Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract: This paper presents the theoretical and methodological model of Descola, whose
striking features are the definition of the social and of the objective reality as liable to seizure in
a realistic writing that records a hermeneutics of otherness and the study of man-nature
relationship from its proposal of anthropology as "Symbolic Ecology". It has substantially
influenced the Amerindian Perspectivism or Multinaturalism developed by Viveiros de Castro.
In a second step, the article presentes a de-construction of the work of Descola, which is
understood as a variation of the French structuralism, to tighten its analytical framework based
on the interactionist proposal of social and culture. In this sense, it deals with the understanding
of authors such as Schwartz, Barth, Ingold and Mura on procedural, tense, conflictual and
indeterminate emergency of sociability or socio-technical systems, with their specific
cosmologies and traditions of knowledge and moralities built in everyday intersubjective
processes between individuals in communicational game. Keywords: Symbolic Ecology,
Amerindian Perspectivism and Multinaturalism, Interactionism, Human and Non-Humans
relationship, Sociotechnical Systems and Traditions of Knowledge
1
Doutorando em antropologia (PPGA-UFPE).
262
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
Introdução
Este artigo apresenta de forma panorâmica o modelo teórico-metodológico de
Descola, enquanto teórico formado na linhagem francesa de pensamento social e
antropológico, cujos traços marcantes são a definição do social como realidade objetiva
passível de apreensão em uma escrita realista que registra uma hermenêutica da
alteridade. Descola, nascido em 1949, na França, formou-se em filosofia e etnologia.
Foi orientando de Lévi-Strauss, de quem é, em certa medida, um discípulo, e cuja obra
busca ampliar a partir de novas definições do conceito de estrutura e de sociedade.
Descola se destaca pelos estudos da relação homem - natureza a partir de sua
proposta de antropologia como “Ecologia Simbólica”, enfatizando como as noções de
Natureza e Alteridade são centrais e correlatas para o entendimento de uma estrutura
social dada e seu respectivo repertório simbólico de classificação do mundo. Sua obra
tem alcançado uma ampla receptividade para além do circuito francês de antropologia:
nos EUA, na Inglaterra e no Brasil.
O autor se vale de etnografias de povos nativos da Amazônia para repensar
conceitos como sociedade, cultura, indivíduo, etnocentrismo, assim como conduzir
novos debates no âmbito da teoria antropológica. A “Ecologia Simbólica”, de Descola,
busca superar, em tese, os modelos estruturalistas, culturalistas e interacionistas de
análise clássicos na Antropologia. Tem influenciado substancialmente o modelo de
análise antropológica desenvolvido por Viveiros de Castro: o perspectivismo ameríndio
ou multinaturalismo.
Em um segundo momento, o artigo parte da de-construção da obra de Descola,
entendida como variação do estruturalismo francês, para tensionar seu esquema
analítico com base na proposta interacionista do social e da cultura. Neste sentido,
discorre sobre o entendimento de autores como Schwartz, Barth, Ingold e Mura sobre a
emergência processual, tensa, conflitual e indeterminada de sociabilidades ou sistemas
sócio-técnicos, com suas cosmologias específicas e suas tradições de conhecimentos e
moralidades construídas no cotidiano de processos intersubjetivos entre indivíduos em
jogo comunicacional. Para tanto, aborda as etnografias que estes autores realizaram
entre povos longínquos e exóticos, como os Manus, os Balineses, os Guarani-Kaiowa,
os Tabajaras e outros.
263
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
264
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
265
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
266
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
XVIII como tecnologia social para lidar com o conjunto de transformações sócio-
políticas em curso (Renascimento; descoberta do Novo Mundo; Reforma Protestante;
Revoluções Burguesas e outras), já estaria presente nos relatos de Jean de Léry e se
repetiria no estruturalismo levi-straussiano, interessado na explicação das condições
inconscientes, cujos vetores são a oralidade, da vida social.
Malinowski (1976), muito embora esquecido por Certeau (1982), teria
sofisticado a escrita sobre o outro em um formato racionalista, empiricista e atemporal
ao definir a escrita etnográfica como escrita científica sobre a alteridade. Esta fundação
da antropologia sobre os cânones da ciência ocidental tem por objetivos explicar o
ponto de vista nativo; traduzir a verdadeira imagem e linguagem da vida tribal; e evocar
o verdadeiro espírito da vida nativa.
O fazer etnográfico malinowskiano, como bem pontua Giumbelli (2000), exige
que o pesquisador paute sua observação em princípios científicos e que viva entre os
nativos por um tempo longo, de modo a coletar dados suficientes para a construção de
quadros explicativos gerais e abstratos, na forma de leis científicas, sobre os fatos
sociais observados. Deste modo, o pesquisador deve dominar o método antropológico e
a partir deste produzir evidências sobre a cultura nativa, tal como um cientista que
praticasse uma ciência empírico-analítica, cujo interesse é o domínio técnico,
classificado como verdade, sobre o fenômeno estudado (Habermas, 1968).
Esta proposta de fazer etnográfico como um exercício sistemático de
hermenêutica do outro, pautada no poder atribuído à escrita de reter o passado como
realidade objetiva e de superar as distâncias espaciais mediante um texto facilmente
reproduzível e que leva consigo as experiências do lugar de origem, entende a alteridade
radical do Novo Mundo como imemorial, sincrônica e inconsciente de si, devendo,
neste sentido, ser explicada pelo olhar externo do observador. Observador este que
explica a alteridade na reprodução da diferença Nós-Eles e de acordo com os códigos de
racionalidade e estranhamento de sua cosmologia.
Descola, inserido nesta linhagem acadêmica, discute, assim, na compreensão
aqui desenvolvida sobre parte de sua obra, ainda que nas entrelinhas de sua
argumentação, o conceito de “sociedade” nas múltiplas formas em que aparece na
267
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
literatura das ciências sócias, sem, contudo, ultrapassá-lo. Conceito de “sociedade” este
que aparece, pois:
268
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
269
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
270
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
Objetivar uma técnica supõe que a relação original que ela institui entre o
homem e a matéria possa ser representada a partir do estoque preexistente de
relações consideradas como logicamente possíveis no interior da totalidade
sociocultural que se terá definido de antemão como unidade de investigação.
Com base nestes pressupostos analíticos estruturalistas o autor pretendeu ter
encontrado a explicação para o fato de as sociedades ameríndias amazônicas terem “se
recusado” a empreender estratégias de domesticação de animais como relação técnica
para a expansão do ciclo energético de suas sociedades, mesmo quando foram capazes
de “amansar” os filhotes de animais caçados regularmente. Neste sentido, o autor afirma
(2002: 106):
Os animais passíveis de ser caçados são vistos tanto como um alter ego em
posição de exterioridade absoluta quando eles são caçados como
demasiadamente idênticos a ego para serem comidos, uma vez amansados.
Exterioridade absoluta porque a sociedade dos animais é concebida à imagem
da dos homens, independente e obedecendo a suas próprias regras, e que as
relações entre os dois mundos são governadas por uma lógica de troca na
qual os participantes são de direito, senão de fato, equivalentes. Esta
equiparação exprime-se principalmente na prática muito comum de negociar
com um espírito, o Senhor dos Animais, ou com um ser representando a
figura prototípica da espécie, a autorização de empreender uma caçada em
271
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
272
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
273
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
274
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
pode se organizar como fragmentação espaço-temporal sentida por cada natureza do seu
modo:
275
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
276
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
277
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
278
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
pelo espaço societal organizado enquanto formas de associação entre indivíduos, que se
aproximam e se distanciam no contexto de grupos, categorias, segmentos, status e etc.
Em sua etnografia produzida entre os Manus, Schwarzt (1978: 216) descreve o
sistema social analisado como “[...] Constant litigation of culture”. Argumenta, neste
sentido, que toda comunidade humana, por mais simples que seja 3, isto é, por menor que
seja a sua escala, tem um conteúdo cultural complexo, uma vez que os espaços societais
não são determinados por cosmologias supra-individuais e atemporais, que constrangem
totalmente a ação individual em um sentido unívoco de realização.
Diferente disso, Schwarzt percebe a cultura, e, por conseguinte, a cosmologia,
como corpus simbólico e material derivado da experiência intersubjetiva e sempre
tensionado pelos fenômenos da individualidade e da personalidade. Para o autor
(Schwarzt, 1978:218), a cultura se apresenta em texturas individualizadas, compondo
personalidades individuais: “The personalities of the individuals of a society constitute
the individualized texture of a culture, its distributive locus, and its social units”.
O caráter distributivo da cultura opera de forma a resolver o problema do
armazenamento e da transmissão de códigos de sentido, que não poder ser resolvido
pelo “indivíduo total” ou pela “homogeneidade cultural”, como postulam os
estruturalistas franceses. O armazenamento e a transmissão dos repertórios simbólicos,
com efeito, torna-se mais complexo conforme cresce em escala os espaços societais,
gerando massas de conteúdo cultural que extrapolam a capacidade individual de suporte
de informações e de experiências.
A cultura, nesta perspectiva interacionista, não suprime ou determina a
individualidade, mas configura um contexto onde as individualidades criativamente
orientam as suas ações conformem desenvolvem suas habilidades e técnicas de
construção de si, do social e da cultura. Nas palavras de Ingold (2010:21):
279
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
“Having freed ourselves from the analytic distinction between nature, culture
and the supernatural, therefore, and recognized ethnic identity and religion
as forms of socially organizing relations, interactions and mobilizations of
forces across boundaries, we can turn to the specific concern of the present
article: what relation is established between ethnicity, religion and tradition of
knowledge?”
Os Guarani Kaiowa do Mato Grosso do Sul (autodenominados Paî-Tavyterã e
descendentes dos Itatim) construíram sua atual cosmologia e identidade étnica em um
processo violento de disputas com o colonizador (bandeirantes, jesuítas, latifundiários,
capuchinos). A estratégia de dominação do colonizador combinava ações de expulsão
dos Guarani Kaiowa de suas terras de origem com ações de arregimentação de sua força
de trabalho no sistema de plantation do Mate ou no comércio de sal, ferramentas, metais
e outros manufaturados.
Posteriormente o Estado brasileiro, através da FUNAI (e SPI, órgão que
precedeu e estruturou a FUNAI), organizou as populações Guarani Kaiowa em reservas
indígenas, em que se fazia presente sobre os índios a influência governamental, mas
também de grupos evangélicos. Nos anos de 1970 tem início o processo de retorno dos
280
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
281
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
282
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
Considerações Finais
283
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
Referências
284
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
285
REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 4, volume 4(1):262-286, 2017
MURA, Fábio. 2014. “Beyond nature and the supernatural: Some reflections on
religion, ethnicity and traditions of knowledge”. In: Vibrant, v.11, n.2, p407-443.
ORTNER, Sherry B. 2011. Teoria na antropologia desde os anos 60. Mana,
17( 2):. 419-466.
PARSONS, Talcott. 1949. The structure of social action. Glencoe, Illinois: The
Free Press.
RIVIÉRE, Peter. 2001. A predação, a reciprocidade e o caso das Guianas.
Mana 7(1): 31-53.
SIMMEL, Georg. 1970. O indivíduo e a díade. In: F. H. Cardoso & O. Ianni
(Orgs). Homem e Sociedade. 5ª edição, São Paulo: Editora Nacional, p. 128-135.
SIMMEL, Georg. 1986. La ampliación de los grupos y la formación de la
individualidad. In: Sociología: Estudios sobre las formas de socialización. Madrid:
Alianza Editorial, p. 741-807.
SIMMEL, Georg. 1998. O conceito e a tragédia da cultura. In: SOUZA, J;
ÖELZE, B. (Org.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, p.77-105.
SIMMEL, Georg. 2003. Fidelidade: Uma tentativa de análise sócio-
psicológica. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 2( 6): 513-519.
SIMMEL, Georg. 2010. Gratidão: Um experimento sociológico. RBSE –
Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 9(26): 785-804.
SIMMEL, Georg. 2011. O conflito como sociação. RBSE – Revista Brasileira
de Sociologia da Emoção, 10(30): 569-574.
SIMMEL, Georg. 2013. A tríade. In: Maria Claudio Coelho (Org. e tradução).
Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 45-74.
SCHWARTZ, T. 1978. “The size and shape of a culture”. In: Frederik Barth
(ed.), Scale and social organization. Oslo, Bergen: Universitetsforlaget.
TURNER, Victor. 2013 [1969]. O Processo ritual: Estrutura e antiestrutura.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B.. 1992. From the enemy’s point of view:
Humanity and Divinity in an Amazonian society. Chicago, University of Chicago Press.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B.. 1996. Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio. Mana 2(2): 115-144.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B.. 2011. Perspectivismo ameríndio. Blog
Chakaruna, domingo, 11 de dezembro de 2011.
http://hernehunter.blogspot.com.br/2011/12/perspectivismo-amerindio.html (Visto no
dia 01 de junho de 2016).
WEBER, Max. 1922. Wissenschaft als Beruf. Vortrag.
286