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Uma análise sobre Copacabana Mon Amour (1970) de Rogério Sganzerla

Discente: Roberto de Paula Junqueira Netto

O objeto central desse trabalho é o filme Copacaba mon Amour (1970) de


Rogério Sganzerla. A película faz parte dos filmes da produtora Belair (fundada
pelos diretores: Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, e a atriz: Helena Ignez) que
em apenas dois meses no ano de 1970 realizou seis longas-metragens e um
curta-metragem, mas este só foi finalizado em 2005. Os filmes da Belair, deste
modo, destacam-se pela urgência na realização e pelo seu caráter independente
de uma indústria cinematográfica, tanto em seu caráter na produção, mas
também na distribuição desses filmes.

Por um lado, trata-se de um produto que abarca características cruciais


no campo da cultura brasileira, sendo considerada uma expressão da conjuntura
política emblemática pós-1968 que marcou a produção artística e cultural e que
delimitou novos paradigmas no campo da política e da estética. O filme aglutina
elementos do cinema marginal, corrente cinematográfica que durante toda a
década de 1960 realizou transformações na maneira de se fazer cinema no brasil
estabelecendo uma postura estética de vanguarda. Assim, uma análise mais
detida dessa obra deve considerar as questões específicas da linguagem
cinematográfica, bem como questões extra fílmicas de natureza sócio-históricas
ligadas ao contexto de produção.

Essa conjuntura de transformações culturais e estéticas dos anos 1960


marcou o cinema brasileiro, que internalizou a crise política da época. O cinema
novo, ao que pese a diversidade desse movimento, de modo geral seguia uma
vertente de estrutura de sentimento que Marcelo Ridenti (2010) denominou como
“brasilidade revolucionária”, entendida como a construção de um ideário, por
meio de ideias e sentimentos, de que estava em andamento uma revolução, em
cujo devir os artistas e intelectuais teriam um papel essencial.

No entanto, com o golpe militar de 1964 e sobretudo com o decreto do AI-


5 em dezembro de 1968, essa estrutura foi profundamente abalada. Os
cineastas que não cabiam sob o “guarda-chuva” do cinema novo e que
criticavam as relações deste movimento com a Embrafilme, principalmente por
acreditar que estes não seguiam mais uma estética da agressão, mas buscavam
conciliar com o Estado brasileiro para o financiamento de seus filmes. De acordo
com Caroline Leme:

maior parte dos remanescentes do Cinema Novo abrigavam-se na


estatal Embrafilme em busca da industrialização do cinema brasileiro
e do alcance da audiência popular, enquanto o Cinema Marginal
radicalizava a expressão do sentimento de exaspero diante do contexto
político de modernização acelerada e intensa repressão, exibindo
imagens de agressão, impotência e difuso desconforto. (2011, p.2)

Dessa forma, em meados da década de 1960 um conjunto de jovens


diretores, que inicialmente flertavam com o grupo cinemanovista, acentua e
radicaliza a estrutura cinematográfica. Conforme indica Fernão Ramos (1987,
p.177): “abandonam os dilemas do engajamento e incrustam-se na exasperação
no deboche e na curtição”. Esse foi o caso do diretor do filme Sem Essa, Aranha,
uma vez que Rogério Sganzerla, quando ainda cursava as faculdades de Direito
e Administração, fazia críticas cinematográficas no Suplemento Literário do
jornal O Estado de São Paulo elogiando os filmes cinema novistas; porém,
quando começa sua carreira fílmica, acaba gradativamente se distanciando do
grupo.

De acordo com Fernão Ramos: “a parcela mais jovem da geração de 1968


rompe com os precursores cinemanovistas por uma questão de espaço no
mercado cinematográfico e recursos para produção, ou para assumir opções
estilísticas mais radicais” (2018, p.178). Nesse sentido, Rogério Sganzerla, Julio
Bressane e Helena Ignez criam a produtora imbuídos de um sentimento de fazer
cinema a qualquer custo, colocando até mesmo a suas vidas em risco, uma vez
que seus filmes não estavam de acordo com os valores da ditadura militar.

Em consequência do clima de perseguição política e o aumento das


restrições culturais no Brasil, a Belair seguiu o caminho da clandestinidade,
optaram por não submeter seus filmes aos órgãos de censura, o que os impedia
de serem reconhecidos oficialmente. Seus filmes, portanto, não tiveram sua
circulação comercial e não participaram de festivais de cinema. De acordo com
Estevão Garcia (2018, p.417) “seus filmes eram exibidos em sessões fechadas
ou em cinematecas, como o caso da Belair, que teve seus longas exibidos na
Cinemateca do Museus de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro”. O filme,
atualmente, está disponível na plataforma Itaú Cultural Play, sendo que a
película passou por uma completa restauração, patrocínio do Programa
Petrobras Cultural, e conta com uma qualidade de imagem e som.

Copacabana mon Amour: a história da miséria

O filme de Sganzerla é feito em Cinemascope1, essa tecnologia permitiu


as filmagens panorâmicas cujas dimensões eram maiores do que a das telas
comuns. O diretor utiliza-se desta para compor as cenas que ocorrem, em sua
maior parte, em locais públicos: a favela, as ruas, a praia, os morros são tomados
como cenários para o filme. Nesse sentido, a mise em scène do filme está em
contato com a “realidade”, ou seja, a atmosfera carioca que inclui a arquitetura,
os transeuntes, os moradores da comunidade e a geografia natural da cidade.

A diegese é sobre o cotidiano de Sônia Silk (Helena Ignez) e seu irmão


Vidimar (Otoniel Serra), empregado doméstico e homossexual. A personagem é
uma mulher que mora na comunidade do Rio de Janeiro e sonha em ser cantora
na Rádio Nacional, porém enquanto esse sonho não se torna realidade ela se
prostitui em Copacabana para conseguir sobreviver. O elenco ainda conta com
Paulo Vilaça interpretando Dr. Grilo, o patrão de Vidimar, Guará fazendo um
papel de trapaceiro, com participação especial de Lílian Lemmertz, Joãozinho da
Goméia e Laura Galano. O filme, ainda conta com música original de Gilberto
Gil, a direção e roteiro de Rogério Sganzerla.

Sônia é de uma família paupérrima, em sua primeira interação com sua


mãe, esta grita que estão “duros e subindo pelas paredes de fome” e ela não faz
nada para mudar tal situação e proíbe de cantar na rádio nacional e a chama de
“macaca de auditório”. Sua mãe ainda afirma que seus filhos estão possuídos
pelo demônio, sendo que o único que presta vai para o quartel e a deixa sozinha.
De acordo com Estevão Garcia:

Enquanto os filhos Sônia e Vidimar pertencem ao exterior, logo, ao


mundo, ela, como guardiã da família e do lar, confina-se no interior de
sua casa. Por não cumprirem suas tarefas de levar comida para casa,
o que apenas a adesão ao mundo do trabalho poderia permitir, a mãe
os considera imprestáveis, ao contrário do terceiro filho que, apesar de
deixá-la sozinha, trabalha e se encontra no quartel. (2018, p.130)

1A lente cinemascope permite que a projeção a tela dos filmes sejam projetadas em 35mm, com
um ângulo dilatado gerando um efeito retangular na imagem em oposição à tela quadrada.
Podemos notar que Sganzerla buscou dar voz à personagens “fora dos
padrões”, que muitas vezes se encontravam à margem da sociedade. Em plena
ditadura militar a Belair buscou valorizar a vida dos “marginalizados”. Estes não
o foram por sua própria vontade, mas por não se encaixar na ideologia da
“tradicional família brasileira” que os militares tanto almejavam. De acordo com
Bronislaw Baczko:

A estrutura inteligível de toda a actividade humana provém do facto de


os agentes sociais visarem um sentido na sua conduta, regulando os
seus comportamentos recíprocos em função desse. O social produz-
se através de uma rede de sentidos, de marcos de referencia
simbólicos por meio dos quais os homens comunicam, se dotam de
uma identidade colectiva e designam as suas relações com as
instituições políticas, etc. A vida social é produtora de valores e normas
e, ao mesmo tempo, de sistemas de representações que as fixam e
traduzem. Assim se define um código colectivo segundo o qual se
exprimem as necessidades e as expectativas, as esperanças e as
angústias dos agentes sociais. (1985, p.307)

Ao escolher o homossexual, a prostituta, o bandido, o miserável como o


protagonista das histórias nos filmes marginais, Sganzerla deixava claro que não
concordava com a atmosfera brasileira dos anos 1970. Tanto em sua parte
política, mas também, como deixou claro em diversos comentários na imprensa2,
sobre a cinematografia brasileira. Para Fernão Ramos, além das questões
estéticas e políticas, essa disputa continha também um interesse no espaço de
mercado, visto que o diretor marginal representava o cinema paulista e isso não
foi bem-visto entre os integrantes do Cinema Novo cujo integrantes, em sua
maior parte, eram do Rio de Janeiro3. O termo cultura política para Rodrigo Patto
Sá Motta significa um:

“conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas


partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma
identidade coletiva e fornece leitura comuns do passado assim como
fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”.
(MOTTA, 2009, p.21.)

2 Rogério Sganzerla junto com Helena Ignez e Julio Bressane declara uma guerra aberta contra
o Cinema Novo. Em uma famosa entrevista ao Pasquim Sganzerla caracteriza o movimento
como conservador, de direita e paternalizador. SGANZERLA, Rogério; IGNEZ, Helena. A mulher
de todos e seu homem. Pasquim, Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 1970.
3 Em diversas entrevistas Helena Ignez afirma que o filme Bandido da luz vermelha foi boicotado

pelos integrantes do Cinema Novo por uma espécie de “ciúme” por um “cineasta mais jovem”
que “surgia de outro ambiente”
Utilizando o termo de cultura proposto pelo autor, os diretores marginais
se relacionam com uma “estética do lixo” como subversão dos padrões
estabelecidos pelo Cinema Novo. Ângela José (2007, p.159) afirma sobre o
cinema marginal: “Para além da militância política, existiam as prostitutas,
bandidos, homossexuais, drogados, pervertidos, degenerados. Era a estética do
grotesco, onde o kitsch, o burlesco, as imagens sujas e desfocadas
predominavam”. Se levarmos em consideração a linguagem midiática proposto
por Ancízar Narváez Montoya (2004) composta pela oralidade (o linguajar),
iconicidade (a aparência), rituais (as representações culturais da sociedade) e a
história (a narrativa dos personagens), o cinema marginal não se encaixa com a
lógica do agradável ou dos bons costumes. Sua estética, no entanto, busca a
agressão ao espectador, tanto na diegese das películas, mas também na
composição dos planos-sequências. A tática adotada pela Belair foi o “choque
profanador”, uma tendencia cara à arte brasileira dos anos 1970 no que diz
respeito à superação do modelo convencional na relação espectador/obra.

Em Copacabana mon Amour Sganzerla brinca com os modos de encarar


a cultura, tanto para o cinema marginal quanto para o cinema novo. Ainda de
acordo com a autora, a proposta do cinema marginal era o grotesco, enquanto o
cinema novo investia na estética da fome, esse “comprometido com as questões
culturais, com nossas raízes e que buscava uma linguagem brasileira para
retratar nossas histórias e costumes”, um cinema culto, marcado por uma
posição política nitidamente de esquerda, enquanto aquele era “a carnavalização
da cultura brasileira”, “uma cultura que apesar de reivindicar o status de culta,
não passava de uma cultura marginal, tupiniquim, antropofágica”.

Isso não significa diz que o filme é apolítico, Em Copacabana mon Amour
Sganzerla se inspira no pensamento de Frantz Fanon, mais precisamente no
livro “Os condenados da terra”. Podemos detectá-lo tanto na caracterização dos
personagens – que se baseiam nas relações de patrão/empregado - quanto na
composição dos diálogos. De acordo com Anna Karinne Ballalai:

Ao adotar as ideias de “descolonização do ser” preconizadas por


Fanon em os condenados da terra, Sganzerla está pondo em prática
um estilo de direção que possibilita um processo de “descolonização
do ator”, ao subverter a lógica da narrativa e enfatizar “o ser em
situação”. (2014)
Nesse sentido é o ator que dá sentido à ação, o diretor apenas registra a
performance, mas não tem controle da cena. É comum, por exemplo, o estilo
happening no qual a interação dos atores não acontece de forma totalmente
planejada, mas encontra-se um elemento de improviso, espontaneidade ou até
mesmo a possibilidade de interagir com transeuntes que observam a cena. Na
figura 1 Sonia Silk desce as escadas de uma comunidade no Rio de Janeiro,
cantando, a música Escandalosa de Emilinha Borba, e interagindo com uma
moradora local que parece não entender muito o que está acontecendo. Já na
figura 2 a personagem performa um transe espírita, os observadores da cena
tentaram amparar a atriz sem se dar conta de estar no meio de uma cena de um
filme.

Figura 1 (38.57min)

Figura 2 (47.25min)

Figura 3 (54.57min)

Essa, de acordo com Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira (2021) foi


uma estratégia do ator experimental de se confrontar com o mundo real através
da interação forçada com transeuntes e com os objetos que escapam o controle
do filme. Isso fica claro na figura 3, na qual Sonia Silk arruma seus cabelos na
viatura da guarda civil do Rio de Janeiro. Assim a exploração do espaço cênico
acontece na medida em que a performance do ator, com a liberdade de seus
gestos, rege o plano-sequência. Os autores ainda afirmam que:

Essas pessoas com quem Helena e os demais atores do filme


interagem são corpos societais, registrados nos espontâneos
momentos da vida cotidiana. Suas reações e olhares surgem do
inesperado da situação, da espécie de farsa circense levada para o
meio da rua, do grotesco e repulsa que alguns daqueles gestos, ainda
que pueris, revelam. (2021, p.91)

De volta à narrativa, a primeira cena do filme ocorre em um terreiro de


candomblé onde acontece um ritual cerimoniado por Joãozinho da Goméia
dedicado a personagem de Helena Ignez. Sonia Silk procura ajuda para que se
livre dos espíritos que a persegue. A câmera busca os moradores observando a
cena e os coloca dentro do filme, prática comum durante toda a película o diretor,
por vezes parece se distrair com o universo de Copacabana, com as belezas
naturais, as inovações tecnológicas como os carros, os bondinhos e a arquitetura
do Rio de Janeiro, mas sobretudo com as pessoas que habitam esse universo.

Figura 4 (02.34 min)

Figura 5 (31.53 min)

Os personagens não possuem uma história complexa. O filme, no


entanto, busca a história da miséria vivenciada no cotidiano de Sonia Silk, seu
irmão Vidimar e o trapaceiro interpretado por Guará. Sganzerla evidencia isso
em seu filme deixando claro que Copacabana é um microcosmos dividida em
duas partes opostas. Uma dos condenados, figura 6, composta pela favela, a
miséria, a sujeira, barracos miseráveis e composta por moradores negros,
pessoas usam roupas velhas e desgastadas, com alta precariedade para
conseguir elementos essenciais, como água encanada. E outra Copacabana
figura 6, a do colono, encontramos as ruas asfaltadas, as tecnologias modernas,
como poste de luz, os carros, o bondinho, as roupas novas. Entre esses dois
mundos estão os personagens que apenas habitam a Copacabana moderna
quando vão trabalhar, se submetendo à violência do patrão. De acordo com
Chauí quando se falava em “progresso” acreditava-se que o país melhoraria com
a “expansão dos ramos determinados pela geografia e pela geologia, que
levavam a uma especialização racional em que todas as atividades econômicas
eram geradoras de lucro, utilidade e bem-estar”. Sobretudo, na realidade,
assistia-se uma desigualdade socioespacial feroz na metrópole do Rio de
Janeiro.

Figura 6 (33.45 min)

Figura 7 (26.14 min)

Na primeira cena em que Vidimar aparece como empregado de Dr. Grilo


ele está diferente do figurino que usava nas cenas de Copacabana dos
colonizados. Suas roupas, agora, estão limpas e arrumadas, pronto ao mundo
do trabalho. Entra em cena o Dr. Grilo fiscalizando a cozinha e a louça. Aos
berros de “não tem água” e “que sujeira, que imundice” deixa bem claro quem é
o patrão e quem é manda, os empregados permanecem de cabeça baixa,
realizando seus afazeres sem atrapalhar o discurso do patrão.

A seguir ao som de Mr. Sganzerla de Gilberto Gil, Vidimar está lavando a


roupa de seu patrão e começa a cheirá-la e a lambe-la. Doutor Grilo aparece
atras de Vidimar e começa a empurrar e a tapeá-lo. Vidimar com toda
naturalidade ainda comenta que seu patrão recebeu um telefonema, mas é
agredido em seguida. Vidimar volta a lavar as roupas e recebe um beijo no ombro
de Grilo que sai do quadro. O empregado volta a cheirar as roupas de seu
agressor, que volta em cena para o beijar. A cena corta, a música desaparece,
para um plano em que os dois estão de frente um para o outro e se insinua que
Vidimar irá fazer uma felação sexual em seu patrão. De acordo com Estevão
Garcia (2018, p. 149) “o servilismo do colonizado é elevado à última potência
através do ato da felação em seu opressor, o silêncio se instaura. Não há mais
nada a dizer”.

Nessa cena fica claro que qualquer esmola afetiva dado pelo colono é
para o colonizado maior do que as dezenas de empurrões e tapas que recebeu
antes do gesto carinhoso. Ao contrário de seu comportamento perante seus
pares, no universo da primeira Copacabana, Vidimar é agressivo, agarra sua
mãe e sua irmã. No caso de Silk o irmão além de forçar uma relação incestuosa,
chega a extorquir e agredi-la. Mas no ambiente da segunda Copacabana ele é
totalmente subserviente ao seu patrão.

Vidimar não é o único que se transforma a adentrar nesse outro universo.


Mesmo que Sonia Silk não mude de figurino ao mudar das atmosferas de
Copacabana, a personagem altera sua identidade. Em uma determinada cena,
o filme enuncia a origem mítica de Sonia Silk: “"Fome, sede, dança, de Gomorra
vieram os seus bárbaros antepassados. Na primavera do ano 1080 Nicolau Di
Cusa estuprou uma princesa ocidental descendente de Genghis Khan
concebendo Davi e Davi gerou Don Fernández e Don Fernández gerou Diacuí e
Diacuí gerou o preto velho Zezinho da perna dura e Zezinho da perna dura gerou
Noel e Noel gerou Edmilson e Edmilson gerou ela, Sônia Silk, a fera oxigenada".
Em outra cena, a voz over de Vidimar enuncia que: "Há 345 anos o Exu
Corcovado persegue Sônia desde que ela saiu em 1635 presa da África no navio
negreiro". De acordo com Garcia (P.129) “Ao justapor essas duas narrações
temos, de um lado, uma que emula as parábolas bíblicas, conferindo a Sônia
Silk um ar de ser predestinado” com um chamado a cumprir. Do outro, “uma
narração que coloca a protagonista fora de seu tempo cronológico”, ofuscando
a história da fera oxigenada. Se levarmos em consideração a ideia de mito
fundador proposta por Marilene Chauí a autora afirma que o mito:

“impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um


passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente
e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da
compreensão do presente enquanto tal”. (2000, p.6)

Apesar de inverossímil, a ascendência de Silk narrada é um impulso à


repetição de algo imaginário e as condições materiais que criam um bloqueio à
percepção da realidade e impede de lidar com ela. Não à toa, na cena em que
Sônia se prostitui para uma cliente (Lilian Lemmertz), ela mente sua história
afirma que vêm de uma família muito rica, “tem carro, tem piscina, dez banheiros”
e afirma que tem horror de pobre e todo ano passava suas férias no Mar del
Plata, mas que engravidou aos treze anos e sua família lhe expulsou. Na
invenção da acompanhante ainda há espaço para seu sonho declara que ganhou
seu primeiro prêmio na rádio nacional e repete como se quisesse que sua
fabulações fossem verdadeiras, daqui a seis meses no máximo será a maior
cantora do Brasil.

Copacabana mon Amour, ainda, satiriza a representação do Brasil. Este


é um país essencialmente agrário e historicamente articulado à dependência das
grandes potências. De acordo com Chauí, para tal foi elaborado, pelas classes
dominantes brasileira, uma imagem que “visava legitimar o que restara do
sistema colonial e a hegemonia dos proprietários de terra durante o Império e o
início da República”, mas que se sustentou durante todo o século XX, mesmo
com tentativas de destruí-lo, como a semana de arte moderna de 1922, o
romantismo revolucionário e o tropicalismo. O verdeamarelismo, para a autora,
correspondia à “auto-imagem celebrativa dos dominantes”, porém com o passar
do tempo funcionará como “compensação imaginária para a condição periférica
e subordinada do país”.

Nesse sentido, Sganzerla ironiza as belezas naturais do Rio de Janeiro,


com a voz over de Guará afirmando “O Brasil é o país mais rico do mundo, seus
filhos, seus minérios seus imensas florestas fazendeiro Paraíso da Terra, mas
parece ser exatamente a sua riqueza a causa de tanta miséria”. O povo, ainda,
ordeiro e pacífico mesmo com a grande miséria nacional, segue “imóvel” e “o
otário só pode seguir dopado de sol, da cachaça e de magia até um dia acabar
de vez”. O personagem continua:

Precisamos acabar com estes miseráveis traiçoeiros enlouquecidos


pelo sol, pelo azar e pela fome. Cinco fanáticos cangaceiros saíram
pelo Brasil a queimar fábricas, fazendas e distribuir terras. Esse sol de
Copacabana enlouquecendo e estragando o juízo. Tirando o controle
da população desiquilibrada pelo sol do Oceano Atlântico. Nós não
podemos pensar. A inteligência faz mal ao brasileiro. É preciso a polícia
para não deixar esse mundo sujo e esse povo louco correrem por água
abaixo. Metade do povo brasileiro não tem dente ou sabe falar, ouvir e
escrever. Sem a polícia, a fome ia ser maior ainda. A polícia salva o
Brasil do desastre do Comunismo (COPACABANA, 2013, 29’49”-
31’09”).

A situação dos personagens de Sonia Silk e de seu irmão Vidimar se


aproximam de uma dependência ora “consentida” ora “tolerada”. O empregado
doméstico, em uma determinada cena por exemplo, declara estar apaixonado
pelo seu patrão e logo após reitera seu estado de faminto. Já a fera oxigenada
não cria afetos com seus algozes, ignora o convite de uma cliente para viajar
para o exterior e tem a ideia de matar o Dr. Grilo para quebrar o “feitiço” que atua
sobre seu irmão.

Mas é aqui que Sganzerla se afasta do pensamento de Fanon, ou melhor


segue o princípio da “antropofagia” de Oswald de Andrade como forma de
sintetizar e criar a partir de contrastes, deglutindo o pensador e retirando aquilo
que lhe interessa. De acordo com Garcia (p.150) Fanon entende que a religião
é uma forma de canalizar a opressão feita pelo colonizador, uma vez que tal
artificio resulta em conformismo “O colonizado também consegue, através da
religião, não levar em conta o colono. Pelo fatalismo, toda iniciativa é retirada do
opressor, pois a causa dos males, da miséria, do destino, depende de Deus”.

Em Copacabana mon amour, no entanto, Silk e Vidimar, que são adeptos


da Umbanda e do Candomblé, utilizam-se destas para derrotar seu algoz. É
através de um impulso ritualístico que conseguem asfixiar o Dr. Grilo. Ou seja,
as práticas afro-brasileiras não são um distração, mas sim uma força capaz de
colaborar a tomada de ação dos povos subalternos. E assim, após o
aniquilamento do opressor Sonia Silk se vê transformada “Cansada de ver a cara
de deus a 40 graus a sombra era o fim de mim, de Sônia Silk, miss prado júnior
e começava uma outra Sônia Silk”. A fome que antes não a deixava pensar, fez
com que ela indagasse não apenas em sua condição isolada, mas nos outros
“azarados da terra”. De acordo com Garcia a sintonia entre o filme de Sganzerla
e a obra de Fanon é evidente sendo que é também o “fato de que Fanon é filtrado
por uma enorme ânsia de provocação que transforma a relação colonizador e
colonizado em uma quase caricatura. Mais do que meramente ilustrar as
formulações de sua obra ou organizá-las em tom didático, Sganzerla as
reconfigura por meio de uma mise en scene convulsiva” (Ibid, 2021, p. 159).

O que vemos na película é um planeta esfomeado e miserável. Mas a


tomada de consciência da personagem interpretada por Helena Ignez acontece
pela violência, capaz de transformar a face do planeta “errado, vagabundo e
metido a besta”.

Considerações finais

O objetivo do trabalho foi compreender os caminhos, estéticos e


ideológicos, traçados pelos criadores da Belair para dar conta da nova conjuntura
brasileira dos anos 1970 por meio da análise do filme Copacabana mon Amour.
Utilizando o conceito de Kosselleck (2006), as mudanças ocorridas
representaram uma quebra no horizonte de expectativa. Analisar a cultura
brasileira do final da década de 1960 implica em discutir as formas encontradas
pelos artistas para lidar com tal situação.

De acordo com Monica Kornis (2008. p.38) “filmes e programas de


televisão são, por sua vez, documentos históricos de seu tempo, inclusive os
títulos cujo conteúdo volta-se para o passado, uma vez que são produzidos sob
um olhar do presente” e aquela estrutura de sentimento que os jovens diretores
marginais estavam com seus dias contados.

Após cinco meses de trabalho intenso a Belair teve sua aventura


abortada, Bressane recebeu um aviso que os militares já estavam de olho no
grupo. De acordo com Carlos Santana o grupo:

Foi convocado pelo regime militar onde foi interrogado e,


posteriormente, ameaçado de prisão devido a um suposto dinheiro que
recebia do líder de esquerda, Carlos Mariguella. Entretanto, não
concordava totalmente com os ideais socialistas, tampouco, os
capitalistas. O que parecia lhe incomodar era a injustiça social, porém,
tal ligação extremista ocasionou um exílio de cinco anos. (2021, p.13)

Apesar da tentativa de se esconder dos militares com a escolha do nome


“Belair”, que representava um carro ou um bairro americano. Ou seja, nada que
contestasse a moral dos bons costumes da ditadura militar. O conteudo do filme,
porém, traz a tona a história dos miseravéis, da prostituta e do homossexual que
segue a fé das religiões afro-brasileiras. De acordo com Adrianna Setemy a
censura:

Além de ser um instrumento de violação do direito de liberdade de


expressão, quando se tratava de defender a moral e os bons costumes
a censura consistiu em um instrumento político legítimo perante
setores da sociedade civil, um endosso do Estado àquilo que era
considerado pertinente aos valores da família cristã. (2018, p.174-175)

Nesse sentido, a censura sufocava a vida dos cineastas que fugiam da


ordem. O movimento tropicalista, por exemplo, de acordo com Marcos
Napolitano seguiu dois caminhos históricos “a radicalização das experiências
comportamentais e estéticas da vanguarda” e “a expansão da contracultura e
seus valores básicos (liberação sexual, experiência com drogas, busca da
liberdade individual e de novas formas de vida comunitária)” (NAPOLITANO,
2021, p.131).

O Cinema Marginal entrou em concordância com o pensamento de


Oswald de Andrade, com uma mistura de diferentes estilos estéticos no intuito
de expor uma dimensão revolucionária do cinema brasileiro que não o modelo
cinemanovista. Em uma época de cerceamento da liberdade estética e correndo
o risco de vida, o grupo da Belair opta à clandestinidade para continuar fazendo
cinema.
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SETEMY, Adrianna Cristina Lopes. Vigilantes da moral e dos bons costumes: as


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