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7/2/2020 Entrevista: Affonso Uchôa | Multiplot!

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Entrevista: Affonso Uchôa


5 de fevereiro de 2020 por joão pedro faro, publicado em artigos

Por João Pedro Faro

Affonso Uchôa

O cineasta mineiro Affonso Uchôa teve seu nome nos créditos de três produções selecionadas na 23ª
Mostra de Cinema de Tiradentes. O média metragem Sete Anos em Maio (2019), em que assina como
diretor e roteirista, e os longas Sequizágua (2020, Maurício Rezende) e Mascarados (2020, Henrique
e Marcela Borela) como roteirista e montador, respectivamente. A entrevista foi feita após a exibição
de Sete Anos em Maio. A breve conversa trouxe à tona perspectivas do atual cenário de um cinema
nacional em que os filmes citados anteriormente se encaixam e se modelam, seus limites e suas
expansões.

O Sete Anos em  Maio, assim como outros filmes que você participa e que estão na Mostra,
lidam de alguma forma com o gênero da ficção documental. Quais  são os  limites  que você
percebe, em concepção, desse tipo de cinema no Brasil?

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Ainda  está  para  a  gente entender melhor,  no cinema brasileiro,  essas nuances entre ficção  e
documental, existem muitas formas de assimilar isso. Como exemplos, o Sequizágua e o Sete Anos
em Maio carregam muita diferença entre as relações e as formas desse trânsito. É importante dar uma
certa contextualização  também  desse gênero como  um  caminho do cinema contemporâneo.  O  que
mais me interessa nisso, o que me estimula  e o que, de certa forma,  justificou  meu cinema
a trabalhar com isso nos meus filmes é uma potência de escrita e de criação cinematográfica.

De ficção, então?

Sim, também.  Porque o trabalho com a realidade é uma energização  desse fator ficcional, é uma
percepção dessa realidade.  Não no sentido tradicional de pesquisa e estudo de campo, não há
instrumentalidade. O que acontece no cinema contemporâneo, dos anos 2000 pra cá, é que a relação
entre quem filma e quem é filmado, a presença física na imagem em si, faz com que a presença da
realidade  na imagem seja mais ativa.  Faz com que a realidade funcione  menos um depositório de
imagens, mas que seja parte da dialética do processo fílmico e das suas formas. É o trabalho com essa
presença que difere o Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Vitalina Varela) do Apichatpong (Tio Boonmee,
Mal dos Trópicos), como exemplos. Mas de alguma maneira  ainda  há algo que une dois  cineastas
como esses, um “estado do tempo” que perpassa o cinema contemporâneo como um novo estatuto da
realidade.  O estado que energiza  e alimenta o ficcional.  Nos meus trabalhos, prefiro pensar que a
fatura final é sempre ficcional mesmo que o ponto de partida seja, superficialmente, documental. O
que interessa é pensar como o cinema vai operar no contato com a realidade.Sobre os limites
disso  atualmente,  como todo trabalho estético, a gente vive um esgotamento  dessas formas.  No
sentido de que o cinema e a realidade demandam outras coisas  que não apenas essa dicotomia
conhecida. Nossa resposta, como cineasta e autores, deve ser pensar no que deve existir de novo. A
ficção documental, especialmente  a  brasileira, está  partindo de uma espécie de  “academicismo do
não-academicismo”. Um protótipo. O ato de jogar-se na realidade parte de inseguranças, e quando a
insegurança parece muito disfarçada, como é o caso desses protótipos, o meio começa a ficar meio
problemático. Há uma gama muito gigantesca de criação de imagens no cinema. Quando isso começa
a ficar muito hegemônico, nós começamos a sentir falta de outras formulações.

Até por essa quantidade de imagens que temos hoje, o caminho para esse cinema, que parte de
uma realidade mais direta  para procurar a ficção, está  próximo de uma encenação  que
poderíamos chamar de mais “clássica”? Como o próprio Pedro Costa, que nega o documental e
se espelha em concepções por vezes clássicas de encenação. Existe um ciclo escondido nisso?

Não sei se é tão geral assim. Acho que existem formas muito diferentes de pensar nisso. O cinema
do  Teddy  Williams  (O Auge do Humano), por exemplo, já aponta outro tipo de fluxo de imagem
e de encadeamento com o tempo. O que está no clássico é a forma do cinema de encontrar-se com o
mundo. Não é nada surpreendente ver o Costa tendo esse tipo de posicionamento. O cinema clássico
é uma escola, uma antecâmara do imaginário  cinematográfico  que acaba retornando em qualquer
filme.  Mas não diria que é algo geral  quando se trata desse certo “ciclo”.  Existem trabalhos indo
nessa direção, mas acho que o cinema hoje é muito espalhado, muito multifacetado. E ainda existe
esse cinema clássico, o clássico de ficção, ele sobrevive em poder e força enquanto arte que resiste ao
tempo.
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Pensando no Sete Anos em Maio, um filme de poucos planos, que conta uma história através de


relato direto por boa parte de sua duração, até uma cena final que é totalmente encenada,
existe um interesse da narrativa feita pelo mínimo que caminha para uma encenação
mais tradicional? Isso tudo feito com o recursos igualmente mínimos?

O que penso, que dá para fazer conexão com um pensamento mais amplo, é que a economia de meios
em linguagem e produção tem dois lados, o econômico e o artístico. O balanço disso é inerente ao
cinema,  que  é uma arte industrial feita de muitos instrumentos  e de muita equiparação.  No caso
do Sete Anos em Maio, é um filme pequeno e barato que só foi feito dessa forma porque o que é dito
pelo filme pode ser feito de forma precisa, econômica.

Sete Anos em Maio

Isso também parte de uma noção contemporânea imediatista? No sentido de que é feito a partir


do possível, da realidade sendo o que está próximo do que pode ser realizado e que tem uma
necessidade de que elas sejam realizadas

No nível do anseio, sim.  O anseio  de que aquelas imagens existam e sejam vistas.  Não sei se
imediato, mas urgente. E  isso  também  tem a ver com esquema de produção.  É possível fazer  um
filme como  Sete Anos  sem um circo de parafernálias cinematográficas.  Para que  aconteça, para
que  seja concretizado,  você não precisa de um arsenal tão completo, não precisa de toda uma
indústria. Acho que são duas recusas que acontecem aí, a recusa ao tradicional do cinema industrial,
contra o regime de produção, e a recusa a relação com as próprias necessidades tradicionais do
cinema, e a favor de um certo artesanato.

E dá para enxergar esses recursos mais diretos como uma herança dada ao ambiente que você
filma? No caso, a uma periferia que está em tela, essa experiência com o artesanato, existe uma
possibilidade aí?

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Eu não lido com expectativas. Também não lido com a ideia de que a minha produção possa gerar
outras coisas.  O  que fica,  para mim,  é que existe potencial e desejo para a instrumentalização 
cinematográfica, enquanto trabalho,das pessoas da periferia para que  elas  se equipassem para a
própria produção fílmica. E saber que essas pessoas iriam para caminhos muito diferentes sem sua
produção, como qualquer grupo de pessoas, vai existir a diferença. A realização parte de uma questão
material mesmo, de possibilidade. Acho que meus filmes abrem algumas janelas, mostra que é fazer
cinema é real,  de alguma forma. Mas ainda é pouco.  Para abrir como possibilidade real de  uma
periferia  fazer seus filmes, outros filmes, o trabalho deve ser governamental.  E o  capital não vai
trazer isso, não é um mercado que vai atrás dessa produção.  São necessidades mais fortes,
necessidades  de atuação do poder público.  O  que vejo  a partir de  quem trabalha nos filmes é um
orgulho da própria participação,  eles são vistos em um lugar  e podem se perceber  como atores  ou
roteiristas, e estão presentes nisso.  Eu percebo esse orgulho pelo trabalho feito e um orgulho por
trabalhar.  Até porque meus filmes  são  trabalhos  em que eles não vão apenas realizar tarefas, vão
vivenciar o processo fílmico e criar dentro daquilo. Sem querer tirar qualquer ilusão de que isso torne
eles absolutamente ativos,  não é assim,  existe uma diferença de base entre meu trabalho e o deles
porque continuo sendo o diretor dos filmes. Mas é possível uma criação, uma intervenção. E há gosto
nesse lugar e nesse trabalho. É a minha percepção.

Não assistir  a  esse tipo de trabalho  de quem é filmado em periferias, dentro  do cinema
nacional, foi o que, também, impulsionava você a querer assistir algo que ainda não existia?

Acho que os filmes que eu fiz partem de meu próprio anseio em ver uma periferia diferente.  Não
queria ver aqueles corpos moldados aos modelos de ficção preconcebidos, um molde conforme feito
por mãos instrumentais. O trabalho poderia estar sendo tecnicamente competente, mas sem vida, um
desperdícios de riquezas. Ver esse tipo de coisa, para mim, era um achatamento de experiências. Não
vejo porque alguém iria querer fazer filmes que corroborassem com as opiniões que já existiam sobre
determinado lugar, como o ambiente periférico. Faltava jornada por lugares ainda desconhecidos pelo
cinema,  uma jornada em  descobrir outras potencialidades.  E  meus filmes respondiam, para mim,  a
essa falta.

E  o que ainda falta ver no cinema brasileiro que,  hoje,  você ainda não assiste?  O que você
gostaria de ver?

Eu sinto que o cinema brasileiro, atualmente,  está num caminho de adequação ao mercado de arte
internacional. A nossa tradição era de um experimentalismo radical, e acho que sinto falta de ver esse
radicalismo. Nossa história é de cineastas que experimentaram suas linguagens até o final e, hoje, não
vejo os filmes que estamos fazendo muito ligados a isso. Acho que dá para romper esse deslumbre
com a inserção internacional, um cinema menos hegemônico que não queira estar estreando em Cann
es. Cannes já está moldada, eles sabem o que querem e o que representam, sabem o tipo de cinema
que querem. Vejo muitos cineastas fazendo uns filmes que mais parecem uma tentativa
de  receber  carimbo para festivais como esse, para a aceitação desses meios.  Falta diversidade
nisso.  Esse cinema, de projeção,  tem que ser menos  majoritário.  Falta o múltiplo,  que venha  da
origem marginal e experimental do nosso cinema, e que é o nosso cinema moderno que nos deu tanta
coisa.
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Estaria  o cinema brasileiro condenado a discutir para sempre  “o problema do cinema


brasileiro”?

Sim, porque o cinema brasileiro é um problema por si só.  Assim como qualquer manifestação
cultural no  Brasil,  queé um país feito para recusar o seu próprio cinema e sua própria arte em
geral. A manifestação cultural é tratada como se fosse um desvio de conduta, então continuar fazendo
cinema é encarado como um problema.  Ainda por cima, o que é feito é colocado de  lado, e isso
também é um problema. E o cinema brasileiro que é feito é feito apesar disso, mesmo sendo tratado
como um  problema e gerando seus próprios problemas.  É uma não-subserviência. Nossa questão é
perceber  como a insubmissão ao poder vigente pode ser mais espalhado, algo maior, que alcance
mais espaços.

Então ser um problema seria também o nosso mote principal? Nosso ponto de partida?

Acho que sim… Talvez não um ponto de partida, mas uma força. A força do cinema brasileiro é ser
um problema para o país, é ser algo que o Brasil não quer. E o poder está aí para dizer que o cinema
brasileiro não existe, não aconteceu, não cumpriu um papel. Ou que aconteceu, mas foi uma perda de
tempo. Essa  subserviência a  um  Brasil atrasado, extrativista, arcaico,  que está na cara de quem
comanda o país,  é a resistência do  país  que rejeita  seu próprio cinema.  Então a força do cinema
brasileiro é desagradar qualquer poder, é ser um problema.

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