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O lugar do negro nas sátiras políticas de Dias Gomes

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Iza Debohra Godoi Sepúlveda

Se estamos comumente acostumados a ver negros e negras representados como


pobres, empregadas domésticas e lugares não considerados nobres em boa parte das ficções
teledramatúrgicas, este não é o lugar no qual Dias Gomes apresenta os negros em suas duas
obras aqui analisadas. Em o Bem Amado (1973) e Roque Santeiro (1985) Milton Gonçalves
nos é apresentado como o lugar da possível mudança e da transformação.
A apropriação dos cultos populares, em especial de origem africana, feita por Dias
Gomes não é vão, (podemos observar essa relação com a cultura popular também no cinema
novo e nas produções teatrais do próprio Gomes, como de um grande grupo vinculado a arte
engajada). Para isso podemos estabelecer algumas relações entre Gomes, Nelson Werneck
Sodré e Milton Gonçalves. Gomes e Sodré eram amigos pessoais, segundo informações do
próprio Dias Gomes, onde em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura (1995) o
autor conta que o motivo da censura à primeira edição de Roque Santeiro (1975) foi
descoberta anos depois com a abertura dos arquivos da censura (Se encontram no Arquivo
público de Brasília). Gomes e Sodré conversavam no telefone sobre a crítica à Ditadura Civil
Militar que se estabeleceria na novela que iria ao ar, não sabiam, mas a linha telefônica estava
grampeada e por sua vez, quando os censores escutaram a conversa, resolveram censurar a
primeira versão de Roque. Não nos interessa neste momento se o ocorrido foi narrado com
fidedignidade, mas estabelecer um vínculo mesmo entre o artista e o intelectual.
Com esse dado da relação entre ambos, pensamos dentro de duas obras de Sodré, a
saber, “Formação da Sociedade Brasileira (1944)” e “Desenvolvimento brasileiro e luta pela
Cultura Nacional (2010)” qual o sentido de cultura apreendido que poderia significar também
uma relação na forma de pensar o projeto nacional-popular de Gomes.
Se as interpretações sobre mestiçagem, por exemplo, nos dão um sentimento no
mínimo incomodo, Sodré o apresenta, ainda que também na lógica de considerar o mestiço
elemento da identidade nacional, um contraponto. Considera o mestiço negro e a mestiçagem
forma de sobrevivência:
A fôrça social, cultural, do negro escravo é, entretanto, tão intensa, ela vive,
de tal sorte, durante tôda a existência colonial que, debaixo de tôdas as
imposições, sob todos os esmagamentos, vai, lentamente, nessa sociedade
heterogênea, desarticulada, cheia de brechas, infiltrar-se, erguer-se,
encontrando um caminho, uma linha de menor resistência, mais adaptável do
que as revivescências culturais, mais segura do que a luta aberta: a
mestiçagem. É por ela, principalmente, e trazendo nela tudo o que lhe é
próprio, que o negro afeta, de uma maneira capital tôda a vida da colônia,
tôda a sua articulação econômica, social, política, - é por ela que ele vai
dominar o Brasil (SODRÉ, 1944, p.113) SODRÉ, N.W. Formação da
Sociedade Brasileira. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Ed José Olympio, 1944.

Para Sodré “Só é nacional o que é popular” (ORTIZ, 1985: 129). E nesse sentido, ao
nos debruçarmos sobre as duas obras de Dias Gomes o que temos é um artista que pensa um
projeto nacional-popular para a televisão. Em outros momentos, Dias Gomes se debruçou em
explicar o motivo de ter aceitado ir para a TV. Nesse argumento Gomes diz que ao contrário
do Teatro, por exemplo, na televisão poderia atingir milhares de pessoas. O objetivo ainda é o
de produzir uma arte para conscientização das massas. E nesse processo, ao mesmo tempo
que critica as elites agrárias (no caso das nossas duas telenovelas) também nos dá a ler os
tipos nacionais, o cangaceiro que entrou no mundo da matança por imposição da
sobrevivência (Zeca Diabo – Lima Duarte) e o pescador que alia técnica e fé (Zelão das asas -
Milton Gonçalves), o drama dos intelectuais/artistas de classe média (Roque – José Wilker).
Nesse sentido, a obra de Gomes expõe um projeto nacional no campo das disputas.
Ao nos voltarmos para o que seria um projeto nacional que quisesse construir uma
memória nacional e ainda buscasse uma identidade nacional, com as diferenças que podem e
devem ser apontadas entre esses três conceitos, podemos pensar duas questões específicas. A
primeira diz sobre como o problema da identidade nacional foi apenas mais ou menos
apaziguada a partir da obra “Casa Grande e Senzala” onde Gilberto Freyre se desvencilha das
teorias raciais de fins do século XIX e nos apresenta o lugar do mestiço, esse um ser
tipicamente nacional e que pôde naquele momento estabelecer-se como ritual:

“A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de


dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do
mestiço. Ela permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o
social, o que possibilita uma análise mais rica da sociedade. Mas a operação
que Casa Grande e Senzala realiza vai além. Gilberto Freyre transforma a
negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar
definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo
desenhada. Só que as condições sociais, eram agora diferentes, a sociedade
brasileira não mais se encontrava num período de transição, os rumos do
desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas
mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar
como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas
ambiguidades das teorias raciais, ao ser reelaborada pode-se difundir
socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do
cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era
mestiço, torna-se nacional. (ORTIZ, 1985: 41)

Se por um lado o ser nacional já estava consolidado, por outro, chegamos ao nosso
segundo problema: As teorias nacionais ainda consideravam o negro e o mestiço como uma
síntese de brasilidade sem discutir as estruturas racistas da sociedade de classes no Brasil. É
nesse sentido que o movimento Negro dos anos 1960 é importante para pensarmos um projeto
nacional-popular que trouxesse o negro não mais como uma grande síntese. Milton Gonçalves
havia sido elencado para a primeira versão de Roque Santeiro, onde ele interpretaria o padre
conservador Hipólito (Na segunda versão, interpretado por Paulo Gracindo). Com a censura
integral da obra, foi ao ar a reexibição de Selva de Pedra (Janete Clair) e após três meses de
exibição, foi ao ar a versão original de Pecado Capital. Nessa versão, a fim de aproveitar o
elenco da novela censurada, Milton Gonçalves pede a Clair que ela lhe dê um personagem
distinto da ideia de um personagem negro, “um personagem que use gravata”. Ele interpreta
um psicólogo renomado.
O que queremos estabelecer com essa relação entre Gomes, Gonçalves e Sodré é que
os três estão pensando a questão da identidade nacional, como crucial para pensar um projeto
nacional. A questão do popular se assenta na medida em que concebem (Ao menos Gomes e
Sodré) que um país como o Brasil precisa se aproximar do popular a fim de um projeto de
superação das estruturas capitalistas, que não pode relegar à negritude o lugar dado pelo
cientificismo do XIX, nem o lugar de diluição dos problemas nacionais.
Em o Bem Amado, Gonçalves é Mestre Zelão (ou Mestre Zelão das asas). Pescador
experiente que se revolta com os mandos e desmandos de Jairo (Gracindo Júnior). Após ter
sua vida salva por Iemanjá, promete voar da torre da igreja. Impedido por todos por
considerarem Zelão louco.
O sentimento de “banzo” é notável na personagem no momento em que não consegue
nem enxergar nem andar, e só volta à normalidade quando sua esposa (Ruth de Sousa) que é
enfermeira e parteira o chama para ver Iemanjá no mar.
Da primeira cena da novela até a última a cultura popular, em especial o vínculo dos
povos ribeirinhos com Iemanjá, propõe uma unidade entre grande parte das personagens de O
bem amado. Do prefeito verborrágico Odorico Paraguaçu passando pelos pescadores
participar do ritual de oferenda à Iemanjá configurasse numa prática social de circulação entre
os grupos sociais, mas sobretudo de resistência, e resistência em vários sentidos. No caso de
Zelão, ligado a boa pesca, mas sobretudo a sua vida salva durante um temporal.
No último capítulo da trama, ele voa sobre toda a cidade de Sucupira. Seu intento
logra porque é na personagem que a obra funde sabedoria popular e conhecimento científico.
Após várias tentativas e com o apoio do médico da cidade, Juarez Leão (Jardel Filho - que se
encontra como grande crítico dos usos políticos da ciência), Zelão logra cumprir sua
promessa. Nele é contida uma superação da ideia elitista de cultura e sabedoria. Voar com as
asas é junção do progresso científico em conjunto com a sabedoria popular. A própria postura
do médico que se oculta ao entregar o material adequado para Zelão produzir as asas nos diz
muito. É Zelão que finaliza a novela voando. Se com a morte de Odorico, outra personagem
ocupa seu lugar no pé de sua cova, Gomes nos diz que o problema com as elites agrárias não
se encerra com a morte de determinado grupo, mas com a possibilidade do povo, concentrado
na figura de Zelão nesse caso, construindo uma possibilidade que funde vários tipos de
saberes.

Passar a cena
Nossa outra personagem é o promotor de justiça Lourival Prata, que vem à cidade de
Asa Branca devido as inúmeras denúncias de manipulação da justiça por Sinhôzinho Malta
(Lima Duarte). Malta, ao saber da chegada do promotor corre para bajulá-lo. Ao saber que é
um negro, chama-o para um reunião particular, onde diz que ele é um negro de alma branca.
A resposta de Lourival aponta as estruturas racistas da sociedade brasileira que não imagina
um negro no lugar promotor. Lourival representa o lugar que dá desconforto às elites
tradicionais. A personagem é importante, mesmo aparecendo apenas ao final da trama, pois é
a partir dela que podemos encontrar um noção de justiça (tanto pela personagem quanto pelo
ator) que impõe, à Malta e ao grande público que se há efetivamente justiça, esse lugar pode
ser ocupado por um brasileiro que socialmente tem seu lugar negado como membro do
Estado. Com essas duas passagens, queremos apontar o lugar no qual Gomes nos apresenta
não apenas uma sátira da sociedade brasileira, mas também sua possível antítese.
Entretanto, se em 1973, Gomes nos parece esperançoso com o final que nos apresenta
em O Bem Amado, isso não se dá em 1985. A discussão que situa a novela em seu tempo
espaço, ao trabalhar de forma enfática com os conceitos de justiça e verdade, nos apresenta a
derrota de uma sociedade frente ao projeto que possibilitou a saída da ditadura civil-militar.
Ao nos apresentar um promotor de justiça comprometido com a verdade e também com a
justiça, Gomes desenha nossa derrota. Mas mesmo face a derrota, nos aponta também que a
construção de outro mundo pode vir a ser.
Na cena é importante nos atentarmos para uma primeira alusão aos charutos cubanos e
para quem Malta os oferece. A música dramática que daí decorre ao Malta falar que Lourival
é um negro de alma branca deve ser pensada a luz de um público que assiste e que recebe os
sinais de que com aquela afirmação há algo de errado. Com a investida de Lourival, Malta
quase engasga e começa a falar de suas posses, de suas riquezas, de sua relação com políticos
influentes (inclusive o presidente), diz que faz negócio com o mundo todo. Menos com a
África do Sul, ao passo que leva outra investida de Lourival. Ao justificar que não faz
negócios com a Africa do Sul por conta do Aphartaid “que é uma enorme mancha negra na
história da humanidade”, Lourival apresenta uma expressão facial de desconforto, ao que se
levanta e com um riso irônico diz: “Ao uma grande mancha branca, não é não?” Mais uma
vez rebatido, Malta apela para sua marca, chacoalha suas pulseiras de ouro na cara de
Lourival. A fim de quebrar a clima de tensão que fica no seu escritório, Malta ri como faz
habitualmente depois que convence as pessoas a fazer suas vontades. Não é o caso desta cena.
Lourival permanece sem retribuir o riso e a música de impacto soa mais alto para o
telespectador.
Tais personagens incorrem na discussão racial brasileira dentro de uma sociedade de
classes, onde apresentam tal questão não como menor, muito pelo contrário, mas como crucial
dentro de uma perspectiva marxista de leitura da realidade brasileira, com a qual é dever se
reocupar considerando os espólios da escravidão, bem como a estrutura que daí decorreu e
persiste até os nossos tempos.

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