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2017.1
(CAPTAIN FANTASTIC)
O filme “Capitão Fantástico” é uma produção cinematográfica indie de 2016, que chegou a
concorrer ao Oscar de 2017, escrita e dirigida por Matt Ross. Essa obra nos permite para além
de discutir temas como concepções do que é viver de forma “civilizada”, choque cultural,
identidade e narrativa, nos traz a possibilidade de profunda reflexão sobre a vida e os padrões
de como conduzi-la produzidos e impostos pela sociedade (no caso a ocidental). Durante o
filme nos confrontamos com diferentes percepções do conceito de “normalidade”, de viver uma
vida “normal” e somos levados a refletir como a visão do que é ser normal é uma construção
histórica, social e cultural. O que é ser “normal”? Por que consideramos pessoas que optam por
não adotar a nossa concepção de “normal” como estranhas? Será que não somos tão “estranhas”
para elas quanto elas são para nós?
O longa nos apresenta um casal que decidiu viver fora da sociedade capitalista e consumista
americana, criando seus seis filhos em uma casa na floresta, onde estudavam, aprendiam a
caçar, a lutar, a sobreviver. As crianças, educadas em casa, possuíam conhecimentos muito
além do esperado para suas idades e se comparado com o que aprenderiam em um sistema
educativo mais “tradicional”. Indo de física quântica até a constituição americana, as crianças
possuíam os mais variados conhecimentos, demonstrando não haver inferioridade intelectual
em seu modelo de educação, muito pelo contrário. É um choque para o espectador, que, em
geral, não esperava ser confrontado com a ideia de crianças que vivem isoladas na floresta
possuindo muito mais conhecimento do que o próprio teve em seu percurso tradicional de
educação.
Essa primeira cena também nos leva a quebra da ideia de temporalidade que possuímos.
Como é possível admitir que pessoas vivam sem os recursos tecnológicos que tanto
consumimos, caçando seu próprio alimento, ao mesmo tempo em que nossa sociedade é tão
“avançada” socialmente e tecnologicamente? O modo de se viver da família, em nossa
percepção do tempo, da cronologia, não se encaixa com o “tempo atual”. Assim como nos
sentimos incomodados ao perceber o alto nível de conhecimento da família, nos sentimos
incomodados ao observar que seu modo de vida foi uma escolha frente ao modelo de sociedade
em que vivemos hoje em dia. Como alguém poderia escolher viver no isolamento, sem recursos
tecnológicos e sem as facilidades que o consumo nos oferece? Por que alguém decidiria
abandonar um estilo de vida “normal” e “evoluído” como o da sociedade capitalista?
1
Star Trek é uma franquia de entretenimento norte-americana criada por Gene Roddenberry. A franquia iniciou-
se como uma série de televisão em 1966, originalmente chamada Star Trek mas posteriormente renomeada para
Star Trek: The Original Series. (Retirado do Wikipédia)
podemos inserir a reflexão de Dittmer sobre narrativas, afirmando que as pessoas tomam
decisões não pela pura lógica, mas pela coerência da decisão com sua estória, em como
experenciam o mundo.
O filme, entretanto, não busca afirmar que o modo que Ben escolhe para viver e,
principalmente, para criar seus filhos seja superior ao modo de vida e criação de sua irmã, por
exemplo. Em momentos do filme questionamos a rigidez do “treinamento” que Bem aplica em
seus filhos, como na cena em que escalam um penhasco de pedra e ele afirma que não haveria
ninguém para ajudar Rellian, que tinha se machucado, a subir o penhasco. Outro momento de
questionamento se dá quando Vespyr cai do telhado da casa dos avós em uma missão para
resgatar Rellian, induzida ao ato por seu pai. A possibilidade da morte de Vespyr num contexto
menos afortunado leva Ben a questionar seu modo de vida e a forma como criou seus filhos,
junto com Ben o espectador faz o mesmo. As crianças, incluindo a própria Vespyr, entretanto,
não fazem o mesmo questionamento, elas haviam sido socializadas daquela forma, sua narrativa
ontológica, sua identidade e percepção de mundo condiziam com tarefas árduas, desafiadoras.
Após toda uma jornada de confronto de culturas, de conflito de identidades, o fim do filme
nos apresenta dois momentos distintos: a reafirmação da cultura da família, com a cremação de
Leslie, e, ao mesmo tempo, a mudança dessa identidade para algo mais próximo de um meio
termo entre a identidade anterior da família e a narrativa coletiva. As crianças passam a
frequentar a escola, mas a família ainda vive afastada da cidade e da zona de influência da
cultura popular e do sistema capitalista. Diante da jornada pela qual passaram, as crianças e
Ben vivenciaram o mundo de uma forma mais “aberta”, tiveram contato com outras identidades
e percepções da vida, que fizeram com que seu entendimento do mundo se modificasse. Não
cabe ao trabalho afirmar se houve uma ampliação de horizontes, mas podemos afirmar que dali
em diante houve uma maior abertura da família para o mundo além da floresta. Mas é
importante reiterar que mesmo diante de embates de identidade, a família manteve a sua
identidade. Podemos afirmar, porém, que a identidade não é algo sólido e imutável, ela é
flexível, se moldando a forma como experenciamos o mundo.
Acredito que o filme pode ser interpretado, passando-o para uma dimensão macro, como
um questionamento ao sistema capitalista norte americano e a forma como seus valores moldam
a sociedade. Em diversas cenas os personagens citam obras trechos de obras que analisam o
sistema capitalista ou apresentam uma visão própria crítica do mesmo. Afirmam que a
sociedade americana é baseada no consumismo exacerbado, comandada pelas grandes
corporações. Há, também, fortes críticas ao padrão sedentário e consumo de alimentos
industrializados, observados na cena em que as crianças se assustam com o fato de muitas
pessoas serem obesas, não entendendo o porquê das pessoas estarem assim, e na cena que Ben
afirma não ter nenhuma comida que não seja uma “porcaria” em uma lanchonete que entram.
DITTMER, Jason. ““Narration of Nation in the Post-WWII United States”. In: Popular Culture,
Geopolitics, and Identity. New York: Rowman & Littlefield Publishers. 2010