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SENSIBILIDADE
Um artigo que escrevi em co-autoria para a revista CINÉTICA (online) analisa filmes
brasileiros que se debruçaram sobre o acontecimento do impeachment da ex-presidente
Dilma e sobre o volume de imagens gerado e espalhado pelas redes sociais, TV, no
youtube / SLIDE 3: Democracia em vertigem (Petra Costa); O processo (Maria Ramos),
Excelentíssimos (Douglas Duarte, 2019), O muro (Lula Buarque, 2017), entre outros.
Nessas publicações, argumentamos que diante de tais acontecimentos, o cinema mostra
a insuficiência das imagens para dar legibilidade ao evento. Algo excede, transbora. Os
filmes, independente de seus procedimentos expressivos (seja cinema direto, entrevistas,
cinema experimental, performativo, autobiográfico), são sempre frágeis diante de um
acontecimento histórico. Sempre sobra alguma coisa que o filme não dá conta > Toda a
pesquisa vai nessa direção: explorar as distâncias entre o acontecimento e as imagens
(pressuposto: as imagens não são expressão de uma verdade – elas são portadoras
de tensões > W.J.T Mitchell: O que as imagem querem?/ What do the images want?);
VER um documento é VER MENOS, dizem esses filmes. Não se trata de conhecer um
acontecimento como de fato foi, mas reconhecer que há vestígios nele (uma imagem
tremida, um rosto que olha pra CAM) e que é necessário se aproximar, estabelecer
relações entre esses vestígios e outros documentos, outras imagens para podermos
imaginar. No caso de Botão de Perola, por exemplo, Guzmán vai fazer a associação
entre o extermínio de presos políticos durante a ditadura chilena com o extermínio dos
povos originários da Patagônia do sul. Nas fotografias dos nativos, oriundas de arquivos
diversos (créditos), o que se vê naqueles rostos indígenas não é a alegria da chegada da
civilização, mas a catástrofe desse encontro, a destruição como promessa de futuro /
SLIDE 7.
A história do botão de Jeremmy Button. O que terá sido esse encontro? O que aconteceu
e o que poderia ter acontecido? Fitz Roy, o capitão do navio britânico, foi o primeiro a
desenhar indígenas com rostos, mapear o Pacífico, e por ter “ideias humanistas, teve a
ideia de levar indígenas pra Inglaterra com a intenção de civilizá-los” (início do sec
XVIII). Um dos nativos subiu a bordo em troca de um botão de pérola, por isso os
ingleses lhe chamaram de Jimmy Button. Navegou da idade da pedra até a revolução
industrial. Viajou mil anos até o futuro e depois mil anos até o passado”, diz a narração.
É essa lacuna, entre o que foi e o que poderia ter sido, que favorece uma despedagogia
das sensibilidades. VER um documento não é se apropriar de uma verdade. VER é um
ato de subtração/desapego. É uma aprendizagem sobre o ato de ver que passa por
reconhecer - naquilo que se vê (um rosto amedrontado, por exemplo) - uma falta: quais
foram as negociações para que se deixassem fotografar? O que se passou nesse
encontro? que violências sofreram antes do ato fotográfico?
Didi-Huberman lembra que na experiência familiar que temos com a visão é muito
comum associar o ato de ver a possuir, a conquistar (O que vemos o que nos olha). Isso
explica, segundo ele, o apelo dos panoramas, das miniaturas, das pinturas de paisagens,
dos microscópios, dos telescópios, da câmera – o ato de ver se constituiria como gesto
de posse sobre as coisas do mundo, de domínio sobre a alteridade. A história da
câmera é a história de uma máquina de apropriação e de conquista; é a história de uma
pedagogia do ver=ter, de uma forma de construção do saber histórico onde se eu
“tenho” um pedaço da história (um documento), eu consigo “vê-la” tal como foi (uma
premissa que facilita a produção de narrativas homogeneizantes sobre o passado).
III – aonde isso nos leva? vamos analisar mais detidamente esse ponto
Estou dizendo que retomar um arquivo/um documento, num filme, pode ser MENOS
dominá-lo (conhecer por inteiro), e MAIS experimentar suas lacunas. Há muitos
cineastas que trabalham essa ideia. E estou dizendo que esse gesto artístico, quando
envolve a retomada de acontecimentos históricos, propõe uma despedagogia do olhar.
Em O botão de pérola, Guzmán diz: “haverá ocorrido a mesma coisa em outros
planetas. A atitude dos mais fortes terá sido igual em todas as partes”. Tal fala revela
rastros possíveis de outras histórias; rastros inscritos no oceano, nas cordilheiras, no
deserto. São fiapos da história dos homens que, tudo indica, estão inscritos no cosmos.
Esses rastros falam do processo de desaparecimento dos povos e das imagens do
mundo; lembram que cada documento não é somente informação mas também lugar de
ausências.
A partir do que foi dito até aqui, eu queria agora dar um passo adiante para pensar essa
ideia de uma despedagogia das sensibilidades. Esse caminho passa por atentarmos para
separação entre a história dos acontecimentos, de um lado, E a história das imagens,
de outro. No filme a Cordilheira dos Sonhos, o último da trilogia de Guzman, existe um
destaque ao cinegrafista Pedro Salas que filmou, clandestinamente, milhares de horas da
repressão e das rebeliões durante a ditadura no Chile.
Vemos as conversas com o cinegrafista e, ao fundo o seu acervo de fitas VHS, minidvs,
Betacam. Esse encontro favorece a pergunta: Como a história foi filmada, fotografada,
como certas imagens foram produzidas, em que circunstâncias? Quem foram os autores,
quais eram suas expectativas, que usos pretendiam dar a elas, que caminhos as imagens
seguiram? A conversa com o cinegrafista revela que há uma história das imagens.
to discuss and describe how we experience (imagine) the world through images and
as an image.
IV – um exemplo
VER UM TRECHO DO FILME – de 37’30 até 41’50
Ao conversar com o cinegrafista Pablo Salas sobre a história das imagens da ditadura,
GUZMAN abre o caminho para uma história do sensível (próxima daqueles que
tomaram parte no acontecimento) > experimentamos / imaginamos a ditadura chilena
através das imagens e como imagem > Guzman nos lembra que nossa experiencia de
mundo se dá através de imagens, que imaginamos o mundo como imagem;
A Cordilheira dos Sonhos” é o ultimo filme de uma trilogia iniciada com “Nostalgia da
Luz” (2010) e “O botào de pérola” (2015) em que o cineasta faz um relato ambicioso e
afetivo da história do Chile. Os três filmes exploram poeticamente a relação entre
ditadura chilena – uma das mais longas do cone sul (de 1973 até 1990) – os povos
originários da região e a paisagem geográfica do país: o deserto de Atacama, o mar e as
cordilheiras dos Andes.
O que esse trecho exibido mostra é a importância que o filme dá àqueles que
registraram o acontecimento (da ditadura).
Bom, o que estou explorando aqui é que há filmes que, ao retomarem um evento
passado traumático, consideram importante revelar informações sobre a história do
registro desse acontecimento, sobre seus autores. Cineastas como Harun Farocki,
Susana de Sousa Dias, Anita Leandro, pra citar alguns, mostram que questões
vinculadas à história das imagens são tb importantes. A historiadora Sylvie Lindeperg,
autora do livro Noite e Neblina: um filme na história (2007; filme de Alain Resnais de
1955), vai dizer: “não é possível respeitar a “verdade histórica” se a história das
imagens é negligenciada, se suas determinações técnicas são ignoradas.
Mas fico pensando que exibir a história das imagens, como faz Guzman, é também uma
forma de expor as lacunas do registro (algo que vim falando no início > do
ver=possuir para ver=perder); um modo de favorecer outras pedagogias da
sensibilidade. O cinegrafista Pablo Salas num certo momento pergunta: há imagens da
tortura? como registrar/filmar a tortura, as mutilações, os enforcamentos? Ele não tem
essas imagens evidentemente. Portanto, há vazios na história das imagens ainda que
tantos filmes tenham sido feitos sobre os autoritarismos de estado, as ditaduras, os
fascismos.
VI – em conclusão
Interessa, nesse cinema que venho pesquisando, aquele que retoma imagens do passado
(ou até do presente), de modo a mostrar como elas carregam tensões, lacunas; nesse
cinema, as imagens de arquivo deixam de reivindicar verdades acabadas e passam a
exibir vazios. Há vazios entre o que as imagens eram (registro neutro, representaçoes) e
o que passam a ser a partir do filme (matéria viva, cheia de histórias).
No caso de Guzman, o gesto de desacelerar as imagens (seja das ondas do mar, das
fotografias do indigenas), a narração bem pausada e as correspondência entre geografia
do Chile, o cosmos, a natureza fazem com que os acontecimentos de extermínio e
genocídio – em séculos diferentes – possam se cruzar numa outra temporalidade onde o
passado encontra o presente, coincide com ele.
Por fim, retomo a premissa de que poderia haver uma função (des)educacional no
cinema documental de arquivo. Esse processo acontece quando o filme não usa a
imagem como prova, mas como fonte de espanto, de investigação sobre seus vestígios,
sua própria materialidade. VER (Didi-Huberman) passa a ser a arte de se deparar com
os vazios que habitam as imagens e as coisas; VER é não se decidir entre o visto e o
invisível que as integram. VER seria habitar - com desassossego/inquietação - a
fronteira entre o que vemos e o que não vemos. Segundo Didi-Huberman, entre o que
vemos e o que nos olha.
FIM –
DIDI > um novo uso para as imagens de arquivo: elas não só produzem conhecimento
sobre o passado, mas produzem uma experiência, nos remetem ao nosso presente
(problematiza ele) e ao porvir tb.
> a necessidade de imaginar a partir das palavras, dos lugares < > imaginar o
inimaginável, o intolerável, o que nenhuma imagem jamais poderá dar conta;
Questão do livro DIDI:
Como identificar nessas imagens uma potência que pode torná-las novas ainda hoje?
Como tornar essas imagens um problema do presente/futuro e não do passado?
Porque não se trata das mesmas imagens... Essas imagens carregam consigo um
resíduo, um traço, um rastro (desenquadramento, a falta de nitidez, o tempo levado
para tirá-las);
Que resíduo é esse que marca essas imagens? O resíduo é o risco, o perigo, a urgência
> lidar com este resíduo é lidar com a própria complexidade da imagem.
Mas essas 4 fotografias são quatro recusas arrancadas de um mundo que os nazistas
queriam apagar: um mundo sem palavras e sem imagens. 31