontra à busca de uma síntese, vá devido aos processos de socialização tendeu a fazê-
ao seu encontro e a ele se una. Essa fusão entre la distanciar-se de seu estado original puro tal como
homem e divindade é proposta, materialmente, por foi criada pelo preexistente. Exige também a sua
um ritual que se desenrola no ‘Sizanga’ durante o gestação em direção ao próprio nascimento social,
qual ‘Katyeleo’ pode “... materializar-se em ima­ gestação essa que corresponde à fase das revela­
gem de vulva sagrada, com a qual o adepto consu­ ções que ocorrem no ‘Sizanga’ quando os inician-
ma um casamento simbólico.” (Holas, 1957:145). dos ali são recolhidos. E exige o renascimento total
‘Sizanga’ é assim o próprio centro do universo do propriamente dito, vale dizer, a emergência da nova
qual emana a vida em seu sentido mais abrangente, personalidade onde se fundirão harmoniosamente
representando todos os processos e todas as sínteses. o natural e o social. Esses são os processos funda­
O acesso ao conhecimento sintético, proporcionado mentais que configuram o novo homem sob a égide
por uma união com o preexistente e que irá reparar de ‘Katyeleo’.

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Dessa maneira, o ‘Sizanga’, centro irradiador extrema im portância a esse respeito deve ser reti­
de vida, é o próprio ventre de ‘K atyeleo’, que do: ao longo dos processos iniciáticos da fase
preside esse com plexo processo de m utação do ‘Tchologo’ do Bosque Sagrado ocorre efetivamente
homem. É nesse ventre sagrado que são recolhidos um nascim ento simbólico. Esse ato é dirigido pelo
os iniciandos da últim a fase do ‘P oro’ iniciático personagem ‘K outo’, a que nos referimos antes,
( ‘T chologo’), um a vez despojados de todos os que assume na ocasião o papel de parteira. Os
emblemas da vida social dada pela aldeia - mundo iniciandos tomam a postura de feto, sendo então
acabado da cultura que não é atingido em sua signi­ sim ulado um nascim ento, após o que ‘K outo’
ficação plena senão pelo conhecim ento de sua impõe-lhes um novo nome, iniciático e secreto, um
explicação. R ealm ente, indo da aldeia para o dos p rin cip ais atrib u to s d essa m e tam o rfo se,
Bosque Sagrado, os iniciandos estão praticando tocando-os com um bastão ritual. Aqui eviden­
uma regressão ao estado intra-uterino, desta feita ciam-se, ainda uma vez e da forma mais expres­
dentro de ‘K atyeleo’ - verdadeira imagem da mãe siva, as relações que os Senufo estabelecem entre
Senufo - de onde renascerão unificados, homem e as várias instâncias da realidade: ‘K outo’ é o mes­
natureza constituindo uma só proposta e uma única mo ‘O leo’ ou ‘Sienleo’ da aldeia, o “rio”, o repre­
síntese. Daí serem “mortos” pela divindade, pois sentante masculino mais velho dos ancestrais e
seu estado de afastamento da natureza primordial guardião da terra que, travestido, assume nesse m o­
que continha em si - dado pela vida em sociedade mento o papel de parteira. No ato, sim boliza tanto
e pelos processos de socialização - bem como o a divindade ‘Katyeleo’, imagem da mãe e do prin­
de d e te n to r de c o n h e cim en to s p a rc ia is, não cípio matrilinear, como a sua dimensão concreta
perm itiria a união com a divindade. Inicia-se então de elemento integrador de práticas sociais. ‘Sizan­
a gestação, período durante o qual os jovens são ga’ , útero mágico, é na verdade o espaço sagrado
subm etidos às m ais duras provas físicas e in­ sintetizador de princípios da natureza e dos valores
telectuais tendentes a revelar os mistérios do mun­ essenciais da sociedade. Acionado pelos agentes
do, a verdadeira localização final do homem na sociais que se encontram em interação ótima com
natureza e na sociedade, o caráter sintético do ele, ‘Sizanga’ dá nascimento a um homem pleno
conhecimento segundo os valores ancestrais. Após de identidade e lhe indica o caminho do conheci­
essa gestação, o homem renascerá. Um dado de mento.

LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.

ABSTRACT: This text deals with some aspects of ‘Sizanga’ (Sacred Wood),
social apparatus of the Senufo, African-Negro society, and of the relationships it
establishes in the universe of the historical practices, revealing perception-and reality
organization-forms according to originary values which define the deep identity of
this civilization.

UNITERMS: Senufo - ‘Sizanga’ - Socialization - Identity - Knowlwdge.

(18) Holas (1957) lembra sobre a existência, no interior de (19) Segundo um depoimento, o ato de tocar com o bastão
‘Sizanga’, de um cone de sacrifícios, elaborado em terra, o vem do fato de que os Senufo consideram que a memória é
qual representaria o “umbigo do universo ritu a l”. N ós des­ também sensorial, dela fazendo parte o corpo. Assim , por
crevemos em outros trabalhos um centro irradiador de vida exemplo, uma criança encarregada de transmitir uma mensa­
social localizado sobre monumento em terra que esconde a gem terá sua cabeça tocada três vezes por um pequeno golpe,
pedra que sim boliza o ancestral-fundador de uma aldeia e o que lhe impedirá de esquecer o conteúdo da mensagem por
que existe nas comunidades Senufo (Leite, 1982,1986). força das maravilhas que encontrará no seu percurso.

259
LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.

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1992 A questão da palavra em sociedades negro-
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Recebido p a ra publicação em 10 de dezembro de 1995.

260
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

AXEXE: UM RITO DE PASSAGEM*

Helmy M ansur M anzochi**

...é através da ação ritual que se propulsionam as trans­


formações sucessivas e o eterno renascimento...
(J.E. Santos)

MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 5: 261-266, 1995.

RESUMO: Neste artigo descrevemos a cerimônia do Axexê, observada no


terreiro de Candomblé “Ilê Olorum Wam Be”, em São Paulo, em 1991. Ela é
celebrada quando morre uma pessoa importante da comunidade. Na concepção
africana, a morte não significa a extinção total, mas uma mudança de plano de
existência e de status, para se chegar ao “estado ancestral” .

UNITERMOS : Morte - Transformação - Vida - Ancestrais - Candomblé Afro-


Brasileiro.

Introdução afastar da comunidade a alma do morto para que


descanse em paz” (Ferreti, 1985).
Com o pesquisadora da Cultura A fricana e Esse rito não é aberto ao público, porém, ti­
Afro-Brasileira, nos propusemos a assistir as ce­ vemos permissão do pai-de-santo (Amoiá) para
rimônias realizadas durante um ciclo anual (1990- assistí-lo e neste trabalho descrevemos as observa­
1991), em terreiro de Candomblé. ções feitas.
A ‘pesquisa de campo’ foi realizada no terreiro O Axexê é uma cerimônia ritual fúnebre cele­
“Ilê Olorum Wam Bê”, que possui dois espaços brada para uma pessoa importante da com unidade
em São Paulo, um deles localizado no município religiosa, chefe, filho-de-santo ou ogã.
de Juquitiba e o outro em Taboão da Serra. “Não só etnólogos, desde Herz, sublinharam
Durante a realização dos trabalhos de campo, que a morte, assim como a iniciação, é uma
faleceu um membro da casa. Foram então progra­ passagem para um a outra vida com provas
mados os ritos fúnebres (Axexê), “cujo objetivo é múltiplas a fim de se chegar ao estado ances­
tral, onde o nascimento realiza, para a cons­
ciência coletiva, a mesma transformação da
(*) Artigo que fez parte da dissertação de mestrado da auto­ morte...” (Kabengele, 1977).
ra, apresentada na ECA/USP.
(**) Mestre em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação Esse rito é realizado em um período de sete
e Artes da Universidade de São Paulo. dias consecutivos. No entanto, se um membro da

261
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266,1995.

casa se oferece para fazer as obrigações,' durante - Ta nu batatun enoviô


sete anos, a cerimônia se realiza em apenas três ETILERUÔ
dias. Foi isto o que aconteceu no caso observado.
Entre um e outro canto, o pai-de-santo pro­
Sobre o portão de entrada do “Ilê Olorum Wam
nunciava palavras com energia e em tom im pera­
Bê” foram colocadas cabaças pintadas de branco,
tivo, acompanhando-as de gestos bruscos.
com panos drapeados, formando um conjunto este­
Os cantos entoados durante toda a noite eram
ticamente agradável.
intercalados por danças e saudações do grupo de
No interior do terreiro, em um tronco de árvore
tocadores que se dirigiam ora aos homens, ora às
próximo à casa de Baba Egun, também estavam
mulheres.
colocadas cabaças de vários tam anhos e panos
Nos ritos de Axexê não são usados atabaques;
brancos, os quais representavam os ancestrais do
em seu lugar são utilizados recipientes de barro,
pai-de-santo da casa.
p ercu tid o s com fo lh as de p alm eira. U m dos
Todos os participantes, devidamente vestidos
instrumentos musicais utilizados é o Gã, seme­
de branco, simbolizando luto, usavam pulseiras de
lhante ao Agogô, mas com uma só cam pânula de
palha da costa, trançadas e firmemente amarradas.
ferro (Carneiro, 1948) (Figs. 1 e 2).
As pulseiras são usadas contra Eguns.
Durante os três dias da cerimônia, as canções
Para iniciar a cerimônia, os participantes se
se repetiram exatamente na mesma seqüência.
dirigiram ao barracão, em ordem hierárquica, tendo
Alguns fatos que merecem destaque ocorreram
na frente os membros mais importantes. Na entrada
em cada um dos dias, os quais são relatados a
todos lavaram as mãos em uma bacia que continha
seguir:
água com folhas maceradas e em seguida tiraram
No primeiro dia foi colocada uma panela de
os calçados.
barro no centro do barracão, a qual representava o
Após a entrada de todos os membros no recin­
espírito do morto presente na sala. Aqueles que
to, o pai-de-santo saudou:
dançavam depositavam moedas ao passarem junto
- Agô Babá dela. E, ao seu redor, milho branco, mel, água,
acaçás, cachaça (em volta do axé do mastro).
e os assistentes repetiram:
No segundo dia, os ogãs, antes de iniciar a
- Agô Babá cerimônia, caminharam pelo corredor formado pelas
casas, batendo com longas varas de bambú nos seus
Sons de instrumentos se fazem ouvir e a voz
beirais, até alcançarem o portão de entrada.
do chefe do culto, cantando:
No terceiro dia, q uatro p esso as, as m ais
... Cocorororó... é um bé é um taberé influentes do culto, carregaram um lençol, que
(repetido por oito vezes) aparentemente continha um corpo em seu interior.
- Axexê mojubá o No entanto, esse corpo era form ado por folhas
Axexê, axexê omã (refrão) verdes de plantas, que foram derramadas sobre uma
- Axexê boluô Kê oabalô pessoa. Esta pessoa havia se apresentado para,
Axexê, axexê omã durante sete anos, cultuar os orixás daquele que
Aféieie a inokê, oluô deoaxeké em vida fora seu amigo.
Bandakuxé oluô deoaxemim No decorrer de todo o ritual não observamos a
Koja, koja bamba eruku, ocorrência de possessão. “A possessão ocorre
Kafideriku ô lebarê quando a divindade se apossa do crente, servindo-
- Ta nu batatun enoviô se dele como instrumento para sua comunicação
com os mortais” (Carneiro, 1948).
Encerrada a cerimônia, o pai-de-santo colocou-
(1) São oferendas rituais feitas às divindades para propiciar
se à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas
ajuda, ao crente, em questões m ateriais e espirituais
(Cacciatore, 1977).
(2) O ancestral é o intermediário entre o ser supremo e os
homens (Kabengele, 1977). (4) O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) possui
(3) Eguns são espíritos, almas dos mortos que voltam à terra dois destes instrumentos no cenário “Raízes Africanas”,
em determinadas cerimônias. Há na Ilha de Itaparica o “Culto localizado em sua exposição de longa duração Formas de
aos Egunguns” (Cacciatore, 1977). Humanidade.

262
Fig. 1 - Agogô de ferro. Nagô, República do Benin. Museu de Fig. 2 - Agogô afro-brasileiro de metal Museu de Arqueologia
Arqueologia e Etnologia - USP. Inv. n° 77/d.4.420. e Etnologia - USP. Inv. n° 74/2.2.
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

dos participantes em relação às cerimônias reali­ de existência individual, ao “òrum”, nível de exis­
zadas. tência coletiva. Celebrados os rituais, transforma-
Depois de responder às perguntas formuladas, se em ancestral.
o pai-de-santo, visivelmente alegre e descontraído, Além dos descendentes que o ser gerou du­
dirigiu-se para a cozinha, onde foi servida uma rante a sua permanência no “àiye”, passando para
refeição com posta de peixe, arroz e vinho branco e o “òrum ”, participará, como elemento do coletivo,
dengue. da formação de novos seres.

“Sem Axexê, não há começo, não há exis­


Comentários tência. O Axexê é a origem, e ao mesmo tem­
po o morto...” (Santos, 1975).
O nosso primeiro contato com um rito fúnebre Assim , a concepção que a com unidade de
de heranças africanas ocorreu durante a ‘pesquisa candomblé tem da morte é que ela não significa a
de cam po’ em cumprimento à metodologia propos­ extinção total, ou aniquilamento. M orrer é uma
ta de assistir, por um ciclo anual, as cerimônias de transformação, uma mudança de plano de exis­
um terreiro de candomblé, fazendo este trabalho tência e de status. E são essas transformações que
parte da dissertação de mestrado. dão sentido às suas vidas, como também às suas
Na concepção da comunidade de candomblé, mortes.
cada criatura, ao nascer, traz consigo seu”Ori” (des­ As cerimônias fúnebres assistidas, compostas
tino) e a ela deve ser assegurado o seu pleno desen­ pelas rezas cantadas e dançadas, marcam a pas­
volvimento. O ser maduro para a morte é o que sagem do ser de um plano de existência ao outro, o
completou o seu “O ri”, ao passar do “àiye”, nível que se constitui no seu eterno renascimento.

ANEXO

Yá mofondó do ocoxé
Cantos entoados:
Yá makuná nabaquendé
1) Cocorororó... é um que é um taberé Yá mukuná nabaquendé
(Repete)
3) Dabió a coké ó
Axexê mojuba ê
Orete o megé da biodé
Axexê axexê omã
Ó olóró da mi cója ó
Axexê boluô kê oabalô
Corojá oyaé aé oyaé
Axexê axexê omã
A corojaoyaé
Aféiéié a énokô, oluô deoxeké á olóró da mi cója 6
Bandakuxé, oluô deoaxemim
4) Yá tiléruó
Kojá kojá bamba eruku,
ó duró-ó iku ayé
Kafideriku ô lebarê...
p duró-ó iku ayé
Tá nu batatum... enoriô iku lapalá Babá
Tá nu batatum... enoriô iku goma kekeré
Tá nu batatum... enoriô ó duró iku ayé
(repetido várias vezes) A uié é maboya
Etileruô olómá nixé
(Repete)
2) Ó oniê
A uié é ki komoré
A murassabina abaquassebé
e sufunhé balé cóm a boya
A murassabiô nabaquassebé
elomá nixé
Yá m ofonã eua koisô
5) Ya
ó bobo
(5) Dengue é um mingau de farinha de milho branca.

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MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

Yasin abáagogéa Kaimá ayé kaimá


e é... e é quénda maionqué pepelé pepelé
Yasin alágogéá quenda nuquen
Yasin du balakoxé quenda nuquen
(Repete) omolucum... é madjá iré
ó bobo omulucum... é madjá iré
olani ná kóta moda moré é é madja iré
kóta moda moré é madjá iré da silé
eran osa á morólodé losa beiá
9) Ya tilérué
zarina kóta moda moré
ó bibó marió ió ió
kóta moda moré
iku balé kan Agó Babá
eran osa a morólóde losa beiá
é... apá nu apágogó
akuleruó exu balé
apá nu mafagogó
akulériré exu balé
apá nu mafamoró
óbobó m año
apá nu mafomoró
6) Yá tilérué é abiku oloré
óbobó marió é abiku oloré
Tambóafá Tambogirá loré ni abá oré
é moná siré loré ni abá oré
O óbobo marié é abiku oloyé
é bango bango taté mamé é abiku oloyé
é bango bango taté mamé loré ni abá oré
(repete) Loré ni abá oré
é simbelequé un un un un simbelequé 10) Yá tiléruó
simbelequé tubabá kéoanin Babá Ikú Balé
Jora jora konkanga maneto ó bobó bó marió
Jora jora konkanga Airá Abiku Airá Abiku Abiku
Jora jora konkanga tateto Aira ... Abiku ú ú
Jora jora konkanga Aira ... Abiku ú ú
Abiku oloré
7)Yá tilérué
A irá ... Abiku ú ú Airá
ó bobo oyá
Abiku u Airá
ó bobó oyá
Abiku
batuká nu balé yaré
Abiku ... Abiku A irá
batuká nu balé yaré
Abiku ú ú Airá
agó megé
é Iku ó ónixoloró
oyatú felebé é marió
á foforé oni xoroxé
8) Tá no bongoróé Iku ó onixoloró
Tá tá tá no bongoió á foforó oni xoroxé
Tá tá tá no bongoió 11) é samba samba mirélé-ó
T á n o bongoió samba shé shériomá
Tá tá tá no bongoió samba shé shériomá
Tá tá tá no bongoió é mamba shé shébilá
Jora muketo jora mugangá m amba shé shériomá
Buré buré breketé diré e mane tata eua diré mamé
Buré buré breketé é mane tata euá diré mamé
Ayé kaimá ingangueuá afá é virá mane tata euá que banba diré lo
Kaimá ayé kaimá u banda mane tata euá diré mamé
ó aleuá iku diré... é mane tata euá diré mamé
ingangueuá afá é mane tata euá diré mamé

265
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266,1995.

12) Ya tileruô iku balélé


Banja banja kukurú iku iku ô lodò dan yê dan yê bê olô
oyá banja coxé iku iku ô lodò dan yê dan yê paraiê
Banja banja kukurú
Saudação aos Babas
oyá banjá coxé
Agô Agô babá-babá Petiberé
ê aê aê Vumbê-ê Vumbê pá kerukeru
Kê oayalabaomin Iku Balé Kan
13) Y á tiléruô Abiku Vioye
e oyá balélé-ô Airá... Abiku Airá
ô iku balelé Airá ú ú Airá
ô iku balélé-ô ê Iku ô ónixolorô
ô iku balélé à foforê oni xoroxê
balé balé kê ni xorolô iku ô onixolorô
iku balélé-ô à foforô oni xoroxê

MANZOCHI, H.M. Axexe: a rite o f passage. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 5: 261-266, 1995.

ABSTRACT: We describe the Axexê ceremony, observed at the terreiro de


Candomblé, “Ilê Olorum Warn Be”, in 1991, in São Paulo” . It is celebrated when an
important person o f the community dies. To the African people, death doesn’t mean
a total extintion, but a change of dimension and status, to reach the “ancestral con­
dition” .

UNITERMS: Death - Transformation - Life - Ancestors - Afro-Brasilian


Candomblé.

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Recebido p a ra publicação em 19 de novembro de 1995.

266
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

FIGURAS ZOOMORFAS NA ARTE WAURÁ: ANOTAÇÕES


PARA O ESTUDO DE UMA ESTÉTICA INDÍGENA

Vera Penteado Coelho*

COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

RESUMO: O artigo trata das representações de animais na arte dos índios


Waurá (Alto Xingu, Brasil). Procura encontrar razões para a escolha das figuras
zoomorfas que ornamentam certos objetos da tribo; motivos de ordem técnica,
muito mais que de ordem simbólica estão na origem dessa seleção. São analisadas
também as relações dos Waurá com seu habitat, especialmente no tocante aos
animais da fauna local.

UNITERMOS: Arte prim itiva - Etnoestética - Alto Xingu - Waurá-animais.

Este trabalho é um a tentativa de compreender ras de diferentes denominações), objetos dotados


com o os índios Waurá (tribo de fala Aruak do Alto de poderes mágicos especiais, como algumas flau­
Xingu) se relacionam com o mundo animal e de tas, os zunidores, o barro usado para confecção de
que m odo representam animais em objetos que cerâmica, os duplos sobrenaturais do fogo, da ca­
constituem parte importantíssima de sua expres­ noa e dos seres humanos, um espírito chamado
são estética. Procura assim estabelecer um a cone­ Yamurikumá (em cuja festa se invertem os papéis
xão entre suas concepções acerca da natureza e suas masculino e feminino) e, finalmente, o órgão geni­
criações artísticas. Minhas considerações baseiam- tal fem inino.1
se sobretudo em dados da Coleção Schultz do Entre os índios do Alto Xingu há inúmeras
Museu de A rqueologia e Etnologia da USP, em regras que controlam o consumo dos animais na
observações de campo feitas nos anos de 1978 e alimentação. A principal delas é a que determ ina
1980 e no estudo da coleção etnográfica que reuni que sejam os peixes a principal fonte de proteína,
naqueles anos, que compreende, além dos objetos em bora aves e macacos possam ser comidos oca­
tradicionais, cerca de 300 desenhos entre os quais sionalmente. Não se trata apenas de um a preferên-
os temas zoomorfos ocupam lugar de grande des­
taque.
Entre os Waurá o conceito de “animal” (apa- (1) A respeito do órgão genital feminino cabem aqui algu­
paatae) é bastante amplo. Com preende os animais mas observações. Considerá-lo com o um bicho não é algo
exclusivo do pensamento Waurá; no Velho Mundo vamos
propriam ente ditos, duplos sobrenaturais desses
encontrar crença semelhante. “As crenças populares nesses
animais, os espíritos que vivem na floresta (perso­ distritos (Oberbayem, Tyrol, Kärnten e Elsass) consideram o
nificados na grande m aioria das vezes por másca- útero com o um ser vivo capaz de abandonar o corpo da mu­
lher durante o sono” (Wassén, 1934: 635). Maria Gimbutas
menciona a mesma idéia entre autores da Antiguidade:
“Hipócrates e Platão descreveram o útero com o um animal
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de capaz de m exer-se em todas as direções no abdômen”
São Paulo. (Gimbutas, ms 1986: 19).

267
COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Re v. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

cia alimentar, mas de um importante item de au- animais que conhecemos. (Para discussões mais
toidentificação étnica: povos que comem peixe são, aprofundadas sobre o tema, v. Ingold, 1988 What
segundo os alto-xinguanos, civilizados. Ao con­ is an animal).
trário, os brancos e os índios não-xinguanos, que Nada poderia ser mais estranho à m entalida­
consomem carne de quaisquer animais, são consi­ de indígena do que esta atitude: os Waurá enca­
derados bárbaros; seu comportamento insensato e ram nossas relações com os demais bichos como
belicoso é um resultado dessa alimentação inade­ sendo de antagonismo e oposição.
quada. Mas, se por um lado definem com grande pre­
Tanto animais não comestíveis quanto os se­ cisão os limites e a grande distância entre nós e os
res sobrenaturais representam enormes ameaças animais, por outro lado têm grandes dificuldades
para os seres humanos. Eles estão sempre desejo­ em separar aquilo que consideramos como animais
sos de atacar as pessoas, causando-lhes doenças propriamente ditos e seres fantásticos que perten­
ou mesmo a morte. Quando ficam “bravos” e de­ cem ao domínio da natureza (apapaatae); as cate­
sejam devorar a alma de um ser humano, a primei­ gorias a que eles pertencem não são bem claras
ra providência é tentar identificar qual é o culpado conforme nosso ponto de vista. O que os define é
pela doença. Para isso é necessária a interferência sua irracionalidade e potencialidade maléfica, e a
do xamã. Este entra em transe através do fumo, impossibilidade que os humanos têm de controlá-
“viaja” até o mundo dos espíritos e descobre qual los.
é o responsável pelo mau estado do paciente. Faz-
se então um a festa na qual os homens mascarados *
personificam o “apapaatae” e recebem em nome
deste generosas porções de comida que irão apa­ Cada domínio da natureza é possuído por um
ziguá-lo e fazê-lo desistir do intento de matar o ou vários “bichos” que são considerados seus do­
doente. As máscaras merecem aqui uma palavra nos (w ekehe). A ssim , K ukuhü (um a larv a de
especial. Elas são personificações de animais (rapo­ Sphingidae) é o dono da mandioca; os donos do
sa, tamanduá, ariranha) ou de espíritos (Kuãhãhalo, pequi são o tatu, a raposa, o beija-flor, a minhoca,
Hetau, Atirruá, Sapukuyaw á, Arikamu, Jakui). o morcego, o órgão genital feminino e um inseto
Esses espíritos não são visíveis para todo o mundo chamado Kiririo (Grillotalpa sp.); os donos da flo­
em circunstâncias normais; apenas os xamãs é que resta são espíritos representados pelas máscaras;
os enxergam. Quando os mascarados entram na o dono do céu é o urubu-rei e os donos da água são
aldeia para uma cerimônia de cura, comportam-se os duplos dos animais, do fogo, da canoa e dos
de maneira muito extravagante: falam em falsete, seres humanos.
ferem todas as regras de etiqueta conhecidas e pe­
dem com ida da m aneira m ais inconveniente e *

despudorada possível, dirigindo-se a todos com fa­


miliaridade excessiva. Sem deixar de atendê-los, Os Waurá não utilizam animais de carga, de
as mulheres divertem-se com suas atitudes, que tração ou de montaria e não usam nenhum animal
são vistas como essencialmente cômicas. A festa para trabalhos agrícolas.
transcorre em atm osfera alegre e descontraída. Os animais que vivem perto da aldeia (em
Nada, no comportamento dos participantes, revela especial veados, antas e porcos-do-mato) causam
o caráter feroz e aterrador da personalidade atri­ às roças grandes prejuízos sem que sejam perse­
buída aos espíritos. O sentimento de medo que eles guidos, por medo das vinganças que poderiam exe­
inspiram é disfarçado pelas risadas provocadas por cutar.
sua presença; mais aterrador o bicho, mais ridícu­ Incapazes de prestar auxílio, impróprios para
la é sua aparição. alimentação, e além disso perigosos, a utilidade
Uma das diferenças mais notórias entre nossa dos animais é mínima nas tribos xinguanas.
maneira de ver o mundo e a dos índios é que nós O comportamento dos animais é visto como
consideramos o homem como uma parte integran­ insensato, cruel, louco, inadequado. Isto é observa­
te da natureza, um animal entre outros; procura­ do na vida real e confirmado pelos mitos. Neles os
mos, às vezes desajeitadamente ou com exageros bichos são descritos como capazes de efetuar to­
de sentimentalismo, estreitar nossos laços com os das as quebras possíveis de contenção alimentar e

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de Arque­
ologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

sexual. U m a pessoa estúpida é sempre com parada dança, pintura corporal, plumária, cerâmica, m ás­
a um animal; ela é chamada, por exemplo, de kupá- caras, objetos de madeira (zunidores, banquinhos,
tiwi (cabeça de carrapato), teme-tiwi (cabeça de viradores de beiju, paus de desenterrar mandioca)
anta), yutá-tiwi (cabeça de veado) autu-tiwi (cabe­ e, mais recentemente, introduzidos pelos brancos,
ça de porco-do-mato) e assim por diante, queren­ desenhos sobre papel.3 (Para discussões mais apro­
do com isso dizer que seu comportamento é tão fundadas sobre o tema, v. Anderson, 1979: 1-24;
destituído de inteligência quanto o desses animais. Dark, 1978; Dissanayake, 1988 - em especial ca­
Fora alguns poucos xerimbabos, compreende-se pítulo 2 - e Mills, 1971).
portanto que os Waurá não nutrem especial estima Não há, na língua Waurá, palavra correspon­
por bichos em geral. Não há animais benfazejos dente a “arte”, bem como não existe nenhum obje­
na m itologia nem na vida real, assim como não há to fabricado com finalidade exclusivamente esté­
animais espertos e inteligentes, à semelhança da tica. Também não há especialistas em arte; qual­
raposa das fábulas de Esopo e La Fontaine. Os bens quer membro da tribo pode realizar uma obra de
culturais que outrora pertenciam aos animais eram arte, e nesse sentido refiro-me a “artistas” no de­
por eles guardados avaramente, e foram roubados correr deste artigo como qualquer pessoa que este­
de m aneira violenta; nenhum foi recebido de ma­ ja realizando uma atividade ligada à arte.
neira bondosa ou generosa. Isso explica em parte
a atitude pouco sentimental dos Waurá em relação *
aos animais.
Figuras em forma de bichos constituem os or­
* namentos por excelência dos objetos Waurá. Seria
difícil encontrar uma resposta satisfatória para o
Bons conhecedores dos arredores da aldeia, porquê desse fenômeno. Von den Steinen foi o pri­
os W aurá utilizam -se de seus recursos, exploran­ meiro a assinalar o número expressivo de animais
do-os de m aneira satisfatória. Mas seria incorrer na arte do Xingu, notando aí, paralelamente a au­
em sério engano se supuséssemos que eles amam sência dos motivos fitomorfos (von den Steinen,
a natureza e sabem protegê-la e aproveitá-la de 1940: 376; v. também M onod-Becquelin, 1993:
m aneira racional. Sua relação com o meio am bi­ 534-7). Uma explicação parcial para isso é a de
ente não está isenta de sentim entos de hostilida­ que os motivos da fauna local imprimem caráter
de.2 regional, tribal, a determinados objetos, que assim
se tom am mais típicos, mais diferenciados dos si­
* milares de outras tribos. E pode-se pensar ainda
que a arte cria uma segunda natureza na qual os
bichos não apresentam o caráter hostil que lhes é
Os animais na arte Waurá
atribuído pelos Waurá. Esta segunda natureza fabri­
cada por mãos humanas é feita à imagem, mas nem
É difícil definir “arte” dentro do âmbito de um sempre à semelhança dos animais verdadeiros. Ela
grupo primitivo. Prefiro por isto enumerar quais implica na construção de um universo onde reina
são os campos onde encontramos as melhores reali­ a ordem, e por isso é mais amena, contrastando
zações dos Waurá em termos artísticos: música, com o mundo natural onde reinam a brutalidade e
o caos.
(2) Apesar de temer as represálias dos “bichos”, os Waurá
não deixam de agredir o meio ambiente. Se não o fazem com *
mais intensidade, é porque constituem uma tribo relativamente
pequena (cerca de 100 indivíduos) espalhados por um terri­
tório relativamente amplo, e porque não dispõem de tecnologia
A palavra “bonito” (em W aurá aurrepai) apli-
avançada para tanto. Minhas observações a esse respeito cor­ ca-se mais a pessoas e refere-se tanto a caracte-
roboram as de Mello Carvalho (1951) que também salientou
o alto poder de destruição dos alto-xinguanos em relação a
seu habitat. O medo dos apapaatae não serve como inibidor (3) Os objetos artísticos podem ser de caráter ritual ou utilitá­
da destruição da natureza e não gera uma atitude ecologica­ rio. Não encontramos nenhum deles, entretanto que possa ser
mente correta. considerado como um exemplo de “art for art’s sake”.

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

rísticas físicas como morais. Alguém que seja fisi­ ramente em certos motivos que não justificam a
camente atraente deve ser também cordial, alegre popularidade de algumas figuras e tentar afastar
e generoso para poder ser considerado “bonito” . algumas idéias pré-concebidas que se encontram
U m a pessoa agressiva, m esquinha ou irascível presentes ora de maneira clara, ora de m aneira sub­
nunca é considerada “bonita” mesmo que seja jo ­ jacente em muito do que foi escrito a respeito da
vem e desejável. Dadas as características negativas arte xinguana.
que os Waurá em prestam à personalidade dos ani­
1. A arte não oferece uma chave para o
mais, estes dificilmente podem ser considerados
conhecimento da natureza. Ou, nas palavras
“bonitos” . Obtive em certa ocasião uma lista de
de Morphy: “Os animais na arte não forne­
animais que podem ser representados em cerâmi­
cem uma janela para o mundo, mas uma sele­
ca (Coelho, 1981: 71). Meu inform ante Atamãi
ção do mundo, uma seleção que nos conta
explicou-me que quando os ceramistas acham que
muito sobre as sociedades humanas e as preo­
um animal é “bonito”, modelam-no em suas vasi­
cupações humanas tanto quanto sobre os pró­
lhas. A lista dos animais “bonitos” que me foi trans­
prios anim ais” . (M orphy, 1989: 14) (grifo
m itida então pareceu-m e totalm ente desconcer­
meu).
tante: caranguejo, peixe cascudo, veado, anta, tatu,
sapo aru, tamanduá, “um peixe de focinho com ­ Se fosse possível contar com um inventário
prido” (espécie não identificada), tracajá, jaboti, das espécies animais existentes no Xingu e compa­
arraia, galo, coati, “um pássaro parecido com ga­ rar o número delas com o número dos animais re­
vião” (akuma em Waurá), pacu, jacaré, paca, ma­ presentados na arte Waurá, veríamos que este últi­
caco guariba, lagarto e morcego. Em outra oportu­ mo é muito menor. O processo de escolha dos bi­
nidade, Atamãi acrescentou a canoa a esta lista. chos que figuram no repertório artístico implica
Creio que neste contexto aurrepaí significa “ade­ logicamente na eliminação de um grande número
quado”, “conveniente”. Os animais mais mencio­ de espécies. A avaliação desse elenco leva mais
nados são populares entre os ceramistas, mas a ao estudo da arte do que ao conhecimento da natu­
escolha deles não é feita por imposições de regras reza. Ainda uma palavra sobre a citação de M or­
estéticas. Prova disso é que outro inform ante, phy: “a arte fornece uma janela para o mundo”.
Tauapã, ao enumerar a lista de animais que sabe Essa janela não é provida de vidros transparentes,
modelar, mencionou vários que não figuravam na para continuar usando sua metáfora. Ela mostra o
lista de Atamãi e deixou de mencionar outros que mundo através do prisma da cultura e a visão que
aí estavam presentes (Coelho, 1981: 72). Em ou­ nos fornece está longe de ser objetiva. A fauna do
tra ocasião, Atamãi mencionou alguns animais que Xingu é rica. Os Waurá conhecem-na relativamente
não podem ser representados em cerâmica (Coe­ bem e embora seus conhecimentos não estejam li­
lho, 1981: 70): beija-flor, onça, cobra, porco-do­ vres de preconceitos, vão muito além do interesse
mato e cachorro. Apesar disso, em minha segunda utilitário e das considerações de ordem prática. E
temporada de campo, encontrei vasilhas ornamen­ no entanto essa sabedoria não se reflete em sua
tadas com figuras de onça e de cachorro. Isso não arte. Seria arriscar-nos a uma grande decepção se
quer dizer que as informações de Atamãi tenham quiséssemos ver aí um reflexo dos conhecimentos
sido incorretas. Significa apenas que não há regras do grupo acerca da fauna xinguana, ou pior ainda
específicas para a escolha dos animais e que o ar­ dessa mesma fauna.
tista goza de certa liberdade, sem que esteja sujei­
2. Nem sempre a importância de um ani­
to a proibições ou recomendações.
mal na mitologia e no ritual se reflete na m ai­
or importância de suas representações na arte.
*
São inúmeros os casos de animais sim bolica­
mente importantes que aparecem na arte ape­
nas ocasionalm ente. A onça, por exem plo,
Mesmo sem contar com regras explícitas que ocupa papel prim ordial no mito da criação
expliquem a seleção dos animais na arte Waurá, xinguano (Schultz, 1964: 21-36; Agostinho,
permanece a pergunta: por que alguns são esco­ 1974a: 16-21; 1974b: 16-33; Carneiro, 1989:
lhidos com mais frequência em detrimento de ou­ 3-40). Ornamentos feitos de sua pele (diadema
tros? Para respondê-la é necessário pensar prim ei­ e braçadeiras) são privilégio exclusivo dos

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ologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

chefes, que só os usam em festas especiais; agora está se perdendo, pois muitos rapazes
colares feitos de seus dentes são tidos como que são lutadores medíocres podem ostentá-
ornamentos preciosos em todo o Xingu. Na lo.5 Em outras formas de arte tradicional o mo­
cerim ônia de iniciação dos meninos, em que tivo da sucuri não é encontrado. A pesar disso
estes têm os lóbulos das orelhas perfurados, a sucuri aparece nos desenhos, mas trata-se
só os filhos dos chefes têm direito a sofrer a de uma form a nova de expressão, da qual não
perfuração com ossos de onça. Uma das cons­ estão excluídas as inspirações de ordem téc­
telações mais bonitas do céu é vista com a nica (v. mais abaixo). O gavião real, um dos
configuração de uma onça.4 Entretanto, as re­ símbolos das aldeias alto-xinguanas (Galvão,
presentações de onça na arte são raras: entre 1979: 37) é representado apenas em poucos
as inúmeras coleções que tive oportunidade banquinhos e em um único desenho. O utra
de examinar encontrei apenas uma vasilha de ausência notável é a do gambá. Segundo o
cerâmica, dois desenhos e um banquinho (em­ mito da origem do tabaco, era ele o primeiro
bora este último fosse feito pelos M ehináku) dono do fumo, e foi dele que os homens o rou­
com reproduções de sua figura. Há ainda ou­ baram passando a ser o principal atributo do
tro anim al cuja ausência na arte W aurá é xamã. Apesar disso, e de ocupar um espaço
surpreendente: a sucuri. Sua origem é conta­ considerável no pensamento da tribo, não foi
da em um mito bem conhecido (Coelho, 1984: objeto de nenhuma representação artística es­
8-12; 1986: 53-58) e o próprio animal é con­ pontânea: o único desenho que obtive desse
siderado como um símbolo da força masculi­ animal foi feito a pedido meu (Coelho, 1986:
na. Sua gordura é usada pelos jovens lutado­ 90-92). Para finalizar, vejamos o caso da ra­
res de huka-huka que a passam no corpo de­ posa: na mitologia ela é a antiga dona do fogo;
pois de fazer escarificações a fim de se tom a­ foi dela que os homens o roubaram. Em um
rem mais vigorosos. Nos rituais de iniciação mito a que chamei “O Bebê Chorão” um m e­
masculina o rapaz prestes a sair da reclusão nino é criado por uma raposa; ela é, além dis­
da puberdade deve matar uma sucuri cujo cou­ so, uma das “donas” do pequi e, com o tal, é
ro é dado de presente a seu amigo formal (em tema de uma festa muito importante. Mas ape­
geral outro rapaz da mesma faixa etária junto sar de tudo isso, ela aparece apenas em uma
com quem passou pelo rito de perfuração da máscara e não é encontrada em nenhum a ou­
orelha). Os melhores músicos têm direito a tra representação artística, com exceção de uns
usar, pendurado às costas, um ornamento de poucos desenhos. Exemplos como este podem
m adeira cônico revestido de pele de sucuri. ser encontrados às dezenas na arte Waurá, mas
Este constitui um privilégio que poucos po­ não é interessante enumerá-los exaustivamen­
dem exibir e é um legítim o motivo de orgulho te. Veremos mais adiante outros casos que
para os que o conquistaram. Na pintura cor­ mostram como a escolha de certos animais po­
poral masculina aparece um motivo geomé­ de obedecer a inspirações de ordem sim bó­
trico conhecido como “cabeça de sucuri” for­ lica. O que interessa mostrar aqui é que não
mado por círculos e losangos (Coelho, 1993: se pode ver no repertório artístico de um a tri­
614) usado pelos jovens lutadores de huka- bo um reflexo fiel e exato de seu universo sim­
huka ; consta que em tempos antigos era usa­ bólico: a arte parece orientar sua escolha por
do apenas pelos cam peões; esse privilégio gostos que lhe são peculiares. Em seu estudo

(5) Aqui se faz necessário deixar claro que cobras e outras


(4) A grande maioria das constelações do céu é vista pelos figuras não têm uma conotação sexual, possível de se encai­
Waurá como tendo configuração zoomorfa. Todos reconhecem xar numa interpretação freudiana. Estou de acordo com
perto da Via Láctea a figura de uma onça, que persegue uma Anderson (1979:72-3) e com Mundkur citado por Anderson
anta, a qual, por sua vez, corre atrás de um tamanduá. Essa (1979: 72) que vê grandes dificuldades em interpretar as
identificação coincide com a registrada por Gregor entre os imagens de uma cultura primitiva de acordo com sím bolos
Mehináku (Gregor, 1977:31-32). Agrupar as estrelas dando- próprios da nossa. O melhor argumento em apoio às idéias de
lhes formas definidas não deixa de ser um tipo de atividade Anderson e Mundkur, é que os índios fazem representações
artística. Isso vem demonstrar ainda o enorme espaço reserva­ sexuais explícitas em seus desenhos quando desejam fazê-lo,
do aos bichos na mentalidade Waurá. sem que precisem recorrer a subterfúgios.

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sobre a pintura corporal dos Trumai, Aurore gumas penas de gavião real estão entre os mais
Monod-Becquelin assinala a maleabilidade de cobiçados por todos. Pois bem, estes animais,
critérios na escolha dos motivos, tanto na de­ por mais que se ambicione possuí-los, não vão,
coração de objetos como na ornamentação do a não ser em raras ocasiões, ser retratados na
próprio corpo. O artista Trumai é incapaz de arte. Os artistas dão preferência a desenhar os
prever com antecedência qual a pintura que próprios ornamentos em detrimento dos ani­
irá usar em determinada ocasião, ou que mo­ mais.
tivo irá pintar em seus próprios companheiros.
5. A escolha dos animais a serem repre­
Além disso, hesita muito e entra em inúmeras
sentados na arte raras vezes recai sobre aque­
contradições quando lhe pedem para atribuir
les que inspiram sentimentos (positivos ou ne­
nomes aos motivos. Essas discordâncias apa­
gativos) mais fortes. A idéia de natureza é uma
recem também quando os Trumai tentam iden­
construção mental fundamentada tanto em fa­
tificar animais que aparecem em outros gru­
tores de ordem racional (que visam ordená-la
pos alto-xinguanos. A autora observa uma se­
e classificá-la) com o em fatores de ordem
leção de animais na arte dos Trumai, com um
emocional. Apesar da importância das emo­
número significativo do que chama “os gran­
ções para esta visão, a arte não as reflete em
des ausentes” ou seja, animais cuja enorme
nenhum momento. Como já foi visto, há um
importância na mitologia não corresponde a
forte sentimento de animosidade em relação
sua presença na arte: anta, porco, periquito,
tatu, capivara, paca, veado, lontra, beija-flor, aos seres que vivem na floresta. Embora se­
garça, in h am b u , ja c u , m artim -p esc ad o r, jam odiados, teme-se matá-los mesmo quan­
mutum, perdiz, tucano, urubu, jaburu, tucu- do fazem grandes estragos nas roças. Por ou­
tro lado, os animais trazidos para o convívio
naré, trairão e os diferentes lagartos (Monod-
Becquelin, 1993: 537). Em resumo, tanto en­ doméstico, como macacos e periquitos são al­
tre os Trumai como entre os Waurá, animais vo de carinhos exagerados (muitas mulheres
importantes em contextos rituais não o são deixam que os periquitos venham com er em
suas bocas o beiju que elas am oleceram com
necessariamente na arte.
a própria saliva), ora de grandes crueldades -
3. A utilidade de um animal não influen­ muitas vezes passarinhos e filhotes de tracajá
cia sua escolha como objeto artístico. Os ani­ são dados às crianças, que se servem deles
mais considerados comestíveis não são os prin­ como se fossem brinquedos inanimados ou tra­
cipais personagens do elenco artístico. Se essa tados com desprezo e mortos de inanição, co­
escolha fosse orientada por critérios de ordem mo galinhas ou gatos presenteados por carai­
prática, os peixes seriam de longe as figuras bas. N enhum a dessas em oções, entretanto,
mais populares na arte Waurá. Embora apare­ inspira o artista no sentido de transpor para
çam na cerâmica e nos desenhos, esta escolha sua arte a figura de determinado animal, seja
não é inspirada por serem procurados como ele querido, temido, odiado ou ridicularizado.
alimentos; nos zunidores eles são considera­
dos muito mais por seus poderes mágicos que 6. O fato de um animal ser “dono” (weke-
por serem comestíveis. he) de um determinado domínio da natureza
não garante sua maior popularidade entre os
4. No caso dos adornos feitos com maté­ artistas. O beija-flor, “dono” do pequi, por
ria-prima de origem animal, não são conside­ exemplo, é raramente representado; alguns “do­
rações de ordem estética que determinam qual nos” da água como os duplos sobrenaturais do
a matéria-prima a ser utilizada; trata-se de uma fogo e dos seres humanos não o são nunca, ao
seleção baseada em regras impostas pela tra­ passo que a coruja, que não é “dona” de nada,
dição, as quais, por sua vez, sustentam-se em aparece com frequência na cerâmica.
uma escala de valores arbitrária respeitada por
todos. Ornamentos considerados muito precio­ Vimos até agora algumas das razões que não
sos como colares e cintos de conchas, diade­ explicam a escolha dos animais por parte dos ar­
mas de penas de japu, braçadeiras de penas tistas. Estas conclusões podem ser consideradas
de arara vermelha e diademas que tenham al- como um alerta para arqueólogos: pesquisando com

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culturas ágrafas, eles tendem a ver em pinturas neste caso, é usada mais como pretexto para en­
rupestres ou em coleções de cerâm ica e de tecidos saios formais. Uma vez desenhada a figura de um
figuras de animais que devem ter tido importância determinado bicho, ela pode ser repetida em dife­
para o ritual e para a m itologia do grupo estudado. rentes cores, ou então mostrando grande varieda­
Isto, a meu ver, é errôneo: o repertório dos animais de em número; em uma folha o bicho é desenhado
na arte contém principalmente (mas não exclusi­ um a vez, ocupando todo o espaço disponível, em
vamente) os animais significativos para a própria outra é desenhado duas vezes, ocupando posições
arte. simétricas, em outras três vezes, em disposição tri­
angular e assim por diante. Mais do que a criação
* de uma única imagem, esta atividade reveste-se
de um caráter lúdico: é divertido brincar assim com
Vejamos agora algum as razões que podem uma figura, explorando as variedades que ela pode
explicar o aparecimento de alguns animais na arte. oferecer. Ao fazer isto, o desenhista está realizan­
Em seu famoso estudo sobre mitologia primitiva, do ensaios, com um material que oferece inúm e­
Sperber (1975) refere-se a “animais que são bons ras e ricas possibilidades. Qualquer figura pode
para pensar sim bolicamente” . Parafraseando sua servir de tema para este jogo. Tenho em minha
expressão, podemos dizer que há animais que são coleção de desenhos exemplos de máscaras, co­
“bons para representar artisticamente” . Quais são bras, araras, tracajás, periquitos, galinhas, m orce­
esses animais e que razões orientaram sua esco­ gos, ariranhas, peixes, “Pulo-Pulo” (um ser sobre­
lha? Para entender essa seleção, em primeiro lu­ natural), jacarés - para citar apenas os mais inte­
gar estão considerações de ordem técnica - é im­ ressantes. Há nessa atividade repetitiva uma ten­
portante adaptar a figura ao suporte em que ela vai dência a formar padrões, tom ando a folha de pa­
aparecer. Vale lembrar aqui Wassén (1934: 651). pel um objeto decorado à m aneira dos motivos
“Quero assinalar que as representações de animais geométricos da arte Waurá, nos quais a repetição
em cerâm ica não têm necessariam ente uma co­ rítmica ocupa um papel primordial. Essa ativida­
notação sim bólica ou mitológica. Karl von den de repetitiva é típica da arte gráfica Waurá, em que
Steinen chama nossa atenção para essa ausência determinadas figuras geométricas tendem a ser reu­
de simbolismo em representações de animais fei­ nidas de maneira a formar padrões. Nas figuras
tas pelos índios que vivem na região dos formado­ zoomorfas nota-se a mesma tendência em insistir
res do Xingu”. Nas vasilhas de cerâmica, por exem­ com um número de formas limitado. “Os psicólo­
plo, a própria forma arredondada se harmoniza com gos da Gestalt concordaram em que as ‘boas’ fi­
certas figuras zoomorfas. Usando as palavras espi­ guras são simples, simétricas e regulares. Attreave
rituosas de von den Steinen, “os tatus e as tartaru­ sugeriu que figuras redundantes (isto é, aquelas
gas em vida não são outra coisa senão vasilhames com unidades repetidas) realmente contêm menos
ambulantes; era justo, pois, que na tigela de barro informação. Padrões são mais fáceis de serem lem ­
se im itasse sua casca” (von den Steinen, 1940: brados e julgados bons e agradáveis. Ele foi o pri­
372). Nas coleções de cerâmica Waurá que tive meiro a mostrar que as figuras sim étricas eram
oportunidade de examinar, constatei a presença de reproduzidas com mais facilidade que as assim é­
tatus, caranguejos, tracajás, tartarugas e jabotis. tricas.” (Washburn e Crowe, 1988: 21). Nesses
Tenho em minha coleção um torrador de beiju que casos, a informação proporcionada pela identifica­
reproduz a forma de uma arraia - o torrador de ção do animal é totalmente secundária; o que con­
beiju tem form a discoidal e foi suficiente colocar ta é o aspecto decorativo, e é esse que exige mais
em seus bordos uma cabeça e uma cauda para re­ poder criativo por parte do artista.
tratar um a arraia de form a extrem am ente feliz Há também nessa atividade uma analogia com
(Fig. 1). E no caso de peças de cerâmica ou de vira­ a música: é importante, por exemplo, para um flau­
dores de beiju, pergunta-se ao próprio autor da obra tista Waurá saber improvisar o m aior número de
qual o animal que está representando. E a vontade variações possíveis sobre determinados temas. O
do artista que servirá de base para designar a for­ bom músico é, à semelhança do desenhista, o que
ma representada. Nos desenhos, esta seleção pa­ não se fixa em uma só forma conhecida, mas aquele
rece obedecer ao gosto e inclinação pessoal ou a que cria, a partir dela, uma riqueza de variações
alguma sugestão do momento. A figura do animal, muito maior que a da peça original.

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 1 - Vasilha de cerâmica - torrador de beiju. Ornamentação zoomorfa (arraia). A figura do peixe
harmoniza-se perfeitam ente com a form a da vasilha. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo
Fialdini.

Outro exemplo mencionado por von den Steinen que justifica a enorme popularidade das cobras nos
é o dos viradores de beiju, artefatos feitos de madei­ desenhos Waurá. Pela simplicidade da forma de seu
ra de forma semicircular. Esta configuração sugere corpo, é fácil desenhá-las. Por isso, muitos artistas
imediatamente a figura do corpo de um pássaro vis­ antes de se arriscarem a transpor para o papel figu­
to de perfil. O artista não teve mais que esculpir na ras mais complexas, começaram por desenhar co­
extremidade do instrumento uma cabeça omitomorfa bras como que para criar desenhos-tentativas a títu­
para completar o efeito sugerido por sua forma. Não lo de experimentação com o material como meio de
é por acaso que os pássaros representados nesses expressão. A representação das figuras serpenti­
viradores raramente sejam identificados de manei­ formes em papel foi feita pela maioria dos dese­
ra precisa. Seus próprios autores designam-nos de nhistas. Houve variações em número, em com ­
maneira genérica: “passarinhos”, “patos”, o que binações de cores, em padrões geométricos, em
indica que não estão revestidos de significado sim­ maneiras de representar os corpos (curvilíneos ou
bólico especial (Fig.2). É também o aspecto técnico retilíneos, em zig-zag), e muitas vezes em associa­

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ologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 2 - Viradores de beiju - acima - ornamentação ornitomorfa; abaixo - ornamentação pictórica e


escultórica: jequitirana-boia. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo Fialdini.

ção com outros animais (em especial prestes a de­ Em trabalho anterior, no qual estudei alguns
vorar um sapo). Se, por um lado, a facilidade técni­ aspectos da cerâm ica Waurá, salientei que a iden­
ca de reproduzir cobras em desenho justifica sua tificação dos bichos representados se faz através
popularidade, no campo das artes tradicionais elas de alguns traços conspícuos. São justam ente es­
não aparecem - e seria igualmente fácil representá- ses aspectos formais que orientam na seleção de
las. O problema de adaptar sua forma a outros obje­ certos bichos. Assim, na cerâm ica, o m orcego é
tos parece não ter sido solucionado (cf, nota 5). A escolhido pelo form ato da cabeça, a coruja pelos
escolha do peixe elétrico (poraquê) e de um outro círculos em torno dos olhos, o coati pelo rabo lis­
peixe serpentiforme chamado em Waurá “tucupala” trado, o boi (inovação introduzida em 1980 por
(espécie não id e n tificad a) d eve-se tam bém à influência caraíba) pelos chifres, o peixe acari pela
simplicidade de suas respectivas formas (Fig.3). As depressão circular na parte inferior da cabeça, o
características físicas constituem outra razão técni­ macaco pelo focinho característico. Nos desenhos,
ca que leva os artistas W aurá a escolher deter­ é ainda mais fácil essa identificação: o beija-flor
minados animais para representar em suas obras; o pelo bico pontiagudo, o tucano pelo bico grosso e
fato de possuírem certos traços marcantes e especí­ alongado, o tam anduá pelo focinho com prido, o
ficos que os tomam bem diferenciados faz com que jaburu pelo bico e pela coloração característica
sua figura seja identificada de forma fácil e inequí­ da plumagem . Em outros desenhos, a identifica­
voca (Fig.4). ção pode ser feita através de figuras associadas:
Essas escolhas se verificam especialm ente na os jacarés, as ariranhas e os jaburus são vistos
cerâmica, nos desenhos, no virador de beiju e nos junto a peixes que eles parecem comer. O pica-
paus de desenterrar mandioca (Figs.5, 6 e 7). pau, que os desenhistas representam com um co-

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 3 - Z unidor - decoração p intada (peixe serpentiform e não identificado; nom e em Waurá
“tucupala”). A largura desse instrumento fo i deliberadamente reduzida para assim sugerir m elhor o
form ato do corpo do peixe. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo Fialdini.

Fig. 4 - Zunidor - decoração pintada. As listas representam a figura do peixe piau. Coleção Vera
Penteado Coelho. Foto: Rômulo Fialdini.

lorido nada naturalista, torna-se facilm ente reco­ onar que, quando lhes apresentei coleções de foto­
nhecível por ser desenhado junto a uma árvore, grafias de peças de cerâmica zoomorfas, vários ín­
em posição perpendicular a esta. dios se reuniam para examiná-las e só depois de
Nem sempre, porém, a identificação dos ani­ longas e pacientes discussões é que apresentavam
mais que aparecem no repertório artístico pode ser uma decisão final. Ora, se houvesse muita clareza
feita de maneira muito segura, até mesmo pelos pró­ nessas figuras, uma só pessoa responderia rapida­
prios índios. Animais que não possuem uma ca­ mente ao meu pedido de identificação.
racterística conspicua, como os acima mencionados, De acordo com o pensamento Waurá, há entre
podem ser identificados de maneiras divergentes e os animais e os seres humanos barreiras intrans­
várias vezes conflitantes. Mostrei a meus informan­ poníveis. Nada pareceria tão absurdo aos olhos des­
tes vários álbuns com desenhos das coleções de ce­ ses índios como considerar que os homens são ani­
râmica de von den Steinen e de Schultz, e pedi que mais diferenciados; para eles os seres humanos se
dissessem quais animais tinham sido ali represen­ definem com o o oposto dos animais. Podemos
tados. Raras vezes as identificações coincidiam com encontrar na arte um reflexo dessas idéias: enquan­
as dos autores das coleções. Isso não se deve ao fato to que os animais são um objeto artístico por exce­
de estes colecionadores terem colhido informações lência, a figura humana não pode nunca ser repre­
erradas, e sim à constatação de que o universo sentada, salvo em alguns poucos desenhos sobre
zoomorfo Waurá está longe de ter cânones de figu­ papel, onde ela aparece sempre de forma esque­
ração precisos. Em apoio dessa idéia, posso menci­ mática, não individualizada. Há sérias restrições

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de Arque­
ologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 5 - Pau de desenterrar mandioca. Ornamentação zoomorfa esculpida (cabeça de jacaré). O corpo
alongado do animal é sugerido pela form a do instrumento. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo
Fialdini.

Fig. 6 - Pau de desenterrar mandioca. Ornamentação zoomorfa esculpida (jequitirana-boia). Apenas


a cabeça do inseto está representada, adaptando-se à form a do artefato. Coleção Vera Penteado Coe­
lho. Foto: Rômulo Fialdini.

Fig. 7 - Pau de desenterrar mandioca. Ornamentação zoomorfa esculpida (porco-do-mato). A figura


do anim al fo i reduzida a sua expressão mais simples, para m elhor se adaptar à form a alongada do
instrumento. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo Fialdini.

para se representar seres humanos, pois isso pode­ bição de ordem ritual ou estética para representá-
ria im pedir a pessoa retratada de chegar à m ora­ los, é possível criar com eles um repertório artís­
da definitiva depois da morte (a im agem agiria tico muito variado.
com o que “prendendo” o morto à terra), e é vista
com o sendo dotada de um a força m ágica espe­
cial, que a torna m uito vulnerável. Já com os ani­ Conclusão
mais isso não sucede: pode-se representá-los livre­
m ente sem que isso lhes acarrete o m enor dano; a Pela variedade de animais que aparecem repre­
im agem deles não é dotada de poderes vitais. E sentados na arte Waurá, e pela flexibilidade dos
inversam ente: essas imagens, m esm o quando re­ critérios de sua seleção, vê-se que nesse campo o
tratam bichos perigosos não causam dano às pes­ artista tem grande liberdade de escolha, e que pode
soas. Não havendo praticam ente nenhum a proi­ exercitar sua criatividade com muito mais largue-

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

za que em outras tribos. Entre os Bororo, por exem­ tos de madeira apresentam sempre as mesmas co­
plo, a tradição pesa muito mais que a originalida­ res: bordas vermelhas, superfície branca sobre a
de. Em seu estudo sobre o diadema de penas co­ qual se dispõe decoração geom étrica de cor preta.
nhecido com o “Pariko”, Sonia Ferraro Dorta de­ As inovações nesse campo nunca seriam bem rece­
monstra claramente que a escolha da m atéria-pri­ bidas pelo consenso da tribo, e os artistas não costu­
ma, a disposição das penas, a técnica de confec­ mam ir contra estas regras. Estas observações aju­
ção e o uso do artefato estão ditados por regras dam a com preender melhor o problem a da tradi­
rígidas e cânones estritos e que inovações nesse ção e inovação na arte primitiva. Durante algum
campo não seriam bem recebidas pelo consenso tempo pensou-se que o artista tribal não goza do
da tribo (Dorta, 1981). Embora entre os Waurá haja poder de criar, de inventar, e que não faz mais que
mais margem para a inventividade, não são as ino­ repetir formas e técnicas do passado. Pelo estudo
vações nas figuras zoomorfas que são levadas em de um caso particular, vê-se com que nuances isso
conta quando se julga da boa qualidade de uma ocorre e que para compreender como se dão as ino­
obra de arte. Um objeto não será considerado mais vações na arte de uma tribo, estamos deparando
bonito se seu autor ornamentá-lo com uma figura com algo mais complexo do que parece à primeira
zoomorfa inédita no repertório da tribo. O qualifi­ vista. D aí se pode obter uma pequena contribui­
cativo “bonito” é apücado aos objetos tecnicamente ção para refletir sobre as imposições que a cultura
bem acabados e os bons artistas são aqueles que faz sobre a criação artística, até que ponto o indiví­
sabem fazer obras mais complexas, como as gran­ duo está submetido a elas e até que ponto pode
des máscaras Atirruá e as vasilhas de barro de di­ subvertê-las.
mensões maiores, de confecção mais difícil. E se
pode usar de certa liberdade nas figuras zoomorfas,
não tem nenhuma margem de inovação na forma e
Agradecim entos
na pintura dos objetos.
Assim, as vasilhas de cerâmica só podem ser
redondas ou elípticas, uma ou outra vez admitindo Agradeço às minhas colegas Thekla Hartmann,
pequenos suportes que sugerem as figuras de ani­ Dolores Newton e Haiganuch Sarian por terem li­
mais. Suas cores são invariáveis: o interior é pre­ do e corrigido versões anteriores desse artigo. Que­
to, e o exterior vermelho, tendo em alguns casos ro deixar claro, entretanto, que sou a única respon­
ornam entação geom étrica em tom de vermelho sável pelos eventuais erros e falhas que ele possa
mais escuro, ou marrom sobre fundo bege. Os obje­ conter.

Fig. 8 - Peça de madeira com detalhes em penas, cerol e conchas. Figura de jaburu. À semelhança das
máscaras, é exibida p or pessoas que pedem peixe no centro da aldeia. Coleção Vera Penteado Coelho.
Foto: Rômulo Fialdini.

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de Arque­
ologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 9 - P ar de máscaras com representação zoomorfa (ariranhas). Por ocasião de festas, os


homens, mascarados, pedem peixe às mulheres. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rôm ulo
Fialdini.

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COELHO, V.P. Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Rev. do Museu de A r­
queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

Fig. 10 - Banquinho de madeira. Ornamentação zoomorfa esculpida (urubu-rei). Esta ave é considera­
da como “dona ” do céu. Coleção Vera Penteado Coelho. Foto: Rômulo Fialdini.

COELHO, V.P. Zoomorphic figures in the Waurá art: notes on the study o f an indigenous aesthetics.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 267-281, 1995.

ABSTRACT: This article is about animal representations in Waurá (Upper


Xingu, Brazil) art. The author tries to find the reasons for the choice of certain
zoomorphic figures that adorn tribal objects; technical reasons, much more than
symbolism are in the roots of this selection. The article also analises the relations
between the Indians and their habitat, specially with the animals of the local fauna.

UNITERMS: Primitive Art - Ethnoaesthetics - Upper Xingu - Waurá-animals.

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Recebido para publicação em 20 de março de 1995.

281
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 283-287, 1995.

OS MUSEUS TRADICIONAIS NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA: UMA REVISÃO

Marilúcia Bottallo*

BOTTALLO, M. Os museus tradicionais na sociedade contemporânea: uma revisão. Rev. do M u­


seu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 283-287, 1995.

RESUMO: Através de uma contextualização histórica do surgimento do museu


tradicional na nossa cultura, busca-se refletir sobre seu papel social e cultural na
contemporaneidade, deslocando o eixo da discussão dos objetos para o público,
tom ando-o meta principal de interesse.

UNITERMOS: M useu tradicional - M useologia - Exposições museológicas


- Sociedade contemporânea.

Ao abordar a temática dos museus tradicio­ lores culturais (no sentido amplo), próprios ou
nais, poderia traçar um pequeno histórico da idéia exógenos. No entanto, muitas vezes, esses pressu­
de museu, desde que surgiu enquanto tal, na Grécia postos culturais deixam de ser percebidos dentro
Antiga. No entanto, o museu que nos interessa e desse contexto de valor e transformam-se em sinô­
ao qual me refiro é aquele que nos chega, fm to e nimos de “realidade” ou de “verdades” .
herdeiro do pensamento revolucionário francês que, As instituições museológicas possuem poder
a partir de seus ideais de igualdade e fraternidade afirmador e selecionador do que seja digno de ser
burguesas, abre suas portas ao grande público, pri­ considerado como cultura. Isso acontece, basica­
vilégio, até então, reservado a poucos nobres ou mente, através da escolha dos objetos que vão in­
iniciados. Desde então, já existe a consciência da tegrar as coleções e pela forma como serão expos­
importância do museu como local próprio para di­ tos.
vulgar, consolidar e expandir idéias. O que nunca fica claro para o público é que,
Esse tipo de museu, nascido na Europa, tor- efetivamente, existe uma seleção e que há um pro­
na-se modelo por nós importado, não apenas no cesso que leva o museu a preferir certos conceitos
formato, mas também na estrutura de representa­ em detrimento de outros. Esse desconhecimento
ção. Sua constituição inicial implica em alguns ocorre, ainda devido ao recorte francês sobre o pa­
fatores básicos: a existência de uma coleção; a ex­ pel do m useu e do qual nos serv im o s com o
posição pública dessa coleção; a presença do pú­ parâmetro instituinte do fenômeno museal no nos­
blico. so país (no mais, em grande parte dos países tem
O museu se estabelece em todas as culturas - sido assim).
ocidentais e orientais - como instituição que se O ideário francês, partia do princípio de que
reveste do poder de dissem inar determinados va­ há objetos de várias naturezas que “representam ”
de fato um caráter nacional e que, portanto, deve­
riam ser protegidos num espaço neutro, que teria a
(*) Seção de Documentação do Museu de Arqueologia e função de salvaguardar e, consequentemente, do­
Etnologia da Universidade de São Paulo. cum entar e exibir tais objetos à apreciação públi-

283
BOTTALLO, M. Os museus tradicionais na sociedade contemporânea: uma revisão. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 283-287, 1995.

ca. O contato com aqueles bens, reproduziria, por O museu deve repensar, através da prática
eles mesmos, a idéia de nação que se desejava expositiva, que tipo de relacionamento pretende
implantar. manter com os fatos do passado. Parece certo que
Essa nação construída simbolicamente não se a nostalgia romântica despertada por um passado
restringe aos objetos de caráter “histórico” ou do­ heróico pode ser eficaz no processo de consolida­
cumental e arqueológico, mas também artísticos, ção de determinados valores de uma nação. No
técnicos, artesanais etc..1 entanto, é preciso incorporar outros aspectos me­
O espaço neutro ao qual os revolucionários nos “nobres” desse passado construído, conside­
franceses se referiam é o museu, visto como o de­ rando a possibilidade de o público participar ati­
positário fiel e acritico dos valores nacionais. Essa vamente do processo de reconstrução constante do
idéia de neutralidade tem sido muito bem explora­ passado e da memória. Isso se tom a possível quan­
da até hoje, por grande número de museus - ofici­ do as escolhas - necessárias - são visíveis para o
ais ou não - que reproduzem valores, em geral, de público.
uma elite dominante e que são divulgados como Esse movim ento redim ensiona o papel do
se significassem os valores da sociedade como um museu tradicional na contemporaneidade exigin­
todo.2 do um comprometimento explícito com o tipo de
Ainda quando tratamos de museus com cole­ identidade que pretende construir e divulgar. O
ções que representam o imaginário e a cultura po­ resultado dessa postura, evidentemente, choca-se
pulares, o tratamento museológico dos objetos tem com conceitos constmídos como, por exemplo, o
sido igual ao dos museus “oficiais” . de legitimidade cultural.3
Esse processo, ainda que mascarado, exclui a O desconforto decorrente de uma opção parti­
possibilidade de questionar os conceitos divulga­ cipante é que levará à geração de um fluxo de idéi­
dos, justam ente por não se ter consciência do mo­ as, desencadeando oportunidades de crescimento,
vimento que gerou a formação das coleções e seu de identidade. Dessa forma, o museu poderá en­
significado. O chamado caráter nacional passa a volver-se ativamente na contemporaneidade, ain­
ser um a priori. da que falando de um local privilegiado: o discur­
Hoje em dia, parece claro que não é tanto a so instituído e validador de conceitos, imagens etc..
seleção dos objetos que condiciona a dissemina­ Por outro lado, é justam ente pelo fato de lidar
ção de certas idéias, porém, a maneira como a lin­ com objetos que muitos museus ainda pretendem
guagem museológica trabalha os objetos dentro do possuir o domínio do “passado verdadeiro” ou
contexto expositivo. A riqueza do trabalho com a “real”, pois o objeto enquanto testemunho, possui
cultura material é a possibilidade de conhecimento a “aparência” de imparcialidade sobre os eventos
amplo, variado e múltiplo que se apresenta de acor­ do passado, assim como o próprio espaço que abri­
do com as relações possíveis através do objeto e ga e expõe acervos. No entanto, a decisão sobre o
que uma exposição evidencia. que é o “verdadeiro” passado ou belo ou científi­
É p rec iso d e ix a r claro que a ex p o sição co, acaba produzindo a idéia daquilo que não é
museológica é o resultado de um fazer que englo­ verdadeiro através de uma identidade negativa: o
ba todas as áreas de atividade do museu: pesqui­ que não é história, não é arte, não é ciência.
sa, curadoria, documentação, conservação, ação Esse processo - até então negado enquanto tal
educativa etc., que evidenciam o pensamento ci­ - deixou grande parcela do público excluída da
entífico que orienta uma instituição e que culmina possibilidade de se identificar através das exposi­
na exposição pública desse pensamento. ções museológicas, como agentes históricos, ar­
tistas, cientistas, produtores etc..
A imagem oficial se reconhece como cultura
(1) Embora essa tipologia de objetos m useológicos tenha oficial. A própria tipologia de museus reafirm a
adquirido novos contornos atualmente, ela serviu para isso: museus de Belas Artes em oposição aos de
determinar o tratamento destinado aos objetós, divididos por
categorias - basicamente arte, história e, ultimamente, ciência
- definidas a partir de seu uso ou função na vida cotidiana.
(2) Desde que têm sido, via de regra, os objetos colecionados (3) No caso, o conceito eurocêntrico por nós importado e tido
e cultuados pelas classes dominantes, aqueles que determrnam com o verdadeiro sinônim o de cultura e parâmetro de
o conteúdo das coleções museológicas. civilização.

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BOTTALLO, M. Os museus tradicionais na sociedade contemporânea: uma revisão. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 283-287, 1995.

artes menores, artes populares; museus de história Essa forma de tratar a questão m useológica
em oposição aos de folclore, cultura popular etc.. acabou gerando a necessidade de discutir o papel
Na verdade, o museu como instrumento cul­ social do museu e suas possibilidades de atuação.
tural, ainda hoje, e, em grande parte, se ampara Com isso, a prática museológica e suas várias for­
num a visão de história positivista, surgida no Sé­ mas de estruturar o pensamento na área trouxeram
culo XIX e reproduzida não só nas exposições, mas à tona propostas de museus que rompem com o
em livros didáticos, salas de aula e outros meios museu tradicional, seja em termos de abordagem
educativos e de disseminação e reafirmação de idéi­ do fenômeno museológico ou na sua organicidade.
as e posturas culturais. Os museus de sítio ou ao ar livre, os interativos e a
No entanto, uma revisão mais dinâmica e con­ versão mais estruturada desse novo pensar, os
tem porânea vem permitindo enxergar e avaliar a ecomuseus4 - que são a base da N ova M useologia
H istória como construção e, agora, não mais como - colocam em xeque determinados valores do m u­
“evolução” no sentido positivista, porém, onde a seu tradicional: colecionismo, a tipologia arqui­
elaboração de identidades plurais necessita levan­ tetônica de museus, tipo de relação Homem/obje-
tar o conflito - saudável - da convivência de cul­ to, políticas de aquisição, o papel da preservação,
turas heterogêneas num mesmo espaço/tempo. documentação, ação educativa e, principalmente,
Mais uma vez, o papel do museu é reavaliado formas de exposição e curadorias.
para adequar-se às novas estruturas mentais e cul­ Todas essas novas perspectivas de trabalho
turais que se formam com a incorporação de valo­ museológico vêm forçando o olhar do museu tra­
res externos ao oficial. É necessário pensar o “ou­ dicional sobre si mesmo, exigindo um a reade-
tro” e dar a ele a possibilidade de reconhecimento quação dos meios de sua inserção social form ado­
e identidade. Essa passagem mudou a forma de ra de identidade. Uma das conseqüências interes­
tratar os objetos dentro do contexto museológico. santes desse processo tem sido a substituição gra­
É sabido que qualquer objeto que passa a in­ dual da idéia de exposição permanente para expo­
tegrar um a coleção museológica perde seu caráter sições de acervo de longa duração e várias exposi­
utilitário e cotidiano para se revestir de outros va­ ções temporárias, tentando explorar sempre aspec­
lores (patrimoniais) que serão explorados pelo tra­ tos novos das coleções do próprio museu e de ou­
balho museológico, objetivando reconstruir atra­ tras instituições ou particulares.
vés do im aginário, situações, idéias, momentos Por muitas vezes, essas mudanças acontecem de
históricos etc.. Mesmo quando tratamos de obras forma equivocada, com o museu disputando voz e
de arte - cuja noção de “utilidade” no cotidiano se espaço com os meios de comunicação de massa e
reveste de outro caráter - esse fenômeno permane­ usando estratégias que o afastam de seu objetivo prin­
ce válido. cipal: a relação problematizada do Homem com o
No entanto, a seleção de objetos para compor objeto no cenário museal. Há que considerar que es­
e expor coleções de museus, muitas vezes, deixou sa relação acontece basicamente através do olhar e
em segundo plano a variada gama de possibilida­ que, os recursos auxiliares devem ser entendidos en­
des de leituras contextuáis através do objeto, para quanto tal e não substitutos para aquele exercício.
exacerbar o culto ao próprio objeto enquanto fim O museu tradicional na contem poraneidade
em si mesmo. O objeto museológico sacralizado tem que estar preparado para intermediar a busca
perde sua riqueza - enquanto cultura material - do seu público e para qual tipo de olhar estamos
para tom ar-se símbolo de um poder instituído e lidando num mundo já saturado de imagens. Esse
inquestionável. olhar atento, possibilitado pelo trabalho museológi­
Um a redefinição contemporânea do papel do co, deve permitir ao público amplas e várias pos­
objeto no museu, percebida através das exposições sibilidades: emotivas (evocacionais), cognitivas,
m useológicas, deve buscar valorizar o Homem, socializadoras, educacionais etc.. Ao mesmo tem ­
considerando seu tipo de público, e levantar ques­ po, deve perm itir que valores culturais, encarados
tõ e s a serem d isc u tid a s atra v és do o b je to e como legítimos, sejam redim ensionados na nova
intermediadas por uma leitura de mundo específi­ estrutura.
ca e expressa através da seleção de um curador,
opções museográficas, trajetos, linguagem de apoio (4) Termo que vem sendo questionado pelas conotações
etc.. indesejadas que pode suscitar.

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BOTTALLO, M. Os museus tradicionais na sociedade contemporânea: uma revisão. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 5: 283-287, 1995.

Dentro das novas configurações sociais, eco­ intermediação ativa entre o objeto e o público, dei­
nômicas e culturais que se determinam historica­ xando claro que existe na exposição, um recorte
mente, penso que o papel dos museus tradicionais necessário, desejável, porém, aberto.
deve preservar o espaço museológico como um O trabalho da museologia, em suas várias áre­
meio de comunicação privilegiado e recurso críti­ as aplicadas, e, especialmente, a exposição museo-
co dentro do ambiente da cultura de massas que, lógica devem permitir a capacidade de desenvolver
cada vez mais, toma-se um imperativo com os pro­ a apreciação, a emoção e a reflexão para que, nes­
cessos de globalização. se processo, reaproximem o público de questões
Num museu crítico, a prática do pensar e in­ in trín secas à p articip a çã o do ser hum an o na
terpretar são conseqüências desejadas na forma­ (re)elaboração de realidades distintas. O museu,
ção do olhar atento. O museu tradicional, mais do na sociedade contemporânea, poderá, então, rei­
que reclam ar para si as ferramentas dos meios de vindicar para si um amplo espaço preservado de
comunicação de massa, pode, e deve, tom ar-se o discussão e de exercício da cidadania.
espaço do estranhamento que impõe uma distân­
cia crítica e que permite a análise, a apreciação e a
formação de identidade. Agradecim entos
Dessa forma, a despeito das novas maneiras
de encarar o fenômeno museal, o museu tradicio­ Agradeço às professoras Dirce Guerra Bottallo
nal tem seu espaço fundamental e garantido, sem­ (Museu do Folclore/SP), M arília X avier Cury e
pre que amparado na possibilidade de pensar a si- M aria Isabel D ’A gostino Flem ing (M A E/USP)
m u ltaneidade, a recontextualização, enfim , a pela revisão e comentários sobre o texto.

BOTTALLO, M. Traditional museums at contemporary society: a revision. Rev. do Museu de Ar­


queologia e Etnologia, São Paulo, 5: 283-287, 1995.

ABSTRACT: Through a historical contextualization of the rise of the traditional


museum in our culture, we considerate its social and cultural role in contemporaneity
displacing the centre of the debate from the objects to the public, turning it into the
principal aim of interest.

U NITERM S: Traditional museum - M useology - M useum exhibitions -


Contemporary society.

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1992 L ’invention des musées. Ed. Gallimard, France. 1991 A desum anização da arte. Cortez, São Paulo.
TABORSKY, E. WEIL, S.E.
1982 The social structural role of the museum. The 1991 Rethinking the museum. An em erging new
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and curatorship, 1. Butterworths: 339-345. meditations. Smithsonian Institution Press, USA.

Recebido para publicação em 15 de setem bro de 1995.


Estudos de Curadoria
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

CONSERVAÇÃO PREVENTIVA E PATRIMÔNIO


ARQUEOLÓGICO E ETNOGRÁFICO: ÉTICA, CONCEITOS E
CRITÉRIOS

Yacy-Ara Froner*

FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos


e critérios. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

RESUMO: Este estudo propõe uma discussão sobre o papel da Conservação


- enquanto disciplina sistematizada - nos processos de investigação, resgate e
gerenciamento de coleções arqueológicas e etnográficas. Assim, ao repensar o objeto
cultural do ponto de vista de sua materialidade, perceber que a falta de critérios
nos processos de intervenção tem acarretado perdas significativas quanto a seu
potencial de investigação, relacionado ao seu universo cultural.

UNITERMOS: Conservação Preventiva - Arqueologia - Etnologia - Patrimônio


- Cultura Material.

Introdução inúmeras correntes procuram explicar esta imensa


colcha de retalhos que é o processo de construção
“O patrim ônio histórico e artístico de um da cultura nacional.
povo interessa a todos os indivíduos forma­ “Da cultura brasileira já houve quem a ju l­
dores desse povo e, mais ainda, à coletividade gasse ou a quisesse unitária, coesa, cabalmente
humana dado o sentido universal da arte. O d efinida p o r esta ou aquela qualidade. E há
zelo pelas coisas do passado transporta os também quem pretenda extrair dessa hipotética
países para fora de suas próprias fronteiras e unidade a expressão de uma identidade nacional.
merece especial atenção de todos os governos O corre p o rém , que não e x iste um a c u ltu ra
este cuidado pelas coisas que são m arcos brasileira homogênea, matriz dos nossos com por­
tamentos e dos nossos discursos. A o contrário: a
evolutivos na formação dos povos.”
a d m issã o do seu c a rá te r p lu r a l é um p a sso
(Rodrigo M ello Franco de Andrade, 1939)
d e c isiv o p a ra c o m p re en d e -la com e fe ito de
A formação cultural brasileira tem sido m até­ sentido, resultado de um processo de m últiplas
ria de discussão em vários campos de estudo. Da interações e posições no tem po e no espaço. ”
história à filosofia, da etnologia à antropologia, da (Bosi, 1982: 7).
sociologia à arqueologia, da literatura à lingüística, No bojo dessas discussões, a busca da m anu­
tenção da m emória se dá através de variados es­
(*) Seção de Conservação e Restauro do Museu de Arqueo­ forços no sentido de preservar a cultura material,
logia e Etnologia da Universidade de São Paulo. plural, herdada de nosso passado. A criação do

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimonio arqueologico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico N acio­ perdidas na burocracia, por sua vez, nem sempre
nal; a formulação de legislações voltadas aos bens são bem empregadas, agravando a situação dos
patrim oniais m óveis e imóveis; a fundação de edifícios e dos acervos, os quais vêm sendo des­
museus e casas históricas; a formação de profissi­ truídos, pela falta de cuidados elementares.
onais que se dedicam à pesquisa, à veiculação e à Contudo, o contexto atual não é decorrente da
conservação de bens patrimoniais móveis e im ó­ política atual, mas da evolução de uma série de
veis; todos esses caminhos confirmam esta hipó­ fatores convergentes, existentes desde muito antes
tese. das fundação de Serviço do Patrimônio Histórico
No entanto, o papel do Estado como agente e Artístico Nacional e que se agravaram no Estado
gerenciador do patrimônio cultural tem se mostrado Novo, nos governos militares, na breve era Collor...
bastante insatisfatório. Grande parte dos m onu­ Nas próprias palavras de Rodrigo M ello Fran­
m entos h istó ric o s to m b a d o s p e lo g o v e rn o , co de Andrade, a criação do Serviço nasceu à vista
literalmente caem no chão por falta de manutenção; de ocorrências penosas. “Assistíamos, impassíveis,
inúmeros sítios arqueológicos não são investigados utilizando m eios que logo se revelaram inope­
por falta de financiam ento; inúm eros artefatos rantes, a destruição e evasão dos monumentos e
indígenas coletados são destruídos em áreas de das peças mais caras à tradição e à arte do país. ”
depósito; museus de pequeno, médio e grande porte (Andrade, 1987: 7).
sobrevivem com o podem , diante dos escassos Não é nossa intenção criticar o SPHAN, mas
recursos repassados; as leis que incentivam a pre­ perceber que, gradativamente, o mau gerenciamen­
servação da memória, quando não desaparecem to de nosso patrimônio cultural tem significado a
entre um govemo e outro, raramente são cumpridas. perda massiva de nossos olhos, nossos espelhos,
O resultado desta política centralizadora, má nossos espíritos - que se traduzem no nosso pas­
administrada pelo estado, é a perda quantitativa e sado material - e que os meios pelos quais ainda
qualitativa de nossos bens patrimoniais, fruto da gerenciam os nossos acervos, perm acem inope­
ignorância, da falta de pessoal especializado, da rantes.
falta de verbas e da própria burocracia imposta, no “A perda quantitativa e qualitativa destas
que se refere à manutenção da cultura material. fontes têm gerado lacunas irreparáveis, dificul­
Ao contrário de outros países, o Brasil pouco tando a compreensão e composição deste passado
incentiva a participação da sociedade no processo recente. Os elem entos que com põem este jogo,
de gerenciamento e preservação do patrimônio; muitas vezes, parecem estilhaços de um conjunto
desse modo, a iniciativa privada raramente investe que não se arma. ” (Froner, 1994: 20).
em áreas culturais, fazendo com que o estado seja Se por um lado, a destruição de nossos acervos
o único mantenedor de nossa “cultura material”. evidencia a decadência da atividade pública no
Poucas fundações não governamentais - como gerenciam ento do patrim ônio público, também
a VITAE, a Fundação Roberto Marinho, a Hõechst, demonstra uma falta de preparo para ingressar no
o Instituto Cultural Itaú - têm apoiado e incenti­ mundo high tech, inaugurado pela era da inform a­
vado iniciativas referentes à preservação da cultura tização e pela especialização das áreas de conhe­
e da arte. Assim, o custo bruto da manutenção de cimento que envolvem a cultura material.
no ssos m useus, casas h istó ric a s, ce n tro s de Assim, para além de tantas questões políticas
pesquisa, arquivos, bibliotecas é determinado pelas e em meio a tantas questões teórico conceituais;
p re fe itu ra s , g o v e rn o s fe d e ra is e e s ta d u a is, linhas de pensam ento e de pesquisa; acirrados
universidades federais e estaduais. debates acadêmicos e epistemólógicos; diante da
As verbas destinadas, algumas vezes insufi­ cultura material e dos próprios artefatos resgatados
cientes, outras vezes atrasadas e outras tantas vezes - estudados ou não, expostos ou não, guardados
ou não - , surge um a outra questão de caráter
prático, ainda que permeada pela intenção ética:
(1) Não pretendemos criticar o papel do estado sob o ponto Como conservar os vestígios do passado ?
de vista de conceitos neoliberais, mas apontar os limites da Esta indagação percorre dois níveis: o conceito
administração pública no gerenciamento do patrimônio pú­
e a matéria.
blico. O estado, uma vez que é sustentado pelos impostos,
teria por obrigação cuidar, acima de tudo, da saúde e da edu­
Apesar de compreendermos a vida relativa de
cação de seu povo. qualquer m aterial - a perenidade - , a idéia de

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

conservação tem como objetivo a busca do pro­ lidade dos objetos e quando incorretos, ao invés
longamento da vida útil de uma bem material, em de preservar, podem acarretar graves danos, geral­
relação a dois fatores: o caráter insubstituível dos mente irreversíveis.
objetos culturais e sua “vulnerabilidade cultural” M anter a integridade do objeto é questão
através dos tempos. Assim, a conservação de um básica nos procedimentos de intervenção, desse
edifício, de um artefato ou de uma obra de arte, modo é indiscutivelmente necessário dominar con­
perpassa por vários níveis de estudo, entrelaçados ceitos aplicados da química, da física e da biolo­
entre si, apesar de especializados em sua área de gia, na eleição dos procedimentos de conservação
estudo: e restauro.
Se por um lado, não podemos perder a per­
• as pesquisas realizadas por áreas de co­
cepção de que é impossível reconstituir o objeto
nhecimento específico, seja a história da arte,
em sua materialidade original, devemos buscar es­
h istó ria da arq u itetu ra, a arq u e o lo g ia, a
tabilizar os processos de alteração e degradação
etnologia, a antropologia, toda e qualquer dis­
de um objeto, procurando m odificar o mínim o
ciplina que resgate as informações contidas
possível as características de seus materiais cons­
nas obras, transformando-as em conceitos e
titutivos.
idéias;
Devemos perceber a imensa dificuldade de
• a documentação científica, que controla,
praticar um respeito rigoroso à integridade do
cataloga e mantém organizadas as informações
objeto - tanto na sua preservação material quanto
mínimas necessárias à identificação das obras;
em relação ao seu significado - , mas buscar esta
• o processo de m usealização, que ao
prática a todo custo, para que, através de critérios,
mesmo tempo possibilita a extroversão e o
ética, bom senso e conhecimento científico, pos­
gerenciamento dos bens patrimoniais;
samos atuar de uma forma mais consciente diante
• a área de conservação e restauro, res­
dos problemas materiais de nossa cultura m ateri­
ponsável pela preservação material dos acer­
al.
vos.
A elucidação dos mecanismos de alteração,
N este sentido, mais uma vez deparamos com tanto referente aos grandes fatores (ambiente ex­
um a legislação pouco voltada para o reconhe­ terno), quanto aos detalhes específicos e relevan­
cimento das profissões que lidam com a cultura tes de cada combinação e unidade material, possi­
m aterial. M useólogos, arquivistas e docum en­ bilita a exploração científica dos materiais. A cons­
talistas, há pouco tem po atrás não tinham sua ciência profunda dos mecanismos e dos materiais
profissão reconhecida. Ainda hoje, arqueólogos, condiciona nossa capacidade de com preender a
etnólogos e restauradores não são reconhecidos matéria e as razões pelas quais esse ou aquele tra­
formalmente. tamento é ou não confiável. As inform ações po­
A ssim, se por um lado, cada vez mais tom a­ dem nos ajudar a dirigir determinadas situações e,
se necessária uma especialização nessas áreas de desse modo, propor métodos de controle e inter­
conhecimento, a falta de regulamentação profis­ venção mais controlados.
sional gera, em um outro sentido, a permanência Toda ação é política. Também a ação de con­
de profissionais não qualificados no mercado de servação e restauro encontra-se circunscrita na es­
trabalho e o desestímulo daqueles que buscam uma fera política. Nesse sentido, é indispensável com ­
formação mais especializada. preender e difinir os limites e as extensões de nos­
No que tange a área de conservação e restauro, sos domínios, para que possamos atuar, cada vez
a ação de profissionais não qualificados implica, mais, de forma consciente na preservação da cul­
muitas vezes, em procedimentos inadequados que tura material. Nos escreve Torraca, em um artigo
produzem efeitos imediatos, os quais descarac­ sobre os métodos científicos aplicados em obras
terizam o sentido original das obras e artefatos, de arte:
quando não significa a introdução de elementos
quím icos e orgânicos que aceleram os processos “Os cientistas são facilm ente conduzidos
de degradação das obras. a considerar a conservação como um domínio
É necessário entender que os processos de subdesenvolvido, do ponto de vista científico.
restauração envolvem a ação direta na m ateria­ Em conseqüência têm a tendência de trans­

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

f e r ir d ire ta m en te à co n serv a çã o idéias, as acadêmicas mantêm um certo “ranço” concei­


preconceitos, equipamentos e procedimentos tuai com relação aos trabalhos manuais, às ativi­
p ro v e n ie n te s de um cam po a n te r io r de dades de campo e de laboratório, desenvolvidos
especialização. É apenas depois de experi­ por estes tipos de pesquisa.
ências m alogradas que percebem que os A posição destas áreas - a arqueologia, etno­
problem as não são tão simples: a terra da logia e conservação - , frente às ciências sociais e
conservação é cheia de arm adilhas e os às ciências exatas, toma-se incômoda uma vez que
indígenas são geralmente hostis” (Torraca, lança mão de métodos de análise provenientes de
, 1986).2 ambas as disciplinas para a form ulação de seu
corpo conceituai.
Para compreender a hostilidade dos elementos
Nesse sentido, apesar de aplicarem efetiva­
e da matéria, há um caso, relatado pelo conservador
mente as possibilidades da interdisciplinaridade
Augusto Froehlich que descreve uma peça de metal
na construção de seu próprio campo de conhe­
re sg a tad a do mar. P or fa lta de m ecanism os
cimento, algumas vezes parecem estrangeiros em
elem entares de controle, ao ser im ediatam ente
terras estranhas, uma vez que falam uma língua
exposta à atm ofera, a m atéria desse objeto se
desconhecida, repleta de volabulários ignorados,
decompôs a olhos vistos e de uma significativa
como estratigrafía, sedimento, prospecção...
peça de estudo com forma e contorno se trans­
A visão da arqueologia como mera técnica,
form ou em um am ontoado de m etal corroído
prática servil de outras disciplinas maiores, ainda
(Froehlich, 1994).
sobrevive no meio acadêmico. Tais considerações
derivam, em certa medida, da própria maneira de
as ciências sociais considerarem qualquer trabalho
C ultura m aterial: o juízo
braçal como atividade menor, herança da visão
de valores das ciências sociais
acadêmica implantada no Brasil.
Em um compêndio escrito em 1806, Luís da
A posição dos bens patrim oniais arqueo­ Silva Pereira de Oliveira, cavalleiro professo na
lógicos e etnográficos brasileiros encontra-se ordem de Christo, corregedor da com arca de
ex trem am ente d esig u al em rela çã o a outros Mirando do Douro, natural de Portellas, e sócio
produtos da cultura material. da R ea l A ca d em ia das C ien cia s de L isb o a ,
Qual a porcentagem de museus especializados procurou reunir as informações básicas a respeito
em relação aos museus históricos, museus de arte da origem, caracterização, privilégios e crimes
moderna e contemporânea? destruidores da nobreza (Pereira de Oliveira, 1806).
Por outro lado, até mesmo a área de conser­ Nessa obra, podemos observar a resistência
vação encontra-se dissociada deste cam po de de uma das mais antigas formas de distinção dos
conhecimento: as poucas escolas de formação em grupos sociais: a restrição quanto aos ofícios
conservação e restauro que existem no país prio- m ecânicos, “incom patíveis com a Nobreza, e
rizam o estudo de pinturas de cavalete e esculturas destructivos de seus brilhantes p r i v i l é g i o s A
em madeira, em detrimento do estudo voltado aos crença irrestrita nesses conceitos manteve, durante
artefatos arqueológicos e etnográficos. séculos, a manutenção de um determinado com ­
R epensando o lugar que as profissões de portamento que sujeitava indivíduos a outros in­
arqueólogo, etnólogo e conservador ocupam no divíduos, em função de um cômodo equilíbrio so­
ranking científico, podemos averiguar que as áre­ cial.
Pedro Paulo Funari, aponta a deficiência desta
visão tradicional, segundo a qual a Arqueologia
(2) “Les scientifiques sont facilement conduits à considérer
em si é simplesmente uma técnica (essencialmente
la conservation comme un domaine sous-développé, du point
de vue scientifique. En conséquence, ils sont tentés de
transférer directement à la conservation idées préconçues,
équipement et procèdes venus de leur champ antérieur de (3) Tanto quanto a Arqueologia, a área de Conservação e
spécialisation. C ’est seulement après quelques expériences Restauro também é vista como uma disciplina auxiliar, uma
malheureuses qu’ils apprennent que le problème n’est pas si mera técnica ou uma ação imediata de consertar objetos que­
simple; la terre de la conservation est pleine de pièges, et les brados, negando-se completamente todo corpo teórico, ético
indigènes sont fréquemment hostiles” (N.T.) e conceituai necessário à sua atividade.

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

a abertura de buracos no solo ou abaixar-se para Duarte, Roger Bastide, Rondon, se propuseram a
recolher objetos) que pode ser em pregada em construir centros de estudos voltados para o ge­
benefício da Antropologia, da H istória ou do renciamento efetivo de nossos acervos e que, ape­
divertim ento.(Spaulding apud Funari, 1988: 13). sar de todas deficiências, ainda procuram preser­
A academia brasileira, herdeira direta dos câ­ var, estudar e expor os fragmentos de nossa me­
nones europeus, parece querer m anter o status quo mória.
da arqueologia enquanto disciplina auxiliar. Esta Nesse momento, cabe questionar a validade
abordagem exclui, portanto, a Arqueologia das do resgate e coleta massiva de objetos, os quais,
ciências sociais e enquadra seu campo de atuação depois de coletados - estudados ou não - , acabam
como uma prática de cam po...(Funari, 1988: 7). consumidos em ambientes inadequados propícios
Por outro lado, conhecim ento é poder e o ao ataque biológico, saque e destruição.
conhecim ento gerado pela arqueologia brasileira A questão da conservação dos objetos ar­
sofreu e ainda sofre o controle geral do estado, seja queológicos depois do processo de escavação apre­
pela intervenção direta - com o a fundação do senta um duplo problema: a quantidade conside­
PRONAPA no regime militar - , seja pelo controle rável de documentos a conservar e a justificação
financeiro dos projetos de pesquisa. científica de sua manutenção. Nesse momento, é
Nesse mesmo sentido, a história conturbada indispensável criar um ambiente estável, protegi­
do M useu de Arqueologia e Etnologia da Univer­ do ao máximo contra os elementos que danificam
sidade de São Paulo, o qual reúne um dos maiores as obras.
acervos arqueológico e etnográfico, aponta para a Assim, devemos com preender que ao extrair
influência da política estatal no gerenciamento de um objeto do solo, este passa abruptamente de um
nossos centros de pesquisa. Os problemas gerados regim e de destruição lenta para um regim e de
pela fusão mal planejada de vários institutos da destruição rápida. A sensibilidade desse objeto ao
USP, até hoje vêm sendo sentidos pela “cultura novo ambiente dependerá tanto do tipo de local de
m aterial” abandonada nos depósitos, ainda não onde foi extraído como do tipo de local onde será
reunificada fisicamente (Funari, 1994). acondicionado.
P or sua vez, apesar da riq u ez a indígena Da m esm a forma, objetos etnográficos são
brasileira, estamos longe de criar um Museu do extremam ente sensíveis devido sua com posição
H omem Americano ou um M useu do índio, do orgânica.
porte de museus franceses, alemães e americanos, N ão ex iste nen h u m m a teria l, n atu ra l ou
como é o caso do M usée de l ’Homme em Paris, ou sintético, que não se degrade com o passar do
o M useu de Etnologia de Stuttgard, que “em menos Tempo.
de vin te anos chegou a se ssen ta m il peças, Contudo, o processo de envelhecim ento de­
convencido de que o impacto europeu sobre as pende do meio e da resistência do m aterial ao m es­
sociedades tradicionais modificaria sua essência mo. Toda degradação é irreversível, pois a obra não
de tal m odo que elas se tornariam irreconhe- voltará ao estado original. Porém, ela pode ser es­
cíveis,, (Schumann & Hartmann, 1992). tacionada e controlada.
Se por um lado, todo discurso acadêm ico Qualquer material, mesmo que possua todas
im posto nas obras de Silvio Romero, Fernando as propriedades físicas e quím icas para durar
A zevedo, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto séculos, sofre influências que prejudicam sua
Freire, Darcy Ribeiro, Raimundo Faoro, Caio Prado durabilidade. Essas influências são classificadas
Jr., N elson W erneck Sodré, C arlos G uilherm e como:
Motta, Antonio Cândido, Alfredo Bosi, M arilena
1. agentes internos, que provêm da ma­
Chauí, Ulpiano Bezerra de M enezes, entre outros,
téria-prim a e dos métodos de confecção;
procura valorizar a formação cultural do Brasil a
2. agentes externos, que ocorrem a partir
partir do resgate de nossos documentos e m onu­
do uso e dependem do meio ambiente, da guar­
mentos, por outro, a ação efetiva voltada para a
da, do manuseio, dos materiais constitutivos
preservação real destas fontes, tem sido pouco
e das intervenções.
valorizada.
P o u q u íssim o s h o m e n s, co m o M á rio de Sendo assim, qualquer form ulação de uma
Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Paulo política de gerenciamento do patrim ônio arqueo­

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de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

lógico e etnográfico deve levar em consideração C onservação P reventiva: proposta


tanto os problemas éticos e políticos que envol­ p olítica para a preservação de acervos
vem a manipulação dessa fonte de conhecimento,
quanto os problemas materiais, que consistem em Uma das críticas elaborada na Carta Interna­
métodos de resgate, análise, acondicionam ento, cional da Arqueologia - ICOM OS - é que “uma
manuseio e intervenções, os quais podem destruir série de atividades im portantes como ações de
ou preservar estes objetos de estudos. consolidação e restauro estão em curso nos países
Ver a m atéria em sua m aterialidade não é su l-a m e ric a n o s, sem que p o r isso ten h a se
diminuir seu valor conceituai, mas perceber que ampliado as possibilidades de ação ou as áreas
esta sofre degradação e que esta destruição acarreta de atuação dos esp ecia lista s em arqueologia
em perda de informações; de possibilidades de histórica e pré-histórica
investigação; perda da memória e da história. Este comentário, elaborado pelo Prof. Dr. Amo
Nos vários com pêndios sobre a história da Alvarez Kem, apresenta uma das visões da arqueo­
arqueologia e etnologia do Brasil, nossos pesquisa­ logia brasileira com relação às ações conserva­
dores caem na mesma postura preconceituosa de cionistas: apesar de importante, não deve ocorrer
nossos cientistas sociais perante estas áreas: ten­ em detrimento da pesquisa arqueológica.
dem a ver a museologia, a curadoria, a conservação, Não cabe aqui avaliar se as ações conserva­
a documentação sistematizada e o gerenciamento cionistas - como consolidações e restaurações -
de acervos enquanto disciplinas auxiliares, ferra­ têm sido feitas de maneira criteriosa na América
mentas de trabalho, sem perceber que a riqueza da Latina, mas perceber que, de certa maneira, esta
interdisciplinaridade consiste no respeito mútuo tendência tem se acentuado na área de arqueologia.
entre as várias áreas. Cada campo de estudo, nem V ários p aíses têm assum ido esta p o stu ra
menor ou pior, pode contribuir, através de suas pes­ diante de seu patrimônio cultural. Em um texto
quisas especializadas para a preservação da me­ enviado à Revista Chungara, da Universidade de
mória. Tarapacá - C hile - , os p ro fesso res B ernardo
Entre tantas correntes de pesquisa, por que não Arriaza e Vicki Cassman questionam o papel da
pensar em um a corrente preservacionista, que arqueologia, sob o título ¿ Se está produciendo un
busque, através da ética e das técnicas, assegurar arqueocídio?. Este texto, ao abordar a problem á­
a sobrevivência de nossos acervos? tica da quantidade massiva de material arqueoló­
Nenhum dogma ou crença histórica contestado gico continuamente extraído, questiona a responsa­
pela arqueologia poderá se fundam entar se as bilidade do arqueólogo e do antropólogo físico no
evidências forem destruídas. manejo e gerenciamento destas fontes.
Assim, a ação conservacionista ocorre em duas Um a p o lítica con serv acio n ista perante os
frentes de trabalho: artefatos significa, a longo prazo, assegurar o
• a percepção da questão ética que envolve potencial de investigação desses objetos, uma vez
a manipulação de artefatos, a partir da for­ que se p reo cu p a em m an ter sua in te g rid ad e
mulação leis patrimoniais, códigos de ética e material.
centros de pesquisa; “Pareciera que la prim era ley de la arqueo­
• o papel da disciplina de Conservação, lo g ía es que toda ex ca v a ció n le sig u e una
enquanto área de conhecim ento específico entropía o caos, de tal m anera que es fu n d a ­
capaz de sistematizar conceitos relacionados mental que las sociedades de arqueología tengan
à p rese rv a çã o de ac erv o s, com o agente un papel supervisador mucho más activo en el
fundamental à elaboração de uma política de c o n tr o l y a d m in is tr a c ió n de lo s r e c u rso s
conservação. arqueológicos
Neste mesmo texto, o autor adverte para a
Nesse sentido, propomos na segunda parte necessidade de incluir nos currículos das disci­
deste artigo uma visão abrangente do significado plinas relacionadas com o estudo do passado, as
da Conservação Preventiva e os critérios especí­ cadeiras de manejo de coleções e principios básicos
ficos de controle ambiental, reconhecendo e ana­ de conservação preventiva. Desta forma, as novas
lisando os fatores essenciais de degradação dos gerações poderiam ser orientados a proteger o
materiais. patrim onio estudado - arqueológico ou não - ,

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

percebendo-o globalmente, tanto em seus aspectos acurados, ao mesmo tempo que descarta métodos
materiais quanto conceituais. de intervenção mais drásticos e caros.
U ltim am en te, M éxico, C h ile, A rgentina, Por sua vez, os critérios da Conservação Pre­
Colôm bia, Peru, Venezuela, Equador, países de ventiva têm sofrido uma série de ajustes, em fun­
considerável produção arqueológica na América ção das especificidades do materiais existentes nos
Latina, têm se preocupado com os parâmetros da bens patrimoniais, móveis e imóveis, e das áreas
conservação preventiva, como mecanismo de pre­ nas quais estes objetos encontram-se lotados. A s­
servação de seu patrimônio cultural. Nestes paí­ sim, os critérios adotados em países de clim a tro­
ses, existe uma tendência acentuada de transfor­ pical não devem ser os mesmos daqueles adotados
mar a área de conservação em uma área am alga­ em clim a temperado: a realidade é distinta; os
mada à arqueologia. Solamente el esfuerzo de un parâmetros são distintos; os mecanismos são dis­
equipo profesional mutidisciplinario, real, y no tintos, portanto, a maneira de controlar cada con­
tan sólo en el papel, a sí como un planteamiento texto também é diferente.
de la filo so fía de excavación y m useos podrán No entanto, não cabe ao conservador perseguir
contribuir en form a fundam ental a incrementar os ideais da Conservação Preventiva como se fos­
nuestros conocimientos y a posibilitar la preser­ sem dogmas ou leis, mas procurar, a partir destes
vación y optimización de los recursos arqueoló­ parâmetros, desenvolver uma consciência da mate­
gicos. rialidade e da vulnerabilidade dos objetos entre os
Por sua vez, a área de conservação e restauro vários especialistas, de modo a encontrar aliados,
tem priorizado a conservação preventiva em relação e não opositores, nos projetos preservacionistas.
às técnicas de intervenção direta, como uma ma­ Adaptar-se à realidade das verbas, do espaço
neira de proteger a integridade material dos obje­ e dos materiais que temos por obrigação cuidar,
tos. não é tarefa das mais fáceis. No entanto, a partir
P reserv a çã o é a u tiliza ç ã o de todas as do momento que conhecemos conscientem ente e
técnicas científicas disponíveis para assegurar a tecnicamente nossos problemas é que poderemos
manutenção dos artefatos, coleções artísticas e encontrar soluções compatíveis com a nossa reali­
históricas, de acordo com os critérios que buscam dade. Caminhar um passo na direção do ideal, é
as melhores condições para um acondicionamento uma passo a mais que damos para nos aproxim ar­
adequado. (XV III Congresso A nual da ABPC, mos de situações mais adequadas.
1988).
C om o a m e d icin a p rev e n tiv a, a ação da Os critérios da C onservação Preventiva
Conservação Preventiva intenciona controlar os
agentes de degradação - internos ou externos - , Fundamentalmente, a conservação pode ser
com o intuito de prevenir, estacionar ou retardar a definida como uma operação que visa prolongar a
deterioração dos objetos. Assim, do mesmo modo vida de um objeto, prevenindo pelo maior tempo
que a partir de medidas de saneamento básico, possível sua deterioração natural ou circunstancial.
vacinação e controle a medicina previne o apa­ Porém, vários enunciados podem ser feitos com
recim ento de certas doenças; a Conservação Pre­ relação à Conservação Preventiva:
ventiva se propõe a atuar no ambiente externo, atra­ “Todas as técnicas que tendem a preservar e
vés do controle de fatores como luz, temperatura, controlar as possíveis causas ou agentes de dete­
umidade, ataques biológicos e manuseio - ele­ rioro, que provocam a ação do meio ambiente e o
mentos diretamente responsáveis pelos danos ime­ homem, com o fim de assegurar sua permanência
diatos dos materiais constitutivos de obras e arte­ no tempo, para o desfrute das futuras gerações”
fatos - , prevenindo o aparecimento ou atuaçãos dos “Todas aquelas medidas que tendem a deter
m ecanism os que contribuam à degradação dos ou evitar a deterioração, mediante o controle dos
objetos. elementos am bientais, sejam do tipo natural ou
Se em um p rim eiro m om ento, a ação da social. E uma tarefa m ultidisciplinar que abarca
Conservação Preventiva implica em certos custos, desde o momento de planificação de um edifício
a longo prazo, resulta em econom ia quantitativa e (museu ou centro de estudo), até seu posterior
qualitativa, uma vez que preserva a integridade ma­ funcionamento. Este trabalho se vê diretam ente
terial dos artefatos, possibilitando estudos mais relacionado com a capacitação de pessoal em

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

diferentes níveis, desde os trabalhadores de lim­ queológicas e etnográficas: excesso de U.R. com ­
peza, guardas, custódios, documentalistas, museó- bina a ação hidratante e corrosiva; carência pro­
grafos, etnólogos, arqueólogos até aqueles níveis move a desidratação e diferença de contração; a
de direção e também a população em geral.” mudança dos coeficientes de U.R. promove um
‘Todas as ações que busquem evitar e diminuir câmbio dimensional dos materiais higroscópicos,
a degradação precoce de bens culturais, concebidas ocasionando um esforço físico muitas vezes m ai­
interdisciplinarmente e trabalhadas multidiscipli- or do que o suportável pelo objeto.
narmente, tendo em conta o edifício e a coleção, Coeficientes muito altos de umidade provo­
maximizando recursos humanos e econômicos.” cam a corrosão dos objetos metálicos, atacando
“A metodologia que estabelece sistemas e es­ também as superfícies dos vidros - tom ando-os
tratégias não interventivas, orientadas para a pro­ baços e esbranquiçados - devido ao seu alto teor
teção dos bens culturais” . alcalino. Os sais higroscópicos de alguns objetos
Todos estes conceitos, retirados de um exer­ tratados, em pedra e cerâmica, podem formar cris­
cício orientado elaborado durante o “I Curso de tais de maior volume (M gS 04 - M g S 0 4. 6H20 ).
Conservación Preventiva: Colleciones dei Museu Além do mais, a umidade é base para o cresci­
y Su M edio A m biente”, reproduzem a visão da mento de microrganismos e proliferação de insetos.
Conservação Preventiva de mais de vinte e cinco
especialistas, de arquitetos a diretores de museus, Temperaturas
de dez países latino-americanos. Realizado a partir
de esforços conjuntos entre The Getty Conser- Extremamente nocivas são as temperaturas
vation Institute - EUA - e o INAH - México - , muito altas, pois reduzem o coeficiente de umidade
este foi o primeiro curso dessa natureza direcionado do ar e secam ex c essiv am en te os m a te ria is
à A m érica Latina, dem onstrando que pouco a higroscópicos. Temperaturas muito baixas também
pouco esta disciplina tem tomado corpo em nossos são nocivas, como no caso da “peste do estanho”
países. - a pulverização dos objetos confeccionados em
Neste mesmo sentido, revistas como a APOYO, estanho - que ataca a uma temperatura de 13°C.
coordenada por Amparo R. de Torres e Ann Seibert Nas áreas com temperaturas muito baixas, a
e subsidiadas pelo Sm ithsonian Institute, têm neve e o gelo podem provocar danos em objetos
publicado textos voltados para a preservação do arqueológicos, devido ao desgaste e pela concentra­
patrimônio cultural latino-americano. ção de umidade nas superfícies.
Cabe perguntar, quais são os parâmetros da
Conservação Preventiva e com que ela se preocupa?
Poluição
M últiplas são as preocupações da Conserva­
ção Preventiva e os elementos degeneradores da
Desde o século XDC, os danos causados pela
matéria, com os quais temos que lidar, atuam de
poluição vêm se tomando evidentes: o C 0 2e o S 0 3,
forma associada, estando longe de ser completa­
liberados pelas indústrias e pelos carros, associa­
mente controlados. Cada vez mais a química, a
dos à umidade do ar, provocam compostos ácidos.
física, a engenharia, a meteorologia atuam como
Os poluentes atmosféricos atuam muito mais
d isc ip lin as aplicad as à conservação de bens
do que podem os realm ente “enxergar” : alguns
culturais, o que nos abre um leque de possibilidades
componentes do ar podem modificar as estruturas
diante da interdisciplinaridade.
internas, promovendo inclusive reações químicas.
Várias são as origens dos danos em obras de
Os poluentes mais ativos são os compostos
arte, como também os métodos de controle per­
de enxofre, o dióxido de enxofre ( S 0 2) e o anidrido
tinentes. A seguir, decreveremos suscintamente al­
sulfúrico ( S 0 3), gases sulfurosos produzidos pela
guns parâmetros, para dar uma idéia do universo
combustão do carbono - característico dos grandes
de atuação desta área de conhecimento.
centros urbanos e locais de trân sito intenso.
Através da umidade (H20 ) transforma-se em ácido
Umidade do ar sulfúrico (H2S 0 4) , acidificando e corroendo vários
elementos.
A umidade do ar é um dos fatores mais im­ As impurezas sólidas e gasosas têm efeitos
portantes no processo de degradação de obras ar­ prejudiciais sobre os objetos: o pó, a terra, a

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
d e Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

fuligem, o pólen e outros corpos podem aderir-se modificar seu estado sólido para um estado líquido
às superfícies dos materiais, provocando reações de acordo com sua temperatura de transição vítrea.
químicas e concentrando os gases e a umidade do
ambiente. Ataque biológico

Luz Os agentes biológicos geralmente são introdu­


zidos nas coleções, arquivos e museus através do
A luz se define com o o agente físico que ambiente extemo ou a partir do contato com outros
ilu m in a os o b je to s e é fo rm a d a p o r o n d as materiais infestados, trazidos de outros edifícios.
eletromagnéticas, constituindo um grave perigo à O agentes considerados mais prejudiciais aos
conservação, pois produz - principalm ente nos acervos confeccionados em material orgânico são
objetos orgânicos - danos irreparáveis. aq u e le s que ca u sa m d an o s a p a rtir de suas
As radiações luminosas, naturais e artificiais, atividades de alimentação.
causam, segundo a frequência e o comprimento das Contudo, excrementos, corpos em decom po­
ondas incidentes sobre o objeto, diferentes danos. sição (insetos m ortos), casulos e teias tam bém
Toda luz é nociva e seus efeitos são acumulati­ promovem a degradação dos materiais, podendo
vos: assim, uma exposição de dez horas a uma certa ser classificados basicamente em três níveis:
intensidade de luz poderá ser igual a uma hora de
exposição a uma intensidade de luz mais forte. • por fungos e líquens: quando a umidade
O processo de degradação, de acordo com a e a temperatura são elevadas;
fotossensibilidade dos objetos, prosseguirá através • por insetos: os materiais a base de celu­
de uma reação contínua, mesmo na ausência de lose são os mais atacados pelos xilófagos -
luz. Dessa forma, uma vez ativada a molécula, uma térmitas (cupins) e coleópteros (besouros) - ,
série de reações são desencadeadas e o centro de sofrendo também ataques de baratas, traças,
reações se multiplicará através de cada molécula. moscas.
As radiações visíveis são extremamente pre­ • por animais maiores: os pombos e os
judiciais aos artefatos, sendo que em um dia normal morcegos danificam os materiais através de
a in te n sid a d e de luz n atu ra l cheg a a ser de seus excrementos; os ratos são os mais nocivos
lO.OOOlux. Geralmente produz o fenômeno de des­ pois, além dos excrem entos, atacam d ire­
coloração de pigmentos orgânicos e inorgânicos. tamente o suporte orgânico.
A radiação ultravioleta, altera, particular­
mente, os objetos orgânicos, sobretudo as pinturas; Estes são apenas alguns fatores a serem con­
os têxteis e os papéis os aglutinantes e os vernizes, siderados, tanto de m aneira isolada quanto inte­
gerando degradações químicas e físicas - efeitos grados entre si. M anuseio inadequado, ambiente
fotoquím icos. Dois tipos de reações podem ser de resgate, planificação, são outros fatores a se­
observadas: rem levados em conta, em relação aos materias ar­
queológicos e etnográficos.
a) a oxidação prom ove a ruptura das Assim, a partir dessa amostragem, podem os
cadeias e um encolhim ento das moléculas, perceber a com plexidade que envolve o controle e
tom ando o material menos resistente m ecani­ a preservação de bens patrim oniais, sendo per­
camente; meada tanto pela postura ética daqueles que m a­
b) a luz UV promove o aparecimento de nipulam os acervos, quanto pelo conhecim ento
ligações cruzadas, conduzindo ao fenômeno técnico, daqueles que intervém diretam ente na
de insubilização, tom ando o produto cada vez matéria.
mais rígido. A incapacidade de acompanhar a
movim entação do objeto de contato promove
C onclusão
tensões, aparecendo fissuras e rachaduras.

A rad iação in fraverm elh a é preju d icial A Conservação Preventiva e a Conservação


devido à alteração térm ica, com o aquecimento Interventiva (restauração), direcionadas para áreas
tanto do ambiente quanto das obras. O aquecimento de estudo específicas - com o a arqueologia, a
incide sobre as resinas termoplásticas, que podem etnologia, a h istó ria da arte, a m u seo lo g ia, a

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

arquitetura têm por obrigação orientar essas e reservas técnicas, subm etendo-a a um a frag­
disciplinas na execução acurada, voltada para a mentação possível diante de circunstâncias inós­
preservação da cultura material, de suas tarefas. pitas.
Não é intenção posicionar-se em níveis distin­ Não vale a pena retirar de uma tribo um bastão
tos perante essas matérias - acima ou abaixo - , ritual, para vê-lo consumido por cupins.
mas perceber que a fusão dos conhecimentos; o Não vale a pena restaurar uma ânfora de bronze
respeito mútuo pelos critérios de cada disciplina; de três mil anos, se destruímos seu núcleo metálico
a busca de caminhos mais seguros, só tendem a e com ele carregamos inscrições, desenhos e inci­
incrementar o desenvolvimento de nossas ações. sões.
Assim, quando deixarmos de ser imediatistas Torna-se extrem am ente com plicado exigir
e vaidosos, pensando apenas em nosso objeto de uma consciência preservacionista com o parte da
estudo, exposição ou restauração, e pararmos para cidadania, se os próprios agentes responsáveis
pensar que este pequeno objeto deve perm acer pelos acervos - secretários de cultura; coordena­
cognicível para as gerações futuras, então teremos dores do patrim ônio; diretores de museus; mu-
com preendido o real sentido da integridade da seólogos; pesquisadores; restauradores; educado­
cultura material - enquanto conceito e matéria. res - não assum em esta postura de form a ética e
Não vale a pena destruir um objeto de duzentos prática.
anos, para expô-lo de maneira inadequada por cinco A cultura material, sob o ponto de vista de seu
dias. caráter integral - material e imaterial - , só tem uma
Não vale a pena retirar do solo um a urna chance diante deste mundo em acelerada transfor­
intacta de mil anos, para esquecê-la em laboratórios mação: nosso sincero respeito.

FRONER, Y.-A. Preventive Conservation and Archaeological & Ethnographic Patrimony: ethics,
concepts and criterious. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301,
1995.

ABSTRATC: This paper proposes a discussion about the role of Conservation -


as a sistematic discipline - related to investigation, rescue and management of
archaeological and ethnographic colections. Taking the cultural object from the point
of view of its m ateriality, we argue that the absence o f proper retrieval and
management procedures considerably reduce its potential as a source of investigation
about cultural processes.

UNITERMS: Preventive Conservation - Archaeology - Ethnology - Heritage -


Material Culture.

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Recebido p a ra publicação em 20 de dezem bro de 1995.

301
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

CULTURA MATERIAL: AS PROPOSTAS DE


UMA TAXONOMIA GEOGRÁFICA

Fátima Regina Nascim ento*


Wallace de D eus Barbosa*

NASCIMENTO, F.R.; BARBOSA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geo­
gráfica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

RESUMO: Partindo de uma reflexão sobre a classificação da cultura material


de grupos indígenas brasileiros através do conceito de áreas culturais, os autores
proprõem um a classificação alternativa por estados federativos.

UNITERMOS: Cultura material - Etnologia indígena - Áreas culturais.

Um a das primeiras tentativas de estudar a in­ lados anti-evolucionistas de Bastían nem sempre fos­
fluência do meio sobre as sociedades humanas e a sem levados em conta.
distribuição geográfica das culturas parte do con­ A conveniência, ao se preparar exposições nos
trovertido Adolphe Bastían (1826/1905), cuja obra museus etnográficos, em se agrupar objetos de cultu­
m arcada por um a oposição arraigada ao evolu­ ra material pertencentes a grupos de populações espa-
cionismo sugere numerosos temas de pesquisas es­ cialmente vizinhas, evidenciando, de imediato, seme­
senciais que, freqüentemente, ficaram sem conti­ lhanças formais; e ainda, a possibiüdade de diver­
nuidade. sificações sobre um mesmo tema e presença sempre
Segundo Paul M ercier (1974:42), sua obra não simultâneas de certos elementos, apresentam interes­
está livre de contradições e R. H. Lowie (1971: 40) se, o que tam bém instigou am ericanistas com o
reconhece que a profusão de idéias sólidas e esti­ Wissler e Kroeber. No entanto, os esquemas classi-
mulantes colocadas pelo etnólogo alemão perma­ ficatórios propostos por estes autores suscitaram difi­
neceram, em sua maioria, “em grande penúria de culdades em sua aplicação ao caso brasileiro, tanto
resultados definitivos”. Contudo, Bastían era um por falta de informação factual sobre grande número
precursor e foi sua formulação inicial das “provín­ de etnias, como pela redução dos territórios indíge­
cias geográficas” que deu origem ao que se conhece nas pela expansão luso-brasileira, concentrando em
hoje por “área cultural”. Apologista de uma “antro­ uma mesma área grupos de origens totalmente di­
pologia aplicada”, afirmava que “os erros das ad­ versas, como certa vez argumentou Eduardo Galvão
ministrações coloniais poderiam ser evitados, se (1979), para com quem mantemos o débito da mais
fossem levadas em conta as descobertas desta ciên­ efetiva classificação em termos de Brasil, sobretudo
cia que, em seu entender, deveria ser utilizada para no que diz respeito à cultura material.
o bem dos homens” ( Mercier, 1974: 47 ). Adaptando os esquemas posteriores de Steward
Parece ter sido neste espírito que se desenvolveu e Murdock, realocando alguns grupos e propondo
a escola histórico-cultural alemã, embora os postu­ mudanças no delineamento de várias “áreas”, Galvão
estrutura seu modelo baseando-se na distribuição
(*) Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Ja­ espacial contígua de elementos culturais (1979:
neiro. 205).

303
NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Devemos reconhecer, no entanto, que a perspec­ Nacional-UFRJ nas décadas de 70 e 80 onde encon­
tiva proposta por Galvão almeja principalmente os tramos as seguintes soluções para a identificação de
grandes estudos comparativos e de mudança cultu­ peças coletadas;
ral. Mesmo reconhecendo a relevância de tais estu­
Por Estados :
dos e a importância de sua contribuição, nosso inten­
G uarani - Estado de São Paulo
to dirige-se presentemente no sentido de uma taxono-
Fulniô - Estado de Pernambuco
mia geográfica que proporcione uma operacionali-
Xavante - Estado do Mato Grosso
dade desejável em termos de armazenamento e cata­
logação de itens da cultura material dos índios do Por Estado e Língua :
Brasil, de forma a tomar mais exeqüível a tarefa do Karajá - Jê (Goiás)
museólogo e do antropólogo cultural. K rikatí - Jê (M aranhão)
O hábito de se formar coleções para museus etno­
Por Etnônimos :
gráficos, através de viagens a campo, tomou-se para
Tapaiúna - Beiço-de-pau
os pesquisadores, em muitos casos, tão comum quanto
Krenak - Botocudo
aquele de tirar fotografias. Em ambos os casos o
método seguido e os critérios de seleção pecam por Por Área C u ltu ra l:
se evidenciarem demasiadamente intuitivos. Wai Wai - índios da Guiana
Ao preparar sua excursão, dificilmente, como Xucurú -N o rd este
bem aponta Collier (1973), o pesquisador se deterá
Alternativamente, surgem exemplos de locali­
em um exame mais detalhado do tipo de máquina
zação pelo Parque ou Área Indígena (Ex.: Suyá -
fotográfica, lente ou filme que usará em campo. A
P.N.X., Mato Grosso), especificando, por vezes, o
técnica do registro fotográfico segue, portanto, o
grupo e a língua, outras não.
conhecido lema de Eastman : “Você aperta o botão e
Concluímos, a partir desta consulta, que a mai­
nós fazemos o resto” - fazendo com que o pesquisa­
or parte dos pesquisadores se utilizam da classifi­
dor se assemelhe, nestas condições, com o turista via­
cação por grupos e/ou Estados Federativos, sobre­
jante, coletor de provas atestatórias (fotos e objetos
tudo desta última, na medida em que, acreditamos
artesanais) de sua presença em reservas distantes1
ser esta divisão político-geográfica, tradicionalmen­
sem um maior cuidado seletivo na obtenção deste
te, de domínio geral. Evita-se ainda, desta maneira,
tipo de material, assim como com sua descrição su­
um com prom etim ento m aior com a ideologia
mária.
difusionista em primeira instância, da divisão por
Ao proceder desta maneira, o pesquisador depa­
Áreas Culturais.
ra em seu regresso com uma profusão estonteante de
Para operacionalizar a listagem com tal divisão,
fotos e objetos, na maior parte dos casos sem descri­
nos utilizamos de três fontes principais que se revela­
ção, o que faz com que freqüentemente haja uma de­
ram complementares no transcurso de nosso traba­
pendência exagerada das anotações de campo, nor­
lho, tendo em vista os propósitos desta pesquisa.
malmente insuficientes no tocante aos aspectos em
Primeiramente foi utilizado o M apa Etno-His-
pauta.
tórico de Curt Nimuendajú, publicado pela Funda­
A primeira iniciativa para a tipologização da pro­
ção Pró-Memória do SPHAN/MEC, elaborado pelo
dução cultural autóctone a partir de uma perspectiva
etnólogo entre 1943 e 1944. Neste mapa, encontra­
geográfica se dá através da identificação do grupo ao
mos informações fundamentais sobre grupos extin­
qual pertencem os objetos ou, na falta de dados a este
tos e rotas migratórias. Paralelamente, o trabalho
respeito, pode-se optar genericamente pela classifi­
de José da Gama Malcher, de 1962, além de comple­
cação de Galvão (1979), bem como pelo critério
mentar as informações da fonte supracitada, já se
lingüístico na falta de outro, embora a identificação a
utiliza da classificação das “Áreas Culturais” de
partir dos Estados Federativos seja bastante recor­
Eduardo Galvão.
rente.
Para localizar atualmente os grupos indígenas na­
Para exemplificar esta situação, nos valeremos
cionais, utilizamos finalmente o Mapa dos Povos Indí­
do livro de registros do Setor de Etnologia do Museu
genas do Brasil e Presença Missionária, publicado pelo
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que inclui
(1) A este respeito, Fénelon Costa & Monteiro (1971) suge­
rem questões interessantes no tocante à relação entre o turis- informações de ordem lingüística, assim como sobre
mo-de-massa e a abertura do mercado de “artes exóticas”. as missões religiosas que atuam junto a cada grupo.

304
NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do M useu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Assim, a proposta resultante da compilação des­ lingüística e fornecer breves informações sobre sua
tas três fontes é apresentada na lista a seguir como situação atual:
um esquema preliminar e provisório - aberto a atuali­
A = Grupo Atual
zações - de divisão, passível da ser utilizado como
modelo para fins de curadoria e pesquisa. E = Grupo Extinto
F = Fam ília Lingüística
*
L = Língua

Obs.: Utilizamos, na listagem, o seguinte código a L D = Língua Desconhecida


fim de situar os grupos de acordo com sua família L I = Língua Isolada

Listagem da Presença Indígena nos Estados Federativos do Brasil

ACRE

Kanamari Séc. XIX F - Aruak


Kapecheni F - Takana
Maniteneri F - Aruak A
Kulina F - Arawa A
Yaminawa (Janinawá) F - Pano
Katukinakú 1898 LD E
Katukina F - Pano
Kuria F - Aruak
Koto LD E
Tawarí LD E
Kaxinawá F - Pano A
Ararawa F - Pano
Kapanawa F - Pano
Kuyanawa (Runanawa) F - Pano
Yawanawa F - Pano A
Rontanawa F - Pano
Yaminawá F - Pano A
Amahuaca (Manikin) F - Pano A
Yauauó F - Pano
Pakanawa F - Pano
Yumbanawa F - Pano
Xaxinawa (Xaxináua) F - Pano A
Tuxinawa F - Pano
Marinawa F - Pano
Poyanawa (Kuyanawa) F - Pano A
Kampa F - Aruak A
Saninawa F - Pano
Xipinawa F - Pano
Remo (Mukuni) Kakuya F - Pano
Espinhos (Epinob) F - Pano
Iwano F - Pano
Tukurina F - Aruak
Masko F - Aruak
Kontakiro F - Aruak
Kujijeneri F - Aruak

AMAZONAS

Pakú-t F - Aruak
Ira-t F - Aruak
Siusí-t F - Aruak
Kauá-t F - Aruak

305
NASCIMENTO, F.R.; BARBO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Hohódene F - Aruak
Kadaupu F - Aruak
Karatuana F - Aruak
Kolipaso F - Aruak
Baniwa F - Aruak
Ritana F - Aruak
Sucuriyú F - Aruak
Arara-t F - Aruak A
Coati-t F - Aruak
Pacu-t F - Aruak
Uça-t F - Aruak
Ypéca-t F - Aruak
Paraiuara F - Aruak
Urubu-t F - Aruak
Yuaperi-t F - Aruak
Yawaketé-t F - Aruak
Baré (Ahini-Baré) 1818 F - Aruak A
Maku (Maku-Nadòbõ) F - Maku A
Capuena LD E
Assauinaui 1805 LD E
Demacuri 1787 LD E
Cukanawe 1787 LD E
Yurénawa F - Tukano A
Wanána F - Tukano A
Karapanã F - Tukano A
Kobéwa (Kubewána, Coroa) F - Tukano A
Tukana-t (Datxéa) F - Tukano A
Pirá-t (Waikana) F - Tukano
Tariana-t (Tallaséri) F - Tukano
Uça-t F - Tukano
Desana (Winá) F - Tukano A
Tuyuká-t F - Tukano A
Arapáso-t F - Tukano
Korokoró-t F - Tukano
Yi-t F - Tukano
Miriti-t F - Tukano
Bará (Barasãna) F - Tukano
Makuna F - Tukano
Yahúna F - Tukano
Yupúa F - Tukano
Kuxita F - Tukano
Jupití (Juriti-Tapuia) Wayara F - Tukano A
Bahúana F - Tukano
Guaríua F - Tukano
Erúlia F - Tukano
Buhãuana F - Tukano
Tsêloa F - Tukano
Pokanga F - Tukano
Buiaruá F - Tukano
Epamaça F - Tukano
Palalnoâ F - Tukano
Maiapena LD E
Mepuri LD E
Carahiary F - Aruak
Waríwa-t LD
Kuerutú F - Tukano
Yufiua 1691 LD E
Cafuana 1691 LD E
Maruqueueni 1691 LD E
Morua 1691 LD E
Caucaua 1691 LD E

306
NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Caioriani 1691 LD E
Alaruá Cyuaryrabe 1703 LD E
Pariana 1819 LD E
Curi 1763 LD E
Curacirari LD E
Cacygara LD E
Itipuna 1691 LD E
Tobachana 1691 LD E
Ibanama 1691 LD E
Uirua 1691 LD E
Guamarú 1691 LD E
Cauni 1691 LD E
Tuchinawa 1691 LD E
Aucuruy LD E
Nauna Uarate 1691 LD E
Mañanan LD E
Yumana 1815 F - Aruak
Kayuixana F - Aruak A
Pasé F - Aruak
Marawá F - Aruak
Mariaté F - Aruak
Waraiakú F - Aruak
Murá F - Aruak
Katukina/Nahuá F - Katukina A
Katawixi 1864 F - Katukina A
Pydá-byapá F - Katukina
Wainuma F - Aruak
Paraimanari
Nhumaciara
Omagua/Kambeba/Omaguaz F - Tupi-Guarani
Kokama F - Tupi-Guarani
Yurimagua 1639-1650 F - Tupi
Witoto F - Witoto A
Yuri F - Xirianâ
Tukuna/Tikuna LI A
Miranha/Miranya A
Mayoruna F - Pano A
Marubo F - Pano A
Matís/Matsés F - Pano A
Zuwihi-Dy LD TE
Urudu-Dy LD TE
Tucum-Dyapá F - Katukina A
Kon-Dy F - Katukina A
Maro-Dy F - Katukina A
Parawa F - Katukina A
Wiri-Dry F - Katukina A
Kadyu-Dy F - Katukina A
Amena-Dy F - Katukina A
Burué F - Katukina
Pama F - Pano
Yuberi F - Pano
Jarawára F - Arawâ A
Kadekili-Dyapá F - Katukina A
Wadye-Parani-Diapá F - Katukina A
Kanamari F - Katukina A
Aráua 1871 F - Aruak
Yamamandi/J amandi F - Aruak
Ipurinä/Kaxinari/Jupurina/Kangiti F - Aruak A
Paymari/Purupurú F - Aruak A
Sewaku LD E
Apaieandé F - Tupi-Guarani
NASCIMENTO, F.R.; BARBO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Mundurukú F - Tupi A
Torà F - Txapakúra A
Matawí LI
Cipó 1864
Kunibo F - Aruak
Pamana LD E
Yúma/Juma F - Tupi-Guarani A
Yuei 1691 LD E
Jacaregoá 1741 LD E
Aripuanã 1691 F - Tupi
Capanã 1714 LD E
Parapaixana LD E
Onicoré 1691-1714 LD E
Anhagatininga 1714 LD E
Pariúna 1895-1920 LD E
Pirahá F - Mura
Yaháhi F - Mura
Apiaká F - Tupi
Pariuaia LD E
Paquidaí F - Xiriana A
Waiká F - Xiriana A F - Xiriana A
Ajuateri F - Xiriana A
Mandawaka F - Aruak A
Uiriná 1818 F - Aruak
Xiriana 1874 F - Aruak
Pauxana F - Karib
Manao F - Aruak
Maiadem 1691
Uriua 1787
Guayona 1691
Catoayari 1691
Yaguana 1651-1691
Izuana 1703
Ibamona 1691
Yomamay 1691 LD E
Uranacoacena S é c .x v n LD E
Caburicena Séc.XVII LD E
Aravaki 1795 LD E
Takumã 1631 LD E
Caupuna 1639 LD E
Cumayari 1639 LD E
Cuchiuara 1639 LD E
Cararueni 1691 LD E
Boamari 1861 F-K arib
Tupinambarama 1639 F - Tupi
Mawé (Sataré) F - Tupi A
Pariquy 1820-70 LD E
Comani Séc.XVin LD E
Anibá Séc.XVIII LD E
Auacachí 1691 LD E
Zapucayá 1639 LD E
Maraguá Séc.XVn LD E
Andira Séc.XVII LD E
Curiato S é c .x v n LD E
Papateruna 1691 LD E
Uaboy 1691 LD E
Guacara 1639 LD E
Piranya F - Karib
Tagari 1635 LD E
Ussay 1787 F - Karib
Karipuna(Nheengatu) (Eloé) LD A

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NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

AMAPÁ

Mayé Séc.XVIII LD E
Karanariú Séc.XVIH LD E
Palikur 1652 F - Aruak A
Oyampique (Waiãpi, Oiampi) F - Tupi A
Aruá F - Auak
Emerillons (Emerenhan, Merêyó) F - Tupi
Galibi F - Karib A
Itutan séc.xvm LD E
Arourague 1732 LD E
Pino séc.xvm LD E
Norak 1618 LD E
Makapa 1762 LD E
Kussari 1741 LD E
Karie 1618 F - Karib
Apikari 1682/1727 LD E
Takicoupi 1741/1824 LD E
Paracato 1568 LD E
Maurauni (Oivaneca) Séc.XVI LD E
Curanajou LD E
Maraan 1698 LD E
Arauak 1645 F - Aruak
Yáo 1631 LD E
Tucujú Sécs.XVII/XVin LD E
Aruã 1658 F - Aruak
Harritiahan (Karritiahan) 1656 LD E
Ariane 1658 LD E
Mapruan 1658 LD E
Tocoyene 1741 LD E
Monejou 1658 LD E
Tonokon 1832/1865 LD E
Wayapi séc. x v n i- x x F - Tupi A

RONDÔNIA

Arara (Urukú, Karo) Sécs.XVm/XIX L - Ramaráma F - Tupi A


Ramarama (Hangá) 1919 L - Ramaráma F - Tupi A
Jaru F - Txapakura
Arikem L - Arikem F - Tupi
Karipuna Séc.XIX F - Pano A
Jakaria F - Pano
Karitiana L - Arikem F - Tupi A
Maracanã 1922 LD E
Navaité F - Nambiquara
Nenâ (Tavitê, Lacondê) F - Nambiquara
Teagnani (Tawandê, Tagnani) F - Nambiquara
Latundê F - Nambiquara A
Mamaindê F - Nambiquara A
Nhandiriwat 1922 LD E
Ipotwat 1926 L -K w arye F -T u p i
Tukumã-Fét F - Tupi
Surui (Palter) L - Mondé F - Tupi A
Gavião (Ikô-rô, Bigüt) L - Mondé F -T u p i A
Tubarão LI A
Boca Negra F - Txapakura
Mialat F - Tupi
Kabixi F - Txapakura
Yabotifét F - Tupi
Kahahiwa 1526 F - Tupi
Paranawat (Paweté, Magueim) F - Tupi

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NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Takwatip (Takwatep) L - Kawhybi F - Tupi


Tuparí L - Tupari F - Tupi
Kepkiriwat 1526 L - Tupi
Wayoro (Ajuru) L - Tupari F - Tupi
Aruasi LD
Arikapú LI
Sanamáika (Mondé, Salamá) L - Mondé F - Tupi

> m >
Baepuat 1922 LD
Urupá Séc.XIX F - Txapakura
Taporya LD

tu
Creném 1514 LD
Kujuna (Urunamakan) F - Txapakura
F - Tupi

tu >
Purubora (Aruá)
Lambi 1769 LD
Jaboti-cici LD
Abitana (Wanyam-cabici) F - Txapakura
F - Txapakura

>
Pakaa-nóva (Uomo-orowari)
Matãna F - Txapakura
Kumaná F - Txapakura
Palmella 1673 F - Karib
Jabuti LI

>>
Makurap F - Tupari T - Tupi
Guarategaja-Amniapé F - Tupi
Papamié LD
Patiti 1769 LD

mww
Maquem 1769 LD
Urucuai/Palenten 1769 LD
Guarayo F - Tupi
Bicitacap 1922 LD

> > > > > > > > > w


Kánoa (Kanoê, Kabixana) LI
Masaka 1514 LI
Huari (Aikaná) 1914 LI
Korumbiara LI
Uari (Uairi)
Mequem
Uru-Eu-Wau-Wau F - Tupi-Guarani
Uru-Pa-In
Cujuri (Migueleño)
Wiraféd F - Kwahib T - Tupi
Kamajari LD
1769
B w

Aboba LD
Puxaca 1769 LD
Maba 1769 LD
b

1769
w

Guajeju LD

RORAIMA

Macuxi 1844 F - Karib


Tacutú F - Karib
Sucumú F - Karib
Parimé F-K arib
Cotingo F-K arib
Waimiri-Atroari s é c .x v n F -K arib
Paraviana Séc.XVII F-K arib
Pauxiana (Pawixáná) 1787 F - Karib
Yauaperí (Krixaná) F - Karib
Uaranacoacena Séc. XVII LD
Pariki F - Karib
Wapixaná (Ualpiduana) 1767 F - Karib
Karib F - Karib
Asepangong F - Karib

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NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Sapará s é c .x v m L -K arib
Parukotó 1880 L - Karib
Wayumará 1912 L - Karib
Fliang 1912 L -K arib
Maitá LD
Xamatáke LD
Kuatatéke LD
Maraxitéke LD
Parimitéke LD
Awake 1787 LI A
Waiká F - Xirianá
Paraharí (Parátiri, Paiquiri) F - Xirianá
Yavarí (Pakatai) F - Xirianá
Karime F - Xirianá
Guahahibb F - Xirianá
Ainatéke F -X irianá
Xirianá Sécs.XIX/XX F - Xirianá
Baranána (Bahuána) 1690 L - Aruak
Yabaána L - Aruak A
Warékana L - Aruak
Mandawaka L - Aruak
Makú LI A
Yekuana (Mayagong, Makiritáre) L - Karib A
Pixaukó LD TE
Taulipang (Penong) (Iaurepâ) F-K arib
Nonoikó LD TE
Tweyá F-K arib
Kexeruma F-K arib
Seregong F - Karib
Ingarikó (Lapong, Akawaio) F - Karib
Wai-Wai F-K arib
Yanomani (Yanomá) F - Yanomami A
Nian (Yanám) F - Yanomami A
Sanumá F - Yanomami A
Pakidaí-Waiaká F - Yanomami

PARÁ

Mundurukú Séc.X IX Tupi A


Kaiapó 1515 T - Macro Jê F - Gê A
Gorotíre 1537 T - Macro Jê F - Gê A
Kube-Krâ Kegn T - Macro Jê F - Gê A
Kube-KrâNoti 1916 T - Macro Jê F - Gê A
Kapraíre T - Macro Jê F - Gê
Xipaia-Kuruya 1516 Tupi
Arara F - Karib A
Dyôre F -G ê A
Purukako D 1897 F -G ê
Irâ-Amraire 1936 F -G ê
Xambioá T - Karajá
Javarí Sécs.XVm/XIX LD TE
Takayuna Séc. XVIII LD TE
Tupê-Rop Sécs. XIX/XX Tupi
Waiwé 1913 F -K arib
Pianakotó (Akuryó,Wána,Kukuiana,Manói) F - Karib
Sirianá (Tchikôiana,Xirianá) 1904/1913 F - Karib
Maopityan (Mapidian) Sécs. XIX/XX F - Aruak
Katawian 1513 F -K arib
Zurumata 1844 F -K arib
Tunayana(Tanayana) 1913 F -K arib
Salumá 1914 F - Karib
NASCIMENTO, F.R.; BARBO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Diau 1913 F - Karib


Tirió 1914 F - Karib
Wabuí F - Karib
Tchawiyana F -K arib
Hirukaruyána F - Karib
Sakáka F -K arib
Kattuêma F - Karib
Totókumu F - Karib
Kamáreyána F-K arib
Chiririwyana F - Karib
Kumiyána F - Karib
Totó-Imó F -K arib
Wari F - Karib
Tchorôayána F -K arib
Faruarú F - Karib
Wai-Wai F -K arib
Mawayána F -K arib
Waiana (Oiana, Guainá, Urukuyána) F - Karib
Urupuí Séc. XIX F - Karib
Kakuyaná (Yaskuryána, Warikyaná) 1937 F - Karib
Ichitchwáyana F - Karib
Yaskuryána F - Karib
Woyárama F - Karib
Pauxi F - Karib
Kuáyána F-K arib
Ingarume F-K arib
Ewarhoyaná F-K arib
Prêh-nona F - Karib
Ragú F-K arib
Okânoyána F - Karib
Waripi F-K arib
Maipuriojana F-K arib
Ahimihotó F - Karib
Kukuyána F - Karib
Akuriyó F - Karib
Wáma F - Karib
Pianoi (Pianos, Wayrikuré) F - Karib
Aparai (Apalaí) 1899-1930 F - Karib
Apama L - Tupi
Makapai 1915
Pauxi Sécs. XIX/XX F - Karib
> tn

Tagari 1639 LD
Xavianá F - Karib
Apató Séc. XVII F - Tupi
Sécs. XVII/XVIII LD
tn tn

Jamundá
Caapina Sécs. x v n / x v n i LD
Aracaju 1681 F - Tupi
Arauak 1620 F - Aruak
Achiki LD
Mureyána LD
Mohéyána LD
Waihána LD
Rereyana LD
Wê Yáma LD
Wai Remêyáma LD
Kariana LD
Tupinambá 1615 L - Tupi
Séc. x v n LD
m > tn

Apotianga
Tembé (Tenetehara) 1861 F - Tupi
Guarayu 1674-1691 LD
Urubu 1860-1872 F - Tupi

312
NASCIMENTO, F.R.; BA R BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Amanayé 1871-1872 F - Tupi


Timbirá 1862
Guajá F - Tupi
Aruâ 1793 F - Aruak

< < w t ü
Gaviões (Pukobiê) F -J ê
Parakanã F - Tupi
Jacundá 1849 LD
Kupê-Rop F - Tupi
Tapiraua 1897 LD
Pariri 1910-1932 F - Karib
Anambê 1852-1672 F - Tupi

W W
Curupity 1862 LD
Timirem 1912 F - Karib
Jundiahi 1753-1844 LD
Timbó
Planóika (Pianókê) Xaruma
Parik-Yána LD
Nêkêyó LD
Arawahô LD
Matchukui LD
Toróró LD
Piaitóno LD
Merêwá LD
Kraptê F - Karib
Yawareneyána F - Karib
Katwená F - Karib
Tchurmotá LD
Ororicó LD
Mêkyána LD
Huyána LD
Tchurutáyana LD
Aruãi Séc.XVI F - Karib
Marauaná (Marawaná) Séc.XVn LD W W W W t ü W W W

Sacaca s é c .x v n LD
Joane s é c .x v n LD
Guajará s é c .x v n LD
Anajá S é c .x v n LD
Mapuá s é c .x v n LD
Ingahiba S é c .x v n LD
Caboca S é c .x v n LD
Tocantins LD
Cauana LD
Uanapu LD
Camakapin LD
Manayaná LD
Pakaiá LD
Totó LD
<

Yurúna 1860 L - Tupi


Guahura 1685 L - Tupi
Xipaia Kuruaya L - Tupi
< t ü

Assurini L - Tupi
Takonyapé 1691 L - Tupi
Aratu s é c .x v n LD
Tupinambarana 1639 L - Tupi
M awé (Sataré) 1760 L - Tupi
Séc. x v n
W W W

Ururucu LD
Araryhó Séc. x v n LD
Curiato séc. x v n LD
Maniquera 1714
Seribá (Seribaime) LD
Andirá 1714 LD

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NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Sapudé 1691 LD E
Urupá 1844 LD E
Amanajú 1763 LD E
Igaputaryara 1691 LD E

MARANHÃO

Tremembé Sécs. x v i i / x v n i LD
Tupinambá Sécs. x v i / x v n L - Tupi
Tobojara (Tabajara) 1613 LD E
Guajajara (Tenetehara) 1871 F - Tupi-Guarani A
Canela (Ganella, Kanela) 1920 F -J ê A
Urubu-Kaapor F - Tupi-Guarani
Timbira (Krêiê) F -J ê A
Guajá L - Tupi A
Amanayé (Manaié, Amanjé) 1854 L - Tupi
Arayó 1750 LD E
Uruatí 1648 LD E
Cururí s é c .x v n LD E
Guaná-Guanaré 1694-1715 LD E
Igaruna 1646 LD E
Cahicahy Sécs. x v n / x v m LD E
Umutina (Barbados) Séc. x v r n F - Macro-Jê
Coroatá LD E
Kukóe Kamekra (Pobzé) 1812 F -J ê
Krepúnkateyé 1815 F -J ê
Krepúnkateyé (Karakateye) F -J ê
Pukópyé F -J ê
Cakamekra 1909 F -J ê
Apananyekra/Ramkokamekra (Canela) F -J ê A
Pukópye-Krikatí F -J ê
Kenkateye 1913 F -J ê
Pãrekamekra 1815 F -J ê
Krahó 1808/1825 F -J ê A
Aranhi 1758 LD E
Akroá 1772 F -J ê
Guegué 1765 F -J ê
Tembé L - Tupi A

PIAUÍ

Tacarijú 1608 LD E
Oconga (Quitaiaiú) 1697 LD E
Puty 1674 LD E
Jaicé Sécs. XVIII/XIX
Kariri 1700 F - Kariri
Guegué (Akroá) Sécs. x v m / x i x F -J ê
Timbira (Canela) Sécs. x v i i / x v m F -jê
Pimenteiras (Botocudo) Sécs. XVIII/XIX
Xerente F -J ê
Xakriabá 1819 F -J ê

CEARÁ

Tremembé Séc. XVII LD A


Tapeba LD A
Anacé 1693 LD E
Potiguara Sécs. x v n / x v m F - Tupi
Jaguaribara 1671 LD E
Tobajara Séc. x v r n F - Tupi
Potiguara Séc. XVI F - Tupi

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NASCIMENTO, F.R.; BA R BO SA , W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Jaguarana Séc. XVII LD E


Acriú Séc.X V II LD E
Reriiú 1695 LD E
Aconguassú 1695 LD E
Caratili sécs. x v n / x v m LD E
Payacú sécs. x v n / x v m LD E
Baturité s é c .x v n LD E
Canindé-Genipapo s é c .x v m LD E
Jucá 1723 LD E
Cariú 1761 LD E
Inhamum 1723 LD E
Quixelô-Quixexeu 1746 LD E
Xocó 1802 LI
Kariri Sécs.XVm/XIX F - Kariri
Calabaça Séc. XVII LD E
Icozinho 1670 LD

RIO GRANDE DO NORTE

Potiguara 1587 L - Tupi


Payacú 1700 LD E
Otshukayana 1636-1700 LD E
Ikó 1762 LD E

PARAÍBA

Potiguara 1587 L - Tupi A


Tobajara L - Tupi
Caeté 1587 L - Tupi
Canindé 1732 LD E
Xucurú LI
Panati 1733 LD E
Icozinho 1733 LD E
Ikó 1709 LD E
Korema 1733 LD E

PERNAMBUCO

Caeté L - Tupi
Xucurú 1746 L - Tupi
Garanhum Séc. XIX LD E
Fulniô (Camijó) 1746 A
Pimenteira (Botocudo) Séc. XVII E
Pankararú LD A
Pankararé LD A
Quesqué 1678
Umã Voué (Unamé, Atikum) 1801 LD A
Xocó 1842 LI
Tamanquin 1733-1746 LD E
Caripe LD E
Dzubukua Cariri Sécs. x v n / x v m F - Kariri
Ichú 1746 LD E
Truká LD A
Tuxá LD A
Kambiwá LD A
Kapinawá LD A

SERGIPE

Tupinambá 1587-1759 L - Tupi


Kariri 1759 F - Kariri

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NASCIMENTO, F.R.; BARBO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Chocó (Xocó) 1816 LI A


Apamuru (Carapato) 1688 LD E
Caxago 1759 LD E
Boimó 1759 LD E
Natú LD

ALAGOAS

Caeté F - Tupi
Chocó (Xocó) 1746 LI
Aconã (Waconá) 1816 LD E
Carapotó (Prakió) LD A
Tinguí-Botó LD A
Xucurú-Cariri F - Kariri A
Wassú LD A
Geripancó LD A

BAHIA

Tupinaki 1587 F - Tupi E


Pataxó (Pataxó Hãhãhai) Séc.XIX LD A
Masakari (Maxakali) LI A
Canamarim LD E
Kumanxó F - Macro-Jê
Tucanaçu F - Macro-Jê E
Manyã F - Kamakã
Aimoré Séc. XVI F - Tupi E
Kamuru-Kariri F - Kariri A
Massakará (Kamakã) F - Kamakã
Tupinambá-Tupinã 1574 F - Tupi E
Baenã 1941 LD
Nogg-Nogg 1882 LD E
Guerem 1600 F - Macro-Jê
Kiriri LD A
Payayá 1759 LD E
Sapuia F - Kariri
Kariri F - Kariri
Goyana LD E
Naimbé (Caimbé) 1750 A
Ori 1713 LD E
Pontá LI E
Ocrem-Sacrinhas 1759 LI E
Amoipira 1587 F - Tupi E
Xacriabá Sécs. XVBI/XIX F - Jê A
Aricobé F - Tupi E
Tobajara 1594 F - Tupi E
Maracá 1587 F - Tupi

MINAS GERAIS

Tamoyo 1597 F - Tupi E


Kayapó Séc.XIX F - Jê
Guarino 1742 LD E
Bororo Sécs.XVin/XIX F - Otuké
Sakriabá (Xakriabá) 1775-1819 F - Otuké
Paresi 1739 F - Otuké
Abaeté LD E
Tamoyo 1553 LD E
Cataguá 1553 LD E
Mapaxó 1673 LD E
Nonosó 1817 F - Maxacalí E

316
NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Maxacalí Sécs. XIX/XX F - Maxacalí A


Botocudo (Boru) F - Macro-Jê
Kaposo F - Maxacalí A
Makoni F - Maxacalí A
Mal aí 1782 LI E
Pampa 1886 F - Macro-Jê E
Yoporok(Poyaxá) 1510 F - Macro-Jê E
Aranã E
Poten 1886 F - Macro-Jê E
Maknyanuk F - Macro-Jê E
Etwé-Coúúen F - Macro-Jê E
Takruak-Antet F - Macro-Jê
Nakrehé E
Puri 1886 LI E
Koropó 1750-1818 LD E
Coroado 1750-1818 LD E
Karayá Séc. XVI LD E
Cachiné LD E
Arary 1814 LD E
Krenak (Botocudo) F - Macro-Jê A

ESPÍRITO SANTO

Tupinaki (Tupiniquim) L - Tupi A


Teminó 1759 F - Tupi
Puri 1831 F - Puri
Nakrehé 1886 F - Botocudo
Guarani 1938 F - Tupi-Guarani
Nyepnyep F - Macro-Jê E
Minyã Yirúgn 1886 F - Macro-Jê E
Anket 1911 F - Macro-Jê E
Botocudo 1758 F - Macro-Jê E

RIO DE JANEIRO

Tupinambá 1554-1582 F - Tupi E


Guayanâ Séc. XVI LD E
Tupinaki (Tupiniquim) s é c .x v n F - Tupi
Tamoyo Séc. XVI F - Tupi E
Waytakà Sécs. XVI/XVII LD E
Guará Séc. XVI LD E
Sacará 1813 LD E
Xumetó Iphá 1814 LD E
Coroado séc. x v m F - Puri E
Puri F - Puri E
Guarani (Mbiá) F - Tupi-Guarani A

GOIÁS

Apinayé F -J ê A
Nyurukwaté 1815 F-Jê E
Pôrekamekra 1808-13 F-Jê E
Mákamekra F-Jê
Kenpokatey F-Jê
Krahó Sécs. XIX/XX F-Jê A
Xerente F-Jê A
Xavante 1788-1814 F-Jê A
Canoeiro (Avá) F - Tupi
Karajá F - Macro-Jê A
Kayapó Sécs. x v m / x i x F - Jê A
Goyá 1670-1731 LD E

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NASCIMENTO, F.R.; BARBOSA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Anicum Sécs. x v m / x i x LD E

MATO GROSSO

Bororo Sécs. XVIII/XIX F - Macro-Jê A


Guatò LI
Parbazana (Mane, Xaray) Sécs. x v n / x v i n
Guanà F - Aruak
Coxipó séc. x v n LD E
Birijóne F - Macro-Jê
Arauirà F - Macro-Jê
Acionà F - Macro-Jê
Umotina (Barbados) F - Macro-Jê A
Kuruminakà 1631 F - Macro-Jê A
Saraueka F - Aruak
Nambikwara F - Nambikwara A
Mamaindé (Nambikwara) F - Nambikwara A
Uainta?u F - Nambikwara A
Kanunzé F - Nambikwara
Kokozu F - Nambikwara
Tamarare Séc. x v m LD E
Paresi (Haliti) F - Aruak A
Kozarini F - Aruak
Maimbaré F - Aruak
Kongode F - Nambikwara
Iranche (Irantxe) F-Aruak A
Xacurina LD E
Juruena séc. x v n LD E
Kawahiwa 1819-1844 F - Tupi
Alantesu A
Wasusu A
Cinta Larga A
Aripuanà A
Zoró F - Tupi A
Rikbatsa (Erigpactsa) F - Macro-Jê A
Myky A
Enauenè-Nauè (Salumà) F - Aruak A
Manairtsu A
Turi de Madeirinha F - Tupi A
Surui A
Boia Negra A
Arara A
Matanawi
Itopagapuk(Ntogapuk) 1521 LD
Apiakà F - Tupi-Guarani A
Parintintin F - Tupi A
Tapayuna 1820 F-Jê A
Karajà F - Macro-Jê A
Javaé (Karajà) F - Macro-Jê A
Xambioà (Karajà) F - Macro-Jê A
Tapirapé F - Tupi-Guarani A
Buritiguara Séc. x v m LD E
Xavante F - Jê A
Juruna (Yuruna) F - Tupi A
Suyà Sécs. XIX/XX F-Jê A
Waurà F - Aruak A
Kamayurà F - Tupi A
Trumài LI A
Tsuva F - Karib
Kustenau F - Kustenau
Ipé

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NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomía geográfica. Rev. do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Iwarapiti (Ywalapiti) F - Aruak A


Awetí F - Tupi A
Mehináku F - Aruak A
Nahukuá F-Kari b A
Narayute F-Kari b A
Arawini F - Tupi
Kayabi F - Tupi-Guarani A
Txukahamãe (Kayapó) F-Jê A
Kren Akarore (Mentuktire) F-Jê
Kuikuro F-Kari b
Matipú F-Kari b A
Txikão F-Karib A
Bakairi F - Karib A
Kaiapó F-Jê A

MATO GROSSO DO SUL

Guarani F - Tupi A
Kaiguá (Kaiouá - Kaiwá) F - Tupi-Guarani A
Opaye (Xavante - Sáliua) F - Macro-Jê
Kaiapó Séc. XVIII,XIX F-Jê A
Cane Sécs. X V I ,x v n F - Aruak
Guatò T - Macro-Jê
Guada Uo 1723 LD E
Auahuhy 1723 LD E
Malinega 1809 LD E
Nuara 1809 LD E
Pacale 1795 LD E
Abatihe 1703 LD E
Terena F - Aruak A
Layána F - Aruak A
Mbayá F - Tupi-Guarani
Payaguá T - Guayakuru
Cachodeguo T - Guayakuru E
Echoarana F - Aruak E
Ejibegadegui 1789 T - Guayakuru E
Cadigué 1890 T - Guayakuru E
Ocoteguebo sé c. xvn T - Guayakuru E
Kadiwéu T - Guayakuru A
Uatadeolojueo 1803 T - Guayakuru
Guayarapo séc. x v n LD E
Guachi séc. x v m LD E
Kikináo F - Aruak

SÃO PAULO

Carijó Séc. XVI F - Tupi


Tupinaki Séc. XVI F - Tupi
Guarani 1835 - 1913 F - Tupi-Guarani A
Tupinambá Séc. XVI F - Tupi
Puri Sécs. XVI,vxn,xvm F - Puri
Miramomim LD E
Tupi Séc. XVI E
Guayana 1849 F-Jê E
Kaingang F - Macro-Jê
Oti Xavante 1903-1909 E
Kaiguá 1512 F - Tupi-Guarani
Guaraniñandeua 1902-1907 F - Tupi-Guarani A
Kaiapó séc. xvm F-Jê
Terena F - Aruak

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NASCIMENTO, F.R.; BARBO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

PARANÁ

Carijó Séc. XVI F - Tupi


Tupi Séc.XVI F - Tupi
Bituruna 1640-1738 LD E
Tauem 1827 LD E
Chiqui 1640-1688 LD E
Guayaná Séc. XVII LD E
Guaiachi Séc. XVII LD E
Kaingang F - Macro-Jê A
Guarani Séc. XVI F - Tupi-Guarani A
Kaiguá F - Tupi-Guarani
Xetá F - Tupi-Guarani A

SANTA CATARINA

Carijó 1554-1587 F - Tupi


Pato 1748 LD E
Pinaré 1749 LD
Xoklang A
Guarani Séc.XVI-1640 F - Tupi A
Bituruna 1662-1688 LD E
Guananá 1640 F - Tupi
Kaingang (Coroados) F - Macro-Jê
Botocudo 1825 F-Jê

RIO GRANDE DO SUL

Carijó 1554-587
Arachane Séc. XVI F - Tupi
Minuano Séc. XVIII LD E
Guenoa Séc. XVIII LD E
Guarani 1828 F - Tupi-Guarani A
Kaingang 1798 F-Jê A
Guananá Séc. XVII
Caaguá Séc. XVII LD E
Pinaré LD E

NASCIMENTO, F.R.; BARBOSA, W.D. Material culture: propositions to a geographic taxonomy.


Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

ABSTRACT: From a reflection about the classification of the material culture of


brasilian indigenous groups through the concept of cultural areas, the authors suggest
an alternative classification by federative states.

UNITERMS: Material culture - Indigenous ethnology - Cultural areas.

320
NASCIMENTO, F.R.; BAR BO SA, W.D. Cultura material: as propostas de uma taxonomia geográfica. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 303-321, 1995.

Referências bibliográficas

COLLIER Jr.,J. MALCHER, J.G.


1973 Antropologia Visual. Edusp, São Paulo. 1963 índios: Grau de Interação na Comunidade Na­
FÉNELON COSTA, M.H; MONTEIRO, M.H.D. cional; Grupo Lingüístico, Localização. Con­
1971 O “Kitsch” na Arte Tribal. Cultura, 1, jan/mar., selho Nacional de Proteção aos índios, Rio de
Brasília: 124-30. Janeiro.
GALVÃO, E. MERCIER,P.
1979 Áreas Culturais Indígenas do Brasil. Encontro 1974 H istória da Antropologia. Eldorado, Rio de Ja­
de Sociedades. Paz e Terra, Rio de Janeiro. neiro.
LOWIE, R.H.
1971 Histoire de L ’Ethnologie Classique. D es o rigi­
nes à la 2 ime Guerre Mondiale. Payot, Paris.

Recebido p ara publicação em 15 de maio de 1995.

321
Estudos Bibliográficos
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

ESTUDOS DE PÚBLICO: A AVALIAÇÃO DE EXPOSIÇÃO


COMO INSTRUMENTO PARA COMPREENDER
UM PROCESSO DE COMUNICAÇÃO*

Adriana M ortar a Alm eida**

Neste estudo pretendemos discutir a avalia­ sição e visitante, para que se possa realmente me­
ção de exposições através da análise da bibliogra­ lhorar o poder de comunicação das exposições.
fia disponível. Apresentaremos as pesquisas da área a partir
Na história dos museus, da Europa e da A m é­ de tem áticas que consideram os fundam entais,
rica, verificamos mudanças de prioridades nestas como os tipos de avaliação, a relação do público
instituições: Inicialm ente o museu é, principal­ com as exposições, as tipologias de público obti­
mente, um repositório de objetos, aos poucos tor­ das e métodos de pesquisa.
na-se centro de pesquisa e mais tarde passa a se
preocupar com as exposições enquanto espaço de
divulgação de conhecimento. Os museus, princi­ H istórico
palmente no século XX, vão se especializando e
tom ando suas exposições cada vez mais didáticas. Nos últimos 25 anos, na Europa e América do
V e rific a m -se p re o c u p a ç õ e s p e d a g ó g ic a s no Norte, houve um grande aumento do número de
aperfeiçoam ento das técnicas museográficas, de pesquisas de público de museus, passando de en-
arquitetura e design. quêtes demográficas para estudos de comportamen­
O afluxo de público aos museus toma-se um to, personalidade, referências, reações e assimila­
sinal de sucesso. Aos poucos, os pesquisadores das ção dos visitantes.
áreas de museologia e educação em museus perce­ A preocupação com a fruição da exposição
bem que a quantidade de visitantes nem sempre pelo público não é nova. Em publicações, ela apa­
corresponde à qualidade da fruição das exposi­ rece no início deste século (EUA/1916), num arti­
ções. Crescem as preocupações no sentido de co­ go de Benjamin Gillman sobre a fadiga nos mu­
nhecer o público visitante, suas características bási­ seus, causada segundo ele, pelas vitrinas mal
cas (perfil) e expectativas para o aperfeiçoamento estruturadas (sobre as quais as pessoas têm que se
da programação dos museus. Mas só isto não é curvar para enxergar), além do fato de o museu ser
suficiente: é preciso entender o processo de com u­ um lugar tenebroso, chato, um depósito de bric-à-
nicação que ocorre dentro do museu, entre expo­ brac. Nos anos 20, em Viena, Otto Neurath desen­
volve avaliação da exposição do Museu Econômico
e Social. O eixo é o visitante: busca-se saber suas
necessidades e desejos para decidir quais inform a­
(*) Este estudo é parte de minha dissertação de mestrado: “A ções serão comunicadas e de que maneira será sua
relação do público com o Museu do Instituto Butantan: apresentação. Entre 1928 e 1931, Edw ard Ro-
Análise da exposição Na Natureza não Existem Vilões”.
binson e Arthur Melton (EUA) realizam estudos
Escola de Comunicações e Artes da USP, 1995, sob orientação
de Maria Helena Pires Martins. empíricos de observação do público: percurso nas
(**) Seção Educação do Museu de Arqueologia e Etnologia salas, partes que mais atraem, como o público uti­
da Universidade de São Paulo. liza diferentes recursos, entre outras questões. Nos
(1) “...um entendimento claro das experiências dos visitantes anos 40, foram realizados diversos estudos para
não será obtido através das análises do número de visitantes.
com preender de que maneira cada tipo de apre­
A valiações do m useu, se pretendem refletir a m issão
educacional do museu, deveriam considerar se os programas sentação influenciava os visitantes. Havia interes­
do m useu com unicam suas m ensagens com eficá cia .” se em estudos psicológicos que seriam desenvol­
(Munley, 1987:117). vidos em maior escala nos anos 70. Harris Shettel

325
Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

foi pioneiro na utilização sistemática de maquetes partamentos, trabalhando com verba governam en­
para antecipar reações do público, corrigir textos e tal, são criados para que os órgãos culturais sejam
ilu straçõ es antes da m ontagem da exposição mais bem dirigidos e com isso se evite desperdício
(Screven, 1993:6-12). de verbas públicas. A diminuição das verbas ofi­
Entre 1959 e 1961, D.F.Cameron e P.S. Abbey ciais para os órgãos culturais estimulou o desen­
(Canadá) realizaram as primeiras enquêtes siste­ volvimento de estratégias de m arketing para atrair
máticas em museu relacionando composição demo­ maior público, incluindo as avaliações dos progra­
gráfica e comportamento. Verificaram que a popu­ mas e exposições.
lação tinha dificuldades de decifrar as exposições Na Inglaterra, o curador passa a ver o visitante
e entender as mensagens propostas, assim deter­ como um consumidor, que precisa gostar do que
minaram a necessidade de metodologias para defi­ vê, senão não retomará. O visitante/consumidor se
nir aquilo que o visitante precisa e a eficiência da diferencia do público/massa, pois é individualizado
comunicação das idéias apresentadas. Nesse sen­ dentro de subgrupos, para os quais serão adaptadas
tido, as exposições dos museus criados na década as exposições. Para alguns profissionais da área mu-
de 70 (Centro Científico de Ontario, Museu Real seológica, o interesse em melhorar as exposições é
da Columbia Britânica entre outros) tentaram res­ fundamental e portanto não há problema se esse
ponder às necessidades dos visitantes, através de aperfeiçoamento é gerado por interesses comerciais,
uma estética industrial que leva em conta a satis­ pois no final o público será beneficiado (McManus,
fação do consum idor (Willians, 1993: 20-25, gri­ 1993: 26-32 e McDonald, 1993: 12-27).
fo nosso). Na França, foi fundado em 1991 um Observa­
Nos anos 80, a importância dos estudos de tório Permanente de Públicos (OPP) que realiza
público não é mais questionada e várias revistas pesquisas em nível nacional para perceber evo­
publicam artigos sobre o assunto: Science Edu- luções e diferenças entre os museus. Há um a gran­
cation, Journal o f Research in Science Teaching, de preocupação com o cidadão francês enquanto
Curator, M useum News. Além disso são criadas usuário dos estabelecimentos culturais. A pesar de
publicações exclusivam ente sobre este assunto, as questões mercadológicas também serem leva­
como as revistas Visitor Studies Conference Pro- das em conta, o visitante é antes visto com o cida­
ceedings e ILVS R eview : A jo u rn a l o f visitor dão e não como consumidor, pois o primeiro refle­
behavior( 1988), ambas norte americanas e a fran­ te sobre projetos e princípios propostos na produ­
cesa Publics & Musées, com o primeiro número ção do produto que utiliza e o segundo não (Le
de 1991. Maree, 1993: 91-109).
Concordamos com a afirmação de Shettel e Do Brasil, conhecemos os seguintes trabalhos:
Munley, sobre o espaço definitivo ocupado pela Em 1976, o M useu de Arte de São Paulo realizou
avaliação no museu: uma pesquisa de seu público, por três meses, du­
“com a premissa básica de que os museus rante a exposição “GSP/76”, determinando o per­
devem ter um impacto educacional sobre o fil dos visitantes (idade, escolaridade, sexo, ocu­
visitante eventual, a avaliação se torna, por pação), freqüência de visitação ao MASP, m oti­
princípio, uma parte necessária e integrante vação da visita, conhecimento de outros museus e
da exposição e do processo de desenvolvi­ tempo de visitação (MASP, 1976). Em 1987, M a­
mento educativo.” (Shettel, 1986: 63). rio de Souza Chagas coordenou uma pesquisa rea­
lizada por alunos da UNI-RIO, na qual foram en­
Em alguns países são criados departamentos trevistadas pessoas na rua (deveriam dizer uma
(federais, estaduais, municipais) na área cultural palavra que relacionasse ao estím ulo “m useu”).
para desenvolvimento de estudos de públicos das Pelo título do trabalho sabemos o que a maioria
diversas atividades culturais oferecidas. Esses de­ respondeu: “M useu: coisa velha, coisa antiga”
(Chagas, 1987). Desses trabalhos aqui citados não
derivaram novas exposições ou políticas culturais
(2) Com o os autores verificam , apesar da importância
ou mesmo modificações nas exposições anterio­
reconhecida da avaliação, ela não era executada sistema­
ticamente pelos museus norte-americanos naquela época, nem res. Nesse sentido, se levarmos em conta a defini­
fa zia parte do currículo dos cursos de form ação de ção de “avaliação de exposição” de Screven (1990:
profissionais de museus. 36), como sendo

326
Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

“um processo para obtenção de informações cos os estudos de público de museus no Brasil, e
sobre visitantes que, em últim a instância, os publicados são raros, para que possamos fazer
podem contribuir para a eficácia de uma ex­ afirmações generalizantes.
posição e seus com ponentes interpretativos
sobre o comportamento do visitante, seus in­
teresses, ou capacidade de comunicação da A especificidade das relações
exposição.", do público com as exposições
m useológicas: tipos de público
tais pesquisas carecem de continuidade.
N a dissertação de M. Cristina O. Bruno en­
contramos a continuidade da avaliação determi­ Antes de discutirmos a avaliação de exposi­
nando a concepção de um a nova programação. ções, destacaremos alguns aspectos da relação do
Bruno avaliou a ação museológica do Instituto de visitante (público) com a exposição (museu). A
Pré-H istória da USP, que incluía a exposição de especificidade desse processo de comunicação de­
longa duração “27 Anos de Preservação, Pesquisa term ina as abordagens das avaliações.
e Ensino” (1978-1983), exposições itinerantes e o Como outras instituições culturais, os museus
Serviço Educativo. : A pesquisadora obteve gran­ atraem aqueles visitantes que se identificam com
de parte do material para avaliação através de ques­ suas propostas. Ao longo dos anos, os museus defi­
tionários respondidos pelos estudantes que vi­ niram sua imagem para o público e criaram tam ­
sitavam, com monitoria, o Museu de Pré-História bém sua imagem do público.
Paulo Duarte. A partir da análise dos vários re­ McDonald faz uma retrospectiva da relação
sultados, Bruno desenvolveu novos programas de do público com o museu (na Inglaterra) partindo
ação m useológica (1984): Programa I: Exposição do pressuposto de que os museus criam os seus
de longa duração sobre o cotidiano na pré-história públicos ou “conjuntos de visitantes” (corps de
e na arqueologia; Programa II: Serviço Educativo visiteurs) específicos, pois a visão do visitante ‘ide­
atuando junto a alunos e professores em monitorias al’ está inscrita implícita ou explicitam ente nos
e cursos; Program a III: Exposições itinerantes nas objetos expostos. Assim, no início do século, os
regiões onde se desenvolviam pesquisas arqueo­ museus criaram visitantes sóbrios e sérios, que
lógicas; e Programa IV: M emória e Documenta­ faziam o mesmo percurso em que os objetos esta-
ção do Instituto de Pré-História (Bruno, 1984). vam sempre protegidos por vitrinas e/ou cordas. A
Cristina M. de Souza e Silva, em sua disser­ arquitetura, por vezes, fazia com que os visitantes
tação de mestrado “Pesquisa de público em mu­ controlassem uns aos outros, verificando suas rea­
seus e instituições abertas à visitação - fundamen­ ções e comportamentos. Com a abertura em horá­
tos e m etodologias” (Silva, 1989), baseou-se nas rios mais amplos e gratuidade no século XX,4 os
estatísticas do IBGE de acervo e visitação de mu­ museus públicos ingleses davam a impressão do
seus, sugerindo algumas metodologias de estudos livre acesso de todos - idéia incluída no projeto de
de público. Nação em andamento - dissimulando as diferenças
Nos estudos norte-americanos e europeus que de classe, sexo, etnia, que afetavam a capacidade
tivemos oportunidade de ler, são feitas, eventual­ de cada grupo de se identificar ao projeto propos­
mente, generalizações. Apesar das grandes dife­ to.
renças que separam as áreas culturais da Europa e Nos últimos 25 anos, as exposições passaram
A m érica do Norte em relação ao Brasil, acredi­ por avaliações para tom á-las cada vez melhores
tamos que podem os fazer valer para nossos mu­ aos visitantes, que freqüentam mais os museus. Nas
seus tais afirmações. Infelizmente, ainda são pou­ novas exposições, os visitantes podem escolher
percursos individualizados e aprofundar mais ou
menos seus conhecimentos nos temas propostos.
O perfil atual do visitante é o de um consum idor
(3) Existem várias dissertações que enfocaram a educação com iniciativa, escolhas rápidas e senso de res-
em museus. Os profissionais dos setores educativos dos
museus sempre realizaram avaliações sistemáticas visando
alimentar novas programações. Vide: Alencar, 1987; Cazelli,
1992; Cintra, 1990; Freire, 1992; Gaspar, 1993; Grinspum, (4) Os museus públicos ingleses eram gratuitos para qualquer
1991; Grossmann, 1988 e Lopes, 1988. visitante, até 1987 quando começaram a cobrar ingressos.

327
Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

ponsabilidade. M cDonald insere essa “nova” vi­ ‘‘Para o visitante de museu, aprender re­
são de visitante dentro do ideal contem porâneo presenta uma ampla gama de experiências -
de trabalhador: indivíduo flexível, com iniciati­ desde o dom ínio de novas inform ações até
va, senso de responsabilidade e m otivação pes­ um aumento de sensibilidade estética, um au­
soal. Assim, os museus pretendem ter visitantes mento da curiosidade sobre o mundo natural
cada vez mais ativos, em harm onia com as neces­ e um crescimento pessoal. No museu, onde
sidades da sociedade contem porânea (McDonald, os objetos e idéias estão interligados para
1993: 12-27). transmitir uma mensagem, aprender signifi­
Em Toronto (Canadá) foi realizada uma am­ ca form ar opiniões e fo rm a r uma sensibili­
pla pesquisa (Linton, 1992: 239-259) envolvendo dade estética e cultural. Os fatores envolvi­
entrevistas com o público visitante de quatro mu­ dos nesse tipo de aprendizagem consistem,
seus locais (A rt Gallery ofO ntario (AGO), Royal principalm ente, em sentim entos subjetivos,
Ontario Museum (ROM), Ontario Science Center condições da mente, e desenvolvim ento de
(OSC) e Toronto M etropolitan Zoo (ZOO)) e não- significado pessoal sobre o conteúdo dos pro­
visitantes contatados por telefone. Nessa pesquisa gramas ”,
ficou clara a diferença de perfil dos visitantes dos
quatro museus, percebendo-se uma escala que va­ Munley lembra que avaliar a aprendizagem em
riava da Galeria de Arte até o Zoo: museu é um desafio, pois os visitantes vêm ao m u­
Os não-visitantes (não foram em nenhum dos seu com diferentes níveis de interesse e conheci­
museus nos últimos 3 anos) gostavam mais de fi­ mento. A experiência da visita é individual, sendo
car em casa vendo TV ou praticando hobbies, sen­ que cada pessoa presta mais atenção a elementos
do que muitos têm pouco tempo disponível para diferentes. Geralmente a linguagem dos objetos é
lazer e pouco interesse nesses museus. desconhecida pelos visitantes, cabendo aos cura­
dores, designers e educadores auxiliar o visitante
a encontrar significados. A avaliação ajuda os pro­
AGO_______ ROM OSC ZOO fissionais de museu a conhecer a com preensão do
Experiência mais ________ Maior público e suas respostas às exposições e progra­
contemplativa > socialização
mas.
Público mais Público mais
velho jovem
W hitney alerta que, geralmente, os criadores
das exposições acham que conhecendo um pouco
M enos crianças -------------> M ais crianças
o que seu público pensa e apresentando as infor­
mações de forma organizada e interessante, cer­
Os autores detalharam uma série de dados da tamente estarão colaborando na aprendizagem dos
pesquisa, sempre buscando mostrar a necessidade visitante. O autor (Whitney, 1990: 70) considera
de modificação de exposições, de estratégias de que,
marketing e de tratamento aos visitantes para am­
pliação e satisfação do público. Este último fator, “...um grande problema dos museus e de ou­
a experiência positiva da visita ao museu, é fun­ tras organizações voltadas para a educação
damental pois constatou-se que foi “de boca” a informal é que normalmente têm que enviar
forma mais eficaz de divulgação e motivação para a mesma mensagem geral para todos os visi­
visitar ou não os museus. tantes. ”,
Durante a visita ao museu, o público pode se
quando sabemos que cada indivíduo/visitante vem
divertir, se chatear, aprender, aum entar sua cu­
com conhecim entos prévios e interesses especí-
riosidade sobre alguns temas, se cansar, etc.. A pos­
sibilidade de aprendizagem e a forma em que ela
ocorre no museu é muito discutida pelos educado­ (5) Munley cita uma série de tipos de pesquisas de avaliação,
res. sobre “o uso de etiquetas; estímulo de curiosidade do público
Em artigo sobre avaliação em museus, Munley adulto; eficácia de exposições interativas; a extensão da
aprendizagem fatual; o poder de atração de diferentes
destaca que a aprendizagem em museus é espe­
exibições; a efetividade da seqüência de informações e os
cífica e difere daquela de espaços tradicionais como efeitos da interpretação ao vivo no tradicional ambiente de
a escola (Munley, 1987: 116): museu” (Munley, 1987:118).

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Estudos Bibliográficos -R e v . do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

ficos que podem não estar incluídos na aborda­ dizagem é a liberdade de escolha de itinerário pelo
gem da exposição ou estar dispersos, dificultando visitante.
a fruição. Uma visita pode gerar três tipos básicos de
C.G. Screven tem vários artigos sobre ava­ impacto: cognitivo (fatos, conceitos, princípios,
liação em m useus além de ser um dos editores habilidade de resolver problemas...); afetivo (ex­
da ILVS Review . Em artigo (Screven, 1991: 10- citação, amolação, disposição para entender ou­
20) para a revista do CECA (C om itê de E du­ tros pontos de vista, confiança em si...) e sen-
cação e A ção C ultural do ICOM ) ele discute ex­ soriom otor (atividades m anuais práticas com ­
posições educativas para visitantes livres, isto plementares à exposição). Screven acha que os
é, com o fazer um a exposição didática funcionar objetivos da exposição devem ser definidos e ex­
para o público espontâneo/não organizado? Scre­ pressos claramente, sem ambigüidades. O impac­
ven lem bra que se aprende no m useu dentro de to da informação fatual é quase nulo dado que o
um ritm o próprio, de form a exploratória e não tempo diante de uma vitrina é de 15 a 30 segundos
linear, estando sem pre no cam po do não-form al. (Screven, 1991: 14).
O ensino baseia-se nos objetos, apresentados na
“Os resultados afetivos e as capacidades
exposição, que não deve ser pensada com o um
cognitivas mais gerais podem, na verdade,
grande livro. Para Screven os visitantes se com ­
constituir fin s educativos mais realistas para
portam de três m aneiras básicas na sala de ex­
os museus e ser uma conseqüência da visita
posição: 1. Há um pequeno grupo que não pres­
mais verossímil do que o conteúdo carrega­
ta atenção às exposições e que pouco aprende;
do de informações de muitas exposições que
dificilm ente consegue-se m udar tal situação. 2.
se dizem educativas ”.
Um pequeno grupo que tem centros de interesse
particulares e sabe o que quer ver e aprender. 3. Nos estudos de público da Cité de Sciences et
Um grande grupo que explora o museu ao acaso de VIndustrie (França) podem os acom panhar a
procurando algo que lhe interessa. N este caso as determinação de diferentes tipologias de visitan­
exp osições bem elaboradas criam interesse e tes de acordo com a metodologia e a abordagem
com unicam. da pesquisa. Antes de ser inaugurada a Cité foram
Além disso, Screven lembra que, fora dos gru­ feitas pesquisas de público e a partir dos três tipos
pos escolares, a maioria dos visitantes tem nível encontrados foram criados diferentes elementos
de instrução mais elevado que o conjunto da popu­ museológicos para sensibilizá-los: 1) Indivíduo
lação, tem uma orientação social ou familiar (visi­
ta em grupos de duas ou três pessoas), sua orienta­
(6) Sobre esta questão da seqüência de elementos/módulos
ção visual/sensorial é mais atraída por seres vi­
da exposição, há o artigo de Falk (1993: 133-146), em que
vos, objetos em movimento, coisas novas e busca ele experimenta organizar de maneira linear e não-linear os
o novo, o único, o inédito. mesmos módulos expositivos e avalia o comportamento e
Pensando nestes visitantes, Screven aponta compreensão do público. Neste estudo ele conclui que o
os aspectos que podem incitá-los a aprender: os visitante frui melhor a exposição não-linear, tendo sua
curiosidade atiçada no início e desenvolvendo seu próprio
intrínsecos ao am biente museal que nascem da
roteiro de visitação. Falk sugere que a exp osição seja
interação do público com o conteúdo da apresen­ composta por elementos individualmente coerentes, que
ta çã o ; e os e x trín se c o s, que são a tiv id a d e s tenham sentido em si mesmos, não necessitando de leitura de
exploratórias, sociais e fam iliares que criam m o­ forma linear e hierarquizada.
tivações para a aprendizagem . O autor destaca (7) Esta opinião vai ao encontro da proposta de Munley
que o desafio está em tornar a “exploração livre” quando ela afirma que quem avalia deve utilizar “in s­
trumentos de pesquisa capazes de revelar a qualidade
e “interação social” úteis aos objetivos educa­
m ultid im en sion al da visita ao m useu tanto quanto a
cionais a não elem entos dispersivos. Para ele a aprendizagem cognitiva e afetiva que freqüentemente ocorre.
diversão não é incompatível com a aprendizagem, Pode-se determinar, por exemplo, se os visitantes estão aptos
mas aquela deve ser um meio e não um fim em si a identificar os cinco tipos de pontas de flecha apresentados e
mesma. etiquetados na exposição, mas este dado é periférico se o
profissionais montaram a exposição não só para aumentar o
Screven ressalta a importância dos elementos
conhecimento dos visitantes sobre pontas de flecha, mas para
informais da exposição para motivação dos visi­ contribuir no seu entendimento dos Cherokee enquanto um
tantes. Uma das motivações que facilitam a apren­ povo.” (Munley, 1987:121).

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Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

com atitude contem plativa e passiva (VER): cri­ cessariamente visitam exposições todas as vezes
ação de objetos de grande impacto visual que le­ que vão à Mediateca. Visita de aprofundam ento
vem à reflexão e interesse mais ativos; 2) Atitude em que o v isitan te já co n h ece a C ité e vem
desperta, interativa, m anual (TOCAR): se o pú­ aprofundar temas. Vizinhos que vêm a pé, conhe­
blico quer fazer a exposição deve ter elementos para cem bem a Cité e o parque e vão a poucos locais e
participação ativa; 3) Atitude motivada, exigente, Congressistas que não visitam a Cité ficando con­
reflexiva (COMPREENDER): desenvolver o ní­ finados ao espaço para congressos (M engin, 1993:
vel de compreensão de fenômenos subjacentes. 47-65).
Depois da inauguração, foram realizadas vá­ Em artigo de R. Miles (1993: 27-28) sobre o
rias pesquisas de público. Uma pesquisa de 1987 M useu Britânico de História Natural, ele explica
determinou os tipos segundo a satisfação lúdico/ que as exposições educativas passam por discus­
didática após a visita: Austeros (10%) aprende­ sões entre os experts (curadores), autores da expo­
ram sem se divertir; fúteis (20%) divertiram-se sem sição, pesquisadores de exposição e designers de
aprender; blasés (6%) já conheciam conteúdos, não exposição, além de avaliadores, educadores e edi­
aprenderam nem se divertiram; frustrados (12%) tores para sua realização. Trata-se de um processo
acharam visita muito curta e museu muito cheio e de trocas para a melhor concepção das exposições.
satisfeitos (52%) aprenderam e se divertiram. Os avaliadores observaram que as visitas ao
U m a segunda pesquisa relacionou o uso de museu não duram mais do que duas horas e trinta
dez elementos da exposição (Explora) com a con­ minutos incluindo os vários serviços que concor­
cepção de ciência e tecnologia dos visitantes. Fo­ rem com a exposição (restaurante, loja, sanitári­
ram definidos quatro tipos de visitantes: Ciência os). Durante uma típica visita:
e tecnologia são vistas profissionalmente: visi­ - visitantes movem-se o tempo todo exploran­
tantes têm conhecimentos prévios, apreciam pro­ do todo o museu para ‘sentir’ o conjunto das expo­
postas pedagógicas, porém ficam distantes e passi­ sições mais do que os elementos individuais;
vos; Ciência e tecnologia vistas a nível pessoal: - maioria das exposições são inspecionadas
participam e respondem às solicitações da exposi­ casualmente. Somente algumas, variando de visi­
ção, discutem com monitores e empenham-se em tante para visitante, provocam atenção por algum
não esquecer o que viram; Sem envolvim ento e período de tempo. Paradas na exposição podem
com prevenção: buscam alguma informação reuti- durar de 45 minutos até menos de 30 segundos;
lizável, mostrando-se reservados em relação às pro­ - é dada maior atenção à exposição nos pri­
postas espetaculares e Sem envolvimento e sem meiros 30 minutos de visita; com o tempo o visi­
prevenção: deixam-se guiar pelas sinalizações da tante pára menos freqüentemente na exposição e
Cité. Ativos quando a curiosidade é estimulada; fica menos tempo.
em busca de prazer instantâneo, deixam módulos Miles conclui:
sem entender o objetivo da demonstração.
“quanto mais entenderm os o que acontece
As pesquisas continuaram na Cité e em 1991,
durante uma visita, tanto mais seremos ca­
através de entrevistas (de 3343 visitantes de mais
pazes de planejar exposições que atendam às
de 12 anos) e observações, foram definidas nove
classes de finalidades de visitas, que podem se necessidades de nossos visitantes; e estare­
mos mais capacitados para fornecer um am ­
sobrepor: Fam iliar para distração das crianças,
ocorrendo com freqüência. Estudiosa na qual in­ biente onde possa ocorrer aprendizagem . ”
(Miles, 1993: 28).
divíduo ou grupo vai direto para o módulo de inte­
resse para aprender. Descoberta de estudantes
feitas por jovens de longe que visitam sem roteiro
prévio. Descoberta incluindo Géode em que os Tipos de avaliação
visitantes passam muitas horas, geralmente de tu­
ristas estrangeiros em férias, conhecendo toda a A realização de experiências de pesquisa e es­
Cité. D escoberta sem Géode menor do que a vi­ tudos de públicos foram determinando algumas ca­
sita anterior, incluindo menos turistas estrangei­ tegorias que são aceitas e referidas em novos estu­
ros que a anterior. A ssíduos da M ediateca inclui dos. Podemos definir os tipos de avaliação por seus
visitantes que freqüentam a M ediateca e não ne­ objetivos, métodos, abordagens e procedimentos.

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Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

M unley considera que os estudos de público ção estudados: avaliação formativa: dá inform a­
{audience studies) - todo esforço sistemático para ção sobre e fic á c ia do p ro g ram a d u ran te seu
obter inform ações sobre público de museus - po­ desenvolvimento; avaliação somativa: realizada
dem ser divididos em cinco tipos, segundo o obje­ quando com pletada um a exposição ou program a
tivo que se pretende alcançar: Justificativa do trazendo elem entos para futuras program ações;
valor da instituição e/ou de programa; Auxílio no avaliação processual: traz informações sobre os
planejam ento a longo prazo para museu ou parte procedimentos de um programa ou exibição, dan­
dele; A uxílio na form ulação de novos programas; do ênfase às características do programa, com o
Saber a eficiência de programas existentes e, au­ tamanho da mostra, número de palestras num se­
mento com preensão de como as pessoas utilizam minário, a existência de guias de galerias na expo­
museus através de processo de pesquisa e elabora­ sição. O estudo procura saber como estes elem en­
ção teórica. tos contribuem para a aprendizagem e satisfação
Os dois prim eiros objetivos são alcançados do visitante; avaliação de produto: mede e inter­
através de pesquisas de marketing, levantamentos preta a consecução de objetivos das exposições e
dem ográficos e estimativas das necessidades. O programas. Estes estudos focalizam os resultados
último dem anda um a pesquisa científica. O 3o e 4o da aprendizagem do visitante e as mudanças de
requerem avaliações de programas existentes e atitudes. Esses quatro tipos podem aparecer numa
novos (Munley, 1986: 18-23). mesma avaliação dependendo dos interesses dos
Em 1987, Hana Gottesdiener publica uma bi­ profissionais do museu e dos recursos existentes
b lio grafia com entada de estudos de avaliação (Munley, 1987).
(Gottesdiener, 1987) em que distingue quatro ti­ Screven reconhece, como os autores já vistos,
pos de avaliação: avaliação prévia que ocorre quatro tipos de avaliação. Porém, para ele há uma
durante o planejamento da exposição; formativa, avaliação prelim inar (Front-end Evaluation) em
realizada através de simulações e montagens pré­ que se busca conhecer os conceitos, preconceitos e
vias de partes da exposição; somativa, que permi­ mal-entendidos sobre os temas a serem tratados,
te estudar a recepção da exposição pronta pelo pelo público potencial. Com essa primeira pesqui­
público e, avaliação da avaliação, que traz ele­ sa realiza-se o planejamento geral. Na fase de defi­
mentos para novos estudos e destaca o fato de a nição do design é realizada a avaliação form ativa
avaliação ser parte do processo de produção. com a utilização de modelos e maquetes e observa­
Estas diferentes formas de avaliação podem ção e entrevista de visitantes. Uma vez montada a
se dar em três abordagens: avaliação centrada nos exposição faz-se a avaliação som ativa que infor­
objetivos: visa saber se foram atingidos os obje­ ma o que precisa ser modificado. Para testar as
tivos pedagógicos da exposição, se o visitante m o­ modificações, com modelos, faz-se a avaliação
dificou seu com portam ento no sentido proposto corretiva (Remedial Evaluation). Tanto a avalia­
pelos realizadores; avaliação naturalista: não é ção corretiva como a formativa são instrumentos
elaborada a priori, levando em conta as atitudes práticos e rápidos (não são pesquisas que neces­
dos visitantes e profissionais do museu, “a ênfase sitem de grupo de controle e análises estatísticas)
é dada sobre a diversidade de experiências pes­ para informar quais elementos da exposição pode­
soais. As hipóteses devem emergir ao curso do es­ riam ser melhorados dentro dos objetivos propostos
tudo. Observações e entrevistas são essenciais nes­ (Screven, 1990: 36-66).
ta abordagem ” ; avaliação funcional: “insiste so­
bre a necessidade de adaptar seus métodos de pes­
quisa a cada novo estudo empreendido. Na verda­ M étodos de pesquisa
de, a qualidade do cliente e a natureza das ques­
tões que se colocam determinam avaliações dife­ Em Bourdieu & Darbel (Bourdieu, 1985) te­
rentes” (Gottesdiener, 1987: 9-11). Cada uma des­ mos um profundo estudo do público de museus de
tas abordagens tem suas limitações e deve ser uti­ arte na Europa (França, Holanda, Polônia, G récia
lizada com clareza de opções. e Espanha) a partir de questionários. Bourdieu de­
Também para Munley, existem quatro tipos talha a metodologia da pesquisa na qual procurou
básicos de avaliação, distintos pelo momento em fazer verificações que confrontassem um sistema
que são aplicados e pelos aspectos da program a­ de proposições teóricas com um sistema coerente

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Estudos Bibliográficos - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

de fatos produzidos. Através de questionários pré­ “Os métodos utilizados para coletar inform a­
vios, de entrevistas de controle, de observações e ções precisam estar diretamente relaciona­
questionários, o autor traça um perfil da preferên­ dos aos tipos de questões e temas abordados
cia de artistas e hábitos do público em museu de no estudo, e - talvez o mais importante - os
arte de diferentes condições sociais e níveis de es­ m étodos precisam ser com patíveis com o
colaridade. ambiente do m useu” (Munley, 1987: 121).
G ottesdiener apresenta alguns m étodos de
Munley apresenta quatro princípios que deve­
pesquisa relacionados com os conteúdos que se
riam nortear a avaliação do museu: avaliações
deseja avaliar. Um dos casos é o da avaliação de
fornecem informações acuradas e úteis na m e­
modificação de comportamento, que torna neces­
dida em que trazem as experiências dos v i­
sário questionar o público antes e depois da visita.
sitantes para a pesquisa: o pesquisador precisa
N este caso pode-se incorrer em problemas, pois as
ouvir os visitantes e não fazer apenas questões fe­
questões direcionarão previamente a atenção do
chadas ou controlar o tempo de visitação. A autora
visitante para elementos perguntados. Como op­
estimula o diálogo do pesquisador com o público
ção pode-se com parar grupos que visitaram com
para o entendim ento de seu comportamento. Ava­
grupos que não visitaram a exposição. As ques­
liações devem tratar as pessoas como seres hu­
tõ es d ev em ser e la b o ra d a s c la ra m e n te sem
m anos: o hom em p o d e c o m e n ta r seu c o m ­
ambigüidades. E é claro que ao avaliar aprendiza­
portamento e dar sentido às suas ações. Novamente
gem deve-se levar em conta os objetivos do públi­
a autora destaca a importância de se ouvir o visi­
co, isto é, “e se os visitantes não vêm para apren­
tante e de se elaborar bem as questões, para que
der, o que significa avaliar a aprendizagem ?”
fique claro que o pesquisador deseja saber qual foi
(Gottesdiener, 1987: 20).
a experiência do visitante e que não pretende testá-
Screven considera que o desafio de projetar
lo. A natureza m ultidim ensional das experiên­
uma exposição educativa passa por duas necessi­
cias no m useu requer uma abordagem que ana­
dades: maximizar habilidade de passar mensagens
lise a interrelação de variáveis múltiplas:
principais com o mínimo de tempo e esforço e,
gerar motivação suficiente para encorajar esse tem­ “As questões que direcionam as atividades de
po e esforço e de fazer visitante ir da visitação ‘pas­ avaliação devem ser questões sobre comuni­
siva’ para a ‘ativa’. No processo para atingir tais cação, aprendizagem e percepções. Assim, a
objetivos, Screven distingue duas maneiras de ob­ unidade de análise da avaliação de programa
servar/testar os visitantes, que podem ser utilizadas e exposição de museus é a interação entre vi­
nos diferentes tipos de avaliação: Cued test no qual sitantes e o ambiente criado pelo museu
o visitante sabe que está sendo observado e testa­ Munley ressalta que a avaliação em museu não
do. Nesse caso, assume-se que a deve se pautar em modelos de aprendizagem for­
“performance dos visitantes mais motivados mal, “mas pela atenção aos processos com o da
reflete melhor a capacidade de comunicação criatividade, formação de conceito e a aquisição
(ensino) dos materiais do que a dos visitantes de atitudes, crenças e valores.” Avaliações devem
que olham e lêem p or si. ” (Screven, 1990: 49). se guiar pelo entendim ento das diferentes ca­
racterísticas do museu enquanto um am biente
Assim, essa forma de teste é mais apropriada de aprendizagem: deve-se levar em conta que a
para informar a capacidade da exposição em trans­ experiência no museu é baseada principalmente na
mitir conteúdos. Já no Non Cued Test o visitante vivência dos objetos e menos em etiquetas e textos
não sabe que está sendo observado e/ou que será escritos (Munley, 1987: 126-127).
testado. Nesse caso avalia-se melhor a capacidade Na conclusão de seu artigo, Munley alerta para
de elementos da exposição (objetos, painéis, tex­ o fato de que avaliações não trarão receitas/fórm u­
tos, displays) de atrair visitantes livres e verificar las para novas exposições e programas, mas auxi­
o grau de atenção dedicado. liarão na identificação de padrões de comportamen­
Para Munley, vários métodos podem ser utili­ to e na compreensão de como o visitante interage
zados para se realizar avaliações, mas a decisão com os diferentes elementos do museu, para que
sobre qual usar deve estar baseada no tipo de in­ se possa sempre melhorar a comunicação com o
formação que se quer obter. público.

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Estudos Bibliográficos -R e v . do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 325-334, 1995.

Neste estudo, procuramos apresentar um pano­ po teórico a partir das reflexões e análises das ex­
rama, ainda preliminar, dos estudos de público e periências realizadas. Com a continuidade e apro­
avaliação de exposições, abordando alguns dos te­ fundamento dos estudos acreditamos que será possí­
mas por eles tratados: histórico, tipos de público, vel delimitar com bastante clareza, quais os métodos
tipos de avaliação e métodos de pesquisa. Percebe­ e procedimentos de uma avaliação para cada expo­
mos que a área de pesquisa está ampliando seu cor­ sição museológica, segundo os objetivos propostos.

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157pp.

Pedro Paulo A. Funari*

Por indicação de Nicholas Purcell e Andrew O estudo das construções públicas e a identi­
W allace-Hadrill, Ray Laurence decidiu tranformar dade urbana retom a, basicam ente, os clássicos
sua tese de doutoram ento sobre o Urbanismo Ro­ “positivistas” (Mau, Maiuri, Richardson, Zanker).
mano, orientada por Jeremy Paterson em Newcastle Laurence aceita o ponto de vista tradicional de que
(Inglaterra), em um livro sobre as relações entre o o espaço público promovia a idéia de com unidade
uso do espaço e a organização social em Pompéia. e consenso; a onipresente interpretação conserva­
O resultado consiste em uma obra inovadora que dora de Zanker, cuja Pompéia é uma sociedade sem
busca superar a dicotomia artificial entre historia­ conflitos e harmoniosa, culturalmente unitária, é
dores e arqueólogos e que procura dar conta das adotada sem críticas por Laurence. O oposição
tendências contemporâneas nas duas disciplinas, entre massas e elite, tão clara para os próprios an­
tão frequentemente ignoradas pelo empiricismo de tigos, como explicitada por Cícero no Brutus (183-
historiadores e arqueólogos classicistas (p.ix). Há 200), desaparece no conceito extra-classe de iden­
fortes pressões burocráticas para que estes últimos tidade urbana (cf. Bolonyai, 1993).
sejam infensos à inovação (Dyson, 1989: 134), mas O capítulo terceiro esmiuça a identidade lo­
Laurence propugna um sábio domínio seja da lite­ cal, expressa nos vizinhos e nas vizinhanças. Após
ratura positivista, com nomes tão importantes como destruir a fantasiosa identificação de uicini e
Paul Zanker (1994: 281), como da moderna teoria uicani, base da interpretação de Jongman, Laurence
social; aproxima-se, pois, da moderação propug­ propõe que os “vizinhos” (uicini) dos cartazes elei­
nada, entre outros, por Bruce G. Trigger (1995: torais estavam na raiz da identidade local centrada
456). no culto dos Lares Augusti (p.40). Em seguida,
Em certo sentido, o livro de Laurence cons­ trata-se da questão mais controversa, o caráter eco­
trói-se como uma resposta arqueológica à mono­ nômico da sociedade romana, a partir dos vestígi­
grafia do historiador W. Jongman, The Economy os materiais (ánforas, padarias, manufaturas diver­
an d Society o f P om peii (1988), resenhada em sas). Sua análise permite descartar, com o insus­
Classica (Funari, 1991), cujas deficiências quan­ tentável empíricamente, o modelo da cidade con­
to à evidência material merecem comentários de­ sumidora, propugnado por Finley e Jongman (cf.
talhados por parte de Laurence (pp.8-9 et passim ). Cohen, 1992; Taglietti, 1994; Jacobsen, 1995).
Neste sentido, o autor insere-se na vertente arque­ Prostíbulos e bares são agrupados, no quinto
ológica que rejeita a separação entre as duas disci­ capítulo, sob o significativo rótulo de “com porta­
plinas e propõe-se a escrever uma história arqueo­ mento desviante” . O estudo da localização desses
lógica (cf. Jones, 1991: 105; Snodgrass, 1991; estabelecimentos, presentes em locais “delibera-
Coarelli, 1994: 298). Para tanto, com eça por tratar mente fora do alcance da visão da elite” (p.73),
da discussão historiográfica sobre o caráter da so­ induz Laurence a aceitar a interpretação funciona-
ciedade pompeiana (Introdução). Em seguida, pro­ lista, presente nos capítulos iniciais, e que explica
cura m ostrar com o o conceito de “planejamento a prostituição como promotor da estabilidade da
urbano” é filho do início do século XX e, portanto, fam ília patriarcal rom ana (p.71). O dom ínio da
anacrônico como aplicado, neste último século, ideologia da elite parece inexorável; referindo-se
pelos estudiosos de Pom péia (Capítulo 1). ao isolamento dos prostíbulos e bares, afirm a que
“havia uma diferença entre a elite m oralm ente boa
e o resto da população. Isto é importante, porque a
(*) Departamento de História do Instituto de Filosofia e elite controlava, m anejava e fazia cum prir a lei e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. impunha sua vontade sobre o resto da população”

335
Estudos Bibliográficos: Resenhas - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 335-337, 1995.

(p.80). O ponto de vista de Laurence identifica-se das pinturas, estatuária, instrumentum domesticum
com a elite, que conseguiria isolar os mercennarii, e outros vestígios materiais (cf. Allison, 1995).
e não procura investigar como viviam e pensavam Qualquer obra deve recortar o seu objeto e, neste
os muitos pobres que se “desviavam” da conduta sentido, não caberia condenar Laurence por não
propugnada pela elite. tratar dessas categorías documentais. Contudo, em
A atividade nas ruas e a interação entre as pes­ uma obra que almeja superar a dicotom ia entre
soas (Capítulo 6) são estudadas por meio de ino­ Historia e Arqueologia, a ausência de reflexões
vadoras quantificações, como a fórmula “ocorrên­ sobre a epigrafía e a filologia é particularm ente
cia de soleiras = com primento da rua em metros/ sentida. A epigrafía tem permitido rediscutir, por
número de soleiras” (p.89), aplicada, com para­ exemplo, o próprio caráter da economia romana
tivamente, a Pompéia, Ostia e Roma (p.95). Outra (e.g. Corell, 1992) e o conhecimento dos grafites
fórm ula mede a “ocorrência de grafites = com ­ figurados (Vivolo, 1993) e eróticos (Varone, 1994)
primento da rua/número de grafites” (p.96). Ou­ perm itiria interpretar com mais profundidade a
tras fórmulas são usadas no sétimo capítulo, sobre estrutura social e os matizes ideológicos em Pom­
a produção do espaço, em particular para medir o p éia. Em esp e c ia l, a v isão fu n c io n a lis ta de
grau de integração e separação de casas e ruas (RA Laurence, segundo a qual Pompéia constituía urna
= 2(MD - 1)/K -2; RA = assimetria relativa; MD sociedade a serviço da elite, parece em contradi­
= média de profundidade; K = número de espa­ ção com seu próprio objetivo de analisar critica­
ços). O oitavo capítulo, por outro lado, funda-se mente a produção de conceitos sobre Pompéia. O
nas informações da tradição textual sobre o uso do empenho do autor em historicizar o “urbanism o”
tempo e do espaço em Rom a antiga, a começar não se coaduna com a falta de preocupação em dis­
pela constatação de que o tempo moderno é uma cutir conceitos tão ou mais problem áticos, como
criação da Revolução Industrial e, portanto, ina­ “identidade”, “consenso”, “com portamento des­
dequado para o estudo do mundo antigo. Laurence viante”. A análise de discurso restringe-se a al­
apresenta um quadro de equivalências entres as guns postulados, justamente criticados como cons­
horas romanas, no decorrer do ano, e as horas mo­ truções discursivas extemporâneas, desaparecendo
dernas (p. 124). Apresenta o correr do dia para a naqueles temas em que o autor aceita, sem m aio­
elite, dem arcada pela sua função política, e o dia- res justificativas, modelos positivistas, funciona-
a-dia da maioria da população.O capítulo conclu­ listas ou oriundos do senso-comum.
sivo retoma os principais pontos levantados ante­ O grande mérito de Ray Laurence, de qual­
riormente, ressaltando os diferentes mundos em quer forma, consiste em criticar muitas interpreta­
que viviam pobres e ricos, homens e mulheres. ções correntes e em propor uma série de métodos
Em termos gerais, Laurence deixa de lado, inovadores para estudar os vestígios materiais de
conscientemente, o estudo do espaço interno de Pompéia. São estudos monográficos como este que
Pompéia e as inscrições parietais, pois remete aos permitirão repensar, nos próximos anos, as carac­
estudos, em andamento, de Penelope Allison, e terísticas não apenas de Pompéia como da própria
Hendrik Mouritsen; como conseqüência, não trata sociedade antiga.

Referências bibliogrâfîcas

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Recebido para publicação em 20 de dezembro de 1995.

337
Notas
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 341-342, 1995.

PROJETO PILOTO: “PATRIMÔNIO CULTURAL E MEMÓRIA:


A 3a IDADE E O MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
DA USP”

A Seção Educação do MAE/U SP tem traba­ por um estagiário (inicialmente, Juliana Caldeira
lhado nos últimos anos quase exclusivamente com M onzani, da FUNDAP, e, posteriorm ente, por
público escolar de Io e 2o graus. Tendo em vista o O sv a ld o C a m ilo N o g u e ira de A lm e id a , do
potencial inform ativo e educativo da instituição COSEAS).
museu, assim com o uma de suas funções de atin­ A duração do trabalho com cada grupo foi de
gir a sociedade em geral, este Projeto propõe reali­ cerca de seis horas divididas em três encontros:
zar atividades junto a grupos da 3a Idade. O primeiro encontro constou de troca de idéi­
Considerando-se que os idosos são “agentes as sobre museu e o M AE especificamente; de uti­
de um processo de produção cultural” e o museu lização de “kit” com objetos de diferentes culturas
uma instituição com finalidade de resgate, com u­ que servem de ponto de partida para reflexões em
nicação, reflexão sobre processos de produção de torno do trabalho realizado pelos membros do gru­
grupos culturais diversificados, esperamos que esta po de 3a Idade.
oportunidade de contato entre a 3a Idade e a SE/ O segundo encontro propiciou o m anuseio e a
M A E seja um encontro prazeiroso, educativo e re­ contextualização de material (objetos, fotos, docu­
flexivo para ambas as partes. mentos, etc.) escolhido pelos idosos como o mais
Com o fechamento das exposições do MAE à significativo, o qual, a nosso pedido, foi levado à
visitação pública até dezembro de 1995, devido a reunião. O fio condutor da atividade está relacio­
sua reestruturação, este Projeto foi iniciado de for­ nado à necessidade de preservação e conhecimento
ma experim ental. T rabalhando com os grupos do patrimônio cultural de diferentes povos, inclu­
organizados da 3a Idade fora das instalações do sive daquilo que é mais próximo de nós.
museu, realizamos nos locais de encontro ativida­ Finalmente, no terceiro encontro, o grupo de
des relacionadas a algumas de suas características idosos montou uma exposição com seus objetos
institucionais. para uma discussão mais aprofundada entre eles
Levando-se em conta estas condições, os nos­ mesmos.
sos principais objetivos com relação à aplicação A aplicação deste Projeto teve início no final
desse Projeto foram: de novembro de 1994 e até junho de 1995 foram
seis os grupos com os quais se trabalhou (cerca de
cento e cinqüenta pessoas): quatro grupos do SESI
1. Diversificar a clientela de atendimento da
e dois não ligados diretamente a um a instituição.
SE/M AE;
No segundo semestre de 1995, o Projeto teve
2. Ter maior convivência e um conhecimento
continuidade atendendo grupos da Secretaria M u­
mais aprofundado sobre o público da 3a Idade;
nicipal de Cultura (Casa de Cultura do Butantã) e
3. Possibilitar aos idosos adquirir noções so­
de idosos que procuram o “Projeto Universidade
bre o trabalho realizado em culturas passadas e
A berta para a 3a Idade” , da USP.
atuais;
Em outubro de 1995, os quatro grupos do SESI
4. Levar os idosos à reflexão quanto ao papel
realizaram um a exposição conjunta na sede do
que eles têm e tiveram na sociedade;
SESI/Ipiranga, da qual constaram os objetos que
5. Trocar idéias sobre patrim ônio cultural e
os participantes teriam já levado em seus grupos,
museu.
mas, nesta ocasião, eles puderam expô-los para
pessoas diferentes. Esta foi mais um a oportunida­
A responsável pela aplicação deste Projeto de em que pessoas da 3a Idade trocaram idéias so­
(Judith M ader Elazari), membro da equipe da SE/ bre formas com o atuaram e atuam até hoje na so­
M AE, foi acom panhada na aplicação do mesmo ciedade.

341
Notas - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 341-342, 1995.

Este Projeto Piloto deverá passar por um pro- toradas à exposição de longa duração do M AE
cesso de avaliação e sua continuidade, em 1996, “Formas de Humanidade” ,
será no primenrio semestre, através de visitas moni-

Judith M ader Elazari*

Recebido para publicação em 16 de dezembro de 1995.

(*) Seção de Educação do Museu de Arqueologia e Etnologia


da Universidade de São Paulo.

342
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 343-344, 1995.

UMA PROPOSTA DE INSTRUMENTO DE LEITURA PARA A


EXPOSIÇÃO PLUMÁRIA INDÍGENA BRASILEIRA

A exposição tem porária “Plumária Indígena Prof. Dr. Robert W. Ott, da Penn State University,
Brasileira”, de responsabilidade científica da etnó- EUA.
loga Sonia F. Dorta, foi montada em 1993 em São Image Watching prevê o desenvolvim ento do
Carlos, a convite da UFSCar. A partir deste mo­ diálogo crítico a partir do encadeam ento de seis
mento, essa m ostra passou a integrar o Programa momentos complementares: aquecimento, descre­
de Com unicação M useológica do MAE/USP. vendo, analisando, interpretando, fundam entando
Dando continuidade ao seu trajeto, a mostra e revelando. Esses momentos possibilitam a abor­
foi exposta em Assis, nas dependências da Funda­ dag em do o b je to da c rític a a p a r tir de su a
ção A ssisense de Cultura, também em 1993. m aterialidade, contextualizando-o sincrónica e
O Programa Técnico-Científico de Museologia diacronicamente, abrindo-o a interpretações sin­
do M AE (Bruno, 1994) estabelece, a partir de suas gularizadas, propiciando a sua fundam entação te­
diretrizes, que as mostras inseridas no Programa órica nos campos de conhecim ento pertinentes.
de Com unicação M useológica sejam constante­ Finaliza com uma proposta de síntese pela criação
mente avaliadas e aprimoradas nas questões refe­ de um texto ou um novo objeto, por exemplo.
rentes à com unicação museológica. Escolhemos este sistema de crítica por perm i­
A ssim sendo, na exposição “Plum ária Indí­ tir uma estrutura de construção de conhecimento
gena Brasileira” foram levantados dados que nos dialógica e coletiva, incluindo desde a atitude ci­
apontam as maneiras como o público vem se rela­ entífica diante do objeto de conhecimento, à atitu­
cionando com a mesma. Percebeu-se que os obje­ de estética e de elaboração sintética. Este sistema
tos constituintes da mostra, pertencentes às várias foi inicialmente proposto para a leitura de objetos
etnias, apresentam um forte apelo para a leitura artísticos pertencentes ao universo da arte erudita
estética do ponto de vista do design, chamando a ocidental. Estamos fazendo as alterações e adap­
atenção do público para os seus atributos visuais, tações necessárias para uma exposição de objetos
tais como: a diversidade de formas, cores, texturas artísticos etnográficos.
e possibilidades compositivas. Com isto, pretendemos responder às questões
A linguagem de apoio da exposição (etique­ apontadas pelo processo de avaliação da exposi­
tas, fotos, ilustrações e folheto), tem sido respon­ ção, com vistas à dinamização do diálogo com o
sável pela contextualização e ampliação da com ­ público, respondendo e ampliando as suas expec­
preensão desses objetos em seu universo de uso tativas.
cotidiano e em situações cerimoniais. Esperamos, desta forma, que a inserção deste
O processo de avaliação da exposição nos in­ instrumento no discurso expositivo, interferindo
dica, também, que há mais possibilidades de arti­ diretamente nos recursos museográficos, venha a
culação e diálogo entre a exposição e o público. se tom ar mais um elemento determinante na cons­
Visando am pliar o diálogo já iniciado ante­ trução do Programa de Comunicação M useológica
riorm ente com as atividades educativas, levantar do MAE/USP.
questões a respeito das sociedades indígenas pre­
sentes na m ostra e instigar a busca pelo “saber
m ais” é que estamos, no momento, pesquisando a
construção de um instrumento de leitura de expo­
sição. Christina R izzi*
Este instrum ento de leitura e crítica está sen­ M arilia X avier Cury*
do desenvolvido com base em uma pesquisa por
nós realizada e aplicada desde 1988, quando en­
tram os em contato com o sistema de critica artísti­ (*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
ca Image Watching, elaborado e desenvolvido pelo São Paulo.

343
Notas - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 343-344, 1995.

Referências bibliográficas

BRUNO, M.C.O. OTT, R.W.


1994 Programa Técnico-Científico de M useologia do 1989 Teaching Criticism in Museums. The Museum
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prelo). E ducation A sso cia tio n . N. A. E. A. , Reston,
Virginia: 172-193.

Recebido para publicação em 15 de setembro de 1995.

344
C r ô n ic a d o M u s e u
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

CRÔNICA DO MUSEU - 1994*

Em 1994 as atividades do M AE continuaram Projeto Arqueológico Baixo e M édio Vale do Rio


concentradas na sua reorganização em decorrência Tietê - prospecções no médio vale (M unicípios de
da m udança ocorrida do Bloco D do CRUSP para Arealva, Barra Bonita e Dois Córregos; análise ti-
a atual sede. Apesar das dificuldades, foram desen­ pológica do material cerâmico do Sítio A ry Car­
volvidas todas as atividades ligadas à área de atua­ neiro - baixo vale (Município de Pereira Barreto);
ção do museu. Cabe registrar a criação de novos prospecção no Município de Olímpia; análise tipo-
projetos adaptados à nova localização do MAE, lógica e reconstituição do material cerâm ico do
como, por exemplo, o Projeto Favela São Remo. Sítio M aranata (M unicípio de Olímpia) - Coorde­
Podemos concluir que o ano de 1994 foi bas­ nação Profa. Dra. Silvia Maranca.
tante positivo para a Instituição que, mesmo em si­
tuação adversa, não deixou de cumprir os seu com­ Programa Regional de Arqueologia e Meio A m ­
promissos de um museu da Universidade, como se biente da Bacia do Rio Paranapanema - PROJPAR
constata pelas atividades abaixo relacionadas. - Coordenação Prof. Dr. José Luiz de Morais:

• Sub-program a PP-SALV.CNS - levantam ento


Projetos de pesquisa
arqueológico na área de influência direta dos reser­
vatórios das Usinas Hidrelétricas Canoas I e II.
D ivisão de Arqueologia
• Sub-programa PP-SALV.OUR - levantamentos
Program a arqueológico para o litoral do Estado de
cartográficos e aerofotogramétricos na área de in­
São Paulo: “O Homem do litoral, da pré-história
fluência indireta do reservatório da U sina H idre­
aos dias atuais: a interação Homem -m eio” - Coor­
létrica Ourinhos;
denação Profa. Dra. Dorath Pinto Uchôa:

• Sub-programa PP-ARQ.EST - sítio arqueológico


• Projeto Arqueológico, Antropológico, Histórico,
Estação, município de Piraju - estudos de apro­
Ecológico, Museológico e Turístico de Peruíbe, SP
veitamento múltiplo envolvendo a implantação de
- foram realizadas três etapas de campo.
conjunto habitacional de caráter social.

• Projeto Arqueológico, Ecológico, Antropológi­


• Sub-programa PP-ARQ.CM G - sítio arqueoló­
co, Histórico, M useológico e Turístico do M uni­
gico Camargo - tombamento do sítio pela m unici­
cípio de U batuba - foi realizada a quinta etapa de
palidade de Piraju; Sub-programa Plano Cartográ­
campo no rio do M ar Virado.
fico do Projeto Paranapanem a - informatização de
dados e de peças cartográficas com o uso de com ­
• Atlas de A rqueologia Brasileira: Estado de São
putação gráfica.
Paulo - discussão e planejamento Cartográfico,
baseado nos dados já levantados para o litoral de
São Paulo. • Projeto Patrimônio Arqueológico e Legislação
Ambiental - elaboração e encaminhamento de pro­
grama de disciplina de pós-graduação.
(* ) A crôn ica do M useu tem por finalidade divulgar uma
síntese das principais atividades desenvolvidas durante o ano
• Program a ARQ.SALV.MJG - Pequena Central
de 19 94, co m destaque para o s grandes projetos, cursos m i­
nistrados, even tos e outras atividades esp eciais. O objetivo é Hidrelétrica do M oji-Guaçu - foi finalizada a etapa
fornecer in form ações que tenham interesse para situar as de campo do salvamento arqueológico na área de
linhas d e p esquisas realizadas na instituição e facilitar a c o ­ influência do reservatório PCH M oji-Guaçu.
m unicação. Várias atividades desenvolvidas pelos docentes e
té c n ic o s, c o m o orien ta çã o de alun os e a sse sso r ia s, não
aparecem aqui, p o is têm sid o d ivulgadas sob outras form as, Projeto de preservação do patrimônio arqueológico
c om o artigos, com un icações e relatórios. para o Baixo vale do Ribeira: cadastram ento dos

347
Crônica do Museu - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

sítios arqueológicos, etapa II - levantamento e ca- bibliográfica, análise da indústria lítica, sistemati­
dastramento dos sítios ao longo do rio Ribeira, en­ zação dos dados para a redação da tese de doutora­
tre Iguape e a Barra do Ribeira; escavação Engenho mento - Profa. Dra. Marisa Coutinho Afonso.
do Itaguá; prospecção no Porto Grande de Iguape
- Coordenação Profa. Dra. M aria Cristina Mineiro Pesquisas arqueológicas no município de Brotas,
Scatamacchia. Vale Médio do Rio Tiête, SP - primeira etapa de
campo, análise da cerâmica e dos restos esqueletais
Levantamento e salvamento do patrimônio arqueo­ - Profa. Dra. M arisa Coutinho Afonso.
lógico da área de influência do Poliduto REPLAN-
Brasília - foi realizado o levantamento de dois tre­ Curadoria das coleções arqueológicas dos vales
chos da área; primeira etapa do salvamento do sítio médios dos rios Tietê e Pardo e alto vale do rio
ATM 691 - Coordenação Profa. Dra. Maria Cris­ Guaraí, SP - organização da documentação carto­
tina Mineiro Scatamacchia. gráfica e gráfica - Profa. Dra. M arisa Coutinho
Afonso.
U niform ização da T erm inologia A rqueológica
Americana: elaboração do Dicionário de termos Levantamento Arqueológico da Bacia M édia do
relativos à industria lítica com equivalência em Rio Uaupés, AM - foram realizadas duas etapas
francês, espanhol, inglês e português - Profa. Dra. de campo - Prof. Eduardo Góes Neves.
M aria Cristina M ineiro Scatamacchia.
Reconstituição do Paleoambiente de uma Planície
Os horticultores do Baixo Vale do Ribeira - siste- Quaternária Recente da Região Costeira do Rio
matização dos dados sobre os sítios cerâmicos entre Ribeira, SP - identificação polínica do material
Iguape e Icapara - Profa. Dra. M aria Cristina M i­ coletado na área de estudo - Prof. Walter Mareschi
neiro Scatamacchia. Bissa.

Projeto Quebra-Anzol, MG - sistematização das Corpus Vasorum Antiquorum', análise arqueo-


fontes primárias, sécs. XVIII e XIX - Profa. Dra. gráfica de vasos do acervo do MAE, categorias
M árcia Angelina Alves. . ítalo-geom étrica, ítalo-jônica e ítalo-coríntia -
Profa. Dra. Haiganuch Sarian.
Projeto Vale do rio Turvo (município de Monte
Alto) - continuação das escavações - Profa. Dra. As expresssões de Hécade na Arte Figurativa Grega
M árcia Angelina Alves. e Romana: Ensaio de Arqueologia e Religião - pes­
quisa sobre os amuletos e talismãs com representa­
Arqueologia e Paleoambiente no Mato Grosso - ção de Hécate, bem como sobre a magia greco­
pesquisas no sítio Ferraz Egreja - Coordenação romana do final do paganismo - Profa. Dra. Haiga­
Prof. Dr. Denis Vialou (Muséum d ’Histoire Natu- nuch Sarian.
relle, Paris); Profs. Drs. Levy Figuty e Paulo A. D.
De Blasis. Vasos Votivos do Santuário de Hera em Delos (Gré­
cia) - pesquisas desenvolvidas sobre a cerâmica
Projeto Arqueológico do Médio Ribeira - Tese de orientalizante da Grécia de leste e das Cíclades -
doutoramento - foram realizadas cinco etapas de Profa. Dra. Haiganuch Sarian.
campo - Prof. Dr. Paulo A. D. De Blasis.
Metalurgia e Mudança Cultural - padrões de cir­
Salvamento Arqueológico no Sambaqui Espinhei- culação de matérias primas nas sociedades com
ros II (Joinville, SC) - Prof. Dr. Paulo A. D. De metalurgia do cobre - Profa. Dra. M aria Isabel
Blasis; Profa. Dra. Marisa Coutinho Afonso. D ’Agostino Fleming.

Pesquisas Arqueológicas na Bacia do Ribeirão do A Metalurgia do Bronze e do Ferro na Península


Bicame, Vale médio do rio Tiête, SP - pesquisa Itálica - avaliação das diferentes funções dos obje­

348
Crônica do Museu - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

tos de bronze e de ferro associadas ao desenvol­ tização de dados bibliográficos e de artefatos —


vim ento de sociedades com plexas na Península Profa. Sonia Dorta.
Itálica no Io milênio a.C. - Profa. Dra. Maria Isabel
D ’A gostino Fleming. Serviço de Curadoria

Formas e Técnicas: o Progresso da M etalurgia e O Olhar Antropológico: A imagem do índio brasi­


sua Influência nas Vasilhas Cerâmicas da A ntigui­ leiro sob a Visão de Harald Schultz - análise dos
dade Clássica - com unicação em congresso inter­ dados de pesquisa para redação da D issertação de
nacional (FIEC: Fedération International des As- M estrado - Sandra M aria C. T. Lacerda Campos.
sociations d ’Études Classiques, Québec, Canadá).
Estudo das ocupações pré-históricas no M unicípio
Indicadores Arqueológicos no Estudo de Com por­ de Ubatuba, litoral norte do estado de São Paulo -
tam entos Religiosos do M editerrâneo Antigo - Dissertação de Mestrado, cadastramento dos sítios
redação inicial sobre a questão do morto heroici- - Sandra Nami Amenomori.
zado na M agna Grécia e Sicilia - Profa. Dra. Elaine
Farias Veloso Hirata. Os símbolos da morte e a morte simbólica - defesa
da Dissertação de Mestrado. Área de História So­
A Coroplastia na M agna Grécia e Sicilia - defini­ cial - Depto. de História da FFLCH-USP - Yacy-
ção de conjuntos de terracotas para publicação - Ara Froner.
Profa. Dra. Elaine Farias Veloso Hirata.
Serviço Educação
O Sentido do Apotropaico nos Estandartes M ilita­
res Rom anos - elaboração de artigo final sobre o Arqueologia e comunicação: propostas para o B ai­
tema - Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano. xo Vale do Ribeira - Dissertação de M estrado -
Célia Maria Cristina Demartini.
Representações de Deméter/Perséfone nas Moedas
da Sicilia Antiga - levantamento das fontes mone­ A relação do público com o M useu do Instituto
tárias - Profa. Dra. M aria Beatriz Borba Floren­ Butantan: análise da exposição Na Natureza não
zano. existem vilões - defesa de Qualificação - Adriana
M ortara Almeida.
Noção de Valor no M undo Antigo - montagem do
projeto e levantamento bibliográfico - Profa. Dra. Serviço Museologia
M aria Beatriz Borba Florenzano.
Patrimônio Arqueológico em São Paulo: a cons­
Divisão de Etnologia trução de uma imagem - um estudo sobre m ode­
los de musealização -T ese de Doutoramento, reda­
Mapa Etnográfico e Arqueológico Ilustrado do Bra­ ção - Profa. Dra. Maria Cristina Oliveira Bruno.
sil para a Escola de Io e 2o Graus - trabalho concluí­
do - Profa. Dra. Thekla Hartmann. Proposta de M etodologia para Avaliação de Expo­
sições Itinerantes - Dissertação de Mestrado, le­
Cartas de Curt Nimuendajú a Carlos Estevão de vantamento bibliográfico - Profa. M arília Xavier
O liveira (1923-1943) - trabalho em fase final de Cury.
redação - Profa. Dra. Thekla Hartmann.
M usealização - Profa. M arília X avier Cury:
Etno-história do Alto Xingu - Profa. Dra. Nobue • Concepção e montagem da Exposição Ritm os da
M yazaki. Vida - Cronobiologia - finalização do projeto mu-
seológico. Em co-responsabilidade com os Profs.
Funções e significados de artefatos em populações Drs. Luiz M enna-B arreto (IC B/U SP) e N elson
indígenas brasileiras: o exemplo Bororo - sistema- M arques (FM/USP).

349
Crônica do Museu - Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

• Concepção, montagem e avaliação da Exposi­ Zooarqueologia: ecologia humana no passado (dis­


ção Oficinas Pedagógicas em Ação - 14a D elega­ ciplina optativa). Depto. de Ecologia Geral, IB,
cia de Ensino - Secretaria de Estado da Educação USP - Prof. Dr. Levy Figuti.
- elaboração de projeto museológico, elaboração e
aplicação do Manual de Normalização da Exposi­ Arqueologia do M editerrâneo Antigo (disciplina
ção, montagem e avaliação da mostra. optativa). MAE, USP - Profa. Dra. Elaine Farias
Veloso Hirata.

Docência M useologia: com unicação/educação (disciplina


optativa). MAE, USP - Profa. Dra. M aria Cristina
Os docentes e técnicos do MAE ministraram pa­ Oliveira Bruno.
lestras, conferências e orientaram alunos e esta­
giários em diferentes níveis. Além destas ativida­ Cursos de Especialização
des didáticas, foram responsáveis pelos seguintes
cursos:
Ação Educativa em M useus de Arte, disciplina do
curso Estudos de Museus de Arte. Museu de Arte
Cursos de Pós-graduação Contemporânea, USP - Prof as. M arília Xavier Cu-
ry e Christina Rizzi.
Arqueologia do litoral do Estado de São Paulo. Es­
tudo de Sambaqui: do campo ao laboratório. Minis­ Conservação Preventiva, disciplina do curso Orga­
trado no sítio arqueológico Mar Virado, Ubatuba nização de Arquivos. Instituto de Estudos Brasilei­
e no MAE - Profa. Dra. Dorath Pinto Uchôa. ros, USP - Yacy-Ara Froner

Arte Pré-histórica Brasileira. MAE, USP - Profa. Cursos Extra-Curriculares


Dra. Silvia Maranca.
Patrimônio Cultural: balanço atual das pesquisas
Arqueologia Pós-processual: análise das principais arqueológicas do litoral do Estado de São Paulo.
correntes teóricas. MAE, USP - Profa. Dra. M aria Secretaria de Cultura, Curitiba, PR - Profa. Dra.
Cristina M ineiro Scatamacchia. Dorath Pinto Uchôa.

Teoria da Imagem e Iconografia do Mito e da Reli­ Oficinas de Cerâmica. MAE, USP - Profa. Dra.
gião na Antiguidade Clássica. Depto. de Antropo­ M árcia Angelina Alves.
logia, FFLCH, USP - Profa. Dra. Haiganuch Sa-
rian. Uma introdução à Arqueologia Amazônica. MAE,
USP - Prof. Eduardo Góes Neves.
Cursos de Graduação
Atualização para professores sobre a questão in­
Introdução à Arqueologia Brasileira (disciplina dígena. Depto. de Antropologia, FFLCH, USP -
optativa). MAE, USP - Profa. Dra. Silvia Maranca. Prof. Eduardo Góes Neves.

Homem e Espaço na Pré-história: uma introdução Vestígios faunísticos em Arqueologia. MAE, USP
à Geoarqueologia (disciplina optativa). Depto. de - Prof. Dr. Levy Figuti.
Geografia, FFLCH, USP - Profa. Dra. Marisa Cou-
tinho Afonso. Introdução à Etnologia Brasileira. MAE, USP -
Profa. Sonia Dorta.
Arqueologia: reflexão e discurso (disciplina opta­
tiva). Depto. de Antropologia, FFLCH, USP - A fauna e sua sim bologia na cultura indígena.
Profa. Dra. Haiganuch Sarian. MAE, USP - Profa. Dra. Nobue Myazaki.

350
Crônica do Museu - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 3: 347-353, 1995.

0 viver em colônia. Instituto de Estudos Brasilei­ VII Forum N ordestino de M useologia. Fortaleza,
ros, USP - Yacy-Ara Froner. CE.

Conservação de objetos museológicos. Museu da XVII Simpósio Nacional de H istória - ANPUH.


PUC-Campinas - Yacy-Ara Froner Universidade de São Paulo, SP.

M useografia de Exposições em questão II - Profa.


Seminário de Implantação da Temática Pré-H istó­
M arília X avier Cury. Colaboração de Déia Lou-
ria Brasileira no Ensino de I o e 2o e 3o graus. N ite­
renço Alves e N eliana Tojar Pudja.
rói, RJ.

Eventos III Congresso Estadual Paulista sobre Formação


de Educadores: Tempo da escola... tempo da socie­
Os docentes e técnicos do MAE participaram de dade. Águas de São Pedro, SP.
vários eventos científicos, que incluem palestras e
reuniões. Apresentaram comunicações nos seguin­
tes encontros: Atividades especiais

XIX Reunião da Associação Brasileira de Antropo­ Os docentes e técnicos do MAE foram responsá­
logia - ABA. Niterói, RJ. veis pela organização de atividades especiais, como
Grupos de Trabalho, Simpósios e Seminários. Po­
X Congresso Internacional da Fedération Inter­ demos destacar:
nationale des Associations d ’Études Classiques, • Grupo de Trabalho “Os Sentidos do Apotropaico”
FIEC. Québec, Canadá. (interdepartamental e interdisciplinar) - Coordena­
ção Profa. Dra. Haiganuch Sarian. Vice-coordena-
Conferência Europa-Am érica Latina - Coopera­ ção Profa. Dra. M aria Isabel D ’Agostino Fleming.
ción en Investigación, Información, Formación y
Desarrollo. Instituto EuroAmericano de Ciencia,
Cultura y Com unicación Antonio Machado. M a­ Foram realizados no MAE os seguintes seminári­
os:
dri/ Alca
O apotropaico nos mitos e ritos de grupos Tupi -
Sem inários Internos do D epartm ent of Classics, Profa. Dra. Dominique T. Gallois - Depto. de A n­
College of the Holy Cross. Worcester, Massachu- tropologia, FFLCH.
setts, EUA.
M agia e Religião - Profa. Dra. Paula M onteiro -
Congresso Internacional de Direito Ambiental. São Depto. de Antropologia, FFLCH.
Paulo, SP.

O apotropaico na religião m icènica (1550-1125


1 Reunião Especial da SBPC. Universidade Fede­
a.C.) - Ana Claudia Torralvo - Doutoranda em An­
ral de Uberlândia, MG.
tropologia Social, FFLCH.

Reunião anual do Comitê de Arqueologia do IPGH.


Hull, Canadá. O apotropaico através da Com édia Antiga - Profa.
Adriane da Silva Duarte - Depto. de Letras Clássi­
Seminário Patrimônio Cultural: homem / meio am­ cas e Vernáculas, FFLCH.
biente. Joinville,SC.
O apotropaico no âmbito das Dionisíacas R ústi­
Encontro Catarinense de Museus. Florianópolis, cas - André Leonardo Chevitarese - D outorando
SC. em Antropologia Social, FFLCH.

351
Crònica do Museu - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

O apotropaico nas crenças e práticas relativas à vo arq ueológico do M useu de A rq u eo lo g ia e


m ãe e à criança entre as populações tradicionais Etnologia da USP: as ilustrações 3.1, 3.2, 3.3 e
do sudeste do Zaire - Prof. Dr. Kabengele Munanga 3.5 (p. 38) são fíbulas de bronze laciais que fazem
- Depto. de Antropologia, FFLCH. parte da coleção do M AE desde 1964.

A presença do apotropaico no conto “A Noite de


N atal” de Nikolai Gogol - Profa. Dra. Helena Na- Contratações
zario - Depto. de Línguas Orientais, FFLCH.
Mediante processo seletivo público, o M AE con­
O apotropaico nas inscrições latinas cursivas e o tratou duas profissionais de nível superior: uma
ethos popular - Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari conservadora e uma documentalista, lotadas no Ser­
- Depto. de História, Instituto de Filosofia e Ciên­ viço de Curadoria.
cias Humanas, UNICAMP.

• Grupo de Trabalho para Conceituação do Curso Acervo


de Pós-G raduação em M useologia (M estrado).
Depto. de Biblioteconom ia e Documentação - Es­ O acervo do MAE, no ano de 1994, foi ampliado
cola de Comunicações e Artes da Universidade de através de doações e das pesquisas desenvolvidas
São Paulo - Participação das Profas. M aria Cristina por seu corpo docente:
O liveira Bruno e M arília Xavier Cury, pelo M AE/
USP.
Acervo arqueológico

Publicação Material proveniente de pesquisas de campo:

M aterial lítico - Projeto pré-história e paleoam-


No ano de 1994, a Routledge de Londres lançou o biente no M ato Grosso (Sítio Abrigo Vermelho);
livro escrito pelo Prof. R. Ross Holloway The A r ­ Projeto Arqueológico, Ecológico, Antropológico,
chaeology o f Early R om e and L atium . Como as­ Histórico, M useológico e Turístico do Município
sinala o Prof. Holloway em seu Prefácio (p. xvi), de Ubatuba (Sítio Ilha do Mar Virado); Projeto Pa-
os capítulos do livro foram originalmente apresen­
ranapanema (Sítio Ribeirão Claro 2; Sítio Canitar;
tados como aulas em curso ministrado no Museu
Sítio Chavante); Projeto Programa de Salvamento
de Arqueologia e Etnologia da USP, em novembro
Arqueológico PCH-M oji-Guaçu (Sítio Barragem);
de 1992. Com efeito, R. Ross Holloway esteve na
Projeto Salvamento Arqueológico Replan-Brasília,
USP nessa ocasião, quando não apenas ministrou
resultante de um convênio entre a Petrobrás e a
curso de extensão universitária sobre Roma Pri­
USP, interm ediado pelo MAE (Sítio ATM 715;
mitiva e Arcaica como realizou seminários inter­
Sítio ATM 691).
nos com estagiários, analisou nossa coleção de
Arqueologia mediterrânica e proferiu várias confe­
rências. Todas estas atividades foram realizadas Material cerâmico - Projeto Levantamento Arqueo­
no âmbito de um convênio que o MAE-USP man­ lógico da Bacia M édia do Uapés (Sítio Uauretê I;
tém com o Center fo r Old World Archaeology and Sítio Uauretê II; Sítio Uauretê III; Marabitana, Sítio
Art da Brown University (Providence, EUA), onde Clarindo; Sítio Idalino; Sítio Falcão; Sítio Zóque-
Holloway é professor de Arqueologia. Zóque); Projeto Pesquisas Arqueológicas no M u­
Amplamente ilustrado, com todas as referências nicípio de Brotas, SP (Sítio Gramado); Projeto Sal­
indispensáveis para o estudioso, traz ainda indica­ vamento Arqueológico da PCH-M oji-Guaçu (Sí­
ções da bibliografia mais recente sobre o tema. tio Barragem; Sítio Franco de Campos); Projeto
Apresenta-se, pois, este livro como um instrumen­ Paranapanema (Sítio Ribeirão Claro 3; Sítio R i­
to de trabalho valiosíssimo para aqueles que estu­ beirão Claro); Projeto Pré-História e Paleoambiente
dam a Roma antiga. Vale dizer também que, entre no Mato Grosso (Sítio Abrigo Vermelho; Sítio San­
as ilustrações se encontram várias peças do acer­ ta Elina; Sítio Ferraz Egreja).

352
Crônica do Museu - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 347-353, 1995.

Material Faunístico - Projeto Arqueológico, Ecoló­ Atendim ento ao público


gico, Antropológico, Histórico, Museológico e Tu­
rístico do M unicípio de Ubatuba (Sítio Ilha do Mar O Serviço Educação teve, ainda em 1994, sua pro­
Virado); Prójeto Pré-H istória e Paleoambiente no gramação bastante com prom etida em virtude do
M ato Grosso (Sítio Abrigo Vermelho; Sítio Santa fechamento da exposição, decorrente da mudança
Elina; Sítio Ferraz Egreja). para sua nova sede. Assim, foram incentivados os
program as ju n to às escolas e atividades ex tra­
M aterial Vegetal - Projeto Pré-História e Paleoam­ muros. Foram atendidas 51 instituições e 5.806
biente no M ato Grosso (Sítio Abrigo Vermelho; pessoas no âmbito dos seguintes projetos:
Sítio Santa Elina; Sítio Ferraz Egreja). • Projeto MAE vai à Escola = 1396
• Projeto M useu vai à Escola A daptado = 2476
Doações - Quinze fragmentos de tecidos egípci­ • Projeto O M useu vai à Escola à Noite = 1590
os; treze fragmentos de tecidos peruanos. Doador: • Programa de Integração M useu - CEFAM =261
Sr. G ilbert Choucri Youssef Asmar. • Treinamento para professores = 83

353
REVISTA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Regulam ento Artigos e Estudos de Curadoria

O bjetivos - Os textos (30 páginas no máximo, incluin­


do tabelas, mapas e ilustrações) podem ser escri­
A R e v is ta do M u se u de A rq u e o lo g ia e tos em português, inglês, espanhol, francês ou ita­
Etnologia - U SP (Rev. M AE), de periodicidade liano.
anual, destina-se à publicação de trabalhos origi­ - S erão fo rn e cid a s g ratu itam e n te 20 se­
nais inéditos, versando sobre arqueologia, etnologia paratas.
e m useologia, com ênfase em África, América, - O texto deverá obedecer o seguinte padrão:
Mediterrâneo e Médio-Oriente. Excep-cionalmente,
poderão ser aceitos trabalhos já publicados, para a) 65 caracteres por linha; 55 linhas por pági­
republicação em português. na.
b) A primeira folha deverá conter: 1) título
Constituição (português e inglês); 2) nome dos autores e institui­
ções a que pertencem; 3) um resumo bilingüe (in­
glês/português) de, no máximo, 10 linhas, conten­
A Rev. M AE é constituída pelas seguintes
do objetivos, metodologia e resultados; 4) uniter-
seções:
mos (palavras-chave).
- Artigos: trabalhos de pesquisa
c) As figuras devem ser feitas em papel vege­
- Estudos de Curadoria: levantamentos e co­
tal, com tinta nanquim (original e cópia). Na ela­
m entários sobre acervos arqueológicos e etnográ­
boração das figuras, gráficos, tabelas, e fotografi­
ficos; estudos sobre peças e coleções
as (estas somente em branco e preto) deve-se levar
- Estudos Bibliográficos: ensaios e resenhas
em conta as dimensões úteis da Revista (18 x 27
- Notas: projetos e resultados preliminares de
cm) a fim de que, no caso de redução, não se tor­
pesquisa
nem ilegíveis; este material deve ser enviado ju n ­
- C rônica do M useu: pesquisa; docência;
tamente com o disquete, devidamente acondicio­
eventos institucionais; atividades especiais; aqui­
nado.
sições de acervo
d) Escalas gráficas deverão ser sempre utili­
zadas em lugar de escalas numéricas.
Instruções aos autores
e) As notas, numeradas na ordem em que apa­
recem no texto, devem estar situadas no final do
- Os originais devem ser enviados ao editor em arquivo, juntamente com os agradecimentos, apên­
disquetes de formato MS - DOS, até 31 de maio do dices, legendas das figuras e tabelas.
ano da publicação. Estes deverão ter sido digitados f) As notas de rodapé não deverão conter re­
através do processador de textos MS-Word, versão fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s . E sta s d e v e rã o ser
5.0, ou MS - Word for W indows 2.0, ou mais re­
inseridas no próprio texto, entre parênteses, re­
cente, em equipam ento padrão IBM - PC. No mes­
m etendo o leitor à bibliografia. Ex.: (Barradas,
mo disquete, um segundo arquivo deverá conter
1968:120-190).
nome, endereço, telefone e/ou fax dos autores e, ain­
g) A bibliografia seguirá a ordem alfabética
da, informações sobre a versão e programa utiliza­
pelo sobrenom e do autor citado em prim eiro lu­
dos, caso não tenham sido aqueles aqui indicados.
gar.
O material enviado deverá incluir uma cópia im ­
pressa e não será devolvido. Exemplos:
BOC QU ET, A. SA N O JA , M .; V A R G A S, I.
1979 Lake bottom archaeology. Scientific American, 1978 Antigas form aciones y modos de producción
240 (2): 56 -7 5 . venezolanos, M onte A vila Editores, Caracas.
FOLEY, R. A. Estudos bibliográficos
1981 O ff site archaeology: an alternative approach for
- a) ensaios: 15 páginas, no máximo.
the short sites. I. Hodder, G. Isaac and N .
H am m ond (E ds.) Pattern o f the P ast Studies in - b) resenhas: 5 páginas, no máximo.
Honor o f D avid L. Clarke. C am bridge U niver­ Notas
sity Press, Cambridge: 157-183. - 2 páginas, no máximo.
Regulations a) A page has 55 lines o f 65 characters each.
b) The first page should contain: 1) the title of
A im s the work; 2) the nam es o f the authors and the
institutions to which they belong; 3) a bilingual
abstract (Portuguese/English) having no more than
T he R ev ista do M useu de A rqueologia e
10 lines, containing aims, methodology and results.
Etnologia (Rev. MAE) publishes (anually) original
The Editors will prepare the abstract in Portuguese
works, not published elsewhere, on archaeology,
for foreign authors; 4) uniterms (keywords).
ethnology and museology, with emphasis on Africa,
c) Drawings should be made with india ink
America, Mediterranean Europe and Middle East.
on glossy paper (original and copy). In preparing
Exceptionally, translations into Portuguese of papers
draw ings, graphs, tables and (black and w hite)
already published may be considered.
photographs, the working dimensions of Rev. MAE
(18 X 27 cm) must be kept in mind so that upon
O rganization reduction, they do not become illegible.
d) G raphical scales should always be used
T he Rev. M A E w ill h ave the fo llo w in g instead of numerical ones.
sections: e) Footnotes and references, numbered in the
order of appearance, should be gathered at the file’s
- Articles: research works end, w ith acknow ledgem ents, appendices and
- Curatorship Studies: surveys and comments on figure-and table captions.
archaeological and ethnographical material; studies of f) Footnotes should not contain b ibliogra­
artifacts and collections phical references. These should be inserted in the
- Bibliographical studies: essays and reviews text between parenthesis, sending the reader to the
- Notes: research projects and prelim inary bibliography. For instance: (Barradas, 1968: 120-
reports 180).
- M useum Chronicle: research; educational g) The references should follow the alpha­
activities; events; special activities; new acquisitions betical order (firstnamed author).

Instructions to the authors Examples:

The originals should be sent to the editor, in


BOCQUET, A.
MS - DOS form atted diskettes, before May 31 of
1979 Lake bottom archaeology. Scientific American,
the publication year, preferably as files of MS - 240 (2): 56-75.
Word, version 5.0 or MS - Word for Windows 2.0, FOLEY, R. A .
or later, in standard equipm ent IBM - PC, or 1981 O ff site arch aeology: an alternative approach
com patible. A second file should contain name, for the short sites. I. Hodder, G. Isaac and N .
address, telephone and/or fax number, as well as Ham m ond (Eds.) Pattern o f the P ast Studies in
inform ation about the word processor employed. Honor o f D avid L. Clarke. C am bridge U niver­
sity Press, Cambridge: 157-183.
This m aterial w ill should contain one printed copy
SA N O JA , M .; V A R G A S, I.
and will be not sent back to the authors.
1978 Antigas form aciones y m odos de producción
venezolanos, M onte A vila Editores, Caracas.
A rticles an d Curatorship Studies
Bibliographical Studies
- The articles (30 pages at most, including
tables, maps and illustrations) may be written in - a) essays: 15 pages at most.
Portuguese, English, Spanish, French or Italian. - b) reviews: 5 pages at most.
- 20 offprints will be provided free of charge.
- The text should conform to the following N otes
pathem : - 2 pages at most.
Editoração Eletrônica:
Teresa M atassi Benzi
Tratam ento de Im agem :
Am auri Pagnose
D enise D al Pino de Souza
G ilberto Bueno

Secção de Produção Gráfica e Audio-Visual

Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE

S ã o P au lo In dústria G ráfica e E d ito ra S/A.


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor: Prof. Dr. F lávio F ava de M oraes


V ice-Reitora: Profa. Dra. M yrian K rasilchik

P ró-R eitoria de C ultura e Extensão U niversitária


Pró-R eitor: Prof. Dr. Jacques M arcovitch

P ró-R eitoria de Pesquisa


Pró-R eitor: Prof. Dr. H ugo A guirre A rm elin

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA


D iretor: Prof. Dr. A dilson Avansi de A breu

C onselho A dm inistrativo: Prof. Dr. A dilson Avansi de A breu


Profa. Dra. Silvia M aranca
Prof. Dr. K abengele M unanga
Prof. Dr. M urillo M arx
Profa. Dra. M aria Isabel D 'A gostino Flem ing
Prof. Dr. N orberto Luiz G uarinello
Prof. Dr. R enato da Silva Q ueiroz

y | 1 CREDENCIAMENTO E APOIO FINANCEIRO DO:


S. — I PROGRAMA DE APOIO ÀS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS PERIÓDICAS DA USP
JJ COMISSÃO DE CREDENCIAMENTO

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