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Má-Consciência e Representação do
Popular no Cinema Brasileiro
Fernão Pessoa Ramos

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Humildade e Narcisismo às Avessas no Cinema da Ret omada


Fernão Pessoa Ramos

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MÁ-CONSCIÊNCIA E REPRESENTAÇÃO DO POPULAR
NO CINEMA BRASILEIRO

Fernão Pessoa Ramos

Este texto buscará fornecer um breve panorama da representação


do popular no Cinema Brasileiro. Definimos "popular" enquanto representação de uma
alteridade, enquanto representação de um outro. Em países europeus, ou norte-
americanos, dimensões desta alteridade encontram-se definidas em estudos que
trabalham com a representação cultural de minorias como negros, homossexuais, índios,
emigrantes, latinos, chicanos, etc. Tentaremos aqui mostrar que a questão das
representação das minorias no cinema e na cultura brasileira, apresenta particulares que
devem ser realçadas. Algumas temáticas presentes em análises dentro do recorte amplo
denominado "estudos culturais", necessitam de mediações para se adaptar a situações
históricas concretas experimentadas por países latino-americanos. O próprio conceito
"latino", usado correntemente em algumas destas abordagens, pode ser questionado. As
especificidades culturais dos países latino-americanos impedem uma constelação
histórica e cultural homogênea. Diferenças lingüísticas (entre o espanhol e o português,
por exemplo) acentuam o isolamento, sobredeterminado pela forte influência cultural
exercida pelos Estados Unidos e Europa. O intercâmbio cultural dá-se individualmente
com os países desenvolvidos. Entre si, os vínculos ideológicos e culturais são tênues.
Poucas são as oportunidades existentes para se expor produtos culturais brasileiros no
México ou na Argentina, ou vice-versa. Expoentes culturais e personalidades de um
determinado país permanecem completamente desconhecidos em outro. Tal
desconhecimento não existe quando o intercâmbio incide sobre países do primeiro
mundo. Na realidade, reina um desinteresse recíproco, que pode ser contraposto ao
fascínio que exerce qualquer moda cultural que desponte nos Estados Unidos ou
Europa. Talvez este fascínio seja o traço comum da cultura latina. É, no entanto,
preocupante, vermos algumas análises que pressupõem movimentos culturais integrados
na América Latina (como um "novo cinema latino-americano" nos anos 70 e 80),
trazendo implícito um intercâmbio de idéias e experiências, que existe somente de modo
superficial. Esta realidade talvez possa ser conveniente em termos analíticos, mas não
tem mais consistência do que a idéia de um cinema europeu ou de uma literatura
européia com traços estruturais comuns. Esta realidade ainda é mais aguda quando vista
da América não hispânica, de língua portuguesa, ou quando realçamos a distância
geográfica (marcada pelos Andes e a Amazônia) e o isolamento histórico do sul do
continente com o norte da América Central (particularmente o México). De todo modo,
a noção da latinidade, como um instrumento conceitual construído a partir de uma
realidade homogênea, é, no meu ponto de vista, bastante frágil.
Uma análise mais atenta deve lidar com as mediações necessárias para adaptar
temáticas caras aos "estudos culturais" dentro de horizontes históricos e culturais
heterogêneos. A questão da representação do "popular" como alteridade, insere-se neste
debate ao diluir e misturar os aspectos étnicos e raciais que compõe este debate nos
países desenvolvidos. No caso brasileiro, esta alteridade caracteriza-se pelos dilemas
que envolvem a representação de uma maioria, bastante diversa das minorias com as
quais nos defrontamos na cinematografia norte-americana, por exemplo. É a esta
maioria, mais ou menos deserdada quanto aos seus meios de subsistência, que
chamamos de "povo". À representação desta camada da população chamamos de
"representação do popular". O conceito de "popular" com o qual trabalhamos deve ser
distinguido de qualquer significado que implique a realização do valor de um produto
cultural no mercado, ou mesmo a aceitação ou popularidade no sentido de um best seller
cultural. Quanto falamos em "cultura popular" estamos nos referindo não a uma cultura
que atinge vastas camadas da população, através da televisão, por exemplo, mas sim à
expressões culturais tradicionais de setores excluídos da população. No caso do cinema,
as expressões recorrentes do "popular", conforme vistas por cineastas da classe média,
são concretamente o candomblé e outras manifestações religiosas sincréticas, as
diversas danças populares; estilos musicais de origem popular, como o samba; esportes
como o futebol; as manifestações culturais que giram em torno do carnaval; produções
folclóricas e artísticas regionais tradicionais, em particular as nordestinas; cenários que
envolvem habitações populares como as favelas; e a presença de tipos humanos com
características étnicas populares como negros, mulatos e, em particular, o que
chamamos de "nordestino". A questão da posição da mulher na sociedade, a
representação do índio, ou das minorias sexuais, estão, de forma geral, ausentes da
temática mais característica do popular. Enquanto alteridade excluída, o "popular"
brasileiro é composto principalmente a partir de movimentos migratórios internos e não
externos.
Em função de seus altos custos, a atividade cinematográfica nunca esteve nas
mãos destas parcelas mais pobres e excluídas da sociedade. Se a definição de cinema
popular for a de um cinema filmado concretamente pela massa de excluídos, podemos
dizer que nunca houve um cinema popular no Brasil. Quando surge na tela, a imagem
do povo é filtrada por cineastas que tiveram sua formação vinda de fora do universo
popular. Embora esta situação também seja comum em outros países, o fosso social,
particularmente forte no caso brasileiro, traz uma tensão particular ao degrau entre
"nós" (cineastas e público de classe média) e o "povo". A existência desse "fosso"
produz um fenômeno ideológico carregado do que poderíamos definir por uma "má-
consciência". Esta "má-consciência" é uma das molas mestras do cinema brasileiro
recente, estando presente de modo difuso em toda história do cinema brasileiro, em
particular na produção da geração cinemanovista.
O movimento de representar o "outro", talvez seja difícil de se dimensionar para
uma cultura estruturada em parâmetros distintos da brasileira. Esta má-consciência
difusa, presente na representação do "outro", é algo ausente, enquanto forma dominante,
da cultura norte-americana, e particularmente de seu cinema. A representação da figura
do negro e de outras minorias étnicas, passa por mecanismos de racismo e outras formas
de exclusão, ou absorção, mas não tem na má-consciência um traço fundamental. No
caso do cinema brasileiro, é em torno dos dilemas existenciais abertos pela
representação desta alteridade que chamamos de "popular" que configuram-se algumas
das principais obras de nossa cinematografia. A questão da identidade nacional (que
percorre de modo recorrente os cinemas não hollywoodianos), expressa-se, em nosso
caso, como intrinsicamente relacionada à expressão e incorporação estética da maioria
excluída "povo". Neste movimento de recuperação, está embutido um misto de auto-
expiação e piedade, dentro do qual localiza-se o movimento de culpa que chamamos de
má-consciência.
Na história do Cinema Brasileiro, as manifestações culturais do "povo"
aparecem inicialmente como algo negativo, algo que deve ser escondido ou
reformulado, antes de ser exibido. No principal veio do pensamento sobre cinema do
Brasil dos anos 20, a representação do popular é vista como algo comprometedor que
deve ser evitado. As condições de vida precárias da população, suas tradições
culturais e mesmo sua constituição física predominante, são apresentadas como
aspectos que degradam a imagem que se quer construir de um Brasil desenvolvido. A
representação do popular é caracterizada como representação de um universo baixo e
disforme que impede a afirmação de um cinema nacional. A esta dimensão do
popular sobrepõe-se a elegia do "progresso", do universo urbano e das conquistas
industriais. Filmes como "São Paulo, Sinfonia da Métropole", de 1929, apresentam
sem constrangimento esta visão.
A crítica de cinema da Revista CINEARTE reflete este recorte ideológico que
encontramos de modo difuso nos escritos de cineastas e críticos do período mudo.
Trata-se de uma visão do cinema que busca dar ênfase à representação do urbano
vinculado a uma noção de progresso que, muitas vezes, se opõe à representação das
condições de vida do povo, consideradas como "feias e sujas". Este quadro
ideológico perdura até o início do sonoro quando paulatinamente transforma-se.
Favelas e cortiços, tradições populares como o samba, o candomblé, aparecem como
distantes do universo do progresso, da racionalidade e da higiene, devendo ser
evitadas. A fisionomia, basicamente mulata, do povo brasileiro é considerada "não
fotogênica". Em sua críticas, publicadas na Revista CINEARTE, Adhemar Gonzaga
propõe explicitamente que se deixe de lado "esta mania de filmar índios e negros". A
luta de Adhemar Gonzaga e Pedro Lima contra o cinema documentário, também
caminha neste sentido. Na diferença entre filme "posado" e "natural" está
nitidamente embutida a má vontade dos críticos com relação a algumas cenas
imprevistas de miséria que podem surgir na tela. À abertura do documentário para o
acaso e a improvisação, contrapõe-se o estabelecimento de ambientes "higiênicos",
construídos de modo a estampar a urbanidade e o progresso. O Brasil negro e popular
é o Brasil que passa ao largo do progresso e que deve ser evitado. Posições
colonialistas e racistas são assumidas sem nenhum receio. Em editorial de 28/4/1926
a revista CINEARTE, na época principal revista de cinema no Brasil, indaga:
"quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros, bichos e outras
'avis-rara' desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematographico? (...) Ora
vejam se até não tem graça deixarem de filmar as ruas asphaltadas, os jardins, as
praças, as obras de arte, etc, para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de
cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa em um purungo, acolá, um bando de
negrotes se banhando nus e cousas deste jaez". A partir dos anos 60, há toda uma
crítica cinematográfica, com nítida sensibilidade para o universo da representação
popular, que se estrutura a partir de um sentimento misto de indignação e espanto,
direcionado a este contexto ideológico predominante no final dos anos 20. Esta
posição é clara, por exemplo, em Humberto Mauro, Cataguase e Cinearte, livro de
1974, onde Paulo Emílio Salles Gomes estabelece o tom crítico em relação ao viés
racista de algumas posições da CINEARTE na década de 20. Podemos considerar,
portanto, este contexto como representante da primeira manifestação mais orgânica
da questão do popular no Cinema Brasileiro.
Esta visão negativa do popular não seria, no entanto, a única em nossa
história. Uma segunda expressão, também negativa, da cultura popular irá afirmar-se
nos anos 60. Neste recorte, marcado pela quadro ideológico do marxismo, a cultura
popular é vista como algo "alienado". Segundo esta visão, as expressões culturais do
povo serviriam, em sua grande maioria, como válvula de escape para as tensões
sociais, impedindo a tomada de consciência, por parte do povo, de sua condição de
excluído. A cultura popular alienaria o povo de uma visão do social que deixaria
evidente sua condição de explorado pelo capital. Manifestações culturais como o
carnaval ou o futebol são o alvo principal deste discurso que gira em torno do
conceito de alienação. Estas manifestações reificariam a atenção e a consciência
popular, deslocando participação popular e tomada de consciência de classe,
impedindo assim uma visão concreta e não distorcida do universo social da
exploração. Podemos, sem esforço, localizar esta visão nos escritos de Carlos
Estevam Martins, principal ideólogo das posições de setores influentes da esquerda
brasileira que, nos anos 60, dominavam a produção cultural nos chamados CPCs
(Centro Populares de Cultura) vinculados à influente União Nacional dos Estudantes.
A predominância, no início da década de 60, de uma visão negativa da
cultural popular é rapidamente deslocada por um discurso que afirma seu potencial.
Apesar de sua passagem relativamente rápida pelo cenário cultural, a visão da cultura
popular com motor da alienação, servindo de solo para posturas reacionárias, deixa
marcas profundas. Nos anos seguintes servirá de base para uma espécie de contra-
discurso que irá marcar o Cinema Brasileiro na década de 70, com reflexos até os
dias de hoje. Na realidade, mais do que uma visão negativa, temos aqui uma visão
instrumental da cultura popular. O objetivo central é a transmissão de um conteúdo
político à consciência popular, utilizando-se pragmaticamente suas manifestações
culturais. Para Estevam, a cultura popular é válida quando presta-se a ser um veículo
da mensagem revolucionária. Embora exista uma evidente atração pelo universo
popular, persiste uma extrema desconfiança para com as formas autônomas de
expressão do povo. A afirmação da cultura popular com "alienada" parece ser o
último discurso onde classe média produtora de cinema consegue afirmar um "saber"
sobre este outro que é o povo. Este "saber" é a exatamente a sua visão de uma praxis
revolucionária que deve ser didaticamente transmitida ao povo. O rápido
deslocamento deste quadro ideológico é decorrência dos questionamentos
epistemológicos pós-estruturalistas que atravessam as ciências humanas nos anos 60.
Já no final da década, parece ficar cada vez mais difícil afirmar um saber sobre a
alteridade social, seja ela índio ou povo. O "saber social" para uma praxis
revolucionária trazia uma certa inocência: a dos jovens revolucionários de classe
média que, a partir de um ponto de vista privilegiado, acreditavam poder definir o
que é ou não cultura popular.
Esta visão marca o primeiro Cinema Novo, sendo evidente em filmes como
Cinco Vezes Favela, produzido pela UNE, União Nacional dos Estudantes, órgão
sindical dos estudantes brasileiros. Não é difícil encontrar sua também sua influência
dispersa em obras centrais da primeira metade dos anos 60, como Barravento, de
Glauber Rocha. Temos nesta obra um embate cheio de ambigüidades e oposições
entre a visão marxista do campo social e a cultura popular espontânea. O dilema
apresentado pelo fato da religião popular do candomblé (um sincretismo afro-
católico) ser algo que potencialmente aliena e impede a consciência popular, talvez
seja o principal móvel do filme. Este discurso da cultura popular como algo alienante
é característico dos Centros Populares de Cultura Apesar de serem conhecidas as
arestas existentes entre o CPC e o grupo central do Cinema Novo, é nítida a
influência deste estigma alienador da cultura popular nos jovens cineastas. E é esta
influência que irá aparecer como elemento central no sentimento de culpa e má-
consciência com relação a esta cultura popular, que encontramos presente na obra
madura de alguns destes cineastas. As filmografias de diretores como Cacá Diegues,
Nelson Pereira dos Santos e mesmo Glauber Rocha, têm em seu eixo uma constante
necessidade de reafirmação da negação deste período, em que a cultura popular era
vista enquanto potência alienadora de uma praxis social responsável. Toda uma
geração flertou com esta idéia e a forte carga positiva que a cultura popular adquire,
a partir do final dos anos 60, leva, no descompasso entre os dois momentos, a um
regime laudatório da representação popular. Neste regime laudatório, podemos
distinguir um contradiscurso que traz embutido a má-consciência, gerada pelo fato de
um dia ter existido dúvidas sobre as potencialidades desta cultura popular.
Ainda no cinema brasileiro, podemos distinguir um terceiro quadro na
representação da cultura popular. Trata-se do conjunto de filmes que trabalha com o
popular enquanto expressão folclórica. A visão do popular aqui é positiva,
configurando-se em um misto de exotismo e exibição de costumes típicos. As
expressões do popular que encontramos em filmes de gênero (como o cangaço), em
filmes da produtora Vera Cruz (como em Caiçara, Sinhá Moça ou O Cangaceiro) ou
em obras como O Pagador de Promessas (direção de Anselmo Duarte) ou Orfeu do
Carnaval (Marcel Camus), possuem o traço comum de representar a cultura popular
de modo folclórico. A partir dos anos 50 a representação da cultura popular deixa
distante o viés negativo, para afirmar-se como um modo de exibição do que é
exótico. Neste exotismo, a cultura popular é vista de forma distanciada, mas não
negativa. A exibição da cultura popular obtém forte repercussão internacional,
trazendo para o Cinema Brasileiro um reconhecimento antes inexistente. Dizemos ser
esta uma representação folclórica do popular, em função da forma de representação
exibicionista. A narrativa interrompe a ação ficcional para interpor longas cenas
descritivas, onde a tradição popular-folclórica é exibida, sem que haja propriamente,
em termos da intriga, uma motivação para tal. A narrativa dos filmes musicais
hollywoodianos pode ser citada no horizonte de um parentesco estrutural. Há, nestes
filmes, um certo deslumbramento com as formas da cultura popular. Estão ausentes
as dimensões da culpa ou má-consciência pela apropriação da cultura de "outrem",
mencionadas atrás. A cultura popular é apresentada de modo distante e objetivo,
colocada sob a lupa da câmera para ser ampliada. Predomina o tom de se mostrar o
lado exótico e desconhecido da cultura de "outrem". Esta ênfase na constituição
exótica compõe o centro do aspecto "folclórico", através do qual a cultura popular é
representada.
Esta exibição do popular como algo folclórico tem seu período histórico
restrito entre o início dos anos 50 e meados dos anos 60. Aos poucos torna-se uma
manifestação tardia, e muitos cineastas que nela investiram são pegos de surpresa
com o deslocamento deste eixo ideológico. A constelação ideológica dominante no
final da década de 60, próxima à geração cinemanovista e à emergência da contra-
cultura, encara criticamente tanto a representação folclórica do popular quanto sua
visão como fator de alienação. Dentro deste quadro ideológico, mostrar o povo não
parece ser mais suficiente. Questionamentos próprios ao estatuto do sujeito na
representação, atingem de modo difuso o horizonte ideológico da cultura brasileira.
Representar o povo não é mais motivo para vangloriar-se, ainda mais se nesta
representação está embutida a visão da cultura popular como algo exótico, a ser
exibido numa bandeja. Conforme já mencionamos, ao nos aproximamos do final da
década de 60, também é criticada a postura arrogante de se designar a representação
do popular como alienada. Os questionamento das noções de saber e poder, passam a
ocupar o centro das preocupações, para além dos conteúdos propriamente que a
representação do popular expressa. O eixo ético para se representar o popular não
mais se refere ao conteúdo ideológico expresso, mas ao recuo do sujeito que sustenta
a representação. É este recuo que irá ser valorizado positivamente. O movimento
seguinte, que vem colado a estas formulações, é o da afirmação da impossibilidade
de se representar o popular, seguido por diversos filmes onde cai sobre o
cineasta/personagem de classe média a culpa e a má-consciência pela assunção da
representação de algo que não lhe é própria. Estamos aqui plenamente imersos no
que consideramos o veio ideológico dominante do Cinema Brasileiro na segunda
metade do século, inclusive na chamada produção da "retomada" na década de 90. A
questão que se coloca, passa a ser a de representar esta alteridade que é cultura
popular, a partir de um ponto de vista que deve, inevitavelmente, assumir esta cultura
enquanto cultura de "outrem". A boa intenção da minoria/mesma/classe média não
dilui a culpa pela assunção da representação da maioria/outrem/povo. Pelo contrário,
é esta culpa que a dimensiona. Vejamos como este quadro se delineia, de modo mais
concreto, através de alguns exemplos.
Um dos momentos mais significativos dos dilemas deste horizonte ideológico
é o manifesto "Uma Estética da Fome" de Glauber Rocha. "Uma Estética da Fome"
foi apresentado inicialmente em Gênova, na Itália, em janeiro de 1965, tendo sido
publicado no mesmo ano pela Revista de Civilização Brasileira, uma importante
publicação da época. A proposta do diretor é fazer com que a dimensão "popular"
incida na própria estrutura narrativa cinematográfica, rompendo com o classicismo
de origem hollywoodiana. O horizonte da literatura de cordel e do circo -universos
não narrativos onde representações alegóricas podem ser trabalhadas- surgem como
alternativas a serem pesquisadas para este trabalho. Indo além, o manifesto "Por uma
Estética da Fome" irá colocar-se frontalmente contra a representação folclórica do
popular, servida em bandeja para a fruição da boa consciência do público burguês. A
proposta do documento é trazer para a tela uma representação miserável, agressiva,
deste universo popular que em si mesmo é visto como violento: "only a culture of
hunger, weaking its own structures, can surpass itself qualitatively; the most noble
cultural manifestation of hunger is violence". Glauber enfatiza que a própria forma
narrativa deve embutir esta violência do popular, impedindo (vislumbramos Bretch
no horizonte) os procedimentos de identificação do espectador. Um cinema
autenticamente popular deve buscar combater a fruição ou a contemplação da cultura
popular enquanto "a strange tropical surrealism". A referência ao universo folclórico
dos filmes da Vera Cruz é nítida. A metodologia para tal não deixa dúvida sobre o
tipo de representação proposto carregado de violência quando ao conteúdo
representado e quando à forma narrativa. Somente a violência narrativa pode quebrar
o charme do popular folclórico e constituir o popular enquanto cisão revolucionária:
"the love that this violence encompasses is as brutal as the violence itself, because it
is not a love of complacency or contemplation buth rather of action and
transformation". O resultado prático desta proposta estética, de uma estética da
miséria e da fome são filmes "sad, ugly (...) desesperate, where reason does not
always prevail". É nítida a distância que o Cinema Novo, e em particular Glauber,
toma, neste momento, para com a representação do popular presente em filmes da
Vera Cruz ou com o popular que encontramos em Orfeu do Carnaval, obra muito
influente na época e combatida de modo unânime pela geração cinemanovista.
Significativo do mal estar que "Uma Estética da Fome" sintetiza é o filme Terra em
Transe de Glauber Rocha, elemento chave para a compreensão deste contexto
ideológico. Nele o protagonista, Paulo Martins, vê-se a volta com os dilemas
envolvidos na assunção da representação da vontade popular. A cisão entre o
universo do protagonista e o universo popular é nítida e marca a constatação da
fratura social como fosso intransponível. A distância para com o popular (às vezes
carregado de desprezo) traz em si mesma o desespero do personagem Paulo Martins,
carregado de culpa e má-consciência. Em um momento chave do filme Martins tapa
a boca de um líder popular e traça uma série de observações desabonadoras sobre sua
capacidade revolucionária. No momento seguinte, afunda-se em dilemas existenciais
pelo desprezo com que trata e vê o universo popular. Este é o dilema hamletiano da
primeira fase da obra de Glauber Rocha que se estende até o final da década (e o
exílio) com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Também a análise de
um personagem chave da obra glauberiana como Antonio das Mortes, e sua
evolução/recorrência nos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol e Dragão da
Maldade Contra o Santo Guerreiro, caminha de modo nítido para o constelar deste
sentimento de angústia existencial e culpa em representar ou advogar a causa
popular, enquanto modo de expressão de "outrem". A proximidade com a alteridade
popular traz, na obra de Glauber, um misto de admiração e estranheza, proximidade e
distância, admiração e desprezo ("este é o povo ? xxxx diz Paulo Martins) carregada
de mal estar. Contemporâneo a este contexto, e elemento chave para se compreender
a constelação ideológica do período, é o livro Brasil em Tempo de Cinema (com
primeira edição em 1967) de Jean-Claude Bernardet. Mergulhado em sua época,
Brasil em Tempo de Cinema é um livro militante, que de forma acusatória aponta
para a cisão de classe na representação do popular e para impossibilidade ideológica
da assunção de "outrem". O discurso crítico do livro está imerso em uma primeira
sensibilidade para o quadro ideológico do pós-estruralismo, em seu questionamento
característico da noção de sujeito e saber. A idéia central do livro é que o cinema que
se busca popular é impossível, na medida em o fosso entre o mesmo/classe média e o
outrem/povo é um fosso epistemológico impossível de ser transporte. A postura ética
estaria no recuo do sujeito da representação e não na tentativa (que Bernardet
localiza em obras chaves da época) de se assumir a voz de outrem e lhe conferir,
nesta assunção o real estatuto "popular". O questionamento do "saber" deste
mesmo/classe média sobre o que é o "autêntico" popular produzido pelo
outrem/povo, constitui o eixo deste livro, que em vários sentidos dialoga e antecede
com uma obra chave com Terra em Transe.
Ambas as obras estruturam-se de modo a apontar em uma mesma direção: à
impossibilidade da representação do popular. O fosso agora é absoluto e
intransponível. A única saída seria dar câmeras e meios para o próprio povo construir
sua representação. A classe média que faz cinema no Brasil deve-se calar ou mudar
de temática, idéia que implica em um grande vazio. A cobrança para com as
tentativas de se representar o povo, no lugar do próprio povo, geram um sentimento
de má-consciência e culpa que perpassa o cinema brasileiro da época. O clima de
desespero é acentuado pela instauração de um regime político autoritário. No final
dos anos 60, os filmes "sad, ugly, desesperate", a que se refere Glauber, são a grande
maioria no Cinema Brasileiro. Também é desta época o movimento conhecido como
Cinema Marginal, onde estes elementos são radicalizados ao extremo. Gritos de
horror gratuito, agonias prolongadas, representações disformes, imagens abjetas,
sangue e dilacerações percorrem a tela de modo reiterado. A representação do
universo do desespero é detalhada e descritiva, carregada ao extremo. A consecução
narrativa fragmenta-se completamente. É este sentimento da impossibilidade da
representação do popular que envolve e dá origem ao que chamamos por Cinema
Marginal, produção que estende-se no Cinema Brasileiro de 1968 à xxxxxxxxxxx.
A questão do popular retorna com toda intensidade no cinema brasileiro
contemporâneo, adquirindo caracteres particulares. Em diversos filmes do cinema da
retomada, podemos sentir a má-consciência que cerca a representação do popular
deslocando-se da constatação da fratura social, para uma acusação que abrange a
nação como um todo. Esta acusação configura o que poderíamos chamar de um
"estatuto" da incompetência. O estabelecimento deste estatuto possui, como traço
definidor, um certo regozijo em sua constatação. Não estão mais em jogo agentes
individuais que nutrem algum tipo de dilema ao lidar com a fratura social (como os
dilemas épicos dos grandes personagens glauberianos, Paulo Martins e Antônio das
Mortes). O grande vilão aqui é a nação enquanto totalidade, de modo indistinto.
Especificamente, é o lado institucional do país que aparece acusado. A polícia, em
destaque, é representada invariavelmente como incompetente, corrupta e sórdida, do
mesmo modo que o sistema institucional de atendimento hospitalar, de limpeza
pública, de administração, etc. Existe um certo regozijo na constatação de nossa
incompetência, ao qual acresce-se o sentimento de inevitabilidade do caos. Como
contraponto à esta constatação, em diversos filmes da retomada, surge a figura do
personagem estrangeiro, geralmente um anglo-saxão, que a tudo assiste de um ponto
de vista privilegiado, ponderando com frieza o quadro caótico que lhe é apresentado.
O personagem anglo-saxão serve como ponto de comparação para a configuração da
baixa-autoestima, medida da incompetência nacional. Este sentimento de regozijo da
incompetência, e o deslumbramento em exibi-la à autoridade estrangeira, podemos
designar através do termo "narcisismo às avessas", talvez uma forma contemporânea
de nacionalismo. O termo é importado da retórica de Nelson Rodrigues, que usa-o
para descrever a alma do brasileiro a partir de crônicas escritas sobre futebol. A
facilidade e o prazer perverso que o brasileiro sente em vaiar a própria seleção
(figura especular de realização egóica) surge, para o dramaturgo, como figurando
uma espécie prazer na auto-flagelação. A sensibilidade do escritor é rápida ao
detectar este veio da nacionalidade, talvez relacionando-o com as cascatas
iconoclastas das quais seus textos são repletos. Rodrigues, com o veio agudo e azedo
que lhe é próprio, ainda acrescenta a expressão “complexo de vira-lata” para
descrever a relação com o alter-ego estrangeiro. Ao derrubar todo tipo de mito, ao
minar repetidamente qualquer ação afirmativa, sobra ao prazer iconoclasta o ataque
ao próprio ego, que defende-se exibindo a incompetência da coletividade como algo
que lhe é exterior. Para reafirmar esta exterioridade, torna-se necessário marcar cada
vez mais a crítica acirrada e horizontal, de modo que a exclusão delineie-se por
completo, sem que seja possível a acusação de pertencimento. Tentando se
desvinculado do quadro negativo, o crítico contumaz parece dizer: "eu critico de
modo acirrado a nação, aí está a prova que devo ser considerado como exterior ao
núcleo criticado" (a expressão "só no Brasil....", designa bem esta postura). O
"narcisismo às avessas", na realidade, surge como resposta agressiva à uma
necessidade nacionalista insatisfeita. É uma forma contemporânea de se lidar com a
responsabilidade sobre fratura social que de diversas formas marca a sociedade
brasileira. A dicotomia "mesmo/classe média" e "outrem/povo" continua presente
aqui na forma da má-consciência. As necessidades de afirmação face a culpa social
expressam-se na acusação reiterada da nação incompetente, uma maneira de se
afirmar um território de exclusão, onde é possível traçar os limites da
responsabilidade social, no qual não nos incluímos. Vejamos como este quadro se
delineia no cinema da retomada, a partir de alguns exemplos concretos.
Central do Brasil parece ser um bom filme para começar este percurso.
Temos, de início, delineado com clareza os pólos classe média/popular: a
personagem protagonista (Dora) lê, escreve e locomove-se com agilidade na cidade
grande; as figuras populares sucedem-se em sua ingenuidade e analfabetismo. A má-
consciência de Dora para com o povo humilde (e, em particular, o garoto) é evidente
e sua oscilação constituirá o principal móvel dramático do filme. Na década de 90
não há combustível para a tragédia existencial-política com relação ao popular. A
ação política transformadora não está mais no horizonte, mas sim a figuração do
sórdido e da incompetência. Em Central do Brasil o movimento da narrativa é claro.
Parte de uma visão do país que é acentuada em seu negativismo, para em seguida
desenvolver um movimento de redenção pela catarse da piedade. O mais cruel dos
crimes (o assassinato de crianças pobres para extração de órgãos), surge como algo
corriqueiro na "central", no coração, do Brasil. Aos pequenos crimes de Dora
sobrepõe-se este, maior em escala, em cuja participação existe um "quê" de ação
cotidiana normal. Também na "Central do Brasil", o assassinato de crianças que
cometem pequenos furtos é corriqueiro. O motor da ação que irá configurar a má-
consciência de Dora é concebido para ser pesado ao extremo, refletindo a
necessidade de configurar um quadro forte de sordidez na qual a nação, de modo
passivo, está mergulhada. É importante mencionar a ausência de qualquer dimensão
institucional, que venha tencionar este quadro, combatendo de alguma forma os
crimes cometidos. É, no entanto, a partir deste fundo de poço, que a redenção
catártica terá espaço para emergir com toda sua força. Dos pequenos ao indizível
crime (repetindo: encaminhar uma criança para ser morta e ter seus órgãos
extraídos), Dora é movida pela má-consciência, figurando em si o sentimento de
classe dos cineastas (e de boa parte dos espectadores do filme) para com o universo
popular que circula na Central do Brasil.
Mas a figuração da má-consciência é em si mesma algo incômodo, se não há
um horizonte no qual possa ser resgatada. É a este resgate que dedica-se a segunda
parte do filme. Dora é purgada de suas oscilações sobre o sacrifício do menino (na
realidade, ela mesma entrega o menino para ser morto) na seqüência da procissão.
Nesta cena ela encontra-se mergulhada fisicamente no povo, embebida em sua fé,
compartilhando uma de suas manifestações culturais mais autênticas. A comoção
pessoal é vivenciada internamente e tem como resultado a conversão definitiva ao
menino. A virada é bem marcada e a dimensão conflitiva que impedia o
congraçamento com a causa popular desaparece do horizonte. Até a atriz Fernanda
Montenegro parece estar mais a vontade, agora, para realçar seu personagem.
Através da catarse pela piedade, explora-se o dilatado espaço entre a sordidez do
crime pensado e o tamanho da conversão à causa do menino humilde. O êxtase
concentra-se na cena da procissão, mas a figuração da piedade espalha-se pelo filme.
A catarse pela piedade é a forma através da qual a narrativa resgata a passividade
forçada dos elementos do universo ficcional para com a dimensão sórdida da nação,
que assassina suas crianças ou as trafica para o exterior. A nação sórdida e inviável
recebe o ônus de sustentar a conformação dos pólos extremos, necessários para a
figuração da catarse pela piedade, forma de redenção da má-consciência pela fratura
social incrustrada na representação do popular.
O sentimento da nação inviável face a fratura social surge também, com toda
sua evidência, em 16060, filme de Vinicius Maynard, onde em uma mesma mansão
são obrigados a conviver uma favelada, seus filhos e a família de um rico burguês.
Um quadro de sordidez atravessa horizontalmente os grupos representados. O
burguês manda matar o marido da favelada por engano e nutre um ambíguo, mas
presente, sentimento de culpa por isso (trata-se de uma representação encarnada da
má-consciência de classe). A favelada, no entanto, também dá o seu golpe
oportunista e sacrifica, até a morte, um de seus filhos, negando-lhe tratamento
médico oferecido pelo burguês. Seu objetivo é sair-se bem na história e para tal
consegue ter uma outra criança com o filho do dono da casa. Pequenos e grandes
crimes sobrepõem-se em um quadro onde predomina a falta de ética. Os personagens
são esboçados de modo bastante plano e repetem figuras esquemáticas e artificiais. A
configuração da redenção pela catarse da piedade da mulher favelada, ou pela
piedade de seu filho morto, não surge no horizonte do filme. Este apenas deixa
evidente o caráter horizontal e inevitável do oportunismo. O conflito de classes acaba
reduzindo-se a um conflito de golpes. Dentro do quadro esquemático dos
personagens, a tendência é de apresentar de um modo mais negativo o grupo
burguês. A reunião deste grupo em um jantar para os amigos, quando vão visitar os
favelados no porão, lembra, em sua tipificação forçada do burguês, alguns momentos
do filme em episódios da UNE, Cinco Vezes Favela. Também lá a tipificação surge
como um artifício narrativo, embora exista uma contraposição entre o tipo negativo
burguês e o tipo positivo do personagem popular. O significativo é que, agora, a
polaridade não mais existe: todos são sórdidos e oportunistas na nação inviável. A
preocupação está em delinear um quadro horizontal de sordidez.
Este panorama de oportunismo e corrupção percorrendo o conjunto das
classes sociais aparece também em Alô?!, comédia dirigida por Mara Mourão. No
filme, um alto executivo e sua mulher aplicam golpes diversos pelo país, ao mesmo
tempo em que são extorquidos por uma gama ampla de personagens subalternos.
Nenhum dos personagens possui referencial ético e o objetivo do filme parece ser o
de apontar para a abrangência desta falta de caráter, nas mais diversas instâncias da
sociedade brasileira. A empregada centraliza, em seu próprio interesse, um esquema
de extorsão do açougueiro através do controle de empregadas de outros
apartamentos. Seu sobrinho é um pequeno estelionatário que aplica um golpe em sua
própria patroa, que por sua vez rouba os clientes de sua butique. O patrão tem uma
conta escondida na Suiça, na qual deposita valores roubados a seu sócio, ao mesmo
tempo em que aplica golpes no mercado imobiliário. A corrente da corrupção é
onipresente em qualquer direção que se aponte e marca o horizonte de uma
inevitabilidade. Há, no entanto, um certo regozijo com este quadro. O riso de nossa
própria incapacidade, é algo presente de modo mais amplo em outras fases do
Cinema Brasileiro, sendo um motivo recorrente das chanchadas. Lá, no entanto,
surge de forma menos tensa, trabalhando com elementos mais pontuais. No quadro
atual, o riso maroto parece ter sido substituído pelo riso nervoso que encobre a
necessidade de acusação.
Há, no entanto, um ponto de referência que permanece incólume ao quadro
sórdido da nação inviável. É interessante notar como o personagem anglo-saxão
evolui de uma presença sempre negativa e conspiratória nos anos 60, para vir
ocupara um lugar central em filmes chaves do cinema da retomada. O personagem
anglo-saxão é agora o ponto de referência, o ponto cego para o qual exibem-se as
mazelas da nação inviável e de onde são emitidos julgamentos ponderados e irônicos
sobre estas. Este personagem ocupa uma posição central no universo ficcional de
filmes como O Que É Isso Companheiro?; Como Nascem os Anjos; Jenipapo;
Carlota Joaquina, princesa do Brazil; Bela Donna; Amélia e serve como parâmetro
para traçar os limites de exclusão da nação inviável. Na medida em que a fissura
social é escancarada com a figuração exponenciada da nação inviável e injusta, este
personagem anglo-saxão permanece como o ponto de referência para o qual o caos é
exibido. Dentro do movimento, esboçado acima, de recuperação catártica da má-
consciência pela figuração do popular, o personagem anglo-saxão surge neste filmes
como ponto ético positivo para o estabelecimento da identificação espectadorial.1
Tanto a recuperação catártica, como a identificação com o estrangeiro, surgem como
bóias salvadoras na figuração da nação inviável. O narcisismo às avessas parece não
poder cumprir a satisfação egóica de per si. A satisfação obtida na crítica da nação
incompetente e no exponenciar da fissura social, centra-se na possibilidade de, uma
vez afirmada a posição crítica, dela se excluir. A idéia é escapar do pertencimento ao
universo do que se critica pela evidência de que se está criticando. Uma vez colocado
fora do círculo o espectador pode rir de sua própria miséria. Este é o mecanismo de
identificação, própria ao narcisismo às avessas, que ajuda a compreender parcela
significativa da produção cinematográfica (e artística) brasileira contemporânea.
Cronicamente Inviável é o filme que consegue delinear de modo preciso este
clima, já sintetizado em seu título. A representação da incompetência atinge aqui
uma absoluta horizontalidade. Todos são acusados e não se abre uma exceção na
qual o espectador possa segurar-se, salvando qualquer intuito de identificação. Não
encontramos a porta para recuperação egóica pela catarse da piedade, conforme
delineada acima. Nem tão pouco a figura redentora do anglo-saxão, como ponto de
referência para o estabelecimento de uma postura crítica construtiva. A nação como
um todo é inviável e o filme vai percorrendo, um a um, seus agentes sociais,
querendo demonstrar esta tese. Do movimento sem-terra, passando pelas lideranças
indígenas, movimento negro, homossexuais, burguesia, professores, Ongs, centros de
caridade, projetos alternativos de recuperação de menores, etc., todos são reduzidos à
evidência da incompetência, do oportunismo e das intenções sórdidas. Os motivos
variam ligeiramente mas o horizonte é o mesmo: o de conformar a inviabilidade da
nação através do exibir da incompetência. Qualquer tentativa pontual de se lidar de
forma positiva com o caos social é deconstruída com uma ponta de prazer.
Encontramos aqui o movimento do narcisismo às avessas em sua forma mais clara.
No horror que a exibição horizontal da sordidez e da incompetência configura, resta
a negação de pertencimento à coletividade como estratégia de recuperação da auto-
estima. O filme proporciona a identificação à uma única postura que é a própria
atitude crítica, a mesma que é assumida pela enunciação narrativa. Esta parece ser a
única instância que permanece incólume, fora da roda. O mecanismo de recuperação
egóica é o descrito acima: uma vez que me identifico ao filme (enquanto postura que

1
No capítulo 8 (.xxxxxxxxxxxxx..........) de História do Cinema Brasileiro (ArtEditora, 2001) desenvolvo em
este mantém através da crítica acirrada) posso me excluir de qualquer pertencimento
ao universo descrito. A má-consciência pela fratura social, cada vez mais exposta,
resume-se a expô-la de modo naturalista e, através do regozijo com a incompetência,
identificar-se com quem vê de fora o quadro traçado. O narcisismo às avessas é uma
forma de resposta a um nacionalismo insatisfeito que tem com motor a inevitável
má-consciência ao lidar com o universo ficcional que gira em torno de personagens e
cotidiano popular. A nação incompetente é o alvo que permite o estabelecimento, na
outra ponta, do popular idealizado.
A relação entre a representação da nação inviável e a figuração exibicionista
da cultura popular, fica clara em uma análise mais próxima da obra de Carlos
Diegues na segunda metade da década de 90. Apesar de alguns interregnos nos anos
80, a questão da cultura popular sempre foi uma temática presente em seus filmes. O
tom fantasista, de conto de fadas, que percorre sua narrativa, agora adquire
maturidade e mistura-se dinamicamente a estruturas dramáticas carregadas de tensão.
A produção do segundo Orfeu e a visita ao universo da mitologia popular de Jorge
Amado (Tieta do Agreste) é significativa desta tendência. Quando a temática do
popular re-emerge com força no cinema brasileiro, encontra na sensibilidade estética
de Cacá um interlocutor privilegiado. Tieta (1996) é um filme que caminha
inteiramente nesta direção, sentindo, talvez em demasia, a intensidade de um
reencontro adiado. É tanta a necessidade de exibir a cultura fascinante do povo
nordestino que o filme acaba por configurar-se em um aglomerado de espetáculos
isolados, sem um fio condutor definido que os conduza. A trama é sacrificada à
exibição descritiva e à exaltação da nova atualidade dos mitos populares (inclusive
em termos de um interesse renovado do mercado internacional exibidor).
Orfeu (1999) é o segundo filme de Cacá na retomada (se não contarmos Veja
Esta Canção de 1992), e novamente nos defrontamos com a representação da cultura
popular compondo o eixo dramático do filme. É interessante notar a volta de Cacá
Diegues a uma obra (Orfeu do Carnaval, Marcel Camus) que, nos anos 50, serviu
como ponto de referência negativo para a geração cinemanovista. A representação da
cultura popular dentro do modelo que Orfeu do Carnaval assume é definida, na

mais detalhe as dimensões do personagem estrangeiro na cinematografia brasileira recente.


época, com adjetivos como "espetacular" e "alienador". O filme de Camus
conformou um consenso em torno de como não se devia tratar a cultura popular,
encarnando o criticado viés folclórico, mitificado pelo olhar estrangeiro. A retomada
por Diegues da mítica de Orfeu -a partir da peça de Vinícius de Moraes, Orfeu da
Conceição, que transfere o mito grego para o carnaval carioca-, é bem significativa
da retomada temática da cultura popular no cinema brasileiro do final de século.
Tem-se a impressão de um acerto de contas do autor com a visão da cultura popular
com algo alienador, e portanto negativa, que percorre o horizonte ideológico da
primeira metade dos anos 60. No segundo Orfeu, a representação do popular ressurge
em toda sua intensidade, agora atravessado pelas contradições dos 90. O clima leve
do primeiro filme é completamente deixado de lado e o que surge no horizonte é o
quadro negro da nação inviável. O controle do morro por gangs violentas de
adolescentes, envolvidos com o tráfico, contrapõe-se ao mundo idílico onde o mito
de Orfeu ainda tenta encontrar espaço para realizar-se. Tocar para o sol nascer,
dentro do quadro da nação inviável, pode parecer contraditório, mas o delicado tom
fantasista que percorre os filmes de Cacá faz aqui valer sua força. Misturam-se mito,
fantasia e realidade crua. A nação inviável surge representada novamente pela polícia
corrupta e insensível. Os preconceitos repetidos pelo sargento que comanda as ações
policiais são frisados de modo a marcar o quadro negativo da interferência
institucional no morro (Orfeu afirma explicitamente que este tipo de polícia é "a
única coisa do estado que sobe o morro"). O sargento é preconceituoso, violento e
advoga, entre outras coisas, a esterilização dos pobres e seu extermínio. A cultura
popular aparece como manifestação idílica de resgate da identidade, a partir da qual
instaura-se o mito de Orfeu e o tom fantasista que permeia o universo ficcional
positivo.
Temos, em Orfeu, um quadro significativo da dimensão que tem a
recuperação da representação da cultura popular para o cinema da retomada. Está
ausente a visão purista desta cultura, como matéria prima para a constituição de uma
narrativa nacional, que oponha-se à narrativa clássica de tipo hollywoodiano. A
abertura para o diálogo com elementos estrangeiros é louvada. Ao mesmo tempo,
deve-se realçar a forte presença da cultura popular como manifestação mais legítima
do povo. É ela que estabelece um eixo através do qual uma identidade positiva da
favela pode construir-se, opondo-se à coletividade institucional incompetente e ao
arbítrio dos grupos armados do tráfico. A favela idílica do primeiro Orfeu desaparece
para dar lugar à representação da nação inviável, mas o lado idílico da cultura
popular permanece, mesmo dentro da realidade sórdida. Este é o deslocamento
central exercido, no mito, pelo segundo Orfeu. A cultura popular (em particular o
samba/carnaval), continua idealizada em sua pureza, não mais com raízes
necessariamente nacionais, mas servindo como ponto de referência ético dentro do
quadro social de sordidez em que se insere. Outro elemento caro à representação da
cultura popular, a religião, aparece também tematizada com vigor no filme. O pai de
Orfeu converte-se ao fundamentalismo protestante e a mãe permanece adepta das
religiões com fortes raízes africanas, como o candomblé. Desde os primórdios do
Cinema Novo, o candomblé configura-se como elemento central na representação da
cultura popular (já em Barravento podemos sentir a origem protestante de Glauber,
debruçando-se de modo ambíguo sobre a intensidade religiosa da mitologia afro-
brasileira). Em Orfeu, o fundamentalismo protestante aparece negando a cultura
popular, identificada, de modo positivo, com o candomblé. Em pleno desfile da
escola, o pai de Orfeu permanece rezando isolado. Também não bebe mais, nem
participa de rodas de samba. Nas cenas finais o conflito vem a tona com cada
membro do casal solicitando a ajuda de uma entidade divina diferente, face a
desgraça que abate-se sobre Orfeu. Em Orfeu sentimos um Cacá Diegues maduro (os
primeiros 20 minutos do filme são de uma intensidade extraordinária), navegando
com firmeza em uma temática que lhe é particularmente próxima. O reencontro com
o universo do popular parece reciclar uma inspiração que estava contida e abre para o
diretor um veio estético a ser explorado de modo pleno. Dos excessos de Tieta ao
domínio mais contido em Orfeu, é a este referente que Cacá, como diversos outros de
sua geração, retornam como a uma aparentemente inesgotável fonte de inspiração.
Procuramos traçar neste ensaio um breve panorama da representação do
popular no cinema brasileiro. Alguns traços estruturais são recorrentes: o popular
como alteridade, como realidade de outrem e a presença recorrente, expressa de
modos diversos, de um movimento de má-consciência na representação desta
alteridade. Má-consciência que expressa-se na própria constituição do universo
ficcional e nas formas de identificação, abertas pela narrativa, ao espectador. Da
tosca visão do popular negativo nos anos 20 e 30, passando pela atração do exotismo
no filmes da Vera Cruz e pelos dilemas existenciais de Glauber Rocha, a
representação do popular no Cinema Brasileiro reafirma seu papel central em nossa
filmografia na década de 90. Em filmes de Walter Salles e Cacá Diegues podemos
perceber este resgate, através de mecanismos catárticos que exploram a polaridade
inversa estabelecida entre o quadro sórdido da nação e a figuração do elemento
popular. No âmago do cinema da retomada está a busca de um redimencionamento
da relação de má-consciência para com a fratura social que caracteriza a sociedade
brasileira. Também, sintomaticamente, permanece neste cinema algo que poderíamos
identificar como uma dificuldade, ou incômodo, em ver nossa imagem representada
na tela. O quadro não apresenta traços muito distantes daqueles expressos por Salles
Gomes há 30 anos. O diferencial está em que, hoje, a dificuldade manifesta-se não
mais através de uma negação em primeira instância do que é exibido. Revela-se, no
entanto, através de um mecanismo mais complexo de identificação, estabelecido a
partir da fixação de um "foco narrativo crítico" que perpassa o conjunto do filme
como uma postura esperta. O espectador, então, passa a identificar-se com o foco
"esperto" propriamente, o que garante sua adesão à coletividade dos críticos e
permite sua exclusão cômoda do universo negativo descrito. A questão da
representação do popular continua a ser, no cinema brasileiro contemporâneo, o eixo
através do qual circulam suas obras mais significativas.

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