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Valmir Moratelli1
ABSTRACT: This work discusses the construction of the television fiction narrative
from the point of view of the invisibility of the representation of elderly black characters.
Through pointing out social and contemporary elements, it is analyzed why the theme
of blacks’ old age is practically non-existent in TV Globo soap operas. When raising
characteristic aspects of the booklet narrative, we want to debate how the annulment of
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. E-mail: vmoratelli@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-6071-1360.
Representação do negro na velhice:... 209
identity discourses is constructed about elderly blacks and their relationship with aspects
of social life.
KEYWORDS: Black people. Old age. Audiovisual narratives.
INTRODUÇÃO
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Lopes (2003), em seus vastos trabalhos sobre mediação e telenovelas, interpreta a dimensão
narrativa na construção dos imaginários nacionais e suas problemáticas. Desse modo, por
ser um produto de acesso imediato a praticamente todas as regiões do país, a telenovela se
torna um amálgama na formação de uma ampla ideia nacionalista. Por outro lado, no entanto,
isso implicaria em abarcar a complexa e diversa sociedade brasileira, com suas contradições e
desigualdades.
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Ver mais em < https://oglobo.globo.com/economia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-
22-em-cinco-anos-no-brasil-22625501>. Jornal O Globo. Publicado em 26/04/2018. Acesso
em 08/03/2021.
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Não há dados nacionais atualizados sobre essa diferença. Os dados disponíveis podem ser
acessados em: http://longevidade.ind.br/noticia/e-preciso-mais-produtividade-para-suportar-
o-envelhecimento/.Acesso em 08/03/2021.
RELAÇÕES SOCIAIS
Sabe-se que, por mais de três séculos e meio, o país viveu imerso
no sistema da escravidão. Em determinado momento, o tráfico negreiro
foi a maior atividade econômica do Brasil-colônia, superando inclusive a
exploração do açúcar e a pecuária. Mesmo após tantos anos da Abolição
da escravidão (1888), não se pode negar as marcas que a escravidão deixou
no país, já que à população negra tem sido renegada a possibilidade de
mobilidade social. Além do mais, sabemos que o pensamento escravagista
do século XVI influencia, ainda hoje, o comportamento racista.
A análise da representação do negro em telenovelas brasileiras já foi
realizada por diversos estudiosos. Araújo (2000) afirma que, na televisão,
persiste o ideal de branqueamento, o que confirma “a vitória simbólica da
ideologia do branqueamento e da democracia racial brasileira” (ARAÚJO,
2000, p. 38). Já Sodré (1992), como citado por Fernandes (2007), questiona a
telenovela por frequentemente se utilizar de negros para retratar o bandido
ou o cidadão à margem das regras sociais, perpetuando a identidade
negra como negativa. Da familiaridade com a ambivalência própria
dos estereótipos, já exposta por Hall (2003), percebe-se uma estratégia
representacional investida na fixação e naturalização da inferioridade do
negro (CUNHA, 2016), cuja diferença é posta como evidência irrefutável.
Lélia Gonzalez (1984) também aborda a questão racial e estereótipos
construídos por uma hegemonia branca para manter o negro em papel
inferiorizado. Em uma sociedade marcada por uma segregação racial
imposta por um processo histórico de preservação da primazia branca,
percebe-se, segundo a autora, que:
um outro que não seria o dele, portanto. Isso nos ajuda a compreender
por que não há negros idosos representados de forma consistente na
teledramaturgia nacional. Se esta dramaturgia prioriza jovens, deixando
para segundo plano a possibilidade de incursão de atores idosos, onde
caberiam atores negros idosos?
Ao explicar a questão da branquitude no país, Liv Sovik (2019)
argumenta que a barreira é também de relações sociais, posto que o
indivíduo reconhecido como branco, “como ser mulher ou homem em
qualquer parte, se valida e se reconhece em atos, realizados em meio à teia
de relações sociais”. Ela continua:
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Análise também feita por Lopes (2009).
Figura 1:
Da esq. para a dir.: Grande Otelo*, Ruth de Souza*, Lea Garcia*, Marina Miranda*, Tião
Macalé*, Antonio Pompêo*, Teca Pereira, Maria Alves*, Neuza Borges, Chica Xavier*, Milton
Gonçalves, Romeu Evaristo, Tony Tornado, Antonio Pitanga, Zezé Motta, Elisa Lucinda,
Claudia di Moura, Chica Lopes*, Dhu Moraes e Dill Costa. Fonte: Montagem do autor com
imagens da internet. *Já falecidos.
Aos atores negros idosos quase sempre lhes foi conferido o papel
secundário de submissos interpretando funções à margem da legalidade
ou na informalidade. São escravos ou malandros (em narrativas de
época), bandidos ou presidiários (em narrativas contemporâneas) ou
ainda empregados domésticos (e porteiros, motoristas, zeladores etc.) sem
arcos narrativos densos. Além desse contexto, são vistos “performando a
negritude”, como pais e mães de santo, por exemplo. Nessa linha, Kilomba
(2019, p. 173) lembra que “ser incluída/o sempre significa representar as/
os excluídas/os”.
Performar a negritude, como Kilomba (2019) sugere, na maioria das
vezes, é uma solução encontrada nestas narrativas para “incluir” o negro
– idoso ou não. Isso também em referência aos papéis que não são os de
protagonistas. O senhor médico de uma telenovela, por exemplo, é sempre
um ator idoso branco, como vemos nos exemplos da figura 2. Nunca um
ator idoso negro.10 Este “status de ter de representar a negritude anuncia
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Entrevista presencial com o pesquisador, em setembro de 2018.
10
Um raro caso de exceção foi dado a Milton Gonçalves na novela Por Amor (1997), na qual
ele interpretou um médico no hospital onde os protagonistas Marcelo e Laura foram levados
após um acidente de carro. Mas vale destacar que foi apenas uma participação, e o personagem
Figura 2:
Papéis de médico idoso: Na novela Mulheres Apaixonadas (2003), o dono de uma clínica de
saúde foi interpretado por Serafim Gonzalez; Em Viver a Vida (2009) Lionel Fischer interpretou
um neurocirurgião; em Páginas da Vida (2006), Henrique César era o responsável pela saúde
da protagonista. Fonte: http://wp.clicrbs.com.br/noveleiros/2010/02/28/conheca-os-
personagens-dr-moretti-nas-novelas-de-manoel-carlos/?topo=52,1,1,,186,e186
tiver muito menos do que 30, e não muito mais”. O cursus honorum da
Roma antiga11 – sequência de cargos na magistratura que um jovem que
aspirava ser político poderia ocupar – não permitia que ele desempenhasse
sua primeira função, a de quaestor,12 antes dos 30 anos (sob o imperador
Augusto, a idade mínima caiu para 25; o próprio líder romano morreu aos
75 anos). Para ser cônsul, era preciso ter, pelo menos, 43 – oito anos a mais
do que o limite mínimo de 35 anos para ocupar a Presidência brasileira
atualmente. As variações para se compreender o que é ser velho estão,
assim, intimamente relacionadas a questões culturais, sociais e políticas.
Nas palavras de Debert (2011, p. 542): “a velhice, como as categorias
etárias, étnicas, raciais ou de gênero, é uma forma de segmentar e classificar
uma população, mas também de construir uma hierarquia entre diferentes
segmentos assim constituídos”.
Mais uma vez, recorre-se a autores que pensam a formação social
brasileira para auxiliar no aprofundamento de tais reflexões. Como
argumenta a antropóloga Lélia Gonzalez (2011, p. 12), “(...) a sociedade
brasileira, ao refletir sobre a situação do seguimento negro que dela faz
parte (daí a importância de ocupar todos os espaços possíveis para que isso
suceda), possa voltar-se sobre si mesma e reconhecer nas suas contradições
internas as profundas desigualdades raciais que a caracterizam”. Para Sueli
Carneiro (2002, p. 212), “as conquistas que negros e negras vêm obtendo
na desmistificação da democracia racial, na maior visibilidade do racismo e
na reversão de certas práticas discriminatórias” servem para dar subsídios
ao que ela classifica de “neo-democracia racial”. Já Abdias Nascimento,
em sua célebre obra O Genocídio do Negro Brasileiro, denuncia a fantasiosa
convivência pacífica entre negros e brancos no país, o que é, para ele, “uma
extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o desaparecimento
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No século 1º, o naturista romano Plínio dedicou um capítulo inteiro da sua enciclopédia
História Natural às pessoas que viviam mais tempo. Entre eles, lista o cônsul Valerius Corvinos
(100 anos), a esposa de Cícero Terentia (103), uma mulher chamada Clodia (115 – e que teve 15
filhos ao longo da vida), e a atriz Lucceia, que se apresentou no palco com 100 anos.
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O cargo, que implicava funções administrativas, era ocupado por membros da classe
senatorial com cerca de 32 anos. O mandato como questor dava acesso direto ao colégio
do senado romano. Por serem os cobradores de impostos do império, eram malvistos pela
população, pois eram “interventores”.
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Baseada no romance Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher Stowe. O romance aborda a luta
entre escravos e latifundiários do Sul dos EUA, durante a Guerra de Secessão (1861-1865), que
colocou em oposição os estados das regiões Norte e Sul do país, culminando no fim da escra-
vidão. Antes disso, o grande destaque da representação do negro em telenovela foi a versão
brasileira de O direito de nascer (TV Tupi, 1964). Nessa narrativa, a personagem negra Mamãe
Dolores (Isaura Garcia), foi representada como porta-voz do discurso autoritário da época.
Figura 3:
Cena de Segundo sol. Três atores brancos com falas e relevância para a cena, enquanto o ator
negro apenas cumpre uma “exigência de cota”. Fonte: Reprodução da TV
A frase da atriz Léa Garcia ao site Memória Globo resume bem esta
mudança, ainda que gradual:
NEGROS PROTAGONISTAS
Figura 4:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ainda o que se buscar por uma democracia efetiva no Brasil, uma das
maiores sociedades multirraciais do mundo e lar do maior componente da
diáspora africana além-mar. A contribuição teórica deste trabalho mostra
que o caminho ainda é longo.
REFERÊNCIAS