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Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História

25 a 27 de junho de 2013
Universidade Federal de Uberlândia

BATMAN BEGINS - A HISTÓRIA DO INICIO DO SÉCULO XXI


APRESENTADA PELA FICÇÃO

Matheus Felipe Barbosa e Alves1

RESUMO: A adaptação da história de Batman criada para o cinema por Christopher


Nolan, apresenta um cenário mais real e sombrio onde o herói é apresentado como
contemporâneo do início do século XXI. Logo, sendo ambientada em nossa
contemporaneidade, muitos dos aspectos apresentados no filme (enredo, problemas e
ideologias), são oriundos de nossa sociedade e nos permite vislumbrar algumas das
angústias, certezas e incertezas do início do terceiro milênio. Em nosso trabalho,
buscamos analisar os componentes reais do tempo histórico de produção transmitido no
filme Batman Begins, o primeiro da trilogia e considerada a mais sombria adaptação do
herói para a indústria cinematográfica que, por coincidência ou não, foi produzida em
um período que corresponde a um dos tempos mais tenebrosos da história estadunidense
e do mundo pós guerra-fria, onde o medo do terrorismo, crises econômica, problemas
sociais e guerras compõem o ambiente de criação dessa nova aventura.

Um filme de super-herói como fonte de História?

Rachel vira o carro de uma vez e entra em uma rua estreita e escura,
apesar de ser dia, com inúmeros mendigos, muita fumaça, roupas
velhas estendidas em cordas, papéis cobrindo o chão, papelão sendo
utilizado como colchão, sacos cheios de lixo. Ela então diz para
Bruce:
- Você se importa com justiça? Olhe além de sua própria dor. A
cidade está apodrecendo. Falam da depressão como se fosse passado.
As coisas estão piores que nunca. Falcone inunda nossas ruas com
crimes e drogas, criando novos Chills todos os dias. Falcone pode não
ter matado seus pais, Buce, mas está destruindo tudo aquilo por que
lutaram. Se quiser agradecer a ele, vá em frente. Sabemos onde está.
Mas será intocável enquanto mantiver os maus ricos e os bons
apavorados. Os bons como seus pais, que combatem a injustiça,
morrem. Que chance tem Gotham se os bons não fizerem nada?
(NOLAN, 2005, 26min30seg).

O fragmento acima transcrito é uma cena do primeiro filme de Batman da


trilogia O Cavaleiro das Trevas de Cristophe Nolan. Nela, apesar de se tratar de uma
narrativa fictícia, é possível enxergarmos elementos da realidade histórica nossa?
Buscando responder a essa questão, vamos voltar à produção do filme e à
origem do herói dessa narrativa ficcional. Criado em 1939 por Bob Kane e Bill Finger,
Batman conta a história do bilionário Bruce Wayne que, aos oito anos de idade
presencia o assassinato dos seus pais, treina seu corpo e mente para tornar-se um

1
Mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes.
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detetive-vigilante que, mascarado, percorre as ruas de Gotham City atrás de todos os


tipos de criminosos. Suas aventuras surgiram nas páginas das histórias em quadrinho
americanas, as chamadas comics, da empresa DC Comics, hoje uma subsidiária da
Warner, produtora de filmes, programas televisivos e outros.
A história do Homem-Morcego já foi adaptada diversas vezes para o cinema e
televisão desde a década de 1960, inclusive com séries animadas, onde o herói era o
personagem principal ou um dos principais. Com o surgimento de jogos virtuais, o
Homem-Morcego também adentrou esse universo dos games e da internet.
Diferente dos outros heróis, Batman não possui super poderes ou armaduras que
lhe conferem habilidades especiais. O cavaleiro das trevas utiliza apenas artes marciais,
teatralidade, seu intelecto e ferramentas tecnológicas que lhe auxiliam em seu trabalho
de detetive, como um supercomputador, carros (os batmóveis) e aeronaves que lhe
servem como meio de locomoção por sua cidade e perseguir seus inimigos.
A adaptação da história do homem-morcego para as telonas na trilogia criada
por Christopher Nolan2 apresenta um cenário mais real e sombrio para os fãs deste
herói. Nela, o produtor traz o herói para o início do século XXI, sendo que o original
dos quadrinhos, o personagem tinha por ano de nascimento 1916. Logo, se a trilogia
está ambientada em nossa contemporaneidade, muitos de seus aspectos (enredo,
problemas e ideologias) são oriundos de nossa sociedade nos permitindo vislumbrar no
filme, as angústias, certezas e incertezas da sociedade do início do terceiro milênio.
Tom Gunning, diz que a "(...) cultura do cinema é baseada menos em objetivos e
mais em intangíveis efeitos de memória e experiências compartilhadas" (GUNNING,
1996, p. 42). Isso se refere tanto ao momento de produção quanto ao momento de
recepção da produção. No processo de criação, até mesmo de forma inconsciente,
diretores, atores, produtores e demais pessoas envolvidas com o processo de construção
da narrativa fílmica, acabam por colocar nas imagens, elementos que compõe o cenário
real do momento de produção, seja com penteados, roupas, carros apresentados nas
cenas ou com estruturas de linguagem, pensamento, ideologias dentre outros. Já no
processo de recepção, as experiências podem ser as mais diversas possíveis, pois essa

2
Christopher Nolan é um britânico nascido em 30 de julho de 1970 formado em literatura britânica que
possui dupla nacionalidade, sendo também cidadão americano. Desde os 7 anos já fazia filmes utilizando
uma câmera Super-8 de seu pai e bonecos. Seus filmes são marcados por conflitos psicológicos e grandes
reviravoltas no enredo.
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experiência compartilhada apontada por Gunning extrapola o entretenimento que é o


principal objetivo do cinema. Como Thompson deixa claro,

(...) a compreensão que um indivíduo tem das mensagens transmitidas


pelos produtos da mídia pode sofrer transformações, pois elas são
vistas de um ângulo diferente, são submetidas aos comentários e à
crítica dos outros, e gradualmente impressas no tecido simbólico da
vida cotidiana (THOMPSON, 1998, p.45).

As imagens movimento são interpretadas de maneiras diferentes em cada lugar


em que são veiculadas e por cada espectador que aprecia a película. E, para além da
experiência de vida de cada um que o faz ter perspectivas diferentes sobre o filme, as
mensagens, como afirma Thompson, "(...) são submetidas aos comentários e à crítica
dos outros" (THOMPSON, 1998, p. 45). Nesses comentários e críticas, uma nova visão
sobre o conteúdo passado pelos filmes surgem em meio aos espectadores e, até
informações que a produção não tinha intenção de passar para o público são
compartilhadas e discutidas pelos espectadores em diferentes plataformas.
Gunning afirma que o "(...) cinema sempre oscilou entre dois polos, o de
fornecer um novo padrão de representação realista e (simultaneamente) o de apresentar
um sentido de irrealidade, um reino de fantasmas impalpáveis" (GUNNING, 1996, p.
25). A história criada por Nolan já nasce cumprindo o segundo ponto abordado por
Gunning por se tratar de uma ficção. Portanto, a irrealidade está intrínseca ao
assistirmos filmes de heróis. Mas devemos nos atentar para a primeira parte da
afirmação do autor, quando ele diz que o cinema busca uma representação realista. Para
além da sensação de que as cenas parecem ter realmente ocorrido e que a história pode
se passar em algum lugar do qual não temos conhecimento, a representação realista,
para que tenha maior efeito, precisa contar com padrões que sejam facilmente
assimilados pelo público que é contemporâneo à produção. Assim, categorias de
pensamento não são divergentes das presentes nas sociedades originárias da obra
ficcional.

Os filmes populares têm uma vida que vai além da exibição nas salas
de projeção ou de suas reexibições na televisão. Astros e estrelas,
gêneros e os principais filmes tornam-se parte de nossa cultura
pessoal, de nossa identidade. O cinema é uma prática social para
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aqueles que o fazem e para o público. Em suas narrativas e


significados podemos identificar evidências do modo como nossa
cultura dá sentido a si própria (...) (TURNER, 1997, p. 13).

Pensado para ser exibido em salas de cinema, o filme atinge um público


específico em um local pré-determinado, tendo um nível de atenção por parte dos
espectadores, geralmente um pouco maior do que em outras circunstâncias de exibição.
Thompson nos diz que

(...) os indivíduos podem ler jornais como passatempo, enquanto se


deslocam para o trabalho; podem ligar a televisão para quebrar a
monotonia de preparar um jantar ou para serenar as crianças; ler um
livro para relaxar e escapar temporariamente das preocupações da vida
ordinária (THOMPSON, 1998, p. 43).

Mas, a ideia de ir ao cinema, indica uma pré-disposição a ter maior atenção,


ainda mais no que diz respeito a um filme de ação, pois, se a intenção não é ver o filme,
busca-se uma narrativa mais tranquila ou sugestiva. Consequentemente, se há uma
maior atenção, também haverá uma maior assimilação do conteúdo ofertado. Este
conteúdo não está preso apenas no filme exibido nas salas de cinema, mas tem todo um
aparato que deve ser levado em consideração. O material simbólico impresso no filme,
que é assimilado ou não pelo público, está também nos trailers, cartazes de divulgação,
entrevistas e vídeos de promoção do trabalho, etc.
Utilizando as novas tecnologias midiáticas, temos ao nossa acesso um incontável
número de material que pode ser analisado como fontes do estudo da história. Como
bem apontado por Henry Jenkins, "(...) a gravação em vídeo tornou possível tratar o
filme como um manuscrito a ser minuciosamente estudado e decifrado" (JENKINS,
2009, p. 63), soma-se a esse manuseio do filme a capacidade de arquivar vídeos,
documentos, imagens, entrevistas e uma série de outras coisas na internet, e temos um
problema novo para os estudos de história que é o oposto do que pode acontecer ao se
estudar fatos e pessoas de um tempo distante: o excesso de fontes e informações sobre
um mesmo evento.
Henri-Irénnée Marrou, ao falar sobre o que é um documento para os estudo de
história, dez que
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Constitui um documento toda fonte de informação de que o espírito do


historiador sabe extrair alguma coisa para o conhecimento do passado
humano, considerado sob o ângulo da questão que lhe foi proposta. É
perfeitamente óbvio que é impossível dizer onde começa e onde
termina o documento; pouco a pouco, a noção se alarga e acaba por
abranger textos, monumentos, observações de todo gênero
(MARROU, 1978, p. 62).

Para aqueles historiadores que trabalham com o século XX ou a história mais


recente, é difícil não ter que utilizar imagens, sons, textos não científicos e não oficiais,
até porque, a cada dia que se passa, o audiovisual e a internet se tornam cada vez mais
presentes na vida das pessoas. Como nos fala Marcos Napolitano, hoje,

(...) tudo é dado a ver e a ouvir, fatos importantes e banais, pessoas


públicas e influentes ou anônimas e comuns. Esse fenômeno já
secular, não pode passar despercebido pelos historiadores,
principalmente para aqueles especializados em História do século XX
(NAPOLITANO, 2006, p. 235).

As pessoas adquirem informações em telejornais ou sites de internet, se


comunicam por redes sociais on-line que agora também passam a poderem ser
acessadas pela televisão. O lazer se encontra no mundo virtual que é composto por
elementos audiovisuais em sua maioria. Assim, não tem como deixarmos de analisar
estas importantes fontes que compõem o cotidiano do homem do início do século XXI
de grande parte do mundo globalizado, principalmente da parte ocidental.
Finalizando esse nosso tópico de discussão, prestemos atenção ao que nos diz
Douglas Kellner sobre a Cultura da Mídia:

(...) a cultura veiculada pela mídia transformou-se numa força


dominante de socialização: suas imagens e celebridades substituem a
família, a escola e a igreja como árbitros de gosto, valor e
pensamento, produzindo novos modelos de identificação e imagens
vibrantes de estilo, moda e comportamento (KELLNER, 2001, p. 27).

Que os "ídolos" são importantes vetores na formação identitária das pessoas


nesse novo milênio, não discutimos, até porque já fizeram essa análise e chegaram à
conclusão que sim. Mas será que o personagem também exerce o mesmo fascínio que o
ator? Ícones do cinema recente como Harry Potter e Batman exercem o mesmo poder
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que figuras como Justin Biber e Neymar, que têm seus cortes de cabelo imitados, fãs
que acabam utilizando algo porque um deles usou ou falou que é bom?
Essas são questões que só podem ser resolvidas lançando mão de fontes novas
que, por vezes, podem assustar aos historiadores que estão tão acostumados a
trabalharem com documentação cheirando a mofo e reconstituição da vida de pessoas
que, talvez, nem tenham mais seus ossos em nosso meio.

Uma cena em destaque

A trilogia fílmica de Nolan é considerada a mais sombria adaptação do homem-


morcego para a indústria cinematográfica que, por coincidência, ou não, foi produzida
em um período que corresponde a um dos tempos mais tenebrosos da história
estadunidense e do mundo pós guerra-fria, onde o medo do terrorismo, crises
econômicas, problemas sociais e guerras difíceis de se vencer compõem o ambiente de
criação dessa nova aventura do "morcegão".
Lançado em 2005, o primeiro filme da trilogia foi pensado e produzido após os
atentados do dia 11 de setembro de 2001, quando o governo americano bancava ao
menos duas guerras de forma direta (Afeganistão e Iraque) e começava a sentir sinais de
uma grave crise econômica que teve seu auge em 2008.
A tônica do enredo Batman Begins é narrar a origem do herói que vê seus pais
assassinados em um assalto em meio a uma crise econômica que jogara Gothan em
estado social de fome, miséria, terror. Com esse pano de fundo e vendo a cidade como
mais um personagem da trama e não mero espaço de desenvolvimento dos fatos, vemos
trasposto para a narrativa problemas sociais do início do século XXI, tais como o tráfico
de drogas, desemprego, desigualdade social, problemas de saneamento básico e de
saúde, inclusive psicológica ao nos apresentar o vilão Espantalho, um psiquiatra
especialista em farmacologia que administra o hospício Arkham.
Chegando ao clímax do filme, onde o herói luta com seu mestre e antagonista
mor, Ra's al Ghul, Bruce Wayne tem um diálogo interessante com o vilão. Mandando
os convidados de sua festa embora, Bruce se vê cara a cara com o líder da Liga das
Sombras.
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Ra's al Ghul: Divertido. Mas inútil. Nenhuma dessas pessoas viverá


por muito tempo. O que aprontou no Arkham me obrigou a agir.
Bruce: Então, Crane estava trabalhando para você.
Ra's al Ghul: Sua toxina vem do composto orgânico de nossas flores
azuis. Conseguiu fazer dele uma arma.
Bruce: Ele não é da Liga das Sombras?
Ra's al Ghul: Claro que não. Ele pensava que o plano fosse extorquir
dinheiro.
Bruce: Mas, na verdade, você vai soltar o veneno dele por toda a
cidade.
Ra's al Ghul: E depois, assistir à destruição de Gotham pelo medo.
Bruce: Você destruirá milhões de vidas.
Ra's al Ghul: Só um cínico chamaria de "vida" o que essa gente tem.
Crime. Desespero. Não é assim que os homens deveriam viver. A Liga
das Sobras combateu a corrupção humana por milhares de anos.
Devastamos Roma. Enchemos navios mercantes de ratos. Ateamos
fogo em Londres. Toda vez que uma civilização atinge o auge da
decadência voltamos para restabelecer o equilíbrio.
Bruce: Gotham ainda pode ser salva. Dê-me mais tempo. Há pessoas
boas aqui.
Ra's al Ghul: Defende uma cidade tão corrupta que nos infiltramos em
cada nível da infraestrutura. Quando encontrei você na prisão, estava
perdido. Mas eu acreditei em você. Tirei o seu medo e lhe mostrei um
caminho. Você foi meu melhor aluno. Deveria estar do meu lado
agora, salvando o mundo.
Bruce: Vou ficar onde é meu lugar. Entre você e o povo de Gotham.
Ra's al Ghul: Ninguém pode salvar Gotham. Quando uma floresta fica
selvagem demais um incêndio purificador é natural e inevitável.
Amanhã o mundo verá, horrorizado, sua maior cidade destruir a si
própria. O movimento de volta à harmonia será irrefreável desta vez.
Bruce: Já atacou Gotham antes?
Ra's al Ghul: Claro! Com o tempo, nossas armas ficaram mais
sofisticadas. Tentamos uma nova com Gotham: economia. Mas
subestimamos alguns cidadãos de Gotham... como seus pais. Foram
mortos por uma das pessoas que eles ajudavam. Crie fome suficiente,
e todos se tornam criminosos. Suas mortes incitaram a cidade a se
salvar e Gotham tenta sobreviver desde então. Voltamos para terminar
o serviço. Desta vez, nenhum idealista desorientado vai nos atrapalhar.
Como a seu pai, falta a você coragem para fazer o necessário. Se
alguém atrapalha a verdadeira justiça, você simplesmente vai atrás e o
apunhala no coração.
Bruce: Vou deter você.
Ra's al Ghul: Nunca esteve atento ao seu redor. Justiça é equilíbrio.
Você queimou minha casa e me largou lá. Agora estamos quites.
(NOLAN, 2005, 1h45min02seg).

Tendo em mente o proposto por Johnni Langer, que diz que é "(...) necessário
perceber o filme enquanto testemunho/documento, integrando-o ao contexto social em
que a obra surge: autor, produção, público, regime político, etc" (LANGER, 2004,
edição eletrônica), conseguimos extrair importantes informações da sociedade ocidental
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do início do século XXI. Não queremos, em hipótese alguma, dizer que as questões
abordadas na película sejam homogêneas para todas as sociedades do mundo ocidental.
Mas, são ao menos de conhecimento e relevância na história do início do novo milênio.
Sendo assim, analisemos o diálogo acima transcrito: A primeira frase que nos
chama a atenção é proferida por Ra's al Ghul ao nos dizer que irá "(...)assistir à
destruição de Gotham pelo medo" (NOLAN, 2005, 1h45min02seg). Essa referência nos
remete ao terrorismo que assola o mundo ocidental desde os atentados do dia 11 de
setembro de 2001.
Cristopher Nolan é conhecido por empregar em seus filmes um alto teor
psicológico. Com esse seu traço característico e trabalhando com um herói sombrio
como é Batman, não é de se espantar o uso do medo e do terrorismo no enredo, uma vez
que busca-se uma atmosfera realista para que o público tenha um maior envolvimento
com a trama, se identifique com a produção e gere maior lucro para os produtores.
Ra's al Ghul continua o diálogo dizendo que os homens não devem viver em
meio ao crime e ao desespero, passando a citar eventos da história da humanidade,
como a destruição de Roma, a peste negra e o incêndio de Londres, fazendo esses
eventos isolados da história se tornarem frutos das ações da Liga das Sombras que agere
para salvar a humanidade. Com isso, voltamos à afirmação de Tom Gunning ao afirmar
que o cinema busca fornecer um "(...) padrão de representação realista (...)"
(GUNNING, 1996, p. 25). Cruzando fatos de nossa história com o enredo fictício, a
produção do filme tem a intenção de aproximar da realidade a história criada, passando
a ideia de que tudo o que se passa ali é real ou pelo menos mais real do que pensamos
ser.
Na sequência do diálogo, Bruce diz a Ra's al Ghul: "Gotham ainda pode ser
salva. Dê-me mais tempo. Há pessoas boas aqui" (NOLAN, 2005, 1h45min02seg).
Temos uma alusão à história bíblica de Sodoma e Gomorra, na qual Abraão intercede a
Deus que não as destrua, mas Deus pede que encontre 10 justos na cidade para a deixá-
la intacta. Não encontrando, Deus destrói as cidades para que a humanidade tenha uma
purificação e tome o caminho correto.
Após essa analogia a Sodoma e Gomorra, temos Ra's al Ghul afirmando a Bruce
que ele [Bruce] "Deveria estar do meu lado agora, salvando o mundo" (NOLAN, 2005,
1h45min02seg). Tanto Bruce como Ra's al Ghul se colocam na posição de salvadores,
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de heróis. Esse é um novo modelo que vem sendo desenvolvido nas estruturas
narrativas recentemente. Bem e mau já não são separados e caracterizados de forma
estereotipada. Temos cada vez mais personagens e histórias em que vilões se tornam
heróis e vice-versa.
No segundo filme da trilogia O Cavaleiro das Trevas, temos um personagem
que ilustra bem essa mistura de bem e mau em uma pessoa: Havey Dent, novo promotor
de Gotham City, incorruptível, justo, o cavaleiro branco de Gotham e substituto do
cavaleiro das trevas. No entanto, ao perder o amor de sua vida, transforma-se no vilão
Duas-Caras e passa a manifestar uma maldade cheia de ódio, fúria e vingança.
Assim como é conhecido na filosofia oriental, as pessoas têm capacidades para
fazerem o bem e o mau. Temos as energias Yin e Yang que lutam em nosso interior.
Hora fazemos coisas boas, hora fazemos coisas ruins. No diálogo de Ra's al Ghul com
Bruce, ambos se veem na posição de salvadores. Cada um a sua maneira, acredita
veementemente que está fazendo o certo. Bruce, com um senso de moral que valoriza a
vida de cada um, por pior que a pessoa seja e corra o risco dela tirar a vida de outros. Já
Ra's, acredita que a vida de um vale menos que a vida de milhares.
Não vemos um embate semelhante na "guerra invisível" que se desenrola entre
Estados Unidos e Terrorismo? Ambos não acreditam estar fazendo o certo? Um protege
seu território, estilo de vida e economia enquanto que outro protege seu cultura, religião
e culpa o próximo pelos problemas de grande parte do mundo.
Para a definição do certo e do errado temos uma questão de poder. No filme,
somos "manipulados" para vermos as atitudes Ra's al Ghul como feitos de vilania. Sua
missão purificadora não passa de um ato de terrorismo que causará mortes em massa de
pessoas más e inocentes. Em nossa história real, quem detém os meios de comunicação
passa para a população, para a massa, a visão que deseja criando os heróis e vilões de
nosso mundo. Como dizia Napoleão, a história é escrita pelos vencedores. Por mais que
busquemos escrever hoje a história dos derrotados e minorias, a grande massa ainda
comprará o discurso veiculado pelos vencedores detentores dos meios de divulgação de
sua história.
Segundo o líder da Liga das Sobras, as armas utilizadas por eles para destruir as
"cidades perdidas", evoluíram com o tempo. Eles tentaram destruir Gotham através da
economia. Mais uma frase pequena e simples que revela muito de nossa história
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contemporânea. É possível um colapso mundial por conta da economia? A resposta


todos sabem que sim. Basta olharmos para trás e verificarmos as depressões econômicas
que assolaram o mundo. A crise de 1929, a crise do petróleo e outras crises menores. No
entanto, cada vez mais a economia ganha maior importância na vida das pessoas e se
torna mais e mais globalizada.
Durante a produção do primeiro filme da franquia, indícios de uma crise no setor
imobiliário estadunidense já se despontavam. No último filme, após o estouro da crise
em 2008 e que ainda tem efeitos até os dias atuais, temos um ataque a uma bolsa de
valores pelo vilão Bane, uma referência direta à crise econômica. E se a crise inicia no
setor imobiliário, podemos aludir, mesmo que um pouco forçadamente, a destruição da
mansão Wayne por Ra's al Ghul na cena subsequente à que estamos analisando, com a
crise no setor imobiliários que já vinha preocupando a população estadunidense.
Por último, Ra's al Ghul faz uma associação entre a criminalidade e a miséria.
Segundo notícia de 06 de outubro de 2011 do site Opinião e Notícia, um estudo global
sobre homicídios, realizado pelo Escritório de Crimes e Drogas das Nações Unidas
revelou que a maior parte dos homicídios se concentram na África e Américas. Também
constatou-se que "(...) quedas súbitas no desempenho econômico também contribuem
para um aumento nos índices criminais" (OPINIÃO E NOTÍCIA, 2011, on-line). Este
estudo das Nações Unidas comprova o afirmado por Ra's al Ghul na cena: "Crie fome
suficiente, e todos se tornam criminosos" (NOLAN, 2005, 1h45min02seg). Na cena há
um certo exagero ao colocar que todos se tornam criminosos. Mas, que a condição de
miséria e fome geram um campo para o surgimento e aumento de organizações
criminosa, gangues, tráfico e outras atividades de subversão da ordem, segundo estudo
das Nações Unidas, geram sim.
Como diz Antônio Pedro Tota, o “(...) rádio, a televisão, o cinema, as revistas
em quadrinhos, entre tantas, acompanharam (ou alimentaram) uma completa
transformação da cultura americana em suas mais variadas formas” (TOTA, 2009, p.
188-189). Diríamos que eles ainda acompanham e alimentam a cultura estadunidense
que por sua vez alimenta a cultura global. Esta análise de apenas uma cena do primeiro
filme da trilogia mais recente de Batman, só nos é permitida se conhecemos um pouco
do contexto histórico no qual o roteiro foi escrito e o filme produzido, se levarmos em
consideração a história de vida dos atores, diretor, produtores, roteiristas e demais
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membros envolvidos com o processo de criação de toda a trama, pois, como nos diz
Langer,

É necessário perceber o filme enquanto testemunho/documento,


integrando-o ao contexto social em que a obra surge: autor, produção,
público, regime político, etc. Mas um filme não é feito apenas de
imagens, mas também de textos escritos (legendas), sons (falas
gravadas e trilha sonora), formando um conjunto de representações
visuais e textos (no sentido semiótico) (LANGER, 2004, edição
eletrônica).

Finalizando nossa análise da cena, percebemos que, em parte do diálogo entre


Bruce Wayne e Ra's al Ghul, o cenário de fundo de Bruce é ligeiramente mais claro que
o setor do cenário em que Ra´s al Ghul se encontra, uma jogada de luz e sombra, bem e
mau. Os personagens mudam de lugar ao ser incendiada a casa pelos capangas do líder
da Liga das Sombras e, Ra's al Ghul, passa a ter chamas atrás de si, o que nos alude a
uma visão do inferno, colocando-o em uma posição de referência ao demônio. A trilha
sonora é suspensa em boa parte do diálogo, sendo perceptível quando Ra's al Ghul
começa a falar das cidades que a Liga das Sombras destruíram. Uma trilha de uma nota
só, que nos desperta uma sensação de suspense, intercalda com sonoridades graves que
quase sempre coincidem com as falas de Ra's. Notas mais agudas, "doces" e melodiosas
compõem a música de fundo ao ser lembrada a morte dos pais de Bruce, despertando
um sentimentalismo e provocando simpatia para com o personagem. Ao começar uma
pequena luta durante as frases finais, a trilha se torna forte com tambores ritmados.
Com a análise desta cena, conseguimos verificar importantes elementos que
remetem a fatos, acontecimentos, experiências e mentalidades do início do século XXI e
comprovamos que, como diz Cristiane Nova, a

(...) imagem é histórica, na medida em que ela é produto de seu tempo


e carrega consigo, mesmo que de forma indireta, sub-reptícia e muitas
vezes inconsciente para quem a produziu, as ideologias, as
mentalidades, os costumes, os rituais e os universos simbólicos do
período em que foi produzido (NOVA, 1996, edição eletrônica).

Batman Begins, mesmo sendo uma narrativa audiovisual ficcional, nos fornece
informações que permitem remontar importantes elementos históricos do momentos de
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sua produção e veiculação nas salas de cinema, levando consigo informações que, ao
serem interpretadas, comporão o escopo de conversas, imaginário e formação identitária
dos espectadores para o bem e/ou para o mau.

Referências

GUNNING, Tom. Cinema e História: “Fotografias animadas”, contos do esquecido


futuro do cinema. In: XAVIER, Ismail. O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago,
1996.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: Estudos culturais – identidade e política entre


o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LANGER, Johnni. Metodologia para análise de estereótipos em filmes históricos.


In:_____. Revista História Hoje. São Paulo, v. 2, n. 5. Disponível em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&source=web&cd=1&ved=0CBwQFjAA&url=http
%3A%2F%2Fwww.anpuh.org%2Farquivo%2Fdownload%3FID_ARQUIVO%3D16&r
ct=j&q=Metodologia%20para%20an%C3%A1lise%20de%20estere%C3%B3tipos%20
em%20filmes%20hist%C3%B3ricos&ei=a5KdTt3oBqXisQL1k-
3ZCQ&usg=AFQjCNGJMpWCVrc8d1rXmlmB3UXTvGoDQQ&sig2=6iKZ_2Vxdj2V
35wc7Y3Vag&cad=rja>. Acesso em 01 de maio de 2011.

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