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A rno W e h l in g

ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA


Varnhagen e a construção da identidade nacional

2a impressão
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W 426e
Wehiing, A ceto
Estadni, ftrârrôia, m emória : Varnhagen e a construção da
identidade « w ím h I / A m o Wehling. — Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, Î995S

Inclui ibdhÂjgfafia
IS B N S5-Z a9-0985-X

1. Vámücigpa, fia n d sc o Adolfo de, 1816-1878. 2. Histo­


riografia. 3~ Bteasd —História. I. Título.

C D D 907.2
C D U 82-94
C A P Í T U L O 7

A INTERPRETAÇÃODAHISTÓRIADOBRASIL

As interpretações de Varnhagen fundamentavam-se quase sempre em


descobertas”, ou seja, em filões documentais ignorados ou esquecidos
por seus predecessores. O “preconceito do inédito”, extremamente forte
na historiografia historista, supunha a intimidade com as fontes arqui-
vísticas, entendida como indício seguro para a informação correta e o
alcance da verdade histórica; subjacente a este preconceito encontrava-
se o suposto idealista de uma realidade preexistente imutável, aguardan­
do sua correta identificação pelo sujeito.
A afirmação da cientificidade da história num contexto intelectual
de conhecimentos com fronteiras cada vez mais bem-definidas passava,
assim, obrigatoriamente, pelo estabelecimento de um corpus documen­
tal, a partir do qual seria construído o conhecimento histórico, uma vez
que todas as demais opções — a filosofia da história, a ficção histórica, a
retórica, a crônica e a erudição maurina — eram apenas aproximações
imperfeitas deste noúmeno fenomênico que a documentação revelava.
As revelações, totais ou parciais, de Varnhagen, foram muitas e têm
sido apontadas desde Sílvio Romero e Capistrano de Abreu até Ciado
Ribeiro Lessa e Wilson Martins, Américo Jacobina Lacombe e José Honório
Rodrigues. Apenas alguns registros e acréscimos serão aqui assinalados.
154 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

D e sc o b e r t a s e r e t if ic a ç õ e s

Em matéria de arqueologia histórica e pré-histórica, sua contribui­


ção, embora modesta, revelou algum as informações, cóm o a localização
do túmulo de Pedro Álvares Cabral, em 1838, na igreja da G raça, em
Santarém 1, a identificação do m arco de C ananéia com a expedição de
M artim Afonso de Sousa2 e a identificação da residência de Jo ão Fernandes
Vieira, no Recife3. Quanto aos sambaquis, fez referenda a eles, m as passou
ao largo de qualquer estudo mais profundo.'4
N a história literária, su a obra mais im portante, na avaliação de
Thiers M artins-Moreirâ,““Tfdww e cantares, de 1849; recuperou parte da
poesia popular galego-portuguesa através de cuidadosa busca em arqui­
vos.5 Continuou, assim, o Romanceiro, de à lm dda Garret, de 1843, acres­
centando outros textos que permaneciam ignorados.6 N a história da art_e,
se não descobriu peças desconhecidas, foi o criador d o conceito "m a­
nuelino” para caracterizar a estética portuguesa da prim eira metade do
século XV I, nutn estudo para a revista Panoram a, publicado em 1842.7
Para a história do Brasil, sua contribuição docum ental foi extensa.
Sobre o século X V I, localizou com Herculano um inédito de frei Liiís de
Sousa — Os an ais de D . Jo ão ÍU — que perm itiu precisar as circunstân­
cias da expedição de Cristóvão Jacques, em 1526.® D escobriu e publi­
cou o D iário d a navegação d e Pero Lopes d e Sou sa, possibilitando o
conhecimento detalhado da expedição de 1530-1533 e informações como
a entrada de Cananéia, a fundação da vila de Santo André, no planalto

1 Ciado Ribeiro Lessa, Vida r obra de Vam bagcn, RIUGB, 224:3, 1954, p. 194-195-
2 Idcm, p . 195. .
3 Carta de Varnhagcn ao secretário do Instituto Histórico, 30 de abril de 1861. Arquivo do
IHGB, Lata 23, doc. 499.
* Francisco Adolfo de Varnhagcn, H istória gem ido Brasil, &io Paulo, Melhoramentos, 1975, v. I,
p. 24.
5 Idem, Trovas e cantares de um códice do XTV século, Madri, DAGF, 1849. Tbícts Martins
Moreira, VÍLrnhagenc a hiscóriada literatura portuguesa e brasileira, 275:2,1967, p. 164.
6 Idem, p. 164-165.
7 Idem, p. 161.
1 Ciado Ribeiro Lessa, op. cit., p. 197-
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 155

paulista, e a época correta da chegada de Caramuru à Bahia.5 Sobre este,


aliás, sofreu um revés: em 1848 publicou na Revista elo Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro o estudo “Caramuru perante a história”, no qual
refutou categoricamente a informação, transmitida por Brito Freire, Si-
mão de Vasconcelos e Rocha Pita, que por sua vez a colheram na tradi­
ção oral, a propósito da viagem de Caramuru e Paraguaçu à corte de
Francisco I. Documento publicado posteriormente, embora possa sofrer
alguma restrição, confirma a informação tradicional.10
Ainda sobre o século XVI, descobriu o livro de assentamentos da
Nau Bretoa, de 1511, precisando informações sobre a feitoria de Cabo
Frio e a presença de Américo Vespúcio11; documentos relativos ao con­
flito diplomático franco-português da década de 1520, a propósito das
incursões francesas no litoral brasileiro12; e a N arrativa epistolar do padre
Fernão Cardim 13.
Em relação ao século XVII, revelou documentos inéditos sobre a
guerra holandesa e.sobre o estado.do Maranhão, como os textos de Mau­
rício de Heríarte e Bernardo José da G am a.14 No primeiro caso, também
localizou os sítios do arraial de Bom Jesus e das batalhas das Tabocas e
dos Guararapes.
Quanto ao século XVIII, foi o primeiro a estudá-lo sistematica­
mente com base em docümentos, privilegiando temas como o da conso­
lidação da área minéradora, o das guerras do sul e as questões de limites.13
Sobre os indígenas, ao contrário do que amiúde se afirmou, prova­
velmente em conseqüência da polêmica com João Francisco Lisboa e das

Diário da navegação da armada qttefoi à terra do Brasilem 1530, sob a capitania-mor de Martim
Afonso de Sousa, escrito por seu irmão Pero Lopes de Sousa, Lisboa, Sociedade Propagora dos
Conhecimentos Úteis, 1839.
1,1 Francisco Adolfo de Vatnhagen, O Caramuru perante a história, RIHGB, 10:1848, p. 129-
152. Sobre o documento, ver Ciado Ribeiro Lessa, op. cit., p. 198 e noras 34 c 137.
' 1 Cf. cap. 6, nota 86.
11 Ciado Ribeiro Lessa, op. cit., p. 198.
13 Cf. cap. 6, nota 87.
1* Maurício de Heriarte, Descrição do estada do Maranhão, Pará, Corupá e rio do Amazonas, Viena,
C. Gctold, 1874/ Bernardo José da Gama, Inforrrutçõessobrea capitania do MaranbáoWvtm, C.
Gcrold, 1872, com “Advertência prévia" de Vambagen datada de 28 de agosto de 1872.
15 Ciado Ribeiro Lessa, op. cit., p. 197, repetindo juízo de Capistrano de Abreu.
156 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

críticas de Capistrano de Abreu, Varnhagen não desprezou ou desco­


nheceu a etnografia, como, aliás, não o fez a primeira geração de mem­
bros do Instituto Histórico.
Nesta associação, já em 1840, elaborou-se um programa de inves­
tigações sobre os indígenas, que envolvia o estudo de suas línguas e va­
riações, a elaboração de um dicionário e a criação de uma seção etnográ­
fica.lfi Voltaria ao tema em 1849, apresentando ao Instituto um texto
sob o título “Línguas, Emigrações e Arqueologia. Padrões de mármore
dos primeiros descobridores” 1617, no qual delineou um novo programa de
pesquisas indígenas.
Alguns de seus últimos trabalhos referentes à temática indígena
constituíram contribuições etnográficas e filológicas sobre a cultura tupi,
embora sua tese sobre a origem turaniana, isto é, euro-asiática, das po­
pulações tupis e caraíbas, tornada centro de polêmica, fosse rapidamen­
te refutada.18
As pesquisas dc história americana feitas por Varnhagen concentra­
ram-se em algumas questões referentes aos descobrimentos. Suas con­
clusões foram discutidas e em geral acatadas na América hispânica,
Espanha, França e Estados Unidos.19
Suas contribuições para esta área foram diversas. Descobriu, em Sevi-
lha, um exemplar do Imago M undi de Pedro d’AilIy, anotado, perten­
cente a Colombo. A partir destas notas pôde comprovar viagens feitas a
Guiné na década de 1480.20
Encontrou, identificou e publicou uma carta de Colom bo.ao te­
soureiro Gabriel Sanchez, do reino de Aragão.21

16 Francisco Adolfo de Varnhagen, Memória sobre a necessidade do estudo e ensino das línguas
indígenas do Brasil, RIHGB, 3:1840, p. 53-63.
17 RIHGB, 12:1849, p. 366-376 c 21:1859, p. 431-441.
11 Francisco Adolfo dc Varnhagen, L’Origine tountnniennt des Américains Tupis-Caraibes et des
anciens égyptiens, Viena, Faesjr-Frick, 1876.
19 Ciado Ribeiro Lcssa, op. cit., p. 121.
10 Francisco Adolfo de Varnhagen, Vespuce et son premier voyage — avec le texte de trois notes
importantes de la main de Colombe, Paris, Martinet, 1858, 31 p.; publicado como separata do
Boletim da Sociedade Geogrdfica, jan-fev. 1858. — ■- - . .
1 ' Francisco Adolfo de Varnhagen, Primeira epistola del almirante dom Cristóbal Colón, Valencia,
M. Garin, 1858, 35p.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 157

Retificou o conhecimento que até então se possuía sobre os locais


atingidos por Cristóvão Colombo em suas viagens, inclusive identifican­
do a G uanaani, da documentação, como o arquipélago das Bahamas.22
Precisou aspectos da expedição de Cabot, com a descoberta do iné­
dito Isolário , do navegador Alonso de Santa Cruz, na Biblioteca Imperial
de Viena.23
A mais extensa e sighificativa de suas contribuições para a historio­
grafia dos descobrimentos, porém, foi a reabilitação de Américo Vespúcio,
a que se dedicara desde muito tempo Alexandre von Humboldt. Opon­
do-se à tradição de Las Casas até autores do século XIX , que não só
valorizava a obra de Colombo como até desmoralizava a de Vespúcio,
Varnhagen procurou definir o papel do navegador florentino nas viagens
à América em diversos opúsculos publicados desde a década de 1850.
Baseado em pesquisas realizadas nos arquivos europeus (de Lisboa, Sevi-
(ha, Viena e franceses), publicou trabalhos e documentos nos quais pro­
curava separar os textos originais de Vespúcio dos apócrifos que circula­
vam desde o início do século XVI. Seu procedimento, considerando o
estado da polêmica e a confusão reinante mesmo entre especialistas, foi
o de recusar as interpretações anteriores e tentar recuperar os fatos por
meio da pura reconstituição documental.24
Em consequência, fixou pontos controvertidos, como o roteiro da
primeira viagem de Américo Vespúcio25, a forjadura da carta de 18 de
julho de 1500 relativa à sua segunda viagem à América, o roteiro desta

2 2 Francisco Adolfo de Varnhagen, La verdadera Guanahani de Colón, Anais de la Universidad de


Chile, 26: jan. 1864, Santiago, 1864.0 texto, resumido, foi traduzido para o alemão pelo autor
e publicado em 1869, Das Wahre Guanahani des Columhus, Viena, Hof und Staatsdruckerei,
1869-
13 Francisco Adolfo de Varnhagen, SuWimportancia d'un manoscritto inédito delia Biblioteca Impériale
di Viena, Viena, HoFund Scaacsdruckcrci, 1869 (também publicado nas Memórias da Academia
de Ciências de Viena, 60:1869-
24 Francisco Adolfo de Varnhagen, Amerigo Vespucci, son caractère, ses écrits (même Us moins
authentiques), sa trie et ses navigatiom, Lima, El Mercúrio, 1865, 119 p. Examen de quelques
points de l'histoire géographique du Brésil, Paris, Martinet, 185, 70 p. Le premier voyage de
Amerigo Vesputci définitivement expliquée dans ter détails, Viena, C. Gerold, 1869, 50 p.
Nouvelles recherches sur les derniers voyages du navigateurflorentin, Viena, C. Gerold, 1870, 57 p.
23 No Examen de quelques points..., op. cit., de 1858.
158 ESTADO. HISTÓRIA, MEMÓRIA

viagem em companhia de Aíonso de Ojeda, inclusive com a presença da


expedição no litoral do atual Rio Grande do Norte26 e os roteiros de suas
terceira e quarta viagens, estes com referências importantes para o co­
nhecimento das primeiras expedições enviadas pelo governo português
ao litoral brasileiro.27

O S ATORES SOCIAIS

Varnhagen elegeu, à luz dos fundamentos ideológicos, filosóficos e


científicos de seu momento histórico, alguns atores sociais privilegiados.
Reiteramos que certamente não fez, como alguns críticos condenaram,
apenas a história dos grandes personagens28; sua historiografia não é
uma “galeria de brasileiros ilustres” à Carlyle ou mesmo Plutarco. Entendê-
lo assim seria fazer equivaler sua obra à de um Sisson. ImpÕe-se, a nosso
ver, uma revisão deste julgamento, procurando identificar os principais
atores que, para Varnhagen, constituem os elementos fundamentais da
dinâmica social. Estes poderiam ser agrupados em alguns grandes seto­
res, a saber: os agentes mesológicos; as etnias e sua miscigenação; as institui-
çÕes sociais e políticas; os grandes personagens e o próprio reino português.
Os “heróis”, assim, têm sua atuação não minimizada, mas caldeada com
outros personagens, isto é, com entidades coletivas.
O meio geográfico era um condicionamento importante para Var­
nhagen. Haveria nele uma visão' determinista?
Os fatores naturais eram vistos como adversos: o clima tropical,
com calor na maior parte do ano, a difícil navegabilidade dos rios, com
muitas cachoeiras, as serras que constituíam paredões intransponíveis e
a floresta densa não facilitavam a penetração e a colonização.29 A sua
hostilidade foi descrita em tom romântico, na H istória geral do Brasil-.

24 Francisco Adolfo dc Varnhagen, Amerigo Vespucci, son caractère..., op. dr., passim.
27 Idem, Nouvelles recherches, op. cit., passim.
21 José Ho nório Rodrigues, Varnhagen, mestre da hiscória geral do Brasil, RIHGB, 275:2, 1967,
p. 181.
29 Francisco Adolfo de Varnhagen, História gérai.., op. cit., v. 1, p. 10.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTORIA DO BRASIL 159

Apesar<lc tanta vida e variedade de matas virgens, apresentam elas aspecto


som brio, ante a qual o homem se contrista, sentindo que o coração se lhe
aperta, com o no meio dos mares, ante a imensidão do oceano. Tais matas,
onde apenas penetra o sol, parecem oferecer mais natural guarida aos tigres
e aos animais trepadores do que ao homem, o qual só chega a habitá-las
satisfatoriamente depois dc abrir nelas extensas clareiras, onde possa culti­
var (...) Ainda assim, o braço do homem, com auxílio do machado, mal
pode vencer os obstáculos que de contínuo .encontra na energia selvagem
da vegetação.30

Comparando as dificuldades encontradas pelos colonizadores por­


tugueses com as de espanhóis e ingleses, sustenta que elas foram signifi­
cativamente maiores, tanto em relação ao meio físico, como no que res­
peita à resistência indígena.31 Os espanhóis teriam sido beneficiados
pela existência de campinas fáceis de penetrar, como no Prata, ou de
povos acostumados à obediência por sucessivas dominações, como no
México, Peru e Nova Granada.32 Òs ingleses, porque encontraram clima
semelhante ao de seu país de origem, uma penetração fluvial fácil e pou­
cos animais selvagens.33
O s portugueses, ao contrário, impuseram-se heroicamente a uma
natureza hostil. Sua vitória, diz Varnhagen, que foi a obra da coloniza­
ção, é exemplo ímpar na região tropical.
N a própria obra são poucos os exemplos de explicação por questões
geográficas. N o livro sobre as invasões holandesas referiu-se à facilidade
com que os atacantes lutavam nos pântanos e areais, devido à experiên­
cia que traziam de seu país34, e no primeiro capítulo da H istória geral do
B rasil fez um estudo geográfico (e também geológico) preliminar.
Responde-se, portanto, à pergunta: o meio condiciona fortemente,
mas não determina a vida social. Tal conclusão era absolutamente neces­
sária, pois admitir o determinismo geográfico — considerando o juízo

3 n Idem, v. II, p. 16. .


31 Idem, v. I, p. 10.
32 Ibidem.
1' Ibidem.
34 Francisco Adolfo de Vimfiagen, História daí lutas com os holandeses, Salvador, Progresso, 1959,
p. 115.
160 ESTADO, HISTORIA, MEMÓRIA

desfavorável que fazia do meio — implicaria negar um valor superior à


colonização portuguesa e, por extensão, recusar viabilidade à própria
sociedade brasileira.
As etnias consistiram em outra preocupação teórica de Varnhagen.
Era ponto pacífico para o autor que os povos sem escrita, como os indí­
genas ou os africanos, deveriam ser objeto da etnografia e não da histó­
ria.*35 A rigor, para ele como para os historiadores historistas em geral,
penetrados de hegelianismo, estes povos tinham apenas existência, não
história.
Os colonos portugueses, porém, tinham história e a trouxeram con­
sigo ao atravessarem o oceano. O inevitável processo de miscigenação
que, em conseqiiência deste encontro de culturas, surgiria, deveria fazer
predominar a cultura dos povos adiantados sobre os não-civilizados.
No caso dos indígenas, Varnhagen considerou três aspectos princi­
pais: a origem, os costumes e o estágio cultural.
Sobre a questão da origem dos indígenas, defendeu a mesma tese
de Martius, isco é, a de que os índios encontrados pelos portugueses no
Brasil eram “ruínas de povos”36*, descendentes de um “grande povo”,
antiga cultura que decaíra aos níveis de selvageria.57 Admitia, entretan­
to, que faltavam pesquisas etnográficas e linguísticas que permitissem
um juízo definitivo.
Essa tese seria mais tarde associada por Sílvio Romero, em sua violen­
ta diatribe contra Martius, ás concepções rousseaunianas do bom selvagem
e da bondade natural.38 Certamente, quanto a Varnhagen, a associação é
improcedente. Embora considerando correta a idéia de um “grande povo”,
não admitia a posição racionalista: “não sabemos como haja ainda poe­
tas, e até filósofos, que vejam no estado selvagem a maior felicidade do
homem (.,.)”39

35 Ver capítulo 5-
3S A expressão é dc Martius. Cf. KarIF. P. von Martius, Como sc deve escrever a história do Brasil,
RIHGB, 223:1953, p. 200.
57 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral..., op. cit_, v. [, p. 24.
30 Sílvio Romero, Histáriada literatura brasileira, Rio dc Janeiro, José Otympio, 1945, v.V.p. 185.
59 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral.., op. cit., v. I, p. 52.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 161

Sobre a proveniência dos indígenas, Varnhagen mencionou na H is­


tória gerai do B rasil, incidentalmente e a propósito de semelhanças nos
costumes, a origem cita, ou seja, indo-européia dos grupos nativos do
Brasil.40
Anos mais tarde, voltaria ao tem a das origens dos indígenas em
trabalho de etnologia e filologia tupi. Em 1876 publicou, sobre o as­
sunto, uma obra que seria fortemente criticada, sobretudo após o apro­
fundamento da questão pelas pesquisas etnográficas e arqueológicas do
século XX , VOrigine touranienne des am ericains tupis-caraibes et des anciens
égyptiens.
Nessa obra, fundamentado em análises sobretudo lingüfsticas e de
costumes, defendeu a tese de que os tupis resultaram do cruzamento
entre os cários, povos uraloaltaícos (ou turanianos) e índios de origem
mongólica, que, através do Atlântico passaram da Europa à América em
épocas remotas.41 Atribuía, portanto, como notou Nilo Odália, origem
medíterrânea-européia ao índio brasileiro.42 N a opinião deste autor, se­
ria esta mais uma prova das convicções ideológicas de Varnhagen e de
sua preocupação em “europeizar” a cultura brasileira. Entretanto o tema
demanda maior aprofundamento e os argumentos de Varnhagen, antes
de uma avaliação mais cabal, precisam ser considerados por especialis­
tas, isto é, antropólogos e lingüistas, não para considerar erros ou acertos
em relação aos conhecimentos posteriores, mas para ajuizá-los à luz do
conhecimento da época.
N o tocanrè aos costumes indígenas, as observações eram quase sem­
pre acompanhadas de juízos de valor categóricos. Identificou a divisão
de trabalho pelo sexo, comentando que as mulheres viviam “menos ocio­
sas” do que os homens43 e associando o trabalho feminino do plantio e
'trato dos roçados à concepção de fertilidade da “madre terra” .44 O ho­
mem indígena e mesmo as populações indígenas em geral eram sempre

40
Idem, L'Origine,.. t op. cit.
\ l Idem, p. 150. Também na Correspondência ativa. Rio dc Janeiro, INL, 1961, p. 434.
42 Nilo Odália, Introdução. ImVarnhagcn, São Paulo, Ática, 1979, p. 19.
«43
Francisco Adolfo dc Varnhagen, História geral...* op. cit., u I, p. 39.
44 Ibidem.
1(52 E S T A D O ,H I S T Ó R I A . MEMÓRIA

considerados como “reconhecidamente indolentes” , estereótipo que sur­


ge ao longo das obras do autor.45
Lamentou que as rixas tribais46 e o nomadismo4748tivessem perpe­
tuado a “anarquia selvagem” , impedindo uma organização central pode­
rosa e o surgimento de concepções patrióticas, pois “limitavam a tão
curtos horizontes a idéia de sociabilidade, que geralmente a não esten­
diam além da sua tribo”46.
Para Varnhagen, os costumes indígenas revelavam que os índios
eram bons de compleição física e “maus de espírito”49, com atitudes
rancorosas e vingativas50. A própria solidariedade coletiva, que objetivava
a coesão grupai — e cujas características já eram conhecidas à época do
autor por antropólogos e juristas — era encarada como “espírito de vin­
gança” :
Podemos dizer que a única crença forte e radicada que dnham era a obriga­
ção de se vingarem dos estranhos que ofendiam a qualquer— de sua alca-
téia (sic). Este esp írito de vingança levado ao excesso constituía a sua verda­
deira fé.51

Identificou, também, no “caráter” do índio, permanente descon­


fiança — tema ao qual se voltaria, mais tarde, na historiografia52 — que
atribuiu, não a um elemento inato, mas aos perigos da floresta que o obri­
gariam a estar permanentemente em guarda contra ataques traiçoeiros.53
Reconheceu no sacrifício dos prisioneiros uma finalidade religiosa,
associada ao espírito de vingança de homens sem “nenhuma piedade” e
“duros de coração”54. Menosprezando as crenças religiosas indígenas,

45 Quando se refere, por exemplo, à delicada questão dos diretórios indígenas criados pela política
pombalina. Idem, História geral..., op. cit., v. IV, p. 244.
4!' Idem, História gerai.., op. cit., v. I, p. 29.
47 Idem, v. I, p. 24.
48 Ibidem.
47 Idem, v. I, p. 32.
50 Idem, v. I, p. 51.
51 Idem, v. I, p. 43.
52 Sérgio Buarquc dc Holanda, Caminhas efronteiras, Rio de Janeiro, José Olympio, p. 55-56.
53 Francisco Adolfo de Vamhagpn, História gerai.., op, cit.,v. I, p. 53-
54 Idem, v. I, p. 218.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTORIA d o b r a s il 1«

associou a antropofagia ao “prazer que sentiam na desafronta”, exempli­


ficando com o fato de trincarem a carne do animal que os ameaçasse ou
atacasse.55
Não passou despercebido a Varnhagen, editor de Gabriel Soares de
Sousa, o homossexualismo, que descreve com as informações daquele
cronista5*5, acrescentando o feto de que a tolerância comunitária provo­
cava a diminuição da população.
Tais costumes revelavam, segundo Varnhagen, uma vida social ru­
dimentar, cujo estágio admitia ser semelhante ao da Europa primitiva.57
Considerava que os indígenas não viviam apenas um eterno presente, o
que os. colocaria num degrau ainda mais inferior da escala, mas que já
tinham concepções sobre a “eternidade” e o passado.58
Entendia que os indígenas não possuíam “tradições suas”, o que os
tornava excessivamente crédulos e suscetíveis à pregação dos pajés e suas
predições, comparando a ação destes à dos iogui indianos.59
Se a ausência de tradições implicava, para Varnhagen, uma escassa
identidade cultural, a fragilidade de laços femiliares e morais significava o
desconhecimento de sentimentos mais profundos de gratidão e amizade.60
O historiador chocava-sc, assim, frontalmente, embora sem men­
cioná-las, com as concepções românticas que, na literatura contemporâ­
nea, atribuíam aos indígenas os “sentimentos nobres” dos europeus.
A ambos, aliás, faltou emparia e um mínimo de prudência relativista.
O próprio Varnhagen, porém, em diversas partes da mesma obra e em
outras, admitiu a existência de tradições de sociabilidade entre os indí­
genas como reflexo da identidade cultural, não se dando conta da con­
tradição, ou simplesmente considerando-a irrelevante.
O estágio cultural elementar em que se encontravam os indígenas
brasileiros confirmava-se, ainda, na “incapacidade” de oreanizar um Es­
tado centralizado61 (o que não acontecia com os já “semicivilizados” po-

** [dem, v. I, p. 43-
Idem, v. I, p. 29.
,7 Idem, v. I, p. 53.
Idem, v. 1, p. 44.
’ ’ Idem, v. I, p. 45.
in Idem, v. I, p. 48.
f’ 1 Idem, v. I, p. 29.
164 ESTADO, HlSTÓRrA. MEMÓRIA

vos da América espanhola)62 e no que chamou de “jurisprudência india­


na”, isto é, as regras de parentesco e sucessão e a condição inferior da
mulher.63*
As avaliações de Varnhagen sobre os indígenas raramente levaram
em conta sua diversidade e sublinhavam a condição primitiva comum a
todas as etnias. Embora conhecesse e admitisse as diferenças existentes,
sua interpretação era de um determinismo rígido: o fato de se situarem
no estágio “selvagem” da humanidade fatia com que suas realizações e
seu comportamento individual e coletivo tivessem certas limitações in­
transponíveis, que envolviam mesmo sentimentos pessoais, os quais identi­
ficava, em boa lógica historista, com a cultura e não com uma essência do
ser humano.
Sentimentos e atitudes como a gratidão, a fidelidade e o respeito
mútuo dependiam basicamente de um contexto civilizacional; por isso
os índios eram traiçoeiros, infiéis e respeitavam apenas as manifestações
de força. O amor de Peri por Ceei não era apenas, para Varnhagen, um
devaneio romântico: era uma impossibilidade histórica.
A questão indígena levou Varnhagen, não apenas à crítica dos ro­
mânticos, como Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, mas à polê­
mica rude com João Francisco Lisboa.66 Iniciada como discussão amena,
na qual havia vários denominadores comuns, evoluiu para uma disputa
mais áspera porque o que se encontrava em jogo não era apenas a questão
científica de interpretar o significado etnográfico e histórico dos indíge­
nas, mas a atitude a tomar em relação aos indígenas do presente.
Varnhagen recusava atribuir aos indígenas a base da nacionalidade,
como faziam os românticos. Para ele, eram, no presente, apenas popula­
ções geralmente refratárias e hostis, que dominavam áreas extensas do
território brasileiro e nos quais, por conseqüência, não se exercia a sobe­
rania nacional em sua plenitude.

“ Idem, Correspondência..., op. cit., p. 287.


63 Francisco Adolfo de Varnhagen, História gerai.., op. cit., v. I, p. 47-48. O tema tinha sida
objeto de um trabalho de Martius, O estado do direito entre os autóctones do Brasil, São Paulo,
Edusp—Itatiaia, 1982, p. 11-71, que Varnhagen não indica ter conhecido.
04 Francisco Adolfo de Varnhagen, Os índios bravos e o sr. Lisboa, Lima. Liberal, 1867, 124 p.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÖRIA DO BRASIL 165

A polêmica com João Francisco Lisboa situa-se justamente na polí­


tica a seguir em relação aos indígenas do presente, não na interpretação
de sua cultura, que era apenas utilizada para endossar as teses pragmáti­
cas do autor.65 A proposta de Varnhagen, tão criticada por João Francis­
co Lisboa66, consistia em restaurar as bandeiras, avançar sobre as nações
indígenas, aprisioná-las e distribuir os indígenas entre os novos bandei­
rantes ou quem a estes siab-rogassem os direitos assim adquiridos sobre
estas populações.67 Nos primeiros quinze anos, os índios estariam sub­
metidos a um regime de trabalhos forçados, do qual, findo o prazo, se
liberariam, mas permaneceriam sob um regime de tutela permanente,
dada sua condição jurídica (como os menores de idade e os alienados) de
inferioridade civil — tese, aliás, que se concretizaria no direito civil bra­
sileiro desde os projetos do século XIX.
Quanto aos negros, Varnhagen é mais parcimonioso. Sobre sua ori­
gem étnica e características antropológicas, afirmava, na H istória geral do
Brasil, que havia pouco conhecimento científico, sendo necessários no­
vos estudos para embasar quaisquer conclusões mais firmes.68
Identificava as diferenças culturais das etnias negras associando-as
às suas expressões religiosas, como idólatras, animistas, fetichistas e co­
munidades influenciadas pelo islamismo.69 Mencionava, também, gru­
pos já cristianizados desde a África.70 O autor foi atento à diversidade
lingiitstica dos africanos, comentando que a língua portuguesa, embora
estropiada, foi a única comum aos diferentes grupos.71 Não fez, porém,
a propósito da região mineradora, cuja documentação conhecia bem,
comentários sobre a estratégia dos administradores portugueses, de fa­
zer conviver as diferentes etnias para evitar rebeliões.72

61 Idem, p, 7-8.
CG João Francisco Lisboa, Apontamentos para a história do Maranhão, Pctrópolis, Vozes, 1976, p.
579ss.
47 Américo jacobina Lacombe, As idéias políticas de Varnhagen, RIHGB, 275:2, p. 152.
48 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral..., op. cit., v. I, p. 223.
69 Idem, v. I, p. 224.
70 Ibidem.
71 Idem, v. I, p. 221.
71 Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil, Rio de Janeiro, SEPII, 1963, p. 145.
166 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

Varnhagen, embora francamente preconceituoso em relação à “ bar-


bárie*' negra, reconheceu a força física e o gênio alegre dos negros:
talvez o maior dom com que a Providência os dotou para suportar a sorte
que os esperava; pois, com seu canto monótono, mas sempre afinado e
melodioso, disfarçam as maiores penas.73*75

Destaca, também a contribuição negra para a economia do país, no


trabalho nos canaviais durante a Colónia c cm sua época na Cafeicultura,
reconhecendo a sua importância para a formação étnica, miscigenada do
país. Entretanto, dizia, numa das mais antigas (senão a primeira) mani­
festações a favo.t.da tese do branqueamento:
mas fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo sc
combinem que venham a desaparecer totaimente no nosso povo as caracte­
rísticas da origem africana (. ..)7*

Tanto negros como índios aculturados, isto é, cristãos que falavam


português e haviam aderido aos valores da sociedade portuguesa, foram
objeto de elogio em toda a obra historiográfica de Varnhagen. N So mais
fazia que endossar as atitudes e juízos oficiais que recolhia na documen­
tação P
As referências a cristãos-novos foram, quase sempre, feitas no con­
texto dc fortes críticas à Inquisição e por isso lhes são favoráveis, vendo-
os como vítimas de um processo arbitrário e injusto. As menções aos
ciganos são escassas, quase sempre baseadas na própria legislação portu­
guesa.
As interações étnicas são registradas esparsamente, sem maior de­
senvolvimento. Além da miscigenação, que via como caminho para o
predomínio branco, Varnhagen atribuiu a decadência da língua portu­
guesa ao seu uso quase exclusivamente oral pelos escravos, à influência
destes sobre os filhos dos colonos76 e também ao emprego generalizado
de utensílios e objetos fabricados pelos indígenas77. Limitou-se, entre-

73 Francisco Adolfo dc Varnhagen, História geral..., op. cit., v. I, p. 244.


Idcm, v. I, p. 223.
75 Por exemplo, na História geral..., op, cit., v. IV, p. 200 c 244.
74 Idcm, v. I, p. 221.
77 Idcm, v. 1, p. 212.
A INTERPRETAÇÃO d a h i s t o r i a d o b r a s i l 167

tanto, ao simples registro, sem procurar uma explicação mais global para
tais latos, que os procedimentos m etodológicos da época — c os conhe­
cim entos etnográficos — já adm itiam . N este aspecto e sob este argu­
mento, parece-nos válida a restrição ao autor em itida por Capistrano de
Abreu no “N ecrológio” .78
As instituições foram outros atores sociais privilegiados por Varnha-
gen. Entre elas, as que considerou mais significativas, ou sobre as quais
expendeu juízos mais explícitos, foram o Estado e a lei, a religião, a ordem
dos jesuítas, a Inquisição e o Estado português.
O Estado é associado com a noção de lei. Parece claro para Vam ha-
gen que as leis, a escrita e o Estado são os indicadores básicos da existên­
cia de um a sociedade civilizada e que sucedem a “m ui tristes sofrimentos
do m esquinho gênero humano antes de as possuir”79.
A onipresença do Estado é inquestionável para Varnhagen, convic­
to desta evidência. Ele a defendeu em vários m om entos de sua obra,
cncarando-a não com o fruto de determ inada tradição sociopolítica, m uito
m enos co m o tão-somente um a interpretação hobbesiana-hegeliana, mas
com o realidade fática e necessidade “natural” , perm anente e intem po­
ral, d o gênero humano.
Q u an to à religião, com o Varnhagen a concebia ao m odo de um
fundam ento social — no que não diferia da tradição regalista, nem de
seus críticos iluministas — ela surgia com o elemento indispensável da
ordem . A sua falta contribuiu para as desordens nas capitanias no século
X V I80, agravada quando alguns eclesiásticos “não só deixavam de cum ­
prir os preceitos da Igreja com o, às escâncaras, faltavam à sociedade,
vivendo escandalosam ente na poligam ia” 81.
Assim, “tudo mostrava a necessidade de acudir com pronto remé­
dio à religião. Poderosíssimo instrum ento de civilização c de m oral”82

71 João Capistrano de Abreu, Necrológio dc Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Poeto


Seguro. Ensaios e estudos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 77.
79
Francisco Adolfo dc Varnhagen, História geral..., op. cit., v. I, p. 82.
aa
(dem, v. I, p. 225-
li Idon, v. 1, p. 228.
az Idnrt, v. 1, p. 246.
168 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

Entendia a religião, portanto, como tudo o mais, subordinada à


razão de Estado. Ao sc referir ao papel religioso nas conquistas, associa­
va-o às demais motivações políticas e econômicas dos governos, não dei­
xando de assinalar (referia-se a D. João III) que a propagação do evange­
lho não se poderia fazer às expensas de homens e bens, ou sacrificando as
necessidades materiais da população.8384
A atitude de Varnhagen em relação ao jesuitism o explicita clara­
mente sua compreensão1da história e das relações Igreja—Estado. N ão
foram poucas nem leves as críticas:
a) Varnhagen lastimou que, no governo de D . Francisco de Sousa,
houvesse aumentado a força política dos jesuítas com o controle
dos colégios do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco e a adminis­
tração dos índios, “com preferência a todas as outras ordens e esta­
dos”84.
b) A ampliação desse poder ao longo do século e meio seguinte fê-
lo comentar, referindo-se aos meados do século XVIII, que a Com ­
panhia já constituía “no Estado outro Estado”85, argumento, aliás,
pombalino.
c) O s jesuítas eram, em gerai, “pela ambição e orgulho de seus
membros”, fonte de “não poucos distúrbios”86.
d) Freqiientemente conspiraram contra os interesses do Estado, no
norte como no sul, em especial, neste caso, quando atuaram “como
cúmplices dos índios sublevados”87.
e) N ão defenderam o povo contra os poderosos, interpretação que,
segundo Varnhagen, tornava-se corrente, mas, ao contrário, “a his­
tória nos prova que os mandões mais arbitrários os protegiam sem­
pre e os povos sempre contra eles se levantavam”88.
f) Preferiam catequizar os indígenas da Amazônia na língua geral e
não em português, “para melhor monopolizarem os mesmos ín-

83 Idem, v. I, p. 147.
*4 Idem, v. II, p. 53.
95 Idem, v. IV, p. 137-138.
64 Idem, v. IV, p. 141.
87 Idem, v. IV, p. 137.
84 Idem, v. IV, p. 143.
A INTERPRETAÇÃO d a h i s t ó r i a d o b r a s il 169

dios”89, argumento pombalino que encontramos na documentação


da época da expulsão dos jesuítas.
g) Os jesuítas em São Paulo entravaram de tal modo o uso da mão-
de-obra indígena, mesmo assalariada, que prejudicaram seriamen­
te os colonos,, embora eles próprios fizessem uso dela permanente­
mente.90
h) Varnhagen elogiou Anchieta e Nóbrega e reconheceu aspectos
positivos na obra da Companhia, mas justamente por “não serem
eles sectários das idéias de Las Casas”9’ .
i) Varnhagen retomou a antiga crítica iluminista à ausência do
tnissionarismo jesuítico na África, porque ali não lhes interessava o
domínio sobre povos primitivos, com pouca riqueza material e cli­
ma inóspito.92

O s argumentos de Varnhagen contra os jesuítas são os de um adep­


to da razão de Estado contra as forças centrífugas que prejudiquem aqueles
objetivos. Por isso, ao mesmo tempo que endossava críticas ao jesuitismo
partidas de burocratas pombalinos, utilizava concepções liberais e ilu-
ministas contra a Companhia. Não sc trata de incoerência: a “moderni­
zação” pombalina — como a do despotismo esclarecido em geral — teve
pontos de contato com a ideologia liberal, especialmente pelo lato de que
ambos — quer como defensores do “Estado”, quer da “sociedade” —
defenderam a eliminação das entidades comunitárias intermediárias.
Esse fato, aliás, repetiu-se na geração seguinte — para não exem­
plificar mais além: Rui Barbosa, no “Discurso do Liceu de Artes e Ofí­
cios”, fez largo elogio aos aspectos modernizadores do pombalismo, par­
ticularmente em seu combate ao “obscurantismo jesuítico”93.
Varnhagen não foi menos estatista no julgamento da Inquisição.
Adotando a perspectiva liberal então difundida sobre o assunto, não a

"9 Idem, v. IV, p. 40.


Idem, v. II, p. 52.
91 Idem, v. I, p. 220.
” Idem, v. II; p. 342.
93 Ru* Barbosa, Discurso no Liceu de Artes e Ofícios, Obras Completas, Rio de Janeiro, FCRB,
1982, t. IX, v. II.
170 ESTADO, HISTORIA, MEMÓRIA

viu como uma entidade paraestatal, ao modo da moderna historiografia


do tema.94 Ao contrário, viu nelã, sobretudo no século XVIII, um Estado
dentro do Estado, sobrepondo-se à lei, aos tribunais, ao governo e às
autoridades eclesiásticas, cujos funcionários diminuíam ao rei a majesta­
de.95 Sobre a primeira metade do século XVII, referindo-se aos Felipes,
comentou que o próprio rei “era escravo submisso da Inquisição”96.
Suas críticas à Inquisição foram sempre do mesmo teor, recrimi­
nando Torquemada, “de maldita memória”97, lastimando que a socieda­
de portuguesa e a colonial vivessem sob o temor da “maldade e hipocri­
sia” dos esbirros da instituição98 e defendendo os cristãos novos99. Chegou
a atribuir ao clima persecutório que teria sido criado pela Inquisição, na
Colônia, a desconfiança individual e até “a estagnação nas relações de
comércio e nas indústrias” 100.
N a sua correspondência, referiu-se à presença de habitantes da
Colônia nas listas da Inquisição de Lisboa no século XVIII, que pesquisou
em Portugal, aduzindo que o Santo Ofício “naturalmente esperaria que
acumulassem lá primeiro [referia-se a Cuiabá] algum ouro para o fisco
ser de mais regalo” 101.
Sobre o governo de D. João, elogiou a atitude reformista do rei cm
relação à Inquisição, quando da nomeação do bispo Azeredo Coutinho102,
entendendo que a força de que dispunha a instituição não permitiria ao
rei uma ação mais drástica.
A atitude de Varnhagen em relação à Inquisição, assim, não difere
da crítica liberal (e também protestante) em voga nos círculos intelec­
tuais da Europa ocidental e reproduzida em Portugal. Suas afirmações,

9 Por exemplo, Sônia A. Siqueira, A Inquisiçãoportuguesa e a sociedade colonial, Sáo Paulo, Ática,
1979, p.lOss.
95 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral..., op. cit-, v. I, p. 163.
Idem, v. II, p. 251.
97 Idem, v. I, p. 163.
3* Idem, v. IV, p. 25.
99 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência..., op. cit., p. 122.
100 Idem, História geral..., op. cit., v. IV, p, 25.
101 Idem, Correspondência—, op. cit,, p. 95.
102 Idem, História geral..., op. cit., v. rV, p, 244.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 171

entretanto, denotam uma análise superficial da documentação inquisi­


torial, concepção homogênea dos três séculos de sua presença no Brasil e
incompreensão em face do que representou para o Estado, exatamente
porque esse defensor da “razão de Estado” não discerniu — como em
geral também não o fez o pensamento liberal oitocentista, à exceção de
Tocqueville — os mecanismos estatais e seus meios de ação.
Quanto à escravidãxj, por motivos éticos e pragmáticos do figurino
liberal, Vambagen a considerava imoral, corruptora e anticivilizadora103,
defendendo a extinção do tráfico à época da lei Eusébio de Queirós e a
liberdade para os nascidos de ventre escravo.104
N a opinião de Varnhagen sobre o assunto, é preciso distinguir a
questão geral da escravidão, da africana, especificamente. No primeiro
caso, não há dúvida de que o historiador, pelos motivos já expostos, a
condenava em qualquer circunstância. Anticristã e antieconômica, a es­
cravidão depravaria os costumes e prejudicaria a produção:
A escravidão, como ela foi admitida entre nós, alheia à ternura da família,
endurecia o coração dos escravos, os quais não queriam adquirir inclinações
que de um a outro momento lhes seriam contrariadas, nem podiam interes­
sar-se tanto pela prosperidade de seu próprio senhor, visto que dela nada
lhes cabia em sorte, desde o dia cm que passavam a outro dono.105

Quanto à escravidão africana, Varnhagen a condenava, assumindo


atitude próxima do racismo que se desenvolveria plenamente no final do
século XIX. Embora lastimasse as condições “atrozes” do tráfico e as
dificuldades do trabalho nas lavouras, entendia que a entrada de negros
representava, em muitos aspectos, um a regressão cm relação aos pró­
prios indígenas, por virem de “nações igualmente bárbaras e mais su­
persticiosas, essencialmente intolerantes, inimigas de toda liberdade”106,
Embora reconhecendo a importância -do trabalho africano no açú­
car e no café c o seu peso étnico, na mesma obra e na mesma ordem de

103 Américo Jacobi na Lacombe, op. cit, p. 150.


103 Ftanriosco Adolfo de Vambagen, Memorial orgânico* Madri, D. J. R. Dominguez, 1849-1850,
p. 22 .
Idem, História geral..., op. rir., v. I, p. 225-
Idem, v. I, p. 2 2 1 .
172 ESTADO, HISTORIA, MEMÓRIA

raciocínio fez ardentes votos para que a miscigenação caldeasse de todo a


origem africana, produzindo o “branqueamento” da população.107
Que motivos levaram os portugueses a adotar a solução africana?
Esta a pergunta que Varnhagen se fez, para concluir que se a administra­
ção colonial tivesse agido como os espanhóis na América, instituindo
um regime como o das encomiendas, teria sido possível realizar a coloni­
zação sem o recurso à mãç-de-obra africana.
O historiador acusou a “pseudxjfilantropia" do século XVI, repre­
sentada pela difusão do pensamento de Las Casas e pela leyenda negra,
por não ter sido utilizada de modo exclusivo a mão-de-obra indígena.
Admitiu também, entretanto, outra explicação adicional, “a maior resis­
tência dos africanos ao trabalho prolongado ao sol tropical”108. Atri­
buiu, muito naturalmentc, aos jesuítas a principal responsabilidade pela
proteção aos indígenas e, indiretamente, pelo tráfico africano.10910
Estendia, assim, ao passado, a solução que defendera no M emorial
orgânico para a questão indígena contemporânea: a redução dos índios e
a sua distribuição em encomiendas.u0 Parecia, entretanto, convicto de
que isso não implicaria escravidão, desde que se cumprissem as leis —
pelo menos, não perdeu oportunidade de criticar os abusos, como, por
exemplo, no caso dos diretórios de indígenas criados à época pombalina.111
O aspecto mais criticado nas opiniões de Varnhagen sobre a escra­
vidão diz respeito à avaliação de seu significado.112 Frequentemente ele a
justificava e reduzia seus aspectos mais negativos: a instituição como tal
fora em geral admitida pelos povos antigos, tolerada pelo evangelho e,
em Portugal, constituiu-se em continuação da escravidão mourisca.113
A escravidão negra, por sua vez, apenas repetia na América o que já
ocorria na África.

107 Jdcm, v. I, p. 223.


103 Idem, v. í, p. 222.
*** Idem, v. I, p. 220.
110 Idem, Memorial.., op. cit., p. 17.
111 Idem, HistóriagemL.., op. cit-, v. IV, p. 275. .
112 José Honório Rodrigues, p. 193- Nilo Odália, op. cit., p. 15-18.
113 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral..., op. cit., v. I, p. 222.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASH- 173

Nessas nações a liberdade individual não estava assegurada, pelo que os


mais fortes vendiam os fracos, os pais os filhos e os vencedores, com muito
maior razão, os vencidos.114

Este argumento, o mesmo utilizado desde o século XVT por juris­


tas e teólogos na defesa da escravidão africana e que deitou raízes até nas
origens do liberalismo — Locke e Montesquieu o utilizaram115 — Var-
nhagen completava procurando demonstrar que a escravidão na Améri­
ca permitia o “melhoramento social” dos africanos, que assim tomavam
contato com uma cultura mais evoluída e com o cristianismo, além do
fato de estarem submetidos às regtas jurídicas do direito romano sobre a
escravidão, mais brandas e mais bem-assencadas do que as normas jurí­
dicas de suas sociedades de origem.11*
Outro argumento que tendia a minimizar os aspectos negativos da
escravidão brasileira, ainda encontrado em autores do século XX, como
Gilberto Freire, foi o da comparação com os Estados Unidos onde, se­
gundo Varnhagen (escrevendo pouco antes da Guerra da Secessão) “o aná­
tema acompanha não só a condição e a cor como todas as suas gradações”.117
Não perdeu oportunidades para projetar no passado — conquanto
respeitasse rigorosamente a documentação e distinguisse as informações
de sua própria opinião -— as soluções que lhe pareciam melhores para o
fim da escravidão em sua época: a abolição gradual e a entrada de colo­
nos estrangeiros. Refèrindo-sc ao início do século XVIII, quando da cor­
rida para as minas, lastimou que a Coroa tivesse perdido a oportunidade
de converter a escravidão em servidão da gleba, garantindo a unidade
familiar negra118; e sobre o governo de D . João VI, elogiou os esforços
para a introdução, com “quaisquer sacrifícios”, de colonos europeus.119
Contrastando com a análise das instituições coloniais, as referên­
cias à sociedade e ao Estado português na obra de Varnhagen são míni­
mas: brevíssimas menções ao papel dos árabes e do cristianismo na pe­

114 Idem, v. I, p. 224.


114 Discutimos o assunto cm Atno Wehling, Introdução a um colóquio. A abolição da escravatura,
Rio de janeiro, IHGB, 1988. p. 7.
116 Francisco Adolfo de Vámiiagcn, HistóriagemL.., op. cit., v. I, p. 224.
117 Idem, v. I, p. 223.
1'* Idem, v. III, p. 266.
1” Idem, v. V, p. 127.
174 ESTADO. HISTÓRIA, MEMÓRIA

nínsula120, à traição da nobreza portuguesa em 1580’2’ , aos prejuízos


de Portugal com a União Ibérica122, às transformações administrativas
acarretadas pelos descobrimentos123124, ao abandono da agricultura metro­
politana em favor do comérciot24, às reformas educacionais pombalinas
para formar quadros administrativos125* e à “resistência heróica” contra
N apoleão1213.
Ressente-se, assim, a análise de uma visão das instituições luso-
brasileiras, bem como das relações conjunturais, perspectivas que não
são estranhas à obra de contemporâneos que se pautavam pelos mesmos
ou semelhantes princípios, como Herculano, Guizot ou Ranke, para
não mencionarmos Tocqueville, citado por Varnhagen no “Prólogo”.
Essa foi, sem dúvida, a matriz de interpretação de uma história do
Brasil praticamente desligada do processo histórico global, cuja recupe­
ração deveria esperar a década de 1930, com as obras de Caio Prado Jr. e
Nelson Werneck Sodré, na perspectiva marxista, e de Roberto Simonsen,
na sombartiana.127
Finalmente, os grandes personagens que, segundo a opinião cradi-
cionalmente aceita, seriam os atores sociais fundamentais na obra de
Varnhagen, constituem aquilo que Nilo Odália apropriadamente iden­
tificou como a tentativa de construir um panteão nacional.128 Preocupa­
ção, também, do Instituto Histórico à época, interessado na organização
de um a galeria de “varões de Plutarco” que corroborassem as posições
nacionalistas c a defesa do Estado imperial.129

124 Idem, v. I, p. 53.


121 Ucm, v. I, p. 366.
122 Idem, História das lutas..., op. cit., p. 62.
123 Idem, História geraL.., op. cit., v. I, p. 155-
,M Idem, v. I, p. 122.
113 Idem, v. I, p. 122.
1,4 Idem, v. V, p. 155­
122 Carlos Guilherme Mota./I ideologia na cultura brasileira, São Paulo, Ácica, 1979. José Roberto
do Amaral Lapa, A história em questão: historiografia brasileira contemporânea, Petrópolis, Vozes,
1976. José Honório Rodrigues, História e historiadores do Brasil, Rio de Janeiro, Fulgor, 1965.
Foram estudos que se dedicaram às relações entre a historiografia e a vida culcutal e política do
pais após a década de 1920.
124 Nilo Odália, op. cit., p. 12.
123 Amo Wehling, Historicismo e concepção da história nas origens do IHGB, Origem do IHGB,
Rio de Janeira, IHGB, 1988, p. 47. Republicado, com modificações a n á invenção da história,
Rio de Janeiro, UFF—UGF, 1994, p. 151.
A INTERPRETAÇÃO OA HISTÓRIA DO BRASIL 175

As opiniões de Varnhagen sobre personagens históricos ou entida­


des coletivas permitem elaborar um a tipologia que reflete os valores e a
ideologia do autor com bastante fidedignidade.
Consideramos nessa tipologia duas situações: a enunciação de vir­
tudes (“aspectos positivos”) e defeitos (“aspectos negativos”) sobre perso­
nagens/ entidades e os juízos favoráveis, contrários ou circunstancialmente
oscilantes sobre personagens brasileiros, portugueses e estrangeiros.
Observe-se que os elementos que compuseram a tipologia não es­
gotam as avaliações de Varnhagen: o critério para sua escolha foi, no
primeiro caso, a afirmação reiterada das características e, no segundo, a
relevância histórica atribuída pelo próprio autor aos personagens.

Aspectos Positivos e Negativos Atribuídos Feio Autor


a Personagens/Enridades/Coletividadcs

Aspectos Posmvos Aspectos N egativos


Energia (portugueses) Volubilidade (índios, negros)
Audácia (índios, bandeirantes) Crueldade (índios)
Probidade (D. José I) Traição (Calabar)
Prudência (Gomes Freire) Espírito traiçoeiro (índios)
Força física (índios) Delação (Calabar)
Talento (Alexandre de Gusmão) Dureza de coração (Vieira)
Memória (Alexandre de Gusmão) Impiedade (Vieira)
Nobreza de caráter (D- José 1) Truculência (Cevallos)
Sagacidade (Pombal) Espírito vingativo (Cevalios)
Garbo (Gomes Freire) Espírito rancoroso (Cevallos)
Simpacia (Gomes Freire) Pouca instrução (Marquês de Aguiar)
Tenacidade (Vertiz) Egoísmo (homem índio)
Benignidade (D- José I) Charlatanismo (feiticeiros indígenas)
Singularidade (Lavradio) Descrença (mamelucos)
Espírito modelar (Fr. Caetano Brandia) Ociosidade (Caetano Pinto, negros
dos Palmares)
Acividade (Duarte Coelho) Desordem (plebe)
Severidade (Duarte Coelho) Demagogia (plebe, Andradas)
Valentia (Henrique Dias)
Circunspecção (Francisco Coelho)
i.wnWI »
176 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

Observa-se, pela amostragem do Quadro I, que as virtudes ou as­


pectos positivos encontram-se quase sempre entre portugueses ou luso-
brasileiros, que inequivocamente (como Henrique Dias) assumem valo­
res e atitudes favoráveis à Weltanschauung do Estado colonial, fortemente
identificada com a do próprio autor. Já os aspectos negativos ou defeitos
identificam-se com os “adversários”, isto é, não-cristãos, não-brancos,
não-lusitanófiios.
N o caso do padre Antônio Vieira, foram suas posições em favor dos
indígenas e da ação política dos jesuítas que determinaram a avaliação
negativa.
Em jusdça a Varnhagen deve ser registrado que, descendo a situações
específicas, encontram-se frequentes aspectos negativos, por exemplo, em
autoridades subalternas e nas críticas ao mandonismo rural. Mas essas
avaliações casuísticas não são capazes de alterar o quadro geral, qúe aponta
para um perfil de virtudes: cristão, branco, estatista, lusóBlo c etnocêntrico.

laSÏniÂlii’^ t â i î ^ l S S . I I. ' ' T il


Q uadro Ié
Juízos Emitidos Sobre Personagens Históricos Relevantes

B rasileiros P o rtug u eses E strangeiros


*+ André Vidal de Negreiros + Francisco Barreto + Américo Vespúcio
x Tomás Antônio Gonzaga + D. José I 4 Maurício de Nassau
x Pt. João Ribeiro + D. Jo io VI 4 Grimaldi
x Azeredo Coutinho + D. Pedro I 4 Juan Vertiz
+ Viscond e de Caini + Gomes Freire 4 Pedro Cevallos
+ Henrique Dias t Marquês do Lavradio x Las Casas
+ Felipe Camarão + Duarte Coelho
x Domingos José Martins x Caetano Pinto
* Tiradentcs x Marquês dc Aguiar
x Joaquim Silvério dos Reis x Castro Caldas
x Calabar *xPadre Vieira
* Marias de Albuquerque
+ Frei Caetano Brandão
x João Fernandes Vieira
+ Manuel Beckmann
4 Juízos favoráveis
r Juízos contrários
* Opinião oscilante, com juízos favoráveis e contrários
*4 Opinião oscilante, com tendência favorável
*x Opinião oscilante, com tendência contrária
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 177

Repece-sc, no piano individual, o padrão revelado no quadro ante­


rior, relativo aos valores. São favoráveis os juízos sobre personagens que
atendem a valores positivos "universais”, nos limites da “civilização” e
“específicos” (cristaos/lusitanos “estatais”) e negativos em relação àqueles
que os transgridem. As opiniões oscilantes ocorrem por revisão de pon­
tos de vista do autor (como no caso de Tiradentes e da Conjuração M i­
neira em geral)130 ou po tj juízos circunstanciais sobre situações específi­
cas, podendo ou não predominar tendência favorável ou desfavorável,
como no caso da ação militar de Matias de Albuquerque na resistência à
ocupação holandesa de Pernambuco.

ADINÂMICA SOCIAL
A mobilidade dos atores sociais ocorre em meio a uma dinâmica
cujos pontos mais significativos são, para Varnhagcn, as classes e a orga­
nização social, a atividade econômica (aí compreendida a política econô­
mica estatal), as questões relativas ao poder central e local e os conflitos
ocasionados pela colonização (com indígenas, com estrangeiros, rebe­
liões, quilombos).
Essa dinâmica não é claramente descrita — nem discernida — pelo
autor, mas os desdobramentos do plano da obra, a organização docu­
mental, o material selecionado e os juÍ2os emitidos permitem identificá-
la, sem que isto represente um exercício artificial dc fazer os textos fala­
rem mais do que dizem,
No delineamento da organização social, Varnhagen assinalou as
muitas dificuldades enfrentadas pela colonização, mas atribuiu-as ao meio
e não às características étnicas da população.13' Problemas como o calor
excessivo ou a floresta impenetrável pareciam-lhe mais significativos do
que as condições intrínsecas dos colonizadores.132 Predomina, assim, em

13" Da primeira pata a segunda edição da História geral do Brasil Ver a propósito as observações de
Américo Jacobina Lacotnbc, op. cit., p. 146 c José Honório Rodrigues, op. cit., p. 192.
1J 1 Conclusão a que já chegara Américo jacobina Lacombe, op. cit., p. 143.
'32 Francisco Adolfo dc Varnhagen, História geral..., op. cit., v. 1, p. 10.
178 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

sua interpretação um caráter mesológico e nao étnico para explicar o


condicionamento a que sc submetiam as relações sociais.
Ao contrário do que freqüenremenre se afirma, VarnJiagen não foi
impermeável à análise social, nem mesmo à da estratificação. Refèrindo-
se a Portugal, acompanhou Alexandre Herculano ao concordar que, no
início da monarquia, as classes sociais reduziam-se a duas, nobres e ple­
beus, distinguindo naqueles os ‘‘ricos-homens” e os “infanções” e assina­
lando as diferenças de riqueza entre eles.133 A classe dos nobres não dei­
xou de acrescentar a nobreza de serviço, a burguesia de comerciantes e a
magistratura, com o desenvolvimento da monarquia.134
Sobre o Brasil, concentrou suas observações sobre a sociedade no
século XVI, sendo mais escassos os comentários para a época posterior.
No caso do primeiro século colonial, identificou, acompanhando a clas­
sificação dos forais, três segmentos sociais: os fidalgos, os peões e os gen­
tios.135
Ao analisar a estratificação social de Pernambuco, Bahia e São Vi­
cente, destacou o que lhe pareceu ser sua preocupação aristocrática, pois
as "as famílias principais, fazendo timbre de sua origem se extremaram
sempre, evitando alianças com indivíduos cujos precedentes não conhe­
ciam ...” 136
Não deixou de assinalar, sublinhando seu preconceito aristocráti­
co, que as famílias-tronco do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Maranhão
procediam das do Nordeste, com o que evidentemente assegurava uma
origem nobre para toda a d ite colonial.137 Ao mesmo tempo, porém,
Varnbagen foi o principal tesponsável pela difusão do “mito dos degre­
dados”, ao destacar, na origem das capitanias, a insubordinação e a irre­
gularidade, “em consequência dos degredados que choviam da mãe pá­
tria” 138, bem como a “depravação” do clero139, tanto no século XVI como

135 Idem, v. I, p. 156.


m Ibidem.
135 Idem, v. I, p. 153.
136 Idem, v. I, p. 227.
137 Ibidem.
l3a Idem, v. I, p. 225.
l” Idem, v. IV, p. 225.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASH- 179

no século XVIII. Neste último caso, o autor adota expressamente o pon­


to de vista oficial, regalista, em relação ao clero secular ou regular, en­
quanto que para o século XVI baseia-se em um número mais diversifica­
do de fontes.
Simpático a um regime de servidão ou de encomiendas para resolver
o problema do trabalho braçal, Varnhagen não deixou sem registro o
fato de colonos e índios ^trabalharem “lado a lado” '40 em algumas capita­
nias nos primeiros tempos, quando ainda não havia ocorrido a desvalori­
zação do trabalho manual, associado ao escravo.
Ao contrário dos viajantes estrangeiros que o precederam e de Ca­
pistrano de Abreu e outros expoentes da geração cientificista que o suce­
deu, Varnhagen praticamente não se refere aos tipos regionais nas suas
diversas obras. Apenas aos paulistas dedica algumas passagens, como
aquela em que defende os bandeirantes das críticas de origem jesufri-
ca140141, ou outra em que os elogia como “intrépidos descobridores das
minas” 142, ou uma terceira na qual ressalva que eles “tinham abusado de
seu espírito guerreiro e empreendedor (...) [tomando-se] traficantes de es­
cravos índios”143.
Para um historiador que também produzia história literária, tinha
conhecimento das diferenças regionais neste plano e que chamara a aten­
ção para a existência dos núcleos pernambucano, baiano e mineiro, esse
silêncio é revelador: nem nos volumes dedicados ao século XVIII da
H istória geral nem na H istória da independência há referências aos tipos
regionais e às diferenças de uma região para outra.144*
Essa omissão, que tão fortemente contrasta com o longo capítulo
conclusivo de Capistrano de Abreu nos Capitulas de história colonial, em
boa parte fundado em tal diferenciação, não se explica apenas pela pers­

140 Idem, v. I. p. 327.


141 Idem, v. II, p. 53.
143 Idem, v. II, p. 121.
143 Idem, v. III, p. 130.
144 Mesmo o estudo sobre a situação das províncias na época da independência í daiamentc relegado
a segundo plano: o palco dos acontecimentos é o Rio de Janeiro c a guerra nas províncias ocupa
menos de um terço do livto, à guisa de apêndice. Ftancisco Adolfo de Varnhagen, História da
independência do Brasil, Brasília, INL, 1972, p. 397ss.
ISO ESTADO, HISTORIA, MEMÓRIA

pectiva teórico-metodológica, estatista e politocêntrica, do autor. Ela se


deve, a nosso ver, à obsessiva preocupação com as tendências federalistas
ou separatistas contemporâneas da juventude de Varnhagen: o destaque
ao regionalismo poderia transformar-se em arma contra o projeto de
unidade nacional do Império.
A atividade econômica da Colônia, na ótica de Varnhagen, era mero
subproduto da ação estatal. O autor destaca particularmente o fomento
da segunda metade do século XVTII, quase sempre elogiando a atividade
do poder público.145 Revela-se sensível, entretanto, às críticas surgidas
nos documentos contra as “opressões causadas pelas mesmas corporações
ou leis que se havia criado para protegê-lo ou fomentá-lo” 146.
O conflito entre o estatismo patrimonialista português e a ideolo­
gia do liberalismo econômico ressalta na obra de Varnhagen sempre que
surgem questões de ordem econômica. Simpático à intervenção estatal,
reclamando sua ausência em alguns casos, não deixou entretanto de en­
dossar as críticas da época aos excessos tributários, como no caso do
imposto do consulado, destinado à segurança da navegação147, e sobre­
tudo no final do século XVIII, quando suas observações pracicamente
repetem as críticas dos próprios administradores portugueses “ilustra­
dos”, como d. Rodrigo de Sousa Coutinho:
Cum pre advertir que todos os artigos de produção do país estavam tão
sobrecarregados de direitos e estes subdivididos de m odo tal, que nem o
fisco sabia bem quanto arrecadava, nem os produtos quanto tão complexa­
mente pagavam.148

Mesmo crítico, portanto, Varnhagen continuava interpretando a


política econômica colonial de um ponto de vista oficial, embora refor­
mista.
A economia colonial não aparecia, assim, aos olhos de Varnhagen,
como aspecco relevante do processo social, nem em suas relações com a
conjuntura internacional. Era fruto da política estatal e seus bons ou

141 Francisco Adolfo dc Vunlugcn, História geruL., op. cit., v. IV, p. 240.
144 Idem, v. V, p. 64.
147 Idem, História das hstas..., op. cit., p. 64.
148 Idem, História gentL... op. cit., v. V, p. 62.
A INTERPRETAÇÃO d a HISTORIA d o b r a s il 181

maus resultados refletiam menos as condições objetivas de produção e


circulação do que a gestão dos administradores públicos. Tal Fato se ex­
plica não apenas pelos notórios fatos da presença estatal na economia e
da fragilidade da burguesia portuguesa — o que Vamhagen efetivamente
constatou — , mas à perspectiva com que o autor orientou suas pesquisas,
fãzendo-as girar em torno do ator principal da trama — o Estado.
É, assim, compreensível que a documentação “fale” constantemen­
te d o fomento estatal, pois foram esses os documentos buscados por
Varnhagen, que desconsiderou aqueles — os dos agricultores e comer­
ciantes fluminenses do final do século XVIII, por exemplo — capazes de
mostrar outros aspectos da questão, como as dificuldades tecnológicas, a
escassez de mercado interno e a ausência de uma burguesia empreende­
dora na Colônia14’ , três aspectos que também constam explicitamente
de documentos oficiais setecentistas conhecidos do autor e que, a outros
propósitos, menciona.150
A organização do poder na Colônia foi vista por Varnhagen como
uma tensão entre o poder local e o poder central? Esta hipótese, que
representaria a projeção das dificuldades do unitarismo imperial sobre o
passado colonial, parece facilmente comprovável. O historiador era sem­
pre, em princípio, crítico do poder local c do centrifiigismo administra­
tivo e simpático à ação centralizadora do poder público.
A respeito das capitanias hereditárias, criticou o direito de couto e
homizio como um abuso que subtraía à justiça real criminosos protegi­
dos pelos donatário.151 Aliás, sua análise do sistema de capitanias foi,
por este motivo, francamente desfavorável, lastimando que o rei cedesse
grande parte da soberania152 num momento em que, na Europa, fazia-se

H9 Arno Wehling, Administração portuguesa no Brasil, 1777-1808, Brasília, Funccp, 1986, p.


I02ss; Fomentismo português no final do século XVIII — doutrinas, mecanismos,
exemplificações, sep. RIHGB, 1977, v. 316; O açúcar fluminense na recuperação agrícola do
Brasil, RIHGB, 1982, v. 340, p. 5.
1 Como, por exemplo, as dificuldades para a instalação da produção e beneficiamento do arroz no
Rio de Janeiro da década de 1780, ou os atritos entre comerciantes fluminenses e produtores
mineiros anteriores ao alvará de 1785, remas constantes de documentos que compulsou, como
os relatórios dos vice-reis Lavradio eVasconcetos, ou os ofícios destes à metrópole.
1’ 1 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral,.., op. cit., v. I, p. 226.
,ÍJ Idetm, v. I, p, 152.
182 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

justamente o movimento inverso, concentrando-se o poder no Estado153.


Foi a mesma interpretação que deu, às vezes de forma exagerada, em
relação ao poder dos jesuítas, endossando plenamente o ponto de vista
pom balino.154
Ao contrário, quando se tratava do poder central, mesmo com meios
condenáveis justifícava-se a intervenção em nome da ordem:
Triste foi o recurso, segundo a experiência veio a mostrar, mas as instâncias
feitas para obtê-lo descobrem-nos que o governo tinba o instinto da nlw c-
sidade de meios heróicos para meter nos eixos a roda da sociedade que se
desgarrava e desgalgava. 155

N o caso da Colônia, o governo geral era elogiado quando acuava de


forma “rígida e severa” e criticado quando apacecia como “tolerante aos
desm andos” ,56.
Os magistrados, em seus conflitos com as câmaras municipais e com
os “notáveis” locais eram em geral elogiados por Varnhagen.
Considerou particularmente importante a ação, no século XVII,
do ouvidor geral das capitanias do sul, combatendo os interesses do
clero c dos “pequenos potentados” do Rio de Janeiro.157
O historiador saudou a instituição dos juízes de fora como instru­
mento de centralização e elemento importante para a futura unidade do
p a ís.'58
A manifestação mais explícita de Varnhagen sobre a questão do
poder, porém, cncontra-se na defesa que fez da ação revisionista dos
magistrados pombalinos, os quais, em nome da “sã razão”, propunham-
se a rever toda. a tradição jurídica portuguesa.159

1,5 Idem, v. II, pi 150.


1.4 Idem, V. IV, p. I4 I.
1.5 Idem, v. t p. 163.
114 Idem. v. II, p. 155­
197 Idem, T. II, p. 205.
'* * Id*m,vL IU, p. 157­
*** Idem, v. II, p. 108. Refería-scislric de medidas que culminaram com a promulgação da Lei da
Boa R a z ã o , de 18 de agosto de 1769 c com a reforma dos Estatutos da Universidade de Coimb ra,
em 1772. Não mencionou, entretanto, as marchas c contra-marchas deste intrincado processo;
A m o Vfcfalmg e Mana José Wchlttig, Cultura jurídicae julgados do Tribunal da Relação do Rio
dc J a n e ir o . A invocação da Boa Razão e o uso da doutrina. In; Maria Beatriz Nizza da Silva,
CttlttmzfcTtugucíct na tetra Ja Santa Cruz, Lisboa, Estampa, 15195, p. 185,
A INTERPRETAÇÃO d a h is t ó r ia d o b r a s il 183

Assim, Varnhagen. concebeu a história político-administrativa co­


lonial como uma tensão permanente entre o poder local e o poder cen­
tral, aquele duplamente negativo: porque sacrificava os objecivos maio­
res da colonização portuguesa a interesses paroquiais e porque, projetado
para o futuro, comprometia o legado maior da Colônia, juscamcnte a
unidade do país.
Na obra de Varnhagen, ok conditos não se referem apenas às rebe­
liões contia o domínio português, mas aos confrontos violentos em geral.
As atitudes da Inquisição face aos cristãos-novos e às suspeitas dc
cripeojudaísmo foram criticadas, tanto na obra impressa, como na cor­
respondência.
Quanto aos indígenas, o historiador reconheceu “abusos” no trata­
mento dispensado pelos colonos, mas, reagindo contra a propaganda
romântica que considerava “bárbaro” o tratamento dispensado aos pri­
mitivos habitantes da terra, argumentava que os casos de maus-tratos
eram antes exceções que regras e que as ações mais duras somente acon­
teciam contra indígenas inimigos.160
Em relação aos conditos com os indígenas, Varnhagen registra as
lutas nas várias frentes de colonização, distinguindo sempre o “bom”
selvagem, aliado ou submisso, do “mau” selvagem, inimigo e agressivo.
Embora reconhecendo, quando fosse o caso, o valor e a habilidade em
combate dos indígenas161, elogiou sempre a ação ofensiva dos portugue­
ses, como o fez em relação ao período joanino; referindo-se às cartas
régias nas quais se determinava esta ação, justificou-as:
(...) o legislador admitiu a razoável teoria de não se deixarem impunes os
quilombos de índios, ao passo que contra os de pretos se mandam logo
tropas para os sujeitar. Ordenou contra os bárbaros a guerra ofensiva, por
estar provado que pela simples defensiva nada mais se fàz que conceder a
esses inimigos as vantagens de escolherem eles o momento e o lugar mais
apropriado para as suas agressões.162

,4" Idem, v. I, p. 247.


161 Idem, v. IV, p. 133-134.
11,3Idem. v. V, p. 98-
184 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

No caso das Missões, a “guerra guaranítica” nada mais foi, para o


historiador, do que uma reação indígena insuflada e dirigida pelos jesuí­
tas contra a política luso-espanhola163 e, portanto, condenável.
Quanto às invasões holandesas, Varnhagen inaugurou uma matriz
interpretativa que se estenderia ao século XX: o cadinho em que se for­
jaram os primeiros sentimentos e os primeiros heróis da nacionalida­
de.164 Mais do que o primeiro século colonial, a guerra holandesa foi
para Varnhagen o momento privilegiado da construção do panteão na­
cional, com a vantagem adicional de poderem ser incorporados os repre­
sentantes negros e indígenas, como Henrique Dias e Felipe Camarão,
uma vez que se identificavam com os valores e os objetivos dos portu­
gueses.
Sobre as rebeliões e conjurações do período colonial na obra de
Varnhagen, a crítica mais contundente foi feita por José Honório Rodri­
gues, a propósito do oficialismo e do “horror ao inconformismo” mani­
festados pelo autor.165 Não há dúvida de que Varnhagen c favorável a
tudo aquilo que represente o statu quo, entendido como equilíbrio do
sistema colonial, manutenção da unidade política e controle sobre a
“plebe desordeira e demagógica”. Entretanto, isto significava também
criticar o mandonismo rural dos “pequenos potentados” e suas reivindi­
cações individualistas, pelo que representava de limitação ao exercício
do poder estatal e sua expressão maior, a lei.166 Considerava Campos, no
início do século XVIII, “ ingovernável”, devido à atitude negativa destes
potentados.167
Ao mesmo tempo, manifestou simpatia pela revolta de Beclcman, o
que se explica, possivelmente, por seu liberalismo econômico, que o fa­
zia refratário aos privilégios mercantilistas das companhias de comér­
cio.168 Sua obra maior, aliás, contém no frontespício uma epígrafe de
Cairu, introdutor de Adam Smith no Brasil.

lM Idem, v. IV, p. 132.


,iÁ Nilo Odália, op. cie, p. 14.
,H José Honório Rodrigues, op. cic., p. 190.
'** Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral..., op. cit., v. 1, p. 10.
I<7 Idem, v. V, p. 30.
,M Idem, v. Ill, p. 252.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 185

Quanto à Conjuração Mineira foi, para seus padrões, benevolente,


chegando à ambigüidade. Condenou o movimento pela influência nor­
te-americana e pelos riscos de fragmentar a unidade política, mas não
deixou de reconhecê-la “tão patriótica em seus fins, tão nobre por seus
agentes e tão habilmente premeditada.” 165
Para os demais movimentos, porém, Varnhagen só tem juízos con-
denatórios. O movimento j :arioca de 1660, os dos Mascates e Emboabas,
e o do Maneta na Bahia, revelavam apenas ambições pessoais e choques
de interesses. Os quilombos, particularmente o de Palmares, fbram jus­
tamente erradicados. No caso da Conjuração Baiana, agradecia a Oeus o
malogro, pois
com tendências mais socialistas que políticas [era] (...) arremedo (...) das
cenas de horror que a França e principaJmentc a bela ilha de São Domingos
acabavam de presenciar.170

Juízo semelhante emitiu a propósito da Revolução Pernambucana


de 1817, num trecho muito citado em que considerava o tema “tão pouco
simpático”, que preferiria não estudá-lo.17’

A titudes de V arnhagen
em R elação a M ovimentos P oliticos e S ociais

Positiva Negativa Ambígua


Rio de Janeiro, 1660 X

Beckman, 1684 X

Mascates X

Emboabas X

Maneta X

Palmares X

Conjuração Mineira X

Conjuração Baiana X

Revolução Pernambucana X
A A ,. », u HUS

1115 Francisco Adolfo de Varnhagen, História gerai.., op. cit., v, V, p. 24. Como já se observou,
ex iscem diferenças de j ufzos entre a primeira e a segunda edição da Históriagerai
170 Ibidem.
171 Idem, v. V, p. 149.
186 ESTADO, HISTÓRIA. MEMÓRIA

AFORMAÇÃO BRASILEIRA
Na obra de Varnhagen, os atores e a dinâmica social convergem
para um ponto teleológico que é a formação brasileira, entendida, sobre­
tudo mas não exclusivamente, como a constituição da base territorial e
da etnia.
Assim, consideraremos neste ponto a interpretação de Varnhagen
sobre o processo de colonização, as fronteiras e a política externa, a indepen­
dência e as teses sobre história literária, onde se encontraria o substrato
ideológico da identidade nacional e do processo de independência.
Para Varnhagen, o processo de colonização entre os séculos XVI e
XIX foi, como já se afirmou, a implementação de uma política desejada,
planejada e executada pelo Estado português, forjando as ações sociais.
Pouco ou nada existiria de socialmente espontâneo e, quando ocorria —
como no caso dos bandeirantes ou na insurreição pernambucana — , os
comportamentos deveriam se coadunar aos objetivos e expectativas do
Estado português para serem posittvamente avaliados.
Para firmar tal interpretação, o autor construiu uma exposição da
matéria com grande coerência interna, considerando-se seus supostos
teórico-metodológicos e ideológicos, e que se tornaria modelar por mais
de um século, não só da historiografia política, como dos compêndios
escolares. Eram “os quadros de ferro” a que se referia Capistrano de Abreu,
que desejou, sem ser plenamente sucedido, deles fugir.
A importância da história colonial foi definida por Varnhagen no
prólogo à segunda edição da H istória geral do Brasil. Tratava-se, segundo
o autor, da base da nacionalidade brasileira, construída ao longo de vá­
rias gerações e concretizada nas cidades, na agricultura e no comércio
que existiam à época da independência.172 Comparada à colonização
espanhola e inglesa, revelava-se mais difícil, devido aos obstáculos natu­
rais do relevo e do clima e à hostilidade dos indígenas, o que realçava o
significado dos feitos portugueses.173

172 Idem, v. í, p. 10.


173 Ibidem.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL 187

José Honório Rodrigues já registrou o fito174 de que o grande tema


de Varnhagen foi a obra colonizadora de Portugal no Brasil, enquanto
Américo Jacobina Lacombe destacou o apoio dado às linhas gerais da
colonização portuguesa.175 O motivo subjacente, evidente na obra e na
correspondência de Varnhagen, foi valorizar o predomínio da origem
portuguesa em detrimento de negros e indígenas, tema delicado numa
época de grande afluxo jlc mão-de-obra africana e na qual correntes
antilusitanas destacavam o papel indígena na colonização.
Os mesmos autores, por outro lado, não deixaram de assinalar as
críticas de Varnhagen a aspectos do processo colonizador. José Honório
Rodrigues observou que aparecem na H istória geral os abusos da mino­
ria, a exploração dos índios, a discriminação racial, a falta de ensino e a
corrupção de funcionários.176 Lacombe destacou as críticas à política e à
intolerância religiosa.177
No quadro geral do processo colonizador, porém, Varnhagen foi
sem dúvida um coerente lusitanófilo, uma vez que a obra portuguesa
fora responsável pela extensão territorial do país e pela sua unidade po­
lítica. As situações e fatos que favoreciam ou prejudicavam essas caracte­
rísticas — as quais viabilizariam o Brasil independente do século XIX
— foram devidamente avaliados c apresentados quando da narração dos
acontecimentos. Sem exaurir a questão, podem ser apontados alguns
exemplos dessas situações e fatos. ‘
Sobre a prioridade do descobrimento, atribuiu-a a espanhóis e não
a portugueses: estava convencido da chegada de Alonso de Ojeda à foz
do rio Açu, no Rio Grande do Norte, antes de Cabral.178 A conclusão,
naturalmente, não foi do agrado das correntes mais nacionalistas da his­
toriografia portuguesa, mas, como já se observou, a iusofilia de Varnha­
gen restringia-se à defesa de um certo tipo de colonização e não à afirma­
ção de um despropositado — no caso de historiador brasileiro do Império
— nacionalismo português.

174 José Honório Rodrigues, op. cit., p. 174.


177 Américo Jacobina Lacombe, op. cit., p. 143.
176 José Honório Rodrigues, op. cit., p. 176.
177 Américo Jacobina Lacombe, op. cit., p. 143.
171 Francisco Adolfo de Varnhagen, Amerigo Vespucci, son comctère..., op. cit., p. 25ss.
188 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

Sobre a união com a Espanha, embora assinalando que a população


do Nordeste atribuiu norretamence as dificuldades pelas quais passava às
invasões holandesas, fruto das rivalidades européias179, Varnhagen con­
cluiu que o dom ínio castelhano foi um “dom providencial”, já que per­
m itiu o com ércio c o m o s vizinhos espanhóis e facilitou a expansão
territorial e o abandono d o meridiano de Tordcsilhas.180
A expansão teninozial foi saudada com o o grande feito lusitano.
Referindo-se à conquista do litoral norte, concluiu com evidente anteci­
pação que
Quando a cnsUL brasdica acabava de Ser ocupada na totalidade com as
cidades deS&oLuís c de Belém (...) poderia estabelecer, como estabeleceu,
mais nniãoefciirrnirlaftf- em toda a família já brasileira (...)181

A obra dos bandeirantes foi justificada, no seu aspecto de apresa­


mento dos indígenas, peia oposição dos jesuítas à utilização dos guaianases
do planalto182 e oonaidnada exemplar para a constituição territorial do
país. Repetiu o autnuç, neste ponto, o mesmo argumento utilizado para o
processo colonizador cm geral: o grande feito que beneficia a futura na­
ção empana os erros c abusos necessariamente cometidos para sua conse­
cução.
As modificações m noduzidas na administração colonial pelo regi­
mento de Roque da. G o sta Barreto foram consideradas “idéias sãs” apli­
cadas à Colônia, grans con igiam abusos e distorções do governo local.183
Em vários outros auncDenros Varnhagen julga as medidas governamen­
tais, às vezes (à v o m d m a io c , às vezes restrítivainente (como no caso da
hesitante e tortuosa pulM ca em relação aos indígenas, por exemplo)lM,
mas sempre à luz d o critério de consolidação do processo colonizador,
idéia-força de sisa i i n q s m ção. *14

L7! Idem, Históriagrtafl .< i y . d k . « , H, p. 271­


' 90 Idem, História p. 62.
1,1 Idem, História D, p. 162.
,SI Idem, v. II, p. 52..
Idem, v. III. p. 232>.
144 Idem, v. III, p. lfi£.
A INTERPRETAÇÃO o a h i s t ó r ia d o b r a s il 189

A polícíca externa e a definição de fronteiras ocupou largo espaço


na obra de Varnhagen. A maioria das 54 seções em que se dividia a His­
tória geral do B rasil é dedicada, parcial ou totalmente, ao tema. Nas
histórias da guerra holandesa e da independência, o autor sempre deu
destaque às implicações internacionais das questões locais.
Era, sem dúvida, um traço característico da historiografia da época,
“rankeana” ou não, ao qu^.1 se acrescia a própria atividade profissional de
Varnhagen como diplomata, e o fato de estarem por definir e demarcar
extensas áreas de fronteira do país.
A ação de Varnhagen como diplomata ainda não foi estudada. Pela
documentação disponível podemos concluir preliminarmente que, a
despeito da defesa de posições moderadas e conciliatórias em diferentes
circunstâncias185, foi tido, algumas vezes, em suas próprias palavras, como
“demasiado ativo e intrometido” 186.
Em matéria de análise histórica sobre questões de fronteiras e de
política externa, também não deixou de ser “demasiado ativo”. Conside­
rou positivas e dignas de elogios todas as situações, combates e posições
que tivessem por fim a expansão do território colonial, a consolidação
das fronteiras (uma das razões de seu entusiasmo por Pombal), sua defe­
sa e os tratados que reconheciam e sancionavam os desdobramentos físi­
cos do país.
Ao contrário, condenava os obstáculos à expansão, as pressões ex­
ternas nas fronteiras, como da França e da Espanha, o fraquejar na sua
defesa (“cometeu a covardia de entregar ao inimigo a praça que jurara ao
rei defender até a última extremidade” 187, disse, referindo-se ao gover­
nador de Sacramento Vicente da Silva da Fonseca) e os tratados mal-ajusta-
dos. Do de Santo Ildefònso, afirmou que
N os artigos do tratado foram ditados pela Espanha quase com as armas na
mão e os pactos não podiam deixar de pareccr-se aos do leão com a ovelha
timorata.18®

1,5 Idem, Correspondência..., op. cit, p. 300-301.


'** Idem, p. 313.
187 Idem, História geral..., op. cit., v. IV, p. 181.
'"8 Idem, v. IV, p. 267-2(58.
130 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

Exemplo que nos parece significativo da importância atribuída pelo


autor às questões internacionais é o das províncias de Vera e de Guairá,
territórios de presença espanhola ao sul do Tietê e que consistiam, a
primeira, numa unidade territorial oficial, e a segunda, numa área de
jurisdição jesuítica.189
O assunto, como referiu-se anteriormente, não foi enfocado por
Varnhagen nem pela historiografia posterior, presa a seus “quadros de ferro”,
senão como um episódio das descidas bandeirantes para apresamento de
índios. Em toda a História geral existem apenas duas referências ao tema190,
assim mesmo restringindo-o ao conflito entre jesuítas e bandeirantes.
Tal atitude significava deslocar para o problema jesuítico o que era,
na verdade, um conflito de soberanos em torno da posse de vastos terri­
tórios que somente depois seriam incorporados ao Brasil. O motivo pa­
rece evidente: numa época (a: década de 1850) na qual ainda pendiam
questões de fronteira, resolvidas somente mais tarde pela ação de Rio
Branco, destacar a presença de expedições espanholas e núcleos jesuíticos,
bem como vilas, numa área despovoada de portugueses poderia estimu­
lar e justificar reivindicações territoriais em relação aos atuais oeste para­
naense e catarinense. ■'
Os indícios apontam para a correção dessa hipótese, mas somente
pesquisa específica poderá corroborá-la.
José Honório Rodrigues identificou Varnhagen como um dos adep­
tos da “contra-revolução” no processo de independência191, por defen­
der D. Pedro I contra José Bonifácio c os revolucionários em geral192. Para
o mesmo autor, Varnhagen simpatizava ideologicamente com as posi­
ções do visconde de Cairu, cujo liberalismo econômico implicava a sub­
missão à Inglaterra c com as do bispo Azeredo Coutinho, “defensor da
escravidão e do colonialismo”193.

189 Juan Francisco Aguirre, Discurso histórico, Buenos Aires, Esposa Colpe, 1947, p. 61. Efraim
Cardozo, El Paraguay colonial, Assunção, El Lector, 1996, p. 125.
” ®Idem, V. II, p. 203 e v. III, p. 129.
191 José Honório Rodrigues, op. cït., p. 185. Idêntico enfoque em Independência: revolução e
contra-revolução, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 5 v. ,
192 José Honório Rodrigues, Varnhagen, op. cic., p. 185.
193 Idem. d . 196.
A INTERPRETAÇÃO d a h i s t o r i a d o BRASIL 191

Nos estudos de Varnhagen sobre o processo de independência, isco


é, a parte final da H istória geral do B rasil e o livro H istória da independên­
cia do B rasil, embora exista a mesma predisposição político-ideológica,
convém separar os juízos sobre o período joanino daqueles referentes às
circunstâncias próximas da ruptura com Porcugal, entre 1821 e 1822.
Quanto ao primeiro aspecto, Varnhagen faz um balanço favorável
do governo de D . João no/Brasil, atribuindo à ação do rei e de seus minis­
tros aamtedm emcs que criaram condições para a afirmação do Brasil como
futura nação independente, abrindo uma “nova era” para um “novo im­
pério”: abertura dos portos, medidas de fomento económico, elevação a
Reino Unido, estímulo à cultura.194 N ão esqueceu de apontar a instalação
do governo no Rio de Janeiro como fator importante para a associação
das capitanias do Norte, Maranhão e Pará, ao Brasil, garantindo assim,
de antemão, a unidade do futuro Império199.
N ão obstante, apontou defeitos e mazelas como, no transplante
das instituições, a atuação do marquês de Aguiar, que
parece ter consultado o almanaque de Lisboa (...) transplantando para o
Brasil, com seus próprios nomes e empregados (para não falar de vícios e
abusos) todas as instituições que lá havia (...) [sendo] (...) obrigado a empre­
gar um sem-número dc nulidades, pelas exigências da chusma de fidalgos
que haviam emigrado da metrópole o que, não recebendo dali recursos, não
tinham que comer.196

Lastimou, também, em críticas específicas, o fato de não ser insti­


tuída uma Universidade197, nem se ter aproveitado a oportunidade dos
deslocamentos provocados pelas revoluções européias para estimular de
modo mais incenso a colonização.198
Em relação às circunstâncias de 1821-1822, Varnhagen assinalou
as desconfianças de liberais portugueses e brasileiros em relação ao con­
de dos Arcos, principal ministro dc D . João V I199, delineando ainda as

,M Francisco Adolfo de Varnhagen, História g m L .., op. cit., v. V, p. 34, 89 e 209.


1” Idcm, História da independência..., op. d t , p. 34.
Idcm, História geral.., ap. cit, v. V, p. 94.
197 Idem, v. V, p. 95-
I , a !bidem.
1,9 Idem, História dá independência..., op. cit., p. 123.
192 ESTADO, H ISTÓ RIA , MEMÓRIA

opções institucionais que existiam nos últim os meses de estada do mo-,


narca no Brasil: “m onarquia pura” (isto é, absoluta), “m onarquia consti­
tucional” e “dem ocracia e republicanism o” .200
Sobre o retorno da fam ília real a Portugal, V arnhagen encontrou
quatro posições, que coincidiam com as correntes político-ideolõgicas
em face da independência: “portugueses m oderados” , que propugnavam
a volta do rei e a permanência do príncipe regente; “brasileiros moderados”,
defensores da permanência do rei e da ida do príncipe, e “exaltados” dos
dois lados, que exigiam toda a fam ília num dos dois países.201
A tipologia definida p or Varnhagen contem plou, efetivam ente, o
espectro político-ideológico d a época, razão pela qual, co m pequenas
alterações, persiste até as interpretações recentes.
N essa análise ressaltam com frequência as preocupações d o autor
com a fragm entação política, com o no caso da Bahia202, e a sua pouca
sim patia, quer por “d esp eitad os liberais” brasileiros203, quer p o r seus
congêneres portugueses, “ultraliberais e dem agogos”204.
Q uanto à avaliação do papel de Jo sé Bonifácio, que Jo sé H onório
R odrigues atribuiu a um a questão pessoal205, V arnhagen efetivam ente
ad m itiu o conhecim ento do político sobre as condições p ortu gu esas,
essencial nos m eses que precederam a ruptura, sua convicção m on ar­
quista e seu patriotism o206. As críticas concentraram-se em sua atuação
posterior:
Pretendia José Bonifácio converter todo o país política e literariamente às
suas idéias, sem advertir que tudo isso requeria tempo.207
De sustentadores da monarquia que eram, quando no poder os ministros
saídos (Andradas) tornaram-se fora dele democratas, facciosos, demago­
gos e revolucionários.20®

100 Ibidem .
Idem , p. 51.
201 Idem , p. 78.
205 Idem, p. 95.
204 Ibidem .
205 José Honório Rodrigues, Varnhagen.-., op. cit., p. 180.
206 Francisco Adolfo dc Varnhagen, H istória da independência..., op. cit., p- 159-160.
207 Idem, p- 247.
20» Idem , p. 302.
A INTERPRETAÇÃO DA HISTORIA DO BRASIL 193

O s defensores da idéia de um sistemático juízo depreciativo de José


Bonifácio por Varnhagen baseiam-se, entretanto, nas críticas feitas pelo
historiador à ruptura do ministro com a maçonaria.209 Além disso, Varnha­
gen atribuiu à maçonaria e não a José Bonifácio a proclamação do impé­
rio e a designação de D. Pedro como imperador210, o que foi severamen­
te criticado pela historiografia positivista ligada ao Apostolado do Rio
de Janeiro21', de onde provém a interpretação que culminaria na de José
H onòrio Rodrigues.212
Tarnbcm no processo de Independência as interpretações de Varnha­
gen mostraram-se paradigmáticas, tornando-se matrizes de uma versão
que, no século XX, seria depreciativamente apodada de “oficial”. Em bo­
ra contestadas num ou noutro ponto desde as obras de juventude de
Capistrano de Abreu e por historiadores positivistas, as idéias de Varnha­
gen sobre o assunto continuaram dominando a historiografia, o conhe­
cimento histórico vulgarizado pedagogicamente e a simbologia política
até a década de 1930.
Liberal e romântico, considerando como elementos fundamentais
da formação brasileira o processo de colonização e a constituição física
das fronteiras, seria de estranhar que Varnhagen deixasse em segundo
plano, ou em plano diverso, o surgimento da consciência política nacio­
nal, consubstanciada, à Herder, num Volksgeist. Desta forma, é indispen­
sável, ao contrário da tendência até aqui predominante, dar igual desta­
que à obra de crítica e história literária do autor, uma vez que fbi através
da pesquisa nas fontes coloniais que Varnhagen procurou encontrar a
gênese da “alma nacional”.
Tal preocupação exemplificou-se, sobretudo, embora não exclusi­
vamente, em duas obras do início de sua carreira intelectual. Foi nos
Épicos brasileiros, de 1845, que estudou as obras de Basílio da Gam a e
Santa Rita Durão, com a finalidade de encontrar o filão da consciência

[dem, p. 226.
2111 Idem, p. 221.
211 Em vários folhetos sobre a Independência c na obra dc Raimundo Teixeira Mendes. Benjamim
Constant, Rio de Janeiro, Apostolado Positivista, 1934, v. I, passim.
212 José Honório Rodrigues, Varnhagen..., op. cit., p. 196.
194 ESTADO, HISTÓRIA, MEMÓRIA

nacional c a conseqiientc autonom ia da literatura brasileira.213214Logo de­


pois, no Florilégio ela -poesia brasileira2U, cum priu o mesmo intento, acres­
centando um a introdução que constituiu, com o disse Thiers M artins
Moreira, um dos elementos do tripé que definiu a existência da literatu­
ra brasileira.215
Para Varnhagen, a literatura brasileira somente existiu com o tal a
partir do momento que se configurou a consciência de um a identidade
cultural distinta da portuguesa. Tal fato não ocorreu nos sA-nl«« XV3 e
XV II, quando as manifestações literárias e a produção estética em geral
apenas reproduziam o padrão português. M as no século X V III já era
possível encontrar o embrião de um a consciência nacional, refletida na
obra literária, particular mente em O U raguai e no Caram uru.
A consciência nacional através da literatura foi, assim, para o autor —
com o seria tam bém para a geração vin doura de críticos cientificistas
— , constituída na segunda metade do século X V III, transformando-se
num dos indícios mais fortes da m aturidade colonial para a Indepen­
dência.
Atores sociais, dinâmica social e formação nacional são, portanto,
as chaves de sua interpretação da História do Brasil. Todos estes elemen­
tos, por sua vez, permeados pelos supostos historistas e estatistas, foram
construídos, quase sempre com impecáveis procedimentos hermenêuticos,
para o fim de justificar, apoiar e consolidar o projeto nacional.

2,3 Francisco Adolfo de Varnhagen, Épicos brasileiros, Lisboa, Imprensa Nacional, 1845, 449 p.
214 Idem, Florilégio da poesia brasileira, Rio de Janeiro, ABL, 1987, p. 12.
2,5 Thiers Martins Moreira, op. cit., p . 166.

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