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QUEM PODE USAR SAIA NESSA RODA?

REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS ACERCA DAS ELABORAÇÕES DE


GÊNERO NO CANDOMBLÉ PAULISTA1
Homero Dantas
Ragnane
Resumo: Esse artigo busca compreender como se formam elaborações de gênero e o tratamento a Graduando em
Ciências Sociais
pessoas trans* em dois terreiros de candomblé paulistas, bem como a mobilização nativa das ca-
com ênfase em
tegorias tradição e modernidade. Durante as incursões pelo campo foram privilegiadas duas dimen- Antropologia pela
sões da vida nos terreiros: os xirês e as funções. Também foi central o acompanhamento de falas Universidade Esta-
de mulheres trans* e travestis colhidas durante conversas informais e falas durante o “Fórum de dual de Campinas –
População LGBT de Terreiros” foi possível articular as formas pelas quais o povo de santo concebe UNICAMP.
a presença de pessoas trans*.
Contato
Abstract: This paper intends to analyze the way that gender ellaborations are formed and the way <homeroragnane@
gmail.com>
that trans* people’s presence is conceived in two terreiros located in Campinas and São Paulo.
Initially, it’s going to be made a recapitulation of the academia contribution on the matter so it’s P a l av r a s - c h ave :
possible to analyze the ethnographic encounter. During the field incursions, two dimensions of Religiões de Matriz
everyday life on the terreiros were privileged: the xirês and the funções. Thus, through the words of Africana; Candom-
trans women and travestis heard during informal talks and public speaks it was possible to stablish blé; Relações de
na analysis on how the povo de santo conceives the presence of trans* people in the Candomblé. Gênero e Sexua-
lidade; População
LGBTQI.

À GUISA DE UM MAPA DE LEITURA des de gênero legitimadas pela comunidade, ao Keywords: Afro-
passo que, o segundo, se afirmava “tradicional” -brazilian religions;
Primeiramente, será realizada uma reca- Candomblé; Gen-
e negava a possibilidade de inserção de pessoas
pitulação teórica cujo intuito é o de fornecer der Studies; LGB-
trans* nesse espaço. Além desses terreiros, foi TQI.
os contornos das contribuições de autoras/ possível acompanhar as discussões realizadas
es na discussão sobre gênero e sexualidade no “Fórum de Populações LGBT de Terreiros”
no Candomblé e que contribuíram para os fins que foi central na articulação do arcabouço teó-
dessa reflexão. Além disso, busca-se também rico com as experiências de pessoas trans* e 1 Este artigo é
argumentar como algumas noções trabalha- fruto de uma pes-
travestis no Candomblé.
das por antropólogos/as como “matriarcado” e quisa de Iniciação
Científica realizada
“tradição” extrapolam os limites da academia e
junto ao PAGU/
operam discursivamente nos terreiros, à medi- UNICAMP e o De-
da em que são mobilizados na construção de INTRODUÇÃO
partamento de An-
noções de feminilidade e (des)autorizam perfor- tropologia. Gostaria
I. GÊNERO E SEXUALIDADE NOS TERREI-
mances de gênero nas comunidades-terreiro. de agradecer imen-
ROS DE CANDOMBLÉ samente a Profa.
Após isso, se seguirá uma breve reflexão Dra. Isadora Lins
sobre os processos de transe e seu potencial
Observa-se que, nas discussões sobre as França, orientadora 12
relações de gênero nas religiões de matriz afri- da pesquisa, pela
generificador. Partindo do pressuposto de que
cana, a primeira coisa que se estabelece é a revisão sempre en-
no Candomblé é no corpo em que se assentam gajada e criteriosa
tendência em argumentar que, nesse contexto,
os marcadores sociais da diferença, pretende- das primeiras ver-
a reflexão sobre gênero é mais profícua quando
-se argumentar que o transe, ao se inscrever sões do presente
articulada com sexualidade (assim como outros
no corpo, se articula com outros marcadores e texto.
marcadores). A dimensão do erotismo também
adquire efeito generificador.
aparece enquanto articuladora de significado 2 Conjunto de re-
Por fim, serão delineadas as linhas do en- na produção de identidades no Candomblé. O gras que orienta a
trabalho de Laura Moutinho (2012) destaca a etiqueta a ser ado-
contro etnográfico com o campo. Foram pri-
importância de ressaltar a dimensão do erotis- tada entre o povo
vilegiados dois terreiros; um em São Paulo e de santo. Maneiras
outro em Campinas. Neles foi possível a ob- mo e do flerte na construção das identidades
de se portar, se
servação participante nas funções e nos xirês de gênero nos terreiros. A autora explora a ca- vestir, falar, ouvir,
além de conversar com os filhos/as de santo. tegoria nativa rumbê2 analiticamente nos ter- rezar, entrar em
O primeiro terreiro era tido como “marginal” e reiros como disseminadora de formas de per- transe etc.

a população trans* era aceita e suas identida- formance de gênero que operam no continuum

12
3 Literalmente “macho” e “bicha” tal qual conceituado por Peter mulheres para então transitar entre corpos ti-
“metade-metade”. Fry (1982). dos enquanto masculinos tornando-os, então,
ambíguos. Em relação direta com essas elabo-
4 Cabe aqui res- Nesse contexto, Luís Felipe Rios (1997) res-
saltar e sublinhar
rações de feminilidades se articulam discursos
salta nos mitos dos orixás a dimensão ambígua sobre tradição7 nos quais vige um modelo de
que, de maneira al-
guma, esses mitos
de gênero em alguns deles que seriam simul- culto em consonância ao matriarcado baiano
ocorrem de ma- taneamente homens e mulheres, tornando-se consagrado por autores(as) clássicos do debate
neira homogênea uma terceira elaboração que já se descola das antropológico sobre religiões de matriz africana.
e são consenso categorias “homem” e “mulher”. Logun-Edé era Com esse interesse em mente é que se bus-
entre os adeptos. filho de Oxum e Oxóssi e segundo o povo-de-
Existem diversas
ca retraçar a trajetória histórica acadêmica que
-santo vivia seis meses nas matas com seu construiu e associou uma noção de matriarca-
disputas em tor-
no dos sentidos e
pai e seis meses nos palácios com sua mãe. do aos terreiros de Candomblé e impactou nas
significados des- Nas cortes de Oxum, homem nenhum era acei- formas pelas quais as feminilidades são enca-
ses mitos. Um dos to devido ao ciúme de seu marido, Xangô; en- radas pelos grupos de adeptos.
interlocutores de tão Logun-Edé se vestia de mulher para estar
pesquisa de Milton junto de Oxum. Segundo o mito, Logun-Edé só
dos Santos (2001)
foi descoberto porque sua beleza despertou a SOBRE O MATRIARCADO DO CANDOMBLÉ
argumenta de ma-
neira contrária ao
paixão de um jovem caçador que levantou as
saias de Logun-Edé e o estuprou, constatando É corrente a ideia da existência de um ma-
uso feito por parte
de alguns adeptos: com asco que aquela linda iabá era, na verdade, triarcado no Candomblé até hoje. Seja por adep-
“Durante a década um homem. Além dele, Oxumarê também é um tos em conversas nos terreiros ou pelo trata-
de 60, 70 não tinha orixá metá-metá3 cujo gênero jamais era defi- mento analítico de pesquisadores, essa ideia
essa de Logun-Edé de organização da religião continua existindo.
nido, sendo a androginia sua marca registrada4.
e Oxumarê serem Lorand Matory (2008) problematiza a influência
bissexuais. Isso foi
O autor argumenta que todos esses as- dos argumentos defendidos por Ruth Landes
criação dos adés
que foram sendo
pectos da religião são mobilizados pelos seus em seu A Cidade das Mulheres (2002[1947])
incorporados à re- interlocutores a fim de justificar e legitimar a sobre a premência das mulheres nos terreiros
ligião” (SANTOS homossexualidade masculina e a feminilidade de candomblé da Bahia, bem como o lugar má-
2001, p. 46). no corpo de homens5. A metanidade conforme gico e político do feminino na gestão dos terrei-
conceito cunhado por Luís Felipe Rios oferece ros. Não se trata aqui de desmerecer as contri-
5 Entretanto, há
sustentação para experimentações e possibili- buições de Landes ou de estabelecer o papel da
de se considerar
que o interesse
dades de elaborações de gênero e sexualidade mulher enquanto secundário nos terreiros, mas
tanto do povo de que destoem daquelas estabelecidas como nor- trata-se de situar essas observações e contex-
santo quanto dos ma pela cisgeneridade heterossexual. tualizar suas contribuições.
pesquisadores
aqui citados era a Dessa maneira, levando em consideração as O autor estabelece a ideia de que a par-
homossexualidade contribuições quanto aos caminhos apontados tir da publicação de Ruth Landes instaurou-se
masculina. Pouco pelos(as) autores(as) que analisam os terreiros um processo de transnacionalização de uma
se escreve sobre
brasileiros, a questão que se apresenta é iden- identidade nacional tendo como principal ator o
a homossexuali-
dade feminina nos tificar as forças que convergem na constituição Candomblé. Segundo ele, Edison Carneiro teria
terreiros e menos dessas identidades de gênero e, em um mesmo tentado transformar essa religião em um sím-
2 ainda se discute movimento, inserem essas identidades nas li- bolo do Nordeste, Arthur Ramos o empregou
dentro dos terrei- nhas das dinâmicas de poder. Segundo elas(es), como símbolo do Brasil e Ruth Landes como
ros. Camila Medei- algumas pistas são oferecidas; seriam exem- um símbolo do feminismo internacional. O autor
ros (2006) aponta
plo as formas de flerte e desejo orientados por argumenta que para além das arenas acadê-
esse silêncio por
parte de adeptos ideais de masculinidade e virilidade entre ho- micas de debate, essa discussão produziu um
e pesquisadores. mens e adés6 e a lógica religiosa da metanidade novo modelo de liderança dos cultos que seria
A autora ainda que oferece substrato mítico para a legitimação operante nos terreiros do povo-de-santo.
ressalta a invisi- de orientações sexuais e identidades de gênero. É importante ressaltar que Ruth Landes
bilização também
de homens trans e Entretanto, algo que existe de comum entre pesquisou o Candomblé de forma a retratá-lo
mulheres lésbicas esses trabalhos é o aprofundamento analítico como evidência da riqueza cultural oriunda de
(monocós) nos ter-
acerca de diferentes facetas e performances um trânsito entre o Brasil e África.8 Para a au-
reiros de candom- tora, também serviam os terreiros como prova
blé de São Paulo, das feminilidades nos terreiros de candomblé.
É possível aferir, a partir desses trabalhos, que da possibilidade de igualdade de gênero para
evidenciando como,
também nos espa- existem diferentes elaborações de noções de as mulheres do mundo da época. Sendo o ma-
ços dos terreiros, feminilidades que se descolam de corpos de triarcado (um dos últimos a existir em tempos

13
modernos, segundo ela) reminiscência africana Através desse trânsito entre academia e povo mulheres possuem
em solo brasileiro. Apesar da longevidade da de santo se consolida simbolicamente um mo- suas sexualidades
tolhidas e cercea-
noção de matriarcado associada ao Candomblé, delo de culto aos orixás que é baiano e matriar-
das.
outros trabalhos problematizam essas afirma- cal. Esse trânsito de conhecimento fomenta
ções. Mariza Corrêa (2000) argumenta que à disputas internas nas grandes linhagens10 tidas 6 Categoria nativa
época da pesquisa de Landes havia mais pais como tradicionais, nas quais o critério de pres- usada para desig-
que mães de santo e justamente esse aumento tígio é quão mais capaz de evocar similaridades nar homens tidos
de lideranças femininas nas grandes casas era aos terreiros matrizes da Bahia se consegue. como “afeminados”
que se relacionam
a novidade. Questões que vão desde a organização e dispo-
com homens atri-
sição dos assentamentos11 nos quartos de san-
No bojo dessa discussão aparece um perso- buidamente más-
to a até mesmo os fundamentos12 são usadas culos e viris. A
nagem que viria a marcar a imagem do Can-
como operadores de distinção entre os terrei- categoria será dis-
domblé: o adé. Atualmente, segundo o povo-de-
ros e marcadores hierárquicos dessa disputa. cutida adiante com
-santo, esse fato se deve aos terreiros serem mais profundidade.
espaços nos quais o acolhimento é uma marca Fica claro que a questão aqui posta é sobre
registrada que, inclusive, constitui importante tradição e modernidade. Em outras palavras, de 7 Essa categoria,
dimensão da identidade desses espaços. En- que maneiras os adeptos do Candomblé lidam originalmente usa-
tretanto, a figura do adé foi o centro de uma com a mudança em um contexto no qual a ideia da pelos antropó-
logos nas primeiras
calorosa discussão que gerou controvérsia e de tradição é critério de prestígio e é ainda fo-
décadas do século
polêmica durante o período subsequente à pu- mentada por um modelo idealizado originado no XX foi apropriada
blicação de A Cidade das Mulheres. encontro transnacional de interesses que atri- pelo povo de santo
bui ao candomblé uma qualidade matriarcal, na e ressignificada em
A figura do adé adquire contornos de desvio
qual as feminilidades são buscadas e aceitas sentidos nativos
e poluição da alegada pureza de culto africano que operavam na
sejam nos corpos das mulheres ou dos homens
no Brasil, além de ser caracterizada como um disputa por pres-
(adés)? A partir desse contexto são mobilizadas
reflexo pálido e mirrado das grandes ialorixás tígio simbólico e
as feminilidades nos terreiros e uma das di-
da Bahia. Os sacerdotes adés apesar de tidos social entre os ter-
mensões de maior destaque nesse processo é reiros. Mais adian-
como desviantes não eram incomodados por
o transe. Através da possessão é que são ins- te, esse processo
conta de suas identidades sexuais, pelo con-
critos no corpo diversos marcadores que cons- ficará mais claro.
trário, eram “apoiados e mesmo adorados pe-
troem gênero e sexualidade e é essa dimensão
los homens normais” (LANDES 2002, p. 158). 8 Também é im-
do debate que será explorada a seguir.
Edison Carneiro em seu Candomblés da Bahia portante ressaltar
(1986[1948]) escreve sobre a derrocada do que essa discussão
Candomblé matriarcal e cristaliza a reputação se deve também
OS PROCESSOS DE TRANSE NO CANDOM- ao impacto e im-
da religião enquanto exclusivamente feminina
BLÉ E SUA RELAÇÃO COM AS NOÇÕES DE portância das con-
ao estabelecer que a importância demográfica
GÊNERO E SEXUALIDADE NOS TERREIROS tribuições teóricas
dos pais de santo é recente e que o candomblé de Ruth Landes
matriarcal seria a forma pura do culto. De certa As primeiras reflexões sobre o transe no ao debate sobre
maneira, o que parece ter se dado é a natura- Candomblé foram feitas nas primeiras décadas religiões de matriz
lização de uma dimensão feminina na ideia de do século XX. Naquele momento, o fenômeno africana, bem como
do transe era entendido enquanto singular às também à cons-
liderança religiosa no Candomblé. Entretanto, o
trução e formação
que se deve reter para os fins dessa discus- mulheres. Os orixás “cavalgavam” apenas os
da antropologia
14
são é a permanência e longevidade da noção de corpos das mulheres. Não só o transe era res- brasileira.
matriarcado e predominância feminina associa- trito às mulheres como ele mesmo era marca
da ao Candomblé. da feminilidade. Conforme expresso por Edison 9 A partir da lei-
Carneiro na seguinte passagem: tura do texto, fica
Vagner Gonçalves da Silva (1991) analisa o claro que essas
movimento feito pelo povo de santo de consu- “Às vezes diz-se que a sacerdotisa é a são categorias
mo do conhecimento produzido pelos intelec- esposa de um deus e às vezes que é o heurísticas mobi-
tuais e acadêmicos sobre o Candomblé e sua seu cavalo. O deus aconselha e faz exi- lizadas pelo autor.
gências, mas em geral, apenas cavalga e Entretanto, essas
consequente incorporação à dinâmica de cul-
mesmas catego-
to. O autor observa o consumo, por parte do se diverte. Assim, você pode compreen-
rias também são
povo de santo de etnografias que apresentam, der por que as sacerdotisas exercem articuladas a ou-
segundo ele, “modelos por demais idealizados” grande influência sobre o povo. São as tros marcadores
(GONÇALVES DA SILVA, 1991, p. 46) e que for- intermediárias dos deuses. Mas nenhum pelo povo de santo
mariam, então, uma espécie de régua usada homem direito deixaria que um deus o paulista.
para medir pureza e deturpação9 nos terreiros. cavalgasse, a menos que não se importe
10 São os terreiros

14
matriz da Bahia. de perder sua virilidade… Aqui é que está cia maior a homossexualidade propria-
Gantois, Axé Oxu- o busilis. Alguns homens se deixam ca- mente dita, então o homem transasse
marê, Casa Branca
valgar e tornam-se sacerdotes ao lado com a bicha certamente teria que ser
do Engenho Velho,
Axé Muritiba, Opô
das mulheres; mas sabe-seque são ho- chamado de homossexual ou algo pare-
Afonjá exemplos mossexuais. Nos templos vestem saias cido. Nem sempre isso acontece”. (FRY E
dessas linhagens. e copiam os modos das mulheres e dan- MACRAE, 1991, p. 50).
Nas relações entre çam como as mulheres. Às vezes, tem
terreiros no Esta-
Luís Felipe Rios (2011), em uma espécie de
melhor aparência que elas”. (CARNEIRO
do de São Paulo tradução ou adaptação desse esquema para
apud LANDES 1947, p. 44, grifos nos-
essas linhagens o Candomblé, aponta uma mudança. O bina-
sos).
são frequente- rismo que estrutura esse modelo, dá lugar a
mente citadas e Posteriormente, Peter Fry (1982) tratou um esquema que se estrutura em três partes:
mobilizadas como
mais detidamente desse movimento de femini- okós, adés e loces14. Os primeiros são aque-
forma de conceder
prestígio e legiti-
lização dos corpos por efeito do transe quando les que poderiam ser chamados de homens
midade ao modelo pesquisou a homossexualidade masculina em ativos e são caracterizados pela virilidade na
de culto. Sendo eu terreiros de candomblé do Recife. O autor afir- gestualidade, maneirismos, ocupações, atitudes,
mesmo iniciado no ma existir uma cultura sexual e de gênero nos adereços corporais etc. Cabem nessa categoria
Candomblé, minha terreiros que se estrutura em a) as performan- não só os homossexuais ativos (que penetram),
chegada ao campo
ces públicas dos adeptos em termos de gênero mas também os bissexuais e até mesmo os
foi marcada por
intensos questio- no cotidiano e durante os xirês e b) pólos de heterossexuais que ainda que mantenham re-
namentos acerca oposição (masculino/feminino; ativo/passivo, lações com outros homens teriam salvaguarda-
da minha raíz ou de penetrador/penetrado, etc) que serviriam de do seu estatuto de “homem mesmo”. Os adés
qual casa descendo linguagem para as performances de gênero. seriam os homens que apresentam os sinais
espiritualmente. diacríticos percebidos como femininos nos ges-
Também nesse modelo, existe uma gestão
tos, fala, assuntos durante as conversas, indu-
11 Representação dos prazeres corporais que se afilia a esses po-
mentária etc. São esses sinais que possibilitam
material do orixá. los de masculinidades e feminilidades e estabe-
que esses homens explicitem através do corpo
lece quais partes dos corpos são legítimas de
12 Os segredos seus desejos sexuais por homens e suas pre-
gerar prazer. Grosso modo, o pênis e o ânus. É
sagrados do can- ferências sexuais. Loces seriam aqueles que se
domblé. esperado que o primeiro indicador acene para
envolvem amorosa e sexualmente tanto com
o segundo, isto é, que um homem masculino
homens quanto com mulheres e cujas prefe-
13 Vale dizer que quando na cama sinta prazer na introdução do
rências sexuais são ambíguas, podendo tanto
os trabalhos de seu pênis em outro homem (que deve ser efe-
Peter Fry foram atuar passivamente quanto ativamente.
minado), por exemplo. A partir dessa cartografia
produzidos a par-
do que Luís Felipe Rios chama de “introduções O autor estabelece um paralelo com a mito-
tir de questões
originadas no seio e recepções” (RIOS 2011, p. 222) também são logia do Candomblé e três tipologias, digamos
de determinadas organizados os usos de outras partes do corpo assim, de orixás. A saber, aboró, metá-metá e
correntes teóricas, e suas interações (dedo/ânus; pênis/boca; lín- iabá. De maneira geral, a primeira diz respeito
bem como filiados gua/ânus). O que nos interessa é a importante à dimensão masculina dos orixás, a virilidade
a e inseridos em constatação de Peter Fry da existência de um e todos os atributos masculinos que orientam
um momento sin-
sistema dicotômico ativo[masculino]/passivo[- o comportamento dos okós. Iabás são as ori-
gular circunscrito
4 historicamente e feminino] que, diga-se de passagem, também xás mulheres; tidas como as donas da beleza e
devem ser lidos influenciaria na linguagem do transe. da vaidade, têm como características aqueles
tendo essa ressal- atributos tidos como tipicamente femininos: a
Isso significa dizer que, assim como nas
va em mente. Para maternidade, cuidado, zelo doméstico etc. Por
classes populares do Brasil à época13, as práti-
maior aprofunda- último, os metá-metá15 seriam aqueles orixás
mento nesse deba- cas sexuais sofrem um processo de generiza-
cuja ambiguidade é destacada, são marcados
te cf. CARRARA e ção. Nas palavras de Fry e MacRae (1991):
SIMÕES (2007). pelo encontro das dimensões masculina e femi-
“Podemos dizer que a concepção popu- nina. Diz-se entre o povo de santo que os filhos
14 Interessante lar brasileira da sexualidade fala mais de dos orixás metá-metá carregam dentro de si
observar que essa “masculinidade” “feminilidade”, de “ativi- essa ambiguidade, sendo famosa a associação
é também a sau- dade” e “passividade”, de “quem está por dos filhos de Logun-Edé a homens delicados e
dação ao orixá Lo- cima” e “quem está por baixo” do que so- sentimentais ou às mulheres de Oxumarê uma
gun-Edé.
bre heterossexualidade ou a homosse- faceta mais autoritária e enérgica. Esse esque-
15 Oxumarê, Lo- xualidade que são aspectos que entram ma conceitual montado pelos autores supraci-
gun-Edé e Oxalá. no esquema sorrateiramente, por assim tados ganha movimento e tem sua linguagem
dizer. Se este esquema desse importân- através do transe e da possessão. É na expe-
15
riência da alteridade do transe que os adeptos do não encontra em terras paulistas ecos tão 16 Entretanto, di-
se reelaboram a partir de sua filiação espiritual, fortes quanto se parece ter em outros contex- versas visitas fo-
ram feitas a outros
isto é, do/a orixá de qual é filho/a e dos signos, tos como aqueles encontrados nos Estados do
terreiros nos seus
mitos e símbolos que informam os arquétipos Nordeste. A maioria masculina era flagrante dias de festas nos
desses/as orixás. durante as festas públicas, sobretudo entre as quais foi possível
lideranças. Na Casa de Obaluaê havia um nú- realizar observação
mero aparentemente equilibrado entre homens participante.
ENCONTROS ETNOGRÁFICOS e mulheres de filhos e filhas de santo. Apesar
17 Por vontade dos
O trabalho de campo etnográfico ocorreu da exceção da Casa de Obaluaê, o curioso é que
entrevistados, seus
principalmente em dois terreiros16: A Casa de a dimensão matriarcal associada ao culto não nomes e os de suas
Obaluaê situada na cidade de São Paulo, chefia- opera mesmo no terreiro tradicionalista de Pai casas foram modi-
da por Mãe Cláudia17 e tida como beco18 devido Paulo ainda que opere discursivamente. ficados.
à presença de pessoas trans* como filhos/as Para responder às questões levantadas pelo 18 Denominação
da casa. Foram feitas visitas às festas públicas debate bibliográfico, privilegiou-se duas dimen- êmica que carac-
nas quais foi possível conversar informalmen- sões de observação nos terreiros. A primeira, teriza o modelo de
te com alguns dos adeptos. O segundo terreiro as funções, compreende a divisão da tarefa culto de determi-
é a Casa de Xangô que se localiza na cidade realizada durante os preparativos dos rituais. nado terreiro como
Campinas cujo babalorixá é Pai Paulo. Seu axé “deturpado”, “des-
A outra dimensão é a das festas propriamente
caracterizado” ou
é caracterizado pelos adeptos (filhos da casa e ditas ou os xirês, na linguagem do Candom- sem raíz.
de fora) como um terreiro tradicional que esta- blé. Pensamos essas duas dimensões enquanto
belece na Bahia a fonte da legitimidade ritual e dois momentos de um mesmo processo, que é 19 Homens e mu-
da tradição. atravessado e estruturado por uma rígida hie- lheres que não en-
rarquia e um estrito código de conduta. tram em transe e
Na Casa de Xangô foi possível visitar o ter- gozam de elevada
reiro toda semana às quartas-feiras quando posição na hierar-
acontecia um ritual no qual se oferece uma co- quia ritual dos ter-
TRABALHO E FESTA
mida votiva ao orixá Xangô a fim de homena- reiros. São chama-
geá-lo. Ao final dos rituais sempre ficavam os a) AS FUNÇÕES dos de pais e mães,
provas de deferên-
filhos da casa, clientes e Pai Paulo conversando,
São chamados de funções todo o período cia ao seu cargo.
esses momentos foram extremamente valiosos
de trabalho que antecede os xirês. Estão con-
para os propósitos dessa discussão pois, por 20 Disponível no
tidos nas funções tanto o trabalho que pode
muitas vezes, a minha presença não era inter- YouTube: <https://
ser descrito como secular (lavar, passar, limpar,
pretada como a de um pesquisador, mas como www.youtube.com/
cozinhar, carpir, podar, pintar) quanto aquelas watch?v=ZEDxFN-
a de um adepto; o que provavelmente desinibia
atividades que são sagradas (imolação, preparo vKL64> Acessado
determinadas posições a serem anunciadas.
das comidas dos orixás, assentamentos, rezas, em: 15/04/2019>.
Durante esses rituais foi possível acompa- preparo de banhos). A carga de trabalho du-
nhar uma outra faceta da religião: os trabalhos e rante as funções é intensa. Por vezes, as(os)
preparativos, isto é, as funções. Minha condição adeptas(os) ficam acordadas(os) até tarde da
de iniciado na religião facilitou o contato, mas madrugada fazendo as atividades necessárias
também modulou determinadas expectativas, para acontecerem as festas. Durante os perío-
tendo em vista a trajetória religiosa tanto de dos de função há um destaque para ogãs e 16
Pai Paulo quanto de Mãe Cláudia ser mais lon- ekedis19 que, de certa maneira, supervisionam
ga que a minha e, portanto, a partir do critério os trabalhos.
de senioridade que vige no Candomblé, eu de-
Ekedi Sinha, uma das mais importantes
veria me comportar de acordo. Diversas vezes
ekedis do prestigioso terreiro da Casa Branca
essa relação foi demarcada, seja uma indireta
em Salvador, comenta em entrevista ao canal
para eu me sentar no banquinho durante as
Nós TransAtlânticos20 quais são os encargos
conversas (assim eu não me sentaria na mes-
de uma ekedi, os classificando como a “super-
ma altura que um/a pai/mãe de santo), seja me
visão de tudo que tenha a ver com o cuidado
repreendendo abertamente por chamá-los pelo
do orixá, bem como sua representação em ter-
vocativo “você” em vez de “senhor(a)”.
ra”. Segundo ela, desde criança já foi preparada
De maneira geral, o esquema usado para lo- para cuidar do orixá “lavando uma roupa, aju-
calizar as noções de gênero e sexualidade no dando a lavar uma louça”. Conta que era ins-
Candomblé se encontra relativamente vigente truída pelas suas mais velhas a ficar na cozinha,
nos terreiros visitados. A noção de matriarca- pois “a cozinha era onde se aprendia Candom-

16
blé”. A Ekedi Sinha ainda relata que, em contra vam encostados nas paredes jogando conversa
partida, os meninos eram instruídos a aprender fora casualmente.
a buscar folhas no mato, conhecer as ervas na
b) OS XIRÊS
floresta e a toda atividade que envolvesse o
exterior ao terreiro. São chamadas de festas ou xirês os rituais
públicos feitos em louvor a determinados ori-
Grande parte das atividades realizadas du-
xás. Segundo o povo de santo, é durante os
rante as funções gravitava em torno da cozinha.
xirês que os orixás podem voltar para a Ter-
Assim, pode-se inferir, a partir da fala de Ekedi
ra (ayê) através dos corpos de seus filhos e
Sinha e observado em campo, que a cozinha
filhas para matar as saudades de suas vidas
é um espaço privilegiado para a aprendizagem
terrenas e contar suas histórias e memórias.
dos preceitos e conhecimentos sagrados do
Na cadência do toque dos atabaques, os orixás
Candomblé. É inegável aí a mobilização da ideia
vão contando histórias de guerra, vitórias, der-
da premência do feminino quanto aos trabalhos
rotas, amores, mortes e doenças através dos
que envolvam cuidado, ainda que em diversos
corpos dos adeptos. Eles caçam, lutam, correm
sentidos do termo.
o mundo, distribuem raios e feitiços. As festas
21 Iniciado que en-
Como na maioria dos terreiros, o trabalho são coloridas e ricas; permeadas por diversas
tra em transe.
na Casa de Xangô se concentrava na cozinha. camadas de significado e constituem um mo-
22 Aquele(a) que Na maior parte das quartas-feiras, a frequên- mento de ansiedade e satisfação para babás e
não é iniciado(a), cia de filhos e filhas de santo se restringia a, ialorixás.
mas frequenta o no máximo 6 ou 7 pessoas. Dentre elas, havia
terreiro de can- É também durante os xirês que acontecem
uma família que, durante o tempo que eu fre-
domblé nessa in- os famosos transes ou possessões dos filhos
quentei, não faltou a uma quarta-feira no Casa
tenção. e filhas de santo. A possessão aqui será tra-
de Xangô, muitas vezes apenas eles apareciam.
tada enquanto fato social. Não nos interessa
23 Comida ofereci- Ele era ogã, ela iaô21 e o filho deles era abiã22.
quaisquer discussões patologizantes ou então
da a Xangô. Houve um episódio que foi o gatilho para su-
psiquiatrizantes que se propõem a pensar o
blinhar o trabalho e as atividades nas funções
transe enquanto um fenômeno biomédico. O
como potência generificadora.
que se buscará destacar aqui são os códigos
Em um dia muito frio, eu estava conversan- a que se submetem o transe, assim como os
do com o ogã no grande pátio que fica de frente códigos que são compartilhados pelos adeptos.
para a apertada cozinha do terreiro, lá dentro as
O transe se mostra nos terreiros frequenta-
mulheres cozinhavam o amalá23, tarefa tediosa
dos enquanto uma parte da linguagem através
e minuciosa, e lá fora ele varria o chão. Conver-
da qual os adeptos são situados na intrincada
sávamos descontraidamente quando chegou
hierarquia presente nos terreiros. O palco cen-
Pai Paulo e dirigiu-se a ele: “ô meu filho, estou
tral dessa linguagem é o corpo. Outras partes
te estranhando! (risos) Tanta mulher aí e você
dessa linguagem são as roupas usadas pelos
varrendo o chão?”. A frase foi dita em tom de
adeptos virados de santo ou não. Um exemplo:
troça e ambos riram.
o uso de miçangas feitas de coral só é autori-
A partir da fala de Pai Paulo é possível no- zado àqueles que já tenham atingido sua maio-
6 tar a construção simbólica de gênero em torno ridade religiosa, isto é, que já tenham tomado
das atividades realizadas durante as funções. sua obrigação de sete anos; sendo assim aque-
Nesse sentido, foi candente observar que não le que for visto usando um fio com miçangas
só o trabalho generifica, mas o ócio também, de coral será tratado como um ebômi. Márcio
pois nas semanas seguintes o ogã se limita- Goldman (1987) estabelece o Candomblé en-
va a conversar com outros homens enquanto quanto uma religião cuja cosmologia é centrada
as mulheres e alguns homens (esses notada- no corpo. Ou seja, a hierarquia no Candomblé
mente adés) trabalhavam nos preparos rituais. incide diretamente em processos de fabricação
Portanto, o ócio operava como um símbolo da de pessoas e corpos, bem como nos usos que
masculinidade daqueles homens em oposição à se faz dos corpos
feminilidade que residia nas atividades desem-
Carmen Opipari pensa o transe a partir de
penhadas pelas mulheres e pelos adés. Foi pos-
uma analogia com o teatro. A autora busca
sível observar a mesma coisa em uma das fes-
mostrar as maneiras pelas quais os(as) adep-
tas na Casa de Obaluaê, enquanto as mulheres
tos(as) (atores) vão se trançando com seus
e alguns filhos de santo adés se desdobravam
orixás (personagens) numa espécie de peça na
entre o salão e a cozinha, alguns homens fica-

17
qual os atores envolvidos improvisam a peça a ticipante de duas discussões, uma no Casa de
partir de um roteiro fixo de comportamentos Xangô e outra na Câmara Municipal de São
esteriotipados (OPIPARI, 2010, p. 179). Entre- Paulo por ocasião de um Fórum de População
tanto, esse roteiro, ou texto, não se traduz en- LGBT de terreiros, bem como as festas públi-
quanto um “corpus finito e homogêneo” (idem), cas foi possível levantar algumas hipóteses, ex-
mas age enquanto um processo que também ploradas a seguir.
considera as controvérsias míticas e os con-
Primeiramente, é preciso que fique claro que
frontos entre diversas tradições. Em outras
a presença de pessoas trans* se insere em nar-
palavras, o transe é fragmentado, pleno de la-
rativas acerca de tradição e formas autorizadas
cunas e em perpétuo movimento. Dessa ma-
de culto e são usadas para tensionar os limi-
neira, a possessão também aparece marcada
tes entre a manutenção dos tradicionalismos e
pelos sinais diacríticos pessoais do adepto que
a adoção de mudanças. Também é necessário
a abriga.
que se estabeleça que há uma vigilância sobre
É importante notar que, ao tratar do tran- os corpos, performances e indumentária des-
se, Opipari intende, em sua análise se afastar ses(as) sujeitos(as). Observou-se, de manei-
de uma visão que estabelece no transe, ape- ra geral, que há entre a maioria dos adeptos
nas um modelo arquetípico de correspondência uma confusão entre gênero e orientação se-
mítica que, segundo ela, foi construído teorica- xual, existindo uma tendência em generificar a
mente pelos pesquisadores com base em teo- sexualidade em consonância ao modelo hierár-
rias da Psicologia ocidental, bem como na pró- quico descrito por Peter Fry e retomando an-
pria teologia cristã. Opipari, argumenta que a teriormente. Também se verificou o tratamento
adoção desse modelo, e uma consequente ideia dado à genitália como a concentração e a cris-
de homogeneidade, acaba por negar a mar- talização do gênero, operando em função disso,
gem de agência à qual recorrem os adeptos no as diferenças entre travestis e transexuais.
momento do transe que possibilita que sejam
Aqueles contrários à presença de pessoas
mobilizadas um multitude de personagens que
trans* defendem, grosso modo, que o fato de
configuram a identidade dos adeptos.
“homens se vestirem de mulher” (aludindo à
Dessa maneira, é incontornável pensar transexualidade) se deve à vontade que têm de 24 Penso a hete-
o transe enquanto uma das dimensões de chamarem atenção e darem close25. Já que as ronorma conforme
argumentado por
constituição identitária das(os) adeptas(os) do únicas que podem usar roupas femininas são as
Butler (1993), isto
Candomblé. É através do transe que se ma- mulheres a fim de protegerem o útero. Durante é, como uma sé-
terializam aspectos míticos que constituem a uma discussão no Casa de Xangô, uma jovem rie de demandas e
fabricação de pessoas nos terreiros. Miriam iaô logo replicou a essa ideia: “mas e aquelas pressupostos espe-
Rabelo (2014) explora o conceito de “construção mulheres que não tiverem útero?”. Prontamen- rados das pessoas
de pessoa em camadas” no Candomblé. Com te Pai Paulo treplicou que mesmo sem útero, com base na su-
posta naturalidade
isso, a autora busca ressaltar os processos de elas têm ovários e na ausência desses, têm a
da heterossexuali-
individualização dos orixás atribuídos aos ini- vagina “de nascença”. Um outro filho-de-santo dade.
ciados(as) que se dão em crescendo, de forma logo complementou “orixá não reconhece gê-
que aos sete anos de iniciação seja concluída nero, reconhece o sexo com que nascemos”. A 25 Categoria êmi-
essa trajetória com a culminância da maiori- jovem iaô não se deu por satisfeita e perguntou: ca que designa o 18
dade religiosa. Durante esse processo, se cria “as iabás não usam roupas femininas quando ato de concentrar
a atenção em si ou
um par: adepto(a)-orixá. O que liga esses dois no corpo de homens?”, por sua vez o babalorixá
até mesmo usado
elementos é precisamente o transe. Portanto, replicou que era necessário que se fizesse a para se referir a
é possível pensar o transe enquanto idioma de distinção entre o corpo em transe e o corpo “de uma pessoa metida.
constituição de pessoas no Candomblé em uma cara limpa” e, portanto, quem usava a roupa era
dinâmica dialética entre orixá e adepto na qual o orixá, não o homem.
ambos se constroem mutuamente.
O subtexto dessa fala é o fato de uma se-
Privilegiando essas duas dimensões das ex- mana antes dessa discussão, o babaloríxá ter
periências dos adeptos no Candomblé que fo- dado uma festa de Oxum, na qual incorporou
ram feitas as incursões etnográficas para os essa iabá que foi vestida como uma mulher,
propósitos dessa pesquisa. É nesse contexto isto é, à baiana. Para além de apontar as in-
que se inserem nos terreiros as pessoas trans*, congruências presentes naquele discurso, a iaô
adés, monocós e outros corpos que desafiam estava, implicitamente, também colocando em
a heteronorma24. A partir da observação par- questão a masculinidade de Pai Paulo ao que

18
foi prontamente justificado pela distinção entre tos dos xirês tais quais: qualidade da comida
o seu corpo em transe e “de cara limpa”. A vi- servida, hospitalidade dos filhos de santo da
gilância acerca da indumentária usada foi uma casa, instalações físicas do terreiro, sinais de
característica marcante durante toda as dis- prosperidade dos adeptos e do pai ou mãe de
cussões acompanhadas sobre pessoas trans* santo, localização, roupas dos orixás, entre ou-
nos terreiros. tras. É necessário ressaltar que ao ser clas-
sificado enquanto beco, como o foi a Casa de
Durante os xirês que foram acompanhados
Obaluaê, acaba por restringir consideravelmen-
foi possível notar as diferentes formas de se
te esse circuito, quando não se é excluído dele.
lidar com a presença de pessoas trans* nesses
Mãe Cláudia atribui o fato de não ser visitada e,
espaços. Conforme já dito, o Axé Casa de Oba-
portanto, não poder visitar outros terreiros ao
luaê é um terreiro que reconhece a legitimidade
tratamento dado a mulheres trans e travestis
da identidade de mulheres trans e travestis.
na sua casa de santo.
Isso significa dizer, que nesse terreiro a elas era
permitido ocupar cargos hierárquicos, desem- Além dos terreiros, o Fórum de População
penhar atividades e se vestir de acordo com o LGBT de terreiros foi um importante momen-
gênero feminino. É interessante que também to etnográfico. O evento contou com a parti-
na casa de Mãe Cláudia apenas mulheres dan- cipação de quatro ialorixás que se identifica-
çam na roda à moda dos terreiros matriz da vam enquanto travestis, nas suas falas era
Bahia anteriormente citados. Esse fato talvez recorrente a citação da sensação de isolamen-
se deva a uma necessidade de se filiar e cons- to causada pela comunidade do candomblé e
tituir elementos para uma narrativa de tradição, a exclusão sistemática de pessoas trans* dos
porém as mulheres trans e travestis também terreiros. Unanimemente as mães de santo re-
são incluídas no xirê. lataram que durante o processo de transição
foram desligadas das casas que as receberam
Em contrapartida, na casa de Pai Paulo mu-
enquanto “homens gays”. Mãe Bianca relatou,
lheres trans* e travestis não poderiam dançar
inclusive, ter sido submetida pelo seu primeiro
na roda ou se vestirem à baiana tendo em vista
pai de santo a um ritual que chamou de “troca
que não seriam mulheres de verdade. Essa ex-
de folhas” que, segundo ela, tinham como in-
pressão “de verdade” equivale a dizer que elas
tenção “ajustar a sexualidade e transformar o
não nasceram mulheres e que não possuem
corpo de volta para o que era”. A partir disso,
útero, ovários e vagina de nascença. Dessa ma-
elas notam que, nas palavras de Mãe Bárbara:
neira, não haveria razão para usarem as indu-
“no Candomblé há um fato curioso. São os se-
mentárias femininas e dançarem na roda. Em
gregados que segregam”. Mãe Silvia concorda
uma das conversas após os atendimentos às
“os homossexuais são os primeiros a colocar
quartas-feiras, a esposa de Pai Paulo explicou
a faca na nossa garganta e falar ‘ou você é ou
que em uma ocasião, ele teve que pedir para
não é’”. Com essas falas, elas aludem ao fato
uma travesti se retirar de um dos xirês no Casa
de serem segregadas por homens gays que,
de Xangô. A justificativa foi “para não ficarmos
supostamente, deveriam se “solidarizar com os
mal-falados, você sabe como o povo de can-
preconceitos sofridos pelas travestis”, nas pa-
domblé é”.
8 lavras de Mãe Bárbara.
A partir dessa fala é possível observar como
Segundo Mãe Bianca, o Candomblé deveria
se articulam elementos constituintes de nar-
acomodar as mudanças geradas pelos proces-
rativas de tradição através de uma dimensão
sos sociais como as reivindicações e discussões
muito interessante do Candomblé: os circuitos
de pautas dos movimentos LGBT evidenciadas
de trânsito dos adeptos em visitas aos xirês
nos últimos tempos. “Nós não estamos aqui
de outros terreiros. Essa circulação de adep-
parados e paralisados, estamos em constante
tos atua de maneira a vigiar e regular o culto
mudança e transformação” disse Mãe Bianca.
que é praticado em outros terreiros, bem como
Com essa fala é possível notarmos uma frontal
estabelecer critérios de diferença e hierarquiza-
oposição às exclusões geradas pelas narrativas
ção entre terreiros com base em legitimidade
de tradição corroboradas pela produção acadê-
de culto e quão acurados são eles em seguir os
mica canônica – cujas contribuições buscamos
fundamentos de suas tradições.
reconstruir na primeira porção desse artigo
Assim, o prestígio é construído a partir da – que é consumida e reelaborada por grupos
opinião pública formada durante essas visitas; de adeptos das casas de maior prestígio. Para
são levados em consideração diversos aspec- Mãe Sílvia, outra ialorixá travesti, “tradição
19
é uma maneira dos velhos de santo falarem reformulação da feminilidade que busca englo-
‘fica no seu lugar, travesti nojenta’”. Com essa bar a ambiguidade que reside em seus corpos.
poderosa fala, ficam evidentes os sentidos de
“tradição” que são mobilizados para cercear a
participação de pessoas trans e travestis no CONCLUSÃO
Candomblé paulista. Stephen Selka (2007) analisa os discursos e
Outra dimensão tensionada por elas, tanto as linguagens da tradição no Candomblé tendo
no Fórum quanto nos terreiros pesquisados, é em vista o embate entre esses e as questões
a alcunha de “espaços de acolhimento” atribuída postas pela modernidade. Afastando-se de
aos candomblés. Somente durante o Fórum a uma noção de pureza africana, o autor recoloca
palavra acolhimento foi dita cinquenta e qua- a discussão em torno de narrativas que esta-
tro vezes, outras incontáveis foram registradas belecem o Candomblé enquanto uma religião
durante os xirês e as funções. Uma das iaôs brasileira antes de qualquer coisa. Apesar de
da Casa de Obaluaê disse “as nossas casas de sua análise estar mais concentrada na noção
candomblé não podem ser espaços de violência de prosperidade e seus sentidos, seu trabalho
porque o candomblé nasceu para acolher”. En- evidencia candentemente a tensão entre tradi-
tretanto, as falas e trajetórias das ialorixás cita- ção e mudança.
das até agora evidenciam que esse acolhimento É essa tensão que subjaz a discussão pre-
não compreende todos os corpos e identidades. tendida por esse artigo. Também foi possível ob-
Privilegia a expressão da sexualidade masculina servar como a noção de “tradição” foi formada
em suas múltiplas formas (adés, loces), mas to- por antropólogos/as em discussões acadêmi-
lhe a sexualidade feminina e não tolera ataque cas e posteriormente incorporada ao intrincado
algum à cisgeneridade. jogo de prestígio do candomblé e ressignifica-
Em suma, os contrários àqueles que desa- da pelos adeptos. As noções de “feminilidade”
fiam a heteronorma advogam a inescusabilidade e os processos de reelaboração das relações
do sexo designado ao nascimento que figuraria de gênero e sexualidade são tributários desse
como desígnio do orixá. Consequentemente de- diálogo. Para refletir sobre como era entendi-
safiar esse desígnio seria desafiar o próprio di- da a presença de pessoas trans* nos terreiros
vino. É impossível deixar de notar semelhanças tornou-se incontornável a compreensão acerca
entre esses discursos e aqueles presentes nos das formas de articulação entre o conjunto de
púlpitos de igrejas fundamentalistas ou então normas e formas a que o povo-de-santo cha-
aqueles influenciados por conservadorismos. O ma de tradição e as novas questões colocadas
Fórum, acima referido, contou com a presença pela modernidade.
de diversas ialorixás trans e travestis. A fala de Além disso, após ouvir as ialorixás du-
algumas delas ia frontalmente contra esse dis- rante o Fórum de População LGBT de terreiros
curso. As ialorixás buscavam ressaltar a con- e os adeptos nos axés visitados, é impossível
cepção de orixá enquanto amor e conhecedor não se dar conta de como, em nome da tra-
do destino dos seres humanos. Nas palavras de dição, são sistematicamente excluídas pessoas
Mãe Bárbara: “se um orixá escolhe uma traves- trans* e travestis dos terreiros. Sendo possí-
ti, saibam que ele escolheu com plena consciên- vel concluir, portanto, que os discursos acerca 20
cia que ela era travesti. Orixá não vê gênero, vê da noção de tradição podem, por vezes, tomar
apenas o coração de cada um”. contornos bastante heteronormativos à medida
Foi possível observar que as pessoas trans* em que se deslegitimam identidades, corpos e
adaptam suas filiações míticas a fim de explicar performances que desafiem os limites da cis-
sua feminilidade, mas não as transpõem indis- generidade heterossexual.
criminadamente. Nas palavras de Mãe Bárbara Também se tornou poderosamente evidente
“orixá está na cabeça, não na genitália. Pode no campo a maneira com que o povo-de-san-
sim dar trejeitos, mas não determina seus ca- to em geral consome os trabalhos acadêmicos
minhos”. Com essa fala é possível ver de que sobre o Candomblé. Trabalhos como A mito-
maneiras travestis e mulheres trans* reelabo- logia dos orixás do sociólogo Reginaldo Prandi
ram criativamente os mitos a fim de justificar ou então Os Nagô e a Morte da antropóloga
a feminilidade em um corpo masculino a um só Juana Elbein eram discutidos com muita pro-
tempo em que rejeita a essencialização da ge- priedade e citados amiúde por diversos adep-
nitália. Aqui fica evidente também que há uma tos durante as conversas nos terreiros. Dessa

20
maneira, é possível ver, como disse Mãe Bianca, de da questão. Ademais, é nesse contexto que
que o Candomblé não está parado nem para- existem e resistem pessoas trans*. É também
lisado, mas em total articulação com os mais nele que se provam a coragem e a criatividade
diversos fluxos de conhecimento e influências. desses(as) sujeitos(as) em desafiar as normas
O povo-de-santo ressignifica noções e catego- impostas e tensionar os limites que existem.
rias como tradição, matriarcado, feminilidades, Em seus discursos, elas e eles ressignificam as
masculinidades, homem, mulher e com isso narrativas e as desafiam a serem mais inclu-
constroi outros sentidos e direções de existên- sivas. Além disso, muito acuradamente ques-
cia e experiência. Em outras palavras, é possível tionam e problematizam a imagem consolidada
seguramente aferir que as comunidades-terrei- entre adeptos dos terreiros enquanto espaços
ro não são enclausuradas em si mesmo, mas de acolhimento irrestrito de sujeitos margina-
mantêm intenso diálogo com diversos estratos lizados. Pertinentemente, perguntam: a quem
da sociedade. Ora, isso se torna tanto mais ób- serve esse acolhimento? Quem pode ser aco-
vio quando se constata a identidade multiface- lhido? A presença de pessoas trans* no Can-
tada de seus adeptos e suas trajetórias tanto domblé testa os limites míticos, rituais e so-
religiosas quanto seculares. ciais da religião, sendo elas mesmas agentes
da adaptação e produzindo novos caminhos e
A presente discussão oferece mais questões
questionamentos para os terreiros de candom-
que resposta, aponta mais caminhos que os tri-
blé.
lha e isso é prova da dimensão da complexida-

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Recebido em 30 de abril de 2019

Aprovado em 02 de agosto de 2019

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