Você está na página 1de 5

HISTÓRIA, FICÇÃO E MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DE “NÓS QUE AQUI

ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS”


Rodrigo Westeuser1
Yara Fernanda Chimite2

Introdução
Este trabalho analisa o documentário Nós que aqui estamos por vós esperamos,
lançado em 1999 por Marcelo Masagão. O filme resgata, em pouco mais de uma hora,
diversos dos eventos e transformações mais impactantes do século XX, passando por grandes
guerras, revolução tecnológica, feminismo, mudanças estéticas, entre outros.
A obra faz uso de uma construção bastante original, removendo um dos principais
elementos de um documentário: o narrador. Por conta disso, o protagonismo fica todo para as
imagens e suas legendas, que são acompanhadas por efeitos sonoros, silêncios, ou músicas –
do compositor belga Wim Mertens – gerando um efeito de tensão constante e incentivando a
reflexão. Outro aspecto que chama atenção é que, contrariando uma historiografia tradicional,
Masagão dividiu as atenções, geralmente reservadas aos grandes personagens, com a
população em geral, usando biografias de pessoas comuns para enriquecer a narrativa.
O documentário foi realizado com financiamento de uma bolsa de estudos da
Fundação MacArthur (The MacArthur Foundation), e orçamento de apenas 140 mil dólares,
dos quais mais da metade foram destinados à compra dos direitos autorais das fotografias,
vídeos e obras de arte, provenientes de mais de 40 instituições e indivíduos ao redor do
mundo (MASAGÃO, 1999a).
Devido à sua construção e conteúdo, Nós que aqui estamos por vós esperamos é uma
importante obra do cinema nacional e serve a uma variedade de discussões. Para este trabalho,
a proposta é usar o filme como base para debater as relações entre história, ficção e memória,
suas intersecções e distinções. É um assunto bastante em evidência na História, que tem
passado, nos últimos anos, por diversas reavaliações de seu campo de atuação, suas fontes de
pesquisa, e seus preceitos científicos. A análise do documentário não pretende de forma
alguma esgotar o tema, mas vir a se somar à essa importante conversa para a área
historiográfica.

1
Graduado em Música – Bacharelado em Clarinete pela Escuela Universitária de Música – UDELAR (Uruguai)
e em Turismo pela PUCRS, especialista em Música Sacra e Composição Barroca pela Universidade Livre de
Berlim, e mestrando em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. Contato:
rodrigowesteuser@gmail.com.
2
Bacharel em História pela ULBRA e mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade
Feevale com bolsa PROSUC/CAPES. Contato: yarachimite@gmail.com.
Discussão
Como diz Roger Chartier (2008), história, memória e ficção são três modalidades de
relação que a sociedade mantém com o passado. Não é surpresa, portanto, que andem
frequentemente de mãos dadas e seus limites, por vezes, se confundam.
Quando a subjetividade do historiador foi trazida à tona, os questionamentos sobre a
validade da história enquanto ciência foram inevitáveis e chegaram ao ponto de uma completa
eliminação do espaço entre a História e a ficção. Diversos estudiosos, porém, se esforçaram
para estabelecer claramente a distinção. Sandra Pesavento (2008) descreve a tarefa do
historiador como uma recuperação do não-vivido, uma construção narrativa que forma um
“terceiro tempo”, nem passado, nem presente, e que substitui o acontecido. Embora reconheça
que essa temporalidade só pode existir por força da imaginação, a autora frisa que os
historiadores não criam situações ou personagens, apenas os descobrem nas fontes.
Essa diferença é crucial, uma vez que o texto ficcional não tem tal limitação. Ambas
trabalham com a construção de uma narrativa verossímil, e a ficção até pode ser embasada por
fontes documentais, porém, onde a ficção tem liberdade para preencher lacunas ou modificar
fatos como convenha, a história se esforça por representar uma realidade que existiu, embora
não exista mais. Os historiadores almejam a verdade, e isso aparece na própria narrativa
historiográfica, permeada de evidências, citações e referências que visam ancorar o texto
firmemente no real (CHARTIER, 2008; PESAVENTO, 2008). A historiografia é um discurso
crítico que se constitui a partir de traços do passado, segundo o paradigma indiciário de Carlo
Ginzburg (1989), o qual conclui que “reconhecer as dimensões retórica ou narrativa da escrita
da história não implica de maneira alguma negar-lhe o estatuto de um conhecimento
verdadeiro, construído a partir de provas e controles” (GINZBURG apud CHARTIER, 2008,
p. 165)
Partindo disso, Nós que aqui estamos por vós esperamos é ficção ou história?
Masagão conta que o filme foi produzido após três anos de intensos estudos do século XX e a
obra é formada por um número de documentos, fotografias e vídeos de acontecimentos reais
(MASAGÃO, 1999a). Por não seguir o formato padrão, no entanto, o cineasta relata que seu
trabalho foi melhor recebido em festivais de ficção do que de documentários (MASAGÃO,
1999b).
Há motivo para isso ocorrer. Entre o levantamento das provas documentais e a
colocação em forma literária, Paul Ricoeur (2007) destaca uma terceira etapa da
historiografia: a construção da explicação. O historiador organiza os fatos em uma narrativa
coerente, estabelecendo causas e razões para os acontecimentos. Em Nós que aqui estamos
por vós esperamos Masagão abriu mão da explicação – geralmente realizada pelo narrador –
em prol da reflexão, deixando as imagens falarem por si mesmas. Não só isso, o documentário
também é apenas semi-linear, indo e voltando no tempo, organizado mais por temas, como a
estética, mulheres, religiosidade e industrialização. Mas há algumas relações de causalidade,
como a história de Hans e Anna (21 min.). O feliz casal foi separado pela Segunda Guerra
Mundial, ele para o front de batalha, ela para as fábricas de bombas. A montagem e o texto
contam a história, da produção, dos lançamentos e da destruição resultante.
Outro fator precisa ser levado em consideração. O cineasta construiu sua obra em cima
de micro-biografias, alguns segundos da vida de pessoas comuns que presenciaram e
participaram dos grandes acontecimentos do século XX. Em breves introduções, o
documentário consegue fazer com que o público se importe com centenas de pessoas, só para
matá-las logo em seguida. Ajudam a criar identificação as imagens por trás das legendas, que
dão rosto à pessoa rememorada, mas é aí que entra o questionamento sobre a veracidade das
informações: os textos nem sempre correspondem à imagem apresentada. Exemplo na famosa
cena do homem em frente a um tanque na China em 1989 (30 min.). O homem nunca foi
identificado, porém, no documentário, está sendo contada, ao mesmo tempo, a história de um
professor de literatura de nome Chen Yat-sen, estudioso de Baudelaire e falecido em 1998.
Apesar de as imagens serem reais, o filme não é todo permeado de documentos que
comprovem que cada micro-biografia corresponde a uma pessoa de verdade, fazendo com que
não se enquadre em uma narrativa historiográfica. É a terceira modalidade de relação da
sociedade com o passado mencionada anteriormente, a memória, que melhor se enquadra na
proposta do documentário.
Nós que aqui estamos por vós esperamos apresenta em sua abertura aquilo que quer
ser: uma “memória do breve século XX”. É uma explícita referência ao livro de Eric
Hobsbawm, A Era dos Extremos, lançado originalmente em 1994, em que o historiador relata
os principais acontecimentos entre 1914 e 1991. A primeira frase que aparece no
documentário, “o historiador é o rei”, expressa o que a obra deve à pesquisa histórica. Mas
sua construção é mais memória do que história.
Segundo Chartier, a memória “é movida por exigências existenciais de comunidades
para as quais a presença do passado no presente é um elemento essencial na construção de seu
ser coletivo”, enquanto a História “está inscrita na ordem de um saber universalmente
aceitável – científico” (2008, p. 169-170). Para o autor, a memória é a prova de um passado
que existiu e pode ser estudado pela história. Pesavento (2008) expressa que as memórias são
os relatos de vivências que a história resgata para compor sua narrativa. A diferença está entre
a reminiscência imediata e a construção de uma explicação (RICOEUR, 2007).
Nós que aqui estamos por vós esperamos não estabelece uma explicação, como já
mencionado, mas faz uso das imagens para ativar gatilhos da memória coletiva da civilização
ocidental. Como diz Sandra Pesavento citando Aby Warburg, “a imagem é um órgão de
memória social, a transmitir as tensões espirituais de uma cultura, os conflitos, os desejos e os
fantasmas que assombravam a alma e que estavam na base dos comportamentos sociais”
(2008, p. 188).
Masagão eliminou a narração do documentário e deixou as imagens falarem por si
mesmas. Mesmo as legendas acrescentam poucas informações, raramente situando com
precisão o que está acontecendo. Mas, como explica Michael Pollak, alguns eventos são tão
impactantes que sua memória se estende por gerações, as atividades de rememoração
atingindo também aqueles que não estavam presentes. A montagem de Nós que aqui estamos
por vós esperamos faz uso disso, levando o espectador, mesmo aqueles distantes do
acontecimento – geográfica ou temporalmente – a buscar em seu arquivo mental todos os
conhecimentos e sentimentos associados com o fato retratado.
Exemplo disso é a seção sobre ditadores (32 min.), introduzida com a foto de um bebê
e a legenda: “Indolente, mal-humorado e austero. Pouco dinheiro, poucos amigos, poucas
mulheres. Nem cigarro, nem bebida. Bigode ralo”. O espectador já sabe de quem se trata antes
mesmo de ele aparecer. E o nome de Adolf Hitler sequer é mostrado, apenas uma fotografia
distorcida, mas a imagem do Fürer, tanto física quanto sua personalidade, está tão
impregnada na consciência coletiva que seu reconhecimento é imediato

Considerações finais
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos Marcelo Masagão se propôs a
representar o século XX usando de uma abordagem original pautada por imagens e texto, com
construção semi-linear e sem narração. Embora seja embasada em documentos e pesquisas
históricas, sua obra não consiste em uma narrativa historiográfica. Ela exibe aspectos de
ficção ao não apresentar as “provas” (citações, referências) de que cada um dos personagens
retratados através das micro-biografias é real. Ele também abre mão de uma abordagem
explicativa em prol da reflexão, não estabelecendo relações de causalidade entre os fatos.
Ao fazer uso de imagens que marcaram a consciência coletiva, porém, amplamente
divulgadas, da mídia aos livros didáticos, Masagão brilhantemente compõe uma memória do
século XX, criando gatilhos que constantemente levam o espectador a buscar sentimentos e
conhecimentos, vividos ou herdados, sobre os fatos retratados. O documentário serve, ainda,
como uma interessante ilustração das discussões acerca das diferenças entre história, ficção e
memória que têm sido tão importantes na área historiográfica.

REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A história: a leitura do tempo. In: SCHÜLER, Fernando; AXT, Gunter;
SILVA, Juremir Machado da (Org.). Fronteiras do pensamento: retratos de um mundo
complexo. São Leopoldo: Unisinos, 2008. p. 163-178.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.

MASAGÃO, Marcelo. Carta de apresentação. UOL, [1999]a. Disponível em:


<http://www2.uol.com.br/filmememoria/apresentacao.htm>. Acesso em: 25 ago. 2018.

MASAGÃO, Marcelo. Recortes do século: entrevista. Entrevistador: Émerson Maranhão.


[Fortaleza]: Vida & Arte - O Povo, [1999]b. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/filmememoria/txt-opovo.htm>. Acesso em: 25 ago. 2018.

NÓS que aqui estamos por vós esperamos. Produção, direção e roteiro: Marcelo Masagão.
[S.l.]: Riofilme; Filmark, 1999. 1 DVD (73 min), son., p&b/color., 35 mm.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da história: uma leitura sensível do tempo. In:
SCHÜLER, Fernando; AXT, Gunter; SILVA, Juremir Machado da (Org.). Fronteiras do
pensamento: retratos de um mundo complexo. São Leopoldo: Unisinos, 2008. p. 179-190.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n.


10, p. 200-212, 1992. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080>. Aceso em: 25 ago.
2018.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

Você também pode gostar