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História e cinema
Dimensões históricas do audiovisual
Copyright © 2007 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
História e cinema/ Maria Helena Capelato... [et al.J. - São Paulo: Alameda,
2007. - (USP: história social. Série coletâneas)
[2007]
Todos os direitos dessa edição reservados à
ALAMEDA CASA EDITORIAL
Rua Ministro Ferreira Alves, 108 - Perdizes
CEP 05009-060 - São Paulo - SP
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índice
Apresentação 9
Parte I
Memória» monumento» historiografia 13
Parte II
Documentos em imagens:
filmes de arquivo 115
Parte III
Cinema e impasses da revolução 171
Parte IV
Cinema e representações da guerra 253
Do texto à imagem:
as faces da violência nas crianças nazistas em Aleluia, Gretchen!
Rosane Kaminski 271
Organizadores
Maria Helena Capelato (História - FFLCH/USP)
Eduardo Morettin (ECA/USP)
Marcos Napolitano (História - FFLCH/USP)
Elias Thomé Saliba (História - FFLCH/USP)
Ismail Xavier1
1 Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor de diversos livros, dentre os quais O Olhar e a
Cena, São Paulo, Cosac 8c Naify, 2003, e O Discurso Cinematográfico: a opacidade e transparência, 3a ed, São
Paulo, Paz e Terra, 2005.
16 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
2 Em seu livro Metropolis (Londres: BFI Pubiishing, 2000), Thomas Elsaesser nos oferece um amplo
comentário sobre tal proliferação e, talvez em consonância com isto, evita argumentações mais empenhadas
numa leitura da alegoria aí presente. Tom Gunning, que nos oferece uma das melhores análises de
Metropolis, em seu livro The Films of Fritz Lang: allegories of vision and modernity (Londres: BFI Pubiishing,
2000), retoma esta questão do excesso de referências, mas articula de maneira mais rigorosa os termos da
proliferação, apresentando uma descrição detalhada que sustenta uma interpretação que tem um quadro
teórico que passa por Angus Fletcher, autor de que vou me utilizar aqui. Essa convergência com Gunning não
é casual, pois nossas referências são comuns, empiricamente comuns, pois resultam de nossa participação
em um grupo de estudos voltado para as questões de “cinema e história” organizado em 1986 na New York
University, grupo do qual também fizeram parte Miriam Hansen, Janet Steiger e Charles Musser. O recurso à
teoria da alegoria de Angus Fletcher é um sinal claro desse diálogo, mas a direção de minha leitura alegórica
do filme é distinta.
3 Ver Luis Bunuel, “Metropolis, Gazeta Literaria de Madrid, 1927”, in Michael Minden e Holger Bachmann
(orgs.). Fritz Langs Metropolis. Cinematic visions of technology and fear (Rochester, NY, Camden House,
2002), p. 106-108.
História e cinema 17
já foi analisado por Roger Dadoun e Andreas Huyssen, entre outros autores que
mobilizaram psicanálise e história social para apontar um princípio de coerência
a ele subjacente.4
Huyssen observa a vamp-machine como cristalização da ameaça de uma sexua
lidade desregrada contra a disciplina do trabalho industrial, projeção de algo in-
desejado pela ordem. No entanto, em termos da identidade do robô como agente
dramático, o que vemos é um elemento inusitado, desconhecido, assumir o velho
papel de feiticeira para se inserir num campo de possibilidades já mapeado, ao qual
obedecerá à risca. Maria-robô encarna todos os males: a sedução do pai, a cena
primitiva (do ponto de vista de Freder), a incitação à revolta e à destruição de pa
trimônio, o culto da mulher fetiche na noite desregrada de Yoshiwara, símbolo dos
prazeres de Metrópolis. Ela é a constelação do excesso e da ameaça, amoldados a
figuras da tradição. Se, no plano diegético, é um dispositivo que se associa à idéia
do feminino e da máquina fora de controle, figuras do desastre, no plano formal,
porém, ela assume uma identidade que já é um traço de domesticação, de inserção
em campo simbólico controlado, pois torna-se aí um inimigo legível que se pode
eliminar conforme receita antiga. A intrigante invenção do cientista, de repente, se
reduz a um instrumento de vingança, uma substituta da mãe do próprio jovem he
rói, Hei.5 Esta foi a mulher que Rotwang amou e perdeu para Fredersen; uma figura
de desejo cuja morte, no parto de Freder, potencializou o culto de Rotwang. Ob-
secado, este ergueu a ela um altar e se inspirou em tal fetichismo para, tantos anos
depois, fazê-la renascer na figura do robô, para um ajuste de contas. O confronto
central, portanto, repõe as forças do passado, o choque de paixões, o romance fa
miliar que envolve a falecida, Rotwang, Fredersen, Freder e Maria.6
4 Ver Roger Dadoun, “Metropolis: ville-mère, Mittler, Hitler”, Revue Française de Psychanalyse 1 (1974), e
Andreas Huyssen, “The Vamp and the Machine; Fritz Langs Metropolis” in After the Great Divide: Modernism,
Mass Culture, Postmodernism (Bloomington, Indiana University Press, 1986). Essas leituras pressupõem, no
filme, um imperativo de preservação da ordem que se traduz num diagnóstico mais específico de proto-
nazismo (Dadoun) ou num enquadramento mais genérico como expressão das tensões de um poder patriarcal
ameaçado (Huyssen).
5 A versão reduzida, para distribuição nos Estados Unidos, eliminou essa personagem e toda uma experiência
passada que estabelecia a rivalidade entre Fredersen e Rotwang, ambos apaixonados pela mesma mulher,
Hei. Houve motivos para esse corte, de ordem comercial (duração do filme) e de outras ordens, incluída
a particularidade do nome (Hei) que, em inglês, traria um significado que se decidiu evitar. Em minha
análise estou me apoiando na versão restaurada pelo FilmMuseum de Munique, sob a coordenação de Enno
Patalas, disponível em DVD no Brasil.
6 Vicente Sanchez-Biosca, em Sombras de Weimar - contribuición a la historia dei cine alemán 1918-1933
(Madrid, Verdoux, 1990), faz observações que apontam na direção da idéia aqui apresentada, pois ele vê
a alegoria como um fator de contenção em Metropolis, considerado um sentido potencial de “inquietante
estranheza” sugerido pelas imagens. Ver pp. 346-353.
História e cinema 19
vido por uma força escondida.7 Freder, seu antagonista» se compõe segundo regras
semelhantes. Figura do “coração”, ele se confunde com a sua missão a partir do
momento que, iluminado pelo olhar de Maria, sai atrás dela com a mão no peito
para não fazer outra coisa senão legitimar por suas ações a condição do mediador
que preenche a profecia. A polaridade das duas Marias define o cotejo de opostos
radicais: a santa e a prostituta, o espírito materno e a femme-fatale. O mestre de
Metropolis é a função do Pai que se opõe a Freder, tanto na chave do Édipo quanto
na chave do Cristo. Para a cidade, ele é o princípio de intolerância do “cérebro”
indiferente ao destino das “mãos” que tocam as máquinas, bloco unificado das
vítimas, coletivo que, uma vez liberado, se faz emoção pura, propenso a inversões
de rumo ao sabor da liderança, tudo enfim que é exterior ao “cérebro”.
A lógica que marca a progressão da intriga incorpora motivos narrativos da teia
dos mitos que incorpora. Há o encontro do herói com a personificação da morte,
a descida aos infernos, a ameaça do dilúvio, a imitação de Cristo, o auto-da-fé.
Combinando a causalidade mágica, as metamorfoses e um enredo apoiado no pa
radigma da batalha entre princípios (Bem e Mal, Vícios e Virtudes), o filme encena
um drama vivido por “agentes daemônicos” e inscreve a sua narrativa numa forma
canônica do alegórico herdada da Idade Média, conforme os termos cunhados por
Angus Fletcher.8 Em consonância, cada personagem se associa a um espaço sim
bólico da cidade, e a composição das imagens reserva a cada agente os atributos
que marcam sua pertinência a uma “ordem cósmica”, hierarquia dos seres que se
expressa nas aparências. Passamos, assim de um primado da ordem mecânica para
o da organicidade, e não surpreende que a parábola moral se enuncie na fórmula
que adota a sintaxe do corpo - “o coração deve ser o mediador entre o cérebro
e as mãos” - como modelo para a sociedade. Do mesmo modo, não surpreende
que, na luta final, o badalar dos sinos da Catedral venham cumprir o seu papel de
advertência que leva à salvação da boa Maria das mãos de Rotwang e à vitória do
Bem. Esta, não por acaso» é celebrada na praça que condensa os resíduos da ordem
espiritual da Idade Média na cidade-máquina do futuro, ponto final da fábula que
traz a Catedral ao centro e redime Metropolis de sua vocação ao desastre.9
Temos, portanto, dois tipos de registro alegórico: o do “estado de coisas” ex
posto na abertura, no momento da configuração do espaço e da apresentação
do problema; e o registro próprio ao percurso da narrativa, onde se instala nova
7 Traduzo do inglês o termo daemonic agent> usado por Angus Fletcher em seu livro, Allegory - The Theory
of a SymbolicMode (Ithaca, Cornell University Press, 1970); ver pp. 25-69.
’ Idem, ibidem.
’ Sobre a oposição entre o sino e o relógio como organizadores do tempo e sinais de convocação, dentro da
oposição entre a cidade medieval e a moderna, ver Jacques Le Goff, “A função cultural - a imagem e vivido”
em Le Goff, O apogeu da cidade medieval (São Paulo, Martins Fontes, 1992).
22 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
dinâmica e se propõe uma solução. Entre eles, há um hiato que nos permite per
guntar pelo que pode articular as duas ordens do tempo, de forma a que a teleo-
logia sugerida na profecia de Maria e os sinos da Catedral possam impor a sua
efetividade sobre o mundo desencantado cujo emblema é o relógio. O ponto de
articulação está, a meu ver, na alegoria de Babel, pois esta oferece o princípio que
governa o descaminho da cidade e, portanto, sua correção.
3. A alegoria de Babel10*
Em Metropolis, a lenda de Babel é muito mais do que uma alusão de passagem
ou modelo de referência ao que há de verticalidade monumental na cidade. Ela
se faz parábola dentro da parábola para que o filme possa explicitar em detalhe
os termos da sua analogia entre o futuro e o passado mítico. Maria é a voz intra-
diegética que a enuncia, mas a sequência de imagens que, em princípio, expressa
seu ponto de vista toma, por sua vez, a narração “em primeira pessoa” como um
pretexto. Acontece aqui o que Gérard Genette denomina efeito pseudo-diegético,
esquema pelo qual a instância narrativa impessoal, já atuante antes da fala da
personagem, se apropria do seu relato para expor uma visão própria dentro de
uma estrutura mais complexa do que a de uma voz apresentando sua mensa
gem.11 A composição visual faz muito mais do que traduzir o que é dito aos ope
rários; ela afirma um estilo que faz eco a outros momentos do filme, condensa
procedimentos e configura matrizes de sentido que se projetam além.
Em toda a seqüência de Babel o agenciamento de palavras e imagens, pela se-
qüência ou justaposição, e até mesmo por suas lacunas, repete ou avança certos
motivos que são centrais no destino da cidade do futuro, exibindo-os de forma
mais depurada. É um momento em que a vontade de alegoria se faz plena, não só
porque seja esta a intenção de Maria, mas porque na sua própria forma a seqüên
cia insiste numa dimensão de “escrita hieroglífica” que chega ao esquematismo
do emblema: justaposição de imagem e inscrição verbal cujo fundo pedagógico
não afasta as tensões próprias a tais cotejos onde a experiência visual tende a
escapar da linha estrita definida pelas palavras.12 Há um jogo de espelhos pelo
10 Para a análise da sequência de Babel, tomo como referência a versão restaurada pelo FilmMuseum de
Munique, sob a coordenação de Enno Pa talas.
“ Ver Gérard Genette, Figures III (Paris, Seuil, 1972). Em especial, a parte V de “ Disco urs du récit”, pp. 225-268.
12 Uma idéia equivocada quanto à natureza dos hieróglifos do Egito inspirou, nos séculos XVI e XVII, a
produção de composições feitas do cotejo de imagens e palavras, os emblemas. Ver Üemblème à la Renaissance
- Actes de la journée d’études de la Société Française des Seiziémistes, Mai 1980, publié par Yves Giraud
(Paris, Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1987). Walter Benjamin discute essa questão e destaca a
experiência histórica do emblema em sua reflexão sobre a alegoria como forma de expressão. Ver A origem
do drama barroco alemão (São Paulo, Brasiliense, 1984), pp. 181-199.
História e cinema 23
qual a lenda de Babel forma uma versão reduzida do relato maior que dá conta
dos fatos em Metropolis, para que a analogia se faça uma quase identidade, uma
repetição que o filme trabalha de modo particular, solo para que a mesma frase
edificante arremate a pregação, aqui e no final do filme.
Bruegel, o Velho. Mas, no filme, ao contrário do que era comum acontecer nos
quadros, não há a imagem do trabalho, atividade, só a idéia pura da Torre, e não
há nuvens no topo, estas que poderiam, por forte convenção na iconografia reli
giosa, sugerir uma mediação com as esferas mais altas. A Torre está descentrada
em relação às estrelas, valendo a mesma descontinuidade entre figura (a torre-
cidade) e fundo (o céu). Sua forma piramidal segue a tradição pictórica mais
consagrada em torno de Babel, evocando dados históricos associados aos relatos
bíblicos - templos da Babilônia, túmulos de Faraós do Egito. Em verdade, pre
sente desde a abertura do filme Metropolis, a pirâmide (ou o tronco de pirâmide)
é a forma hegemônica ao longo do filme. Se isto leva a reflexões sobre a grandeza
e a ousadia de uma arquitetura, ou sobre o papel dos monumentos diante da an
gústia da mortalidade, o decisivo é que, ao lado dessa feição mais convencional,
tal forma adquire outras conotações, ligadas diretamente ao programa alegórico,
como veremos ao comentar os emblemas presentes no relato de Babel.
A imagem seguinte da seqüência traz a justaposição entre a imagem da Tor
re e a de seus idealizadores que observam sua própria idéia na postura clichê
do pensador. Forma-se o concilio dos mestres, obsedados por essa objetivação;
constrói-se o motivo da “idéia fixa” (bem típico à alegoria). Há um curioso ócio
nessas figuras que pensam Babel, e seu projeto é gesto aparentemente “gratuito”.
Ou seja, não seria senão a expressão de um caráter, de um anseio que nada teria a
ver com o mundo prático. Ou seja, a torre-cidade é um projeto estético consagra-
dor de um ideal de grandeza, um monumento afirmativo de auto-imagem, feito
para se fazer lembrar. A seqüência das imagens faz eco com as palavras do orador
e a insistência no tema da “idéia fixa” deixa clara uma intenção: não procuremos
em Babel algo que vá além da expressão de uma vontade, e não imaginemos que
haveria em Metropolis algo de distinto a marcar a postura dos que estão do lado
do cérebro.
pois introduz uma qualificação do projeto não tematizada pelo discurso verbal»
repetindo o motivo da marcha dos operários já apresentado na abertura do filme.
Não se reduz, portanto, a ilustrar a fala. Sugere» novamente, o espelhamento Ba-
bel-Metropolis ao reiterar a idéia de uma coluna de gente disciplinada, de cabeça
baixa, todos iguais na aparência, conjunto anônimo que se movimenta como as
engrenagens do início, dentro da ordem e da disciplina. Com a diferença de que a
idéia de absorção num sistema não se apóia aqui na presença estruturante da cida
de, ou no movimento das máquinas. Graças a um procedimento exclusivamente
fílmico - a sobreimpressão que constrói a convergência - o espaço desértico já
se faz uma geometria de massa, adquirindo uma dimensão monumental sem o
apoio de uma arquitetura, uma vez que esta ainda não se constituiu. O intertítulo
se refere a uma paga e a um contrato, mas a imagem desse movimento conver
gente, totalizante, destes corpos calvos e em tudo uniformes conota um destino,
algo de inexorável. Não há, porém» uma sugestão épica» embora haja aí a noção da
empreitada gigantesca: em Babel» a desmedida é prenúncio do desastre.
A presença desse motivo visual - que se associa à idéia do trabalho como danação
- tensiona o pólo oposto» o da indiferença do “cérebro”. Esta não encontra ainda a
arquitetura capaz de traduzí-la» como o fará o espaço vertical de Metropolis. Para ex
pressá-la, vale insistir no tema do olhar obcecado, de costas voltadas para o mundo,
que termina por colocar a imagem da Torre no centro do quadro» no topo do anfi
teatro: a Torre sai de sua condição de estrutura isolada no deserto e passa a brilhar
num ponto central, no alto, envolta em auréolas em tons variados que vêm substituir
o fundo das estrelas. A transcendência se eclipsa; o criador observa a imagem da sua
criatura e, diante dela, se ajoelha como que hipnotizado. Gesto de adoração» de idola
tria que, dirigido à Torre, e só a ela, vale como referência ao próprio homem.
A montagem nos leva de volta ao universo das “mãos”, e a massa dos executores re
torna para que a desmesura da idéa se traduza em imagens de opressão, esforço e so
frimento. O imenso cubo de pedra, liso, regular, simétrico, esmaga os operários que
o transportam. O gigantismo é tomado em sua dimensão de drama, repondo mais
uma vez o motivo do sacrifício. Na abertura, foi o olhar seco da câmera a descrever a
marcha mecânica de operários. Depois, na primeira descida de Freder, uma nova for
ma do olhar se introduziu, na tônica do mundo encantado: a explosão na usina foi o
ensejo de uma alucinação do herói que transformou as máquinas em personificação
alegórica, o deus Moloch, a engolir os operários. Por ocasião de sua nova descida aos
infernos, tivemos o recurso a uma justaposição mais incisiva, quando a sobreposição
de máquina e relógio, o passo lento das horas e a imagem dramática dos ponteiros em
cruz criaram o emblema que definiu a dor de Freder como uma imitação de Cristo,
quando ele se inseriu no turno do trabalho manual e viveu a tortura do tempo.
26 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
13 Três letreiros do filme - referidos a Metropolis, Moloch e Babel - guardam uma relação entre si, e se inserem na
problemática da “escritura figurai” tal como exposta por Philippe Dubois em “Eécriture figurale dans le cinéma
muet des anées 20”, in Figure, figurai [François Aubral e Dominique Chateau (eds.), Paris, EHarmattan, 1999].
Babel, em especial, retém os traços dessa escritura-imagem, textual e visual, onde o grafismo ganha movimento
intrínseco e dá corpo à palavra (embora esta mantenha aqui uma geometria tipo art déco), de modo a compor
uma zona ambivalente, fiiida, de exposição-exibição que excede o narrativo e pode adquirir valor como marca de
subjetivação, iminência de uma perda, sempre com uma conotação de incertude, indeterminação, colapso do que
tem contornos nítidos. Os emblemas e as justaposições de imagem e inscrição verbal no filme de Lang, possuem,
de maneira geral, um fundo pedagógico que não elimina as tensões próprias a tais confrontações em que a
experiência visual tende a escapar da linha estrita sugerida pelo enunciado linguístico. A categoria do “figurai”
explora os efeitos produzidos por uma figura ou detalhe que se apresenta como um evento de imagem fora dos
códigos. A análise desses efeitos exigiría um outro tipo de démarche analítica não desenvolvido neste texto. Eu
trabalho no plano de uma retórica dos motivos e da interpretação alegórica.
14 Quanto ao estatuto da linguagem antes da idade clássica da representação, ver Michel Foucault, As palavras
e as coisas (2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1981), capítulo 2: “A prosa do mundo” Esta junção de ícone e
escritura remete ao que Walter Benjamin observa a respeito da palavra FAMA quando comenta as objeções
de Schopenhauer à arte alegórica. Ver A origem do drama barroco, pp. 183-184.
História e cinema 27
ao tumulto que provoca numa multidão masculina a qual termina por repetir o
emblema das mãos estendidas que não alcançam a imagem-ídolo; e termina por
ser imolada num auto-da-fé, ocupando o vértice de uma composição que exibe
a festa da massa em torno da fogueira. Por sua vez, a virgem profeta, desde que
se apresenta cercada de crianças, já se põe como personificação de um princípio
materno de doação, de um movimento solidário dirigido de seu corpo (centro da
composição) para o seu entorno. Ela oferece a mediação, é receptiva à demanda
das mãos que a procuram.
Coroando a presença desse motivo geométrico, a marcha ordenada dos operá
rios, que repõe ao final o equiíbrio após a rebelião, encontra o ritmo e a forma
triangular capaz de colocar o oprimido em sintonia com o gesto de conciliação
dos poderosos da cidade. A cena do aperto de mãos em frente à catedral consagra
a figura do filho que representará junto ao pai o interesse dos oprimidos. A boa
nova evangélica é o que resta para estes que, afinal, em nada alteram sua posição
na hierarquia. Estão neste desfecho desautorizados após a agitação caótica em
que, como horda primitiva, responderam a estímulos imediatos, incapazes de se
organizar, hipnotizados por um comando espúrio e dispostos à anarquia, seja na
figura do ataque irracional às máquinas, seja no entusiasmo da festa em torno da
feiticeira em chamas.
Uma vez fora da disciplina do trabalho, a massa fora de controle de Metropolis
repete a massa de Babel: seu movimento é de destruição. Se na cidade antiga tudo
se esboça sem um marco específico a qualificar a revolta - para além do reconhe
cimento tácito de que esta deriva da injustiça - na cidade do futuro a ação coleti
va deve se desmoralizar. O comportamento regressivo e pulsional mostra-se uma
repetição que confirmar a analogia. Passivos, os operários alimentam o sistema;
ativos, só podem gerar a catástrofe de que são salvos, neste caso, por Freder e
Maria. O gesto que salva vem do elemento extra-sistema, das figuras do coração,
pois razão (mestre) e desrazão (massa) se complementam, tanto no pesadelo da
ordem quanto na anarquia destrutiva da revolta. Esta, em seu dinamismo, se faz
espetáculo, mas o futuro de Metropolis exige uma geometria da conciliação.
A frase final de Maria não é simplesmente um apêndice infeliz mas o selo que se
ajusta a um movimento da forma que encontra a sua serenidade quando o vértice
do triângulo se faz porta da catedral, antes de ser ocupado pela Santa Família.
filme, se repete pela última vez, agora sem dissonâncias. Afirma-se aí uma teleolo-
gia da forma cujo ponto de chegada vem corrigir o destino desastroso da pirâmide
na seqüência de Babel. Tal destino foi prenunciado quando as mãos invadiram o
quadro e afrontaram a imagem da Torre, e encontrou seu coroamento na compo
sição que encerra a pregação de Maria nas catacumbas. Naquele momento, o filme
incorporou in extremis a tradição do emblema: imagem e texto. De um lado, vimos a
Torre de novo num deserto, com sua parte superior destruída e feita ruína; de outro,
vimos justaposto um fundo de céu estrelado que trazia a inscrição associada ao
projeto dos construtores: “Grande é o Mundo e seu Criador, e Grande é o Homem”.
Nesta composição, a seqüência de Babel completou o seu círculo. A afirmação da
grandeza do homem em conexão com a imagem do fracasso trouxe um irônico
efeito de julgamento moral dirigido à desmesura e ao custo social de empreitadas
que o filme atribuiu à vaidade e ao orgulho. O emblema feito da justaposição de
imagem e incrição encontrou, no contexto da seqüência, um guia para a sua leitura,
pois logo antes havia a justaposição ameaçadora (màos-cérebro) e, em seguida, tive
mos o desaparecimento da inscrição que terminou por deixar isolada a imagem da
ruína contra o céu estrelado. Desencanto, fragilidade dos projetos, a obra inacaba
da- temos aí reiterada a alegoria barroca da vaidade humana, com a ruína a repor a
evocação da história como desastre. A partir de tal imagem conclusiva, voltamos à
pregação de Maria na catacumba. Ela concluiu a sua parábola com o célebre torneio
edificante (o coração deve ser a mediação entre as mãos e o cérebro; o salvador está
entre nós), disposta a fazer a alegoria barroca perder seu alcance universal como
um enunciado sobre a condição humana, pois seu objetivo era trazer o desastre de
Babel como uma advertência capaz de livrar os homens da catástrofe. Na progres
são da narrativa, Maria será decisiva na consecução deste objetivo: Metropolis não
será destruída pela rebelião das massas.
15 Tomo como referência maior aqui o livro de Paul Zumthor, Babel ou rinachèvement (Paris, Seuil, 1997).
Zumthor cita Hegel e sua visão do desentendimento, inclusive o linguístico, como um resultado de longo
prazo da separação dos ofícios, da especialização, colocando também no centro a questão da divisão do
trabalho; autores como Roger Caillois Babel (Paris, Gallimard, 1978), e Franz Kaíka, em A muralha da
China, retomaram a questão do fracasso de Babel explorando exatamente essa idéia da gradual criação de
uma deriva no projeto por força de complicações vindas de sua própria natureza.
História e cinema 31
16 Para uma outra visão dessa questão, ver Carlos Alberto Vesentini, “História e ensino: o tema do sistema
de fábrica visto através de filmes”, in Circe Bittencourt (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula (São Paulo,
Contexto, 1997), pp. 163-175.
32 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
17 Quanto ao texto sobre as Tiller Girls, ver Siegfried Kracauer, “The Mass Ornament" in The Mass Ornament:
Weimar Essays (Cambridge, Harvard University Press» 1995). Para a posição do crítico depois da Segunda
Guerra, ver De Caligari a Hitler. Uma história psicológica do cinema alemão (Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1988).
34 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
próprio cinema, e sua dimensão mais interessante vem exatamente dessa ambi
valência da forma, pois há contradição entre o impulso questionador - seja da
hipertrofia da técnica ou da relação fetichista com a arquitetura - e o fato de que
é de tais excessos que o filme retira o próprio princípio de sua encenação.
Ao incorporar Babel como uma chave de codificação do seu discurso sobre o
moderno, Metropolis faz um movimento inevitavelmente reflexivo, pois inscreve
a si mesmo na questão que privilegia. A problemática do monumento sempre
repercute no cinema de “grande espetáculo” como uma questão formal, qualquer
que seja seu universo temático. E isso se potencializa no caso de filmes como o
de Lang ou, por exemplo, de Intolerância (1916), de D. W. Griffith, ou também de
Cabiria (1914), de Giovanne Pastrone, quando a busca do espetacular envolve um
diálogo com espaços arquitetônicos em grande escala. Metropolis e Intolerância,
em particular, exibem o traço comum de se referirem a diferentes épocas histó
ricas para compor uma alegoria moral de inspiração bíblica que inclui Babel em
seu percurso. Tornam, assim, mais nítido o paralelo que permite destacar um
novo aspecto do monumental.
Embora não contemporâneos, esses filmes de Griffith e Lang são dois exem
plos extraídos de um contexto histórico que, desde o início do século até a Se
gunda Guerra, se definiu por uma competição acirrada, esforço de hegemonia
nos mercados e exacerbação dos nacionalismos que transformou as Exposições
Universais, ponto de celebração do progresso, em terreno de rivalidades entre os
países da Europa e os Estados Unidos. Esse quadro deixou sua marca no campo
da produção cinematográfica, notadamente no caso de projetos de grande inves
timento que se postaram como emblemas de uma competência técnica nacional
disposta a ter a sua voz na definição dos caminhos do cinema. Os filmes em
questão constituem dois projetos tipicamente babélicos, em termos da saga da
produção, do resultado monumental e do desastre financeiro. Enquanto proje
tos explícitos de exibição de uma força, eles mostram muito bem o contexto de
competição em que se insere esse impulso em direção ao monumento enquanto
afirmação de uma identidade, construção de uma imagem desejável.18 O que, no
texto bíblico, se expressa na fórmula genérica do “construir a torre para fazer
um nome”, ganha sua especificação no terreno da história, de modo a fazer tal
iniciativa revelar sua feição triangular de confronto, mimetismo e emulação. A
relação dual e especular entre o criador e a criatura se mostra ilusória e envolve,
efetivamente, a mediação de um terceiro termo. Este não é a divindade lá na
esfera das estrelas, nem o despossuído da esfera do trabalho; é a figura de um
19 A rivalidade entre Fredersen e Rotwang é, no máximo, uma expressão deslocada, interna a Metropolis, da
questão em pauta; na edificação da cidade, seus papéis foram complementares. Hei é a fonte do conflito.
20 Ver Miriam Hansen, Babel & Babylone: Spectatorship in American Silent Film (Cambridge, Harvard University
Press, 1991), e Dominique Chateau, “Intolérance: une encydopédie du cinéma"em D.W.Griffith, organizado
por Jean Mottet (Paris, Éditions L’Harmattan - Publications de la Sorbonne, 1984). pp. 258-272.
21 Ver o Capítulo 15, “Imagining America: Fordism and Technology”, de The Weimar Republic Source
Book, organizado por Anton Kaes, Martin Jay e Edward Dimendberg (Berkeley, University of Califórnia
Press, 1994). Quanto ao nacionalismo alemão, ver Laih Greenfeld, Nationalism; Five Roads to Modernity
(Cambridge, Harvard Univ. Press, 1992).
36 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
22 A dicotomia civilização-cultura permeia de forma mais geral o contexto alemão, mas penso aqui na sua
função no esquema de Splenger ao formular sua noção de “decadência do Ocidente” apoiado na idéia de uma
história organizada em ciclos nos quais, como um organismo, uma nova forma ascende (é cultura original
como florescência religiosa e espiritual) e depois declina (se reduz à civilização como conquista técnica e
material), para ser substituída por outra forma cujo impulso original é de natureza espiritual. Já insisti nos
aspectos medievalizantes do filme, e creio que o final em torno da catedral sugere a afinidade que aponto,
pois promove a convergência dos dois percursos simbólicos: o de Maria, da catacumba à Idade Média (o
cristianismo emerge do subterrâneo de uma civilização decadente para triunfar na floração espiritual que
coroa na época das catedrais); e o de Fredersen que, do futuro, recua ao mesmo lugar emblemático para
se converter, junto a Maria e ao mediador. Examinada essa referência a Spengler, tem-se aí uma via de
exploração do sentido desse recuo que ancora a promessa de redenção exatamente no espaço que simboliza
o que se veria como um derradeiro momento do espírito em sua plenitude.
História e cinema 37
isolamento é a condição que estrutura a alegoria. Esta, digamos assim, evita explo
rar justamente o que se evidencia na modernidade como um processo mediado,
no qual a fatura estética se liga a fatores que ultrapassam a questão da vontade de
arte tomada em seu aspecto mais “puro”. O relato de Babel só introduz a questão
da ambivalência do monumento num segundo momento, quando chegamos ao
outro aspecto de sua construção: o que se refere à situação social que resulta (e não
a que vem antes) da suposta decisão soberana do “cérebro”. Ao trabalhar as con
sequências do projeto, Metropolis desemboca numa imagem barroca (a história
como catástrofe) que só se configura desse modo porque a seqüência de Babel põe
no centro a questão do trabalho e, dentro dela, situa a ambivalência da empreitada
como um gesto de construção e de opressão. Entre a primeira e a última imagem
do relato de Maria, o que se acentua é a conexão necessária entre teleologia (de
uns) e desastre (dos outros), numa dialética que se desdobra na ruína. Nesse par
ticular, o relato explora um aspecto ausente do texto bíblico, afinando sua alegoria
de Babel aos termos da célebre fórmula da ambivalência cunhada por Walter Ben-
jamin ao se referir aos tesouros (ou monumentos) acumulados na história: todo
documento de civilização é um documento de barbárie.
Se o filósofo tematiza a ambivalência da forma numa escala mais ampla [da
cultura], o filme toma Babel como o paradigma dessa antinomia de estetização
e desumanização sempre inscrita nos marcos civilizatórios, desde que produzi
dos no entre-choque em que a glória de uns é a maldição de outros, como diz
o letreiro. Ou seja, a alegoria de Babel destaca um terreno de conflito, a sempre
reposta oposição dos pontos de vista de vencidos e de vencedores. Abre uma bre
cha para uma visão não messiânica da história, da qual, no entanto, o filme de
Lang termina por se afastar. Primeiro porque emoldura o relato de Babel com a
profecia de Maria. E depois porque a confirma, quando seu desfecho celebra o
advento do mediador e reduz todo problema ao imperativo da conversão do Pai,
desautorizando o questionamento da máquina do mundo e do centro do poder,
porque, enfim, tal questionamento envolvería um ajuste de contas com o que o
filme demonstrou ter horror: a iniciativa do oprimido.
O filme localiza num terreno ético o que se poderia entender como uma con
dição inelutável da organização do trabalho e das migrações num quadro histó
rico permeado de conflitos e dominações que, na modernidade, se expressam em
cotejos entre nações. Com isso, sua fábula se faz uma condenação metafísica que
projeta a idéia de pecado original (a redimir no termo final da alegoria) sobre a
construção de Babel e, dados os termos da sua analogia, sobre o estado de coisas
cm Metropolis. Walter Benjamin diria que o filme não sustenta os aspectos mais
agudos da percepção de antinomias e ambivalências que a composição do relato
38 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
de Babel sugere (percepção que, para ele, seria a condição por excelência de cons
tituição de uma alegoria moderna). A moldura geral do filme Metropolis institui
o que o filósofo chama de “regressão mítica”, esta que força uma falsa totalização.
No caso, tal regressão se expressa na composição visual, pois a conclusão da fábu
la vem forçar o motivo geométrico que expressou todas as tensões a se amoldar
ao movimento teleológico da forma (o destino da pirâmide) rumo à estabilização
final diante da igreja. Na convocação, é o sino que vem suplantar o relógio.
Tal regressão traduz um desejo de superação a fortiori das ambivalências do
próprio filme que, na sequência de Babel, encontra um momento de crispação
da alegoria aberto a uma indagação que depois se dissolve, pois a teleologia se
impõe e reduz tudo o que envolve Babel a uma prefiguração necessária, capítulo
sombrio que dá maior brilho ao princípio da reconciliação geral postulado na
sequência final. Reconhecido o problema, era preciso salvar, num só golpe do
espírito (alemão), a arte, a técnica e a sociedade.
O cinema como fonte histórica
na obra de Marc Ferro1
Eduardo Morettin123
1 Este texto foi publicado originalmente na revista História: Questões & Debates. Curitiba, Ed. UFPR, 20 (38):
11-42, janeiro a junho de 2003.
2 Doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, instituição da qual
é professor responsável pela disciplina História do Audiovisual. Ê autor de diversos artigos que abordam a
relação cinema e história.
3 G. M. S. “Le cinéma et 1‘histoire: un document de 1898” in Cultures, (1); 233, 1974. Segundo o artigo, o
autor do documento, Boleslas Matuszewski, era “consciente do que era história, sensível ao que podería ser
o cinema (...) analisando as relações mútuas destas duas formas de expressão”.
4 A pesquisa histórica no Brasil, 4. ed., São Paulo, Ed. Nacional, 1982, pp. 174-176. O historiador está
particularmente preocupado com as formas de “falsificação” do cinema. Para ele, “toda a crítica externa
e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem
igualmente ser falsos, todos podem ser ‘montados’, todos podem conter verdades e inverdades”.
5 Ver de Jacques Le Goff. História, in Romano, Ruggiero (org.) Enciclopédia Einaudi, Memória - História.
s.l.p., Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984, vol. 1, pp. 158-259 e Lhistoire nouvelle. in LE GOFF, J. e
outros (orgs.). Les Encyclopédies du Savoir Moderne - La Nouvelle Histoire. Paris, CEPL, 1978, p. 210 - 241;
de Le Goff e Pierre Nora (orgs.). História: novos objetos, trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro, Francisco
Alves Ed., 1976; por fim, François Garçon, Des noces anciennes. Garçon, François (dir.) Cinéma et Histoire.
Autour de Marc Ferro. CinémAction (65): 9 - 18,4e trimestre 1992.
40 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
o conjunto de seu trabalho tem em si validade, dado que esse levantamento ainda
não foi feito em língua portuguesa.6
Nosso artigo está dividido em três momentos: o primeiro cerca algumas das noções
que comandam a reflexão do autor sobre a questão e examina o projeto de elaboração
de uma nova ciência; o segundo discute as considerações feitas a respeito do estatuto
documental do cinema conferido pelo historiador; no último, propusemo-nos a ob
servar a maneira pela qual o arcabouço teórico é mobilizado na análise de casos con
cretos, como, por exemplo, os filmes produzidos durante a República de Weimar.
destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da
sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria
mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de
uma sociedade, seus “lapsus”. É mais do que preciso para que, após a hora do desprezo venha a
da desconfiança, a do temor (...). A idéia de que um gesto podería ser uma frase, esse olhar, um
longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens (...) constituem
a matéria de uma outra história que não a História, uma contra-análise da sociedade.9
6 Há um balanço a respeito da obra de Ferro em francês sob a coordenação de François Garçon (Cf. Cinéma
et Histoire. Autour de Marc Ferro, op. cit.).
7 Cf. François Garçon e Pierre Sorlin (entrs). Marc Ferro, de Braudel à Histoire parallèle in Garçon, François
(dir.) Cinéma et Histoire. Autour de Marc Ferro, op. cit., p. 53.
8 Este texto, escrito em 1971, foi publicado pela primeira vez em 1973 na revista Annales. Économies, Sociétes,
Civilisations. 29 (1): 109-124, 1973. É reeditado em 1974 para o livro Faire de íhistoire: nouveaux objets,
organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora. Dois anos depois, este livro é traduzido para o português
(História: novos objetos). Reaparece, com algumas alterações, no capítulo “Le film et le choix des sources
dans 1’analyse des sociétés" em Analyse de film. Analyse de sociétés. Une source nouvelle pour Fhistoire. Paris,
Librairie Hachette, 1975. É novamente reaproveitado em outras publicações do autor, como Cinéma et
histoire. Paris, Ed. Denôel/Gonthier, 1977 e Cine e Historia. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1980.
9 “O filme: uma contra-análise da sociedade?” in Le Goff e Pierre Nora (orgs.). História: novos objetos, pp. 202-203.
História e cinema 41
10 Cf.: Analyse de film. Analyse de sociétés. Une source nouvelle pour 1'histoire, p. 10.
11 O próprio autor admitiu, porém, que essa potencialidade não se desenvolve plenamente. Em regimes
totalitários, o excessivo controle da produção artística faz com que o cineasta perca “o direito à palavra, a
menos que ele não se identifique completamente com a ideologia que a instituição encarna". Neste contexto,
onde há identificação entre cineasta e Estado totalitário, a própria divisão (clássica, por sinal) entre os
diversos gêneros cinematográficos se apaga: “entre certos planos de Dovjenko e as atualidades soviéticas de
1934, as diferenças desaparecem, a uniformização totalitária apreende todas as figuras do discurso fílmico"
(Cf. Le film, objet culturel et le témoin de 1’Histoire. in La Revue du Cinéma, Image et Son/Écran (364): 120-
I21,sept. 1981).
12 Cinéma et Histoire, p. 12.
11 Idem, ibidem, p. 15.
14 Frey, Bernardo e outros (entr.). Marc Ferro - Falsificações, in M. Revista de Cinema. Lisboa, (4): 70-71»
jul. 1977.
15 Filme: uma contra-análise da sociedade?, p. 204.
42 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
16 Demonstramos esse método em nossa dissertação de mestrado, Cinema e História: uma análise do filme
Os Bandeirantes. Universidade de São Paulo, ECA, 1994, e na tese de doutorado, Os Limites de um Projeto
de Monumentalização Cinematográfica: uma análise do filme “Descobrimento do Brasil” (1937), de Humberto
Mauro, Universidade de São Paulo, ECA, 2001.
17 A respeito de Segundo a Lei (1925), de Lev Kulechov, o autor afirma que através de sua análise “revelam-se
as proibições não-explícitas dos inícios do terror. Os filmes de atualidades revelaram, ao mesmo tempo, a
popularidade de outubro e desnudaram os aspectos falsificadores da tradição histórica” (“Filme: uma contra-
análise da sociedade?”, p. 213, grifos nossos). Em outro texto, o autor comenta que o cinema é “mais apto a
revelar o inconsciente coletivo do que as transações financeiras ou diplomáticas” (“Société du XXe. sièdè et
histoire cinématographique” in Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, (23): 584,1968, grifo nosso).
18 Michèle Lagny faz observações no mesmo sentido (Cf. Après la conquéte, comment défricher? in Garçon,
François (dir.) Cinéma et Histoire. Autour deMarc Ferro. CinémAction (65): 32,4e trimestre 1992).
19 Y a-t-il une vision filmique de Thistoire. in L’Histoire sous surveillance. Paris, Ed. Calman-Lévy, 1985, pp.
109-131.
História e cinema 43
dade de seu método para a imagem audiovisual, entendemos que o autor não
produziu um trabalho de maior profundidade que demonstrasse plenamente a
eficácia de sua análise, já que grande parte de sua produção é constituída por
artigos ou coletâneas. O autor estaria em condições de realizar tal trabalho
desde os inícios dos anos 1970 se escolhesse por objeto o cinema soviético, se
levarmos em consideração sua produção escrita sobre a história da Revolução
Russa e da ex-URSS.36
Em 1977, Ferro, atento para esse problema, justifica, no prefácio da cole
tânea Cinéma et Histoire, o fato de os textos apresentados não se aprofun
darem nos problemas propostos: a “maior parte apareceu em publicações
cuja vocação não era a de se interessar pelos problemas que o cinema coloca
em sua relação com a sociedade”.37 O caráter de obra inacabada permanece
em 1980, em outra coletânea por ele organizada, Cine e Historia™ A pers
pectiva, assumida no prefácio, é ainda de um amplo projeto. A reedição
de vários textos obedecería então a um sentido: oportunidade de “armo-
nizar el conjunto; (...) proponer un verdadero libro”. No entanto, vários
desses textos são apresentados como “fragmentos y trozos”. O historiador
afirma:“Decididamente, yo no tengo tiempo disponible para escribir un li
bro acabado sobre el Cine, como lo he tenido para tratar de la Revolución
de 1917 o la Gran Guerra”.39
Retomaremos esse assunto a seguir. No entanto, podemos adiantar que o autor
continuou enfrentando escassez de tempo para se dedicar profundamente ao es
tudo da relação entre cinema e história.
40 Cf. “LExperience de La Grande Guerre”, op. cit, p. 331, e “Société du XXC siècle et histoire
cinématographique”, op. cit, p. 581. Secretário de redação da revista Annales desde 1962, indicado
por Fernand Braudel, Ferro afirma que seus artigos sobre cinema o colocaram em sintonia com as
preocupações da revista (Cf. François Garçon e Pierre Sorlin (entrs). “Marc Ferro, de Braudel à Histoire
parallèle", op. cit., p. 50).
41 Cf. “Filme: uma contra-análise da sociedade?”, op. cit, p. 199-202. A posição que o cinema ocupava
na sociedade, nos inícios do século XX, é discutida também em: “Marc Ferro - Falsificações”, op. cit.
e “Cinéma et Histoire - 2. Entretien avec Marc Ferro”, in Cahiers du Cinéma, (257): 22-26, mai-juin,
1975.
42 “Présentation”, Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, 29 (1), 1973.
43 “Société du XXC sièclw et histoire cinématographique”, op. cit., p. 581.
44 “Filme: uma contra-análise da sociedade?”, op. cit., p. 200.
45 Analyse defilm. Analyse de sociétés, op. cit, p. 6.
48 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
adoção de outro método,46 devemos ressaltar que não podemos falar, no caso
dos positivistas, parte desta tradição, em uma exclusão das fontes não escri
tas em seu trabalho. Estas são utilizadas quando, em um período, dispomos
de poucos (ou de nenhum) documentos escritos. Para Ch. V. Langlois e Ch.
Seignobos:
Já houve quem se utilizasse de obras literárias, poemas épicos, romances, peças de teatro,
para esclarecer períodos e fatos de documentação minguada, assim procedendo, também, em
relação à antiguidade e à determinação de usos da vida privada. O processo não é ilegítimo,
desde que se subordine a várias restrições, que, infelizmente, estamos sempre sujeitos a
esquecer.47
49 Analyse de film. Analyse de soáétés, op. cit., p. 12. Isto aparece também em “Société du XX* siècle et
histoire cinématographique”, op. cit., p. 581, “Image”, op. cit., p. 246-247, Cine e Historia, op. cit., p. 41 e “Y
a-t-il une vision filmique de Phistoire”, op. cit., p. 115.
50 Analyse de film. Analyse de soctétés, op. cit., pp. 12-13 .
51 Idem, ibidem, p. 13, grifo do autor.
52 Idem, ibidem, p. 13. O que pode diferenciar essas duas categorias (“films-documents” e filme
de ficção) é a “natureza diferente das tomadas de origem”. A partir dessa distinção, o autor se
propõe a analisar os gêneros mais diversos: “desde o documento bruto, ou considerado como tal,
até o filme de ficção, mesmo o de ficção científica" (Analyse de film. Analyse de sociétés, op. cit.,
p. 15).
50 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
57 “O curso da história é imprevisível, e um documento autêntico, integral, um plano seqüência não montado
comporta necessariamente ‘temps morts*. Eles não poderíam ter um ritmo de alternância regular entre temps
forts e temps faiblies (Analyse de film. Analyse de sociétés, op. cit., p. 21).
“ Idem, ibidem, pp. 20-21. Podemos perceber que o conhecimento necessário para que se estabeleça a
autenticidade de um documento é especializado, técnico: a identificação de uma contratipagem e o exame
de um negativo.
59 Cf. “L’Experience de La Grande Guerre”, op. cit., pp. 331,333.
60 José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil, 1982, pp. 174-175.
61 Ferro se refere aqui à voz em off de um narrador que comenta ou narra as imagens.
62 Analyse defilm. Analyse de sociétés, op. cit, p. 32.
52 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Nesse sentido, Marc Ferro entende que a “ideologia de um filme é mais transpa
rente através de um comentário que através de entrevistas, pois ela é camuflada atrás
da verdade solicitada do testemunho”. Um estudo ideológico do comentário deve
relacionar seu texto à imagem a fim de “identificar o sentido de uma realização”.63
Partindo destes pressupostos, a série de curtas-metragens dirigida por Fer
ro entre 1975 e 1977 para a Pathé-Cinéma, Images de VHistoire, é tomada como
exemplo. O autor relaciona três tipos de filme. Dois nos interessam mais de perto.
No primeiro, o comentário assume o ponto de vista de uma pessoa ou grupo so
cial. Aqui, teríamos outro tipo de objetividade que “é o contrário do objetivismo;
ela é total subjetividade, verdade ressuscitada. Ela é testemunho”.64
No terceiro tipo, teríamos o distanciamento histórico, onde se parte do pressu
posto que nenhum ponto de vista é assumido. Para o autor, essa forma de utili
zação do comentário se mostrou “reveladora” em obras como 1914 - 1918: Trans-
formation de la guerre (1974), de Ferro e Pierre Gauge, e De Marx à la révolution
mondiale (1973), de Ferro e Pierre Samson. É interessante observar que uma das
características do discurso histórico, como o pretendido distanciamento mani
festo pela diluição do ponto de vista, ganha formatação fílmica por intermédio
do uso do comentário. Sem termos os filmes à disposição, não há condições de
verificar a forma pela qual nenhum ponto de vista é assumido. Entretanto, é pre
ciso deixar claro, em primeiro lugar, que sempre há um ponto de vista mobiliza
do pela narrativa, qual seja, o do próprio narrador. Quando falamos em narra
dor, conforme definição de Ismail Xavier, estamos nos referindo à
presença de um princípio orientador das escolhas implicadas na sucessão das imagens e sons,
mesmo quando este princípio, efetivamente conciliando os procedimentos que se distribuem
pelos diversos canais, esteja a serviço da produção de uma diegese aparentemente autônoma,
apta a radicalizar a “suspensão do descrédito”.65
de sua intromissão, essa concepção nos passa a idéia de um relato que “fala”
por si, mostrando-se sem nenhum tipo de interposição entre o filme e o es
pectador. Não deixa de ser próprio de uma narrativa que Émile Benveniste
agrupou como sendo história. Nela “os acontecimentos são apresentados como
se produziríam, à medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala
aqui; os acontecimentos parecem narrar-se a si mesmos”.66
A crítica analítica de uma obra cinematográfica de ficção deve se ater: à so
ciedade que a produz; à própria obra; à relação entre autor, filme e sociedade; à
sua história (as várias versões que teve, as suas recepções por parte da crítica, do
público etc.).67 As operações de análise
Se existe alguma abertura no trabalho de Ferro, esta incide aqui. Para cada fil
me, uma aproximação, independentemente de suas considerações acerca da “re
alidade não visível” de uma obra. A princípio, os critérios dessa aproximação são
dados pela própria obra. No entanto, o conjunto do seu trabalho está delimitado
por uma perspectiva de análise muito fechada, no sentido de que essas diversas
metodologias não aparecem em seus textos com tanta fluidez.
Com relação à sua obra, gostaríamos de destacar a singularidade da análise
de Jud Süss (1940), de Veit Harlan. Ela é a única em que o autor procura a signi
ficação ideológica na e da linguagem cinematográfica.69 Marc Ferro critica um
outro trabalho sobre o mesmo filme pelo fato de seu autor, François Garçon, ter
se detido apenas em seus aspectos “explícitos”. Os aspectos “implícitos” do filme
66 “As relações de tempo no verbo francês ”, in Problemas de linguística geral, trad. Maria da Glória Novak e
Luiza Neri. São Paulo, Edusp/Cia. Ed. Nacional, 1976, p. 267.
67 Com relação a este último item, Ferro se debruça sobre duas versões de A Grande Ilusão, 1937 e 1947, de Jean
Renoir, detendo-se na crítica da imprensa, recepção do filme em vários países, análise da sociedade fiancesa,
do filme (roteiro etc.), do diretor etc. Tchapaiev (1934), de S. e G. Vasiliev é um outro exemplo escolhido pelo
autor para que se pudesse delinear “os traços de uma metodologia geral de análise de um filme de ficção”,
seguindo as operações indicadas no texto (Analyse defilm. Analyse desociétés, op. cit., pp. 39-56).
68 Idem, ibidem, p. 55.
69 Para o autor, “há uma ideologia da escritura, da utilização da câmera no nível da pura 'técnica”'. No
caso, Ferro, trabalha com osfondus enchaínés que, em Jud Süss, “formam uma escritura, um condensado da
doutrina nazista” (Cinéma et histoire, op. cit., pp. 50-51).
54 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
estes filmes ajudam a inteligibilidade dos fenômenos históricos e a difusão dos saberes sobre a
história - e eles têm uma virtude pedagógica. Mas intervém pouco enquanto aporte científico
do cinema à inteligibilidade dos fenômenos históricos. Eles constituem somente a transcriação
fílmica de uma visão de história que foi concebida por outros.73
70 Não é de todo descabido, portanto, que, na parte dedicada aos “problemas de método na França” em um
trabalho dedicado ao historiador - Cinéma et Histoire. Autour de Marc Ferro. CinémAction -, os autores se
debrucem sobre o problema da análise fílmica como uma questão ainda a ser resolvida pelos historiadores
(Cf. François Garçon. “Des noces anciennes”; Michel Marie, “Texte et contexte historique en analyse de
films” e Michèle Lagny, “Après la conquête, comment défricher?” in Garçon, François (dir.). Cinéma et
Histoire. Autour de Marc Ferro. CinémAction (65): 13,22-28,29-36,4* trimestre 1992).
71 Cine e Historia, op. cit., p. 138.
72 Idem, ibidem, p. 139.
73 “Y a-t-il une vision filmique de 1’histoire”, op. cit., pp. 111-112, grifo do autor.
História e cinema 55
más opaca y entonces el autor puede subvertir más facilmente el discurso histórico
instituído, se cual sea su idelogía; deste esta perspectiva, logra exponer con maior
desahogo su própria visión dei mundo sen que se note.74
Ferro percebe uma quarta tradição que está, então, por se instaurar, qual seja,
a de filmes que criam uma estrutura histórica própria. Como exemplo, levanta
a hipótese de uma junção de dois documentos fílmicos: um que contenha ima
gens sobre uma manifestação imperialista de 1911 e outro sobre uma cerimônia
nazista. Realizada a aproximação, o historiador percebe algumas semelhanças.
Essa operação de aproximação nunca seria feita dentro do “discurso historico
instituído” e “el discurso ‘historico’ de este montaje ponde de manifiesto unas
semejanzas estrutucturales entre el imperialismo y el racismo hitleriano. Lo fíl-
mico ha creado una estructura histórica”.75
A especificidade desse novo discurso histórico residiría no próprio material
com o qual opera: imagens, trilha sonora etc. Para o autor, Hans-Jürgen Syber-
berg e Lapoujade são os primeiros a realizar películas “que constituyen la prime-
ra expresión de una obra histórica totalmente cinematográfica”.76
O autor entende que a principal distinção nos filmes de reconstituição histórica
não está na oposição entre “os filmes nos quais a história é o quadro” e os “filmes
nos quais a história é o objeto (...), pois a verdade das aproximações em história
é infinita” A diferenciação se faz entre aqueles que se inserem nas “correntes de
pensamento dominantes ou minoritárias - e aqueles que propõem, ao contrário,
um olhar independente, inovador sobre a sociedade”.77
As películas de reconstituição histórica são importantes também pelo que di
zem a respeito do seu presente, do momento em que foram feitos e não propria
mente pela representação do passado em si.78 Nesse sentido, cita dois exemplos:
Alexandre Nevski e Rubliev. Apesar de a “reprodução do passado” ser exemplar,
“o passado que estes filmes reconstituem é um passado mediatizado” pelo seu
presente, perceptível através da “escolha dos temas, dos gostos da época, das ne
cessidades da produção, das capacidades da escritura, dos ‘lapsus* dos criadores”.
É no presente que “se situa o verdadeiro real histórico destes filmes, e não na
74 Cine e Historia, op. cit., p. 139. Já questionamos, anteriromente, a idéia de uma ideologia “opaca” ou
“latente”.
75 Idem, ibidem, p. 140.
76 Idem, ibidem, p. 140.
77“Y a-t-il une vision filmique de rhistoire”, op. cit., p. 113.
78 Em outro texto, Ferro desvaloriza o filme de reconstituição histórica. Esses filmes, “ao nível do explícito,
são os documentos de história os mais pobres" (“Image", op. cit., p. 247).
56 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
79 Analyse defilm. Analyse de sociétés, op. cit., p. 14 e Cine e Historia, op. cit., p. 40.
80 Analyse de film. Analyse de sociétés, op. cit., p. 14.
81 Cine e Historia, op. cit., p. 41, grifo nosso.
82 Idem, ibidem, p. 41, grifos nosso.
História e cinema 57
6. Da História ao Cinema
A busca de uma realidade histórica, permeada com reflexões sobre procedimen
tos que visam chegar ao documento autêntico, está presente, como vimos, em toda
a obra de Ferro. Desenvolveremos, por fim, uma questão já apontada anteriormen
te: o cinema como fonte utilizada para complementar um saber histórico já dado.
Em seu primeiro texto sobre a relação cinema e história, Ferro afirma que os
documentos cinematográficos fornecem dois tipos de contribuição: “os fundos
de arquivos cinematográficos (...) trazem (...) para o historiador informações
complementares”; trazem também “um material que refaz a idéia que se fazia de
uma época ou de um acontecimento”.83
Essa noção de complementaridade está presente em outras passagens do mes
mo texto. Para Ferro, a experiência de realização de La Grande Guerre “permitiu
conhecer melhor aspectos deste período que, no entanto, centenas de obras, ilus
tradas ou não, já tinham descrito e explicado”. Apesar disso, o documento fílmi-
co não cobriu várias facetas do fato histórico, impedindo que alguns aspectos da
guerra, como, por exemplo, os “episódios desconhecidos do front austro-russo”,
fossem transmitidos. Ao mesmo tempo, o filme permitia a revisão de passagens
já conhecidas, subvertendo “as idéias que se podia ter sobre algum episódio da
guerra”.84
Em todos os casos, o referencial é o documento escrito, o saber sobre o passa
do, ancorado na história e no fato. A potencialidade da fonte é medida por esse
referencial:
Assim os documentos “vivos” permitiram mostrar melhor que nunca o papel das multidões
e a responsabilidade da opinião pública na origem deste conflito; mas, em revanche, era
praticamente impossível refazer uma seqüência que revelasse ao espectador as causas econômicas
da guerra; ou a relação entre estas causas e as causas políticas*5
87 “Société du XXC siècle et histoire cinématographique”, op. cit., p. 584. Aqui Ferro se refere a dois exemplos: as
imagens dos soldados alemães antes da Primeira Guerra e as dos soldados de 1917-1918, “que, irresistivelmente,
fazem pensar nos nazis” e a aproximação de imagens de manifestações populares na Rússia de março de 1917,
“sempre espontâneas” e as de outubro de 1917, “tensas, violentas e desesperadas” (Idem, ibidem, p. 584).
““LExperience de La Grande Guerre”, op. cit., p. 333, grifo nosso. No caso, seriam trechos de um filme sobre
a viagem de Guilherme II à Inglaterra, “a vespéra da guerra, que teria dado ao espectador uma idéia errônea
do sistema de alianças” (Idem, ibidem, p. 333).
89 Cine e Historia, op. cit, pp. 119-120.
História e cinema 59
aléman atestigua la realidad de esta óptica”. Temos aqui uma reinterpretação his-
toriográfica de um tema (crise). Nessa releitura, o cinema é utilizado enquanto
prova, testemunho da veracidade dessa interpretação. Assim, “todo el sistema
que segrega la crisis y su porvenir ya se halla representado en el cine alemán y en
la sociedad que lo produce y lo recibe”.92
A história é chamada para dar sentido à produção cinematográfica ficcio
nal do período de Weimar. Analisando o final de O Último Homem (1924),
de F. W. Murnau, o pesquisador ressalta uma mudança imposta pelos pro
dutores, cujo objetivo era conferir à obra um tom otimista, uma vez que o
porteiro, desgraçado, recebeu por acaso a herança de um milionário norte-
americano. O fato de ser um norte-americano teria a sua explicação: “Nos
tempos do plano Dawes, a esperança e a fortuna somente poderiam vir da
América”.93 Entretanto, o seu significado vai mais além: “a velha sociedade
imperial quer restituir à Alemanha a sua força”. Em outras películas esse sig
nificado também se manifesta. Essa sociedade, para “dominar as condições
objetivas do presente, (...) faz apelo ao sonho em O Último Homem, ao hipno
tismo em Doutor Mabuse, à alucinação coletiva em Metropolis”,94 Apelos que
representam “notações premonitárias”, premonição, certamente, relacionada
ao futuro já conhecido por nós. O voltar atrás, com o conhecimento do que
já se “passou”, dentro de uma leitura da história teleológica permeia a crítica
de Ferro. É sob a luz do saber oriundo da tradição escrita que o cinema será
interpretado e feito prisioneiro. O filme é utilizado de forma ilustrativa, com
plementar, negando-o ou confirmando-o.
O sentido de confirmação e complementação da História está presente em to
dos os textos analisados. Assim, em que medida o cinema seria uma forma privi
legiada de contra-história? Qual seria o emprego do documento fílmico em sua
obra propriamente histórica?
Seria interessante recorrer ao conjunto de sua produção historiográfica95 com a
intenção de observamos em que momentos e de que maneira o cinema é usado.
Como este não foi o objetivo do presente trabalho, escolhemos um artigo em
que percebemos que o filme aparece como ilustração, prova, confirmação do já
demonstrado. Para atestar o grau de intensa mobilização dos russos em 1917, o
autor afirma em uma nota:
Cabe, por fim, lembrar que essa noção de complementaridade está associada à
interrogação sobre a autenticidade do documento. Em relação a um filme passa
do na TV francesa sobre os campos de concentração na União Soviética, Ferro
observa o poder que o documento fílmico possui de abrir brechas no sistema de
informação tradicional (no caso, Partido Comunista Francês e dirigentes sovié
ticos). Com ele, verificou-se que, em relação aos discursos soviéticos sobre a não
existência de campos de concentração, “lo único que se ha visto es una prueba de
que mentían”. Aos comunistas franceses coube uma constatação, segundo Ferro:
“en la era de lo visual ya no caben mentiras entre las instituiciones y sus adversá
rios” Por outro lado, a verificação de que o filme é autêntico se dá pela ausência
de montagem. Isto foi constadado pelo fato de ser um “documento ininterrum-
pido (salvo las pausas) tal como lo ha captado la câmara. La sucesión de escenas,
a ratos ‘vacias’ y a ratos representativas, y luego yuxtapuestas, es la prueba suple
mentaria de que no ha sufrido revisión ni corrección tras su emissión”.
Portanto, é um “documento bruto (...) autêntico”.97 Lembremos das regras
de verificação da autenticidade de um filme expostas acima e veremos uma de
suas aplicações.
Se existe, portanto, uma contra-história possível através do cinema, em Ferro
ela parece se manifestar primeiramente no seu trabalho com as fontes “tradicio
nais” para, então, se deslocar para o cinema. Como dissemos, o autor se preocupa
com a veracidade da fonte e com a busca do documento autêntico. Idealiza o
alcance de uma realidade, numa perspectiva que tem como eixo o fato histórico,
reinterpretado.
96 “Pourquoi Février? Pourquoi Octobre?" in Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 23 (1): 39, jan./fev.
1968.
97 Cine e Historia, op. cit, p. 73.
62 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
pressa nas críticas de época e nas falas do diretor, mas sim ao sentido que emerge
de sua estrutura. Como afirma Jean-Louis Leutrat,
É notório que o sentido que um autor (diretor, roteirista...) quis dar a sua obra não
é forçosamente nela encontrável, que há um modo de funcionamento independente das
obras que requer que nos esforcemos em compreender. (...) Não se trata de fazer a obra
confessar um sentido “inconsciente” que ela escondería, não se trata de absorver o social
ou o histórico pela cinematográfico, ou vice-versa, nem se trata tampouco de postular que
o sentido seria importado de um “exterior” num recipiente, que deveria ser extraído como
um “corpo estrangeiro”. Trata-se de examinar simplesmente como o sentido é produzido -
mas este “simplesmente” exige atenção, saber, precaução... (...) É preciso paciência, tempo
e muita prudência. Parta-se da hipótese de que, se a questão do cinema na história e na
sociedade pertence de direito à história econômica ou institucional, aquela da História e da
sociedade nos filmes não é dissociável da história do cinema entendida como história das
formas cinematográficas.™
99 “Uma relação de diversos andares: Cinema & História” in Imagens. Cinema 100 anos, (5): 31, ago./dez.
1995, grifos nossos.
99 Idem, ibidem, p. 32.
História e cinema 63
100 Citado por Christian Delage, “Cinéma, Histoire. La réappropriation des récits”. in Vertigo. Le cinéma face
à rhistoire (16): 14,1997.
101 Ismail Xavier, op. cit, p. 127.
102 Idem, ibidem, p. 131.
64 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Marcos Napolitano1
2
O cinema de ficção tem sido uma das principais linguagens artísticas de represen
tação do passado. Através dos chamados “filmes históricos”, episódios e personagens
reais da história são encenados em roteiros ficcionais, muitas vezes verossímeis ao
pretender ser a reconstituição mais fiel possível do passado. Partimos da premissa
que, independentemente do grau de fidelidade aos eventos passados, o filme histórico
é sempre representação, carregada não apenas das motivações ideológicas dos seus re
alizadores, mas também de outras representações e imaginários que vão além das in
tenções de autoria, traduzindo valores e problemas coetâneos à sua produção. Como
parte das estratégias de representação que dão sentido político aos filmes históricos,
a questão da monumentalização de eventos e personagens (ou da sua desconstruçào
enquanto “monumentos”) tem um papel central na escrita filmica da história. A mo
numentalização, por sua vez, encontra no cinema - linguagem espetacular por exce
lência- um grande potencial de realização. A partir dessas premissas, vamos apontar
para a análise de dois “filmes históricos” portadores de significados opostos entre si,
ao menos como estratégias de monumentalização do passado: Amistad (1997), de
Steven Spielberg, e Danton (1983), de Andrew Wajda.
Amistad retrata um incidente real com um navio negreiro, ocorrido entre 1839
e 1841. Após um motim de escravos, a embarcação vai parar na costa estaduni
dense. Enquanto o destino dos escravos é discutido, o filme insere elementos clás
sicos da narrativa do gênero melodrama e reitera, paulatinamente, o mito oficial
da “democracia norte-americana”, como um destino manifesto que não conhece
limites de raça, credo ou cor. Por outro lado, Danton parte de um acontecimen
to já monumentalizado pela historiografia - o momento jacobino da Revolução
Francesa - para subverter os papéis e confundir os discursos, problematizando
1 Este artigo é uma versão ampliada da Comunicação apresentada no GT Dimensões Políticas do Audiovisual,
no XXIII Simpósio Nacional de História, ANPUH, Londrina, 18 a 22 de julho de 2005.
2 Professor do Departamento de História da USP e autor do livro Como usar o cinema em sala de aula. São
Paulo, Contexto, 2003.
66 Capelato, Morettin, Napolitano e àahba
vel a grandes platéias e» por isso mesmo» objeto de interesses econômicos e po
líticos diversos. Para o historiador voltado para o estudo do cinema» é sempre
preciso lembrar que todo filme pode ser tomado como documento histórico de
uma época» a época que o produziu. Todo filme é representação» não importa
se documentário ou ficção. A partir dessa regra geral, surge uma problemática
específica que é a definição de filme histórico.
Pierre Sorlin» ao definir o “filme histórico” deu uma importante contribuição
ao definir um gênero cinematográfico que, dentro do campo ficcional» encena o
passado com os olhos voltados para o presente. O filme histórico é um “espião da
cultura histórica de um país, de seu patrimônio histórico” Trata-se de um ou
tro olhar sobre o cinema» como fonte e veículo de disseminação de uma cultura
histórica» com todas as implicações ideológicas e culturais que isso representa.
Na definição do filme histórico Pierre Sorlin estrutura uma forma de pensar a
relação cinema-história em três proposições básicas:5
1) Relação presente/passado. O filme histórico ancora-se no presente (produ-
ção/distribuição/exibição) e no passado (datas/eventos/personagens que marcam
o tema dos filmes).
2) Filmes históricos são formas peculiares do “saber histórico de base”. Os fil
mes não criam esse saber» mas o reproduzem e o reforçam. O filme histórico está
inserido numa cadeia de produção social de significados que envolvem historia
dores» críticos, cineastas e público.
3) O analista deve problematizar a “narração fílmica da história”, exploran
do a tensão entre ficção e história» ou seja, entre documentos não-ficcionais e
imaginação/encenação ficcional. Nesse sentido a narrativa fílmica e a narrativa
historiográfica estruturam-se como formas de narração literária, sendo que esta
última busca um efeito de realidade na sua narração» além de ancorar-se em evi
dências documentais.
O filme histórico é um dos gêneros mais bem-sucedidos do cinema comercial.
Paradoxalmente, mesmo com o questionamento da “verdade histórica”, na prática
historiográfica atual, muitos historiadores cobram ou avaliam um filme histórico
a partir da noção de “fidelidade” ao passado ou do grau de informação ilustrativa
sobre um determinado processo histórico.6 Obviamente, essa questão não é irrele
vante e é lícito que os historiadores se posicionem nesses termos. Eventuais anacro-
nismos, omissões e informações errôneas veiculadas pelos filmes históricos devem
5 Ramos, Alcides. O canibalismo dos fracos. Cinema e História do Brasil. Bauru, EDUSC, 2002, p. 33-34.
6 Esta parece ser a abordagem predominante em livros como Ferreira, Jorge. A História vai ao cinema. Rio de
Janeiro, Record, 2000 e Daves, Natalie. The slaves on screen. Film and Historical Vision. Cambridge, Harvard
Univ. Press, 2000.
68 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
ser apontados. Entretanto, a análise de um filme histórico não deve se limitar a esse
tipo de comentário, nem ao cotejo com o que “realmente se passou”.
Em contraposição a essas armadilhas de abordagem, que avaliam a qualidade
do filme histórico em relação à sua fidelidade ao passado, Jean-Lorús Leutrat
propõe o exame de
como o sentido é produzido (...) para que possamos recuperar o significado de uma obra
cinematográfica, as questões que presidem o seu exame devem emergir de sua própria análise.
A indicação do que é relevante para a resposta de nossas questões em relação ao chamado
contexto somente pode ser alcançada depois de feito o caminho acima citado, o que significa
aceitar todo e qualquer detalhe (do filme) (...) trata-se de desvendar os projetos ideológicos
com os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de vista a sua
singularidade dentro do seu contexto.7
Portanto, existe um outro aspecto dos filmes históricos cujo potencial de aná
lise reside, justamente, no exame das manipulações, anacronismos e representa
ções nem sempre muito fiéis que ele faz do passado. Acreditamos que esta é uma
das vias privilegiadas pelas quais pode ocorrer a operação de monumentalização
ou, seu contrário, a desconstrução dos monumentos historiográficos através da
“escrita fílmica da história”. Além disso, como já destacou Eduardo Morettin, as
estratégias de monumentalização, bem como seus limites, estão em constante ,
diálogo com as possibilidades técnicas da indústria historiográfica e com os ma- '
teriais de memória social, adensando através do “específico fílmico” (as técnicas
e linguagens que estruturam o filme) o debate social em torno da memória his
tórica.8
Tomemos como exercício de análise dois filmes históricos de grande sucesso,
que provocaram debates entre cineastas, políticos, ativistas e historiadores. Duas
obras cinematográficas que, tradicionalmente, foram vistas de maneira oposta,
a cinematografia européia - no caso franco-polonesa marcada pela tradição
do “cinema autoral”, e a cinematografia estadunidense, produto do maior e mais
influente complexo de cinema industrial do mundo. A princípio, essas cinemato
grafias não sofreriam os limites técnicos e expressivos à operação de monumen
talização da história através do cinema, já destacada por Eduardo Morettin.9
10 Destacamos o artigo de DAVIS, Natalie Z. “Witnesses of trauma”. Slaves on screen. Film and historical
vision. Cambridge, Harvard Univ. Press, 2000, pp. 69-120.
11 Excetuando-se, talvez, alguns filmes produzidos sob o impacto da derrota no Vietnã, tais como Taxi Driver,
O Pequeno Grande Homem, entre outros. No geral, entretanto, predomina a expiação das culpas coletivas
sob a forma de dramas individuais e catárticos, de eficaz impacto emocional, mas de pouca profundidade
política.
72 Capelato, Morettin» Napolitano e Saliba
12 O Acordo de Mississipi em 1820 proibia a escravidão acima do paralelo 36*. Em 1850 foi firmado o
Compromisso Clay, que concedia autonomia para cada Estado da federação decidir o tipo de mão-de-obra
utilizada dentro de suas fronteiras.
História e cinema 73
13 Neste sentido, Jefferson em Paris (James Ivory, EUA, 1995), mesmo dentro dos parâmetros do cinema de
entretenimento, consegue problematizar a relação entre democracia e escravidão nos EUA recém-criado.
14 Davis, Natalie. op. cit., pp. 84-85.
74 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
compartilha seus valores básicos. Como proposta fílmica para a reflexão histórica,
entretanto» fica muito problemática, pois as condições sociais, ideológicas e his
tóricas que possibilitaram que os atores do “mal absoluto” tivessem tanto papel
na história, ficam sem equacionamento, diluindo e isolando a cadeia de culpas e
responsabilidades. Em outras palavras, dito de maneira provocativa e anacrônica,
nazistas e traficantes de escravos não estavam sozinhos na perpetração do mal. O
Holocausto tinha muitos cúmplices que os filmes hollywoodianos fazem desapare
cer, em nome da eficácia do melodrama. A estratégia de monumentalização fílmica
da história, justamente por ser bem-sucedida, consegue ocultar sob uma narrativa
épica» as contradições históricas da democracia liberal nascente. Obviamente, não
se trata de cobrar veracidade histórica do filme, mas de entender quais as opera
ções que permitem a eficaz monumentalização da democracia norte-americana e
a ocultação das suas contradições, ao mesmo tempo que atualizam o sentido dessa
democracia em tempos de multiculturalismo e atitudes “politicamente corretas”.
Se a travessia é mostrada como o inferno e a África, o paraíso perdido, o pur
gatório dos africanos era a “América”, terra onde sua vocação natural para a li
berdade ganha tradução universal através do drama dos tribunais. Entre as várias
seqüências de tribunais que pontuam o filme, o julgamento final na Suprema
Corte norte-americana é o mais destacado no adensamento do monumento. John
Quincy Adams (Anthony Hopkins) discursa, sofregamente, como um ancião que
tudo sabe e viu. Olha para o passado, recuperando o sentido ideológico da nação
norte-americana» vocacionada para a liberdade e velada pelos pais-fundado-
res» imortalizados nos bustos que decoram o salão da Suprema Corte. Adams
olha para o presente, vendo nos africanos escravizados a suprema contradição
da democracia moderna que deve ser universal para sobreviver. Olha para o
futuro, prevendo uma luta entre o bem o mal» entre democratas e liberticidas»
como se esta fosse a única real contradição do mundo moderno, sintetizado na
história dos EUA. E conclui, profético: “se a guerra civil vier, que seja a última
batalha da Revolução americana”.
No final do filme, libertados por um sistema universal e justo, Cinque e seus
companheiros de infortúnio voltam à África. Diz a legenda que Cinque não mais
encontra sua aldeia, devastada por guerras tribais. Em contraste» Spielberg mos
tra a Marinha Inglesa, numa clara homenagem à vocação intervencionista para
fins “humanitários” que foi herdada pelos EUA, destruindo a fortaleza de Lom-
boko, como um simples ato humanitário e não parte dos interesses estratégicos da
Grã-Bretanha no século XIX. Uma interpretação possível, muito condizente com
a leitura contemporânea que a mídia, mesmo de recorte relativamente progres
sista» faz do “continente negro”: a África destruída pelos africanos, em contraste
História e cinema 75
com a África libertada e protegida pelos Europeus. Numa cena tanto eficaz quan
to distorcida, desaparece toda a responsabilidade do imperialismo pela degrada
ção sociopolítica e econômica do Continente.
O principal material inspirador do filme foi a peça O caso Danton, escrita pela
dramaturga polonesa Stanislawa Przybyszewska em 1929.20 Num certo sentido,
Stanislawa revia a caracterização de Danton como “herói romântico e nihilista”
que se consagrou na clássica peça de Georg Buchner, A morte de Danton (1835).
Na longa peça, prevista para durar cerca de cinco horas, o personagem de Dan
ton é mostrado como hedonista e corrupto, antítese do princípio de “terror e
virtude”, tão caro a Robespierre. A autora procurava, por contraste, enfatizar a
pureza revolucionária desse personagem. Wajda, na sua adaptação cinematográ
fica, retirou os trechos mais apoteóticos a Robespierre e selecionou as cenas mais
contrastantes, concentrando o foco em Danton. Conseguiu manter os registros
básicos dos personagens - o liberal hedonista e corrupto versus o revolucionário
puritano e inflexível - mas deu-lhes um sentido político completamente diferen
te e muito ambíguo. Aliás, sentido que é adensado pelas historicidades comple
tamente diferentes que envolvem a peça e o filme. A primeira escrita sob o calor
dos processos revolucionários carregados de esperança e utopia que varriam a
Europa do pós-Primeira Guerra. O segundo, produzido sob o balanço amargo
do “socialismo real” do Leste europeu, aprofundado ao longo dos anos 1970 pelas
próprias correntes da esquerda anti-stalinista.
A desmonumentalização de Danton não foi apenas uma operação que envolveu
a inversão de mitos historiográficos sobre personagens históricos e fílmicos. Ela
se inscreve na narrativa fílmica como um todo.
O filme começa com três seqüências intercaladas: 1) a chegada de George Dan
ton a Paris, jacobino “indulgente” e crítico do Terror; 2) o pequeno irmão de Ele-
onore, senhoria de Robespierre, obrigado a decorar os artigos da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto é banhado pela irmã. A cada erro,
ele dá a mão à palmatória, resignado e amedrontado; 3) Maximilien de Robes
pierre, sonolento e abatido, acordando para mais um dia de atividades políticas.
Essas três seqüências formam uma espécie de abertura, com todos os elementos
dramáticos básicos já anunciados.
Pela janela da carruagem, molhada pela chuva, Danton vê a sombra refletida da
guilhotina, mostrada solenemente como uma espécie de monumento revolucio
nário do período. Mais adiante, em outra seqüência, Danton pára em meio a uma
multidão cansada das filas e representada no filme na sua insatisfação em relação
ao governo jacobino, que num instante volta-se para o personagem como uma
espécie de salvador da pátria. O populismo sanguíneo de Danton contrasta com
20 A dramaturga polonesa produziu uma trilogia sobre a revolução francesa, da qual O caso Danton faz
parte, completada pelas peças 93 (1928) e a inacabada Thermidor (1925), que encena as últimas horas de
Robespierre e Saint Just.
78 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
externas, as ruas de Paris que, segundo os manuais nos ensinam, eram os palcos
privilegiados da grande revolução» são esvaziadas do seu sentido político. As ruas
são apenas o palco do povo infeliz das filas do pão ou do povo exultante dos espetá
culos da guilhotina. A política» na visão de Wajda, se faz em outros ambientes. Lem
bremos que» em duas seqüências, o povo é expulso dos espaços do poder» primeiro
da sala do Comitê, depois do Tribunal Revolucionário, onde a sentença de morte de
Danton e seus correligionários é proferida para um salão praticamente vazio.
A textura e a cor são desbotadas. A trilha sonora» composta por Jean Prodro-
mides, é marcada por uma polifonia dissonante que sugere um coro de vozes
fantasmagóricas» arrastando correntes pelos corredores da história» procurando
transmitir “a sensação das coisas se estilhaçando” (nas palavras de Wajda) ao
redor dos personagens. O andamento é lento, enfatizando a teatralidade e os dis
cursos dos personagens ao invés das peripécias de ação e enredo» embora tenha
uma densidade cênica (além de dramática) impressionante. O filme é obscuro,
labiríntico, despojado» no qual predomina um confronto entre os corpos dos
personagens e os ambientes» cuja dramaticidade é potencializada pelo fato de
as locações serem muito próximas do palco real dos acontecimentos. A grande
dimensão dos espaços interiores não é enfatizada enquanto colosso espetacular
erigido à posteridade, mas na forma de ambientes enclausurados, opressivos e
sombrios que se adequam a conchavos, palavras furtivas» gestos ocultos que se
contrapõem à grandiloquência dos discursos públicos. Nesse sentido» os recintos
monumentais são opressivos» diminuem os personagens ao invés de torná-los
grandiosos. Portanto, nas várias dimensões que compõem os códigos audiovi
suais da narrativa fílmica, Danton aponta para um despojamento que contrasta
com a tendência de exuberância do filme espetacular.
A visão teatral e shakespeariana, apontada corretamente por Mermaz não ficava
reduzida a um jogo psicológico de dois personagens» ao contrário» era a premissa
crítica aos processos revolucionários cada vez mais limitados a Comitês dirigentes
e aparelhos de Estado. Insistiremos neste ponto: o filme Danton não é um drama
de natureza psicologizante» mas uma tragédia de natureza política. Ao focar a re
lação tensa entre Danton e Robespierre» Wajda quer colocar em cheque a tradição
jacobino-leninista-stalinista que comandou as revoluções socialistas do século XX.
Ainda que possa ser criticado por seu olhar descrente e reducionista sobre um im
portante processo social e histórico» o filme de Wajda não pode ser acusado de
operar numa tradição contra-revolucionária» na medida em que há» no interior da
narrativa, um elogio subjacente à natureza libertária da revolução e das motivações
políticas que movem os personagens. O intenso diálogo final entre Saint Just e Ro
bespierre, herói acamado e doentio, revela essa ambigüidade:
História e cinema 81
Robespierre: Tenho a impressão que tudo que eu creio desmoronou-se de uma vez... a
revolução está saindo errada (...) então a democracia é uma ilusão...Estou louco?
Saint-Just: Não. Está desesperado... Então meta uma bala na cabeça.
Robespierre: Boa idéia. Poder dormir como um animal...
21 Esta pode ser uma diferença importante entre Andrzej Wajda e Gillo Pontecorvo: este último procura
encenar o contexto histórico em toda sua complexidade, como fica claro em Batalha de Argel. A violência
revolucionária seria produto desse contexto maior, e não dos jogos fechados da política, como enfatizado
por Wajda neste e em outros filmes (Cinzas e Diamantes, O Homem de Ferro, entre outros).
22 Esse conceito de cinema político - propagandístico e apoteótico - foi estudado por Furhammar 8c Isaksson.
Cinema & Política. 2 ed. São Paulo, Paz e Terra, 2001. Reconhecemos que é muito difícil tipificar o “filme
político”, na medida em que quase toda produção cinematográfica é portadora de valores ideológicos, ainda que
latentes ou sem importância para narrativa principal. Nesse sentido, todo filme seria um “filme político”. Aqui,
utilizamos a expressão para delimitar filmes nos quais o tema da política é o eixo do roteiro e da narrativa.
23 Os casos mais notórios dessa tradição cinematográfica, na minha opinião, seriam os diretores Tomás
Gutierrez Alea e Gillo Pontecorvo. O primeiro realizou clássicos como Memórias do Subdesenvolvimento e
Última Ceia que, operando pelo deslocamento de discursos e mobilidade de focos narrativos, consegue ser
crítico à revolução cubana, sem nunca ter rompido com ela. Quanto a Gillo Pontecorvo, mesmo fazendo o
elogio da revolução como processo histórico inevitável, utilizou-se de uma interessante e peculiar estratégia
narrativa - a relação dialética entre repressor e reprimido, entre revolucionário e contra-revolucionário
- para refletir sobre a violência inerente às revoluções» evitando julgamentos morais dos atores, mas
explicitando o sistema de dominação - principalmente o sistema colonial - responsável pela violência
generalizada dos processos revolucionários. Sobre Alea, ver: Villaça, Mariana. “O ICAIC e a política cultural
em Cuba”. XVII Encontro Regional de História, Associação Nacional de História. Campinas, 6 a 10 de
setembro de 2004, digit.
História e cinema 83
e persistência maiores que as dos seus pensamentos. Tal fato é, para a fisiologia,
demasiado óbvio, pois as emoções operam através do antigo e pesado sistema
nervoso simpático e dos hormônios a ele associados, que atuam no corpo inteiro,
ao contrário dos processos do pensamento conceituai, confinados no neocórtex,
no topo do cérebro. Pesquisas mais recentes têm apontado, contudo, que a repe
tição cotidiana dos exercícios de riso desenvolvem no cérebro as “faculdades de
criação”, de mobilização e de utilização da energia cerebral (neuromediadores).
Assim, é na maioria das vezes, pelo riso que a criança aprende e que o adulto re
força suas faculdades de raciocínio lógico e de previsão.
Com tudo isto, vocês devem estar se perguntando: será que eu escolhi o texto
certo? Anatomia do riso, fisiologia do riso, patologia do riso? Ou, como costuma
acontecer com alguns alunos: será que eu entrei na aula errada? Eu mesmo, como
autor, estou em dúvida: será que apanhei o assunto certo?
Não se preocupem com nenhuma dessas alternativas, pois esta introdução não
passa uma brincadeira que tem como objetivo fazer rir... ou, pelo menos... sorrir.
Na minha longa vida de professor, procuro seguir sempre, na medida do possível,
esta espécie de regra não escrita: toda conferência, aula, encontro, colóquio ou
texto deve começar sempre com uma frase espirituosa, uma anedota ou coisa
parecida que criará uma atmosfera de simpatia, dando, talvez, a cada ouvinte e
leitor, o sentimento de que participa pessoalmente do debate. A ruptura, o de
safio lúdico e a interrogação que surgem da anedota, piada ou frase espirituosa
obrigam a quem ri, se quiser rir, a ir além do rígido limite das suas concepções
habituais ou de suas expectativas já formadas.
Numa aula ou, sob um aspecto mais extenso, em todo processo de comuni
cação o riso tem o efeito, pelo menos a curto prazo, de transformar um ouvinte
frio num parceiro caloroso. É claro que quase sempre tento seguir essa regra mas,
nem sempre consigo: ofuscado pelo aspecto sério das questões a tratar, às vezes
não encontro nada engraçado para dizer e, acabo por exclamar, com sincerida
de: “Infelizmente, sobre este assunto de hoje, não tenho nenhuma anedota...” E
assim só consigo que as pessoas riem dizendo que sou incapaz de fazê-las rir...
Em qualquer caso, além de quebrar muitas formalidades dispensáveis, tal artifí
cio de colocar sempre algo engraçado no início, ajuda também a quebrar certos
determinismos, reverter expectativas e incentivar a capacidade reversível do pen
samento. Esperava-se uma coisa, ocorre outra.
Comecei assim, de propósito, para ilustrar o que eu gostaria de dizer sobre o efei
to das imagens canônicas no ensino de História. Calculo que todos esperavam, nestes
tempos pós-modernos, que eu começasse num tom crítico, subjetivo, deconstrutivo
mas, com certeza, anti-determinista. Por isso, comecei num tom que, parece-me,
História e cinema 87
hoje» meio fora de moda: determinista, frio, objetivo» imitando uma enciclopé
dia.2 De maneira proposital, sai fora dos cânones, embora eu tenha feito isto apenas
verbalmente. Gostaria de tê-lo feito com imagens. Gostaria, por exemplo, de ter
iniciado com um pequeno filme de um minuto e meio chamado Explosão de um
veículo motorizado (Explosion of a motor car) feito em 1900. Num plano geral,
vemos um calhambeque, daqueles do começo do século, lotado de pessoas ani
madíssimas, provavelmente recém-saídas de uma grande festa. De repente, uma
trucagem rápida substitui toda essa efervescência por uma explosão de fumaça
que, ao se dissipar, deixa ver apenas algumas peças do carro, queimadas e retor
cidas. No quadro seguinte, um policial, percebendo a explosão, usa uma luneta
para observar no céu as partes espalhadas pelo ar. Mas começam a cair lá de cima
pedaços de corpos humanos, e o policial tem que se proteger. Por fim, o policial
assume a postura da autoridade, apanha seu bloco de papel, remexe partes de
pernas, mãos e pedaços de corpos, para fazer um relatório detalhado e cumprir
o seu dever. Ou com um outro filme, muito curto, de 1901, intitulado, A grande
engolida (The big swallow) com apenas dois personagens: um homem que resiste
a ser filmado, que é enquadrado na perspectiva do cineasta que o está filmando.
O primeiro, resistindo à fimagem, aproxima-se, ameaçador, da câmera e de nós
mesmos espectadores - já que a perspectiva do público é a mesma de quem está
filmando o homem enraivecido, que afinal, aproxima-se da câmera com a boca
aberta para engolir o cinegrafista. Depois de um segundo de tela escura, vemos
o mesmo homem mastigando o fotógrafo e sua câmera, rindo com satisfação da
sua bela engolida e lançando-nos olhares de cumplicidade.
São dois raros exemplos de imagens do contra, ou seja, de imagens não-canô-
nicas, de filmes cujas características eram a brevidade, a anarquia, as trucagens
e um incrível senso de humor. As duas seqüências de imagens não duram mais
do que um minuto e meio, não contam nenhuma história, apenas mostram o
efeito hilariante e fantástico de uma explosão ou de uma grande mordida. São
dois, entre os muitos exemplos de microcomédias, do tempo dos quinetoscópios
e cinematógrafos, que possuíam uma lógica e um projeto que nada tem a ver com
aquela arte domesticada na qual o cinema se transformaria posteriormente...3
Meu propósito neste trabalho é mostrar a importância do professor de história
no seu esforço de desmistificar as chamadas imagens canônicas, que nos são im
2 O tom “enciclopédico” não é, aí, mera coincidência, pois foi inspirado no verbete notável sobre o riso,
contido na 15a edição da Encyclopaedia Britannica (Londres, Viking Books, 1961), escrito pelo húngaro Arthur
Koestler. Tratei desse tema do cômico cinematográfico e seus desdobramentos didáticos no texto “Dimensões
da comicidade no cinema e na História”, in Lições com Cinema, n.6, São Paulo, FDE,(no prelo).
3 O melhor trabalho sobre o tema é o de Flávia Cesarino Costa, O Primeiro Cinema; espetáculo, narração,
domesticação. São Paulo, Scritta,1995.
88 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
4 Para o filme Os Inconfidentes, consultar o catálogo que escrevi para a série Apontamentos, São Paulo, FDE
1998; Para uma síntese da ambiguidade de Tiradentes como herói, ver Carvalho, José Murilo de. A formação
das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras,! 990.
História e cinema 89
homem eretoo. Há inúmeras variações, mas a matriz básica é esta. É uma con
cepção absolutamente errônea da história biológica, pois é equacionada com a
noção de progresso - um progresso inerente e previsível, que conduz ao pináculo
da humanidade. Identifica totalmente evolução (natural) com progresso (huma
no). Essa falsa equação entre evolução e progresso reflete uma tendência cultural,
uma invenção imaginária e não uma conclusão biológica. A fonte básica dessa
tendência é um difuso etnocentrismo, aquele entranhado desejo humano de nos
vermos como ponto alto da história da vida, governantes da terra por direito e
destino biológico.5
O problema dessa imagem canônica da evolução é a sua associação intrínseca
com a idéia de progresso: para mais, para melhor e para mais adiante que, como
sabemos, possui fortes desdobramentos na compreensão da história. Na marcha
linear da escada, a sugestão das imagens é clara: cada época serve de degrau para
a época seguinte, como no desenho de Steiner que começa com uma ameba, qua
se imperceptível, depois um lagarto, até chegar ao cume da escada onde temos
um homem branco em trajes de executivo. Os livros didáticos estão cheios dessas
iconografias da escada; e mesmo as crianças, quando solicitadas, costumam dese
nhar dessa maneira, simplesmente identificando evolução com progresso,
Claro que, a cultura de massas, particularmente a publicidade, também se utiliza
dessas imagens canônicas. Parodiando, como no caso da publicidade de compu
tadores da Toshiba, mostrando como seus produtos se tornaram menores e mais
baratos, evoluindo de um chimpanzé vergado ao peso de um jurássico “cérebro
eletrônico” para um empinado executivo com seu laptop. Noutro exemplo, através
da caricatura, como no caso da sátira ao terrorismo mundial, ou na comparação
entre a “evolução do homem e... da mulher”, para terror da historiografia feminis
ta e dos estudos de gênero. Em determinadas situações didáticas podemos utilizar
tais imagens, sobretudo para provocar e sugerir uma leitura alternativa às imagens
canônicas. Mas, sem esquecer que as inúmeras paródias revelam a força e a acei
tação da imagem canônica original - já que a própria compreensão da paródia
supõe o conhecimento geral da imagem parodiada. Noutros termos, é preciso não
esquecer que a paródia também pode reforçar o estereótipo, enfatizar o cânone,
repetir o mesmo significado. Ora, a força e a popularidade da imagem da “escada
do progresso” apenas reforça um imaginário coletivo - uma ideologia, no sentido
mais vasto do termo - que identifica falsamente evolução com progresso.
O esforço deve ser no sentido de quebrar um pouco do determinismo das ima
gens estereotipadas, mas isso sem nenhum exagero. Porque, por outro lado, há que
5 Cf. Goud, Stephen Jay. “Escadas e Cones: coagindo a evolução por meio de ícones canônicos” in Silvers,
Robert B. (org.) Histórias Esquecidas da Ciência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
90 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
por exemplo. As imagens dos filmes flutuam durante muito tempo em nós, como
certas músicas que, sem conhecê-las de cor, reconhecemos imediatamente a me
lodia. Ao passo que as imagens que nos chegam da atualidade televisionada cin-
tilam em nós como um caleidoscópio, uma crônica sem cronologia, um mosaico
sem forma, fragmentos sem autor.... Vivemos uma espécie de intoxicação visual,
na qual o conhecer se reduziu ao ver, o estou vivendo, substituiu o eu compreendo
- e quando não há nada a acrescentar, as pessoas dizem: está tudo visto.6
O mesmo ocorre com a informação no mundo atual. Como em sua grande parte
essa informação nos é transmitida pela televisão - é amplamente reconhecida a
hegemonia da TV sobre a mídia impressa - ela é crivada de lugares-comuns e, con-
seqüentemente, de imagens canônicas. Todo o objetivo dos telejornais, por exem
plo, consiste em atrair a atenção para fatos que são de natureza a interessar todo
mundo, dos quais se pode dizer que são omnibus - isto é, para todo mundo. São
fatos sem asperezas, sem rebarbas, tão superficiais que não dividem e nem polemi
zam. Os fatos-ônibus (chamemo-los assim, adaptando da palavra latina omnibus)
são como as imagens-ônibus - com a diferença que o efeito dessas últimas é menos
perceptível, portanto, mais eficiente: não devem chocar ninguém, não envolvem
disputa, não dividem, formam um consenso difuso, que interessa a todo mundo,
mas de um modo tal que não tocam em nada de importante.
Da mesma forma, as notícias de variedades ou os talk-shows constituem uma
espécie elementar e rudimentar de informação que é muito importante porque
interessa a todo mundo sem ter conseqüências e, sobretudo, porque ocupa tem
po... tempo que, diga-se, a bem da verdade, poderia ser empregado para dizer
outra coisa. Fixamos um quadro luminoso que nos vomita milhares de coisas
que se anulam mutuamente como numa espiral infinita: tagarelices insignifican
tes, descoberta de um novo remédio miraculoso, escândalos variados, ginástica
passiva para cães, monstruosidades diversas, brigas de casais; e mais entortadores
de colheres, anões, pegadinhas e uma infinidade de outros personagens tutólogos.
(Apresento aqui, como sugestão pessoal, uma definição não-canônica de um per
sonagem típico da atual moda televisiva - um tutólogo: é aquele que4 está dispos
to a tudo, isto é, a todas as concessões, a todos os comprometimentos para parti
cipar da mídia e granjear prestígio e notoriedade na TV e nos talk-shows”.)7
6 Tratei desse tema, mais amplamente a partir das questões da experiência dos receptores em “Experiências e
Representações Sociais: reflexões sobre o uso e o consumo das imagens", in O saber histórico na sala de aula,
organizado por Circe Bittencourt, 2. ed., Sâo Paulo, Contexto, 1988.
7 O tratamento mais recente desse tema e, sem dúvida, o mais lúcido é o de Pierre Boudieu. Sobre a Televisão.
Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.
92 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Brincadeiras à parte, digo isto para discordar de tantos analistas que já disse
ram, por várias vezes, que a televisão é um meio que, por si mesmo, não veicula
significados, sendo quase que um processo sem sujeito. Não. A televisão tem uma
forma de representar o mundo e por trás dela uma (frágil) filosofia da história. Para
ilustrar isto, basta verificar a difusa teoria da história por trás dos telejornais:
apresentam-nos um mundo cheio de violência e crime, uma sucessão absurda
de desastres sobre os quais não se compreende nada, um mundo cheio de ima
gens triviais e dramas individuais - um mundo de ameaças incompreensíveis e
inquietantes do qual é preciso, antes de tudo, se retirar e se proteger... se possível,
ainda se divertindo com o infinito e banalizado show de imagens.
O profissional de história deve esforçar-se por quebrar com essa espécie de am
nésia estrutural, cada vez mais favorecida pela lógica do pensamento cotidiano.
Uma das formas para se buscar essa espécie de contra-discurso visual é procurar
mostrar, ao máximo, como essas imagens são produzidas. Eu sei que o professor
de história, um profissional já malformado no mundo da grafosfera (ou seja, da
escrita) tem dificuldades enormes para trabalhar no mundo da videosfera.
Ainda assim, todo o esforço didático do professor, mesmo no primeiro ciclo, deve
ser no sentido de mostrar que o mais importante no visual, seja por que meio for,
é o fato de que as imagens na tela tenham sido colocadas lá por alguém... As imagens
não são feitas gratuitamente, mas por alguém que ganha a vida fazendo imagens e
que obedece a um certo número de regras e limitações. Assim, em quaisquer situações,
temos de mostrar como os filmes (ou imagens) são produzidos. Claro, que nas faixas
etárias menores temos de trabalhar com as compreensões mínimas. Nesse sentido,
roteiro, movimentos de câmera, enquadramentos, trucagens, montagens... enfim,
tudo o que diga respeito à linguagem cinematográfica ou da TV, ou ao contexto
no qual a imagem foi produzida são dados imprescindíveis. Claro que a forma não
é tudo. Nesse caso, o professor deve selecionar, dentre tais elementos “técnicos”,
aquilo que é indispensável para a compreensão do próprio conteúdo das imagens.
O ideal é que no planejamento, as imagens e os filmes sejam incluídos não apenas
em função do seu conteúdo mas também colocados numa certa seqüência que ob
jetive ensinar, desde o seu nível mais elementar, algo da linguagem e das técnicas
de produção da imagem. Filmes sobre a história da “invenção do cinema”, desde os
tempos de Lumière, por exemplo, são essenciais. Entre os exemplos que eu citei, há
inúmeros, que se prestam inclusive a um uso didático, dado o seu caráter lúdico e a
sua extrema brevidade. É cada vez mais necessário questionar as imagens canôni
cas mostrando, ao máximo, por que e como elas foram inventadas, qtie necessidades
coletivas elas atenderam e, sobretudo, perguntar, juntamente com os alunos: por
que, afinal, as imagens alternativas não chegaram até nós?
História e cinema 93
8 Para uma explanação mais detalhada e sugestões didáticas para uso desse documentário, ver o texto que
escrevi para o catálogo Diretas Ontem, na série Apontamentos da FDE, São Paulo, 1992.
9 Para o texto de Gaffre, ver Wissenbach, M. Cristina C.“Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade
possível”, in História da Vida Privada no Brasil, volume III, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 49-128.
10 Pierre Sorlin em “Indispensáveis e enganosas, as imagens, testemunhas da história”, in Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, n. 13, 1994, pp. 82-95; para um exame bem mais profundo e detalhado, ver,
do mesmo autor, The film in History: restaging thepast. Oxford, Basil Blakwell, 1980.
História e cinema 95
segundo lugar, a emoção daquele que faz a imagem; e, por último, mas não menos
importante, a reação emocional daquele que é objeto da imagem, Este é um tema
muito vasto, com férteis desdobramentos didáticos, impossível de tratarmos aqui
em todos os seus detalhes. Farei apenas uma observação prática. Quando me per
guntam que critérios prévios utilizar para escolher filmes ou imagens, canônicas
ou não canônicas, simplesmente respondo que tais critérios não existem. É óbvio
que, como todos sabemos, o professor deve subordinar a escolha das imagens ou
filmes àquilo que ele pretende ensinar e não escolher previamente um filme só
porque ele é unanimemente considerado “bom”, “imperdível” ou “clássico”.
Agora, eu, pessoalmente, começo pelos filmes “clássicos”, em primeiro lugar,
pois eles ainda mostram-se capazes de me emocionar... Além disso, esses filmes
criaram os formatos básicos do patrimônio visual da nossa cultura, isto é, um
sistema de imagens, de referências, de valores; noutros termos, eles também se
tornaram matrizes das inúmeras séries de imagens canônicas que conhecemos.
Tais imagens, ainda que canônicas, são essenciais para reconhecer algumas gran
des referências cronológicas ou os tempos fortes da história das sociedades. Nesse
sentido, são imagens que podem ajudar a integrar criticamente o aluno numa
comunidade de significados - o que se chama hoje de imaginário da sociedade.
Quando falei que alguns filmes “clássicos” ainda são capazes de me emocio
nar, não falei gratuitamente. Repito, não há critérios objetivos para a escolha,
porque nossa relação com as imagens em movimento é uma relação emocional.
Ora, se 95% das imagens que a televisão nos mostra são feitas de forma a que
não tenhamos nenhuma reação diante delas (para que tenhamos tempo de “vi
ver” ao mesmo tempo que a TV está ligada) talvez um “critério” seja este: os
melhores filmes e as melhores imagens são aqueles capazes de nos provocar
uma reação emocional, fugindo à banalização e à seriação das imagens canôni
cas. Quando vi, pela primeira vez, a imagem do Cristo bizantino imberbe, ela
me provocou uma reação emocional de espanto que me fez perguntar - afinal,
por que não partilhar tal reação com os alunos? Por que não fazer desta ima
gem não canônica, o eixo para se organizar o conteúdo não apenas do mundo
bizantino, mas da compreensão, por exemplo, de todo o impacto do cristianis
mo na história?
Por tudo isso, gostaria de concluir dizendo agora, e com especial ênfase,
que nada substitui a escolha, que deve ser do próprio professor. Pois con
sidero que, aquilo que é válido para todo o processo educacional, também
funciona na utilização das imagens. Apesar de vivermos uma civilização da
imagem, é sempre bom dizer que a equação-chave da educação continua sen
do o professor e o aluno; tudo será inútil, ilusório, diversionista, alienante
96 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
1 Trabalho apresentado no XXIX Encontro Anual da ANPOCS, no Grupo de Trabalho “Imagens e sentidos:
a produção de conhecimento nas Ciências Sociais”, realizado entre os dias 25 e 29 de outubro de 2005 em
Caxambu, MG.
2 Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getulio Vargas e doutora em Ciências da Comunicação pela Escola
de Comunicações e Artes (ECA-USP).
J Sobre a noção de “comunidade imaginada” aqui subentendida, ver Anderson, Benedict. Nação e consciência
social. São Paulo, Ática, 1989.
98 Capelato, Morettin, Napolitano e baliba
4 Baseamo-nos aqui em Brooks, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James and the mode ofexoess.
New Haven, The University of Yale Press, 1976; e XAVIER, Ismail. “Melodrama, ou a sedução da moral negociada"
in O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
História e cinema 99
5 Sobre a televisão brasileira ver Alencar» Mauro. A Hollywood brasileira: panorama da telenovela no Brasil.
Rio de Janeiro, Senac Rio, 2002. Costa, Alcir Henrique; Simões, Inimá Ferreira; Kehl, Maria Rita. A História
da TV brasileira em três canais. São Paulo, Ed. Brasiliense/Funarte, 1986. Hambúrguer, Esther. “Diluindo
fronteiras: a televisão e as novelas do cotidiano” in História da vida privada no Brasil - contrastes da
intimidade contemporânea. Novais, Fernando e Schwarcz, Lília Moritz (eds.). São Paulo, Companhia das
Letras, 1998 e O Brasil antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. Ortiz,
Renato; Borelli, Silvia Helena Simões e Ramos, José Mário Ortiz. Telenovela: história eprodução. São Paulo,
Brasiliense, 1991. Pereira, Carlos Alberto M. e Miranda, Ricardo. Televisão - as imagens e os sons: no ar, o
Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1983.
História e cinema 101
6 Sobre essa questão ver Ridenti, Marcelo. Em busca do povo brasileiro - artistas da revolução, do CPC à era da
TV. Rio de Janeiro, Editora Record, 2000.
História e cinema 103
7 Fernandes, Ismael. Memória da telenovela brasileira. 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 135-6.
104 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
As tramas exibidas pela Rede Globo a partir da década de 1970 no horário das
20 horas convergiram basicamente para um Brasil contemporâneo, nas quais a
desigualdade social tanto se resolvia por saídas individuais - como por exemplo
uma ascensão social via casamento - quanto era apresentada como um dado ine
rente à realidade. Os campos em conflito se estruturavam ainda num universo
polarizado entre conservadorismo e hipocrisia versus autenticidade e verdade, va
lores identificados de alguma forma como atitudes mais livres e modernas. Nesse
sentido, as conquistas do mundo moderno foram incorporadas positivamente
pelas novelas, da mesma forma que novos estilos de vida - sobretudo a partir da
liberação sexual e de costumes -, de vestuário e de linguajar. Tornaram-se assim
referência, e mais que isso parâmetro de comportamento e de organização social,
e quando exportadas, passaram a ser responsáveis por uma imagem do país no
exterior. As demais oposições presentes na narrativas ficcionais televisivas - pais
x filhos, homens x mulheres, ricos x pobres e mundo urbano x mundo rural - são
igualmente estruturadas em torno de valores morais.
Esse Brasil rural e das pequenas cidades do interior do país foi ainda apre
sentado tanto em narrativas bem-humoradas e com forte apelo sensual - nas
quais as adaptações da obra literária do baiano Jorge Amado são exempla
res, assim como as telenovelas escritas por Dias Gomes, como veremos mais
adiante - quanto em histórias ingênuas exibidas no horário das 18 horas, a
partir de adaptações de grandes obras da literatura brasileira do século XIX.
O ano de 1975 é um marco importante em termos de afirmação da identidade
nacional na programação ficcional se considerarmos que o horário das 18 ho
ras passa a se dedicar à literatura brasileira, inaugurando uma tendência que
persiste até o ano de 1982. A primeira adaptação foi de Helena, obra escrita
por Machado de Assis e adaptada por Gilberto Braga, responsável também
pelas adaptações de Senhora, de José de Alencar, no mesmo ano, e de Escra
va Isaura (1976/1977), de Bernardo Guimarães. Já Marcos Rey foi responsá
vel pela adaptação do romance de Joaquim Manuel de Macedo, A moreni-
nha (1975/1976). No horário infantil, foi exibido, em 1976, o Sítio do Picapau
Amarelo, igualmente um clássico da literatura brasileira.
Dramas privados incorporaram problemas tanto da vida urbana quanto do
mundo rural, e o fato de as novelas se constituírem como uma “obra aberta” - os
capítulos vão sendo produzidos enquanto a telenovela está sendo exibida - per
mitiríam que a emissora se mantivesse intimamente ligada aos anseios do públi
co, procurando atender suas demandas e/ou criar suspense em torno delas. Daí a
importância da criação de grupos de discussão formados no interior da própria
emissora, visando exatamente captar os anseios do público em geral.
106 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
12 Criada em 1984, em homenagem à autora falecida um ano antes, a Casa de Criação tinha por objetivo
expandir e aperfeiçoar os produtos ficcionais da Rede Globo através da descoberta de novos autores e da
discussão entre os dramaturgos ligados à própria empresa. Contudo, a experiência durou pouco tempo.
108 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
13 Para uma análise da minissérie ver Kornis, Mônica Almeida. “Ficção televisiva e identidade nacional: Anos
dourados e a retomada da democracia” in Abreu, Alzira Alves de; Weltman, Fernando Lattman e Kornis,
Mônica Almeida. Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.
M Hambúrguer, Esther, op.cit, p. 100.
15 Sobre a relação novela e consumo ver Almeida, Heloísa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero: “muitas
mais coisas”. Bauru, Edusc, 2003 e Hambúrguer, Esther, op. cit.
História e cinema 109
19 Idem, p. 126. Já as novelas Renascer e Rei do Gado foram dirigidas pelo cineasta Luís Fernando Carvalho.
20 Para uma análise de Anos Rebeldes, ver Kornis, Mônica Almeida. Uma história do Brasil recente nas minisséries
da Rede Globo. Tese de Doutorado apresentada na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001.
História e cinema 111
21 Para uma análise de Agosto, ver Kornis, Mônica Almeida. “Agosto e agostos: a história na mídia” in Gomes»
Angela de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
22 Sobre a relação entre as minisséries históricas e o momento de produção ver Kornis, Mônica Almeida.
“Uma memória da história nacional recente: as minisséries da Rede Globo” in Acervo: revista do Arquivo
Nacional, v. 16, n. 1, jan./jun. 2003.
21 A inserção de depoimento do ministro da Defesa José Viegas na própria construção narrativa revela a
força da ligação entre a conjuntura política e a temática do programa.
112 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
24 Sobre a Casa de Cinema de Porto Alegre e em particular o trabalho de Jorge Furtado, ver Campo, Monica
Brincalepe. “Análise de obras de Jorge Furtado: linguagens, mídia, história e educação” Monografia
apresentada ao Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Libero. São Paulo, fev. 2005.
25 Ver Kornis, Mônica Almeida. “Aventuras urbanas em Cidade dos Homenst estratégias narrativas de inclusão
social em seriados ficcionais”. Estudos Históricos (37), jan.-jul. 2006.
26 Essas novelas são caracterizadas por Esther Hamburger como “novelas de intervenção”, op. cit., pp. 131-135.
História e cinema 113
das em alguns personagens, com uma função que, mais do que pedagógica, pode
ser caracterizada como de ajuda humanitária ou de utilidade pública. A campa
nha pelo desarmamento em Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos, que
abordava o problema da violência urbana, chegou a promover uma passeata pela
orla marítima da cidade do Rio de Janeiro, além de abordar problemas da chamada
“terceira idade”. Segundo Hamburger, essa tendência surgiu com a novela Explode
coração (1995), de Glória Perez, que divulgou o problema das crianças desapare
cidas e também daquelas portadoras do vírus da Aids via inserção de propaganda
da ONG Viva Cazuza. No ano seguinte, O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa,
abordou o problema agrário, em particular a luta do Movimento dos Sem-Terra.
Em 2000, Laços de Família tratou a questão do câncer, especificamente da leucemia
e do transplante de medula óssea; em 2001, O Clone, de Glória Perez, introduziu a
problemática da droga num formato documental, com depoimentos de ex-vicia
dos; e em 2004, Senhora do Destino, de Aguinaldo Silva, discorreu sobre o proble
ma da gravidez em adolescentes, tema igualmente abordado pelo episódio Foi sem
querer (direção de Cao Hamburger) da série Cidade dos Homens exibida no mesmo
ano. Em 2005 questões ligadas a deficientes físicos, em particular visuais, foram
abordadas em América, de Glória Perez, não só em torno de dois personagens que
atuam enquanto cegos, mas também por programa de televisão ficcional inserido
na narrativa com casos reais sobre o tema e intitulado “É preciso saber viver”.
Ao longo dos anos 1990 e até hoje, o discurso empresarial da emissora refere-se
seguidamente à idéia de que a produção ficcional da Rede Globo retrata o “caráter
brasileiro”, numa associação imediata entre a imagem de nação com os fatos tais
como se apresentam ou tal como aconteceram.27 Em torno de dramas privados são
inseridos símbolos nacionais como a bandeira, além de fortes referências à músi
ca, à paisagem e ao território, aos hábitos e costumes da população, e à própria his
27 Até mesmo fora do âmbito da teledramaturgia, a Rede Globo afirma sua presença como construtora de
um sentimento de identidade nacional, se pensarmos na própria denominação de alguns de seus programas,
como foi o caso de Som Brasil, na linha do espetáculo de música brasileira, e de Brasil Legal, uma mistura de
humor com trabalho documental através das viagens da atriz Regina Casé por inúmeras cidades do país. Isso
sem esquecer o título do programa de jornalismo recorde de audiência no horário das 20 horas, o já referido
Jornal Nacional, e os jingles “Globo, sempre mais Brasil” e “Globo, 100% Brasil” No ano 2000, a Rede Globo
instalou monumentais relógios pelo país em contagem regressiva para marcar as comemorações pelos 500
anos da “descoberta do Brasil”. Quadros do programa de variedades Fantástico também se vôltaram mais
recentemente para aspectos variados da sociedade brasileira.
114 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Documentos em imagens:
filmes de arquivos
Trabalhando com cinejornais:
relato de uma experiência1
Jean-Claude Bernardet desde 1975, num artigo para o jornal Movimento, cujo
eco e visibilidade ganharam contornos maiores em 1979 e em 1995, atacou os
historiadores do cinema brasileiro pelo desinteresse devotado ao papel dos pro
dutores de cinejornais e documentários?
1 Este texto foi publicado originalmente na revista História: Questões & Debates. Curitiba, Ed. UFPR, 20 (38):
jan./jun. de 2003.
2 Pesquisador independente, autor, entre outros, de Paulo Emilio no Paraíso, Rio de Janeiro, Record, 2002.
’ Ver Movimento, (2): 21,14/7/1975; Bernardet, J.-C. Cinema brasileiro: propostas para uma história, Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979 e Historiografia clássica do cinema brasileiro, São Paulo: Annablume/Fapesp, 1995;
Galvão O, M. R. E. Crônica do cinema paulistano. São Paulo, Atica, 1975.
4 Bernardet, J.C.» 1979, op. cit., p. 28.
118 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Fielding, R. The march of time: 1935-1951, New York, Oxford University Press, 1978, p. 6.
120 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
senvolveu o trabalho sobre o Cine Jornal Brasileiro (daqui para frente CJB), pro
duzido entre 1939 e 1946, quando, no regime democrático, mudou de nome para
Cine Jornal Informativo. O cinejornal do DIP foi salvo da destruição por Paulo
Emilio Salles Gomes. Em 1956, ele pediu e recebeu em depósito na Cinemateca
Brasileira a produção até aquele momento da Agência Nacional.7 Foi um golpe de
sorte a sobrevivência desses cinejornais dentro da série de desastres acontecidos
na Cinemateca. A partir de 1975 um projeto de inventário, restauração e inde
xação do acervo foi coordenado por Maria Rita Galvão, resultando na primeira
recuperação em larga escala da documentação, na sua maior parte em película
nitrato, sensível de autocombustão.8
O segundo impulso para a aglutinação de esforços sobre a documentação apa
receu com os estudos de Marc Ferro sobre Cinema e História.9 Bernardet iniciou
um grupo interdisciplinar de estudos sobre o tema por volta de 1978-1979, do
qual participaram, entre outros, Ismail Xavier, Zulmira Ribeiro Tavares e Ulis
ses Guariba, dentro da preocupação geral de revisão da historiografia do cinema
brasileiro. Em 1988, apareceu um pequeno volume, síntese de uma longa refle
xão em seminários e cursos em que Bernardet se engajou antes de voltar para a
universidade com a anistia política.10*Foi dentro dessa conjunção favorável que
nasceu o trabalho sobre o CJB.11
A primeira linha de ataque ao acervo do DIP foi quanto à ordenação proposta
pelo catálogo da Cinemateca Brasileira. Nele havia uma grande quantidade de ma
teriais sem datação ou com identificação incompleta ou errada. O exemplo mais
curioso desse rearranjo foi documentário de Ruy Santos, antes identificado com
o título A jangada voltou só no acervo da Cinemateca, que era, na verdade, um
dos números especiais do CJB.12 Muitos materiais continuavam em nitrato; alguns
com bandas de som e imagem separadas. Para a organização do segundo catálogo
foi pesquisada também a documentação do DIP, que vinha de ser aberta à consulta
pelo Arquivo Nacional (Fundo Presidência da República/Agência Nacional), além
7 O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, recebeu para guarda os Cinejornais Informativos dos anos seguintes, cuja
produção se encerrou na década de 1960; um catálogo com materiais dos dois acervos está em preparação.
8 O fruto do trabalho coordenado por Galvão pode ser visto em Cine Jornal Brasileiro: Departamento de
Imprensa e Propaganda, 1938-1946, São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira, 1982. Atualmente, depois
de dois trabalhos de reorganização da documentação, o acervo do Cine Jornal Brasileiro está na internet. Ver
a base de dados em <www.cinematecabrasileira.com.br/filmografiabrasileira >.
’ Ferro, M. Analyse de film. Analyse de sociétés. Paris, Hachette, 1975, e “O filme: uma contra-análise da
sociedade'*, in Le Goff. J.; Nora, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
10 Bernardet, J.C. e Ramos, A. F. Cinema e história do Brasil. São Paulo, Contexto, 1988.
" Souza, J. I. M. O Estado contra os meios de comunicação. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2003.
12 A jangada voltou só provavelmente foi um dos materiais inspiradores da parte brasileira de It’s all true, de
Orson Welles.
História e cinema 121
13 Outros historiadores, como Antonio Pedro Tota e Heloisa Helena de Jesus Paulo, antes da abertura do
fundo PR/AN, tinham tentado sem sucesso estudar o D1P por dentro. Ver “Procura-se a memória nacional”.
Folha de S.Paulo, 19.11.1978, p. 12 e “O DIP e a juventude - ideologia e propaganda estatal (1939-1945)”.
Revista Brasileira de História. (14): 99-113, mar./ago. 1987.
N Aldgate, A. Cinema and history: British newsreel and the Spanish civil wart London, Scolar Press, 1979, e
Gasser, B. Ciné Journal Suisse: aperçu historique (1923-1945), Lausanne, Cinémathèque Suisse, 1979.
122 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
gem média dos assuntos. Com esses cruzamentos o autor estabeleceu uma escala de
grandeza, realizando uma análise sobre cada um deles, baseando-se sobretudo nos
textos de locução. Ao mesmo tempo, dos vinte números especiais, de assunto único,
escolheu seis para estudo detalhado, instaurando dois tipos de análise: a qualitativa,
dentro de uma perspectiva pessoal, e a quantitativa.
Gasser, naquele momento, parecia conter um referencial metodológico com maio
res possibilidades de sucesso, posto que os outros dois trabalhos pouco se aplicavam
ao contexto próprio do CJB, principalmente pelo enfoque adotado. Dessa forma, pro
pusemos o estudo do cinejornal do DIP dentro dos seguintes requisitos: atuação no
período de vigência do Estado Novo, ou seja do início até 1945; indexação de todos os
assuntos veiculados, sem restrição temática; quantificação de cada assunto indexado,
como tinha realizado Gasser. A organização dos assuntos pela freqüência de aparição
levou-nos à alguns núcleos de preocupações que estruturaram a pesquisa sobre o cine
jornal. O primeiro deles foi a divisão de poder efetuada pelas imagens. Getúlio Vargas,
sem dúvida, era, a priori, uma hipótese de trabalho, posto que maior beneficiário da
propaganda do regime. Contudo, o aparecimento das Forças Armadas no segundo
pólo decisório, partilhando com Vargas as atenções dos espectadores, foi uma sur
presa. Depois do núcleo bicéfalo do poder apresentou-se, em oposição, uma apagada
amostragem das classes sociais com a burguesia agrária e industrial ou as camadas
médias, enquanto a imagem do trabalhador concentrava-se na proeminência do Bra
sil atrasado sobre o proletário industrial. O esmaecimento das classes era o reverso de
um excesso de exposição dos donos do poder: Vargas era o “pai dos pobres”, as Forças
Armadas uma fonte de regeneração da Nação e os carentes de benefícios sociais, junto
com o proletariado urbano, ganharam um pequeno destaque dentro do CJB. Uma
terceira preocupação que se destacou do tabulamento dos temas foi com os inimigos
da Pátria. Os comunistas eram opositores facilmente manipuláveis pelas imagens. A
ameaça das colônias estrangeiras, como a alemã e a japonesa, era algo novo decorrente
da guerra. Por fim, apareceu uma representação do Brasil muito semelhante à ban
deira nacional que abria o cinejornal. Sobre cada gomo do losango era exposta uma
atividade em marcha no país, com sucessivas aparições de navios de guerra em cons
trução nos estaleiros, colheitas agrícolas abundantes, escolares em marcha, a aviação,
formando um caleidoscópio da pujança do Brasil na Era Vargas.15
15 Vários trabalhos recentes têm explorado com mais profundidade esses assuntos. Ver: Figueiredo, V. A.
A. Unidade, mobilização e sacrifício: a Segunda Guerra Mundial na ação legitimadora do DIP e do DEIP-
SP (1942-1944), São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado) - PUC-SP; Ferreira, M. Cinema e Estado Novo:
trabalho e nacionalismo em marcha, Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado) - Unicamp; Santos, A. C. N.
A estética estadonovista: um estudo acerca das principais comemorações oficiais sob a perspectiva do Cine
Jornal Brasileiro; Silva, A. C. M. Ensino de história, cinema, imprensa e poder na Era Vargas (1930-1945),
História e cinema 123
2. Os Poderes
Getúlio Vargas tem uma posição despreocupada diante das câmaras porque
conhece a natural centralidade da sua pessoa. Embora seja uma figura de baixa
estatura, barriguinha empinada, vestindo sempre um terno jaquetão fechado, ca
belos ralos, o ditador não se destacava do conjunto de homens públicos de que
vivia cercado, compondo harmoniosamente com outras barrigas civis e militares
o círculo do poder. A sua voz ao microfone era monocórdia, sem grandes empol-
gações. A esses fatores negativos, Jean-Claude Bernardet ainda chamou a atenção
para o desconhecimento dos cinegrafistas na criação de uma imagem de Vargas a
ser veiculada pelo cinema, embora o exemplo do que Leni Riefenstahl tinha feito
com Hitler estivesse à mão, concorrendo com a figura do ditador tupiniquim
nas mesmas telas do país. A despeito desses dissabores, Vargas aparece como o
primeiro líder de massas que é apresentado ao público enquanto tal nos cinemas.
As demonstrações de reconhecimento da população urbana, carioca sobretudo,
organizadas para o destaque de sua liderança serão contínuas. São numerosas as
vezes em que Vargas é aplaudido pela massa popular. Nas chegadas e partidas (ae
roportos, estradas de ferro, cais), solenidades públicas, desfiles militares, sempre
que pode a massa se aproxima do carro presidencial até transformá-lo numa ilha
em meio aos corpos que o cercam. Vargas é o primeiro homem público que faz
do contato com a massa uma necessidade constante. Através do cinema, desen
volve um modelo de liderança em que a imagem também joga um papel no teatro
político. Durante o seu governo legítimo, nos anos 1950, ele dispensará a guarda
presidencial ou a proteção do carro presidencial para fazer da aproximação fí
sica um dos itens básicos da mise-en-scène política, aprimorando a experiência
ditatorial. Durante o Estado Novo, as imagens criadas pelo CJB nos mostram
a variada mas inexorável construção do cenário popular centrado nos estádios
de futebol (o de São Januário, no Rio de Janeiro, foi um deles), que passam de
parcialmente vazios, em 1941 e 1942, a repletos, em 1945. Há uma clara relação
entre desagregação política do Estado Novo e o apelo de uma imagem cada vez
mais ligada à massa popular. De 1940 a 1944, o ponto central do espetáculo de
“confraternização social” entre as classes sociais e o ditador é o discurso proferi
do da tribuna de honra, demarcador de alguma doação ou benefício concedido
ao proletariado urbano. Em 1945, o discurso deixa de ser o elo de ligação entre
líder e massa. O espetáculo do cerco popular à figura de Vargas passa a central, o
ponto culminante do cinejornal, onde o discurso estará, inclusive, ausente.
São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) - USP; e Tomaim, C. S. Janela da alma: cinejornal e Estado Novo
- fragmentos de um discurso totalitário, Franca, SP, 2004. Dissertação (Mestrado) - UNESP.
124 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
4. Os inimigos internos
Em janeiro de 1939, o CJB exibiu o assunto “Luta contra o extremismo”. Esta
foi a primeira menção aos inimigos políticos do regime, tema sobre o qual o cine
jornal pouco se aprofundou. Como no caso do assunto sobre a Polícia Militar - o
combate aos malandros os “extremistas” são postos do lado deles, igualando-
se como inimigos internos. Os primeiros, por não se aliar à ideologia trabalhis
ta desenvolvida pelo Estado Novo; os segundos, por empunhar o fuzil contra o
regime político instaurado depois de 1930, legalizado pela Constituição de 1934.
Temos, aqui, uma deliberada desqualificação da ação política, confundindo-se o
banditismo urbano com o “extremismo” político de 1935.
A propaganda política contra aqueles que tinham sido e continuavam a ser perse
guidos pelo regime tem uma expressão modestíssima dentro do CJB. Dessa forma,
o combate ao comunismo é o espaço ideal para a evocação da memória contra
aqueles que lutaram contra o regime. As solenidades de rememoração do golpe
armado de 1935 raramente precisam incluir a palavra comunista ou correlatas. Dos
seis assuntos do jornal em que elas são abordadas, somente no de 1940 foi feita uma
referência integral. No mais das vezes são expressões como “sentimentos de vene
ração nacional pelos que honraram as tradições maiores do Brasil”, ou então Vasco
Leitão da Cunha manifestando em discurso a fidelidade aos ideais por que viveram
“aqueles bravos”, ou ainda, “homenagem à memória dos que tombaram em defesa
da legalidade”. Embora comemoração obrigatória dentro do calendário de soleni
dades do Estado Novo, nem todos os 27 de Novembro são iguais. De qualquer ma
neira, falta um empenho mais profundo dos cinegrafistas e redatores à solenidade,
da mesma qualidade do dedicado aos Primeiros de Maio, sendo o assunto resolvido
plasticamente, em média, por vinte planos curtos e monótonos.
Em abril de 1942, outra classe de inimigos do Brasil apareceu no CJB. Os as
suntos relativos a alemães e japoneses surgiram como respostas aos sucessivos
afundamentos de navios mercantes dentro do momento político de rompimento
das relações diplomáticas com as potências do eixo nazi-fascista (Alemanha-Itá-
lia-Japão). A Segunda Guerra Mundial já tinha aparecido nas telas em alguns
História e cinema 129
Brasil.16 Para o “bom povo brasileiro”, por certo outra ilha» a Grande» bem sua co
nhecida» parecería melhor propaganda, já que, afinal, nazistas e comunistas eram
colocados no mesmo lado. Ao patinar nessas intenções conflitantes, o CJB expôs
mais uma vez a face rígida da sua propaganda. Dava uma explicação aos especta
dores (o governo era operante, como sempre), mas não estimulava a mobilização
política, pois apresentava de forma misturada comunismo e nazismo» estigmatiza
dos dentro da mesma causa negativa, o ataque à pátria sagrada.
6. Considerações finais
O trabalho com cinejornais está longe de ser uma atividade fácil ou mesmo de
gratificação imediata. Os resultados surgem após um longo percurso de arranjo
e organização da documentação - situação que vem sendo minorada pela orga
nização dos arquivos -, análise cuidadosa das imagens, muitas vezes após deta
lhadas decupagens da película impressionada pela câmara e da voz gravada na
banda sonora, que reforça o sentido por ela proposto. Com a fita magnética em
VHS muito já se avançou no sentido de uma facilitação do acesso ao documento
que, com a mídia de leitura óptica, o DVD, em futuro próximo trará mais bene
fícios para o pesquisador. Diante da fragmentação com que esses acervos chega
ram aos arquivos de imagens, os cuidados do historiador sobre a abordagem do
documento são os habituais: confrontação com outras fontes escritas ou outros
arquivos de imagens; reconstrução da seriação, estabelecimento da veracidade
do documento (filmes são basicamente pedaços de imagens manipuladas com a
intenção de provocar uma reação no espectador; a análise dos cortes e da integri
dade da 4 escrita” original do documento compreende uma etapa anterior que a
simples visualização em VHS, por exemplo, esconde do pesquisador).
O desafio da leitura proposto pelos cinejornais é tão complexo quanto o dos
filmes de ficção. Na maior parte dos casos os cinejornais ou documentários che
gam de forma precária aos arquivos, isso quando são recuperados. Faltam fichas
técnicas, documentação escrita sobre as condições de filmagem, quais foram os
redatores dos textos de locução.17 Diante das lacunas devemos considerar essas
informações, que muito enriqueceríam qualquer pesquisa, um luxo do qual fi
camos contentes em nos privar pelo simples fato do documento básico, a ima
gem, ter sido salvo (no caso dos telejornais, outra fonte de documentação até hoje
inexplorada pelos historiadores, a Cinemateca Brasileira recebeu do espólio da
TV Tupi os textos de locução e as imagens). O trabalho de leitura de uma seriação
de cinejornais ainda é uma questão em aberto. As experiências sobre esse tipo de
17 Para quem estiver interessado num exemplo de país com trabalho de qualidade na preservação, tratamento
e conservação de cinejornais, tanto no que tange à imagem ou à documentação em papel, acesse o BUND
- British Universities Newsreels DataBase <www.bufvc.ac.uk/newsreels>.
História e cinema 133
documento ainda sào poucas para que tenhamos um padrão formado. Há que se
considerar ainda que o projeto derivará da bagagem teórica do pesquisador, suas
preocupações e objetivos. O campo está em aberto e novas contribuições serão
bem-vindas ao debate.
A representação da realidade
em filmes de Rogério Sganzerla:
construindo a História a partir de
Orson Welles e de cinejornais
Samuel Paiva1
Para dimensionar a questão central deste texto, convém desde logo assinalar
que vários cinejornais produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), notadamente no período da Segunda Guerra Mundial, constituindo um
meio de propaganda ideológica do Estado Novo no Brasil, foram utilizados pos
teriormente em filmes de Rogério Sganzerla, em um discurso crítico em relação
aos próprios interesses do Estado Novo e de Getúlio Vargas, como se percebe
em filmes de sua autoria, como Nem tudo é verdade (1986), Tudo é Brasil (1998)
e O signo do caos (2003). Essa reversão de sentidos empreendida pelos filmes de
Sganzerla sobre os cinejornais do DIP pode nos levar a pensar em uma provável
dicotomia existente entre um princípio de Eternidade característico de setores
da propaganda em contraposição a uma noção de História própria do cinema
moderno, em sua consideração da realidade em perspectivas relativas.
Ao debate sobre essas distintas “representações da realidade”, certamente é per
tinente a referência de Erich Auerbach, assim como a de autores que se remetem
aos seus estudos. Edward Said, por exemplo, em prefácio a uma edição comemo
rativa dos cinqüenta anos da publicação de Mimesis, a obra-prima de Auerbach,
diz que a idéia de “representação da realidade” para este autor está relacionada à
sua referência em Giambattista Vico.1 2 Em síntese, para Vico, o analista do tempo
presente precisa empreender um esforço no sentido de se posicionar no lugar
onde se localizava o autor ou o texto do passado analisado, procurando observar
as diversas relações então possíveis, uma vez que a História é criada como um
processo de desdobramentos, contradições e representações, tendo, cada época,
sua própria maneira de articular a realidade. Daí porque o analista do presente
deve se posicionar sobre os diversos pontos de vista da época passada, ainda que,
para reconstruí-la ou representá-la, sua compreensão do “real” esteja comprome
tida por uma reflexão que parte do momento atual.
A partir de Giambattista Vico, Auerbach contribui para tal debate introdu
zindo novas questões específicas de sua observação, em especial, como filólogo
que constitui a literatura ocidental como objeto, detendo-se em autores como
Homero, Dante, Joyce, entre outros. O conceito de “representação da realidade”,
para Auerbach, está relacionado à maneira como cada autor percebe e apresenta
dramaticamente seus personagens, mostrando os seus mundos, de uma forma tal
que seja possível a percepção dos vários segmentos sociais envolvidos na História.
Nesse sentido, Aeuebach atenta, na literatura, para o momento em que aquilo que
poderiamos pensar como sendo as vozes populares passam a ser ouvidas ou re
presentadas. E ele percebe o Cristianismo como um advento fundamental dessa
inclusão das camadas populares como elemento de oposição à estética clássica.
É nesse contexto que Aeurbach propõe a “interpretação figurai” que, resumi
damente, pode ser pensada como a possibilidade que tem a História de estabele
cer conexões entre eventos do passado que prefiguram o presente ou o futuro e,
em contrapartida, eventos do presente que preenchem o passado. Como diz:
A interpretação figurai estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas,
em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo. Os dois pólos
da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão
dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica.3
3 Auerbach, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo, Atica, 1997, p. 46.
4 Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Trad. ítalo Eugênio Mauro. Sào Paulo, Editora 34,1998.
História e cinema 137
5 Aumont, Jacques. “Figurable, Figuratif, Figurai’* in À quoi pensent les films. Paris, Séguier, 1996, pp. 148-173.
6 Morettin, Eduardo Victorio. Os limites de um projeto de monumentalização cinematográfica: uma análise
do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. 2 v. Sào Paulo, Depto. de Cinema, Televisão e
Rádio da ECA-USP, 2002.
138 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Não sabemos se o presente trabalho se destina a ser mostrado noutros lugares, e por isso
pedimos que o revejam os seus confeccionadores, para que possam aquilatar quão vexatório
é, para nós, vermos os nossos soldados marcharem descalços, com diversas formas de
vestimenta.7
franco fascínio por parte dos funcionários brasileiros pelo trabalho realizado pe
los seus correlatos alemães, em especial, no ministério liderado por Goebbels.
8 Souza, José Inácio de Melo Souza. O Estado contra os meios de comunicação (1889-1945). São Paulo,
Annablume/Fapesp, 2003, p. 90.
140 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
nidade tanto ao privilegiar a contraposição dos pontos de vista para além daqueles
comprometidos com os interesses do ditador como ao incluir diferentes vozes im
plicadas em diversos tempos e espaços envolvidos com os eventos narrados. Para
tanto, aos cinejornais do DIP são contrapostos trechos de outros cinejornais, pla
nos ou cenas do próprio Ifs all true, de outros trabalhos do cineasta norte-ameri
cano, especialmente Cidadão Kane (1941), trechos de programas de rádio, canções
da MPB, músicas norte-americanas, entre outros incontáveis materiais.
É relevante notar, na organização de todos esses materiais, uma tensão estabelecida
entre dois pólos principais: por um lado, Orson Welles e aqueles com quem ele se
identificava, como Grande Otelo, os jangadeiros, os sambistas e os técnicos norte-
americanos envolvidos na produção ou representação de It s all true; por outro, Ge-
túlio Vargas e seus assessores, por exemplo, os responsáveis pela censura do DIP, ou
parceiros como Nelson Rockefeller, criador e responsável pelo OCIAA (Office of the
Coordinator of Inter-American Affairs), e mesmo alguns funcionários da RKO Ra
dio Pictures, produtora norte-americana responsável pela realização do filme dentro
do espírito da Política de Boa Vizinhança. Esses pólos perpassam Nem tudo é verdade,
Tudo é Brasil e O signo do caos sob diferentes perspectivas. Há, entretanto, um dado
comum a todos: é impossível uma delimitação clara dos contornos que definem tan
to a figura de Welles como a figura de Getúlio Vargas, que surgem multifacetadas,
ora pela encenação dos atores (Arrigo Barnabé interpretando Orson Welles em Nem
tudo é verdade; Otávio Terceiro atuando como um provável Getúlio em O signo do
caos), ora pela recuperação da quantidade enorme de um material audiovisual, quase
sempre (des) organizado segundo uma combinação assíncrona entre som e imagem,
impedindo qualquer possibilidade de uma evolução cartesiana da narrativa.
A rigor, Nem tudo é verdade pode ser pensado como uma espécie de filme de
anti-reconstituição histórica, pela forma como se organiza seu discurso, com
uma lógica estrutural que não se dar a ver, nem se explica de imediato, a não ser
como um jogo de quebra-cabeça. A recuperação de trechos de Cidadão Kane e a
referência a Shakespeare, já no começo do filme, são indicações do caminho a ser
percorrido por uma narrativa não-linear em que tempos, espaços e personagens
fragmentam-se e reiteram-se freqüentemente. A figura de Welles, por exemplo,
aparece em cinejornais que registram sua chegada e passagem pelo Brasil. Mas
a esses cinejornais associam-se personagens de seus filmes (em especial, aqueles
interpretados pelo próprio Welles), reúnem-se inúmeras fotos e recortes de jor
nal, além da interpretação de Arrigo Barnabé, como mais uma entre as tantas
figuras relacionadas ao cineasta norte-americano.
Um dado fundamental a ser notado diz respeito à maneira como a montagem
de todo esse material concorre para a indeterminação de uma identidade precisa
História e cinema 141
9 Moraes, Vinícius. “Traços da sua personalidade”, in Calil, Carlos Augusto (org.). O cinema dos meus olhos.
São Paulo, Companhia das Letras/Cinemateca Brasileira, 1991.
10 Cf. Benamou, Catherine. Orson Welles s transcultural cinema: an historical/textual reconstruction of the
suspended film, It’s all true, 1941-1993. Departament of Cinema Studies, New York University, 1997.
142 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
A palavra paródia nos remete imediatamente para um objeto que existe anterior a ela
e que se torna a razão de sua própria existência. Do objeto artístico original» seja ele uma
peça teatral, musical» um romance, ou um filme, até o novo objeto, ocorre um processo de
transformação no qual a paródia procura imitar o original de forma cômica.*1
11 Vieira, João Luiz. “Este é meu, é seu, é nosso: introdução à paródia no cinema brasileiro” Filme Cultura,
n° 41/42, maio de 1983, p. 22.
12 Stam, Robert. Da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo, Ática, 1992, p. 14.
13 Xavier, Ismail. “O olhar e a voz: a narração multifocal do cinema e a cifra da história em São Bernardo”.
Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada. São Paulo, 1997, p. 128.
História e cinema 143
14 Tota, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São
Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 120-121.
144 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
repõem aspectos antes tratados nos filmes anteriores» retomando relações tensas
entre imagem, som, memória e verdade. Na perspectiva de Amnésio - personagem
que sintetiza figuras como Getúlio Vargas e Lourival Fontes, o homem que durante
anos dirigiu departamentos responsáveis pela censura à imprensa, ao rádio e ao
cinema -, o ideal seria um cinema-espetáculo, grandioso. Amnésio bem represen
ta aquele quadro de indivíduos e instituições ligado à censura que, desde os anos
1920, ansiava por um cinema capaz de propagar a grandeza nacional segundo um
princípio higiênico, branco, conservador, monumental na representação de uma
nação a ser eternizada. A uma dada altura, assistindo ao filme de Welles, comenta
Amnésio: “o filme é mais real que a realidade”, isso porque ele reconhece as vozes,
as imagens do que não interessava ao ideal do Estado Novo.
Em outro momento, Amnésio afirma: “Vejam, procurem ver, não quer dizer
nada, coisas comuns da vida, não é cinema”. O não ser cinema associado às coi
sas comuns da vida, no caso, indica uma distinção entre ficção e documentário
como parâmetro para o discurso da censura e da propaganda. Amnésio repro
duz o antigo preconceito dos censores contra os naturais, explicitando ao mesmo
tempo seu ideal espetacular. Na verdade, é possível presumir como relevante para
Amnésio as representações de “rituais de poder” e de “berço esplêndido”, termos
definidos por Paulo Emilio Salles Gomes para designar os naturais que, até a
década de 1930, apresentavam, respectivamente, ilustres políticos, representantes
das forças armadas e da alta sociedade civil, ou então o culto às belezas e poten
ciais da natureza como base da produção industrial.15
Mas a enunciação de O signo do caos - filme que, é importante lembrar, tem
como subtítulo “o antifilme” - adere à visão do jornalista Morei, orientada em
grande medida na percepção de que o cinema é capaz de revelar a própria vida,
com todas as suas contradições, paradoxos, complexidades, enfim: “se esse filme
não serve para ver, então a vida não serve para viver”, diz ele. O cinema, portanto,
é capaz de se colocar como um duplo da realidade, o que nos coloca na dimensão
do realismo segundo André Bazin, crítico tão caro a Rogério Sganzerla. Assim é
que, na perspectiva de uma relação passado/presente, contra o mito do cinema
bem-feito, tecnicamente bem acabado, monumental na representação da nação,
coloca-se a precariedade identificada em O signo do caos, por exemplo, na maneira
como ele incorpora o tropeço na fala dos atores ou quando pouco se importa com
a continuidade ainda que em uma mesma cena (o reflexo da tela onde o filme é
15 Gomes, Paulo Emilio Salles. “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898
1930), in Calil, C. A. e Machado, M. T. (orgs.) Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo/Rio
de Janeiro, Brasiliense/Embraíilme, 1986.
146 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
16 Cf. Xavier, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo, Paz e Terra, 2005.
História e cinema 147
Maurício Cardoso1
Examinei e fiz uma avaliação de todos os componentes desta história de 1500 a 1973:
componentes econômicos, políticos, sociais. O cenário foi constituído com a bibliografia
brasileira contemporânea e de toda a literatura internacional que pude consultar. Passei um ano
inteiro nessas pesquisas. [...] Ao assim proceder, observei que nunca se fez, e portanto que ainda
não existe, estudo que impede de todos os aspectos da história brasileira. Só encontrei versões
parciais nos Livros de Euclides da Cunha, José Veríssimo, Sérgio Buarque de Holanda, Celso
Furtado, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso e em muitos outros. O
mais duro foi restituir e sintetizar o que se chama “o caos brasileiro” Um caos que nunca teve
existência, que não foi e continua a não ser senão o fruto da alienação e da ignorância - a
concepção defendida e alimentada do exterior, instrumento de alienação, o grande responsável
por nossa incultura e pela mediocridade de nossa formação universitária.6
5 Entrevista concedida a Louis Marcorelles e publicada, no Brasil, por Novais Teixeira, n O Estado de S. Paulo, 21
mar. 1971. Apud Rezende, Sidney (org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro, Philobilion, 1986, p. 104.
6 Conversa com Glauber Rocha. Documento datilografado, 3 folhas, sem data. Com o título “Entrevista
reproduzida em Cine Cubano, n. 86, 7, 8”, está arquivado em Produção Intelectual. Pasta: Texiamento da
Loukura, Parte I. Arquivo Tempo Glauber, Rio de Janeiro.
História e cinema 151
Tuvimos que parar el trabajo a mediados dei ano 73 para trabajar en documentales que nos
permitieran vivir. Glauber salió para um largo viaje por América Latina y dei Norte, de donde
regresó en julio y entonces fue posible reiniciar el trabajo en “História dei Brasil”.
Pasamos de agosto a noviembre escrubiendo el guión dei film.9
9 Sem título, sem autor. Documento arquivado em duas pastas com documentação fotocopiada e enviada
recentemente de Cuba por Alfredo Guevara. Arquivo Tempo Glauber. Rio de Janeiro.
10 Idem, ibidem.
11 Carta reproduzida por Bentes, op. cit., pp. 615-617.
História e cinema 153
Trata-se, portanto, de um projeto complexo e longo, entre Cuba e Itália, entre Glau-
ber e Marcos Medeiros, entre o Cinema Novo e a produção internacional de Glauber.
Tudo isso transformou o filme num acontecimento relevante e expressivo dos pro
cessos culturais que envolveram a produção cinematográfica desse cineasta.
Nesse sentido, dois problemas cruciais se apresentam à análise do filme. De um
lado, o debate em torno da liberdade estética e criativa que Glauber teria diante
das implicações políticas do filme e do controle ideológico do ICAIC - tema re
corrente nos países socialistas e que parece pouco analisado no caso de História
do Brasil. De outro, o dilema da co-autoria, na qual dois intelectuais com forma
ções políticas distintas e interpretações históricas diversas e, em certos pontos,
antagônicas, se dispuseram a realizar esse filme.
A presença de Glauber Rocha em Cuba foi, segundo alguns autores, um assunto
delicado para o governo de Fidel Castro, na medida em que Glauber representa
va, simultaneamente, um dos intelectuais mais importantes do Terceiro Mundo
e um artista que declarava sua independência política e a primazia do estético
sobre as diretrizes ideológicas do partido.12 Entretanto, a análise desse problema
exigiría aprofundar a pesquisa em torno da atmosfera cultural cubana, nos anos
1970, verificando tanto a produção cinematográfica do país, quanto os debates
publicados nas revistas especializadas e nas diretrizes de orientação do Estado.
As tensões entre Glauber Rocha, Guevara e Marcos Medeiros e a retirada do
nome do ICAIC dos créditos do filme podem ser compreendidos como episó
dios das relações entre o cineasta e o poder socialista institucionalizado. Maria-
na Villaça sugere que a estrutura disforme, “ora épica e didática, ora alegórica”
motivara a ação de Guevara, mas, é possível também sugerir que os receios de
Guevara se relacionassem ao caráter interpretativo do filme, cujo diagnóstico fi
nal descarta a possibilidade de tomada do poder pela luta armada.13
Este artigo pretende analisar o percurso de produção do filme História do Brasil
e identificar certos temas e procedimentos de linguagem expressivos do cinema
de Glauber Rocha naquele contexto de transição e redefinição de posturas estéti
cas e políticas desse cineasta.
12 Este tema aparece nos trabalhos de Gomes, op. cit., pp. 243-295 e de Pierre, Sylvie. Glauber Rocha.
Campinas/SP, Papirus, 1996, p. 68.
13 Villaça, Mariana Martins, op. cit, p. 502.
154 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
configurou a partir do início dos anos 1960 através dos festivais, das revistas
especializadas e da divulgação de manifestos. Formou-se» naquele contexto, uma
atmosfera propícia aos embates políticos e estéticos e de valorização do intelectu
al como “sismógrafo” dos processos sociais, particularmente, nos países pobres.
A ação internacional do Cinema Novo gestava-se desde a formação do grupo
em 1961, quando cineastas e críticos brasileiros construíram sua legitimidade
internacional, levando os filmes para os mais diversos festivais e articulando uma
intervenção política sistemática no mundo cinematográfico.14 Em 1962, o pri
meiro longa-metragem de Glauber, Barravento, recebeu o prêmio Opera Prima
do Festival de Cinema de Karlovy-Vary, na Tchecoslováquia; no ano seguinte, Vi
das Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Porto das Caixas (Paulo César Sara-
ceni, 1963) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1963) foram cuidadosamente divulgados para
concorrer em vários eventos europeus e latino-americanos.15 Nos anos seguintes,
Deus e o Diabo na Terra do Sol participou do Festival de Cannes, recebeu prêmios
na Itália, México e Argentina, e contribuiu decisivamente para consagrar o Cine
ma Novo no solo sagrado das grandes cinematografias modernas.
Em termos culturais, o cinema brasileiro empolgava setores inovadores da críti
ca, pela vitalidade e originalidade da linguagem, enquanto os cineastas seduziam as
platéias dos festivais através dos debates e das mesas-redondas, cujas altas tempera
turas se faziam de intervenções eloqüentes e incendiárias dos jovens realizadores.
Essa consagração parecia selada com o reconhecimento nos festivais mais pres
tigiados e com dezenas de convites que levavam os expoentes do Cinema Novo
para palestras, debates e retrospectivas. A figura de Glauber oscilava entre duas
representações recorrentes: o papel de “deputado da cultura brasileira” sugerido
por Hélio Pellegrino e a imagem de intelectual do Terceiro Mundo que o próprio
Glauber construía nas suas falas e artigos.16
O Cinema Novo inseria-se num movimento mais amplo de renovação da cine
matografia nos países da América Latina que incluía cineastas da Argentina, Chi
le, México e Cuba, entre outros, cujos esforços de realização e o desenvolvimento
de certas posturas ideológicas convergiam para o mesmo fim: a emancipação
estética, política e econômica do cinema e do campo cultural latinoamericano.17
14 Figueirôa, Alexandre. Cinema Novo. A onda do jovem cinema e sua repercussão na França. Campinas/SP,
Papirus, 2004, pp. 21-50.
15 Bentes, Ivana. op. cit, pp. 195-206. A leitura da correspondência, especialmente, entre Glauber, Gustavo Dahl e Cacá
Diegues sugere arquitetura de estratégias conscientes para levar os filmes do Cinema Novo aos festivais internacionais.
16 Gomes, João Carlos Teixeira, op. cit p. 271.
17 Avellar, José Carlos. A Ponte Clandestina. Teorias do Cinema na América Latina. São Paulo, Edusp; Editora
34, 1995, p. 7-40; Paranaguá, Paulo. Cinema na América Latina. Longe de Deus e perto de Hollywood. Porto
Alegre, LP&M, 1985, pp. 66-89.
História e cinema 155
Nessa carta, ele propunha a Alfredo uma co-produção, pois o filme seria roda
do em vários países da América Latina e finalizado no ICAIC que também entra
ria com o envio da película virgem necessária. Nos dois anos seguintes, Glauber
18 Villaça, Mariana. “América Nuestra - Glauber Rocha e o cinema cubano.” in Revista Brasileira de História.
22(44): 489-510, ANPUH, São Paulo, 2002, p. 501. A autora cita o Grupo de Experimentación Sonora como
exemplo de inovação técnica e estética do cinema cubano que iria repercutir em outros países.
19 Cine Cubano. Havana, 101: 12, 1982. Trata-se de uma seleção de cartas publicadas pela revista, após o
falecimento de Glauber, em agosto de 1981.
20 Idem, ibidem, p. 19.
156 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Deseo mucho ir a conversar com usted y com los cineastas cubanos y si me demore tanto
em aceptar la invitación que usted me hizo hace alrededor de diez anos es porque ahora me
siento preparado para enfrentar una experiencia radical sin la menor huella de uma cultura
pequeno-burguesa (...) Como loconsidero un viejo amigo le diréque el artista e intelectual han
desaparecido radicalmente y ahora soy una persona dispuesta a trabajar revolucionariamente,
siendo revolucionário.21
La revolución em América Latina deve ser desencadenada profundamente. Hoy en Europa se que
el triunfo de la estética de derecha absorbe los códigos de la estética de la izquierda. Veo el peligro de
un retroceso cultural en el cine latinoamericano, motivado por uma teoria de cine revolucionário
que no tiene correspondência en el lenguaje acadêmico y colonizado. Esto demuestra la debilidad
dei artista latinoamericano que se deja neo-colonizar. Uma revolución cinematográfica radical,
puede incluso producir películas de ruptura absoluta con el lenguaje tradicional como, “Cabezas
Cortadas” pero teniendo disposición autocrítica para llevar a profundidad estos problemas.22
[Glauber] Ha tenido relación com respecto a este film con 6 organizaciones. No acepta
proyecto de Marcos. Las orgnizaciones le plantearan que estava utlizando los contactos de las
organizaciones para hacer um film. Otras organizaciones le plantearon hacer el film con Jane
Fonda y Rod Steiger. Con algunas organizaciones tuve uma discusión sobre los mercados,
discutieron sobre el 50% dei film. En otras discusiones se planteé (ou planteá?) que Marcos
debía fiscalizar el film. Algunos propusieron que el film debía hacerse em Argélia. No quiere
ser censurado irracionalmente. El acepta la discusión política pero no cinematográfica. Le
escrivié todo esto a Alfredo Guevara.
El quiere que sea una producción ICAIC y que el film sea propriedad cubana. No quiere
inmiscuirse en las relaciones ICAIC-brasilenos. El quiere hacer un film sobre el fascismo en
general. Cree que la idea de Marcos es una idea limitada y puede ser mezquina. El film tiene
que ser fuerte para poder ir en contra de la información. Prefiere arriesgarse con una cosa
ambiciosa. El film de Marcos le interesa a nivel político pero no cinematográfico.24
23 Sarno, Geraldo. Glauber Rocha e o Cinema Latino-Americano. Rio de Janeiro» CIEC/Rio Filme, 1995, p. 95
106. As páginas citadas correspondem à transcrição, na íntegra e em versão “fac-símile’' da carta endereçada
a “Direccción dei ICAIC”, na qual, além do projeto do filme, realiza um diagnóstico sobre cinema e política
na América Latina.
24 Sem título, sem autor. Documento arquivado em duas pastas com documentação fotocopiada e enviada
recentemente de Cuba por Alfredo Guevara. Arquivo Tempo Glauber. Rio de Janeiro.
158 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Esse relatório aponta três aspectos que nos parecem significativos da perspectiva
de Glauber filmar em Cuba, em 1971. Em primeiro lugar, reproduz a preocupação
do cineasta em se afastar das disputas políticas “domésticas” evitando trabalhar
com outros brasileiros; em segundo lugar, retoma a idéia de que Glauber tinha um
“grande lance”, um filme arriscado e ambicioso para produzir sobre a América
Latina; finalmente, o relatório aponta que o interesse estético e cinematográfico de
Glauber não poderia se efetivar num projeto em parceria com Marcos Medeiros.
De certa forma, a realização de História do Brasil contrariava as expectativas de
Glauber e o submetia a uma co-direção que ele provavelmente não teria aceitado
se tivesse condições de realizar seu próprio filme. O que teria levado o ICAIC a
limitar o raio de ação de Glauber e não oferecer condições mais autônomas de
trabalho? É provável que a liberdade criativa e as posições políticas de Glauber
colocariam em risco uma produção assinada pelo ICAIC. Além disso, Cuba, na
quele momento, recebia inúmeros brasileiros exilados e oferecia uma espécie de
“quartel general” da esquerda da América Latina. O alinhamento ideológico com
as organizações políticas e os grupos de luta armada somado ao acirramento da
luta revolucionária, afastavam o Estado cubano e, portanto, o ICAIC de iniciati
vas independentes, como no caso de Glauber.
25 Cf. Gomes, J. C. op. cit., pp. 267-273. Nesse manifesto, Glauber ataca o gosto europeu pela “miséria" da
América Latina, cuja produção artística interessava apenas como realização de um certo primitivismo. O
resultado da ação colonialista» afirmava, impedia que o latino comunicasse sua “verdadeira miséria ao homem
civilizado" e este, por sua vez, não compreendia “verdadeiramente a miséria do latino”. A experiência histórica,
portanto, havia sido responsável pela construção de uma estética que se materializava na violência - a “mais
nobre manifestação cultural da fome”. O artigo foi reproduzido na íntegra por Gomes, op. cit., pp. 594-599.
26 Os louvores em tomo de Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade, transformaram-se em severas indagações e críticas
à nova produção que incluía O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas, exibidos na Europa em 1970, além de Câncer,
Claro e História do Brasil, que não chegaram a freqüentar circuitos comerciais ou salas “culturais” muito expressivas.
27 Bentes, I. op. cit., pp. 390-622; Gomes,). op. cit., pp. 243-295.
28 Sobre a trajetória de Glauber na Europa e a crítica aos seus filmes dos anos 1970, as análises de Valentinetti,
Cláudio, op. cit., Pierre, op. cit. e Gomes, op. cit., indicam, sob pontos de vista diferentes» os problemas
vividos durante o exílio.
29 Gomes, op. cit., pp. 303-319.
160 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
viveu. Essa transição comportou uma dimensão pessoal significativa, afinal, ele
deixava o país pressionado pela situação política e iniciava um exílio sem garan
tias de obter recursos materiais e se estabelecer como cineasta - especialmente, a
partir de 1973, quando foi morar em Roma e Paris. No entanto, também foi uma
transição estética que transferiu os interesses de Glauber para a experiência da
América Latina e do Terceiro Mundo. Esse aspecto da transição pode ser iden
tificado na passagem do Cinema Novo para as novas representações sobre um
“Cinema Tricontinental”, defendido por Glauber desde fins dos anos 1960.30
Nesse sentido, História do Brasil representou um balanço histórico não apenas
sobre o país, mas sobre o próprio cinema de Glauber, compondo um quadro de
preocupações com os temas da revolução, da política e das transformações sociais.
O esforço de síntese presente no filme e, simultaneamente, a amplitude de conteú
dos trabalhados contribuem para essa impressão de “história passada a limpo”, de
ponto de virada que procura sistematizar uma tese ampla sobre a história do país.
História do Brasil expressou também as tensões entre experimentação estética
e orientação política institucionalizada, na medida em que Glauber combatia a
separação entre engajamento político e renovação estética, afirmando a primazia
da liberdade criativa como um pressuposto para a libertação política dos centros
de poder.31 Por isso, ele pretendia que seus filmes comportassem uma pedagogia
política para uma nova linguagem e uma nova cultura. Nesse sentido, História
do Brasil carrega, assim, as marcas dessa arte revolucionária capaz de se libertar
da estética colonizada. No entanto, o filme comporta também os dilemas desse
projeto estético-político, confinado, em termos de comunicação, ao público in
telectualizado das camadas médias. Além disso, determinadas tensões na inter
pretação da história do Brasil remetem-nos às polêmicas do meio intelectual no
país e na América Latina.
Finalmente, acreditamos que um dos temas recorrentes na trajetória de Glauber
Rocha, a relação entre cultura e política, marcaria uma das tensões em História do
Brasil, não apenas pelo recurso a explicações históricas de caráter cultural, mas,
pelo propósito do filme na difusão de uma leitura interpretativa da história como
contribuição ao processo de formação educacional e de cultura política do país.
Em síntese, as concepções teóricas e a noção de história presentes em História do
Brasil serviram de base ideológica e política para a atuação de Glauber no exílio e
foram retomadas em inúmeras entrevistas e artigos escritos na imprensa européia
e latino-americana. Ao mesmo tempo, esses textos alimentaram as interpretações
30 Xavier, Ismail. “Glauber Rocha: o desejo de história", in O Cinema Brasileiro Moderno. Rio de Janeiro. Paz
e Terra, 2001, p. 132.
31 Rocha, Eryk (org.). Rocha que Voa, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002, p. 95-107.
História e cinema 161
presentes no filme construídas ao longo dos dois anos que separam o projeto ini
cial» em 1972, em Cuba, da finalização» em Roma, em outubro de 1974.
32 “La Historia do Brasil segun Glauber Rocha”, in Cine Cubano. 86/88:97, Havana, 1997. “Cine Cubano em Bogotá”,
in Alternativa. 22-29, set 1975. Para uma leitura sobre as teorias de Glauber Rocha ver Avellar, José Carlos. A Ponte
Clandestina, p. 77-114. E, finalmente, onze cartas escritas antes da edição do filme, em setembro de 1974, e enviadas
de Roma e Paris para amigos e críticos de cinema, fazem alusões ao filme. Bentes, I., op. dt, pp. 452-500.
33 Há uma longa carta de Glauber, com 12 páginas datilografadas, enviada a Alfredo Guevara, em 9 de março
de 1972, na qual apresentava uma análise sobre o cinema latino-americano e sobre os motivos para realizar
um filme em Cuba. Cf. Sarno, Geraldo, op. cit, pp. 95-106. Sobre a correspondência mantida entre os dois,
ver o artigo de Mariana Villaça, op. cit, pp. 495-496. E, finalmente, onze cartas escritas antes da edição do
filme, em setembro de 1974, e enviadas de Roma e Paris para amigos e críticos de cinema, fazem alusões ao
filme. Cf. Bentes, I. op. cit, pp. 452-500. Acreditamos que na correspondência não publicada encontraremos
mais documentos com referências a História do Brasil, tendo em vista a impressionante quantidade de
missivas escritas e recebidas por Glauber durante sua vida, especialmente no exílio.
162 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
pelo menos três aspectos que compõem a primeira teia de significados sobre o
filme. O primeiro aspecto tratava da função do filme, destinado a ser exibido na
televisão e nas escolas, a partir de sete capítulos de uma hora cada, e oferecido
como uma “autêntica aula de história” - baseada numa visão integrada dos “473
anos do Brasil”.34 O segundo, lançava uma interpretação global da obra que se
tornaria recorrente em vários momentos posteriores: a noção de que História do
Brasil seria uma síntese estruturada pelo instrumental analítico do “materialis-
mo dialético”. Em linhas gerais, Glauber atribuía à narração cronológica o cará
ter educativo, enquanto as complexas relações entre som e imagem garantiríam
uma análise dialética da história, condensada numa visão objetiva e científica
dos processos sociais e políticos.35
Finalmente, um terceiro aspecto que se destaca nesses materiais é o tema da au
toria exclusiva de Glauber Rocha. Nesse sentido, Marcos Medeiros é visto apenas
como um “colaborador”, um estimado auxiliar de pesquisa que contribuiu com
certas idéias, mas não como um co-diretor ou realizador intelectual da obra.36
Esse conflito de autorias pode ser uma das chaves do entendimento do filme, ten
do em vista divergências profundas que podem ser identificadas nas diferentes
concepções de história de cada autor.
A primeira referência à História do Brasil na crítica especializada brasileira en
contra-se num artigo de Sérgio Augusto, de 1985, que realizou uma crítica sucinta
ao filme, informando que havia um aparente desleixo na “sucessão de imagens” e
que o discurso narrativo estaria no “auge da simplificação materialista dialética”,
carregado de jargões.37 Augusto contrariava, assim, a versão de Glauber sobre
a relação complexa entre som e imagem e lamentava que um diretor tão genial
tivesse realizado um filme tão mal acabado.
Nos livros que analisam o cinema de Glauber Rocha, História do Brasil tem
figurado como uma obra experimental e acidentada, cujo sentido se desloca em
geral para os percalços da produção e as tensões entre os realizadores.38 Gomes
descreve o ambiente cultural cubano e as condições de Glauber na Ilha, ofere
cendo informações valiosas sobre a atmosfera que reunia amplos setores da inte
lectualidade revolucionária da América Latina. Entretanto, não há informações
detalhadas sobre o filme, limitando-se à descrição dos acordos mais gerais entre
Rocha, Guevara e Medeiros.
Ivana Bentes informa que História do Brasil foi um dos “férteis resultados” ci
nematográficos do “idílio cubano”, todavia, empobrecido pela suspeita sobre sua
paternidade incerta, isto é, a desconfiança sobre a autoria de Glauber.39
Sylvie Pierre interpreta a trajetória Glauber, de um ponto de vista privilegiadamen-
te europeu, não apenas porque ela foi uma das principais interlocutoras do cineasta
na revista Cahiers du Cinéma, como também pelo seu interesse nas relações do dire
tor de Antonio das Mortes com a crítica e o público europeus.40 A respeito de História
do Brasil, Pierre sugere um contexto marcado pela ambigüidade entre o inquieto hós
pede do Havana Libre e as autoridades cubanas, que, se de um lado, reverenciavam o
cineasta, de outro, o mantinham sobre vigilância severa, embora velada e sigilosa.41
Cláudio Valentinetti dedicou um capítulo ao filme, percorrendo o contexto de
produção em Cuba e, posteriormente, em Roma, mas a análise estética do filme
aproximou-se demasiada mente das declarações do próprio cineasta, reproduzindo
trechos das entrevistas e justificando as idéias defendidas por Glauber Rocha.42
Em suma, a recuperação prévia da fortuna crítica sobre História do Brasil, seja
através das entrevistas do autor, de críticas especializadas ou das pesquisas aca
dêmicas, compõe um quadro emblemático de produção de significados e de cam
pos de possibilidades, dos quais podemos destacar, de um lado, na confecção da
obra, o caráter simultaneamente “dialético” e “pedagógico” do filme, presentes
no esforço de síntese da história do país; de outro, a importância dada ao trajeto
do filme, ou melhor, ao contexto em que o filme foi produzido, entre os dois anos
de exílio na América e na Europa. Finalmente, os documentos produzidos sobre
o filme nos revelam aquilo que parecem ocultar: a presença de um co-realizador,
Marcos Medeiros, poucas vezes citado e circunstancialmente mal posicionado.
38 Cf. Gomes, J. C. T., op. cit., pp. 253-264; Pierre, Sylvie, op. cit, pp. 67-69; Bentes, Ivana, op. cit., pp. 52-55;
Valentinetti, C.» op. cit, pp. 157-168.
39 Bentes, I., op. cit., pp. 48-50.
40 Pierre, Sylvie, op. cit., pp. 34-101.
41 Idem, ibidem, pp. 67-69
42 Valentinetti, C., op. cit., p. 157-168.
164 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
43 Eisenstein, SerguéL“Da Literatura ao Cinema: uma tragédia americana', in Xavier, Ismail (org.). A Experiência
do Cinema. Rio de Janeiro, GraalZEmbrafilme, 1983, pp. 203-215.0 texto foi publicado originalmente em 1932.
História e cinema 167
44 Xavier, Ismail. Sertão/Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. Sao Paulo, Brasiliense, 1983, p. 11.
168 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Mariarosaria Fabris1
Nós não queremos encontrar um lugar nesta sociedade, mas criar uma sociedade na qual
valha a pena encontrar um lugar.
A organização política é organização armada, nós temos que pegar em armas, para que não
haja mais armas.
* Professora aposentada da FFLCH/USP, autora de Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? (1994) e
O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (1996), coordenou a edição dos catálogos Esplendor de
Visconti (2002) e Roberto Rossellini: do cinema e da televisão (2003) para o CCSP.
2 Apud Vecchio, Concetto. Vietato obbedire. Milano, BUR, 2005, pp. 125, 118. Rostagno foi morto em 1988,
por causa de um programa antimáfia que apresentava numa emissora do Sul da Itália. Cf. p. 235.
174 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
3 Vogliamo tutto (“queremos tudo"), um dos slogans dos operários da FIAT nas greves desse período, é o título
do romance que Nanni Balestrini (Milano, Feltrinelli, 1971) dedica à história do nascimento da consciência
política num migrante do Sul da Itália ao se confrontar com a desumanização da indústria no Norte do país.
4 Uma frase mural, no filme de Amelio, resume bem esse espírito de choque frontal: “Finché la violenza
di Stato si chiamerà giustizia, la giustizia dei proletariato sarà violenta” (“Até que a violência do Estado se
chamar justiça, a justiça do proletariado será violenta").
História e cinema 175
5 Alguns críticos viram um gesto responsável no fato de Nicola denunciar a própria mulher às autoridades,
causando, assim, um desbloqueio quando a história estava num impasse. Cf. Audé, Françoise. “Nos meilleurs
années: 1’épopée secrète des Carati”. Positif. n° 509-510. Paris, jui.-aoút 2003, p. 112. Vale lembrar que, na Itália,
vários psicólogos e psiquiatras manifestaram seu interesse em tentar entender um fenômeno como o das BR.
Cf. Lasagna, Roberto. “Le br nel cinemadocumento di Bellocchio”. Cinema nuovo, Roma, ano 45, n° 1, gen-
apr. 1996, p. 18; Franceschini, Alberto, Buffa, Pier Vittorio & Giustolisi, Franco. Mara, Renato e io: storia dei
fondatori delle BR. Milano, Mondadori, 1988, p. 173. O título do livro refere-se a três integrantes do núcleo
histórico das Brigadas Vermelhas: Margherita Cagol, vulgo Mara, morta a 5 de junho de 1975, num conflito
armado com as forças da ordem; Renato Curcio, preso entre 8 de setembro de 1974 e 18 de fevereiro de 1975,
quando foi solto por um comando das BR., e de 18 de janeiro de 1976 a 7 de outubro de 1998, depois de
cinco anos de regime semiaberto; Alberto Franceschini, que, detido junto com Curcio em 1974, se declarou
“dissociado do terrorismo” a 21 de fevereiro de 1987. Cf. pp. 113-114,223; Vecchio, op. cit., p. 234.
6 Tomo o termo emprestado de outro romance de Nanni Balestrini, Gli invisibili (Milano, Bompiani, 1987), talvez
a obra ficcional mais contundente sobre os anos de chumbo na Itália, levada para a tela por Pasquale Squitieri,
em 1988, com o mesmo título. No filme de Giordana, Giulia é abandonada à própria sorte, quando, na realidade,
foi muito comum a peregrinação dos familiares dos prisioneiros políticos pelas várias casas de detenção, fato
registrado tanto em obras ficcionais como em relatos de ex-militantes. Cf. Marciano, Francesca. Casa rossa. Rio
de Janeiro, Record» 2004; Braghetti, Anna Laura & Tavella, Paola. H prigioniero. Milano, Feltrinelli, 2004. Nesse
livro, publicado pela primeira vez em 2003 e do qual foi extraído o roteiro de Buongiomo norte, Anna Laura
Braghetti, a brigadista romana que comprou o apartamento que serviu de cativeiro a Aldo Moro, lembra que um
dos objetivos do Estado nas cadeias de segurança máxima era a “despersonalização das detentas, por meio de uma
pressão psicológica fortíssima e ininterrupta”, pela proibição, entre outras coisas, de qualquer conversa entre elas e
as carcereiras. Recorda, também, com carinho, das visitas das tias, que sempre a ampararam nos anos de reclusão,
até financeiramente: “Nos primeiros tempos, tia Franca e tia GabrieUa cruzavam a Itália para vir me ver, dormiam
nos trens, ficavam uma hora num locutório sem nem ao menos poder me beijar e abraçar, porque estávamos
separadas por vidros, e assim mesmo estavam sorridentes. Na saída, sorriam menos, porque, enquanto isso, eu
tinha lhes ministrado um dos meus comidos políticos. Lembro do olhar que trocavam entre si. Não entendiam
Ihufas do que lhes dizia, e não davam a mínima. Amavam-me assim mesmo”. Cf. pp. 62,64-65,161.
176 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
cias dessa militância política numa Itália em total desarranjo, e La caduta degli angeli
ribelli (1981), no qual narrou a fuga para o Sul do país de um guerrilheiro, perseguido
por seus companheiros. Como o próprio diretor admitiu, ele não esteve e continua
não estando em simbiose com aqueles anos e isso em La meglio gioventü fica evidente
no tratamento dado às Brigadas Vermelhas e à contestação em geral.7 As BR entram na
vida de Nicola, quando Giulia realiza uma reunião em sua casa, depois da qual aban
dona marido e filha para cair na clandestinidade. No filme, entretanto, haviam surgi
do antes, num panfleto que, de repente, o psiquiatra encontra no tribunal quando está
ajudando seus pacientes a testemunharem contra os maus-tratos recebidos durante a
hospitalização.8 A representação dos brigadistas é caricatural, sua ação é totalmente
descontextualizada, sem nenhuma ligação com acontecimentos históricos que a an
tecederam e que poderíam explicá-la. No entanto, se a saga familiar engendrada pelo
diretor e seus roteiristas (Sandro Petraglia e Stefano Rulli) aspirava a ser também um
painel histórico, não se explica a omissão das causas que levaram à ruptura da extrema
esquerda com o PCI, ou seja, aquela insatisfação crescente, que os jovens herdam de
ex-combatentes da Resistência, pela renúncia do partido à revolução para garantir sua
participação no novo governo que se constituiu no pós-guerra.9
Tampouco se explica o silêncio sobre os atentados de direita, verdadeiras carnifici
nas, como a de Piazza Fontana (Milão, 12 de dezembro de 1969), ou a de Piazza delia
Loggia (Brescia, 28 de maio de 1974), ou a do trem internacional Italicus (4 de agosto
do mesmo ano), ou ainda o da estação de Bolonha (2 de agosto de 1980): “Piazza
Fontana é a bomba que escancara as portas para a luta armada”, afirma Concetto
7 Maledeth vi amerò era dedicado a Píer Paolo Pasolini. Cf. Gili, Jean A. “Marco Tullio Giordana, cinéaste italien”.
Positifi op. cit, p. 110; Codelli, Lorenzo. “Marco Tullio Giordana: une saga familiale” Idem, pp. 113-118.
8 Não há uma data oficial para o nascimento das Brigadas Vermelhas. Em setembro de 1969, surgia, em Milão,
o Coletivo Político Metropolitano - em que se fundiam a prática das lutas operárias de 1968-1969, naquela
cidade, e a experiência do movimento estudantil da Universidade de Trento, desde o início dos anos 1960
-, que contava em suas fileiras com Curcio e Mara Cagol. Ao núcleo milanês irá juntar-se um grupo vindo
de Reggio Emilia, integrado também por ex-militantes do PCI, como Franceschini e Prospero Gallinari. A
assinatura “Brigate Rosse” (no início, no singular, “Brigata Rossa”) apareceu pela primeira vez em agosto de
1970, num pequeno prospecto distribuído na Sit-Siemens de Milão, sendo que um de seus dirigentes será o
alvo visado na ação inaugural de guerrilha metropolitana do grupo (a exemplo dos Tupamaros uruguaios),
que lhe queimam o carro a 17 de setembro do mesmo ano. No dia seguinte, numa pequena nota de umas
dez linhas, os jornais noticiam o fato, falando pela primeira vez das BR. Nos primeiros meses de 1971,
os brigadistas começam a entrar na clandestinidade. Cf. “Brigate rosse: la cellula impazzita”. in Storia di
una Repubblica: enciclopédia politica delHtalia dal 1946 al 1980. Roma, Editoriale L’Espresso, 1981, p. 207;
Vecchio, op. cit., pp. 214,232; Franceschini et al, op. cit., pp. 39.
9 É a chamada “svolta di Salerno" (“virada de Salerno”), com a qual o PCI deixa de contestar o governo do
Marechal Badoglio, que havia se constituído em janeiro de 1944, com o apoio dos partidos antifascistas e dos
Aliados. A “svolta di Salerno” se dá no fim de março daquele mesmo ano, quando Palmiro Togliatti, depois
de dezoito anos de exílio, volta da Rússia com novas diretrizes para o Partido Comunista Italiano.
História e cinema 177
Vecchio, salientando o quanto esse acontecimento foi decisivo para a escalada da vio
lência no país. Alberto Franceschini corrobora isso: “Se precisavamos de algo que
reforçasse nossas convicções e que nos dissesse: não há mais tempo a perder, pronto, a
chacina de Piazza Fontana foi exatamente isso”. As Brigadas Vermelhas, ao contrário,
em suas ações, visavam um alvo específico, o que levou Umberto Eco a declarar, certa
feita, que as BR inauguraram a era semiótica na Itália, porque atingiam signos e não
indivíduos, como deveria ter sido o caso de Cario, em La meglio gioventu, por ser o
presidente do banco mais importante do país. Anna Laura Braghetti lembra:
Na Itália, as bombas foram usadas pelos fascistas e pelos serviços secretos. [...] Para as
Brigadas Vermelhas era um ponto de honra não atingir civis, por acaso ou por erro, a menos
que eles mesmos não fossem o alvo. O raciocínio em relação aos homens da escolta era outro,
porque eram militares armados e constituíam um obstáculo objetivo à captura do refém. (...)
Suas responsabilidades pessoais, porém, eram menores das que atribuíamos ao refém. Na
óptica brigadista, mereciam a morte menos do que ele [Moro].10
10 Vecchio, op. cit., p. 181; Braghetti 8c Tavella, op. cit., p. 114,11,178. Cf. Fabiani, Roberto. “Terrorismo nero:
da Brescia alTltalicus”; “Bombe a Bologna: la strage nera”. in Storia di una Repubblica, op. cit., pp. 211,250.
A prática de atingir suas vítimas nas pernas (gambe, em italiano), adotada pelas BR, deu origem ao verbo
gambizzare e seus derivados: gambizzato e gambizzazione. Cf. Quarantotto, Cláudio. Dizionario dei nuovo
italiano. Roma, Newton Compton Editori, 1987, p. 190; Cortelazzo, Manlio & Cardinale, Ugo. Dizionario di
parole nuove 1964-1974. Torino, Loescher Editore, 1986, p. 84.
178 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
que Natalia Ginzburg transmite toda a angústia do conflito social em que estava
mergulhado o país.11 Nesses dois romances também, como em La meglio gioven-
tü, a História é vivida e contada de dentro da célula familiar, mas isso nào impede
a suas autoras, sobretudo a Natalia Ginzburg, de dizerem que não há o certo e o
errado, ou que uma escolha não é melhor do que a outra, como, ao contrário, faz
Giordana, em última instância, ao transformar Nicola em herói positivo.
As lutas reivindicatórias, também, parecem não ter muita importância dentro
do filme. As demissões em massa que atingem os trabalhadores das indústrias
são vistas pela óptica de Cario como uma mera questão estatística, de adequação
de custos, e permitem a Vitale transformar-se, a médio prazo, num pequeno
empresário da construção civil, beneficiando-se, portanto, da derrota de sua ca
tegoria. Os estudantes são representados como meio irresponsáveis e, num con
fronto destes com a polícia (no qual, por pouco, os dois irmãos se encontram), o
filme toma o partido dos policiais, mostrando o desespero de Matteo diante de
um colega ferido e acompanhando sua recuperação.
Nesse ponto, La meglio gioventu revela toda sua filiação pasoliniana, já detectá-
vel no próprio título, tirado de uma coletânea de poesias do escritor bolonhês. Pier
Paolo Pasolini em várias ocasiões havia externado sua opinião contra as manifes
tações estudantis, iniciadas na Itália já em 1967, por considerar “abstrata e român
tica” a idéia de revolução que os jovens tinham. Para ele, incapazes de entender o
novo rumo histórico do capitalismo, que levará, em 1973, o PCI a propor à DC
um governo de coalizão, os jovens esquerdistas viveram com desespero os dias
daquele longo grito que ecoou por toda a Europa, como se fosse “uma espécie de
exorcismo e de adeus às esperanças marxistas”. Segundo o polêmico intelectual,
esses jovens, apesar de procederem à autocrítica como pequeno-burgueses, eram
frutos do neocapitalismo e - por terem uma origem camponesa longínqua e nào
terem vivido de forma pragmática “uma experiência antiburguesa revolucionária
(operária)” - a luta que eles propunham nada mais era do que uma guerra intes-
tina, da burguesia contra si mesma, o que frustrava a luta de classe. Em “II PCI
ai giovaniü”, poema dedicado a um momento emblemático de confronto entre os
estudantes e as forças da ordem (a batalha de Valle Giulia, sede da Faculdade de Ar
quitetura da Universidade de Roma), Pasolini se posicionava do lado dos policiais e
incitava ironicamente os jovens a tomarem de assalto o Partido Comunista Italiano:
[...] Quando, ontem, em Valle Giulia, vocês trocaram socos/ com os policiais,/ eu simpatizei
com os policiais!/ Porque os policiais são filhos de pobre./ Provêm das periferias, rurais ou*
Sobre o romance de Francesca Marciano, ver nota 5; Ginzburg, Natalia. Caro Michele. Milano, Mondadori, 1973.
História e cinema 179
urbanas, que sejam. [...]/ Têm vinte anos, sua idade, meus caros e minhas caras. [...]/ Os jovens
policiais/ que vocês por venerável vandalismo (de elevada tradição/ insurrecional)/ de filhinhos de
papai, espancaram,/ pertencem à outra classe social./ Em Valle Giulia, ontem» teve-se assim uma
amostra/ de luta de classe: e vocês, amigos (embora do lado/ da razão) eram os ricos,/ enquanto
os policiais (que estavam do lado/ errado) eram os pobres. Bela vitória, então,/ a de vocês! Nestes
casos,/ aos policiais oferecem-se flores, amigos./ H Popolo e H Corriere delia Sera, Newsweek e Le
Mondei lambem suas botas. Vocês são seus filhos/ sua esperança, seu futuro: se os recriminam/
não se preparam decerto para uma luta de classe/ contra vocês! Quando muito,/ para a velha
luta intestina. [...]/ Vejam,/ os americanos, seus adoráveis contemporâneos,/ com suas estúpidas
flores, estão inventando,/ eles sim, uma linguagem revolucionária “nova”!/ Inventam-na dia após
dia!/ Mas, vocês não podem fazer isso porque na Europa ela já existe:/ como ignorá-la? [...]/
Vocês a ignoram, indo, com o moralismo dos grotões profundos,/ “mais à esquerda”. Gozado/ ao
abandonar a linguagem revolucionária/ do pobre, velho, togliattiano e oficial/ Partido Comunista/
vocês adotam uma sua variante herética/ mas baseada no mais baixo calão/ dos sociólogos sem
ideologia (ou de seus pais burocratas)/ Falando desse jeito/ vocês exigem tudo em palavras/
enquanto, nos fatos, exigem só aquilo/ a que têm direito (como bons filhos burgueses):/ uma série de
reformas inadiáveis/ a aplicação de novos métodos pedagógicos/ e a renovação de um organismo
estatal./ Bravo! Que nobres sentimentos!/ Que a boa estrela da burguesia os proteja!/ Embriagados
pela vitória sobre os rapazes/ da polícia obrigados pela pobreza à servidão, [...]/ deixam de lado o
único instrumento de fato perigoso/ no combate contra seus pais:/ ou seja, o comunismo. [...]/ Se
querem o poder, apoderem-se, ao menos, do poder/ de um Partido que ainda é de oposição [...]/ e
que tem como objetivo teórico a destruição do Poder./ Que ele se decida a destruir, enquanto isso/
o que nele há de burguês/ tenho lá minhas dúvidas, mesmo com a ajuda de vocês/ se, como eu
dizia, bom sangue não mente.../ De qualquer modo: o PCI aos jovens!! [...].12
12 Pasolini, Pier Paolo. “Março de 1974. Os intelectuais em 1968: maniqueísmo e ortodoxia da Revolução já”, in
Escritos póstumos. Lisboa, Moraes Editores, 1979, p. 33-35; “II PCI ai giovani (Appunti in versi per una poesia in
prosa seguiti da una ‘Apologia”*, in Empirismo eretico. Milano, Garzanti, 1972, pp. 155-163. Embora essa obra
tenha sido vertida para o nosso idioma - “O PCI para os jovens! (Apontamentos em verso para um poema em
prosa, seguidos de uma ‘Apologia*)” - e publicada na edição portuguesa de Empirismo hereje (Lisboa, Assírio e
Atvim, 1982, pp. 122-129), tomei a traduzi-la por não concordar com a versão de Miguel Serras Pereira.
180 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
mente à mostra de cinema, Pasolini foi hostilizado pelos jovens, que não lhe perdoa
ram a publicação do poema?3 A visão que ele tinha da ofensiva estudantil contra o
poder instituído, de disputa dentro de um mesmo grupo, não levava em conta que
os universitários dos anos 1960 não eram mais só filhos da burguesia, pois muitos
deles provinham da camada média (como os irmãos do filme de Giordana) ou de
classes populares (é o caso de Renato Curcio). Além disso, independentemente de
como se queiram julgar as utopias daquele período, como lembra Nelson Ascher:
“Sabe-se, contudo, contra qual modelo social, contra qual estrutura de poder, con
tra quais classes governantes se insurgiam os participantes”. Ao referir-se ao ano de
1971, que marca a passagem do período da contestação estudantil para a fase da vio
lência política (é quando Curcio e Mara Cagol, egressos da Faculdade de Sociologia
de Trento, optam pela “clandestinidade armada”), escreve Vecchio:
Adeus Blowin’ in the wind. adeus 68 dos ideais, nada será de novo como antes. Contestar
os pais e a autoridade não foi inútil, nunca é inútil: uma lei (11 de dezembro de 1969) abriu
a universidade aos portadores de diploma de todas as escolas de segundo grau [...]. Mas,
muitas coisas mudaram para pior. (...) A percepção» na esquerda, é de que se vai delineando
lentamente uma virada autoritária: a “estratégia da tensão”?4
13 Cf. Vecchio, op. cit, pp. 127-128. “11 PCI ai giovani!!” foi publicado no n° 10 da revista literária Nuovi
argomenti (abr.-jun. 1968).
14 Ascher, Nelson. “A desunião européia”. Folha de S. Paulo. 6 jun. 2005; Vecchio, op. cit., p. 232. Antes da lei de
1969, os portadores de diplomas de cursos técnicos ou profissionalizantes não tinham acesso à universidade,
enquanto os egressos do colegial científico não podiam cursar todas as faculdades, às quais acediam só os
que tinham freqüentado o colegial clássico.
15 André, Fabrizio De. Storia di un impiegato. Long playing. Milano» Produttoriassociati, 1973.
16 Como dizia o brigadista Mario Moretti, as Br nem teriam nascido se na esquerda parlamentar tivesse existido
uma interlocução com os grupos extraparlamentares. Cf. Braghetti & Tavella, op. cit., p. 77.
História e cinema 181
uma visão quase demonizada do radicalismo político, La meglio gioventü não apro
funda sua crítica à contestação e à luta armada, e, além de não render justiça à Histó
ria, acaba adotando o discurso do poder. No filme é significativa a marcha progressiva
de Nicola rumo ao individualismo, o que leva a focalizar o apaziguamento pessoal e
o bem-estar como conquistas últimas - numa escancarada afirmação dos valores fa
miliares pequeno-burgueses (bastaria pensar, também, na casa de campo de Cario na
Toscana e na grande festa de casamento de Giovanna) - e a simplesmente ignorar os
problemas que batem à porta da sociedade italiana na virada do milênio: da nova ex
plosão das periferias ao fenômeno crescente da emigração clandestina, da expansão do
consumismo desenfreado à redução progressiva dos salários, da degradação ambiental
à escalada da violência, da disseminação das drogas à multiplicação dos vidiotas,'7 do
esfacelamento constante e sistemático da escola ao aviltamento da classe política etc.
Se, em La meglio gioventü, o partido tomado não é decerto favorável aos que aspira
ram modificar as estruturas sociais fora dos parâmetros oficiais, não é muito diferen
te o que acontece em Buongiorno, notte, que se caracteriza pela ambigüidade de seu
discurso. O filme vai se concentrar no caso Moro,17 18 em que as BR saem vitoriosas do
ponto de vista militar, mas derrotadas do ponto de vista político: esse acontecimento
não só representou um momento de grande ruptura entre a luta armada e a opinião
pública, como não trouxe nenhum ganho na guerra contra o Estado.
Ao promoverem uma série de atentados cada vez mais audazes, contra os que
consideravam seus inimigos naturais - representantes do capitalismo ou do es
tado burguês - os brigadistas estavam tentando forçar uma situação política que
obrigasse cada cidadão e as forças sociais a tomarem um partido: ou contra ou a
favor. Ao “levar o ataque ao coração do Estado”, pretendiam gerar uma espiral de
violência que desembocaria na guerra civil e favorecería a tomada do poder. O se-
qüestro de Moro revelou-se um projeto ambicioso e, em certa medida, delirante,
uma vez que o descolamento das massas populares estava se tornando cada dia
mais evidente, e será instrumentalizado pela classe política italiana, cujo objetivo
foi antes o de criar um espaço de manobra entre a DC e o PCI, do que propria
17 Tomo emprestado o termo “vidiota” do título em português que o tradutor Hindemburgo Dobal deu ao romance
norte-americano Being there, cujo protagonista só conseguia expressar-se por clichês aprendidos vendo televisão,
durante boa parte do dia. Kosinski, Jerzy. O vidiota: o homem que aconteceu. Rio de Janeiro, Editora Artenova, 1971.
18 Em ll caso Moto (1986), Giuseppe Ferrara, baseado no livro Os dias da ira, do escritor norte-americano
Robert Katz, havia proposto a reconstrução histórica dos 55 dias do seqüestro de Aldo Moro, líder da
Democracia Cristã (16 de março a 9 de maio de 1978), confiando o papel-título a Gian Maria Volonté.
Cf. Giammatteo, Fernaldo Di. “II caso Moro”, in Giammatteo, Fernaldo Di. Dizionario dei cinema italiano.
Roma, Editori Riuniti, 1995, pp. 71-72.0 ator já havia encarnado o líder da DC, numa interpretação nada
encomiástica, em Todo modo (1976), de Elio Petri, extraído do romance homônimo de Leonardo Sciascia,
violento libelo contra o partido dos católicos, publicado dois anos antes.
182 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
19 Cf. Luca, Maurizio De & Giustolisi, Franco. “A nostro modesto giudizio”, in Forcella, Enzo. Trenfanni di terrorismo.
Roma, EditorialeDEspresso, 1981, pp. 78-98; Eco, Umberto.“Ma le parole sono pallottole?, in Arti,Giorgio Dell’ (org.).
La Repubblica-dieci anni, 1979: la guerra deipetrolio. Suplemento do n° 48 do diário La Repubblica, Roma, 27 feb. 1986,
pp. 73-74. “Portare 1’attacco al cuore dello Stato” (“Levar o ataque ao coração do Estado”) era o slogan das BR.
20 Cf. Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991, p. 568.
Chiara seria Anna Laura Braghetti, enquanto nos outros protagonistas estão retratados seu companheiro
Prospero Gallinari, Germano Maccari e Mario Moretti, que chefiou a operação, da qual participaram
diretamente outros oito brigadistas.
21 Braghetti & Tavella, op. cit., pp. 29,55; Cf. Franceschini et al, op. cit, p. 14.
História e cinema 183
22 Como recorda Franceschini, um e*-partisany revoltado com a "traição” do PCI, entrega-lhe a primeira
arma (uma Browning, relíquia da Segunda Guerra Mundial): "Não foi só uma entrega de armas: estava me
confiando seus ideais, sua juventude e sua força» que não existia mais” Franceschini et al> op. cit.» p. 4. O
próprio nome das BR está ligado ao período da Libertação, uma vez que os grupos armados em luta contra
os nazi-fascistas denominavam-se brigadas partisans. Cf. Vecchio, op. cit.» pp. 213-214.
23 No filme, Bellocchio dilata o que nas memórias de Anna Latira Braghetti é apenas um parágrafo: "Li algumas
daquelas cartas. Eram terríveis. Contra a minha vontade, chamavam à minha cabeça as dos condenados à morte
durante a Resistência» reunidas num livro que meu pai tinha em casa e que eu havia lido também na escola,
chorando lágrimas de raiva e perguntando-me, às vezes, como teria me comportado em circunstâncias análogas.
Agora o carcereiro era eu. Não queria pensar nisso. Não devia pensar nisso” Apesar desse sentimento e do medo
diante das circunstâncias, a brigadista, na época, recusava-se a ceder à compaixão pelo estadista: “Causava-me pena
que Moro falasse com Mario de sua família, e isso me incomodava profundamente. A piedade não era contemplada,
Moro não era digno dela, minha piedade estava reservada para aqueles que ele e seu partido oprimiam e colocavam
em condições de arrebentar-se de miséria e de trabalho”. Braghetti & Tavella, op. cit, pp. 108,61.
184 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
A identificação de Moro com uma figura paterna pode significar também que, no
plano ideológico, o Estado está substituindo o Partido Comunista no papel de Grande
Pai, um pai com quem se reconciliar e não mais contra o qual se rebelar.25 Além disso,
ao contrapor o bom senso do líder da DC à ideologia cega de seus carcereiros, Belloc-
chio acaba criando um desequilíbrio: para ele, Moro é um ser humano e não o símbo
lo do ataque ao projeto de unidade política nacional; os brigadistas, ao contrário, são
apresentados como um signo cujo referente não são pessoas, mas um ideário abstrato.
Dessa forma, a mensagem ideológica do filme é ambígua e ele pode ser lido como uma
obra tanto de esquerda (obviamente, não revolucionária), quanto de direita.26
24 Cf. Franceschini et al, op. cit., pp. 86,146; Midi, Paolo. “Rumori di golpe: la cupa estate del’64”. in Storia
di una Repubblica, op. cit., p. 152; Cafagna, Luciano. “PCI: il compromesso storico” in Idem, pp. 200-201. O
trecho do artigo de Rinascita (12 out. 1973) foi extraído de Quarantotto, op. cit., p. 106. Não só a esquerda
extraparlamentar se posicionou contra o governo de coalizão, como muitos comunistas também, dentre os
quais o escritor Leonardo Sciascia que, a 10 de fevereiro de 1977, afirmava que o compromisso histórico era
uma “estratégia defensiva baseada no medo e com medo não se faz política**. Apud Augias, Corrado. “‘Cari
compagni, vi dico addio*** in Arti, Giorgio Dell* (org.). La Repubblica-dieci anni, 1977: i giorni delle P38.
Suplemento do n° 25 do diário La Repubblica, Roma, 25-30 gen. 1986, p. 94.
25 No italiano contemporâneo, a expressão grande babbo (grande pai) refere-se a uma “autoridade imaginária,
fireqüentemente identificada no Estado, a quem se delegam as ações que exigem coragem ou altruísmo**. Lurati,
Ottavio. La neologia negli anni 1980-1990. Bologna, Zanichelli, 1990, p. 90. Nos anos 1970, no entanto, o grande
babbo era o PCI, como salienta Franceschini: “Havia ainda o chamado do ‘grande pai’, de minha primeira
família, o Partido, que cuida de tudo, disposto mais uma vez a perdoar-lhe e a acolhê-lo em seus grandes
braços. Mas aceitar significaria admitir que se errou, que a realidade venceu, que o partido estava certo quando
procurava acalmar os mais extremistas entre nós”. Franceschini et al, op. cit., p. 84.
26 Essa ambigüidade incomoda, quando se pensa na coerência do discurso ideológico nos recentes La balia (A
ama de leite, 2000) e Dora di religione (2002); mas incomoda, principalmente diante de I pugni in tasca (De
punhos cerrados, 1965), com seu violento ataque aos valores burgueses decadentes, e de outros filmes como
Nel nome dei padre (1971) ou Mareia trionfale (1976), que, com suas ambientações num colégio interno e
num quartel, se tornavam alegorias da realidade vivida no país. Para Bellocchio, talvez, como ele já dizia em
La Cina è vicina (1967) - projetado quando as manifestações estudantis começavam a tomar conta das ruas
História e cinema 185
Acaba-se por sobreviver quando se cede à chantagem da segurança que a sociedade impõe por
meio do recalque sistemático da pulsão de morte; assim» a vida não é mais “vida verdadeira”, mas
uma cópia extremamente igual de si mesma. A morte recalcada volta a cada momento da existência;
ela se toma, portanto, a sobra ineliminável, na qual se concentrou toda a verdade da vida.28
a revolução na Itália não seja possível, em virtude do comprometimento de todos em todos os níveis. Cf.
Bencivenni, Alessandra & Giammatteo, Femaldo Di. “La Cina è vicina” in Giammatteo, op. cit., pp. 89-90; Baldi,
Alfredo 8c Giammatteo, Femaldo Di. “I pugni in tasca” in Idem, pp. 265-266; Poppi, Roberto. “Bellocchio Marco”
in Dizionario dei cinema italiano: i registi dal 1930 ai nostri giomi. Roma, Gremese Editore, 1993, p. 30.
27 Cf. Lasagna, op. cit., também em Diavolo in corpo (Diabo no corpo, 1986), Bellocchio havia tocado nessa
questão.
28 Perniola, Mario. “Scambio simbolico, iperreaiismo, simulacro”. Aut aut. n° 170-171. Milano, mar.-giu.
1979, pp. 69-70.
186 Capelato, Morettin» Napolitano e Saliba
Talvez seja bom ir por aí, carregando no bolso uma carteira de motorista verdadeira, mostrá-
la aos agentes sem estar prestes para levar a mão à cintura, onde está o revólver. Também
comprar uma casa poderia ser diferente. Regatear no preço, como jamais fiz, levantar um
empréstimo ou pagar em prestações, morar de aluguel sem ter que contar com o dinheiro
dos assaltos, apenas com um salário com o qual ter que se virar. Poderia ainda ir ao banco,
tranquilo, para depositar dinheiro, descontar um cheque, pagar as contas da luz, sem medo de
ser reconhecido, amontoá-las num canto de minha casa» guardando-as sem a angústia de ter
de destruí-las depois de um mês. Poderia ainda fazer amizade com meus vizinhos, apresentar-
me pelo meu nome, Alberto Franceschini, e pela qualificação, ex-detento, sem temer nada
deles. Não haveria traições a marcar minha vida, nem tocaias nem sangue.29
No que diz respeito à irrealidade vivida pela esquerda radical, obviamente existia
a convicção de que algo poderia mudar. Se assim não fosse, continuando dentro do
raciocínio de Baudrillard, para quem “toda subversão ou resistência a esse sistema é de
natureza suicida”, cairiamos num conformismo perigoso, ao atribuir ao establishment
uma força inelutável.30 Ademais, entre os brigadistas existiam questionamentos quan
to à validade dos próprios atos - bastaria pensar na angústia e na repulsa de Mario
Moretti, ao dar-se conta que não se podia mais voltar atrás na execução de Moro
embora a utopia acabasse por prevalecer, como atesta Anna Laura Braghetti:
[... ] parava, à noite, diante dos prédios, observava as janelas il uminadas e me perguntava:“Mas, essa
gente quer o comunismo, uma mudança tão grande, tão brusca? Ou sou eu quem o quer tanto, para
mim?”. Imaginava um amanhã no qual toda afronta seria reparada, toda desigualdade sanada, toda
injustiça corrigida, respondia a mim mesma que isso justificava os meios que empregaríamos.31
Assim como Baudrillard, no entanto, Cyril Neyrat também destaca esse aspecto
de irrealidade da luta armada (e, consequentemente, o de simulacro), a partir da
leitura que ele faz da representação de seus integrantes no filme de Bellocchio:
Porque eles deixam de confrontá-los com as realidades do dia, seus sonhos se quebram na
escuridão do apartamento. Seu atraso se aprofunda. Sua noite não é o espaço do possível, mas
uma prisão cega, na qual o mundo só entra pela telinha da televisão. Aparvalhados, eles olham o
espetáculo midiático de sua ação como donas de casa diante de um telefilme ou da extração de uma
loteria. Seu gesto revolucionário não tem mais peso do que um fait divers qualquer. Ao contrário,
em termos de lógica foucaldiana, só legitima o apelo à ordem. O filme termina com a transmissão
televisiva das exéquias de Paulo VI. Saem de cena os heróis sonâmbulos, fim do fait divers. O Papa
está morto, viva o Papa. Moro está morto, viva Andreotti, viva Berlusconi, viva a televisão.32
Reduzir a ação dos brigadistas a um fait divers é muito problemático, pois signifi
ca, isso sim, render-se ao “terrorismo midiático”,33 aceitar a imagem vendida pelos
jornais e pela televisão, ignorar que as BR não tiveram como se sobrepor, ou ao me
nos se contrapor, às ideologias hegemônicas nesse campo. Ademais, dar como certo
que o que teria desencadeado um conservadorismo ainda maior, favorecendo a es
calada de Silvio Berlusconi, teria sido a ação dos grupos extraparlamentares, é tirar
da esquerda parlamentar a responsabilidade por seus desacertos e desconhecer os
novos rumos que a política internacional, cada vez mais dominada pela economia,
tomou. Ao refletir sobre a atual situação política na Itália, observa Nanni Moretti:
31 Braghetti & Tavella, op. cit., pp. 179-181,130,21. A questão da responsabilidade moral dos que defendiam
idéias extremistas, mesmo sem se envolver em fatos de sangue, foi abordada também por Umberto Eco
no artigo citado na nota 18. Ganhou destaque, há pouco, quando a Itália pediu ao Brasil a extradição do
sociólogo Pietro Mancini, que militou na Autonomia Operária (grupo radical esquerdista de Pádua), por
estar supostamente envolvido na morte de um policial, durante uma manifestação. Cf. Xavier, José Messias.
“Extradição é a morte, diz italiano preso no RJ". Folha de S. Paulot 2 jul. 2005.
32 Neyrat, Cyril. “La rumeur déchirée: fragments pour une esthétique du fait divers”. Vertigo. Hors série. Marseille,
jui. 2004, p. 14-15. Na época do caso Moro, Giulio Andreotti era o Presidente do Conselho de Ministros. Uma
das figuras mais polêmicas da política italiana - cuja carreira foi de 1945, como deputado católico, até 1993,
quando, ao ser acusado de envolvimento com a Máfia, teve sua imunidade parlamentar cassada -, Andreotti
deveria ter sido seqüestrado pelas BR em 1974. Com essa ação, pretendiam fazer pagar à DC a derrota infligida
nas urnas à Frente Popular (integrada por comunistas e socialistas), nas eleições de 18 de abril de 1948, que
inauguraram a época do centrismo na Itália. Cf. Franceschini et al, op. cit., p. 104.
33 Souza, Fabiano de. “Como uma bomba”. Teorema. n° 7. Porto Alegre, ago. 2005, p. 54.
188 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Desde 1994, o país está partido em dois: não porque ganhou a centro-direita, que» no
fundo» estava ganhando há 45 anos, mas porque entrou na política Berlusconi» que formou
(conscientemente ou não) telespectadores-eleitores que não querem reconhecer-se num
patrimônio de valores que deveria ser compartilhado por todos.34
Ou seja» faltou avaliar com maior profundidade que Berlusconi acabou repre
sentando um fato "novo” dentro do panorama político italiano (por mais estra
nho que isso possa parecer), porque nunca subestimou os meios de comunicação
de massa; ao contrário, foi projetando sua carreira investindo progressivamente
na imprensa escrita e em redes televisivas, com o objetivo de preservar “uma plu
ralidade de vozes”, como afirmava.35 Qualquer semelhança com a construção do
consenso durante o vicênio fascista não é mera coincidência.
A ambigüidade presente em Buongiorno, notte caracteriza também Colpire al cuo-
re, no sentido que ela permeia as relações entre os protagonistas e o comportamen
to que adotam diante do momento histórico vivido. Dario, um professor univer
sitário, e Emilio, seu filho adolescente, estão passando um fim de semana na casa
da avó paterna no campo. Sandro Ferrari, um ex-aluno de Dario, os alcança com
sua mulher Giulia e um bebê de alguns meses. A partir de uma foto encontrada por
Sandro, o filho descobre que o pai, quando tinha a sua idade, esteve envolvido na
caça “aos espiões, aos fascistas, aos traidores” no pós-guerra. Enquanto os outros
se divertem no jardim, o garoto, de uma janela, os fotografa com uma teleobjetiva.
Uma noite, em Milão, Emilio se depara com Sandro morto na rua: pelo telejornal,
descobre que este pertencia às BR e entrega à polícia as fotos que tirou. O pai, cha
mado a depor, não recrimina o filho; apenas lhe lembra que, quando criança, ele
havia dedurado um coleguinha. Embora entenda o sentido de dever de Emilio, o
professor lhe diz que ele não iria à polícia, porque isso é contra suas idéias. Um dia,
na saída do metrô, o garoto vê Giulia e a segue até o conjunto habitacional onde ela
se esconde da polícia. Conversando com o pai, este procura mostrar indiferença
pelo fato de a moça estar sendo procurada. Emilio volta ao conjunto habitacional
com sua máquina fotográfica, segue Giulia até a universidade e descobre que ela se
encontra com Dario. Depois de espreitar por entre as grades do cemitério o enterro
de Sandro, o garoto desaparece, mas antes deixa, no meio da papelada do pai, uma
foto em que este aparece ao lado da jovem. Dario sai em busca do filho e os dois se
reconciliam depois de uma conversa longa e tumultuada, na qual o professor per
cebe que talvez errou em não exercer de forma mais convencional sua autoridade
34 Apud Radman, Stefania. “Vi racconto il Caimano”. CEspresso. Ano LI» n° 32. Roma, 18 ago. 2005, p. 27.11
caintano (= o caimão) é o título do filme de Moretti sobre Berlusconi.
35 Apud Pirani, Mario. ‘“Mi chiam o Berlusconi e voglio fare carriera’” in Arti (org.), La Repubblica-dieci
anni, 1977, op. cit., p. 42.
História e cinema 189
paterna. Na manhã seguinte» Dario vai procurar Giulia para ajudá-la a fugir» mas
os dois são apanhados pela polícia» graças à colaboração de Emilio.
Realizado a frio» Colpire al cuore faz da relação pai-filho o tema central de sua inda
gação sobre aqueles anos de contestação generalizada; os papéis» no entanto» não são
fixos. Sandro poderia ser para Emilio uma projeção do que foi seu pai quando garoto
ou poderia ser o filho ideal de Dario» o que permitiría estabelecer a ligação entre o
período da Resistência e o do partido armado: “Seus amigos atiram. Você também
atirava» antigamente. Quando Ferrari olhava aquela foto parecia ter orgulho de você”
- diz o garoto, jogando na cara de Dario seu passado de partisan. Este» por sua vez,
poderia ser o filho do sisudo Emilio, que tenta justificar a suposta ingenuidade do pai
em seu envolvimento com o casal: “Depois de tudo» os terroristas não têm três cabe
ças ou dentes de vampiro. Aprenderam a parecer pessoas normais”.
Essa troca constante de papéis - assim como a não-definição da relação entre
Sandro e Dario (fica a dúvida se o professor não sabia das atividades do ex-alu
no), Dario e Giulia (pelo desejo contido dos dois), Giulia e Emilio (pela atração
que o garoto sente pela moça), ou seja» há sempre algo de não explicitado - reflete
a impossibilidade de focalizar de um único ponto de vista uma questão escorre
gadia e sobre ela emitir uma opinião definitiva. Mais do que falar da esquerda
revolucionária armada, Gianni Amelio está interessado em captar as reações de
quem viveu aquele período, em registrar a capacidade ou a incapacidade de com
preender um fenômeno,36 que» quando da realização do filme» ainda estava aba
lando a sociedade italiana: Giulia segue Sandro até o fim, mas se interroga sobre
como dizer ao filho» um dia» que o pai matava pessoas e que ela sabia e não fez
nada; Dario acha desarrazoada a opção do brigadista, porém jamais colaboraria
com a polícia; Emilio tem uma fé tão inabalável nas forças da ordem, que não
hesita em denunciar o próprio pai por seu convívio com Sandro e Giulia.
A adoção de um ponto de vista múltiplo já é anunciada na seqüência inicial
de Colpire al cuore, com pai e filho lembrando da brincadeira dos anagramas,
quando Dario ensinava a Emilio a decompor uma palavra e» ao recompô-la» para
criar uma nova» dar-lhe um sentido completo. E a “verdade” de cada um no filme
é como a brincadeira dos anagramas» porque a realidade pode ser observada de
vários ângulos e fazer sempre sentido. Só que» para entender uma realidade tão
complexa é preciso vivenciá-la, ninguém pode permanecer como mero espectador
ou tentar captá-la de longe» como faz Emilio com sua teleobjetiva. Por isso o pai
36 Diz Amelio: “Se não se pode relatar o terrorismo, pode-se analisar nossa reação diante do fenômeno, nossa
capacidade ou, também, incapacidade, de confrontar-nos com o problema; na prática, o que é o terrorismo
para nós que não somos terroristas, mas que, apesar de tudo» participamos dele”. Apud Giammatteo,
Fernaldo Di. "Colpire al cuore” in Giammatteo, op. cit., p. 93.
190 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
No verão de 1977, sentia que [...] estava acontecendo algo de enorme. [...] Tinha um sonho,
sempre o mesmo: o de estar num túnel ou numa caverna, envolvida pelo breu, tomada por uma
sensação fortíssima de sufocação, uma situação na qual parecia impossível encontrar uma saída para
aquela escuridão. Exatamente dez anos depois, na prisão de Voghera, quando a sós, silenciosamente,
consumei minha ruptura com as Brigadas Vermelhas, esse mesmo sonho me assinalou que tinha
de salvar algo para mim, para a minha vida, que estava no fim do túnel no qual tinha entrado ao
comprar e ao morar naquela casa, quando tinha cortado as raízes com o que eu era antes.40
Emily Dickinson escreveu: “Bom dia, meia-noite” e eu achava que esse paradoxo - “bom
dia/noite” - poderia servir para nos introduzir no universo meio infernal daquela prisão, um
inferno em que as chamas não são visíveis, mas onde os quatro guerrilheiros escolheram viver
juntos, forçando um prisioneiro a viver com eles, na obscuridade, na noite. É isso: “Bom dia,
noite” pode ser explicado pelo paradoxo bizarro de um bom dia à noite que está para chegar.41
M Cf. Chevaleir & Gheerbrant, op. ciL, pp. 640,844-846. Para Baudrilliard: “A obscenidade do refém manifesta-se
na impossibilidade de livrar-se dele (as BR também tiveram essa experiência com Aldo Moro)*’. Baudrillard, Jean.
Las estratégias fatales. Barcelona, Editorial Anagrama, 1985, pp. 44-45. Ao contrário do que ele afirma, as Brigadas
Vermelhas sabiam muito bem como utilizar politicamente o cadáver de Moro, quando o deixaram na Via Caetani
(no bagageiro do carro no qual havia sido executado), a meio caminho das sedes nacionais da DC e do PCI.
40 Braghetti & Tavella, op. cit., pp. 40-41.
41 Apud Villani, Aldo & Muncini, Maria Andréa. “A obscura claridade das estrelas”. Folha de S. Paulo (Supl.
Mais!), 24 abr. 2005.
42 Cf. Chevaleir & Gheerbrant, op. cit., p. 640.
43 Naquele período, a metáfora da noite a ser velada foi recorrente. Era lembrada a deixa final - “Ha da
passa’ ‘a nuttata” (“Esta noite há de passar”) - da peça de Eduardo De Filippo, Napoli milionária (1945),
que denunciava a miséria moral de Nápoles no imediato pós-guerra; exaltava-se a coragem do país que não
sucumbia diante das adversidades, como na música “Viva Tltalia”, do cantor e compositor Francesco De
192 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
vidados também aqueles que um dia tentaram buscar mais à esquerda, não impor
ta se de maneira certa ou errada, uma solução para as contradições sociais de um
país, que hoje, enterradas as ideologias, parece não ter mais utopias a perseguir.
Gregori: “Viva a Itália de 12 de dezembro/ a Itália com as bandeiras/ a Itália nua como sempre/ a Itália de
olhos abertos para a noite triste/ viva a Itália/ a Itália que resiste”. Gregori, Francesco De. Viva íltalia. Long
playing. Roma, RCA Italiana, 1979.
A cena político-cultural cubana dos anos 1970:
uma análise histórica do filme A Ültima Ceia
A Última Ceia (La Ültima Cena), filmado em 1976 e lançado em Cuba em novembro
de 1977, é considerada hoje uma das melhores obras cinematográficas de seu diretor,12
Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), e do nuevo cine cubano, assim batizada a produ
ção fílmica nacional realizada após 1959. Esse primeiro longa-metragem ficcional em
cores de Alea foi baseado numa notícia encontrada pelo historiador Manuel Moreno
Fraginals (1920-2001) e descrita, num parágrafo curto, em seu livro El Ingenio (1964).
Essa notícia, datada de 1789, tratava das trágicas conseqüências de uma decisão toma
da pelo Conde da Casa Bayona, um senhor de engenho que supostamente influencia
do por um tratado denominado Explicaciones de la doctrina cristiana compiladas para
los negros simples,3 resolvera selecionar doze de seus escravos a fim de lavar-lhes os pés
e com eles cear na Semana Santa - a exemplo do que fizera Cristo com seus apóstolos.
Segundo a notícia, no dia seguinte à ceia, teve início uma violenta rebelião, controlada
com muito custo e punida com a decapitação de vinte escravos.
No filme, tais acontecimentos transcorrem entre a quarta-feira e o domingo da Se
mana Santa, de forma linear, em três blocos principais: a escolha e preparação dos
escravos para a ceia (quarta e quinta-feira); a ceia (noite de quinta-feira) e a rebelião se
guida de violenta repressão (sexta a domingo). Os protagonistas do filme são o Conde,
o feitor Dom Manuel, o capelão do engenho, o técnico de açúcar Dom Gaspar Duclé,
e alguns escravos que, com exceção de Sebastián, um recém-capturado com o qual to
mamos contato já no início, só conhecemos individualmente ao longo da ceia: Bagon-
chê, ex-rei africano que se torna líder da rebelião; Antonio, um escravo leal ao Conde,
com hábitos refinados; Congo, o mais brincalhão, com dotes de cantador e dançarino;
Pascoal, o escravo mais velho do engenho e Ambrósio, bastante irônico e falante.
1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Este trabalho é um desdobramento da tese “O
instituto Cubano dei Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC) e a política cultural em Cuba (1959-1991)”,
realizada com auxílio da Capes.
2 O filme obteve prêmios em festivais na Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, França, Venezuela e Portugal.
Em 1978 foi o Grande vencedor do Júri Popular na II Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Garcia
Borrero, Juan Antonio. “Las mejores películas dei cine cubano?” in Guia crítica dei cine cubano de ficción. La
Habana, Editorial Arte y Literatura, 2001, pp. 28-33,345.
3 King. J. El carrete mágico Una historia dei cine latinoamericano. Bogotá, TM Editores, 1994, p. 231.
194 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
A causa da rebelião, no filme, é atribuída a uma falsa promessa feita pelo Con
de, que durante a ceia mostra-se caridoso e anuncia a seus escravos que não tra
balhariam no dia seguinte (Sexta-feira Santa), atendendo a um pedido do padre
de que os feriados religiosos fossem respeitados. Ao amanhecer, entretanto, o fei
tor, autorizado pelo patrão, convoca todos ao trabalho, e a indignação provocada
pela “traição” do Conde é o estopim da revolta e a consequente fuga de vários
daqueles que haviam participado da ceia. Em poucas horas, o engenho é incen
diado, o feitor é morto e os escravos fugidos são capturados por rancheadores (ca-
pitães-do-mato) e punidos com a decapitação. Onze cabeças, dos doze escravos
que haviam ceado com o Conde, são fincadas em estacas. Apenas Sebastián, o
mais valente e rebelde, consegue escapar. O desfecho do filme se dá no domingo,
quando, diante das cabeças fincadas ao redor de uma cruz de madeira, no alto
de uma colina, o Conde anuncia a construção de uma nova igreja, marcando o
“renascimento” de seu engenho.
Há muitas simbologias e metáforas presentes na narrativa do filme, e nosso
objetivo é analisá-las à luz do momento político vivido por Cuba, consideran
do a política cultural vigente e as tensões que atingem o meio cinematográfico
cubano, gerenciado pelo ICAIC - Instituto Cubano dei Arte e Indústria Cine
matográficos, um organismo estatal criado em 1959 e encarregado de selecionar,
produzir e distribuir todas as produções fílmicas. Endossamos a perspectiva de
análise proposta por Eduardo Morettin, de desvendar os projetos ideológicos com
os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de vista a sua
singularidade dentro de seu contexto, e procuraremos identificar, no discurso ci
nematográfico de Alea, como este responde às demandas oficiais, reportando-se
à história nacional, à celebração da Revolução e, ao mesmo tempo, servindo-se
dos diálogos entre os personagens, ricos em ironias e ambigüidades, para tecer
outros diálogos mais delicados com o regime socialista, com a burocracia do Par
tido Comunista de Cuba e com o meio artístico-cultural de seu país.
Partimos da hipótese de que o filme não é, simplesmente, uma obra de resistên
cia ao regime cubano, uma vez que isso seria inviável para um filme produzido
pelo Estado, principalmente nos anos 1970. Além disso, o diretor sustentou sem
pre seu apoio “à Revolução” (termo usado como sinônimo do governo instituído
em 1959) e optou por permanecer na ilha, mediante as condições existentes no
ICAIC. Nem por isso se eximiu de emitir suas críticas e opiniões através das
brechas e da subjetividade que a linguagem filmica oferece. Enfatizamos, assim»
o caráter de “metáfora de Cuba” em que o engenho se traduz, no filme, e os sig
nificados ideológicos latentes nas provocações, questionamentos e “teses” que os
diálogos e situações nos oferecem.
História e cinema 195
Alea explicitava sua intenção, com esse filme, de criticar a manipulação do discurso
ideológico pelas esferas de poder, usando a religião como pretexto, conforme declarou:
“En todas partes hay gente que asume al comunismo como una religión. Creo que es
funesto, porque así empiezan a distorsionar su sentido. Quizás La Última Cena contri-
buya a hacerlo entender”.4 Apesar de sua formação marxista, Alea não era comunista
e discordava de certos rumos assumidos pelo regime cubano, como a imposição de
modelos e fórmulas teóricas preestabelecidas no meio artístico, contra a qual vinha
empreendendo, havia alguns anos, duro combate.5 Seu criticismo sempre foi acom
panhado de um grande nacionalismo e a disposição de contribuir intensamente, com
seus filmes, para a melhoria de Cuba, o desenvolvimento de um cinema “revolucio
nário” e a formação da consciência política do povo cubano. Já no fim da vida, Alea
apontou as falhas que julgava terem ocorrido em Cuba e considerava que a experiência
do socialismo no mundo havia sido uma grande “tergiversación” das idéias de Marx.6
Neste trabalho, esmiuçamos os elementos fílmicos que colaboram para a cons
trução de sua crítica, analisando a forma pela qual a história colonial foi apro
priada e revista, no filme, em função da valorização da Revolução Haitiana e da
discussão de alguns aspectos ideológicos, como a questão da identidade do negro
na sociedade cubana. Em seguida, focamos a relação do filme com a obra homô
nima de Da Vinci e iluminamos os personagens e as passagens que consideramos
pertinentes para a análise das críticas subliminares tecidas por Alea.
4 Apud Ansara, Martha (trad. José Antonio Évora) “Tomás Gutiérrez Alea. Film Director”. Cinema papers.
Melbourne, mai.-jun. de 1981, p. 140. Ver também Évora, J. A. Tomás Gutiérrez Alea. Madrid, Cátedra/
Filmoteca Espanola, 1996, p. 45.
5 Gutierrez Alea, Tomás. “Sobre lo moderno en el arte” (26/10/62) apud Évora, J. A., op. cit., p. 118.
6 Évora, J. A., op. cit., p. 166.
7 Depoimento de Tomás Gutiérrez Alea in Garcia Borrero, J. A., op. cit., p. 343.
196 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
a Ver Oroz, Silvia. Tomás Gutiérrez Alea, os filmes que não filmei. Trad. de Sílvia de Barros. Rio de Janeiro.
Anima, 1985, p. 154.
’ Ver de la Fuente, Alejandro. “El legado de Moreno Fraginals” El Nuevo Herald, Miami, s/e. 21/05/2001.
10 Marquese, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos
escravos nas Américas, 1660-1860. Sào Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 387.
História e cinema 197
" Em 1789 o tráfico negreiro para Cuba é liberado pela Espanha e a população escrava aumenta consi
deravelmente, apesar de nunca ter atingido a proporção existente no Haiti, de 15 negros para cada branco.
Conseqüentemente, o fim definitivo do tráfico para a ilha se deu tardiamente, em 1866, e a abolição, apenas
em 1886. A modernização também se intensificou nesse período: em 1790 passa a ser usada a máquina a vapor
e, a partir de 1837, é instalada a malha ferroviária em Cuba. Idem, pp. 165; 353; 389.
12 Idem, p. 379.
13 Idem, pp. 200; 207-209,385.
198 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
fobia (expressa, no filme, por Dom Gaspar), contribuiu para que fosse reavivada a
“teoria despótica da escravidão” Nesse contexto, a oligarquia cubana se opunha
frontalmente ao cumprimento das determinações contidas na Real Cédula e à
interferência do poder público na soberania doméstica.14
Por outro lado, Marquese nos mostra que essa sacarocracia não permaneceu im
permeável à Ilustração Espanhola: a elite cubana paulatinamente admitiu algumas
mudanças de gestão escravista a fim de melhorar seus rendimentos, sem porém, abrir
mão do princípio da autoridade absoluta do senhor de engenho.15 No filme, as atitu
des do Conde reiteram essa disposição: este, impulsivamente, empreende um gesto
cristão, afinado com as novas orientações, porém, retoma em seguida seu despotismo
habitual diante do resultado trágico de sua ação. Assim, a revisão histórica feita pelo
filme privilegia, de um lado, a convivência entre atraso e modernidade, no século
XIX, em Cuba; e de outro, a repercussão das idéias ilustradas e do uso da religião
como forma de controle da escravaria e de aumento da produção, em tensão com a
defesa do princípio da “soberania doméstica”, tão caro à elite cubana.
O cuidado de que o filme fosse respaldado por um historiador - ainda que um
pouco controvertido16 - nos revela a preocupação de Alea em ancorar na realida
de, em fatos documentados, uma espécie de parábola que pretendia dizer muito
a respeito do momento presente de Cuba. Alea se apropria da visão de Fraginals e
da voz dos personagens para posicionar-se e discutir questões ideológicas latentes.
Em nome dessa discussão, algumas liberdades são cometidas na recriação do fato
histórico, e tais alterações guardam também alguns significados, como veremos.
O episódio que serviu de argumento para o filme ocorreu em 1789. Entretanto,
os créditos inicias da obra não precisam a data: o fato teria ocorrido num enge
nho próximo à Havana, durante a Semana Santa, “no final do séc. XVIII”. Essa
imprecisão permite que se faça relação entre o acontecimento relatado e a revolta
14 Idem, p. 154.
15 Segundo o autor, Cuba passou por uma verdadeira “revolução” comercial e administrativa em função das
reformas bourbônicas (1763-1789) que, juntamente com idéias iluministas, contribuíram para que na década
de 1790 fossem fundadas duas instituições para aprimorar a economia açucareira: o Real Consulado de
Agricultura, Indústria e Comércio de Havana e a Real Sociedade Patriótica de Havana. Além disso, os próprios
proprietários criollos> como Francisco de Arango y Parreno, em seu Discurso sobre la agricultura de La Habana,
1792, passaram a recomendar alguns cuidados no trato com os escravos. Idem, pp. 209,211,213-214.
16 Ao longo de sua trajetória, encerrada em 1994» em Miami, Fraginals tornou-se um historiador cada
vez mais crítico em relação ao regime cubano, e procurou mostrar que algumas mudanças empreendidas
pelo governo, na agricultura, principalmente a partir de 1962, prejudicaram a economia cubana. Fraginals
denunciou a deturpação de estatísticas, os critérios baseados na confiança política para a nomeação de cargos
administrativos, e a falácia da campanha da Safra de 10 milhões, em 1970, um projeto nitidamente impossível
desde o princípio, em sua opinião. Ver Moreno Fraginals, M. "Cuarenta anos: crônica de una decadência”.
Revista Hispano-Cubana, Madrid, n. 4, mayo-septiembre, 1999, pp. 27-33.
História e cinema 199
17 Glauber Rocha, por exemplo, morou em Cuba, entre 1971 e 1972, a convite de Alfredo Guevara, presidente
do ICAIC. Ver: Villaça, Mariana M. “America Nuestra - Glauber Rocha e o cinema cubano”. Revista Brasileira
de História. Viagens e Viajantes, vol. 22, n. 44,2002, pp. 489-510.
200 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Por ser, já nos anos 1970, um dos mais premiados diretores do ICAIC,18 Alea
tinha compromissos com essa instituição (produzir uma obra conscientizadora,
útil à Revolução, conforme ditava o estatuto), e com a crítica especializada, que
dele esperava um estilo de cinema ao mesmo tempo afinado com as propostas
do nuevo cine latinoamericano e superior à mera propaganda política. Perante o
governo que o financiava, Alea tinha o dever de celebrar a Revolução, não ferir a
imagem de Cuba, nem questionar a opção pelo socialismo.
Diante dessas balizas, a opção pelo filme de temática histórica se revelava uma
estratégia interessante para os diretores de ficção, uma vez que cumpria razoa
velmente o objetivo pedagógico, oferecia alguma brecha para o uso de metáforas
sobre o presente e atendia a uma busca coletiva de reflexão sobre a identidade
cubana, muito forte naquele meio artístico e intelectual.19 Vários desses filmes
espelhavam a influência da produção documental, predominante no ICAIC: in
cluíam trechos de documentários ou seqüências filmadas à maneira de noticiá
rios.20 Boa parte das produções resultavam de demandas oficiais do governo ou
do Partido Comunista de Cuba, como os que foram realizados em função das
comemorações dos “Cem anos de luta”, ou Centenário da Independência (1868
1968), como Lucía (Humberto Solás, 1968,), La odisea dei General José (Jorge Fra
ga, 1969) e La primera carga al machete (Manuel Octavio Gómez, 1969).
Os filmes realizados sobre as lutas independentistas, nessa época, e as produ
ções sobre o passado colonial que prosseguiram pela década de 1970, endossavam
uma perspectiva ideológica oficial que identificava o caráter revolucionário como
sendo a “essência” identitária do homem cubano. Na difusão dessa perspectiva o
cinema foi particularmente útil, pois as produções de temática histórica ordena
vam e conferiam organicidade aos acontecimentos, fazendo da Revolução o co-
roamento político de uma tradição de luta iniciada no período colonial. É dentro
desse registro - o da valorização da índole revolucionária - que Alea expõe seu
posicionamento no filme A Ültima Ceia.
Além da celebração dos tradicionais heróis da nação (dos líderes das guerras de
independência aos guerrilheiros de Sierrra Maestra), o cidadão comum, porém
“disposto a qualquer sacrifício pela pátria”, deveria ser valorizado, e nesse sen
18 Filmes como Historias de la revolución (1962), Las doce sillas (1962), La muerte de un burócrata (1966) e»
principalmente, Memórias dei Subdesarrollo (1968) já lhe haviam rendido diversos prêmios internacionais.
19 Gutiérrez Aalea, T. “Vanguardia política y vanguardia artística”. Revista Cine Cubano, La Habana, n. 54-55,1969.
Ver Fomet, Ambrósio (org). Alea, una retrospectiva crítica. La Habana, Editorial Letras Cubanas, 1987, p. 302.
20 Memórias dei Subdesarrollo (Tomás Gutiérrez Alea, 1968), La Primera Carga al Machete (Manuel Octávio
Gómez, 1969), Los Dias dei Agua (Manuel Octávio Gómez, 1971), Ustedes tienen la palabra (Manuel
Octávio Gómez, 1973) e De Cierta Manera (Sara Gómez, 1974) são alguns exemplos.
História e cinema 201
tido, o negro não poderia ser excluído. Assim, o cineasta Sérgio Girai produziu,
nos anos 1970, uma trilogia sobre rebeliões escravas do século XIX: El otro Fran
cisco (1973), Rancheador (1975) e Maluala (1979). O viés ideológico predominan
te nesses filmes, chamados de “negrometrajes”, era o da valorização da bravura
dos escravos rebeldes, os cimarrones, como ingrediente constitutivo do espírito
revolucionário nacional. No entanto, ao tratar do lugar do negro na sociedade os
filmes tangenciavam (sem um enfoque crítico contundente) questões polêmicas
da atualidade, como a marginalização das tradições de origem afro - caso da
santería, cuja prática era reprimida nos anos 1970 - ou o envio de milhares de
soldados cubanos negros para Angola, a partir de 1975.
O filme A Última Ceia foi dedicado à memória de Sara Gómez - única cineasta ne
gra e do sexo feminino que trabalhara no ICAIC. Sara havia sido assistente de direção
de Alea, tinha realizado alguns curtas e um único longa-metragem, De cierta manera
(1974), um misto de ficção e documentário muito envolvente e contestatório, que
problematizava o racismo, a marginalização social e a difícil adequação da população
da periferia aos novos valores revolucionários. Em virtude do falecimento da direto
ra, o filme não foi concluído e só chegaria às telas em 1977, após ter sido finalizado
pelo próprio Alea e por Julio Garcia Espinosa. A disposição crítica presente na obra
de Sara Gómez foi reconhecida e valorizada por Alea não apenas em A Última Ceia,
como também numa produção posterior, Hasta Cierto Punto (1983).2’
Para compreendermos o discurso existente “nas entrelinhas” de A Última Ceia
e o cuidado com que certas críticas foram revestidas de metáforas, é necessário
nos reportarmos ao processo de definição da política cultural cubana, no qual o
modelo do realismo socialista soviético teve papel fundamental, e foi alvo de in
tensos debates. Esse modelo, bastante rechaçado em Cuba nos anos 1960, passou
a ser visto como desejável, ao final dessa década.
Em 1968 teve início o estabelecimento de uma dura cobrança ideológica, no
meio artístico, fundamentada numa campanha governamental, a Ofensiva Revo
lucionária (1968-69)2122 e nas resoluções finais do Congreso Cultural de La Habana
(1968). A Ofensiva era uma campanha que conclamava todos os cidadãos a com
bater o individualismo e a se esforçar para o cumprimento de metas coletivas de
21 Sobre esse filme, que estabeleceu um interessante diálogo com De Cierta Manera, incidiram comprovadas inter
venções da direção do ICAIC que obrigou Alea a modificar situações e personagens considerados politicamente
inadequados. Ver Guevara, Alfredo. Tiempo de Fundación. Madrid, Iberautor, 2003, pp. 422-427.
22 A pouca eficácia da Ofensiva Revolucionária ficou patente no fracasso da safra de 1970, para a qual toda
população se mobilizou a fim de que Cuba atingisse a produção recorde de 10 milhões de toneladas de cana-
de-açúcar, meta não alcançada mesmo após inúmeros sacrifícios humanos e econômicos. Após essa derrota,
a necessidade de vínculo econômico com a URSS foi assumida pelo governo cubano.
202 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
23 Paranaguá, Paulo. “Diálogo y contemporaneidad en el cine de Jesús Diaz”. Revista Encuentro de la Cultura
Cubana* Madrid» n. 25, verano de 2002, p. 30. Ver: Miskulin, S. C. Os intelectuais cubanos e a política cultural
da Revolução (1961-75). Depto. de História - FFLCH-USP, Tese de Doutorado, 2005.
História e cinema 203
24 Tesis y Resoluciones. Primer Congreso delPCC. La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 1978, p. 468.
204 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
autonomia, essa foi uma medida impactante e gerou protestos de sua diretoria,
cuja relação com o governo, desde 1959, ocorria sem mediações.25
A política cultura adotada pelo Ministério da Cultura, sob o comando de Arman
do Hart, estabeleceu um pacto de tolerância com os intelectuais e artistas, no qual
imperava, entretanto, a prática generalizada da autocensura:26 as obras passavam
a ser previamente moldadas às formas e aos conteúdos permitidos pelo governo.
Este, por sua vez, se mostrava cada vez mais centralizado: apesar de haver separa
ção entre Estado, Governo e Forças Armadas, as direções desses três setores - e a do
partido único do país - estavam concentradas na mesma pessoa, Fidel Castro.
É nesse contexto que o filme A Última Ceia é produzido. Questões como
o centralismo e o autoritarismo (personificados pelo Conde), o difícil deba
te entre “intelectuais” de diferentes posturas (o padre, com seu dogmatismo
religioso, e Dom Gaspar, ateu e liberal, com inclinações filosóficas), a submis
são do discurso à prática política (diferentes usos da “palavra de Deus”), e a
impotência daqueles que têm consciência de que erros estão sendo cometidos
mas não podem agir (latente nas atitudes de Gaspar, na reação do feitor à pre
paração da ceia, ou na tentativa vã do padre em impedir o trabalho no feriado)
são temas que o espectador pode entrever no filme. Além dessas problematiza-
ções, são enfatizadas algumas proposições, como a importância da rebelião, da
consciência política, do aprendizado pela experiência, do domínio do discurso,
da liderança competente. Vejamos, mais detalhadamente» como essas e outras
questões estão internalizadas na obra.
25 Ver “La conveniência de conservar para el ICAIC su caracter de organismo nacional” (18/08/1976) e “El
artista es también, y ante todo, un protagonista. Arte es para nosotros, en gran medida y ante todo, eficacia”
(agosto/1976) in Guevara, A., op. cit., pp. 276-280,281-294.
26 Serrano, Pio. “Cuatro décadas de políticas culturales”. Madrid, Revista Hipano-Cubana. Versão eletrônica:
<www.hispanocubana.org/revistahc> consultada em 21/09/2004 (8 páginas), p. 6.
História e cinema 205
27 O período curto de filmagem, segundo Alea, resultou, em parte, da introdução de um novo sistema de
pagamento que consistia no seguinte estímulo para o aumento da produtividade no ICAIC: produzindo-se
em menos horas, se ganharia mais. Oroz, S., op. cit., p.152.
21 Efeito que Garcia Joya obteve sem dispor de uma película apropriada, explorando a tendência natural ao
ocre que o material positivo Orwo possuía. Idem,. pp. 149,151. Ver também Évora, J. A., op. cit. p. 42.
206 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
29 Analisamos as características e o papel desse grupo na música popular cubana em nossa pesquisa de
mestrado» publicada com o título Polifonia Tropical. Experimentalismo e engajamento na música popular
(Brasil e Cuba, 1967-1972). São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 2004.
30 Segundo Alea, o técnico açucareiro é a burguesia incipiente, propondo a exploração modernizada. É também
a má consciência do Conde, aquele que sabe por onde “caminham as coisas”. Oroz, S. ,op. cit., p. 147.
História e cinema 207
Davis, Natalie Zemon. Slaves on screen. Film anda historical vision. Cambridge, Harvard University Press, 2000.
208 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
chegando a chorar após narrar uma parábola sobre São Francisco. Esse estado
de ânimo se altera drasticamente no contexto da revolta: após a morte do fei
tor, o Conde arranca a peruca (despojando-se de sua fineza), e sua expressão se
transfigura. Ao dar-se conta de que seu discurso havia falhado e, mais que isso,
havia estimulado uma reação contrária a seu poder, assume ele próprio as rédeas
da repressão, função antes exclusiva do feitor. Perde a “piedade cristã” com os
escravos e discute com o padre, desferindo sem culpa duras avaliações sobre os
negros: “passaram toda a vida devorando-se uns aos outros e agora viram que
nossa carne é mais gostosa que a deles”. Sentencia, numa espécie de reação tardia
ao temor apresentado por Gaspar numa das primeiras cenas: “Aqui não ocorrerá
o que aconteceu em São Domingos”.
O Conde cai em sua própria armadilha ideológica: personifica a contradição
entre o discurso e a prática política, evidente nas ações da sacarocracia cubana e
também presente na linha assumida pelo governo cubano para com os intelectuais
considerados “independentes” (livres pensadores). A trajetória de seu persona
gem revela o processo de re-significação do discurso, dos valores e princípios,
quando o poder se encontra ameaçado.
Os escravos que participam da ceia, selecionados pelo feitor (com exceção de
Sebastián, único escolhido pelo Conde) são cuidadosa mente individualizados,
na segunda parte, através de diferenciações de personalidade, postura e do figu
rino, elaborado por Jesús Ruiz. Vale destacar que, com a exceção de quatro ou
cinco atores negros profissionais, boa parte do elenco foi constituída por atores
amadores ou não-atores, caso do escravo ancião, Pascoal, que entoa um cântico
afro bastante pungente, à mesa. Alea procurou tipos físicos variados para compor
os “doze apóstolos”, como se estes tivessem vindo de diferentes partes da África
(diversidade também existente na Santa Ceia bíblica). Para a correta caracteri
zação dos mesmos, contou com a consultoria de Rogelio Martinez Furé e Nitza
Villapol, encarregados de assessorar em questões de expressão corporal e lingua
gem, muito exploradas nos personagens Bagonchê, o ex-rei africano, e Congo,
espécie de bufão do grupo. Congo usa palavras do creole (apropriada pelos bo-
zales, os recém-chegados da África) e reproduz um jeito afrocubano de narrar,
que abusa da reiteração de termos (“cantina que cantina”, “Hora que Hora”) e da
ênfase expressiva. Apesar desses cuidados, a representação do mundo do escravo,
no filme, não fica livre de alguns estereótipos. Ainda assim, a pesquisa prévia e a
preocupação com os detalhes assinalados significaram, para a época, um avanço
na qualidade de tratamento dessa temática pelo cinema cubano.
210 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
5. A ceia indigesta
No filme, a Santa Ceia transcorre em meio a tensos diálogos e farta bebida, numa
longa seqüência de 55 minutos (quase em tempo real), que é considerada o ponto
alto, em termos estéticos e dramáticos, dessa obra de Alea. Durante a refeição, o Con
de conversa com vários de seus convidados, e em meio a essas conversas são contadas
histórias, surgem canções e gozações que, entretanto, não suavizam a sensação cons
tante de que algo vai sair mal, a qualquer momento. O espectador vive um grande
desconforto ao ser colocado como observador de um jogo no qual o que é dito se
contrapõe, muitas vezes, ao que é visto: enquanto o Conde discorre sobre as virtu
des da humildade e do sofrimento, por exemplo, as feridas, os olhares e a voracida
de com que os escravos devoram o alimento, servem de “contradiscurso”. No final
da seqüência, o adormecimento do Conde e a fala de Sebastián, que escutamos pela
primeira vez no filme, marcam o impasse colocado pela situação, e é um importante
ponto de virada, nessa narrativa. A cena termina com a saída do Conde, embriagado
e amparado por seu lacaio, enquanto os escravos ali ficam, dormindo.
Preparada e ensaiada durante 15 dias, de forma bem teatral, a cena conta com
uma cenografia inspirada na obra pictórica A Últinta Ceia de Leonardo Da Vin-
ci, feita especialmente para o refeitório dos frades dominicanos da Igreja Santa
Maria delia Grazie, em Milão. Essa pintura, concluída entre 1497 e 1499, tor
nou-se referencial em seu gênero pois além de suas qualidades estéticas, nela era
ressaltada, pela primeira vez, a tensão provocada por Jesus Cristo ao profetizar
que um dos ali presentes iria traí-lo. A questão do “livre-arbítrio”, muito cara aos
dominicanos, era valorizada por Da Vinci numa representação que se esmerava
em individualizar as reações, dúvidas e angústias dos apóstolos.
Na cena do filme, o Conde se situa ao centro da mesa e, como na pintura,
parece existir um especial significado para os que se sentam à sua direita e à sua
esquerda. Não que exista uma relação direta, entre a disposição dos escravos, e a
dos discípulos do quadro de Da Vinci: os apóstolos da ceia de Alea são caracteri
zados com certa liberdade, às vezes mesclando peculiaridades de um e de outro
numa mesma pessoa. De toda forma, há uma constante troca de lugares, que não
parece aleatória, e nos leva a supor algumas associações que ressaltam diferenças
e semelhanças. Comecemos pelos que se situam “à direita do Senhor”.
O lugar à direita de Cristo, na obra de Da Vinci e em outras Santas Ceias, é co-
mumente reservado a São João, apóstolo preferido por Jesus e o mais novo deles
todos, que tinha como característica a humildade, a virgindade e a devoção ex
pressa na predisposição de sofrer como seu mestre. Na mesa do filme, entretanto,
não são os escravos de maior confiança que se sentam ao lado direito do Conde,
História e cinema 211
gundos, temeroso, num gesto semelhante ao feito por Gaspar, no fim do primeiro
bloco do filme, quando Sebastián é mutilado e o técnico parece intuir alguma des
graça próxima. No momento da rebelião, Antonio, candidato a se tornar um Judas
de seus companheiros, tem uma atitude que revela sua possível intenção de salvar
a própria pele: tenta convencer Bagonchê de que ele, Antonio, deveria ser o porta-
voz dos demais na cobrança da promessa do amo (de que não trabalhariam na
sexta-feira), uma vez que este fazia caso de tudo o que ele dizia. Antes que sua ação
pudesse se concretizar, no entanto, seu destino, acaba sendo o mesmo dos outros
dez “apóstolos” negros e sua cabeça também é fincada diante de todos, no final.
Ambrósio é um escravo aparentemente dócil e fanfarrão, mas que usa de pers
picácia ao se aproveitar dos argumentos do Conde para fazer reclamações, como a
relacionada à nova moradia dos escravos.32 Após ouvir a parábola de São Francisco,
através da qual o Conde pregava a resignação, indaga ironicamente para confirmar
se havia entendido bem: “quando o feitor bate, o negro tem que ficar contente?”
Ambrósio, no final da ceia, alerta Antonio para a falsa generosidade implícita na
decisão tomada pelo Conde de que iria libertar o velho Pascoal, uma vez que este
não teria para onde ir. Por outro lado, demonstra acreditar que no dia seguinte
(Sexta-Feira Santa) não se trabalharia, conforme a promessa do Conde. Ambrósio,
apesar de certa inteligência, mostra-se reivindicador e ingênuo como os outros dois
que se sentam à esquerda. Uma alusão do diretor à ingenuidade das esquerdas?
Pascoal, o ancião, demonstra pureza e fragilidade: reclama das condições de
moradia, endossando a fala de Ambrósio, mas se mostra sinceramente grato ao
Conde quando ganha deste a promessa de liberdade. Esses dois escravos e Anto
nio têm em comum certa confiança nas palavras do Conde e o comportamento
reivindicatório (pedem, como vimos, alforria, melhor condição de vida e resti
tuição de privilégios). Alea parece valorizar, através desse trio, que tem o mes
mo trágico desfecho, a desconfiança política sempre necessária, condenando a
dependência do “favor”, tão presente na cultura cubana e na estrutura de poder
organizada a partir de círculos de influências, em que orbitavam as lideranças do
Partido Comunista e o líder máximo, Fidel Castro.
Mais que na composição de cada personagem, a crítica de Alea se faz por meio
das relações interpessoais que se estabelecem ao longo da ceia e, indiretamen
te, das quatro parábolas que são narradas. O empenho do Conde em ganhar a
confiança de cada um dos “discípulos”, parece referendar a orientação dada aos
senhores de escravos, em 1792: “O mais essencial a um homem destinado a co
mandar outros é não contradizer o conhecimento perfeito do caráter, costumes e
52 Nessa época, em Cuba, antigas choupanas, os bohíos, nas quais os escravos viviam mais isoladamente são
derrubadas para dar lugar a barracões coletivos, fechados e abafados, que facilitavam o controle da escravaria.
214 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
paixões deles (...) [os negros] embora grosseiros, são dissimulados, espertos e sa
bem confundir mesmo aquele que é mais hábil, até que um estudo aprofundado o
faça discernir o verdadeiro aparente do falso existente”.33 Ouvindo seus escravos,
e fazendo suas prédicas, o Conde consegue estabelecer um pacto de tolerância,
naquele momento. Entretanto, entre os escravos que aderem a seu discurso, há
aqueles que fingem ou buscam apreender os ensinamentos do Conde, para apre
sentar suas discordâncias e reivindicações dentro daquele código, sem quebrar o
pacto. Nada mais análogo, em nossa opinião, à situação dos intelectuais cubanos
em relação ao discurso revolucionário empreendido pelo governo.
As parábolas (a primeira e a última africanas, e as duas outras cristãs) tratam, res
pectivamente, do sofrimento negro como maldição e vontade divina, do exemplo
de São Francisco como modelo de resignação e fé; da celebração do Paraíso como
recompensa pela obediência; e da lenda sobre a Verdade e Mentira como necessidade
de desmascaramento do discurso, denúncia da falsa moral. A primeira delas é uma
espécie de fábula narrada pelo escravo Congo, explicando que os negros são predesti
nados ao sofrimento devido a um erro cometido por um pai, e que desencadeou uma
maldição: segundo a lenda, o pai pretendia vender seu filho como escravo mas este se
antecipa e vende o pai. A família, ao se inteirar, condena o filho, que é também vendi
do como escravo. Os demais membros dessa família acabam “comendo duas vezes”,
graças aos dois pagamentos recebidos na venda dos parentes. A vitória do interesse, os
limites da mesquinharia humana levando à autofagia (muito explorada por Alea no
seu filme seguinte, Los sobrevivientes) parecem estar em questão, nessa narrativa.
Congo é histriônico, canta e dança a sua história como se estivesse possuído, mas
afirma ao Conde que quando o escravo está a cantar, está a chorar, questionando a
“natural alegria de viver” argumentada pelo amo como evidência da aptidão do
negro para o trabalho pesado, em detrimento da fragilidade do branco. Parece ser o
mais ligado à cultura africana dentre todos eles e no final do filme, morre de forma
patética, tentando voar como um pássaro, como se invocasse o mito de Makandal.
A segunda parábola, narrada pelo Conde, conta um episódio da vida de São
Francisco e seu discípulo, Frei León. A moral da história prega que a verda
deira felicidade não consiste em ser livre, e sim em ter fé e sofrer resignada-
mente por ela, suportando todas as penas por amor a Cristo. A hipocrisia pre
sente no discurso demagógico, bem como a difusão da culpa como estímulo
ao auto-sacrifício, recurso ideológico tão presente na reiteração da mácula
” Poyen Ste. Marie. De Cexploitation des sucreries, ou conseils d'u vieux planteur auxjeunes agriculteurs des
Colonies (Ia ed., 1792) Pointe-a-Pitre, Isla Guadeloupe, Imprimeriede la République, An XI de la République
Française, pp. 18-19.) Apud Marquese, R., op. cit., (trad. do autor) p. 130.
História e cinema 215
Não se pode ignorar que um final claramente celebrativo, otimista, era um re
quisito exigido nos filmes do ICAIC, como já apontamos. Seja por essa necessida
de, ou por uma disposição do próprio Alea em saudar, sinceramente, a Revolução
- e desferir suas críticas não a esta “heróica luta” e sim à chamada “sovietização”
e aos rumos tomados pelo governo cubano após sua institucionalização - o final
não anula o potencial crítico, metafórico, que perpassa os diálogos ao longo de
todo o enredo. Mais que procurar traduzir a intenção do diretor (busca arris
cada, quando se trata de arte), nossa análise procurou mostrar o conjunto de
questões presentes na elaboração da obra e na sociedade cubana, no momento da
produção e da exibição do filme. O adensamento, num só filme, de tantos temas
e questões, estimulantes de vários tipos de debates, certamente contribuiu para
que interpretações diversas surgissem - e para que houvesse pouco interesse na
divulgação da obra, em Cuba.
O filme A Ültima Ceia, finalmente, ilustra a maestria que Alea demonstrou
durante toda sua trajetória em encampar - pessoal e institucionalmente - a ne
gociação com o poder, encontrando formas e brechas para proferir suas opiniões,
criticar e reafirmar seus princípios. O desencanto com o processo político insti
tuído após a Revolução nos parece evidente, e Alea o compartilhou com muitos
que mergulharam de corpo e alma na utopia cubana. Ainda assim, sua obra mos
tra a persistência do espaço de celebração da luta.
Entrelaçamentos:
Cabra marcado para morrer,
de Eduardo Coutinho
Não basta reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento passado para obter
uma lembrança. É necessário que essa reconstituição se efetue a partir de dados ou de noções
comuns que se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros...
M. Halbawchs2
Com o passar do tempo Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho,
tornou-se, para muito de nós, um marco decisivo na história do cinema brasileiro. Pa
rece essencial, preliminarmente, apontar para a ruptura que o filme representa, frente
a um conjunto de tendências anteriores do cinema documentário brasileiro moderno,
se quisermos compreender a razão da importância histórica que o Cabra adquiriu.
Cabra se distancia do chamado modelo sociológico de documentário, que im
pregnou a produção cinematográfica brasileira no curso dos anos 1960 e 1970, e
impunha aos registros documentais uma interpretação unívoca e exterior, encar
nada numa voz onisciente e impessoal,3 bem como de uma tendência posterior
do documentário brasileiro, que, como salientou Saraiva, ao buscar saídas para
a crise do “modelo sociológico”, enfatizava a impossibilidade do encontro com o
outro de classe e buscava romper com o desejo de referencialidade para trabalhar
no nível puramente significante da linguagem cinematográfica.
Não há no Cabra, como aponta Saraiva, uma renúncia do encontro com o ou
tro de classe, mas uma consciência da problematicidade desse encontro e uma
vontade de propiciar ao espectador uma reflexão sobre o seu significado.4
1 Henri Arraes Gervaiseau, professor da ECA-USP, documentarista, tem artigos publicados em revistas
brasileiras e estrangeiras e realizou diversos documentários, premiados no Brasil e no exterior, entre o quais,
o longa-metragem Em trânsito (2005).
2 Halbawchs, Maurice. La mémoire collective. Paris, PUF, 1968.
3 Para uma discussão desse modelo ver Bernardet, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo,
Editora Brasiliense, 1985.
4 Saraiva, Leandro. Comentários em torno de Cabra marcado para morrer. Mimeo. 1998.
220 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
O filme de Coutinho almeja, por outro lado, recuperar a visão dos derrotados ainda
anônimos da história, em contraposição a uma tendência do cinema documentário
brasileiro que privilegiava a crônica histórica dos grandes homens da república, mes
mo perdedores.56
Cabra diferencia-se também de outra vertente do cinema documentário brasi
leiro dos anos 1970, o documentário militante, em que tende a haver uma fusão
ou adesão não problematizada do ponto de vista do realizador com o ponto de
vista do grupo ou da comunidade retratada sobre a questão que discute.
5 Em um artigo anterior à realização da segunda versão de Cabray Bernardet havia salientado o peso
excessivo, na cinematografia documentária brasileira contemporânea, de filmes estabelecendo uma espécie
de crônica histórica dos vencedores. Cf. Bernardet, Jean-Claude. “Os anos JK, como fala a história" Novos
Estudos Cebrap, São Paulo, v. 1, dezembro 1981, pp. 32-36.
6 Veyne, Paul. Commenton écrit Ehistoire. Paris, Points Seuil, 1971.
7 Ver França, Andréa; Gervaiseau, Henri; Lins, Consuelo. "O cinema como abertura para o mundo:
introdução ao pensamento de Serge Daney”. Cinemais, 15, Rio de Janeiro» Janeiro/Fevereiro, 1999.
História e cinema 221
8 Novaes, Regina: “Violência imaginada: João Pedro Teixeira, o camponês, no filme de Eduardo Coutinho”
in Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, ano 2, n° 3,1996, pp. 187-207,191
9 Dosse, François. “La méthode historique et les traces mémorielles" in Morin, Edgar (org.). Le défi du
XXème siècle: relier les connaissances. Paris, Seuil, 1999, pp. 317-326 , part. p. 321
10 Ver Dosse, op. cit., pp. 321-322.
222 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
11 Alencastro salienta que todo historiador que utiliza fontes primárias “é levado a selecionar, organizar
e hierarquizar o material disponível sobre o tema que se propõe estudar. Nesse processo classificatório,
o historiador privilegia determinadas fontes, usa de outras de maneira secundária e negligencia as séries
documentais que, na sua avaliação, contêm dados insuficientes ou desapropriados ao enfoque de seu estudo.
A partir daí, seu trabalho passa a ser moldado, condicionado e até restringido pela natureza das fontes”.
Cf. Alencastro, Luís Felipe de. “Joaquim Nabuco: um estadista no Império”, in Dantas, Lourenço (org.).
Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo, Editora Senac, 1999, pp. 113-131, part. p. 122.
12 Ricoeur, Paul. “Histoire et mémoire" in Baecque, Antoine de & Delage, Christian. De 1'histoire au cinéma.
Paris» Editions Complexe. 1998, pp. 17-28, particularmente p. 26.
História e cinema 223
13 Por volta de oito horas mais ou menos, tavam vendendo já a Folha do Povo com toda a notícia, com
toda a reportagem dele, o pessoal tudo comprando. E dizia assim: “Rapaz, mataram o presidente da Liga
Camponesa na Paraíba". '
14 “E aquele nome surgia assim na notícia como se fosse uma grande pessoa” Quando ele pronuncia a
palavra “nome”, a inserção de novos recortes da imprensa vem confirmar suas declarações: “J. Pedro, herói
de nossa época", "Recife terá uma rua com o nome do líder assassinado em Sapé”, “João Pedro viverá”.
224 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
encontrava o ouvido cheio de terra, e o sangue era no chão um lago”. Ela permane
ce silenciosa por um instante, imersa em sua lembrança. O silêncio é rompido por
Coutinho, que salienta: “E eles nunca foram punidos, os criminosos, né?” Resposta
telegráfica de Elizabeth: “Nunca houve punição”. O silêncio se instaura novamente.
Close de Elizabeth silenciosa. Depois, panorâmica sobre a fotografia do cadáver de
João Pedro que parte da cintura e se fixa sobre seu rosto ensangüentado, olhos bem
abertos. Em seguida, retorno sobre o rosto silencioso e atento de Elizabeth.
Ao longo desse segmento da narrativa, quando Elizabeth está em quadro, pa
rece perceber, mais que olhar, o rosto de Coutinho - que se encontra no extra
campo. Ela baixa regularmente os olhos e aperta os lábios. O silêncio que envolve
suas palavras torna mais facilmente perceptíveis as sutis modificações dos traços
de sua fisionomia, que parece então condensar toda a intensidade do processo de
rememoração da lembrança. Para ela, talvez, nesse momento, de novo, o Sol es
friou. Mistério da opacidade de uma consciência que o cinema nos faz ver através
da imagem da meditação dessa mulher, no intervalo da visão de duas fotografias
do cadáver de seu marido assassinado 19 anos antes.
“Para se fixar”, salienta Eric Pedon, “a memória de um acontecimento parece
funcionar do modo de uma parada fotográfica e não segundo uma duração fílmica;
ela repousa mais sobre imagens emblemáticas do que sobre fluxos de imagens.”15
De fato, a memória do assassinato de João Pedro parece se condensar nessa
imagem emblemática de seu corpo morto. Observemos que esse arquivo fotográ
fico, que resume um momento histórico, está integrado a uma duração fílmica.
A riqueza paradoxal dessa cena é constituir uma pausa na duração da narrativa e,
simultaneamente, de nos dar a sensação da passagem do tempo.
15 Ver Pedon, Eric. “Image photographique et mémoire dans le film documentaire”. Champs Visuek> n° 4,
Paris, fevereiro de 1997, pp. 101-108, particularmente, p. 102.
História e cinema 225
Mas “acontece ...que os fiéis, quando se encontram após a provação, não são
mais os mesmos do início”.16 Para Coutinho, o problema parecia ser então, para
poder relatar essa evolução, de tentar observar as diferentes modalidades indivi
duais de passagem existencial do tempo e assim acompanhar, por meio da coleta
dos testemunhos, “a trajetória de vida de cada um dos participantes do filme,
desde a interrupção da filmagem até hoje”.17
A coleta de pontos de vista heterogêneos devia, assim, privilegiar, em um pri
meiro nível, a dimensão comum da experiência da comunidade formada pelos
antigos atores do filme e, em um segundo nível, o aspecto diferencial de suas
trajetórias. Não se tratava, então, mais, simplesmente, como no projeto antigo, de
relatar fatos passados sob uma forma estruturada cujo processo de composição
precede o instante decisivo da filmagem, mas de provocar uma série de encontros
entre o diretor e os protagonistas do primeiro Cabra marcado para morrer a fim
de estabelecer um conjunto de relações entre o universo antigo da filmagem e a
atualidade de suas vidas.
Dois níveis de relação são assim colocados: em um primeiro nível, as relações
suscetíveis de serem estabelecidas entre a história de J. Pedro e a do projeto do
filme antigo, com sua trama, seus personagens fictícios, seus atores e seu diretor;
e, em um segundo nível, as relações que unem o universo antigo ao presente da
filmagem do novo filme, com seus personagens reais e seu diretor. A descoberta
dessas relações permitirá o estabelecimento de uma série de trajetórias e, assim,
a constituição de uma narrativa.
16 Schwarz, Roberto. “O fio da meada”, in Que horas são? Ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 1987,
pp. 71-78 (part. p. 72).
17 Trecho do texto em off dito pelo realizador, no início do filme.
18 Candau, Joel. Anthropologie de la mémoire. Paris, PUF, 1996, p. 22.
19 Cf. Kant, Emmanuel. “Anthropologie d’un point de vue pragmatique, lère partie”, I, 34, in Oeuvres
Philosophiques III. Paris, Gallimard, 1986. Apud Candau, op. cit.» p. 31.
226 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
No curso da preparação da filmagem de seu novo projeto, ele vai, muito logi
camente, ser levado a refletir sobre as condições de coleta dos depoimentos dos
membros do grupo. Dessa reflexão concreta sobre a ocasião da evocação das lem
branças nascerá a idéia, central, da organização de uma projeção das rushes dos
restos do filme antigo para seus antigos atores.
Como aponta de Certeau, a memória permanece escondida» sem lugar iden
tificável, até que ela se revela “no momento oportuno”. Segundo ele, a memória
se mobiliza em função do que acontece» no instante do encontro com o outro» e
deve sua força de intervenção à sua capacidade de ser alterada.20
Coutinho vai fornecer a ocasião» o momento propício, ao lembrar para o grupo,
alguns desses elementos comuns de uma memória subterrânea, parte integrante
de uma cultura minoritária e dominada. É o sentido da identidade coletiva e de
grupo que está em jogo no processo de rememoração.
Coutinho vai estimular a memória de seus interlocutores, no presente» ofe
recendo, de um lado, o acesso à visão de imagens do passado e» de outro,
favorecendo» por meio de uma escuta atenta, a emergência de uma palavra,
que surge através de uma série de diálogos intersubjetivos, apelando para um
tipo de memória que Goody denomina memória geradora ou construtiva» que
se desenvolve essencialmente a partir da palavra e autoriza uma grande liber
dade na evocação do passado, que tende tanto a interpretar quanto a repro
duzir.21
Notemos que a maior parte dos depoimentos que Coutinho recolheu são nar
rativas de vida, e que essas não devem, como o indica Pollack, ser considerados
como simples narrativas factuais, mas sobretudo como instrumentos de recons
trução da identidade dos sujeitos.22 Convém observar que se as narrativas de vida
recolhidas são individuais, a memória a instituir é coletiva e que aí reside o prin
cipal desafio da nova abordagem escolhida. Veremos, a seguir, de que maneira
Coutinho soube responder ao desafio colocado.
Cabe ressaltar que uma dupla convicção parece guiar a busca do cineasta: o aces
so à memória das imagens do passado contribui para a emergência, no presente»
dos testemunhos orais dos sobreviventes do grupo; e é a exploração das relações
20 “A memória... sobre o modo do momento oportuno (kairos)... produz uma ruptura instauradora". De
Certeau, Michel. LInvention du quotidien /1: Arts de Faire. Paris, UGE, 10-18, p. 161.
21 Goody, Jack. La logique de Fécriture. Aux origines des sociétés humaines. Paris, Armand Colin, 1986. Se tal
acontece é que, como afirma Candau, “toda anamnese é de fato uma reconstrução tributária ao mesmo
tempo da natureza do acontecimento rememorado, do contexto passado desse acontecimento e daquele do
momento da rememoração". Cf. Candau, op. cit., p. 101
22 Cf. Pollack, MichaeL “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos históricos, vol. 2, n° 3, FGV/Rio de
Janeiro, 1989,3-15, particularmente, p. 13.
História e cinema 227
23 Bastide, R. “Mémoire collective et sociologie du bricolage”, Bastidiana, 7-8, julho/dezembro de 1994, 209
242, apud Candau, op. cit., p. 66.
24 Novaes, op. cit., p. 191.
25 Ao levar a sério a fala dos personagens, Coutinho reconhece neles uma competênâa própria a analisar sua
situação. Dosse observa que com a mudança de paradigma que marcou a historiografia ocidental no final do
século XX, parece emergir uma nova abordagem das relações da ordem do particular com a ordem do geral, e
sublinha, nesse contexto, que “captar o processo de generalização em vias de se realizar pressupõe levar a sério
a fala dos atores, reconhecer neles uma competência própria a analisar sua situação. Ver Dosse op. cit., p. 319.
228 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Notemos, por outro lado, que a inserção da voz em off do realizador tem, no
filme, uma função essencialmente informativa: o texto em o/jfdito pelo realizador
tem por objetivo informar o espectador sobre a gênese e as razões da interrupção
do projeto antigo bem como datar e contextualizar o seu gesto criativo, estimu
lando a reflexão do espectador sobre a sua historicidade-, fornecer, por meio de
um testemunho pessoal, um complemento de informação sobre a trajetória dos
personagens; e explicitar as circunstâncias atuais da filmagem.26
26 Convém salientar a explicitação constante ao longo do filme das formas de realização da filmagem:
informações sobre as condições de realização das entrevistas, aparição do realizador e de sua equipe no
campo da câmera, inclusão de suas perguntas etc.
História e cinema 229
Comecei nossa conversa mostrando as oito fotografias de cena que sobraram da fil
magem.” Quando Coutinho inicia sua segunda frase» vemos, em pleno quadro» duas
dessas oito fotografias: um plano próximo do rosto de Elizabeth e depois um plano
de conjunto da família Teixeira atravessando um rio, com valises à mào.
Notemos que esse segmento introdutório permite ao espectador ter uma idéia do
estado de clandestinidade no qual Elizabeth se encontrava havia longos anos. É no
curso dessa seqüência que essa clandestinidade vai começar a ser desmontada.27
No fim do filme, Elizabeth lembra essa primeira entrevista com Coutinho:
Fiquei 16 anos, o Carlos nunca tinha... o Abraão nunca tinha vindo aqui, nunca houve
oportunidade dele vir... e vocês, e eu fiquei muito emocionada com a chegada» né. Eu não
esperava uma coisa assim. Ele telefonou e disse que viajava para cá. A menina ouviu o telefone,
falou pra mim que vinha ele, outro irmão e o Carlos, vinha os três irmãos. Aí quando chegou
aqui, disse: não, vem, já Carlos chegou: não, mamãe, quem vem é o Coutinho aí com os meninos
do repórter. Ih! eu digo, Nossa Senhora: o que está acontecendo? Fiquei assim... emocionada...
O trecho citado permite precisar a natureza do encontro que nos vai ser dado
ver. Não se trata simplesmente, na cena que vai se seguir, de um simples reencontro
de Coutinho com Elizabeth, mas também de Elizabeth com seu filho mais velho.
Abraão não a via desde 1964. Entretanto, ele era até então o guardião do segredo do
esconderijo de sua mãe. Essa função familiar de proteção da clandestinidade da mãe
explica em boa parte sua atitude inicialmente apreensiva durante a cena seguinte.
Não há verdadeiramente jogo de perguntas e respostas nessa primeira entre
vista, mas uma escuta atenta da eventual emergência de uma palavra em seguida
à apresentação das fotos da antiga filmagem. O cineasta não interroga aqui, ele
não faz senão responder às interpelações dos presentes, isto é, essencialmente, às
interpelações de Elizabeth e de Abraão.
Esse primeiro encontro ocorre no espaço fechado de uma sala, do qual só é reve
lado um fragmento. O retraimento espacial do quadro e a duração dos planos acen
tua a densidade dramática da cena.28 Notemos que na maior parte dessa cena a câ
mera se concentra na figura de Elizabeth. Como a primeira intervenção de Abraão
é inesperada, ele permanece fora de campo. Mais tarde, quando ele intervém um
pouco mais longamente, a câmara acompanha, em pleno quadro, seu discurso.
No início da cena, vemos Elizabeth olhar, com muita atenção, as fotos da filmagem
levadas por Coutinho. O silêncio só é rompido pelos sons do local. Elizabeth está
desconcertada, confusa, tomada de surpresa pela visão desses instantes congelados de
um tempo antigo que parecem, como ela, se encontrar estáticos. Depois que Elizabe
th vê as fotos, elas circulam de mão em mão na pequena assistência que a cerca.
Notemos que a inserção, ao longo das sequências precedentes, de imagens fixas
- recortes de jornais e fotografias - era essencialmente ligada ao seu valor de
prova, enquanto sua incorporação à cena visa, aqui, em primeiro lugar estimular
a emergência das lembranças de Elizabeth e, em segundo lugar, oferecer aos indi
víduos presentes na sala a possibilidade de ver com seus próprios olhos os traços
históricos de um passado que permanecera até então secreto.2930
A emoção que parece se apossar, imperceptivelmente, de Elizabeth, é ligada,
sem nenhuma dúvida, à excepcional densidade das lembranças familiares e co
munitárias que a assaltam. Após esse breve momento de recolhimento, ela per
gunta a Coutinho onde ele encontrou as fotos. Ele explica que o fotógrafo do
filme as salvou. Elizabeth diz que ela admira isso, depois Coutinho termina sua
explicação. Abraão, em off, interrompe a conversa e pede a sua mãe que reconhe
ça a abertura política do governo Figueiredo.
Como Novaes já observou, se Abraão interrompe sua mãe é por que ele está
inquieto ante os riscos que a visita de Coutinho e a expressão pública da palavra
de sua mãe poderíam constituir para sua família?0
Elizabeth parece, de início» se limitar a atender ao desejo do filho:
É, graças a ele [o presidente Figueiredo] eu estou aqui hoje com a presença de vocês, né, que
estão aqui. Porque foi o único governo que ele merece, né, toda a dignidade nossa de tê dado este
amplo direito de que todos os presos políticos que se encontrava fora do Brasil voltar a encontrar
com seus familiares. E hoje me encontro aqui ao lado de meu filho, me avistando com você aí, o
Coutinho, hoje, que eu nunca esperava você hoje está aqui na minha residência, não é?
29 Enquanto a maioria das fotografias incorporadas ao filme ocupa quase sempre o conjunto da superfície da
tela, a maior parte das fotografias apresentadas nessa seqüência são encravadas, não ocupam senão uma parte da
superfície da tela e aparecem como objetos pertencentes ao espaço diegético. Sobre esse ponto. Ver Pedon op. ciL
30 Ver Novaes, op. cit., p. 205.
História e cinema 231
Há 16 anos... eu tive que fugir pra aqui... não podia conseguir ficar ali no Recife. Quando
cheguei aqui aí a coisa melhorou mais, né, sobre a perseguição, eu escondia, ninguém sabia
quem eu era, ninguém sabe aqui quem sou eu. Hoje esse pessoal que tá aqui tudo tá sabendo,
né vocês estão aqui tudo tão sabendo. Eu cheguei pra aqui eu dizia... eu não ia dizer que tinha
filhos. Algumas pessoas que depois eu tomei intimidade foi que eu disse assim: eu tenho
filhos, eu sou viúva, meu marido foi assassinado. Mas antes eu era caladinha, não dizia nada,
calada, assombrada. Mas graças a Deus hoje estou aqui, né, contando a história...
31 Retomamos aqui por nossa conta, em outro contexto, as observações de Pollack sobre a emergência de
uma memória do sofrimento na URSS, quando do início da perestroika. Ver PoUack. op. cit., p. 4-5.
232 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
protesto, essa minha veemência, essa verdade que falta à capacidade intelectual e
expressiva do coração de minha mãe...” Ouvimos então a voz de Coutinho, extra
campo, que lhe responde: “Estará registrado, te garanto”. - notemos a honestidade
do cineasta que cede, aqui, literalmente, tempos de palavra. - Elizabeth concorda
com a cabeça, permitindo a Abraão concluir: “Nenhum presta para o pobre.” A
essas palavras, Elizabeth, ela mesma “pobre” sem “proteção política”, até então
silenciosa, põe a mão na cabeça e diz: “Nenhum!”.
Guedes, que analisa essa cena com grande minúcia, destaca justamente a sua
ambigüidade sem, entretanto, a caracterizar.3233 Pensamos, ao contrário do que
Guedes parece, em parte, sugerir, que ela não se deve tanto à posição do cineasta,
que se esforça por expor essa ambigüidade, mas sobretudo à situação histórica
em meio à qual todos os participantes se encontram presos. De fato, no momento
da filmagem da nova versão do filme, o Brasil se encontrava ainda em uma fase
de transição entre a ditadura militar e a democracia. E é a ambigHÍdade-cflracte~
rística desse período de transição, em que a anistia foi concedida por um general
presidente, que parece assim se inscrever no próprio drama do reencontro.
32 Ver Guedes, João Januário. Figuras do real: a história do Brasil na arte do cinema. Dissertação de mestrado
em Comunicação. ECO-UFRJ, Rio de Janeiro, pp. 97-103.
33 Novaes, op. cit., p. 200.
História e cinema 233
A luta pplítica, o assassinato do marido, o projeto ordinal do filme como aliança entre
camponeses e intelectuais, a perseguiçãoaj^s o golpe, a clandestinidade, a perda do^ filhos que
dispersam-se e vêm para o sul em busca de trabalho no bojo da modernização conservadora,
e, finalmente, a delicada e incompleta retomada dos direitos civis na abertura democrática:
por tudo isto, a vida de Elisabete e de sua família pode ser ligada, passo a passo, ao percurso da
nação, dos movimentos sociais pré Golpe à Abertura. E o filme combina a lógica narrativa de
busca do passado, baseada em evento que se produz, único, e a apresentação dessa vida, vivida
no olho do furacão, que vai se revelando, como poucasjjjrnasíntese^de-sua-época?5
34 Xavier, Ismail. “A personagem feminina como alegoria nadonal no cinema latino-americano" Balalaica, n. 1, p. 90.
55 Saraiva, op. cit., pp. 16-17.
36 Dor que, segundo Aumont, “me faz ser, ser a mim mesmo e em mim mesmo, e ser ao outro”, dor que entra
em mim para me mudar. Ver Aumont, Jacques. Amnésies. Fictions du cinéma d’après Jean-Luc Godard. Paris,
Éditions Pol, 1999, p.182,184.
234 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
do luto em seu corpo, ela não sente essa dor individual como sendo particularmente
de sua pessoa. Ela mostra, muito pelo contrário, em diversas ocasiões, que tem plena
consciência de ser uma sobrevivente e que, então, a dor sentida individualmente não
passa de uma forma singular de expressão de um sofrimento coletivo que a excede
- ponto sobre o qual voltará com força com José Francisco ao fim do filme.
Ojercdrp movimento ocorre ao fim da sessão de projeção quando, depois de
ter visto algumas imagens do tempo passado, diversas dimensões de sua história
pessoal parecem poder encontrar um primeiro ponto de convergência: Elizabeth,
ri de reencontrar as representações fragmentárias de sua história; ri da possibili
dade reencontrada de enunciar seu próprio nome.
O quarto tem início no começo da seqüência seis, quando Elizabeth faz uma reflexão
sobre seu primeiro encontro com Coutinho e identifica seu projeto de reconstituir a
história de sua vida. A alegria que ela exprime nessa ocasião parece ter por base uma
consciência difusa do resultado possível dessa reconstrução. Além da evocação frag
mentária de instantes passados, o exercício da narrativa de vida, que se realiza ao longo
das seqüências seis, oito e nove lhe permite, de fato, operar uma verdadeira recompo
sição de sua identidade social e pessoal, na medida em que ela estabelece uma revisão
metódica das diferentes etapas de sua trajetória de casal, de viúva de dirigente assassi
nado e de militante sindical perseguida, ao mesmo tempo que retraça o contexto global
no qual essa trajetória se desenvolveu. Como salienta com muita justiça Ricoeur, “antes
da troca da linguagem, da troca da narrativa, existe apenas a dispersão de uma vida que
só encontra sua conexidade, sua coesão na conexão narrativa, que é pública”.37
O movimento final da metamorfose tem início no começo da seqüência onze, por
ocasião de novos encontros: quando Elizabeth lembra a pluralidade dos papéis sociais
que ela exerce, no presente, em Sapé; depois quando a vemos escutar as vizinhas mani
festarem suas opiniões ante a tomada de consciência do seu sofrimento. O movimento
se torna mais intenso na cena seguinte, quando José Francisco fala, ele também, da
experiência de seu encontro com ela, e comunica os frutos do diálogo privilegiado
estabelecido, salientando a dimensão coletiva e histórica do sofrimento vivido.
A metamorfose acaba, na trajetória composta pelo filme, na penúltima cena,
quando Elizabeth, agitando os braços, estabelece a ligação entre as lutas do pas
sado e as do presente no contexto de uma estratégia de luta para o futuro.
Observemos que a metamorfose de nossa heroína foi favorecida pela qualidade
da escuta do cineasta que, nas diversas entrevistas que teve com ela, soube se co
locar em seu lugar, em pensamento - sem tentar anular a distância que o separava
dela - e associar uma disponibilidade total a sua pessoa, uma submissão a singula
38 As expressões em itálico utilizadas nesta frase foram retomadas de P. Bourdieu. Cf. Bourdieu, P. (org.). A
miséria do mundo. Petrópolis, Editora Vozes, 1999, particularmente, p. 695 e 699.
39 Novaes, R., op. cit., p. 193.
40 A compreensão das razões desse exílio da dimensão individual na esfera do psicológico, no cinema
brasileiro contemporâneo de ficção interessado na discussão dos nossos anos de chumbo, escapa, entretanto,
aos limites do presente texto.
O Desafio:
filme reflexão no pós-1964'
1 Este artigo é um resumo dos capítulos 1 e 2 de minha dissertação de mestrado em História, defendida junto
ao Programa de Pós-graduação em História da USP, em 1995 (O Desafio: e as vicissitudes político-culturais
das esquerdas no pós-64). Optei por não acrescentar e nem modificar em essência o texto original, pois
passados dez anos de sua defesa, muita pesquisa já foi desenvolvida a partir do tema e intervir significaria
produzir um outro trabalho.
2 Mestre em História Social pela USP e doutoranda em História Cultural pela UNICAMP (2006).
Professora da Faculdade Cásper Libero e pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) da
mesma faculdade.
238 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
3 Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo, Atica, 1990, caracteriza o período como
sendo o de revisões radicais; Buarque de Hollanda, Heloísa, Impressões de Viagens. CPC, Vanguarda e Desbunde:
1960/70. São Paulo, Brasiliense, 1980; Galvão, Maria Rita & Bernardet, Jean-Claude, Cinema: Repercussão em
Caixa de Eco Ideológico. São Paulo, Brasiliense, 1983; Magaldi, Sábato, Um Palco Brasileiro: o Arena de São Paulo,
São Paulo, Brasiliense, 1984, entre outros, caracterizam esse período como o das revisões político-culturais. O
texto que é um marco desta análise é de Schwarz, Roberto. “Cultura e Política» 1964-1969” in O Pai de Família
e Outros Estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
4 O nacional-populismo foi desenvolvido no final da década de 1950 como uma proposta de intervenção estético-
ideológica a estimular o processo de conscientização na sociedade brasileira. Pretendia intervir didaticamente
a partir da produção artística para a conscientização revolucionária socialista na sociedade brasileira. Dentre
autores pode-se citar obras de Oduvaldo Vianna Filho, Sérgio Ricardo, Leon Hirszman, entre outros.
5 Foi o caso dos intelectuais envolvidos com o CPC-UNE. A esse respeito, consultar Roberto Schwarz, op.
cit; Maria R. Galvão, op. cit.; Heloísa Buarque de Hollanda, op. cit.
História e cinema 239
6 Sobre a divisão da esquerda e a análise desse “racha" feito através da representação partidária (clandestina,
evidentemente), consultar Daniel Aarão Reis Filho, As Organizações Comunistas e a Luta de Classes -1961/1968,
tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo, 1987. Convém ressaltar que esse trabalho não
aborda a facção católica das esquerdas, como JUC e afins. Não se pode esquecer que nem todos se filiam
a partidos políticos, sendo eles clandestinos ou não. A tese foi publicada mas não seu conteúdo completo,
apenas a conclusão e partes de capítulos: A Revolução Faltou ao Encontro: Os comunistas no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1990. Consultar também Gorender, Jacob, Combate nas trevas, São Paulo, Ática, 1994.
7 Maria Rita Galvão, op. cit.
240 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
8 A postura do CPC em relação ao Cinema Novo e toda a discussão surgida entre eles toma outros rumos
quando a direção do CPC deixa de ser exercida por Carlos Estevam Martins e passa para as mãos de Ferreira
Goulart. Consultar, sobre essa questão, Maria R. Galvão, op. cit.; e Heloísa Buarque de Hollanda, op. cit.
9 Sobre essa opção cepecista e, ainda, as polêmicas entre as diferenças estéticas existentes contra os
cinemanovistas, pode-se consultar: Xavier, Ismail. Sertão Mar, São Paulo, Brasiliense, 1981.
10 Apesar de pensar e falar em termos de “grupo”, o Cinema Novo, na verdade, nunca foi homogêneo. Há diferenças
internas nas posturas tomadas, principalmente em relação àqueles cineastas que participaram do CPC. Paulo César
Saraceni foi reconhecido por Glauber Rocha e, conseqüentemente, pelo restante do “grupo", por estar presente em
sua obra a questão autoral, e esse é o ponto fundamental que caracterizava o Cinema Novo. Além disso, Glauber
Rocha imputava a Saraceni, Gustavo Dahl e Joaquim Pedro de Andrade o primeiro encaminhamento teórico às
concepções do Cinema Novo, pois a comunicação que mantiveram na Europa, enquanto estudantes (Gustavo Dahl
e Saraceni na Itália, com bolsa de estudos para um curso de aperfeiçoamento cinematográfico, e Joaquim Pedro na
França), concretizaram mais firmemente seus ideais, impondo um aperfeiçoamento teórico ao movimento.
História e cinema 241
não seria sua preocupação; o povo brasileiro deveria ser seu tema; e, principalmente,
haveria um autor por trás do produto final. É a chamada “Estética da Fome”,11 de
fendida em forma de manifesto por Glauber Rocha, e que sintetizou em um progra
ma as experiências já realizadas pelos cineastas do Cinema Novo. Esse “manifesto” é
posteriormente defendido pelos cineastas do grupo do Cinema Novo no Brasil.12
O “cinema de autor” foi a questão fundamental do Cinema Novo. Para o grupo,
o diretor cinematográfico é um artista criador que defende a arte partindo de uma
óptica individual, como já acontecia no cinema europeu. A diferenciação entre am
bos está na postura de arte contestadora e política defendida pelos cineastas bra
sileiros. No cinema europeu, essa não foi uma característica marcante e, muitas
vezes, nem sequer uma preocupação, como no caso da Nouvelle Vague.
Na primeira fase do Cinema Novo, a temática da produção desenvolvia o dis
curso da crítica político/social representado a partir da estética cinematográfica
proposta, na qual a “revolução” deveria ser urgente e a esperança de mudanças
estruturais poderia ser dada como concreta. A obra canônica desse período é
Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
Após o golpe de Estado de 1964, esse mundo ideal começou a ruir, um novo motivo
passou a ser explorado. O olhar era dirigido, até então, ao campo. Pensava-se que o
ideal revolucionário deveria se expandir a partir da crise da terra, sendo a temática
rural predominante no cinema da primeira fase. Após o golpe de Estado surgiu o ur
bano como novo assunto, - aliás, para o mundo intelectual urbano -, pois, apesar de
ter havido uma produção anterior de filmes que abordava a questão urbana, ela não
estava preocupada com auto-avaliações» no que tange à intelectualidade. Essa nova
abordagem buscou compreender o fracasso da avaliação dos intelectuais em relação
ao frágil potencial revolucionário da população. Mais ainda, a compreensão da facili
dade obtida pelos “golpistas” em assumir o governo sem encontrar resistência.
O Desafio foi a primeira obra cinematográfica a absorver e trabalhar estetica
mente o impacto de um mundo em ruínas. O filme é a análise de um momento e
de sua dinâmica interna, que deduz a historicidade do real. Expressa uma noção de
história que conduz a um tempo determinado - o momento imediatamente poste
rior ao golpe. Não ofereceu respostas aos impasses criados pela ruptura política.
Realizado em 1965,0 Desafio foi filmado em catorze dias. Não houve tempo para
uma elaboração com perfeição, nem esta foi a proposta da produção. A obra, con-
" Rocha, Glauber. “Estética da Fome”. Revista Civilização Brasileira, n. 3, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1965.
12 Xavier, Ismail. “Do Golpe Militar à Abertura: a Resposta do Cinema de Autor”, in O Desafio do Cinema: a
Política do Estado e a Política dos autores, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985; e Buarque de Hollanda, Heloísa
& Gonçalves, Marcos A. Cultura e Participação nos Anos 60. 8 ed. São Paulo, Brasiliense, 1990.
242 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
tudo, é rica na percepção do mundo ao seu redor, com olhos para o que acontecia
como reação àquela nova situação política. Ao longo do filme encontram-se refe
rências a várias outras produções culturais contemporâneas, em clara opção por
refletir sobre as propostas ali existentes, questionando-as e situando-se em meio
ao que até então havia sido realizado, repensando o que se poderia encaminhar.
Apresentou questões e expressou a apoplexia diante de tudo. A intenção foi realizar
um balanço sobre o que estava se efetivando, questionando o que se produzia cul
turamente e criticando os rumos dessa produção. Sua estréia foi em 1966, depois de
meses em processo de análise da censura federal.
Em entrevista a O Jornal, em janeiro de 1966, Paulo César Saraceni explicou
como a produção do filme foi realizada. Em fins de 1963, ele enviou um roteiro à
Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica (CAIC), RJ,13 e sua aprovação
ocorreu somente em outubro de 1964. Como se passou muito tempo, resolveu
aproveitar a experiência de ter filmado Integração Racial, um média-metragem
nos moldes do Cinema Verdade,14 substituindo-o por O Desafio.
O financiamento foi concedido para um filme cujo enredo contava a história da
“Fera da Penha”. Com a demora na liberação da verba, Saraceni se desinteressou
pelo tema, pois a mudança política o instigou a elaborar novos projetos. O roteiro
de Fera da Penha foi substituído por O Desafio, sua aprovação contou com o aval do
crítico de cinema Cláudio Mello e Souza» integrante da diretoria da CAIC. A verba
fornecida pela CAIC foi suficiente apenas para a compra do filme. Seria necessário»
ainda» outro produtor para que a equipe de filmagem fosse paga. O socorro partiu
de Sérgio, irmão de Paulo César Saraceni, que contraiu um empréstimo bancário e
forneceu o restante do dinheiro. Assim o filme começou a ser rodado.
O elenco que encenaria Fera da Penha foi convidado para participar do novo pro
jeto. Nelson Xavier, que seria o protagonista, recusou-se a participar. Em seu lugar
foi chamado Oduvaldo Vianna Filho. Sua indicação para protagonista foi sugerida
por Glauber Rocha. O restante do elenco foi formado por Luís Linhares, Hugo Car-
vana e Joel Barcelos, além de Isabela (mulher do diretor) e Sérgio Brito.
Durante as filmagens, o ambiente não foi dos mais favoráveis, pois Isabela e
Saraceni desentendiam-se freqüentemente. Vianninha foi reconhecido por Sa
raceni como de grande ajuda na elaboração dos diálogos, já que eles foram, em
grande parte, improvisados durante as filmagens. As falas de Marcelo foram ela
13 Ramos, José M. O. Cinema, Estado e Lutas Culturais. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983; Simis, Anita. Estado
e Cinema no Brasil. São Paulo, Annablume, 1996.
N O Cinema Verdade era feito com câmeras leves e som acoplado. As entrevistas feitas apareciam quase
totalmente, sem os cortes característicos da montagem. O discurso proposto era da não montagem, assim seria
possível obter um discurso mais “verdadeiro”. Talvez seja esta a origem da designação (duvidosa) do termo.
História e cinema 243
15 A fortuna crítica elencada para a dissertação de mestrado está repleta de artigos de periódicos que debatiam
o filme, surgindo uma divisão particular nessa discussão. As criticas realizadas no Rio de Janeiro, próximo
da atuação maior dos cepecistas, (como o próprio Vianninha, que renega O Desafio), em geral, rejeitam o
filme, já a recepção do mesmo em São Paulo, a partir de Paulo Emílio Salles Gomes e Francisco Luiz de
Almeida Salles (conhecido como o “presidente”, crítico d’O Estado de S. Paulo), elogiam-no. Consultar o
terceiro capítulo da dissertação, para melhor compreender essa dicotomia e seu debate.
244 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
16 Xavier, Ismail. A alegoria do desengano, tese de livre docência apresentada na ECA/USP, 1989, pp. 4-6.
Publicada como Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo,
Brasiliense, 1993.
História e cinema 245
golpe militar de 1964.0 que se evidencia ao primeiro contato com o filme é o caráter
quase documental dado às produções culturais de “protesto”. O filme está recheado
de citações de livros, peças teatrais e canções, mas o destaque é a inclusão do espetá
culo Opinião, apresentando Zé Keti e João do Vale, com a estréia de Maria Bethânia
na região Sul-Sudeste do país, cantando “Carcará”. Essas citações, evidentes como no
caso de Opinião, ou não tão evidentes, como no caso de Arena Conta Zumbi detectada
através de uma canção, ou da peça Liberdade, Liberdade, citada através de um cartaz,
mostram o que se produz antes do golpe e o que se passa a fazer depois dele.
Quando se ouve a trilha sonora de O Desafio, pode-se dar conta do universo
multifacetado que encontramos nessa época, pois ali estão representadas as di
versas facções que se entrecruzavam até então. Ocorrem dois movimentos distin
tos quando se atém à trilha musical do filme. Ela é permeada pela Música Popular
Brasileira da época, pelas canções que mantêm a influência direta da Bossa Nova.
A outra vertente caracteriza-se pelas derivações causadas pelo tipo de canção de
senvolvida no CPC, radicalizada e convertida em canção de protesto. Ou seja,
O Desafio utilizou-se das duas ramificações originadas na Bossa Nova: a que
manteve a linha original e a que derivou em protesto. Entende-se como sendo a
“original”, aquela que conjugava os avanços harmônicos, melódicos e temáticos
intimistas que são exploradas pelas primeiras canções de Tom Jobim, Vinícius
de Moraes, Roberto Menescal, Ronaldo Boscoly e Carlos Lyra. Este também se
envolve na produção dita engajada realizada pelo CPC, produzindo canções de
caráter ideológico, prezando os avanços harmônicos e melódicos obtidos na BN,
mas usando como tema questões sociais e políticas, caras aos cepecistas, forma-
mdno parcerias com Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e outros
intelectuais e artistas do CPC, como Geraldo Vandré.
As personagens possuem como base de caracterização o encontro dessas dico-
tomias artísticas. Assim, as canções e referências que permeiam Ada têm como
universo musical a produção pré-1964, enquanto com Marcelo, o engajamento,
seguido de protesto, das canções de cunho político ideológico é o que predomi
nam. Marcelo é o “intelectual de esquerda engajado” e Ada, seu contraste, pois
permanece com suas questões pessoais, classificadas na época como “alienadas”
(seu filho, sua vida amorosa, seu marido etc.), entretanto, o enfoque sobre essa
personagem, longe de ser depreciativo» é apresentado afetuosamente.
O processo de sobreposição de informações artísticas, em que surgem referências
várias à produção do momento, permeia toda a obra. Assim, comentários são reali
zados sobre o enredo do filme, conduzindo à ambivalência de interpretações.
A produção teatral da época lançava mão do bem-sucedido momento da canção
brasileira e utilizava-se das produções musicais para construir sua proposta de
246 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Lembro-me de ter assistido várias vezes ao show, de pé, arrepiada de emoção cívica. Era
um rito coletivo, um programa festivo, uma ação entre amigos. A platéia fechava com o palco.
História e cinema 247
próprios problemas. Esta foi uma nova fase no Cinema Novo, tendo 1964 como
marco. A personagem central e o tema do filme passaram a divergir da atitude
corrente da produção intelectual do período, que girava em torno da crise que
o golpe de Estado provocara, deixando de lado qualquer esperança de resposta
coletiva ou revolucionária ao fato ocorrido e, mesmo, mostrando-se incapaz de
tomar qualquer atitude. O que o difere das produções críticas ao regime militar.
A atitude otimista, de encaminhamento à revolução, encontrava-se no filme
Deus e o Diabo na Terra do Sol, realizado em 1963, mas cuja estréia só ocorreu em
maio de 1964, ou seja, após o golpe. Amplamente citado e estudado,1819 abordava a
esperança nacionalista da esquerda. Sua proposta estética era inovadora e a me
táfora da corrida de Manuel, do sertão ao mar, correspondia a uma mensagem de
esperança revolucionária. No momento de O Desafio, contudo, o golpe político
militar desestabilizara essa visão “otimista”, e foi esse confronto de posição que
se percebeu ao contrastar as duas produções cinematográficas, e mesmo as res
postas dadas pelas outras artes.
O que incomoda em O Desafio é o papel dúbio e crítico de Marcelo diante do gol
pe, pois, enquanto aqueles com os quais ele se identifica não têm dúvidas quanto ao
caráter farsesco de tal fato, Marcelo trata o acontecimento com extrema gravidade,
assumindo um tom de perplexidade e, principalmente, de derrota, não admitida
por seus pares. Se, de fato, a personagem foi concebida para retratar um intelectual
de esquerda engajado no protesto conscientizador, não foi esse o caminho seguido
na tela, pois em todas as suas aparições esses ideais foram desconstruídos.
São esses os indícios que nos levam a entender melhor a conflitante recepção
do filme, que, ao mesmo tempo que foi ovacionado como o primeiro trabalho
cinematográfico a abordar o golpe e por ter sido censurado, não preencheu as
expectativas das esquerdas ao entrar no circuito comercial, ou ainda, anterior
mente, no circuito dos festivais. Recebeu ovações (como as de Paulo Emílio Salles
Gomes) e ácidas críticas (como a de Gilda de Mello e Souza) de todos os lados,
sendo atacado e defendido veementemente.
Deve-se ressaltar que as respostas artísticas que surgiram posteriormente ao filme
O Desafio trouxeram à tona atitudes de engajamento que caminharam a passos largos
para a luta armada, como Pessach, Quarup'9 e Terra em Transe. Parece que na atitude
cética e passiva de Marcelo foi possível antever, diante dos exemplos que seriam pro
duzido posteriormente, a impossibilidade e a descrença nas práticas conscientizado-
ras (que tinham por berço o nacional-populismo) encontradas como respostas ime
diatas - e pode-se exemplificar com o show Opinião, entre outras produções - mas
sem que conseguissem superar os dilemas provocados pelo golpe.
Marcelo afirma, durante os diálogos que trava com sua amante e com o jor
nalista mais velho, sua crença na “revolução” e reafirma seus ideais mesmo
após o golpe. Entretanto, quando está sozinho ou no diálogo com seus colegas
de redação, não parece tão certo de tais ideais ou de sua eficácia na conjuntura
em que se encontram.
Durante a conversa com o jornalista mais velho, Marcelo diz acreditar no pro
cesso revolucionário brasileiro e “na transformação do mundo”, com a câmera
a focalizá-lo em dose. Na cena seguinte, em plano americano, Marcelo aparece
junto a seu colega, respondendo-lhe “besteira”. A montagem acaba por desmentir
Marcelo, desconstruindo sua afirmação ao dar um tempo maior entre a frase de
efeito, sua negação pelo colega e a falta de contestação. A variação na utilização
da câmera, primeiro em dose e depois em plano americano, também produz um
efeito de afastamento.
Percebe-se que as expectativas e o clima do momento não deixavam dúvi
das quanto ao posicionamento ideal de um intelectual de esquerda, na leitura
daqueles que pendiam ao protesto. O registro cinematográfico da dubiedade
do comportamento de Marcelo somado à dubiedade marcada pela edição rea
lizada, a deixam à deriva, impossibilitando a percepção de qualquer resposta
mais direcionada.
Marcelo passa a ser a representação daqueles intelectuais que devem se questio
nar e rever suas posições. Ao atentar-se para a postura de filmagem do segmento
final realizado em O Desafio e compará-lo à produção cinematográfica anterior,
percebe-se que essa seqüência também remete às filmagens realizadas durante a
década de 1950. O olhar da câmera partia das favelas para a cidade na zona sul
(como em Rio 40°. Rio Zona Norte, Cinco vezes favela, entre outros).
Na penúltima seqüência, Marcelo vai à casa do jornalista mais velho, que fica
em um ponto alto do Rio de Janeiro, muito provavelmente em Santa Teresa. De
lá ele avista a cidade, mais especificamente a zona sul. Após a tentativa da esposa
do colega de seduzi-lo, e da atitude de voyer do colega, Marcelo os repele e sai da
casa. A partir daí, ele é visto na rua, descendo em direção à cidade.
Nas produções da década de 1950, como Couro de Gato, de Joaquim Pedro de
Andrade, curta metragem que integrava Cinco vezes favela, a câmera situava-se
acima dos favelados e habitualmente mostrava em campo de fundo a cidade ma
ravilhosa, contrastando a miséria e a riqueza do Rio de Janeiro. Se a câmera nos
anos 1950 estava no alto, a avistar do morro a cidade, também incluía aí um olhar
acima dos favelados, o que acabava por construir uma percepção de superiori
250 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
20 Em Couro de Gato os protagonistas são os meninos da favela. Eles capturam gatos para vender aos fabricantes
de cuicas e assim se sustentar. Um dos garotos acaba de roubar um gato de raça, da zona suJ, e se encanta pelo
animal, mas conclui que não pode permanecer com ele, terá de vendê-lo aos cuiqueiros. A câmera sempre o
acompanha, observando do alto do morro, como os favelados o fazem. Dessa vez, porém, a câmera está acima
deles, observando-o também, com a zona sul ao fundo, em um olhar como que divino.
História e cinema 251
apontar que a solução armada tenha sido a conclusão a que Marcelo chegou ao
final do filme. Criou-se uma situação ambivalente, pois, ao inserir em suas cita
ções as canções, peças, livros, obras e outros produtos engajados do momento, O
Desafio também proporcionou sua divulgação.
Marcelo não se envolveu durante o show Opinião, nem pareceu seguir para a
luta, como fez Zumbi. Essa produção representou o momento em que se inicia
vam as revisões das posturas da intelectualidade e Marcelo talvez veio a pegar
uma metralhadora, como Paulo Martins o fez em Terra em Transe, ou tornou-se
guerrilheiro, como o padre em Quarup ou o intelectual em Pessach, mas essa
opção veio em momento posterior ao deste filme. Alternativas que estavam ain
da sendo formuladas e discutidas, por isso não se pode obter clareza de posição
neste filme. A revisão do que havia sido feito até então é premente.
Diferentemente das outras produções culturais, no cinema de então não se fez
a exortação do regime ou a catarse do discurso de protesto. Foi produzido um
“mea culpa”, olhando para si mesmo e olhando-se ao redor, e aqui é que está a
maior diferença entre o cinema e as peças de teatro e canções produzidas naque
le período. No cinema, e talvez O Desafio possa ser colocado como exemplo, o
percurso engajado não foi assumido, foi desconstruído na tela, a partir de uma
forma ambígua, o que confunde sua interpretação e apropriação. O golpe em si
foi discutido, como também as condições políticas, sociais e culturais, entretanto
o que se assistiu ao longo da obra foi uma linha de protesto autocrítico.
A seqüência final fica sem qualquer tipo de fechamento, pois não sabemos qual
caminho Marcelo seguirá, não há resposta explicitada, como também, não há
otimismo nem pessimismo, mas desalento e incômodo. Afinal, qual caminho
se poderia tomar? Não foi O Desafio a obra a responder essa questão, mas sim, a
elaborá-la.
Parte IV
1 O artigo é baseado na pesquisa realizada para a minha dissertação de mestrado Guerra das Imagens: Cinema
e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). (São Paulo, Depto. de História
- FFLCH-USP, 2003. Publicação no prelo.
2 Historiador, doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação da FFLCH-USP e pesquisador
associado do LET-USP (Laboratório de Estudos sobre a Intolerância - Universidade de São Paulo) e da
Cátedra Jaime Cortesão.
3 O termo regime ou Estado “Totalitário” parte da perspectiva teórica trabalhada por Hannah Arendt em Origens
do Totalitarismo. Anti-semitismo. Imperialismo. Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Nessa obra, a
autora considera o Totalitarismo como um sistema político no qual o Estado domina completamente a sociedade
e até a vida pessoal dos indivíduos. O regime totalitário é uma forma de ditadura, porém muito mais invasora da
privacidade das pessoas do que as ditaduras tradicionais. Sob esse regime, o Estado centraliza todos os poderes
políticos e administrativos, não permitindo a existência de outros grupos ou partidos políticos, além do partido no
poder, que se superpõe e se confunde com o Estado. O Totalitarismo se caracteriza pelo desrespeito às liberdades
públicas e individuais do cidadão, principalmente as liberdades de opinião, associação, imprensa e comunicação,
fazendo cortHjue a opinião pública deixe de existir como esfera independente. Nesse regime, o Estado toma-se uma
entidadeameaçadora que comanda e fiscaliza a vida de todas as pessoas do nascimento até a morte. A vida familiar
passa a girar em torno da ideologia do grupo no poder, a formação das crianças e dos jovens são militarizadas em
instituições do Estado. Além de destruir a individualidade dos cidadãos, as ditaduras totalitárias fazem a sociedade
viver numa atmosfera constante de insegurança e terror, perpetrada pela atuação da polícia secreta estatal e pela
manipulação do imaginário coletivo através das mensagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa,
que são utilizados intensamente com propósitos de propaganda política e de monopolização da verdade.^As
duas maiores manifestações do Totalitarismo no século XX foram o nazismo alemão (1933-1945) e o stalinismo
soviético (1924-1953), apesar das diferenças ideológicas que as distinguem.
256 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
4 Termo utilizado para designar os doze anos de ditadura nazista na Alemanha (1933-1945). Chamou-se III
Reich porque o regime de Hitler buscou apresentar-se como o legítimo sucessor do I Reich (o Sacro Império
Romano Germânico que Oto I fundou em 962 e durou até 1806) e do II Reich, nascido em 1871, com a
Unificação Alemã, durando até 1918, com a queda do kaiser Guilherme II e a proclamação da República de
Weimar. O termo foi popularizado pela direita alemã com base no livro Das Dritte Reich (O III Reich) de
Arthur Moeller van den Bruck (1876-1925), publicado em 1923, tendo sido rapidamente apropriado pelos
nazistas. Hitler previa que seu império estava predestinado a durar mil anos.
História e cinema 257
da propaganda era atingir o coração das massas, compreender seu mundo ma-
niqueísta e representar seus sentimentos. Essa seria uma das razões do êxito da
propaganda nazista em relação às massas alemãs: predomínio da imagem sobre a
explicação, do sensível sobre o racional.5
Nesse aspecto, os nazistas elaboraram uma síntese de todas as técnicas de mani
pulação da opinião até então existentes - incluindo desde elementos da mitologia
germânica e da liturgia católica até as técnicas modernas de agitação comunista
e do estudo da psicologia de massas -, que somada ao controle estatal de todos os
meios de comunicação, possibilitou condicionar homens e mulheres, de modo a
transformá-los em autômatos do Estado.
Desde o início, Adolf Hitler e Joseph Goebbels, o ministro da propaganda do
III Reich, tiveram percepção da dimensão do impacto que o cinema poderia con
seguir na veiculação das mensagens político-ideológicas do Partido Nazista. No
entanto, é importante frisar que nas duas primeiras décadas do século XX, as
classes dirigentes da maioria dos países da Europa Ocidental e dos Estados Uni
dos ainda não havia se dado conta do enorme potencial propagandístico do cine
ma. Esse desinteresse, quase generalizado, foi decorrente da idéia preconceituosa
de que o cinema não passava de uma simples “máquina de captar imagens”, que
não tinha, portanto, o status artístico da literatura, da pintura e do teatro, por
exemplo. Além de ser visto como uma simples inovação técnica, era também
uma diversão popular, daí o desprezo da elite intelectualizada.
Foram os soviéticos e os nazistas os primeiros dirigentes do século XX, a perce
ber o imenso potencial do cinema como arma de propaganda política. Segundo o
historiador francês Marc Ferro,
(...) os soviéticos e os nazistas foram os primeiros a encarar o cinema em toda sua amplitude,
analisando sua função, atribuindo-lhe um estatuto privilegiado no mundo do saber, da
propaganda, da cultura. (...) O cinema não foi apenas um instrumento de propaganda para os
nazistas. Ele também foi, por vezes, um meio de informação, dotando os nazistas de uma cultura
paralela. (...) Os nazistas foram os únicos dirigentes do século XX cujo imaginário mergulhava,
essencialmente, no mundo da imagem.6
5 As observações de Adolf Hider sobre o papel da propaganda política para a consolidação do regime nazista
na Alemanha foram apresentadas em: Hider, Adolf. Mein Kampf. Munique, Zentralverlag der NSDAP/Franz
Eber Nachf GmbH, 1934. Apud Pereira, Wagner Pinheiro. “Nazismo e Propaganda” (Verbete), in Silva,
Francisco Carlos Teixeira da et al (orgs.) Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX - As Grandes
Transformações do Mundo Contemporâneo: Conflitos» Cultura e Comportamento. Rio de Janeiro, Elsevier/
Campus, 2004, p. 605.
6 Ferro, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, pp. 72-73.
258 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Não desejo algo como uma arte que prove seu caráter nacional-socialista tão somente pela
apresentação de emblemas e símbolos nacional-socialistas, mas uma arte cuja atitude seja
expressa através de caracteres nacional-socialistas e do levantamento de problemas nacional-
socialistas. Estes problemas penetrarão na vida sentimental dos alemães e de outros povos
tão eficazmente quanto mais naturalmente forem tratados. É geralmente uma característica
7 Cf. Kracauer, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1988, p. 50.
8 Sobre a história da UFA e a sua relação com os governos da República de Weimar e do Terceiro Reich ver:
Kreimer, Klaus. Die Ufa-Story: Geschichte eines Filmkonzems. Munique, Carl Hanser Verlag, 1992.
História e cinema 259
essencial para a eficácia da propaganda, que ela jamais apareça como se desejada. No instante
em que a propaganda se torna consciente, ela é ineficaz. Mas no momento em que ela
permanece como tendência, como caráter e como atitude ao fundo e aparece somente através
do tratamento da narrativa, da trama, da ação e dos conflitos humanos, torna-se totalmente
eficaz em todos os aspectos.9
’ Goebbels, Joseph. “Rede bei der ersten Jahrestagung der Reichsfilmkammer” (5 de março de 1937).
Publicado em anexo in Albrecht, Gerd. Nationalsozialistische Filmpolitik. Eine soziologische Untersuchung
über die Spielfilme des Dritten Reiches. Stuttgart, Ferdinand Enke, 1969, p. 456.
260 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
10 O texto completo do discurso de Goebbels encontra-se publicado em: Belling, Curt. Der Film in Staat und
Partei. Berlim, Verlag der “Film”, 1936, pp. 27-31.
11 Cf. Furhammar, Leif & Isaksson, Folke. Cinema e Política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, pp. 188-193.
262 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
° Raoul Girardet descreve o processo de construção do mito do salvador. Segundo o autor, Adolf Hitler pode ser
identificado com a imagem do Homem providencial, assim como Moisés, aquele capaz de anunciar os novos
tempos, aquele que lê na história aquilo que os outros não vêem. O líder» que conduzido por uma espécie de
impulso sagrado, guia seu povo pelos caminhos do futuro. Ou seja, “processo de identificação de um destino
individual e de um destino coletivo, de um povo inteiro e do intérprete profético de sua história, que com toda
evidência encontra sua realização exemplar na coorte bastante alucinante desses grandes‘chefes’ditatoriais de que
nosso século viu multiplicarem-se as imagens. Oradores de caráter quase sagrado, é em primeiro lugar pelo Verbo
que agem, é pela palavra que pretendem decidir o discurso da história. (...) É pelo poder específico do Verbo que
se opera, com efeito, essa estranha comunhão que faz com que, dirigindo-se o chefe político à multidão, seja
igualmente a multidão que se exprime nele, com ele. Hitler se compara de bom grado a um tambor, uma caixa
de ressonância: sua voz não é mais que a de todos os homens e de todas as mulheres da Alemanha, amplificada,
mediatizada. (...) o Vidente, o Chefe profético não aparece mais, então, como o simples representante, o simples
executante da vontade geral. Ele é sua encarnação no sentido mais profundamente religioso do termo: encarna-a
na totalidade de suas dimensões sociais; encama-a na totalidade de seus destino histórico, em seu passado, em
seu presente e em seu futuro. Perder-se nele é, sem dúvida, renunciar à identidade individual; mas é reencontrar,
ao mesmo tempo, a integridade da identidade coletiva, a fusão íntima e indissolúvel com a comunidade mãe”.
Girardet, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 79.
14 Eisner, Lotte. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Rio de Janeiro, Paz
e Terra/Instituto Goethe, 1985, p. 231.
15 Leiser, Erwin. “Deutschland erwache!” Propaganda im Film des Dritten Reiches. Berlim: Rowohlt, 1968.
264 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
Outro tema tratado pelo cinema do III Reich foi o nacionalismo alemão e a
superioridade da raça ariana, em filmes como:
A Floresta Eterna (Der Ewige Wald, 1936), de Hans Springer e Rolf von Son-
jewski-Jamrowski» realizou uma alegoria da história e do cotidiano alemão, sim
bolizados pela relação fraternal dos camponeses com sua floresta. A mensagem
do filme buscava definir a fonte de força do ideal da “raça superior” (herrenvolk),
baseada nas virtudes do passado alemão, da raça ariana e do solo sagrado alemão»
que não podia ser confinado nas fronteiras artificiais impostas arbitrariamente
pelo Tratado de Versalhes, ou seja, justificava a necessidade do “espaço vital”
(Lebensraum) da Alemanha.
Já o filme O Soberano (Der Herrscher, 1937), dirigido por Veit Harlan com ro
teiro de Thea von Harbou e Curt Braun, contava a história de Matthias Clausen,
líder de uma dinastia industrial, que personificava a figura do “homem novo”
alemão ao abdicar de sua riqueza» doando seus bens à “comunidade nacional”
(Volksgemeinschaft), isto é» ao Estado. Poucos filmes do III Reich correspon
deram» de modo tão claro» aos objetivos definidos pela política nazista na luta
contra o individualismo do “homem velho” da República de Weimar. Esse filme
exaltava as virtudes do “homem novo” alemão e a idéia de que a nação estava
acima de tudo (Deutschland über Alies),
A concepção da política como espetáculo foi novamente trabalhada por Leni
Riefenstahl em Olímpia (Olympia, 1938), um longo documentário dividido em
duas partes - “Festival das Nações” e “Festival da Beleza” - consagrado aos XI Jo
gos Olímpicos realizados em Berlim. Esse evento esportivo foi uma oportunidade
para Hitler obter o reconhecimento internacional do regime e mostrar ao mundo
inteiro e ao povo alemão a imagem de uma “Nova Alemanha” forte e destemida.
A cineasta Leni Riefenstahl em lugar da filmagem cronológica dos jogos, optou
por uma estrutura mais diversa» baseada em ritmos distintos: os atletas nus exaltam
a beleza física e a virilidade» aludindo à ascendência helênica da Alemanha nazista; a
relação harmônica do homem com a natureza ao mostrar os exercícios preparatórios
dos atletas, a camaradagem dos participantes pertencentes a distintas culturas e paí
ses; as provas olímpicas rodadas com doses de intriga e o êxtase do triunfo plasmado
com os símbolos olímpicos (tochas» bandeiras). Há uma variedade notável no ritmo
da montagem e nas relações gráficas entre os planos que, em geral, proporcionam um
tempo adequado à ação. A trilha sonora se vale de uma voz em off que, em lugar de
informar, comenta com dramatismo as provas e reforça o suspense sobre o resultado»
e de uma variada música ao estilo wagneriano de Herbert Windt.
A estética masculinizante, a glorificação do corpo e da apresentação dos atle
tas como super-homens em coerência com a mitologia nazista de supremacia da
História e cinema 265
Eu Acuso! não obteve o efeito desejado: o público pareceu mais tocado pela morte da heroína do
que pelos argumentos dos médicos, professores e juizes a favor da eutanásia. (...) O fim do filme
era testar se uma lei deixando impune o homicídio sob pedido e sob reservas médicas e jurídicas
recebería uma acolhida favorável da opinião pública. O teste foi negativo, a lei jamais passou...16
Havia também filmes que deixavam explícita a inferioridade dos demais países
e etnias. Dentro desse grupo, os primeiros seres considerados inferiores foram os
judeus. Todas as representações cinematográficas de judeus colocavam o espec
16 Courtade, Francis Sc Cadars, Pierre. Histoire du cinéma nazi. Paris, Eric Losfeld, 1972, p. 142.
266 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
17 Ferro, Marc. “As ‘Fusões Encadeadas* de O Judeu Süss” in Ferro, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1992, p. 46.
268 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
” Kracauer, Siegfried. “Propaganda e o Filme de Guerra Nazista” in De Caligari a Hitler: Uma História
Psicológica do Cinema Alemão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, op. cit., p. 322.
Do texto à imagem: as faces da violência nas
crianças nazistas em Aleluia, Gretchen!
Rosane Kaminski1
você imagina uma seqüência, senta na máquina e escreve; ela vira literatura. Aí você transa
a produção. A produção é a política do filme. E a realização do filme é a ideologia do filme.
Então se você faz uma política errada, você pode estar com a melhor das intenções do mundo,
mas você não transforma as suas palavras, o seu roteiro em imagens que você queria. Então
a gente tem que estar sempre preparado pra isso. Ao mesmo tempo, o outro lado da moeda:
de repente você vai descobrindo uma série de coisas novas que são muito melhores do que
a sua imaginação. É que a realidade é sempre mais forte do que a imaginação. A realidade
está mudando sempre. A imaginação também. Mas a realidade é mais dinâmica, porque é
feita de milhões de elementos, de milhões de pessoas. E sua imaginação é feita de você, de
sua tralha cultural. Nesse processo de transformação, há mais coisas: já ao você pensar o
negócio e escrever, o resultado já é outro. Depois você faz a produção: preciso de tantos carros
modelo 1937, digamos três. Mas não tem três, tem dois. Preciso de quarenta pessoas. Não tem
quarenta, tem trinta. Então você tem que ir acertando as coisas.2
2 Back, Sylvio. “O cinema paranaense existe?” in Santos, Francisco Alves dos. Cinema brasileiro - 1975:
entrevistas com cineastas brasileiros. Curitiba Edições Paiol, 1975, pp. 66-67.
História e cinema 273
5 Back, Sylvio. “A propósito”, in A Guerra dos Pelados (arquivo inédito cedido pelo autor), 2003, p. 4.
4 O Estado do Paraná. Curitiba, 21 jul. 1971.
5 Gazeta do Povo. Curitiba, 12 abr. 1972.
6 O filme recebeu mais de vinte láureas, como: Prêmio Golfinho de Ouro de Melhor Diretor pelo Museu da
Imagem e do Som do Rio de Janeiro; Melhor Diretor no Air France; prêmios de melhor roteiro, melhor ator
(Sérgio Hingst) e melhor cenografia pela Associação Paulista dos Críticos de Arte; Coruja de Ouro para melhor
atriz (Miriam Pires), melhor fotografia e melhor figurino; Prêmio Qualidade da Embrafilme, entre outros.
274 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
“no princípio era um conto, Aos mortos se prende o queixo com esparadrapo. Infil-
mável. Uma história ejaculada de um só arremedo. Mas nela se organizavam as
primeiras imagens do futuro roteiro de quase 100 laudas. O roteiro virou livro, o
conto mantém sua autonomia» mas nasceu um filme”.7
O técnico responsável pela edição final desse filme, Inácio Araújo, também se
manifestou sobre o roteiro de Aleluia, Gretchen!, dizendo que ele:
(...) não custa a mostrar seus defeitos. Ao diálogo, faltam as entonações; à pausa o silêncio ou
a música. Restam as indicações da trama, é verdade, ou a descrição dos cenários. Mas poucas
páginas depois, o esforço que procura nos dar conta de um espaço, de um ambiente ou de
uma estória deixa denunciar a própria impotência mesma (ou antes, a insuficiência) de um
roteiro. Faltam-lhe o clima de iluminação, o impulso do corte, a presença dos gestos a que
tanto se refere.8
7 “Aleluia, Gretchen!: dossiês críticos’* Filme Cultura, n. 30. Rio de Janeiro, INC, ago. 1978, p. 91.
8 Araújo, Inácio. “Chamada à discussão” in Back, Sylvio. Aleluia, Gretchen. Porto Alegre, Movimento, 1978, p. 13.
9 Idem, ibidem, p. 14.
História e cinema 275
12 Essas imagens aparecem nas revistas Cinema em Close-up e Filme Cultura, no jornal Folha de S. Paulo, no
Jornal do Brasil, no Jornal da Tarde, no Opinião, no Movimento, entre diversos outros periódicos.
História e cinema TT1
ao ritmo da marcha agora são reconhecidas como filas de crianças vestidas com
uniformes amarelos, que estão de costas para o observador, e formam uma banda
colegial. A música já não parece partir da enunciação, mas torna-se enunciado. É
executada pelas crianças que também realizam evoluções num desfile cívico-mi-
litar, numa espécie de pátio. A câmera movimenta-se vagarosamente para a fren
te, como se ocupasse o ponto de vista de uma dessas crianças que desfila, e esse
movimento nos permite aos poucos reconhecer, ao fundo, uma fileira horizontal
de crianças vestidas de preto da qual a câmera se aproxima. Elas também estão de
costas para o observador, participam do mesmo espetáculo. Novo corte, e agora
vemos uma dessas crianças de frente, em plano médio. São meninos vestidos
de soldados nazistas que empunham armas. Bruscamente, o som de uma rajada
de metralhadora se sobrepõe à música da banda, como se partisse das próprias
armas de brinquedo que os meninos acionam. Consiste num efeito sonoro que
paira alegoricamente num espaço ambíguo entre a enunciação e o enunciado,
enquanto a câmera movimenta-se para o lado, focalizando um a um os rostos
desses meninos que encenam uma execução. Estão com as faces pintadas de um
branco azulado deixando evidente o caráter de teatralidade, e a direção de seus
olhares para a câmera indica que esta agora ocupa o ponto de vista de seu ’ alvo”.
Podemos encarar frente a frente a face dos pequenos algozes.
Ao fundo, a banda e o desfile continuam, numa movimentação colorida
onde predomina o amarelo em contraste gritante com o preto dos uniformes
que os meninos em primeiro plano vestem. Muda o plano, e a objetiva agora
nos restitui a posição de espectador: está mais distante, de frente para os me-
ninos-nazistas, e podemos ver “de fora” essa cena. Somos as testemunhas pas
sivas desse ato de extermínio, e essa posição nos transforma em participantes
dessa paranóia que justapõe festividade comemorativa com a reprodução da
violência. Situadas entre o nosso olhar cúmplice e os pequenos nazistas, ve
mos as vítimas da rajada: outro grupo de crianças que caem como mortas.
Logo a câmera volta a assumir a posição entre as crianças de amarelo, mo
vimentando-se para a frente em direção ao local da execução, desse ângulo
restituindo ao espectador o lugar de participante daquele desfile. Esse plano
constitui uma espécie de “retorno no tempo” no âmbito da teleologia diegé-
tica, uma vez que as crianças vítimas estão outra vez em pé e nova mente as
vemos cair, agora de frente. Apenas uma das crianças na fileira dos executa
dos não tomba: é um menino quase nu, fantasiado de índio, que finalmente
ocupa o centro da cena, com o olhar fixo na objetiva que dele se aproxima. A
fantasia de índio consegue estabelecer um elo entre o tema do filme (as idéias
totalitárias como um atributo humano) e alguns fatos do passado histórico
278 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
13 Brepohl de Magalhães, Marion. “Aleluia, Gretchen: um hotel para o Reich” in Soares, Mariza de Carvalho
& Ferreira, Jorge (orgs.). A história vai ao cinema. Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 39.
14 Conforme já comentado, à época do lançamento do filme, por: Bernardet, Jean-Claude. “Aleluia Gretchen:
a metáfora e a história”, Movimento. São Paulo, 20 jun. 1977; e por Avellar, op. cit.
História e cinema 279
15 A primeira edição desse roteiro foi realizada pela Fundação Cultural de Curitiba, em 1977.0 lançamento
nacional se deu em 1978, através da Editora Movimento.
16 Araújo, Inácio, op. cit., p. 14.
17 Depoimento concedido à autora em 23 de dez. 2004.
História e cinema 281
(...) vêem-se duas torres de guarda» uma chaminé fumegando nas proximidades e à entrada
gigantesca placa com os dizeres “Die Arbeit Macht Frei” - o trabalho liberta. No pátio, grupos
de garotos e meninas, uns 150/200» entre 6 e 9 anos, vestidos com maiôs do início do século
e pintado às costas ora a estrela de Davi, ora uma cruz vermelha» brincam de amarelinha,
cabra-cega, outros jogam xadrez, bola de búrico, alguns encenam perseguições à bandido-
e-mocinho. Em meio a isso, nem se perturbando, umas dez grandes cruzes com crianças
presas à Jesus Cristo, riem e provocam os de baixo. Também por ali» sobressaindo-se, crianças
imitam pedreiros, constroem muros, fazem cimento, carregam tijolos, ripas, sob o olhar de
outros, de chicotinhos à mão, vestidos de cowboy, zorro ou soldado da Revolução Francesa.
Entremeando esses flagrantes, fotos tipo “álbum de família”, da Alemanha, de uma viagem
de navio, com cenas de baile e banho de piscina a bordo; 3X4 de oficiais SS abraçados com
moças, jovens da Juventude Hitlerista marchando, imagens filmadas das Olimpíadas de
Berlim. Sobre toda a seqüência num crescendo, música de Wagner.18
Como se observa nesse excerto, a cena inicial para o filme havia sido pensada
como uma fusão entre os eventos relacionados à história pessoal dos integrantes
da família Krantz (viagem de navio, os oficiais SS, a juventude hitlerista) com sig
nos da história da humanidade como um todo, mesclando brincadeiras do ideário
infantil com personagens religiosos, políticos ou fictícios - todos, porém, reme
tendo a esquemas ideológicos construídos e reproduzidos pelos homens ao longo
dos tempos através da educação familiar e escolar, ou difundidos pelos meios de
comunicação de massa. Visivelmente, a intenção do autor não era a de gerar uma
representação realista, mas fundar um aspecto metafórico ao mesmo tempo tétri-
co do nonsense. A visualização de um "pequeno mundo adulto” composto só de
crianças sem inocência, que consistem em réplicas dos seus gestores e reproduzem
suas atitudes, provoca um choque que retira do filme toda e qualquer possibilida
de utópica baseada na esperança de um mundo mais justo e igualitário.
Um ponto favorável dessa escolha pela “teatral ização” dos fundamentos da vio
lência, em lugar da exposição crua da agressão, reside, ao meu ver, no esforço por
não banalizar os atos violentos através de um excessivo realismo, expediente aliás
muito utilizado pelo tipo de cinema que se edifica através da contradição cho-
que/anestesia do espectador, ou seja, pelos filmes que exploram mais as emoções
(...) foi além de um timming tradicional, exatamente para puxar pela cabeça do expectador. O
cara sente uma insistência que vai além do normal. Transferi para o áudio o mesmo processo
que muitas vezes se usa em cenas de violência, dramaticidade, sexo» saturando-as para
recuperar a platéia, tirá-la do gozo, do fetiche da imagem, devolvê-la ao cinema, à realidade,
à reflexão.19
Desse modo, as cenas com as crianças nazistas, com a juventude hitlerista e com o
Repo se vestindo de Papai Noel, assim como as seqüências esboçadas no roteiro que
não participaram do filme, é que fazem o contraponto a esse excesso verborrágico.
Quanto às seqüências que não participaram da fita, além daquela cena inicial
prevista no roteiro, outras três do mesmo teor estão descritas noutras partes do
texto, cada uma delas correspondendo à passagem de um bloco do filme a outro.
A segunda seqüência envolvendo crianças e situações relativas ao holocausto es
tava prevista para situar-se justamente no ponto em que está a cena dos meninos
nazistas encenando o ato de execução: entre a chegada do personagem Eurico no
Hotel Flórida (que marca o final do primeiro bloco) e a cena onde o mesmo hotel
é cercado por um grupo de pessoas investidas de armas e archotes, que acusam
a família Krantz de “quinta-coluna” e “nazistas”, enquanto o integralista Aurélio
enterra sua farda no fundo do quintal, ao som do hino “Avante” de Plínio Salgado.
Mas o interlúdio descrito no roteiro é diferente do que se vê no filme, pois consiste
numa dramatização do extermínio dos judeus nas câmaras de gás, através de brin
cadeiras infantis que deveríam ocorrer num ambiente bucólico de uma chácara:
Cerca de 150/200 crianças (as mesmas da SEQ. I), vestindo roupas padronizadas de colégio
interno, brincam de trenzinho; [...] estão alegres, fazem ruídos de locomotiva, vários deles
imitam apitos: é uma algazarra só. Quando o “trem” pára na plataforma, uma orquestra de
19 Conforme Sylvio Back declarou na entrevista “A civilização do sul: o essencial é ser autêntico”. Opinião.
Rio de Janeiro, Io abr. 1977.
História e cinema 283
crianças, tocando apenas instrumentos de percussão os recepciona. Por ali, vários garotos
vestindo fantasias de carnaval (cowboy, zorro, marciano), e com porretes à mão, fingindo-se
sérios, desmancham o “trem”, separando menino de menina. Elas, também fingindo, choram
com a separação; bonecas são pisadas, há cães e gatos de estimação por ali, galinhas são
chutadas. [...] Corta para dentro do estábulo/paiol: as crianças estão todas nuas, algumas
ainda brincam, outras agarradas aos cantos; mais algumas querendo sair, batendo à porta, que
já está fortemente fechada por fora. Trepados no telhado, dois garotinhos retiram uma telha
e jogam mecha de breu esfumaçada ao interior do galpão. Corte para um longo aproximar
frontal à porta de entrada do estábulo: rindo, dois garotos vão abrindo vagarosamente o
portão. A câmara entra e surpreende, em meio a alguma fumaça ainda, garotos saindo aos
gritos, chorando e muitos amontoados, como se estivessem mortos.20
porretes e chicotes são signos de poder exercido à base da violência. Essa situação
mestiça também caracteriza aquela seqüência do filme já antes comentada, ainda
que de modo invertido. Lá estão as crianças marchando num ritual cívico, com
pondo um grupo uniformizado, com roupas padronizadas, e executando gestos
cadenciados, aparentemente inofensivos. Ainda no mesmo quadro, mas forman
do um outro grupo, estão os meninos que vestem uniformes nazistas (também
padronizados), portam armas e exercem seu poder à força, fuzilando o terceiro
grupo, constituído pelas crianças que, diferente do previsto no roteiro, são as que
vestem fantasias de carnaval. Apesar das diferenças, o uso de uniformes tanto
quanto o de fantasias de carnaval simboliza situações rituais onde diversos valores
sociais são reproduzidos como verdades de uma geração para outra. Se no caso da
cena descrita no roteiro os opressores deveríam vestir fantasias e no caso da cena
do filme eles vestem uniformes, isso sugere que tanto os rituais disciplinadores
quanto as festividades e brincadeiras infantis impregnam as mesmas ideologias
sociais. E que a reprodução da violência está presente em ambos.
No roteiro, é a terceira seqüência com crianças que descreve a situação do fuzi
lamento. Mas essa descrição não coincide com a maneira como ela foi filmada e
editada, nem com o momento do filme em que foi inserida: estava prevista para
fazer a passagem do segundo para o terceiro bloco e, ainda, para ser apresentada
de modo alternado com a chegada dos oficiais SS no Hotel Flórida. O som de uma
fanfarra estudantil faria a ligação entre os contextos: 1. meninos nazistas, fanfar
ra e pelotão de fuzilamento; 2. corte para o hotel e chegada dos SS com o som da
fanfarra ao fundo; e 3. volta aos meninos nazistas e execução dos “civis”.
Além dessas discordâncias entre a cena descrita no roteiro e as características
da seqüência do filme antes analisada, alguns outros aspectos de contraste se
sobressaem pelos significados que suscitam.
Um deles é a presença de manifestações sonoras infantis na descrição - “os garotos
riem, outros dão berros, alguns choramingam”22 - e a ausência destas vozes no filme.
Se os risos, gritos e choramingos poderíam proporcionar à cena uma sensação de
espontaneidade típica ao mundo infantil, o resultado na película apresenta um as
pecto bem mais solene e disciplinado, como se os modelos comportamentais adultos
estivessem completamente assimilados, ainda que os atores sejam crianças.
Um outro aspecto intrigante é a presença, no roteiro, de alguns adultos que ocu
pam o mesmo espaço cênico que as crianças sem interagir com elas: “há três ou
quatro senhoras rondando por ali, empurram carrinhos de bebê, fumam e con
versam entre si como se nada estivesse acontecendo. Velhos apáticos assistem de
(...) à ordem de “feuer” as armas detonam, os garotos do paredão caem, alguns fingindo
estrebuchar, outros ficam imóveis. Com exceção de um deles: que continua de pé e rindo.
O garoto que anunciara a execução, de lugger em punho avança até ele (...) e, encostando a
arma nas suas têmporas, aciona o gatilho. O menino cai ensanguentado ao chão, os miolos
estourando, e a percussão da fanfarra cresce absurdamente; suas evoluções ficam mais livres e
há muita alegria nos rostos dos seus integrantes.24
23 Ibidem, p. 59.
24 Ibidem, p. 60.
286 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
(...) vários meninos e meninas vestidos de anjinhos de igreja, sentados às mesinhas com canecos
de chope e comendo salsichas. Eles estão admirando fotos reais de campos de concentração
e riem muito. Uma valsa vienense começa a tocar. Eles fazem-se de adultos [...] e põem-se a
dançar. Entremeando o som da valsa, gritos de adultos e uma seqüência de dezenas de fotos
velhas de homens e mulheres com aquela moldura de retrato de cemitério, fotos de oficiais SS
posando para carteira de identidade, vão se alternando à dança dos meninos e de um velho
que tranquilamente retira do forno pazadas de cinza, jogando-a sobre a trilha existente. A
seqüência vai se transformando, do ritmo normal para uma angustiante câmera lentíssima,
com a música, inclusive, perdendo a velocidade de rotação.25
Essa última aparição das crianças nazistas no corpo do roteiro traz alguns de
talhes de linguagem que arrematam a primeira seqüência que era prevista para
o filme: a alternância entre os planos “surreais” da encenação infantil com os
planos onde se vêem fotografias de feição documental: campos de concentração,
Eu nunca havia saído da Indochina. A mão de Camille estava gelada. Ela acabara de perder
pai e mãe. Eles eram os meus melhores amigos. Eu não tinha filhos. Ela não tinha mais pais. A
Princesa de Annam tornou-se então minha filha. Eu a adotei. Nós éramos inseparáveis. Coisas
da juventude: acreditar que o mundo é feito de coisas inseparáveis: os homens e as mulheres,
as montanhas e as planícies, os seres humanos e os deuses, a Indochina e a França.
O filme Os Boinas Verdes (The Green Berets, 1968), de John Wayne e Ray Kellog,
interessa-nos principalmente por dramatizar o processo de conversão de um corres
pondente de guerra norte-americano à causa da intervenção militar dos EUA no Vie
tnã. Essa ficção se articula como um discurso persuasivo em meio às várias batalhas
culturais em torno dos significados daquele conflito. A sua narrativa se serve dos ele
mentos mais visíveis do gênero guerra, mas sua pretensão vai além do encadeamento
espetacular de batalhas e planejamento de estratégias. Trata-se de um filme político,
destinado a marcar posições frente à opinião pública, aos políticos, aos militares, à
imprensa etc. Para isso, ele se vale da ficção literária, de um hino militar também, do
fotojornalismo e de uma remissão tanto a um elemento forte da cultura norte-ameri
cana, que é o individualismo, como também a um imaginário cinematográfico.
Como uma intervenção direta no discurso da mídia impressa dos EUA à época
de sua produção, esse filme traz de modo oportunista como coadjuvante o repór
1 Esse texto é uma versão de “O exemplo multiplicador (estratégias de argumentação, tutoria e conversão ideológica
em Os Boinas Verdes)” primeiro capítulo de Rede de Representações (Configurações do correspondente estrangeiro
em situações de comunicação intercultural no cinema internacional 1968-1988), tese de Doutorado em Ciências da
Comunicação (Estética do Audiovisual), defendida em abril de 2002, na Universidade de São Paulo, sob a orientação
do Prof. Dr. Ismail Xavier, a quem publicamente agradecemos pelo apoio e incentivo desde a primeira hora.
2 Doutor em Ciências da Comunicação (Estética do Audiovisual) pela Universidade de São Paulo. Junior Visiting
Scholar na Universidade do Texas em Austin (2000-2001), co-autor de Glauber, a Conquista de um Sonho. Belo
Horizonte, Dimensão, 1996. Professor do Mestrado em Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e
do Programa de Pos-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
290 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
mente. Fora das telas, os Boinas Verdes tem que travar uma forte batalha cultural
pela significação daquela guerra. Mesmo no campo das artes, esse páreo é tenso.
Tanto no teatro dramático como nos musicais, na ficção como na poesia nas ar
tes plásticas como na música popular (rock^folk e soul music), há um forte movi
mento contra a guerra, pela deserção e pelo não-comparecimento ao alistamento.
Tudo isso indo e vindo reverberado pela mídia. É contra uma parcela dela que o
filme de Wayne e Kellogg procura combater.
Em 1966, a militar canção-tema do filme em foco alcançou o primeiro lugar na
parada de sucessos da revista Billboard. Já em 1968, em contrapartida, alguns dos
sucessos da arena pop estavam na contramão do establishment, como “The Unk-
nown Soldier” com a referência ao que se chamou de the dining-room war (a guerra
na sala de jantar) e o repertório de uma Joan Baez, por exemplo. Para se contrapor
também no campo musical anti-guerra, Os Boinas Verdes busca, em 1966, a sua
bélica canção-tema.3 É justamente o hino das Forças Especiais o primeiro sinal de
áudio do filme em foco. A abertura é tão dependente da canção que sua duração é
regulada por ela. Em mais ou menos dois minutos, são exibidas quase trinta fotos
de militares em treinamento ou em combate. Acreditamos que há nesse ponto, logo
de sopetão, uma intervenção. Se as fotos forem percebidas pela recepção como um
documento jornalístico, teremos aqui um dado de um certo processo de mitologi-
zação no âmbito da cultura de massa. Isso quer dizer: transfere-se pela simples edi
ção de fotos um registro para o campo da ficção, que se vai apreciar nas próximas
duas horas e 24 minutos. Se as fotos forem tomadas como antecipação da narrativa,
teremos um logro: não há repórter fotográfico ou cinematográfico no elenco de
personagens. Assim, essa última alternativa está um pouco esvaziada.
Busquemos outros aportes, então. Em um deles, sugerimos que há aqui mais
um elemento de contra-ataque do filme em análise. O que se quer dizer com isso?
Em nosso entendimento, há uma chave que pode apontar para o fato de que, ao
incorporar na abertura elementos de um (possível) fotojornalismo - façamos de
conta que as fotos não são de still o filme substitui em sua “limpeza”, eficiência
e ausência de carnificina todo um conjunto de fotos distribuídas mundialmente à
época sobre atrocidades cometidas no campo de batalha. Algumas dessas imagens
já eram, em 1968, algo como ícones da guerra no Vietnã, a saber: a) chefe da polícia
de Saigon executa publicamente um vietnamita» suspeito de ser vietcongue; b) vala
com centenas de civis vietnamitas executados em My Lai em março de 1968. A
autoria da chacina - o pelotão do tenente McCalley - foi revelada na imprensa por
’ A propósito, raro é o filme de ficção ou documentário sobre a guerra no Vietnã que não possua rock*n roll
em sua trilha sonora. Sobre o assunto, ver de James, D. “Rock and roll in representations of Vietnam War".
Representations, 29 (1990): 78-98.
292 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
uma jornalista free-lancer vinte meses depois do ocorrido; c) pares de botas enfilei-
radas em base dos EUA, durante serviço funerário; e d) fuzileiros jogam cartas no
interior de cemitério, destruído por norte-americanos, entre outras.
O que fizemos acima foi uma hipótese de leitura com um certo componente de
fantasia, admitimos. Mas o fato é que a abertura nos parece possuir mais compo
nentes de intervenção do que de ilustração. Há ainda, por outro lado, um outro viés,
que vai acionar um pouco de memória da história dos telejornais nos anos 1960.
Naquela época, era muito comum o uso de colagem de fotos diversas nas aberturas
e encerramentos daqueles programas. Se trilharmos por essa via de leitura, teremos
também um outro lance de intervenção: imita-se a abertura de telejornal, mas não
há nenhum telejornalista no filme. O fato é que a abertura pode apontar enganosa
mente para uma alegorização de práticas jornalísticas ausentes ao longo do filme:
fotojornalismo, cinejornalismo e telejornalismo. Fazendo isso, em nossa leitura,
tem-se, em síntese, um logro (pela supressão do que se pretende alegorizar) e uma
intervenção: unem-se os elementos de uma prática de produção de significados
com uma outra postura (imagens “positivas” de um só grupo, Boinas Verdes) e
com outra trilha sonora. Em lugar das “chamadas”, tem-se as palavras de um hino
em que militares são positivamente qualificados, em que se canta a sua vocação
para o sacrifício heróico e sua vocação “libertadora”: He has diedfor the oppressed.
O fato é que se aposta tanto em um certo poder encantatório da canção-tema que
ela ultrapassa a abertura e é a trilha sonora das primeiras imagens que se movem.
A construção das imagens positivas do soldado profissional incorpora desde a
forma como os sargentos Muldoon (Aldo Ray) e McGee (Raymond St. Jacques)
se comportam na entrevista-coletiva-aula ao modo como seus colegas se volun-
tariam para a missão no Vietnã: a construção de um acampamento em território
vietcongue. O modo como os envolvidos se preparam fisicamente e cumprem
suas tarefas em Fort Bragg (Carolina do Norte), difere bastante do que se verá
depois, nos filmes do boom pós-Vietnã, com os jovens civis recrutados por sorteio
para lutar no Sudeste Asiático. Em Os Boinas Verdes> os sargentos citados acima
são como que porta-vozes do que o presidente Richard Nixon chamaria, em 1969,
de “maioria silenciosa”: “O soldado luta contra quem mandaram-no lutar; eles
(os vietnamitas) precisam de nós. Eles nos querem lá”. Há uma platéia na citada
entrevista coletiva e que funciona como uma amostra da citada “maioria”. Há até
uma representante das donas de casa. É essa espécie de claque que fornece o tom
de consagração, digamos, às respostas dos sargentos aos três jornalistas. Esses
últimos estão dispostos sentados atrás de carteiras e diante dos mapas e dos sar-
gentos-professores como se estivessem em uma sala de aula de geopolítica básica.
Recebendo breves e sisudas lições sobre Guerra Fria.
História e cinema 293
Serão esses mesmos sargentos bem falantes citados acima que retornarão em
ação, sendo bem-sucedidos, é claro. E há bastante ação, o que atinge dois objeti
vos simultaneamente. Inicialmente, o tom thriller leva a recepção eventualmente
a considerar essa obra de conversão ideológica, em nosso entendimento, como
apenas mais um movimentado filme de combate. Em segundo lugar, ao privi
legiar a ação - como recomendavam as regras do gênero, pelo menos até aque
la época o filme diminuía ou eliminava qualquer possibilidade de eventuais
atormentados solilóquios entre a tropa. Diferentemente do que veriamos depois
no citado boom, não há no filme em análise espaço para grandes ou mesmo pe
quenas introspecções, e quase nada se sabe sobre a vida pessoal de cada um dos
oficiais ou sargentos.
Como obra de intervenção na opinião pública, Congresso dos EUA (mais verbas,
mais balas) e mídia (não é à toa que os sargentos “ganham” da imprensa na en
trevista coletiva), os Boinas Verdes não pode se descuidar de cativar uma imagem
do aliado: o Exército sul-vietnamita. Antes que dois de seus comandantes sejam
vistos em atividades de planejamento ou em ação, somos agraciados com perfis
generosos deles, não por sua própria voz, nem pela leitura de currículos, mas, sim,
pela voz do Coronel Kirby (John Wayne): o Coronel Cai (Jack Soo) é “competente,
inteligente, tem iniciativa”, é “excepcional”. O chefe do acampamento, Dai-Uy-
Nim (George Takei) é “muito ativo”. “Ouvi falarem muito de você”, agracia-lhe
Kirby quando de sua apresentação. Morto o aliado vietnamita, não faltará um dos
sargentos da entrevista coletiva para fazer o positivo obituário: “Ele morreu, mas
levou muitos com ele”. Bem, o filme parece querer, é preciso se trabalhar perma
nentemente “corações e mentes”, não só dos norte-americanos.4
Em Os Boinas Verdes, como se nota, o aliado é visível, luta, comanda tropas,
planeja ações, coopera, enfim, e não se coloca como ameaça, como mais um Ou
tro étnico, misterioso e intrigante. No entanto, quando alguma confissão tem
que ser obtida por métodos nada recomendáveis quem o faz não é ninguém dos
Boinas Verdes, mas sim um oficial do comando sul-vietnamita, como fica dra
matizado no que George se referira a Kirby como “métodos da Inquisição”, apli
cados por Nim em um dos seus batedores.
Como se não bastasse a configuração rápida, verbal, do aliado militar, o esfor
ço doutrinador, que se detalha em alguns momentos em pequenas aulas, sente
também a necessidade de evidenciar a construção do aliado civil, os camponeses.
Basta, para isso, uma seqüência em que, de uma hora para outra, em meio a uma
trilha, surja um grupo, liderado por um ancião. A seqüência se compõe de duas
cenas. Na primeira delas, com a ajuda de um sargento, o coronel Kirby consegue
articular uma aproximação com o líder de uma aldeia. Na segunda, constrói-se
outro tipo de aliança, a partir do momento que, no grupo, há uma garota ferida.
O correspondente a carrega para um jipe, onde já se encontra o sargento-pa-
ramédico McGee, distribuindo comprimidos, fiscalizando a saúde dentária de
crianças e fornecendo-lhes algumas instruções. Enquanto observa o atendimen
to à garota, George passa a mão na cabeça dela. Ato contínuo e, aparentemente,
sem maiores motivações, ele oferta sua própria corrente com uma medalhinha à
garota. O sargento traduz sua resposta: “Ela disse que nunca vai tirá-la do pesco
ço”. George retira a garota do jipe e a devolve ao líder-ancião. Ao voltar» a aliahça
militar Boinas Verdes-líder comunitário já foi selada, e o correspondente já se
aproximou também dos vietnamitas sem precisar escrever uma só reportagem,
nem ao menos uma só palavra. Na primeira cena, tem-se, no fundo, uma aula de
inteligência militar. Na segunda» tem-se (mais) uma duplicação.
A aula é essa: na guerra não-convencional» como a do Vietnã o foi, nas telas e
fora delas, o vencedor em geral é a facção com a melhor estratégia de Inteligência.
Essa é quase sempre o resultado de se obter a confiança das pessoas em cuja terra
a batalha está sendo travada. A cena do leva-e-traz de George e da corrente cresce
de força por serem seus movimentos frutos de espontaneidade de um cidadão.
É preciso que os gestos sejam claros, breves, mas eficientes, para que o vetor da
emoção atinja o espectador e para que este, mais adiante, se identifique com o
jornalista na sua indignação com os vietcongues.
Por que falamos em duplicação? Pelo seguinte: logo quando as Forças Especiais
chegam à “Dodge City”, tem início uma aproximação entre um órfão vietnamita,
o garoto Hamchunk - que» pasmem, mora no acampamento militar - e o sar
gento Petersen (Jim Hutton). Essa aproximação vai-se acentuar no momento em
que, em meio a um tiroteio, o sargento arrisca sua própria vida para localizar o
garoto. Ele o encontra enterrando o seu cachorrinho. Toda a inverossimilhança
da seqüência é construída para que haja este diálogo. Sargento: “Ele [o cachorri
nho] era tudo o que você tinha, não? Você não tem mais ninguém nesse mundo,
não é?” Hamchunk responde: “Apenas você”. Está assim intensificado o proces
so de aproximação, movimento que, em meio à guerra» “humaniza” o soldado
boina verde. Dali por diante, Hamchunk passa a ter um “pai”. Por isso é que
dissemos que a cena de George com a garota ferida é uma duplicação de sentido
na direção da solidariedade. Esses movimentos de aproximação - de Petersen-
Hamchunk, de George-garota - ultrapassam a dimensão da solidariedade» pois,
História e cinema 295
opinião associada à experiência como é colocada pelo militar leva-nos, entre outras
coisas, a um princípio básico da reportagem: a perspectiva do outro lado envolvido.
Voltemos à frase provocadora citada parágrafos atrás pelo coronel: “É difícil se falar
sobre tudo isso até que se venha até aqui e se tenha visto tudo”. Fiquemos agora com
o final apenas. O que Kirby quer dizer com “tudo”? Seria esse “tudo”, porventura,
a permanência de George com sua tropa? Com aquela força especial do Exército, o
jornalista teria acesso a apenas um dos modos de se fazer a guerra.
Falta, no entanto, para a boa reportagem, a cobertura do modo como os matinês
fazem a mesma guerra. Falta também a cobertura das ações isoladas do exército
sul-vietnamita. E, fundamental para o levantamento do “outro lado”, falta ainda
mais a perspectiva da luta no Vietnã do Norte ou, pelo menos, a repercussão ei^
suas comunidades. Os Montagnards (simbolizados pelo anciào-líder e pela garo
ta ferida) não são etnicamente vietnamitas, muito pelo contrário: os primeiros
lutavam contra os últimos desde os anos 1950. Como se nota, pelo exposto, não
basta ao correspondente de guerra estar associado a um pelotão ou batalhão para
estar habilitado a ter visto “tudo”. É essa fragmentação na experiência que o co
ronel mostra não entender ou não aceitar. O que talvez esteja implícito na frase
do coronel - e que o roteiro e os diálogos não desenvolveram - é que a frase do
coronel pode estar talvez simplesmente apontando para um dado tradicional da
cultura dos norte-americanos: a crença arraigada na construção de um conheci
mento através apenas da própria experiência, das informações fornecidas pelas
“sensações do mundo”.
Trazendo ao texto um exemplo mais contemporâneo sobre a questão da ex
periência na ficção hollywoodiana, note-se como essa questão, associada a outros
aspectos, como horror, escolhas morais e opinião pública, retornará melhor tra
balhada nas telas já no boom pós-Vietnã, em 1979, com Apocalype Now (Francis F.
Coppola, 1979), através de uma das falas autojustificantes de um ex-boina verde, o
Coronel Kurtz (Marlon Brando) diante do Capitão Willard (Martin Sheen):
- Você não tem o direito de me chamar de assassino, mas tem o direito de me matar. Eu
tenho esse direito, mas você não tem o direito de me julgar. As palavras não podem descrever
o que é ainda necessário àqueles que não sabem o significado do horror... o horror. O horror
tem um rosto, e nós não temos que fazer do horror um inimigo. O horror e o terror moral são
nossos amigos. Se não o são, então, são inimigos a temer. São verdadeiros inimigos.
visível de uma geopolítica) estaria além de ganhar batalhas, estaria, isto sim, em
cuidar do futuro do Vietnã, simbolizado nas duas crianças. Elas são periféricas
à trama principal, mas corporificam melodramaticamente preciosos pontos de
cristalização de alguma sentimentalidade em uma narrativa dura, que se quer
tomar como documental, mas, que se revela preocupada em produzir significa
ções em vários níveis de recepção, o que acentua, em nosso entendimento, o seu
caráter de propaganda.
Como um elemento secundário em nossa exposição sobre o filme Os Boinas
Verdes, talvez fosse de alguma valia um breve levantamento de elementos extra-
fílmicos, que, de forma alguma, devem ser considerados como parte de nossa
análise narrativa e ideológica desse filme. Acreditamos que esses citados elemen
tos poderíam virtualmente ter contribuído tanto na fabulação de sua intervenção
pontual na batalha pela significação da guerra no Vietnã quanto como fatores
gratuitos de marketing na sua mobilização para o público em geral.
Há dados curiosos entre alguns elementos-chave do romance-reportagem ho
mônimo Os Boinas Verdes, publicado em 1965, e o filme.5 No primeiro, há a nar
ração de um jornalista cobrindo as atividades daquela unidade para a produção
de um livro, ou seja, é um trabalho free-lancer à busca de um comprador. No
filme, tem-se um repórter a serviço de um jornal (Chronicle Herald), que se pauta
pela oposição à invasão norte-americana no Sudeste Asiático. Isto é tornado ex
plícito quando, decorridos pouco mais de vinte minutos de filme, George chega
de mala e cuia ao Vietnã, e há este diálogo com o coronel Kirby: “Coronel, eu
aceitei a sua sugestão e vim aqui para observar.” A resposta do militar é ressen
tida: “Esta área não serve para jornalistas. Você pode se sujar”. Aqui está uma
primeira mudança fundamental porque vincula o filme a uma luta contra um
segmento de formação e veiculação de opinião pública.
A apropriação do romance pelo filme apresenta ainda algumas aproximações
e distanciamentos, tanto em intenções e procedimentos quanto em contextos
inspiradores, que, em uma parte, refletem, e em outra, refratam. Quanto a in
tenções, o texto de Robin Moore é a elaboração literária do que, inicialmente, era
uma reportagem investigativa sobre a formação dos Boinas Verdes, em Forte Bra-
gg (Carolina do Norte). Assim, trabalha-se em um campo com os procedimentos
da reportagem, mas o seu produto final é um texto tido como “não-ficção”, na
quilo que, à época, nos Estados Unidos, se intitulava romance-reportagem, bem
ao sabor dos preceitos do Novo Jornalismo. Da mesma forma como no filme, os
nomes das personagens no romance foram inventados. Segundo o autor, isto evi
5 Meus comentários a propósito desse romance são feitos a partir de um longo trecho - mais de 40 páginas
- publicado em S. O’Nam. (ed.) The Vietnam Reader. New York, Anchor, 1998.
História e cinema 299
tava que, no futuro, seus relatos viessem a prejudicar, tanto em carreira quanto
em imagem pública os militares nele envolvidos.
Quanto ao contexto que proporcionou, retrabalhados segundo suas especifici-
dades, romance e filme são estes, respectivamente. Em 1965, os mais importantes
eventos relacionados ao Vietnã, sob o ponto de vista dos norte-americanos, fo
ram: a Operação Rolling Thunder, que constitui no início do assumido bombar
deamento aéreo do Vietnã do Norte (fevereiro); a chegada das primeiras tropas
terrestres a Da Nang; e o primeiro combate entre esses fuzileiros e as forças da
Frente de Libertação Nacional (FLN). Em janeiro de 1968, ocorreu a ofensiva do
Tet. Tratou-se de um grande ataque dos vietcongues por todo o país. Embora
tenha sido uma derrota militar para os vietcongues, essa batalha acabou por co
locar a maioria da opinião pública norte-americana contra a intervenção. O fato
de os marines terem sido submetidos a um cerco de 77 dias, em Khe Sanh, foi
percebido pela mídia e pelo público como uma derrota. Em março, o presidente
Lyndon B. Johnson disse que não iria mais vai se candidatar à reeleição; e, em
maio, começava a primeira tentativa de conversação de paz em Paris.
Acreditamos que a estratégia de intervenção do produtor Wayne, além de levá-
lo a personificar aos 61 anos um militar de 39 (na caracterização do romance
homônimo), incorpora, como um possível recurso de força, de “autoridade”, um
pouco de uma persona sua, emanada em representações de militares vitoriosos,
é claro, em filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Civil Americana
e na Infantaria dos EUA. Um outro dado extrafílmico que, talvez, justifique um
pouco essa remissão para fora da narrativa de Os Boinas Verdes é que a figura
de Wayne acabou por ser associada, através de alguns desses filmes, a uma forte
presença no imaginário de soldados conforme o relato do diretor Delbert Mann.
Em 1961, esse cineasta estava fazendo locações em Camp Pendleton (Califórnia)
e, por curiosidade, perguntou a um grupo de recrutas fuzileiros navais o que os
fizera se aliar àquele grupo de manobras tão ofensivas das Forças Armadas. Mais
da metade respondeu: “Os filmes de John Wayne”.6
Um dos pontos de tensão na batalha cultural pela significação da guerra no
Vietnã durante a sua “fase americana” (1965-1973) teve como ponto de origem
certamente a produção jornalística, que será referida aqui apenas na modalidade
impressa. Um dos pontos mais críticos dessa situação está um pouco naquilo que
o filme de Wayne-Kellogg aparentemente pode estar respondendo e, se não o está
fazendo, as condições de sua produção e a época de estréia - junho de 1968, mes
mo período em que Lyndon Johnson renuncia à candidatura à reeleição - devem
ter servido como um instigador pano de fundo, pelo menos em termos de um
9 “Eu pensei que havia visto ou lido tudo sobre o que um homem pode fazer com outro, desde as câmaras de
tortura da Idade Média até às guerras de gangues e linchamentos de hoje em dia. Mas, isso - isso é diferente! Isso foi
feito a sangue frio por pessoas que se têm por civilizadas. Civilizadas! Elas sào degeneradas, idiotas morais. Ponham
esses pequenos selvagens no esgoto. Extermine-os, eu digo. Elimine-os da face da Terra.” (Trad. J. C. Lobo)
10 Oucasts. Metuchen, Scarecrow, 1989, p. 43.
304 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
conflito, enquanto, por outro lado, os hawks -a “linha dura” - resolvem-na mais
rapidamente por outras vias, de preferência, por métodos discutíveis, próprios à
“guerra suja”, à guerra da contra-insurgência. Em geral, na representação cine
matográfica da citada oposição, as figuras que mais se prestam ao papel de doves
são jornalistas, líderes religiosos, advogados ou jovens políticos.
Ao buscarmos pontos de contato do filme de Wayne-Kellogg com outros do
mesmo gênero, não esperávamos encontrar uma proposta de interligação dele
com um clássico: O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), de
David W. Griffith. Trata-se do ensaio The War Film> de N. Kagan,11 em que se
afirma que as sequências das atividades da Ku Klux Klan e do ataque da guerrilha
parecem antecipar muitas da idéias e tratamentos da guerra no Vietnã, citando,
por exemplo, Os Boinas Verdes. Para ele, os tangenciamentos estariam nessas re
presentações: a criança nativa, que é colocada do lado “correto” no cohflito; a
jovem que é disposta como “isca sexual” para o líder inimigo “depravado” e as
forças que agem apenas em situação de “defesa”.
Se aquela obra-prima da intolerância pôde apresentar em 1915 traços de represen
tação dramático-políticos a serem observados em 1968, não deixa de ser estimulante
reparar que o filme de Wayne-Kellogg tenha assinalado pelo menos uma antecipação
do que teríamos com o boom pós-Vietnã: o pseudoproblema entre observar ou par
ticipar no jornalismo, como está em um breve diálogo. Em um dos ataques a “Dodge
City”, o jornalista se posiciona atrás de uma trincheira. Trata-se de algo curioso por
dois motivos: ele não é repórter de imagens e não está armado. Parece que o inusitado
da cena é que, a determinada altura do tiroteio, um dos sargentos o questione irada-
mente: “É isso aí, Beckworth! Você vai ficar aí como um árbitro ou vai nos ajudar?”.
Ato contínuo, ele se prontifica a passar munição para um morteiro.
O que aparece brevemente na seqüência da trincheira é, em verdade, uma pseu-
doquestão e, como tal, é assim freqüentemente colocada no cinema. No filme
em foco, a tomada de posição do jornalista não deve se corporificar necessaria
mente em sua participação em combate. Esse é um dos macetes de roteiro em
que jornalistas, principalmente repórteres de imagens são cobrados a tomar um
partido» são solicitados a instrumentalizar o seu ofício por uma causa em jogo.
Na verdade, há todo um ressentimento por parte de militares com relação a jor
nalistas nas ficções hollywoodianas, e não acreditamos que sejam apenas nelas.
É raro um filme sobre o Vietnã, realizado a partir de 1975, em que não haja uma
tomada ou uma curta seqüência na qual, de uma hora para outra, apareça um
repórter de texto, fotográfico ou uma pequena equipe de TV exclusivamente para
Em resumo, o que se buscou efetuar aqui foi uma análise de um processo edu
cacional: como tornar um cético correspondente de guerra em um novo alia
do, num meio inicialmente adverso, a mídia. Ou seja, buscamos rastrear alguns
passos, artifícios e artimanhas de como se constrói um exemplo multiplicador a
partir do que se constituiu em um aluno-modelo.
Parte V
1 Esse artigo apresenta conclusões parciais da minha tese de doutorado, realizada sob a orientação da Profa.
• Dra. Maria Helena Rolim Capelato. Almeida, Cláudio Aguiar. Meios de comunicação católicos na construção
de uma ordem autoritária: 1907/1937, tese de doutoramento em História, São Paulo, USP, 2002.
2 Professor da UN1FIEO. Doutor em História pela FFLCH-USP, autor do livro O cinema como "agitador de
almas": ‘Argila’, uma cena do Estado Novo. São Paulo, Annablume, 1999.
5 Romano, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado, São Paulo, Kairós, 1979, p. 112.
310 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
4 Afonso Celso, “Três anos de vitórias”, Vozes de Petrópolis, julho a dezembro de 1910, pp. 3-8.
s Beuttenmüller, Leonila. Frei Pedro Sinzig, Petrópolis, Vozes, 1955, p. 24.
6 Realizado em junho de 1909, o Congresso da Diocese de Niterói havia sido transferido para Petrópolis
como uma forma de comemorar a sua elevação à categoria de cidade. Ver Aristides Werneck, “O Primeiro
Congresso Católico de Petrópolis”, Vozes de Petrópolis, julho de 1909 a junho de 1910, pp. 119-127.
7 Sinzig, Pedro. "Avante! Brasil Católico”. Vozes de Petrópolis, julho de 1909 a junho de 1910, pp. 253-256.
História e cinema 311
O Centro da Boa Imprensa seria dirigido por uma diretoria formada “por sete
membros confirmados pela autoridade diocesana do Arcebispado do Rio de Janeiro”,
com amplos poderes para “demitir, por motivos graves e verificados» qualquer um
destes membros, bem como pedir contas quando e quantas vezes quiser”.8 Malgrado
sua estreita ligação com o Arcebispado do Rio de Janeiro, o Centro da Boa Imprensa
se apresentava como uma instituição independente, assumindo total responsabilidade
pelos seus atos e pelas opiniões veiculadas em suas futuras publicações.9 Subordinada
ao Centro da Boa Imprensa, a Liga da Boa Imprensa seria formada por grupos10*que
contribuiríam com uma quantia mensal de 10$000 (dez mil-réis) destinada ao Cen
tro. Além do recolhimento dessa contribuição mensal, os membros da Liga da Boa
Imprensa também tinham o dever de rezar pelo sucesso da obra, e contribuir “para o
desenvolvimento de bons jornais” e “fundação de bibliotecas católicas”.11
Os projetos de utilização do cinema como um agente propagador do catolicismo
devem ser vislumbrados no bojo desse processo de reorganização dos agentes de pro
pagação do catolicismo. Debatida nas páginas de Vozes de Petrópolis desde 1911,12 a
8 A primeira diretoria do Centro da Boa Imprensa foi formada por Hosannah de Oliveira (Diretor), Pedro
Sinzig, Abelardo Bueno de Carvalho, Jonathas Serrano e Manoel Moreira da Fonseca (Secretários). Um
tesoureiro e um bibliotecário completavam a lista dos sete membros da diretoria da instituição.
9 Cabería ao Centro da Boa Imprensa as atribuições de: “1 - organizar em todo o país, e dirigir, a Liga da Boa
Imprensa; 2 - fazer escrever, mediante contrato, por jornalistas exímios e especialistas, artigos de atualidade, sobre
assuntos sociais, apologéticos etc.; folhetins, apreciações bio e bibliográficas, correspondências, parlamentares etc.;
remetendo-os, na mesma data, aos jornais que para este fim concorrerem com a pequena contribuição mensal
estabelecida; 3 - servir de intermediário entre os ditos jornais e algumas agências como a ‘Agence de la Presse
Nouvelle* (...), ‘Bureau d*informations religieuses et sociales’ (...) > o ‘Pressbureau* do ‘Pius Verein’ austríaco; os
centros de informação do Augustinus Verein* alemão etc.; 4 - pedir e transmitir com urgência informações seguras
de acontecimentos importantes, para defesa dos caluniados etc.; e contribuir o mais possível para a união de vistas
nas questões do dia; 5 - manter relações com os secretariados das dioceses brasileiras; 6 - promover edições de bons
romances, obras apologéticas eoutros livros de sã literatura, originais e traduções; 7-ajudar a fundação de bibliotecas
populares e círculos de leitura, baseados em princípios cristãos, remetendo gratuitamente bons livros; 8 - contribuir
na medida de suas forças para a fundação de novos jornais, para formação de bons jornalistas e escritores, e para
socorro de jornalistas católicos caídos na indigência; 9 - promover congressos, reuniões» conferências, e publicações
que visem a propaganda de seus fins; 10 - manter uma biblioteca onde se possa haurir todas as informações
necessárias”. Sinzig, Pedro, “Passo decisivo”, Vozes de Petrópolis, julho de 1909 a junho de 1910, pp. 439-445.
10 Esses grupos não tinham um número fixo de membros, devendo reunir tantos quanto fossem necessários
ao pagamento da quantia mensal de 10$000 (dez mil-réis).
" “Estatuto da Liga da Boa Imprensa**, Vozes de Petrópolis, vol. 3, janeiro a junho de 1910, pp. 663-664.
12 No segundo semestre de 1911, o Dr. Dermeval Nunes da Cunha fez uma longa explanação sobre o
cinema, explicando o funcionamento de projetores, produção de filmes etc. Privilegiando questões de
ordem técnica, Dermeval Nunes destacou a influência do novo meio de comunicação, manifestando uma
grande preocupação com as comédias que dever iam ser fiscalizadas com um maior rigor pelas autoridades:
“Infelizmente, a maior parte das vezes, as fitas que a esse gênero se dedicam propendem para a imoralidade
malsã, quando não para a franca obscenidade, que urge ser energicamente proibida pelas autoridades”.
Nunes, Demerval. “O Cinematographo”, Vozes de Petrópolis, julho a dezembro de 1912, pp. 276-278.
312 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
13 A uma primeira classificação por gêneros-“fitas recreativas instrutivas” e “atuais”- o franciscano sobrepunha
uma outra que, levando em consideração o “ponto de vista da moral cristã” dividia a produção cinematográfica
entre “fitas boas" e “fitas más”. Embora a maior parte das “fitas más” pertencesse ao gênero “recreativo” Pedro
Sinzig chamava atenção para os filmes “instrutivos" e “atuais”que, exibidos em circunstâncias erradas, podiam ser
tão perigosos quanto as comédias e melodramas: “Imaginem que, em tempo de greve, um cinema freqüentado
pelo mundo operário, apresente cenas de greve, de sabotage, de provocações, de excessos... ou que, quando tensas
as relações de dois estados, se mostrem fitas que deverão provocar demonstrações políticas" Sinzig, Pedro. “O
César moderno”, Vozes de Petrópohs, julho a dezembro de 1911, pp. 654-657,713-715.
14 Nomeado para o cargo pelo Departamento de Polícia do Distrito Federal, cabia a Pio B. Ottoni organizar
a censura das salas teatrais e dos “teatro-cinemas”.
15 Otonni, Pio B. “A censura teatral no Rio de Janeiro: os bastidores de uma campanha”, Vozes de Petrópolis,
janeiro a junho de 1912, p. 710.
História e cinema 313
16 Sinzig, Pedro. “Salve, União Católica Brasileira!” Vozes de Petrópo/ís, janeiro a junho de 1913, pp. 577-581.
17 “Julgo (...) improcedente a alegação feita de que, achando-se as salas de espetáculo às escuras, facilita
cenas desagradáveis, uma vez que todas as casas de diversões são policiadas, exatamente para garantia da
ordem e da moralidade, e nem o povo brasileiro tem menos moralidade que os outros povos, onde filmes
cinematográficos são exibidos do mesmo modo que nessa capital.” (F. E de Almeida, Ofício do 2° Delegado
Auxiliar, setembro de 1912) Apud Pedro Sinzig, “Salve, União Católica Brasileira!” p. 580.
18 Francisco de Lins era um dos diversos pseudônimos utilizados por Pedro Sinzig: o padre franciscano que
havia nascido na cidade de Lins.
19 Lins, Francico. “Guia para cinemas”, Vozes de Petrópolis, julho a dezembro de 1912, pp. 1259-1261. Cabe destacar
que Vozes de Petrópolis menciona a existência de diversas salas cinematográficas católicas espalhadas pelo Brasil:
Centro Popular Católico (Petrópolis), Cinema Modelo (Belo Horizonte) e o Cinema Católico (Recife).
20 Tapajós, Julio. “A União destruída pelo fogo!”, Vozes de Petrópolis, julho a dezembro de 1915, pp. 1419
1420.
314 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
21 Azevedo, Soares. “De sobre as ruínas” Vozes de Petrópolis, 01/12/1915, pp. 1425-1429.
22 “O diabo no cinema*', A União, 20,11/03/1917, p. 2. Os redatores não chegaram a descrever uma das cenas
que devem lhe ter sido mais chocantes: a atriz Miss Ray dançando nua com o próprio demônio Essa cena nos
é descrita por Paulo Emílio Salles Gomes segundo o qual Le film du Diable destacou-se por apresentar, talvez
pela primeira vez no cinema brasileiro, um nu feminino. Gomes, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no
subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Embrafilme, 1986, p. 52.
25 A União, 43,31/05/1917.
24 Cabe destacar que, a partir de então, a coluna "Palcos e Telas” tinha presença assegurada em todos os
números do jornal. Em 22 de novembro de 1917 A União abriu espaço para a coluna apenas com o intuito
de informar que, em virtude de uma indisposição do redator encarregado da sua elaboração,"Palcos e Telas”
não traria, excepcionalmente, as suas críticas.
25 Em 1917 o jornal A União passa a ser publicado duas vezes por semana: periodicidade que ainda não lhe
permitia divulgar as avaliações dos filmes e das peças de teatro enquanto elas ainda estivessem em cartaz.
História e cinema 315
debilitar e depois destruir os regimes existentes, pela infusão de idéias políticas dissolventes,
pela disseminação de princípios cuidadosamente calculados para agirem progressivamente
com força destruidora, passando do liberalismo ao radicalismo, do radicalismo ao socialismo
(como as coisas estão dando certo!) e do socialismo ao comunismo e à anarquia, conclusão
lógica dos princípios igualitários.33
30 A montagem de trustes foi uma das marcas do mercado cinematográfico no período. Os conflitos entre
exibidores e distribuidores, pela elevação de suas margens de lucro, levaram diversas companhias a atuar nas
duas pontas do comércio cinematográfico: os exibidores compravam filmes diretamente de seus produtores nos
Estados Unidos e na Europa, ao mesmo tempo que os distribuidores assumiam o controle de salas de exibição.
” Vide Jumireita, “Agência Telegráfica Internacional Católica”, Vozes de Petrópolis, janeiro a junho de 1911, pp.
843-846; Pedro Sinzig, “O púlpito moderno”, Vozes de Petrópolis, janeiro a junho de 1912, pp. 14-17; Francisco
de Lins, “Toque de fogo! Lágrimas de sangue!”, Vozes de Petrópolis, janeiro a junho de 1912, pp. 579-584.
32 Vide Poyer, Marino. “O Bolchevismo Russo: sua origem, doutrina, métodos e lideres”, Vozes de Petrópolis,
16/10/1919, p. 1257; Viveiros de Castro, “A Questão Social: o socialismo, o judaísmo e o catolicismo”, Vozes
de Petrópolis, 01/02/1920, pp. 172-174; Muckermann,“Os Bolchevistas em Vilna até o assalto à Igreja de São
Casimiro”, Vozes de Petrópolis, 16/08/1920, p. 975.
33 Azevedo, Soares de.“O Perigo Judeu", Vozes dePetrópolis, 01/11/1920, pp. 1313-1315.
34 Na opinião de Pedro Sinzig os judeus controlavam não só o cinema norte-americano, mas também
o alemão. Num artigo publicado na revista A Tela, em 31 de março de 1921, Pedro Sinzig denunciou a
ação desses inimigos que, com seu enorme poderio econômico» nâo enfrentavam dificuldades para exibir
História e cinema 317
as suas produções no território brasileiro: “Infelizmente [os filmes imoraisl devem a sua exibição a uma censura
benigna, para não dizer conivente com o mal. Não é para admirar, já que as gigantescas empresas cinematográficas,
que possuem cidades inteiras com o seu pessoal e os seus cenários, em grande parte estão nas mãos de judeus,
que financeiramente saíram vencedores da guerra mundial Seguem eles outra lei e outra moral, diferente de nós,
brasileiros, e da que adota a Alemanha, em sua enorme maioria cristã. Isso, porém, pouco importa. O que querem
é ganhar. Daí a recorrência a uma técnica deslumbrante, a cenas ultra luxuosas e a concessões muito grandes a
sensualidade”. Sinzig, Pedro. Filmes alemães? Não! De judeus., A Tela, 6,27/03/1921, p. 43.
35 Vide “Mais filmes inéditos” e “Novos filmes”, Vozes de Petrópolis, julho a dezembro de 1918, pp. 1042-1043,
1131-1133.
36 Sinzig, Pedro. “Enfim! Films inoffensivos!” Vozes de Petrópolis, 01/01/1919, pp. 107-109. Esse mesmo artigo
seria posteriormente reproduzido, com algumas modificações, em A União, 11,06/02/1919, p. 1.
318 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
seus “bons filmes” desde que estes lhes fossem enviados para exame. O Centro
da Boa Imprensa não cobraria nada pela “propaganda”, reservando-se, porém, o
direito de denunciar aquelas fitas que atentassem contra os princípios católicos.
Com relação a esse último ponto, no entanto, os editores lembravam que o perigo
de um filme receber má avaliação não deveria afastar os distribuidores da revista.
Frequentemente era muito fácil “salvar” uma fita para isso bastando um pequeno
corte de cenas, substituição ou supressão de letreiros explicativos.37
Seguindo uma classificação que já havíamos visto na coluna “Palcos e Telas” do
jornal A União, A Tela dividia os filmes que analisava em três categorias: “Inofen
sivos”, “Aprovados com reservas” e “Prejudiciais”, Estas classificações não eram
de todo estanques uma vez que, freqüentemente, um filme “prejudicial” às “mo
ças” e às “crianças” poderia ser visto sem restrições por “adultos educados”.
O desejo de orientar os distribuidores e produtores e disciplinar o gosto dos
católicos foi determinante para a configuração daquele modelo de crítica que se
consagrou nas páginas da revista. “Inofensivos”, aprovados “Com Reservas” ou
“Prejudiciais” os filmes eram quase sempre analisados com uma grande rique
za de detalhes, em críticas que se faziam acompanhar por um pequeno resumo
dos enredos. O detalhamento das avaliações estava relacionado com o desejo de
orientação dos produtores e distribuidores que, sabendo exatamente o que ha
via desagradado os críticos da revista, estariam melhor instrumentalizados para
adequar suas produções ao público católico. A inclusão de resumos dos enredos,
por sua vez, era considerada como uma etapa fundamental para o julgamento
criterioso dos filmes, permitindo também que os leitores pudessem identificar as
fitas caso elas fossem exibidas, posteriormente, com um título diferente.
Como o termo nos dá a entender, a classificação de um filme como “inofensivo”
não o tornava uma obra especialmente recomendável ao público católico, signifi
cando apenas que o mesmo não colocava em risco a moral de seus espectadores. Os
filmes aprovados “Com Reservas” mereciam um tratamento semelhante ao que era
conferido aos “Inofensivos”: as fitas eram cuidadosamente analisadas buscando-se
destacar as falhas que, uma vez eliminadas, permitiríam a sua reclassificaçãó na
categoria “Inofensivos”.38 No caso dos filmes “Indesejáveis” o desejo de não pro
pagandear o pecado determinou que esses fossem descritos de forma muito mais
sumária quando comparados aos “Inofensivos” e “Aprovados com reservas”. Sem
descrever com maiores detalhes os enredos que lhes provocavam asco, os cronis
tas de A Tela limitavam-se a denunciar, com veemência, os quadros de “sedução,
1o - Sem recorrer a épocas do passado ou a vida dos santos, o filme A Justiça Divina nos
apresenta cenas modernas, dos nossos dias, em que, como sempre, se toca a virtude sublime
como o vício abominável.
2o - Não falta a ostentação - ao lado da pobreza - do luxo dos Cresos modernos, mostrando
o filme que o catolicismo sabe harmonizar, de modo digno e artístico, as suas convicções com
as exigências da moda (...)
3° - As máximas religiosas não proíbem o amor, mas querem-no digno e puro, embora
terno e grande (...)
4o - O filme deu ensejo para excelentes máximas sobre educação. O padre Cosgrowe, já em criança,
fora acusado falsamente. Correndo à mãe, esta levou-o ao quadro do Calvário “Cristo no meio dos
ladrões” e fê-lo perdoar. Foi esta lembrança que lhe deu força quando condenado à morte.
,9 Os dois livros que teriam inspirado o enredo de Justiça Divina haviam sido editados no Brasil: Vítimas do
dever, de S. J. Spillman, editado pela Tipografia São Francisco, e O sigilo da confissão, de L. Heitter, publicado
pela Vozes de Petrópolis.
320 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
As qualidades identificadas por Pedro Sinzig em Justiça Divina nos ajudam a de
finir o perfil de cinema desejado pelos católicos do Centro da Boa Imprensa. Sin
tonizando-se com a nova pauta que vinha norteando as ações da Igreja Católica,
que dedicava uma atenção cada vez maior às questões de ordem política e social»
Justiça Divina deixava de lado a vida dos santos e os episódios do passado para
debruçar-se sobre os problemas do homem contemporâneo. Exaltando os valores
do catolicismo sem transformar-se numa “obra ascética”, o filme estava apto a
agradar as platéias do cinematógrafo, entremeando um enredo preocupado com
questões religiosas e sociais com luxo» romance e suspense. É importante destacar
40 Sinzig, Pedro. “A aurora do cinema modelo: o sigilo da confissão num filme americano", A União, 28,
06/04/1919, p. 3.
História e cinema 321
que, ao apontar as virtudes de Justiça Divina, Pedro Sinzig recupera alguns temas
da milenar polêmica em que diversos autores católicos, a despeito do risco repre
sentado pela idolatria, defenderam o uso das imagens em função do seu potencial
pedagógico.41 Num período em que o luxo se fazia presente não somente nas telas,
mas também nas salas em que os filmes eram exibidos, Justiça Divina recorria à
“ostentação” que, em diversos artigos de Vozes de Petrópolis, era apontada como
um dos fatores determinantes da insatisfação dos operários com sua condição so
cial. O potencial pedagógico do filme justificava essa e outras concessões ao gosto
de um público que, emocionando-se com os quadros de Justiça Divina, renovaria
a sua fé no catolicismo. Recorrendo às mesmas armas de seus adversários, a Igreja
Católica procurava divulgar, através do cinema, a importância dos valores católi
cos, da família e da caridade que poderiam servir de barreira para conter a maré
montante do “bolchevismo”: um dos temas centrais do filme O Transgressor.
Encontramos as primeiras informações sobre O Transgressor numa matéria publi
cada em A Tela em 17 de novembro de 1920. Um artigo do cronista ALC informa que
o Centro da Boa Imprensa havia iniciado contatos com a Bayardo Filmes: associação
sediada em Buenos Aires que exercia, “por intermédio do cinema, uma propaganda
intensíssima e de grande eficiência, em prol do catolicismo”. Aproximados pela re
vista católica argentina La Esperanza, a Bayardo Filmes e o Centro da Boa Imprensa
haviam dado os primeiros passos no sentido de “entabolar relações de grande impor
tância entre os dois países para uma ação conjunta em prol do catolicismo”.42 ALC via
com grande expectativa essas conversações entre os católicos brasileiros e argentinos
que aumentavam as chances de que os filmes produzidos pela Associação Católica
de Arte Norte-americana, distribuídos com exclusividade na América do Sul pela
Bayardo, viessem a ser exibidos no Brasil. Além do filme Justiça Divina, já exibido no
Brasil, e A Vítima, ALC destacou A Conversão, título argentino do filme O Transgres
sor, como um dos maiores sucessos da produtora norte-americana, manifestando o
desejo de que o mesmo viesse a ser exibido nas telas dos cinemas brasileiros.
Os desejos expressos pelo cronista ALC foram realizados. Em 17 de março de
1921, A União noticiou a exibição de O Transgressor,43 que recebeu uma enorme
atenção do jornal em sua edição de 27 de março: a foto de um homem portando
um revólver, acompanhada pela legenda “O primeiro que tocar no padre Conway
é um homem morto”; e uma cena de multidão descrita como “A Erupção bolche-
41 A respeito dessa questão consultar: Almeida, Cláudio Aguiar. “Em busca da dracma perdida: o cinema
entre a imagem de Deus e a do Ditador” História: Questões e Debates, Curitiba, Editora UFPR, vol. 20, n. 38,
janeiro a junho de 2003, pp. 63-100.
42 ALC. “A Conversão”, A Tela, 45,17/11/1920, p. 349.
45 A União, 22,17/03/1921, p. 1.
322 Capelato, Morettin» Napolitano e Saliba
vista”44 davam algumas pistas sobre o tema de O Transgressor aos ansiosos leitores ca
tólicos. A curiosidade despertada pelas duas fotografias era saciada na página seguin
te do jornal que narrava» com uma grande riqueza de detalhes» o enredo do filme.
Rico industrial» Carson não vê limites para a exploração de seus empregados»
entrando em conflito com o filho Carlos que tenta» das mais variadas formas» aju
dar aos empregados do pai. Ao recusar-se a indenizar Clara, operária “cândida” e
“simpática” que havia se ferido num acidente de trabalho, Carson faz “germinar”
no coração dos “bondosos trabalhadores um sentimento de raiva que um agita
dor profissional, Petrovsky, se encarrega de avivar com discursos incendiários”.
Convalescendo do acidente, Clara recebe a visita das filhas de Carson. Uma
imagem da Virgem exposta no lar operário atrai a curiosidade de Maria, a filha
mais nova de Carson, que indaga Clara a respeito do seu significado. Com uma
explanação sobre a Virgem Maria, em que se destacava a sua recente aparição em
Lourdes, Clara inicia Maria na doutrina católica, presenteando a filha de Carson
com um crucifixo. Chegando à sua casa, Maria dá o crucifixo que havia ganho
de Clara a seu pai, destacando que o mesmo poderia ajudá-lo num momento de
dor. O empresário que» “depois do dinheiro”, tinha Maria como o seu bem mais
amado, aceita o presente da filha, guardando o crucifixo em seu bolso.
Dirigindo-se ao gabinete de Carson para interceder pelos operários, Carlos “encon
tra um sacerdote, venerável e bondoso ancião, que recebera as mais duras apóstrofes
de seu pai pelo motivo de ter ido pedir a melhoria da situação dos trabalhadores e
preveni-lo do movimento que se preparava”. Decepcionado com tamanha intransi
gência, Carlos tem uma briga com Carson que» furioso, expulsa o filho de casa.
Depois de haver insuflado os trabalhadores para que estes não comparecessem ao
trabalho, Petrovsky invade, durante a noite, a residência de Carson furtando projetos
governamentais que deveriam ser executados nas fábricas do empresário. Informado
da briga de Carson com Carlos, o agente encarregado de investigar o roubo elege o
filho do empresário como seu principal suspeito, partindo no seu encalço.
Incitados por Petrovsky, os funcionários de Carson entram em greve. Enquanto
os trabalhadores protestam na frente da fábrica, um aliado de Petrovsky rouba o
carro de Carson e atropela, intencionalmente, a filha de um dos operários: incidente
que é habilmente manipulado por Petrovsky, que insufla os trabalhadores a invadir
a fábrica e incendiá-la. Cercado por uma multidão de operários em fúria, Carson
é atacado pelo pai da garota morta, sendo salvo pela providencial intervenção do
padre, que revela aos trabalhadores a identidade do verdadeiro autor do atrope
lamento. Detido pelo agente do governo, Carlos é levado à fábrica do pai, onde é
A União, 25.27/03/1921, p. 2.
História e cinema 323
inocentado por Clara que apresenta alguns papéis que sua mãe havia recebido de
Petrovsky: os projetos governamentais que haviam sido roubados. Desmascarado,
Petrovsky foge em um automóvel e acaba caindo num precipício.
Carson, ante essas desgraças, faz um exame retrospectivo do suceder dos últimos tempos.
Pensa na sua fábrica, que esteve a ponto de ser destruída, e que sua vida mesma correu perigo.
Recorda a intervenção do sacerdote, que o salvou; apercebe-se de que em um dos bolsos
do seu casaco traz o Cristo, que lhe dera sua filhinha, e vem a sua memória as palavras da
pequena. Tudo isso exerce uma tão grande influência em seu espírito, que ele sofre uma
transição definitiva.
45 Cabe destacar, no entanto, que nem todos encontrariam o seu lugar na nova ordem que estava sendo
fiindada: se a conversão de Carson evidencia a possibilidade de adesão dos setores mais intransigentes da
burguesia a esse pacto social, a morte de Petrovsky sugere a necessidade de eliminação dos “agitadores
profissionais" que não teriam lugar nessa nova sociedade.
324 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
46 Em sua edição de 6 de abril de 1919, um artigo de A Tela destacou os efeitos das ações dos católicos
contra o “mau cinema**. Com o crescimento da afluência do público nas sessões de filmes “inofensivos” e
a sua diminuição na apresentação de filmes "indesejáveis” alguns exibidores passaram a solicitar que as
agências lhes enviassem somente os filmes que fossem aprovados pelo Centro da Boa Imprensa. Na opinião
dos editores de A Tela, as pressões exercidas pelos exibidores e pelas agências teriam efeito direto sobre a
produção: "as próprias fábricas” seriam forçadas a “orientar-se pela crítica do Centro da Boa Imprensa”,
privilegiando a realização de filmes “inofensivos” e aprovados “com reservas”. “Progredindo? Sim!”, A Tela,
5,06/04/1919, p. 1.
47 Em função dessas dificuldades, os dirigentes do Centro da Boa Imprensa tentaram criar “linhas especiais”
de filmes católicos que, no período estudado, não chegaram a se concretizar.
História e cinema 325
48 Sobre o tema, consultar: Walsh, Frank. Sin and Censorship: The Catholic Church and the Motion Pictures
Industry, New Haven, Yale University Press, 1996, pp. 23-28.
O Cinema e o Estado na terra do sol:
a construção de uma política cultural de
cinema em tempos de autoritarismo
1 Mestre em História Social (UFRJ); Professor de História de Ensino Médio do Colégio Pedro II; Professor
dos cursos de Licenciatura em História e Pós-Graduação (Especialização) em História do Brasil da Fundação
Educacional Unificada Campograndense (FEUC);
328 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
2 Miceli, Sergio. "O Processo de Construção Institucional na Área Cultural Federal (Anos 70)”; e Cohn,
Gabriel. “A concepção oficial da Política Cultural nos Anos 70”, in Miceli, Sergio (org.). Estado e Cultura
no Brasil. Sâo Paulo: Difel, 1984. pp.65-66,88-92. Um dos críticos mais contundentes e lúcidos desse novo
período do Cinema Novo é Jean-Claude Bernardet, assíduo colunista de periódicos da imprensa alternativa:
cf. Bernardet, Jean-Claude. "Uma estética bem-comportada”. Opinião, Rio de Janeiro, 23 jun. 1976, p.32; e
“Abrir as Lentes”. Movimento, Sào Paulo, 06 out. 1975, p. 25.
3 Johnson, Randall. The Film Industry in Brazil: Culture and the State. Pittsburgh, University of Pittsburgh,
1987, pp. 162-167.
História e cinema 329
4 Dahl, Gustavo. “Mercado é Cultura”. Cultura, Brasília/DF, MEC, n. 24, ano 6, p. 127, mar. 1977.
5 A trajetória política e estética do Cinema Novo pode ser analisada a partir de suas próprias produções cinematográficas,
as quais se constituem, ao mesmo tempo, em registro, documento e proposta. Nesse sentido, cf. Avellar, José Carlos.
O Cinema Dilacerado. Rio de Janeiro, Alhambra, 1986; e Xavier, Ismail. “Do Golpe Militar à Abertura: a resposta do
Cinema de Autor”, in O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Paz e Terra, 200] (Coleção Leitura), pp. 51-126.
6 Sobre o processo de distensão e as correspondentes políticas adotadas à época pelos governos militares, cf.
Mathias, Suzeley Kalil. Distensão no BrasiL O projeto militar (1973-1979). Campinas, Papirus, 1995; Mendonça,
Sonia Regina de. Estado e Economia no Brasil: opções de Desenvolvimento. 2. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1988;
Oliveria, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor. Forças Armadas, Transição e Democracia. Campinas, Papirus,
1994; Stepan, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
7 Rocha, Glauber. “Vatapá no Ventilador”, O Pasquim, Rio de Janeiro, 31 out.-06 nov. 1975; pp. 6-7; “Glauber
por Glauber”, Crítica, Rio de Janeiro, 8-14 set. 1975, p. 14; “Miséria Cinematográfica”, O Pasquim,
330 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Rio de Janeiro, 10-16 jun. 1976; pp. 6-7; “Querem me matar (ou votem na ARENA)!”, O Pasquim, Rio de
Janeiro, 13-19 ago. 1976, pp. 14-15. Para uma análise mais detida a respeito da proposta estética e política
de Glauber Rocha, cí. Gerber, Raquel. O Mito da Civilização Atlântica - Glauber Rocha, Cinema, Política e a
Estética do Inconsciente. Petrópolis, RJ, Vozes, 1982.
8 Cf. Amancio, Tunico. Artes e Manhas da Embrafilme. Cinema Estatal Brasileiro em sua época de ouro
(1977-1981). Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2000, pp. 41-69. Sobre a relação
estabelecida entre Estado e produção cinematográfica no Brasil cf. tb. Ramos, José Mário Ortiz. Cinema,
Estado e Lutas Culturais: anos 50,60,70. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983; e Simis, Anita. Estado e Cinema no
Brasil. São Paulo, Annablume, 1996 (Selo Universidade, 51).
9 Mathias, Suzeley Kalil, op. cit.» p. 67.
História e cinema 331
referida comissão, Nelson Pereira dos Santos, o qual dispensa referências, e Anto
nio Augusto dos Reis Veloso e Cláudio Antonio Fontes Diegues, cujos sobrenomes
não deixam dúvidas quanto às suas origens. A presença de Biazino Granato, como
representante do INC, seria somente para justificar a necessidade de um órgão con
denado à extinção estar presente nas reuniões que decidiriam sua liquidação: mera
formalidade. Sobrenomes à parte, e articulações também, certo é que podemos
vislumbrar a montagem de uma política cultural de cinema já no final do governo
Médici, como foi afirmado anteriormente. Dessa forma, a permanência de alguns
articuladores dessa política, homens-chave para a definição de seus pontos básicos,
no governo Geisel (caso de João Paulo dos Reis Veloso, Manuel Diegues Jr. e Lean
dro Tocantins), serviría justamente para garantir a transição e a continuidade. A
comissão formada pelo MEC é o melhor retrato dessa estratégia.
Em dezembro do mesmo ano, ficaria pronta a proposta da referida comissão. O
INC seria extinto, sendo suas atividades absorvidas pela Embrafilme, no tocante
à co-produção e distribuição de filmes em território nacional e financiamento da
indústria cinematográfica. A parte normativa e fiscalizadora ficaria ao cargo de um
futuro órgão a ser criado: o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), enquanto a
parte cultural (pesquisa, memória, curtas-metragens, filmes educativos etc.) ficaria
a cargo de um outro órgão: a Fundação Centro Modelo de Cinema (CENTROCI-
NE), uma espécie de Instituto Nacional do Cinema Educativo, mas com funções
muito mais ampliadas e diversificadas.14 Após quase um ano de debates e pressões
de vários setores, é promulgada a Lei n° 6281, de 09 de dezembro de 1975, extinguin
do o INC e passando seus bens e capital para a Embrafilme, além da maior parte das
funções que antes desempenhava. O CONCINE será criado em 16 de março de 1976,
com a função de regulamentar e fiscalizar o mercado e a indústria cinematográfi
cos, agindo em assessoria direta com o MEC. Além dessas mudanças, a Embrafilme
teria seu capital social devidamente ampliado e passaria a ter dotação orçamentária
regular.15 A estrutura do CONCINE, composta por uma secretaria-executiva, com
representantes de vários ministérios e dos diretores-gerais do DAC e da Embrafilme,
e um conselho deliberativo, com representantes dos produtores, exibidores/distri-
buidores e realizadores, possibilitaria a formulação de diretrizes cujo encaminha
mento se daria através de regulamentações várias, disciplinando o mercado e am
pliando a faixa de atuação ao produto nacional, além de criar vantagens para a sua
produção. Ainda em 1975, a reserva de mercado seria aumentada para 112 dias ao
ano, garantindo uma parcela maior para a difusão do produto nacional. Por outro
lado, o fato de não ter sido criado o CENTROCINE, relegando toda área cultural
(não-comercial) a uma diretoria da Embrafilme (a Diretoria de Operações Não-
Comerciais - DONAC), revelava uma estrutura concentradora, onde as atividades
cinematográficas relacionadas ao mercado teriam privilégio em detrimento daque
las consideradas culturais, sem retorno comercial. Levando-se em consideração que
a estrutura do antigo INC privilegiava mais a área cultural do que, propriamente,
a comercial, poderemos entender os efeitos perversos dessa concentração, a qual
possibilitaria uma alocação maior de recursos à disposição da co-produção e distri
buição de filmes comerciais e um maior poder aos representantes de produtores e
realizadores preocupados com a ocupação do mercado.16
Além dessas mudanças referentes exclusivamente à área cinematográfi
ca, outras foram realizadas no âmbito geral da cultura; a implantação do
Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), o lançamento da Campa
nha de Defesa do Folclore Brasileiro, a criação da Fundação Nacional de Arte
(FUNARTE), com a finalidade de financiar as atividades artísticas no cam
po da música, das artes plásticas, do folclore e da pesquisa em geral, além
da expansão das atividades do Serviço Nacional do Teatro.17 Essa estrutura
extremamente complexa e diversificada possibilitaria ao Estado intervir em
todos os campos da criação artística, regulamentando-os e controlando-os.
Da mesma forma, tratando-se de um mercado onde a presença abusiva do
produto estrangeiro era regra, a utilização dessa necessidade do apoio estatal
se daria no sentido de desenvolver uma linguagem apropriada a uma época de
distensão. Ainda que descartando por completo as relações primárias de ca
ráter nacionalista, como aquelas levadas à frente na gestão Jarbas Passarinho,
podemos vislumbrar a preocupação em difundir uma imagem empreendedo
ra de um Estado que antes era tido como empreendedor de sucesso na área
econômica, mas opressor na política e na cultura. Essa preocupação ficaria
melhor sintetizada em um documento lançado no segundo semestre de 1975,
o qual procuraria orientar as políticas levadas à frente pelos diferentes órgãos
da área cultural: a Política Nacional de Cultura.18
Ainda que não tenha tido a intenção de se tornar um documento básico, nor-
teador de toda produção cultural a ser apoiada pelo Estado, a Política Nacional
de Cultura constituiu-se num registro das idéias que influenciaram e justifica
ram a elaboração de uma política cultural na época. Realça a opção por uma
linha nacionalista e voltada ao popular e reforça os mitos que embasaram a
19 Idem, p. 5.
20 Idem, p. 8.
História e cinema 335
A preocupação com o homem brasileiro, assim concebido, faz parte dos objetivos a
serem alcançados pelo processo de desenvolvimento em que se encontrava a socieda
de. O mesmo Estado, promotor do desenvolvimento econômico e da modernização
forçada, era colocado como o único instrumento capaz de elevar a qualidade dos agen
tes, estabelecendo os paradigmas em torno dos quais se daria tal formação, haja vista
ser, também, o guardião da memória e aquele que preserva a identidade nacional. Esse
plano desenvolvimentista baseia-se na postura protecionista: cabe ao Estado proteger
o homem brasileiro dos efeitos nefastos da modernização, que massifica e desvirtua,
destruindo os autênticos valores que configuram uma cultura nacional. Assim:
21 Idem,p.9.
22 Idem,p.l2.
336 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
consumo de massa daqueles destinados a uma esfera erudita. Para o referido autor,
a presença do Estado se faz justamente onde a iniciativa privada não interfere, em
uma esfera onde a circulação da produção é restrita às frações cultas da sociedade
e é nessa separação que o Estado demonstra sua força, através de uma estratégia
de marketing que o coloca como o único ponto de apoio da produção considerada
erudita, ou de circulação restrita, não fazendo parte do mercado de bens culturais
destinados à massificação.23 Convém, no entanto, lembrarmos que, a partir do
momento em que o Estado traz para si o dever de proteger e apoiar a produção
cultural que não encontra respaldo, nem espaço, no mercado, essa tarefa repre
senta justamente a intervenção desse mesmo Estado no setor onde a criatividade,
a inovação e a crítica deviam se fazer presentes. Os efeitos nefastos dessa presença
ostensiva, através do controle das linhas de crédito disponíveis e da elaboração de
políticas de preocupação uniformizadora, podem ser notados no tipo de produção
que será veiculada pelos órgãos oficiais encarregados. A finalidade dessa atuação é
exposta, sem meias-palavras, na parte final do referido documento:
23 Miceli, Sérgio. "Teoria e Prática da Política Cultural Oficial no Brasil**, in Miceli, Sérgio (org.). Estado e
Cultura no Brasil. São Paulo, Difel, 1984, pp.101-105.
24 Política Nacional de Cultura, op. cit., p. 30.
História e cinema 337
(...) Resumidamente se pode dizer que essa ideologia concebe o Estado como uma entidade
política que detém o monopólio da coerçâo, isto é, a faculdade de impor, inclusive pelo
emprego da força, as normas de conduta a serem obedecidas por todos. Trata-se também de
um Estado que é percebido como o centro nevrálgico de todas as atividades sociais relevantes
em termos políticos, daí uma preocupação constante com a questão da “integração nacional”.
(...) Procura-se garantir a integridade da nação na base de um discurso repressivo que
elimina as disfunções, isto é, as práticas dissidentes organizadamente em torno de objetivos
pressupostos como comuns e desejados por todos (...).25
25 Ortiz, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 115-116.
26 Cohn, Gabriel, op. cit., pp. 88-92.
27 Aspectos da Política Cultural Brasileira. Brasília, Conselho Federal de Cultura/MEC, mimeo. 1976, p. 71.
338 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
28 Diegues Jr.» Manuel. A Estratégia Cultural do Governo e a Operacionalidade da Política Nacional de Cultura.
Brasília, DAC/MEC, mimeo, 1976-1977.
29 Diegues Jr., Manoel, op.cit., pp. 10-11.
30 Stepan, Alfred C. Os Militares: da Abertura à Nova República. 4 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 37-39.
31 Oliveira, Eliézer Rizzo de. op.cit., pp. 32-35; cf. tb. Mathias, Suzeley Kalil. op.cit., pp. 123-127.
32 Klein, Lúcia. "Brasil Pós-1964. A Nova Ordem Legal e a Redefinição das Bases de Legitimidade”, in Klein,
Lucia & Figueiredo, Marcus. Legitimidade e Coação no Brasil pós-64. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1978, pp. 80-88.
História e cinema 339
gundo a autora, Geisel, em seu discurso de Io de agosto de 1975, iria redefinir o con
ceito de distensão, esvaziando o seu conteúdo político e resumindo-o às políticas
sociais então desenvolvidas pelo governo. Nesse sentido, o governo fazia concessões
ao aparelho repressivo, e mesmo a domesticação que iria operar nessa área, a partir
de 1977, serviría somente para aparar as arestas, sempre no sentido de reafirmar a
hierarquia militar subvertida pelos próprios órgãos de repressão e nunca no sentido
de punir os culpados pelos abusos ou mesmo admitir a existência dos mesmos.
Triste ironia de todo esse processo é a morte de Vladimir Herzog, sob tor
tura, no cárcere da sede do II Exército, em São Paulo. Intelectual vinculado à
área de comunicação, mais precisamente ao trabalho em televisão, jornalista de
expressão, reconhecido internacionalmente, estudioso da cultura, Herzog tinha
como ambição dirigir um filme, dando início, assim, a uma carreira de cineas
ta, aproveitando-se das vantagens que a política cultural oferecia na época. Sua
morte desencadeou uma forte reação por parte da sociedade civil e somente após
ter acontecido um fato semelhante, o assassinato do líder operário Manoel Fiel
Filho, em janeiro de 1976, no mesmo quartel e nas mesmas condições, foi que
o governo Geisel tomou providências no sentido de afastar o comandante do
II Exército, substituindo-o por outro de sua inteira confiança. Entretanto, essas
medidas paliativas não alteraram o rumo do processo de distensão, o qual conti
nuou a ser lento e gradual, devidamente controlado pelo Estado autoritário que o
gerara e dentro dos limites estabelecidos pelo próprio aparelho militar.33
Essa fase, no entanto, marca uma grande expansão na produção cinematográfi
ca, a qual é possibilitada pela soma de diversas mudanças empreendidas, princi
palmente, na administração da Embrafilme já a partir de 1974. A mais importan
te dentre estas foi a consagração do sistema de co-produção, o qual se tornará um
verdadeiro processo de seleção de produções a serem apoiadas mais diretamente
pelo Estado e consagrará um determinado tipo de filme, considerado como gê
nero cinemão. Havia três formas de auxílio à produção: o financiamento simples,
com juros de 4% ao ano e com exigência de avalistas e comprovação do capital
social da empresa produtora, para fins de garantia; a co-produção, onde a Em
brafilme entrava com 30% do custo total da produção, tornando-se parceira des
ta; e o adiantamento sobre a distribuição, mais propriamente denominado avanço
sobre a receita de bilheteria, o qual se constituiría numa espécie de empréstimo,
sem correção, vinculado ao desempenho do filme no mercado.34 Conforme ex
M Skidmore, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 335
348, 385-396.
34 Cf. Altberg, Júlia de Abreu, op.cit., p. 56; Amando, Tunico. op. cit., p. 47-50; e Villela, Sérgio Renato Victor.
Cinema Brasileiro: Capital e Estado (Três Notas Breves sobre Cinema Brasileiro). Rio de Janeiro, CNDA/
FUNARTE, mimeo. 1979, pp. 56-57.
340 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
plica Sérgio Renato Victor Villela, inúmeras vezes a Embrafilme se viu forçada
a aumentar sua participação na produção, procurando evitar o mal maior que
seria a interrupção das filmagens; outras vezes, o que era quase a regra, os or
çamentos apresentados eram superestimados, sendo o filme produzido somente
com os 60% do custo, já devidamente cobertos pela Embrafilme.35 Levando-se
em consideração essas vantagens, poderemos entender a razão de o sistema de
financiamento simples ter perdido espaço para o de co-produção, que passará
a ser o verdadeiro motor da política de fomento à produção dirigida pela Em
brafilme. Outra característica perversa desse sistema de co-produção teria sido
o desvirtuamento de sua finalidade original. Criado para atender justamente os
realizadores que não dispunham de fortes produtoras por trás de seu trabalho,
acaba sendo intermediado por essas mesmas grandes produtoras, que terminarão
por submeter os realizadores às suas condições e passarão a controlar» inclusive,
a concessão de créditos por parte da empresa estatal.36
Todo esse aparato de apoio à produção encontrará um suporte na política de dis
tribuição que a Embrafilme começará a implantar a partir de 1974. Com Gustavo
Dahl à frente da Superintendência de Comercialização (SUCOM) e a implantação
do sistema de avanço sobre a distribuição, a distribuidora da empresa começara a ter
uma forte penetração no mercado, até porque conciliava duas tarefas: organização
da distribuição e fiscalização, esta última transferida à Embrafilme por força de um
convênio assinado entre essa empresa e o CONCINE, em 1976. Nesse sentido, a em
presa dispunha de três suportes para consolidar sua política: o incentivo e financia
mento à produção, a fiscalização da reserva de mercado e a distribuição.37 Resultado
da agressividade demonstrada nessa área são as resoluções do CONCINE referentes
ao mercado exibidor. Em fevereiro, a Resolução n° 8 regulamentou a obrigatorieda
de de exibição do filme nacional, garantindo sua reserva de mercado e instituindo
normas mais draconianas no sentido da exibição e de sua fiscalização. A Resolução
n° 10, de 1977, instituiu a lei da dobra, mecanismo através do qual o filme brasileiro
que estivesse em cartaz numa determinada sala, só poderia ser retirado de exibição
caso ficasse comprovado que ele não havia atingido 60% da média semanal de pú
blico em comparação com as médias obtidas no semestre imediatamente anterior;
mesmo tendo sido revogada posteriormente pelas resoluções de nos 23 e 24, de 1978,
a regra em si não sofreu modificações substanciais. Outra resolução, de n° 18, do
mesmo ano, regulamentará a obrigatoriedade da exibição de um curta-metragem
brasileiro antes de qualquer filme estrangeiro e instituirá a obrigatoriedade do re
Mas ultimamente desenvolve-se uma produção aceita por diversas camadas de público,
e isto constitui um fato novo na produção cinematográfica brasileira. (...) Parece que para
se entender melhor este fenômeno é necessário fazer apelo à televisão, particularmente à
TV Globo. (...) Além dos interesses comerciais que apresenta tal tipo de produção, críticos
encontram também interesses ideológicos. (...) Talvez simplificando um pouco, isto é, falar da
” Santos, Tercio. “O Curta contra o Kung Fu.” Movimento, São Paulo, 30 jan.,1978., p. 16.
39 Mello, Alcino Teixeira de. Legislação do Cinema Brasileiro (Atualizada e Comentada). Rio de Janeiro,
Embrafilme/MEC, 1978,vol. I, pp. 35-36,183-185, 190-197,217-227.
342 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
“união nacional” via “padrão Globo de qualidade”. (...) Na gíria profissional, usa-se a expressão
“cinemão da Embrafilme” para designar uma das tendências mais fortes da atual produção.40
40 Bernardet, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: Propostas para uma História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, pp. 92-94.
41 Bernardet, Jean-Claude. “Uma Estética bem comportada”. Opinião, Rio de Janeiro, 23 jun. 1976. p. 32.
42 Aguiar, Flávio. “Dinheiro, Câmara, Ação”; e Simões, Inimá. “O Rico Primo Pobre”, in “Cinema Brasileiro S A.”
Movimento, Sâo Paulo, 19 jul. 1976» pp. 16-18. Cf. tb. Ramos, José Mário Ortiz, op. cit., pp. 127-132.
43 Amancio, Tunico, op. cit., pp. 94-95.
História e cinema 343
47 Takahashi, Jo. Cinema Brasileiro: Evolução e Desempenho. São Paulo, Fundação Japão, 1985, pp.142-147.
48 Johnson, Randall, op.cit., pp. 174-176.
49 Amancio, Tunico. op.cit., pp. 93-94. Cf. tb. Pereira, Carlos Alberto M. & Miranda, Ricardo. O Nacional e o
Popular na Cultura Brasileira: Televisão. São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 57-83.
História e cinema 345
Nossa proposta oferece aos países mais pobres, inclusive aqueles que ainda não dispõem de
uma cinematografia expressiva, o acesso a um enorme mercado compulsório que os colocará
no mesmo nível dos países mais avançados do bloco que constitui o Mercado Comum.
Por isso a proposta brasileira nada tem de neocolonialista, já que se fundamenta exatamente no
respeito às culturas regionais e à política preconizada pela Organização dos Estados Americanos,
de acatamento à não-intervenção e auto-determinação dos povos. (...).
O Brasil, cujo cinema ainda luta pela afirmação definitiva, compreendeu essa lição a
tempo. E foi precisamente com base nos resultados de uma política oficial de proteção à
nossa indústria que pudemos oferecer um modelo aos países irmãos que sofrem os mesmos
percalços no afã de conquistar a autonomia.51
50 Braga, Teodomiro. "Os Pequenos reagindo contra o Imperialismo”. Movimento, Sào Paulo, 8 ago, 1977, pp. 14-16.
51 Farias, Roberto. Por um Mercado Comum de Cinema. Filme Cultura, Rio de Janeiro, Embrafilme/ MEC,
n. 28, pp. 56-57, fev. 1978.
346 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
nochanchadas. Esses tipos de produção, muitas vezes não apoiados pela Embra
filme, continuarão a comandar a ocupação do mercado pelo produto nacional
e se revelarão as mais eficientes quanto à conquista do gosto do público. Essas
produções, sim, serão as responsáveis pelo enfrentamento com o produto estran
geiro e atrairão para si o público tão almejado pelos cinemanovistas, justamente
o aspecto popular que tanta falta fazia aos seus projetos totalizantes. Em um es
tudo divulgado no início de 1977, publicado no Anuário de 1975 da Embrafil
me e denominado “Informações Sobre a Indústria Cinematográfica Brasileira”,
o balanço dos grandes sucessos de público não se mostra tão favorável assim às
produções cinemanovistas. Entre os vinte maiores sucessos de bilheteria do ci
nema brasileiro, durante o período de existência da Embrafilme, as produções de
Amácio Mazzaropi ocupam o Io, o 11°, o 12°, o 14° e o 17° lugares, com destaque
para o recordista de bilheteria em 1977: O Jeca contra o Capeta; ao lado de porno-
chanchadas e outras produções do gênero trapalhões.52 Em outro levantamento,
feito pelo Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica a respeito do desem
penho do cinema brasileiro no ano de 1977, a situação quase não havia sofrido
alterações, permanecendo o amplo domínio das pornochanchadas, com vinte e
quatro filmes entre os cinqüenta primeiros, jecas e trapalhões:
Uma surpresa entre as 50 receitas mais significativas de 77: “32 foram conquistadas por
filmes paulistas” e apenas “16 por filmes cariocas” (além de dois gaúchos, naturalmente com
Teixeirinha). Também “é destacável o fato de que somente seis das 50 maiores arrecadações”
- no mesmo ano - “contaram com alguma participação da Embrafilme”. No período, as
grandes figuras de bilheteria foram os Trapalhões (Renato Aragão e sua turma), com quatro
campeões de receita; Mazzaropi, com dois; e o já citado Teixeirinha, com dois.53
Esses levantamentos e estudos inspiram mais dúvidas do que certezas. Como po
demos perceber, a participação da Embrafilme na ocupação do mercado cinema
tográfico nacional é pequena, ainda que significativa. Por outro lado, a preferência
do público consumidor recai sobre filmes dos gêneros pornográfico, comédias popu
lares e de temáticas regionais. A política desenvolvida pela Embrafilme não obteve
sucesso em alterar esse gosto, mas, por outro lado, ao garantir uma maior fatia do
mercado para o produto nacional e criar uma ínfima infra-estrutura para o desen
52 “Informações sobre a Indústria Cinematográfica Brasileira”, Anuário 1975. Rio de Janeiro, MEC/DAC/
Embrafilme, 1976; Frederico, Carlos. “Um balanço da Indústria Cinematográfica Brasileira.” Opinião, Rio
de Janeiro, 25 fev. 1977, p. 24; Tavares, Zulmira R. “De pernas pro ar”; e Barcelos, Caco. “O Jeca contra o
Tubarão”. Movimento, São Paulo, 5 abr.1976, pp. 15-16.
53 Azeredo, Ely. "Problemas Brasileiros e o Bloqueio Pornô.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 set 1978. Caderno B, p. 2.
História e cinema 347
54 Cf. “Por um Cinema Popular, sem Ideologias. Entrevista de Cacá Diegues a Pola Vartuck.” O Estado de S.
Paulo, São Paulo, 31 ago. 1978; “Cacá Diegues contra a censura das Patrulhas Ideológicas” Jornal da Tarde,
São Paulo, 31 ago. 1978; Cacá Diegues: “Uma Denúncia das Patrulhas Ideológicas”, Jornal do Brasil, Rio de
janeiro, 3 set. 1978; “Cacá Diegues fala do cinema com coragem”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3
set. 1978; Cacá Diegues: “Um Manifesto pela liberdade e contra as ‘Patrulhas Ideológicas’”, O Globo, Rio de
Janeiro, 5 set. 1978. Cf. tb. Pereira, Carlos Alberto M. & Hollanda, Heloísa Buarque de. Patrulhas Ideológicas
Marca Reg. - Arte e Engajamento em debate. São Paulo, Brasiliense, 1980.
348 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
55 “O Projeto do Movimento fracassou, diz Bernardet. Entrevista de Jean-Claude Bernardet a José Geraldo
Couto”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 mar. 1993. Caderno Mais, p. 6; cf. tb. Johnson, Randall. “Ascensão
e Queda do Cinema Brasileiro (1960-1990)”, Revista USP- Dossiê Cinema Brasileiro, São Paulo, n. 19, pp.
40-41, set.-out.-nov. 1993.
História e cinema 349
1982, vemos a crise do próprio processo de distensão política, agora chamado aber
tura; e, ao mesmo tempo, vemos a desintegração do movimento cinemanovista e a
fragmentação de sua imagem de Brasil, tão cultivada entre 1974 e 1979.56
Muito embora tenham sido severamente criticados pela participação na ela
boração da política cultural de cinema, os cinemanovistas não usufruíram os
frutos de sua aplicação na mesma proporção do seu empenho em explicar-se e
defender-se. Sua vitória efêmera consistiu no fato de que, enquanto prevaleceu a
censura e a forte intervenção do Estado no mercado cinematográfico, puderam
se apresentar como uma espécie de reserva moral do cinema brasileiro, intér
pretes da identidade nacional, arautos da nova civilização em gestação, diante da
impossibilidade de difusão de outros produtos mais críticos e mesmo do fato
de a grande parte da produção nacional que dominava o mercado não possuir
tais preocupações. Mas, no dia-a-dia do mercado cinematográfico, a história era
outra. Na luta contra o capeta, representado pelo produto estrangeiro e pelos
exibidores, o jeca levava a melhor.
56 A respeito dessas contradições e do debate político e cultural existente na época, cf. “O excesso de filmes
nas prateleiras vai paralisar a produção. A catástrofe se avizinha. Como evitá-la?”, Entrevista com Nelson
Xavier. Ganga Bruta, Rio de Janeiro, Publicação Brasileira de Cinema, Órgão da Federação dos Cinedubes
do Estado do Rio de Janeiro, n.l, pp. 6-7, ago.-set. 1978; Santos, Tercio. “No Beco entre a fama e a fome.
Um reduto de técnicos e atores de cinema no Rio, esperando sempre pelo próximo filme" Movimento, São
Paulo, 13 set. 1977, p. 15; Avellar, José Carlos. “A Teoria da Relatividade”, in Novaes, Adauto (coord.). Anos
70: Cinema. Rio de Janeiro, Europa, 1979-1980, pp. 63-66; “O Cinema Proibido: Algumas Incríveis Histórias
de Filmes Interditados ."Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 ago.1978. Caderno B, p.8;“São Saruê: O Nordeste
Censurado”; e “O Index do Cinema”, Ganga Bruta, Rio de Janeiro, Publicação Brasileira de Cinema. Órgão
da Federação dos Cineclubes do Estado do Rio de Janeiro, n. 2, pp. 4-5, jan.-fev. 1978; Toledo, Caio Navarro
de. “Glauber Rocha: Um gênio intocável?” Movimento, São Paulo, 31 ago.-6.set. 1981. p. 24. Sobre a censura
às obras cinematográficas no decorrer do regime militar, cf. Simões, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura
cinematográfica no Brasil. São Paulo, Editora SENAC, 1999.
O cineclubismo na América Latina:
idéias sobre o projeto civilizador do movimento
francês no Brasil e na Argentina (1940-1970)
1 Historiadora, Doutora em Estudos sobre a América Latina pela Université de Toulouse Le Mirail. Desde
agosto 2003 atua como professora/pesquisadora, com bolsa de recém-doutor do CNPq, nos departamentos
de História e Cinema da UFSC.
2 Ver: Viany, Alex. O Processo do Cinema-Novo. Rio de Janeiro, Ed. Aeroplano, 1999. Gettino, Octavio. Cine
Argentino, entre lo possibley lo deseable. Buenos Aires, Ediciones CICCUS, 1998.
3 Tomo o conceito de civilização da“Teoria dos processos de civilização” de Norbert Elias. Ver. Elias, Norbert O Processo
Civilizador. Formação do Estado e civilização. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Zahar, 1993. voL 2. Brandão, Carlos
da Fonseca. Norbert Elias. Formação, educação e emoções no processo de civilização. Petrópolis, Vozes, 2003.
352 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
4 A expressão “cine-club” foi criada por Luis Delluc quando lançou, em 14 de janeiro de 1920, o hebdomadário
Journal du Cine-Club, posteriormente chamado somente de Cine-Club, onde Delluc militava por um cinema
francês de qualidade, livre das pressões econômicas e com uma postura de avant-garde artística. Em junho de 1920
o cineasta organiza um primeiro encontro no cinema parisiense Pepinière, onde André Antoine e Émile Cohl dão
conferências sobre a sétima arte. O último número de Cine-Club foi publicado em fevereiro de 1921, três meses
depois Delluc cria a primeira revista francesa de reflexão sobre cinema, Cinéa. Baptiste, Michel. “Cine-Club” in
Passek, Jean-Loup. Diaionaire du Cinema. Paris, Larousse, 1992, pp. 125-126. Sobre a relação do cinema com as
vanguardas artísticas das duas primeiras décadas do século XX ver o texto analítico de Ismail Xavier, fundamental
para a historiografia sobre cinema mundial no Brasil, publicado em 1978: Xavier, IsmaiL Sétima arte: um culto
moderno. São Paulo, Perspectiva/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
5 O cinema passa de curiosidade técnica (final do século XIX) à diversão popular, guardando esse “estigma”
durante a primeira metade do século XX. O movimento cine-dube dos anos 1920 pretendeu fazer uma
História e cinema 353
seleção investindo na promoção de filmes ditos não comerciais, e muitas vezes de difícil compreensão para um
público popular. No seu manifesto, Canudo lança um apelo aos cineastas de talento» “tentados pelo comércio fácil”
afim de que voltassem suas realizações para a pesquisa estética, para o crescimento do cinema, pois só assim a “arte
total do século XX” poderia realizar-se plenamente. Ele escreve: “Mas esta arte de síntese total que é o cinema, este
recém- nasddo fabuloso da Máquina e do Sentimento, deixa de ser um recém-nascido, entrando em sua infánda.
Sua adolescência chegará em breve, agarre sua inteligência e multiplique seus sonhos; nós pedimos para apressar sua
evolução, para precipitar sua juventude. Nós necessitamos do cinema para criar a arte total, a via pela qual todas as
outras desde sempre se dirigiram” (Grifos do autor) Esse manifesto foi publicado pela primeira vez em 1923, no n. 2
da revista mensal organizada por Canudo, La Gazette des sept arts, reeditado em 1995. Canudo, Riccioto. Manifeste
des Sept Arts (Ia edição 1923). Paris, Nouvelles Éditions Séguier, 1995, p. 8. (Collection Carré d’Art).
6 Na França entre 1921 e 1940 o número de aderentes ao cineclubismo não ultrapassa os dez mil, contrariamente
ao período de popularização do movimento, entre 1945 e 1955, onde o número de aderentes chega a 200
mil. Aurenty Jean-François. Le mouvement ciné-club en France dans 1’après-guerre: 1945-1955. Dissertação de
Mestrado em História, Paris 111, Censieur, 1994» p. 23.
7 Sobre o CASA, ver.“O Manifesto de Canudo, O Cineclubismo e a Crítica de Luis Delluc”, in Xavier, Ismail Sétima arte: um
culto moderno. São Paulo, Perspectiva/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978, p. 41 -49.
8Tartakowsky, Danielle. LeFrontPopulaire. La vieestà nous. Paris, Gallimard, 1996. Sadoul.Georges. Le Cinéma
pendant la Guerre, 1939-1945, in Histoire Général du Cinéma. Tome VI, Paris, Éditions Danõel, 1954.
354 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Eu quero agradecer aos membros de cineclubes pela dedicação à causa do cinema. Divulgando a
cultura cinematográfica. Permitindo que um vasto público aprecie obras essenciais os cineclubes
facilitam, de forma segura, o trabalho daqueles que estão comprometidos na defesa do cinema
francês nos acordos internacionais. É do conhecimento de todos que nós sempre defendemos a
idéia de que cada nação deve ter a possibilidade de se expressar de forma independente, por seus
próprios meios e por todas as técnicas existentes no mundo. O cinema é hoje o mais moderno e
popular veículo propagador de idéias, é natural que nosso cinema seja defendido e protegido.*12
cinema francês. Barrot, Olivier. L’Écran Français 1943-1953, histoire d’unjournal et d'une époque. Paris, Les
Éditeurs Français Reunis, 1979.
12 Citado por Barrot, Olivier, op. cit., p. 249.
356 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
13 Pierre Kast escreve na revista Écran Français, ainda em 1948: "Sem dúvida alguma o papel do cine-dube
é de revelar uma obra cinematográfica de valor, porém seu papel mais urgente neste momento é outro. Em
nosso país cinco milhões de espectadores não são suficientes para cobrir os gastos de um grande filme. Além
das taxas exigidas, para a realização, os franceses não vão muito ao cinema. Deste modo não há condições para
se criar um forte cinema nacional. O papel dos cineclubes é então de aumentar o número de espectadores,
multiplicando os pólos de atração para o cinema. Um membro a mais em um cineclube é um espectador
assíduo desviado ao cinema. Um verdadeiro fanático” Citado por Barrot, Olivier, op. cit., p. 251
H Ver: "A Estética do Testemunho: Chaplin-Club”. in Xavier, Ismail, op. cit., pp. 199-263. Ver igualmente:
Ribeiro, José Américo. O Cinema em Belo Horizonte, do cineclubismo à produção cinematográfica na década
de 60. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1997.
História e cinema 357
O Clube de Cinema de São Paulo foi fechado logo em seguida, pela ditadura do
Estado Novo, e ressurgiu em 1946.15
Nesse mesmo ano, Paulo Emílio parte para uma temporada de dez anos na
França. Dessa vez como representante da recém-fundada filmoteca do Museu
de Arte de São Paulo. O crítico torna-se correspondente da revista Anhembi e do
jornal O Estado de S. Paulo, além de freqüentar o curso de cinema no Instituí des
Hautes Etudes Cinémathografiques (IDHEC). Os escritos de Paulo Emílio Salles
Gomes, nas revistas Clima, Anhembi e no Suplemento Literário do jornal O Estado
de S. Paulo (anos 1945-1960), bem como sua atuação na divulgação do movimen
to cineclubista internacional no Brasil, foram fundamentais para a formação de
núcleos de discussão intelectual sobre cinema em todo o Brasil.16 A produção crí
tica de Paulo Emílio Salles Gomes, juntamente com a atuação de outros críticos
do movimento cineclubista regional - Walter da Silveira, em Salvador; Jacques
do Prado Brandão e Ciro Cerqueira, em Belo Horizonte; Plínio Sussekind Rocha,
retomando a atividade cineclubista na Faculdade Nacional de Filosofia; Paulo
Fontoura Gastai, em Porto Alegre etc. -, criou as bases teóricas para uma geração
de cinéfilos que compartilhava a idéia do cinema como manifestação cultural.
Em suas longas estadas na França, Paulo Emílio Salles Gomes entrou em contato com
o trabalho popular do movimento francês. Porém, no Brasil, a distância que separava (e
ainda separa, creio) o povo das intenções civilizadoras dos intelectuais era enorme e a
ação dos cineclubes se restringiu aos meios estudantis. Não havia, nos anos 1940-1950,
um projeto político social amplo onde esse movimento pudesse desenvolver o “com
promisso civilizador”, desenvolvido na França na década de 1930 pelo Front Populaire e
no pós-Segunda Guerra pelo movimento associativo de base católica ou comunista.
Na Argentina, o cineclubismo se desenvolveu de forma semelhante ao Brasil.
Nos anos 1930-1940, está ligado aos intelectuais e tem um projeto de pesqui
sa sobre a identidade nacional que é “cosmopolita”, partindo principalmente de
centros europeus como Paris e Roma, nas figuras de Vitória Ocampo e Jorge
Luis Borges, entre outros. Nos anos 1950-1960 uma nova geração acompanha a
formação da Federação Argentina de cineclubes e sua incorporação à Federação
Internacional de Cineclubes, criada na França em 1947.
15 O Clube de Cinema de São Paulo foi estudado por José Inácio de Melo e Souza e registrado no vol. 1 de sua
pesquisa intitulada O Delegado no Reino da Fantasia (1940-1946). Pesquisa mimeografada. São Paulo, Cinemateca
Brasileira, 1997. Ver do mesmo autor o estudo completo da trajetória intelectual de Paulo Emílio Salles Gomes,
publicado pela editora Record. Souza, José Inácio de Mello. Paulo Emílio no Paraíso. Rio de Janeiro, Record, 2002.
16 Não somente no eixo Rio-São Paulo, mas no Sul do Brasil os artigos de Paulo Emílio Salles Gomes eram
esperados com impaciência pelos cinéfilos de cidades como Porto Alegre, Pelotas e Florianópolis. Ver:
Lunardelli, Fatimarlei. Quando éramos jovens. História do Clube de Cinema de Porto Alegre. Porto Alegre,
UFRGS/EU da Secretaria Municipal de Cultura, 2000.
358 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
17 Ver: Elena, Alberto & López, Marina Dias. Tierra en trance. El cine latinoamericano en 100 películas. Madrid»
Alianza Editora, 1999. Getino, Octávio. “Argentina: quelques repères”, in Hennebelle Guy & Gumucio Dagron
Alfonso (orgs.), Les Cinémas de 1’Amérique latine, Paris, EHerminier, 1981, pp. 21-67.
18 Ver Villaça, Mariana Martins. “América Nuestra: Glauber Rocha e o cinema cubano”. Revista Brasileira de
História, 2002, vol. 22, n. 44, pp. 489-510. Infante, Guillermo Cabrera. Cine o sardina. Madri, Suma de Letras.
2001. Fornet, Ambrosio. “Trente ans de cinéma dans la révolution", in Paranagua, Paulo Antonio. (dir.) Le
Cinema Cubain. Paris, Centre Georges Pompidou, 1990, pp. 79-90.
História e cinema 359
19 Alguns desses autores tiveram seus artigos publicados em livros, tais como Neves, David. O telégrafo visual. São
Paulo, Editora 34, 2004; Viany, Alex. O Processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro, Ed. Aeroplano, 1999; Rocha,
Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. 2. ed. São Paulo, Cosac & Naify, 2003; Revolução do Cinema Novo.
2. ed. São Paulo, Cosac & Naify, 2004; O século do Cinema. Rio de Janeiro, Alhambra, 1985; Gomes, Paulo Emílio
Salles. Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Embrafilme, 1982.
360 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
ma. Isto não foi pouco visto que eram representantes de cinematografias recém-
saídas do “estado de subdesenvolvimento e mimetismo” em relação ao modelo
clássico holywoodiano. Nosso recorte cronológico, 1940-1970, permitiu obser
var as mudanças sofridas pelo meio cinematográfico internacional, nos níveis
técnico, estético e temático, onde na América Latina o cinema passa de simples
“comércio e manifestação popular” ou “diversão evasiva” a “objeto cultural” e
“manifestação artística de alto valor social”.
Acreditamos que o estudo da participação do meio cinematográfico no movi
mento de idéias latino-americanas nos permite igualmente observar a dimensão
da transformação do perfil dos intelectuais sul-americanos e de sua ação social. A
participação do meio cinematográfico no boom da publicação de revistas culturais,
na América Latina ou na Europa, nos indica que, entre 1940 e 1960, eram prepara
das várias mudanças no engajamento social das elites desses continentes.
20 O antropólogo Antônio Risério, em sen estudo sobre o trabalho cultural do reitor Edgard Santos, na Universidade
da Bahia, destaca, no Brasil da primeira metade do século XX, vários exemplos de intelectuais com idéias
“conservadoras”, porém empenhados no que eles chamavam de “elevação intelectual do povo” e na construção de
uma “Nação moderna”. Riserio, Antônio. Avant-garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995.
21 Tomo o conceito político de intelectual de acordo com os estudos desenvolvidos por Pascal Ory, Jean-
François Sirinelli e Rémy Rieffel. Ory, Pascal. Dernières questions aux intellectuels. Paris, Olivier Orban, 1990.
Sirinelli |ean-François, Les intellectuels en France, de Vaffaire Dreyfus à nos jours, Paris, 1986. Rieffel, Rémy,
La tribu des clercs: les intellectuels sous la Ve République. Paris, 1993. Insisto na idéia de que no Brasil o
intelectual engajado ainda não tinha um lugar de formador de opinião como ocorrerá a partir dos anos 1950.
A projeção social do trabalho de intelectuais da esquerda brasileira, como os casos de Caio Prado Júnior ou
do próprio Paulo Emílio, foi, de certa forma, interrompida pela pressão política do regime autoritário do
Estado Novo ou das elites conservadores no poder local.
História e cinema 361
pação da pequena burguesia citadina em uma ação social mais efetiva. Tratava-se
de homens de letras, artistas, profissionais liberais e eruditos que se empenharam
política e esteticamente na “construção de uma sociedade mais justa” onde as dife
renças sociais seriam atenuadas através de uma distribuição mais equilibrada das
riquezas e dos saberes.22 O período que vai do final da Segunda Guerra até princípios
dos anos 1970 foi marcado por uma rápida evolução econômica da Europa, aliada a
esse engajamento político de intelectuais e artistas, na busca de soluções para proble
mas urgentes da sociedade, da economia e da política dos países periféricos. Segun
do termos da época, esse “engajamento universal” proclamava a luta pela criação de
um “novo humanismo”, ou de um “socialismo com rosto humano” Essas propostas,
aparentemente antagônicas, foram emblemas de duas ideologias que movimentaram
o ocidente periférico nessa época: o socialismo e o cristianismo renovado.23
Na América do Sul, do pós-Segunda Guerra, duas manifestações artísticas ga
nharam força e projeção internacional: a literatura, a partir dos anos 1940-1950, e
o cinema, a partir dos anos 1960. A Nueva Novela argentina, o Novo Romance, o
Cinema Novo brasileiro e o Nuevo Cine cubano e latino-americano estão presen
tes nos círculos acadêmicos e mundanos da Europa e dos Estados Unidos.2425
22 Pierre Bourdieu,em um colóquio sobre os grandes temas filosóficos dos anos 1950,fala da influênda do pensamento
sartreano sobre a ação intelectual nos anos 1950-1960. Ele relata que suas teorias sociológicas foram, de certa forma,
motivadas por uma oposição inconsciente ao poder simbólico que Sartre exercia na École Normal Supérieure, onde
Bourdieu estudou, bem como sobre os intelectuais de sua geração. Porém, em 1981, num artigo homenageando
postumamente o filosofo existencialista, Pierre Bourdieu o classifica de “Intelectual Total”, aquele que esteve presente
em todos os momentos de luta do século XX, marcando suas posições sobre a liberdade no mundo. Ver Deschamps»
Christian (dir.). Les enjeux philosophique des années 50. Centre Georges Pompidou, Paris, 1989.
25 O nouvel humanisme e o socialisme à visage humain foram temas debatidos nos encontros de sociólogos e
homens de letras europeus, especialistas da América Latina eda África. Destacamos o encontro de intelectuais
e artistas pela soberania dos povos do Terceiro Mundo realizado em 1965, em Gênova. Ver nos anais do
congresso Terzo Mundo e comunitã Mondiale. Vigano, Aldo, “Terzo Mondo e comunitá Mondiale testi delle
relazioni presentati e tettre ai congressi di Gênova”. Editora Milano, Rome, 1967. Em 1965» o sociólogo
Edgard Morin utiliza a expressão nouvel humanisme no seu ensaio filosófico intitulado “Introduction à
une politique de rhomme”, onde ele escreve: “Nós vivemos uma generalização do fenômeno político onde
Marx e Freud tornaram-se complementares. É necessário integrar o amor e a ciência a uma política do
homem total: uma política multidimensional” Morin, Edgar, Introducion à une politique de rhomme. Seuil»
Paris» 1965. Jean Paul Sartre e Simone de Bouvoir, após uma visita de um mês ao Brasil e a Cuba, em 1960,
retornam à França e divulgam nas revistas France-Observateur e FranceSoir uma visão idílica de um país em
reconstrução onde “intelectuais e povo abraçam unidos a causa da transformação social e da criação de um
novo socialismo um u socialisme à visage humain". Na edição especial sobre Cuba da revista Partisans, François
Maspero, pedindo o engajamento universal dos intelectuais franceses» escreve : “Nestes dias trágicos onde
em nosso país, um regime nega o homem, nós acreditamos que o canto profundo da Revolução cubana nos
dá o gosto de viver e a força para combater”. Ver: Cuba in Patisans, jan./fev. Paris, 1961.
u Desdeosanos 1920,emtornodaescritoraargentina Vitória Ocampoeda revista Sur, um círculo de intelectuais
fazem a ponte entre Europa, Estados Unidos e América Latina. Nos anos 1950 Jorge Luís Borges, Octávio
Paz e outros intelectuais hispano-americanos participam da revista Quadernos Américanos, publicada em
362 Capelato, Morettin, Napolitano e baliba
Paris. O modernismo brasileiro também teve seus representantes na Europa. Através da relação apaixonada
entre Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars e do compositor Darias Milhaud, cresceu a
curiosidade dos círculos letrados da Europa pela nova expressão poética e artística luso-americana. Nos anos
1940-1960, personalidades como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Clarisse Lispector, renovam o interesse
dos meios eruditos europeus pelo romance brasileiro. Em 1950, a editora Gallimard cria a coleção “La croix
du Sud”, alimentando a publicação e divulgação de obras literárias latino-americanas na França. No campo
cinematográfico, os festivais de cinema na Itália, (Sestre Levante, Santa Margherita Ligure e Gênova) e na
Tchecoslováquia (Karlov Vary), promovem o cinema moderno mundial premiando novas cinematografias
nacionais. Junto à mostra cinematográfica são realizados encontros onde cineastas, escritores, sociólogos e
diletantes discutem sobre a utilização de temas da atualidade nos filmes do novo cinema do Terceiro Mundo.
O Cinema Novo, brasileiro, argentino e cubano, causa boa impressão e inflama debates sobre o papel
revolucionário da arte no Terceiro Mundo. Sarno, Geraldo. Glauber Rocha e o cinema latino-americano. Rio
de Janeiro, CIEC, 1995. Cozarinsky, Edgardo. Jorge Luis Borges: Sur le cinéma. Paris, Albatros, 1979.
25 Paranagua, Paulo Antonio (org.). Le Cinéma Brésilien, Cinéma Pluriel. Centre Georges Pompidou, Paris,
1987. Avelar, José Carlos. A ponte Clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Garcia Espinosa, Sanjines, Alea. Teorias
de Cinema na América Latina. São Paulo, Edusp/Editora 34,1995.
26 Em 1946, numa Europa ainda chocada pelo horror do nazismo, o governo francês retoma a idéia de apoiar a
realização de um festival de fundo cultural, sob a iniciativa de intelectuais e do meio cinematográfico nacional.
A Itália, já em 1933, havia lançado a Mostra Internacional de Cinema, na Bienal de Veneza, porém a ingerência
do governo fascista na escolha dos filmes afastou progressivamente os países produtores da competição. O
ano de 1936 parece ter sido um marco nessa ruptura. Em 1939 o governo francês através de seu ministro de
1’Instruction Publique et des Beaux Arts, Jean Zay, havia proposto a criação, na cidade de Cannes, às margens do
Mediterrâneo, de um événement cinématographique de niveau international. O primeiro Festival Internacional
do filme de Cannes deveria acontecer em setembro de 1939 e foi interrompido pela declaração de guerra da
Alemanha à França. Entre 20 de setembro e 5 de outubro de 1946, Cannes vê seu festival acontecer com filmes
de cineastas como Jean Cocteau, Charles Vidor, Alfred Hitchcock, René Clément, entre outros. Nessa primeira
edição o Festival de Cannes premiou o filme italiano Roma Cidade Aberta, uma idéia gerada na reação ao
fascismo. O cineasta Roberto Rossellini conquista o público lançando o Neo-Realismo fora das fronteiras
italianas e mostrando aos cinéfilos emocionados, “o trauma do povo italiano diante da destruição causada
História e cinema 363
pela ocupação inimiga”. Nos seus primórdios, o Festival de Cannes apresentou uma imagem contrária
ao Oscar holywoodiano e internacionalizou um conceito de qualidade moral e humana nos filmes em
competição. Ver: Du Planier, Daniel Toscan. Cinquante ans du festival de Cannes. Paris, Ramsay 1997.
27 O sociólogo Pierre Bourdieu, no seu estudo sobre o campo literário francês, nos mostra como a prosa
literária teve que dar provas de seu valor artístico e cultural, para penetrar nos meios acadêmicos e
eruditos. Durante o século XIX, essa nova expressão foi criando suas próprias academias, promovendo
concursos, fazendo oposição à poesia, que até a primeira metade do século XIX reinava toda-poderosa nos
círculos letrados do Ocidente. Acredito que o cinema passa por um processo semelhante ao da literatura
ou da fotografia. Nesse sentido, o discurso do meio cinematográfico da época pleiteia um lugar para essa
manifestação cultura) no seio da universidade, instância de legitimação cultural por excelência. Os novos
cinemas nacionais incorporam esse discurso intelectual da sétima arte. Algumas frases de representantes
dessas nouvelles vagues que percorrem o mundo e buscam essa legitimação cultural para o cinema são
reveladoras: “A estética é uma questão de ética”; “Le traweling est une question moral"; “Uma câmera na
mão e uma idéia na cabeça”, “Não queremos cinema, queremos ouvir a voz do homem” etc. O novo cinema
pretende observar, participar e se possível modificar a sociedade, buscando bases teóricas nas letras e ciências
humanas. Não é uma coincidência que nos anos 1960, disciplinas como a história, a sociologia e a filosofia
militam pela utilização de filmes como fontes para análises sociais. Diferentemente da América Latina, o
cinema na França só se tornou uma carreira universitária em 1973 com a criação, pelo crítico Henry Agel, da
cátedra de cinema na Université Paul Vaterie, Montpellier III. Bourdieu, Pierre,“Champ intellectuel et projet
créateur”. Les Temps Modernes, 22 année, n. 246, novembre, 1966. pp. 865-906.
364 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
28 Na América do Sul, os cineastas Fernando Birri, Fernando Solanas, Glauber Rocha e Thomas Gutíerrez Alea são
exemplos de artistas-intelectuais que utilizaram o suporte cinematográfico para se lançarem em análises sódo-
históricas de suas sociedades. Muitas vezes, de forma intuitiva, buscavam um respaldo científico para os temas
explorados em seus filmes. Foi na sociologia, em expansão na América do Sul nos anos 1960, e na semiologia francesa
que eles buscaram uma comunicação e não simplesmente influências. A meu ver, esse respaldo teórico, evidente em
seus filmes, facilitou a penetração desses cineastas na Europa. Principalmente Rocha e Solanas, que instalam, entre
1960 e 1975, um debate altamente teórico com a crítica francesa e italiana, no momento em que a pesquisa sobre a
especificidade da imagem cinematográfica se expandia buscando axiomas próprios à analise fílmica.
29 Segundo as idéias de dois intelectuais latino-americanos que marcaram profundamente essa geração de
amantes do cinema: Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro. Ver: Ribeiro, Darcy. El Dilema de América Latina. Buenos
Aires, Siglio Veintiumo Editores S.A., 1971. Zea, Leopoldo. “Latinoamérica en la formación de nuestro
tiempo”. Cuadernos Americanos, n. 5, México, 1965, pp. 7-68.
História e cinema 365
30 Segundo Aurenty, o cineclubismo francês abre filiais junto a sindicatos operários e rurais com o objetivo
de “formar um vasto público para apreender os valores sócio-morais de uma obra cinematográfica,
valorizando o cinema europeu: italiano, francês, russo e o cinema alemão dos anos 20, lutando assim contra
os nabos do cinema hollywoodiano”, op. cit., p. 78.
366 Capelato» Morettin» Napolitano e Saliba
Primeira lição, a programação no setor art etessai, diferentemente dos setores comerciais,
não se baseia no nome dos atores» mas no nome dos diretores. Porém o cinema d*art et
íTessai, impondo progressivamente uma nova mercadoria» o autor realizador, inicia um
movimento de recuperação de mercado que tomará importantes proporções na segunda
metade dos anos 70.”
debatidas nos meios cultos brasileiros a argentinos, nos anos 1980, como, por
exemplo, as causas da incomunicabilidade do cinema moderno desses países
com o público médio freqüentador de cinema ou o caso de Cuba, que após a
Revolução se torna um modelo de comunicabilidade à parte na América Latina.
Este trabalho tenta abrir novos eixos de pesquisa interdisciplinar onde o estudo
da participação do campo cinematográfico mundial, num movimento de idéias
latino-americanas, nos permite observar a dimensão da transformação do perfil
dos intelectuais no continente sul-americano.
O cineclube foi um lugar privilegiado para a circulação de idéias sobre ação
social dos artistas intelectuais. Comparando a evolução do movimento cine-
clubista no pós-guerra no Brasil e naArgentina, com sua matriz européia, e
tendo o caso de Cuba como contraponto, algumas questões nortearam esta
pesquisa: a) de que maneira o cineclube na América Latina, atendendo a um
público de elite, poderia se aproximar dos objetivos populares do movimento
francês do mesmo período?; b) por que esse movimento, na América Latina,
não desenvolveu a síntese tão desejada entre cultura cinematográfica e cul
tura geral através do cinema, pontos de divergência entre duas tendências do
cineclubismo francês nos anos 1950?; c) será que, impossibilitado de realizar
essa síntese, por seu caráter elitista, o movimento tenha se contentado em
permanecer num círculo fechado, onde o debate cultural era elevado, porém,
condenado a respeitar as tradicionais barreiras de classe?
5. Considerações finais
Consultando estatutos de criação de cineclubes, programações e propostas
para mostras e debates sobre cinema e revistas especializadas da época, pude
traçar essa breve retrospectiva das idéias fundadoras do movimento na Fran
ça, no Brasil e na Argentina. Penso que o cineclubismo ressurge em nosso
país, como na Argentina, pretendendo ser uma alternativa para a exibição de
filmes culturais. Sua expansão no final dos anos 1940, início dos 1950, liga-
se basicamente à resistência do cinema europeu culto ao produto estaduni
dense e, por outro lado, à aversão da elite intelectual brasileira e portenha
ao cinema de grande público produzido nestes países. Diante da dominação
do mercado exibidor pela produção cinematográfica estadunidense, os cine
clubes adotam o cinema europeu e suas discussões estéticas. Essa maneira
de encarar a atividade do cineclube refletia a via pela qual a elite intelectual
deveria se aproximar do cinema. Sendo culturalista o cineclube facilitou a
aproximação das elites ao movimento de renovação da linguagem cinemato
368 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
cultural brasileiro. Reconhecendo este fato básico» a VIII Jornada Nacional de Cineclubes
considera como dever principal do cineclubismo brasileiro, o aperfeiçoamento de formas
de divulgação do cinema nacional e adota para isso uma clara e definida posição em defesa
de nosso cinema. (...) Os esforços de elaboração de novas formas de trabalho devem partir
de uma avaliação tão realista quanto possível da realidade nacional em geral e do Cinema
Brasileiro em particular.33
w “Informe do conselho nacional de cineclubes, federação dos cineclubes do Rio de Janeiro, federação norte
e nordeste de cineclubes”. Carta de Curitiba. Teatro Paiol - Curitiba, 05/02/1974. Arquivo da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
O desenvolvimentismo e sua representação
cultural em Tire dié
lerança dos anos 1930 e 1940 estava no centro da reflexão desses estudiosos. Eles
queriam interpretar retrospectivamente a evolução da América Latina e, sobretu-
lo, racionalizar as propostas de mudança que permitiríam o crescimento econô-
nico e as reformas democráticas que alguns julgavam indispensáveis.
As críticas da CEPAL, no entanto, não atingiam a estrutura da sociedade latino-
imericana, nem os modelos dos países desenvolvidos. Para o órgão, os problemas
ia América Latina seriam resolvidos a partir da industrialização, do planejamento
xonômico e do fortalecimento dos seus mercados internos. Daí derivava a combi
nação do desenvolvimentismo com questão nacional. Os teóricos nacional-desen-
■rolvimentistas também afastavam a necessidade de reformas políticas estruturais
iistanciando-se assim das contradições de classe.
Para Luis Carlos Bresser Pereira tratava-se de
(...) la presión por la modemización se ejerce sobre América Latina la mayor parte de este
siglo, pero de manera muy especial desde el fin de la Segunda Guerra Mundial y, entonces, con
ciertos atributos muy distintos. En primer lugar, esta presión se ejerce, en gran medida, por
la acción y en interés de agentes no latinoamericanos, si quiere externos. En segundo lugar,
aparece formalmente como una propuesta de recepción plena dei modo de producir, de los
estilos de consumir, de la cultura y de los sistemas de organización social y política de los países
dei capitalismo desarrollado, considerados como paradigmas de una exitosa modemización.4
5 Pereira, Luis Carlos Bresser. “A economia política do subdesenvolvimento industrializado", in Padis, Pedro
Calil (org.). América Latina: cinqüenta anos de industrialização. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 91.
* Quijano, Aníbal. Modernidade identidady utopia en América Latina. Lima, Sociedad y Política ed., 1988, p. 9.
História e cinema 373
5 Como diz Quijano: “La hegemonia de la ‘razón instrumental’, es decir de la asociación entre razón y
dominación, contra la ‘razón histórica* o asociación entre razón y liberación, no solamente se consolidó y
mimdializó con la predominância de Estados Unidos en el imperialismo capitalista y la imposición de la
Paz Americana después de la Segunda Guerra Mundial, sino que también alcanzó una vigência exacerbada”,
(idem, pp. 19-20).
6 Mota, Carlos Guilherme. Ideologia e cultura brasileira (1933-1974). São Paulo, Atica, 1977, p. 154.
374 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
cas dos teóricos dos anos precedentes foram substituídas por estudos empíricos
e de maior consistência.
O projeto desenvolvimentista foi sustentado na Argentina por uma coligação
de partidos dos quais se destacavam o partidos Justicialista (peronista) e a União
Cívica Intransigente, dissidência da União Cívica Radical, partido que tradicio
nalmente se opunha aos peronistas. A busca da vitória eleitoral propiciou a união
entre esses dois partidos que, juntos, construiriam o projeto desenvolvimentista
na Argentina. Os setores peronistas que, em 1955, haviam sido colocados fora do
cenário político pelos militares, perceberam na candidatura de Arturo Frondizi
a possibilidade de retornar à vida política do país.
Assim, embora o peronismo continuasse proscrito, a implementação do pro
jeto desenvolvimentista na Argentina contou com a participação da classe tra
balhadora organizada. Arturo Frondizi e Juan Domingo Perón realizaram um
acordo secreto, um dos fatores determinantes para a eleição do primeiro. Se
gundo Halperin Donghi a eleição de fevereiro de 1958, na qual Arturo Frondizi
obteve 40% dos votos, foi a vitória de “uma aliança da burguesia frondizista e do
proletariado peronista, capitaneado necessariamente pela primeira, que realizou
as transformações que a Argentina necessitava”.7
O programa político desse “pacto” colocava como objetivo três questões bási
cas: reforma agrária, industrialização e democracia econômica. Essas políticas
eram amalgamadas por um discurso desenvolvimentista cujo objetivo era indi
car novos rumos para a sociedade argentina. Segundo Arturo Frondizi a revolu
ção deve ser realizada “como transformação absoluta tanto no regime interior
como no exterior de nossa sociedade, e [...] está historicamente vinculada ao
nosso passado (...]”8
O discurso desenvolvimentista, no caso argentino, adotou postura de certo modo
mais radical que no Brasil, ou seja, um discurso nacionalista, antiimperialista, que
se utilizava do simbolismo da revolução para que a população acreditasse na capa
cidade efetiva de um novo governo alterar estruturalmente a sociedade.9
Contudo, ao estudarmos a prática do governo frondizista verificamos uma atitu
de contraditória em relação ao discurso. Firmou acordo com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), liberou o câmbio, baixou salários e, sobretudo, abriu a eco
nomia do país ao investimento estrangeiro. Essa política contrariava o receituário
7 Dongu, Júlio Halperin. História da América Latina. São Paulo, Circulo do Livro, 1970, p. 39.
8 Smulovitz, Catalina. Oposición y gobierno: los anos de Frondizi. Buenos Aires, Centro Editor de América
Latina/Biblioteca Política Argentina, 1988, p. 34,2 vols.
9 Refiro-me aqui às questões relacionadas à fragmentação da União Cívica Radical, que se dividiu em dois
partidos, a União Cívica Radical Intransigente e União Cívica Radical do Povo, e a forte influência dos
setores peronistas ainda presentes na sociedade argentina.
História e cinema 375
10 Gomes, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Paz e Terra/
Embrafilme, 1980, p. 67.
11 Paranaguá, Paulo. O cinema na América Latina: longe de deus perto de Hollywood. Porto Alegre, L&PM,
1985, p. 70.
376 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
O documentário Tire dié foi a concretização das propostas desse texto de Birri.
Com 33 minutos de duração foi realizado entre 1956 e 1958 por Fernando Birri e
seus alunos do Instituto de Cinematografia da Universidade do Litoral, de Santa
Fé, também conhecido como Escola Documental de Santa Fé. O título do filme
significa “atire dez” e é baseado nos gritos que os meninos, moradores de um
bairro extremamente pobre situado entre Buenos Aires, Rosário e Santa Fé, diri
gem aos passageiros do trem quando correm para pedir esmolas.
Na apresentação de Tire dié, Fernando Birri conta que o filme foi realizado em
condições precárias, mas coletivas:
Filmamos con dos câmaras prestadas y con material de archivo que habían sido donados o
extraídos de la universidad. Nuestra grabadora no estaba en los niveles aceptables de profesionalidad.
Recuerdo como íbamos cada tarde a aquellas tierras bajas por lo general inundadas donde filmábamos,
cargando nuestras modestas câmaras y la enorme batería de la grabadora en una caja íuerte.13
A produção foi realizada de forma coletiva por uma equipe em que passaram
oitenta e oito alunos. Apenas o trabalho de câmera foi feito, exclusivamente, por
duas pessoas: Enrique Urteaga, que trabalhou mais tarde no cinema chileno e Os
12 AveUar, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, Garcia Espinosa, Sanjinés, Aléa
- Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora 34» 1995, p. 41.
13 Burton, 1986, p. 32.
História e cinema 377
car Kopp. As outras tarefas eram compartilhadas. Tire dié foi produto de discussão
permanente. O roteiro e as cenas selecionadas foram construindo-se quotidiana-
mente com o grupo de alunos, que planejava as filmagens e debatia seu resultados.
Sua produção foi iniciada sob a égide do governo militar do general Pedro
Aramburu (1955-1958), período de violenta repressão na Argentina. As classes
sociais que detinham o poder tentavam destruir todos os vestígios do governo
de Juan Domingo Perón. Entre 1955 e 1956 o governo Aramburu proibiu “todos
os símbolos que evocassem o peronismo, tais como músicas e bandeiras; fuzilou
militares e civis peronistas que se rebelaram, interveio na Confederação Geral do
Trabalho e nos sindicatos; e confinou políticos na Patagônia.”14
Com o rompimento político representado pela eleição de Arturo Frondizi, os
argentinos foram tomados por forte sentimento de otimismo em relação às pos
sibilidades de mudanças sociais em benefício das classes populares e da indepen
dência nacional. Arturo Frondizi foi eleito com o apoio de lideranças peronistas,
o que significava apoio popular. Seu discurso - repetindo as idéias do desenvol-
vimentismo - pautava-se claramente pela necessidade de reformas estruturais,
como a reforma agrária, a construção de um parque industrial, nacionalização
da extração e venda do petróleo e chegava a falar, inclusive, em revolução social.
É nesse contexto que o grupo de cineastas de Santa Fé produz o filme Tire dié.
Por isso esperava-se, a partir do filme, criar uma experiência de produção demo
crática e contribuir com a transformação social da Argentina. Para isto, antes de mais
nada, era necessário conhecer a realidade. Por essa razão o grupo opta pela estética do
documentário para realizar Tire dié. É interessante notar que seus próprios autores o
chamaram “Encuesta Social” (pesquisa social), confessando assim suas intenções.
O grupo de Santa Fé se propunha a romper com o cinema que existia na Argentina
à sua época. O cinema de “expressão” associado à Leopoldo Torre Nilsson, reconheci
do internacionalmente como um dos melhores cineastas argentinos, mas que se pre
ocupava fundamentalmente com o rigor formal e a temática existencial. E o cinema
considerado puramente comercial produzido pelos estúdios. Mas, Peter B. Shumann,
identifica no trabalho do grupo certa influência do cinema crítico realista argentino,
de Mário de Soffici, Torres Rios, Hugo dei Carril e José Agustín de Ferreyra.
Sem mencionar essa influência doméstica, Birri afirma ter baseado sua obra
na estética do Neo-Realismo italiano15 de Vittorio De Sica, Roberto Rossellini,
Cesare Zavattini, Luchino Visconti e no modelo do cinema documental de Joris
Ivens. Teriam sido eles os principais inspiradores da arte cinematográfica dos
14 Beired, José Luis Bendicho. Breve história da Argentina. São Paulo» Editora Ática, 1996, p. 64.
15 Fernando Birri estudou no Centro Experimental de Cinematografia de Roma entre 1950-1952.
78 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Bianchil, Ana Maria e Salviano Júnior, Cleofas. “Prebisch, a CEPAL e seu discurso: um exercido de análise
Jtórica”, in Rego, José Márcio (org.). Retórica na economia. São Paulo: Editora 34,1996, pp. 163-179.
Zapata, Francisco. Ideologia y política en América Latina. México, El Colégio de México, 1990, p. 148.
Soleção Jornadas 115)
O conceito de “modelo sociológico” foi utilizado por Jean-Claude Bernadet em seu livro Cineastas e
nagens do povo. São Paulo, Brasiliense, 1985.
História e cinema 379
Tire diéy a escolha do bairro da periferia parece ser feita justamente por sintetizar
as questões e problemas discutidos pelos teóricos desenvolvimentistas na época:
a denúncia de um grupo de marginalizados19 no país, a necessidade da incorpo
ração dos mesmos à sociedade para a construção de projeto nacional e, para isso,
a necessidade de dar-lhes educação, saúde, trabalho, moradia decente etc.
A idéia dualista de centro/periferia, os problemas de urbanização que se agra
varam com a vinda dos migrantes do campo para a cidade e as diferenças re
gionais, são temas que revelam a relação de Tire dié com a ideologia desenvol
vimentista. O filme inicia-se com uma tomada aérea em plano geral que mostra
a cidade do alto enquanto, ouve-se a voz de um narrador que, em off, como um
guia turístico, bombardeia o espectador com uma série de informações estatísti
cas sobre Santa Fé:
Santa Fé, capital da província do mesmo nome, República Argentina, 31 graus de latitude
sul e 60 de longitude oeste, fica na confluência dos rios Paraná e Selado, no final do litoral
argentino. (...) Em 1958 possui 200 mil habitantes, considerando os 5.133 nascimentos de
1957. É um importante centro agrícola e criador de gado, possui um porto com 3.200 m de
armazéns e galpões para 250 mil toneladas de grãos. São construídas 115 novas casas por
mês e 1.403 por ano. Na sede oficial do governo consome-se anualmente 4.525.570 pesos de
tinta, papel e mata-borrão. Ê sede de bispado, com 53 templos católicos. Tem quatro quartéis,
um jornal diário com tiragem de 54 ou 55 mil exemplares, sedia uma Universidade e doze
Faculdades (...), 106 escolas primárias diurnas e noturnas, escolas técnicas, jardins de infância
(...) uma orquestra sinfônica com 70 músicos. O matadouro municipal abate 400 vacas por
dia. Há 50 floriculturas, seis museus, 800 fábricas, 101 sindicatos, com 42.034 filiados, 37
hospitais e um posto de saúde público onde se consome 6.515 m de gaze por ano. Possui 50
teatrinhos de fantoches, dois moinhos de sal e 3.767 postes de luz.20
” O conceito de “marginalidade” foi utilizado por Gino Germani (1911-1979), sociólogo italiano que
viveu muitos anos na Argentina e foi considerado um dos principais teóricos da modernização, expressão
sociológica do desenvolvimentismo.
20 A tradução é da autora.
380 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
à margem do sistema, mas fazem parte dele, ocupam postos no mercado de tra
balho, ainda que em relação informal, consomem e pagam impostos.
Enquanto a câmera se aproxima cada vez mais do cenário principal do docu
mentário, o narrador continua:
Depois da estação de trem de Mitre, no fim da rua General López, se localiza um destes
bairros, o de Tire dié. Ele estende-se de ambos os lados dos trilhos que unem Santa Fé a Rosário
e Buenos Aires, atravessando a várzea do (rio) Salado. Aqui foi filmada, com meios precários,
entre 4 e 5 horas de uma tarde de primavera, verão, outono e inverno, de 1956, 1957, 1958, a
presente pesquisa, enquanto crianças gritam por uma moeda “tire dié... tire dié...” correndo ao
lado do trem que, lentamente, avança através de uma ponte de dois quilômetros de extensão.
22 A extensão dessa comparação a Fernando Birri é derivada da comparação entre Nelson Pereira dos Santos
e Vittorio De Sica feita por Mariarosaria Fabris no livro Nelson Pereira dos Santos: um olhar neorealista? São
Paulo, Edusp, 1994, p. 97.
382 Capelato» Morettin, Napolitano e Saliba
[...] já trabalhei como empregada, ajudante de cozinha e nunca pude ter nada. Agora ainda
está pior que antes. Outro dia vieram me avisar de um trabalho. Mas como poderia deixar a
menina (uma criança de cerca de dois anos é focalizada). Cobram-me 20 pesos para cuidar
dela meio dia e eu, trabalhando, ganharia 10 pesos por dia.
Um homem de cerca de trinta anos ocupa o centro da cena. Enquanto serra uma
madeira, diz que é carpinteiro, mas está desempregado. Mostra os filhos e revela que,
quando eles não vão à escola, vão ao tire dié. O dinheiro serve para comprar lápis
e caderno. A questão do desemprego, também central no filme, aparece em vários
diálogos. Essa questão, segundo a doutrina cepalina, também é importante:
O bairro do tire dié é um exemplo típico desta problemática. A maioria da sua po
pulação é originária da zona rural e procura a cidade em busca de melhores empregos
e condições de vida. Em outra cena, um garoto de 14 anos conta que foi expulso da
escola porque faltava muito e gostava de jogar bola. Sua irmã menor, Vicenta, tam
bém não vai à escola. O absenteísmo escolar é caracterizado na teoria como um dos
entraves à modernização dos países latino-americano. A educação era vista como ele
mento essencial para o desenvolvimento capitalista. Ou seja, seu fomento era unani
midade entre teóricos que se dividiam entre idéias socialistas ou apenas reformistas.
Um pai explica que seu filho não pode ir à escola porque não tem dentes. O
dose do menino expõe um sorriso, como um retrato de miséria, um menino der
rotado que parece não compreender o que ocorre em torno. Em uma das cenas
mais dramáticas, Tire dié aponta que justamente as crianças deveriam ter acesso
ao sistema público de educação, assistência médica e odontológica.
A questão da falta de condições dignas de sobrevivência dos idosos é tratada na
personagem de Antonio, 75 anos, morador do local há dezesseis anos e que ainda
espera água encanada.
23 Zapata, Francisco. Ideologia y política en América Latina. México, El Colégio de México, 1990, p. 152.
(Coleção Jornadas 115)
História e cinema 383
Num dos cortes de cena, crianças correm guiando o expectador para a casa de
Dona Lola. A utilização da câmera em movimento é traço comum a várias cenas
do filme. Em suas correrías, as crianças dão vivacidade e força às cenas. Além dis
so, mostram métodos de filmagem inovadores para a época, pois nesse momento
o diretor rompe a teatralizaçào existente em vários depoimentos nos quais os
moradores posam para a câmera.
Até aqui os depoimentos vinham seguindo a mesma linha de narrativa. Os per
sonagens analisavam sua vida e abordavam seus problemas atribuindo-os a Deus
ou ao destino. Mas, em Dona Lola, o discurso muda. De idade avançada, rosto
sofrido, quase sem dentes, afirma que vive há quinze anos no bairro e está muito
contente porque progride. Ela não simpatiza com o tire dié. Diz que sempre foi
muito pobre, mas agora tem animais, casa de pensão, três carros ou carroças para
coleta de lixo e até ações de uma sociedade norte-americana. Diz que as crianças
gostam de ir à sua casa porque os pais os abandonam. Acusa os vizinhos de pre
guiça e de descuidarem dos filhos.
No entanto, seu depoimento contrasta com o ambiente que vemos ao fundo.
Um sítio extremamente deteriorado onde podemos observar inúmeras crianças
no meio do lixo, ao lado de porcos e outros animais. Em troca de algumas balas,
elas separam o lixo orgânico para Dona Lola. A mulher explica que ali é lugar
de sacrifício e que a maioria da população vem da zona rural para melhorar sua
vida. Mas, na verdade, suas vidas só pioram, e todas as promessas do governo
são mentirosas.
A única moradora que diz progredir no local é aquela que explora o trabalho de
crianças. Mas seu discurso é também particular porque é a única que fala contra
o tire dié e responsabiliza, explicitamente, o governo e a própria população pela
miséria em que vive e não apenas o destino.
Os passageiros do trem também são focalizados em suas diferentes reações.
Alguns demonstram indiferença, desprezo, pena e crítica. A cena é rodada no
interior do trem e mostra, também, as expressões dos meninos enquanto correm,
bem como as brigas em que se envolvem para apossar-se das moedas depois que
o trem se afasta. Nessa parte de Tire dié» alguns discursos e cenas se mostram
particularmente interessantes. As falas atribuídas aos passageiros são significa
tivas para a construção do documentário sociológico: uma senhora que observa
os meninos pela janela do trem diz que são uns coitadinhos, um homem assevera
que as pessoas vivem naquela situação porque não querem trabalhar, outras pes
soas sorriem e finalmente algumas nem olham para fora do trem. Essas falas e
atitudes colocadas lado a lado representam tipos e conceitos identificados como
recorrentes, no período, para explicar a pobreza dos países latino-americanos.
384 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
Em uma das cenas finais dois meninos correm exaustivamente atrás do trem
para aproveitar as últimas chances de ganhar moedas. Após essa correría a câ
mera em dose mostra uma mão fechando a janela do trem. Essa cena, pelo seu
local na montagem, pode ser entendida como metáfora da rigidez de classes
sociais da Argentina.
Após a partida do trem, os meninos voltam às suas atividades: brincam, con
tam o dinheiro recebido ou voltam para casa. Nessa cena há a fala de uma me
nina de cerca de sete anos, particularmente interessante. Ela diz que vai levar o
dinheiro arrecadado para seu pai, pois, do contrário, apanhará. Salta aos olhos a
exploração infantil. E a primeira impressão que temos é a da displicência daque
les pais para com seus filhos.
Na última cena de Tire dié vemos um dose de uma mãe que conta sua situação
de miséria e justifica o fato de deixar o filho pedir esmola. Nesse momento somos
levados a concluir que a responsabilidade não é dos pais, porque se tivessem op
ção, não deixariam os filhos pedir esmola. Ou melhor, se tivessem consciência de
fato de sua situação, e que poderíam mudá-la, não agiríam desse modo.
Essa cena faz contraponto com o discurso de um passageiro do trem afir
mando que as pessoas pedem porque não querem trabalhar. O argumento,
naquele momento senso comum na América Latina, associava a pobreza à
preguiça das populações e era refutado pela esquerda que considerava a mão-
de-obra excedente parte do exército industrial de reserva que caracteriza o
sistema capitalista.
A mesma mãe que justifica autorizar a presença do filho no tire dié explica que
o outro filho ainda não vai pedir porque é muito pequeno. É com dose no rosto
deste último menino que o diretor finaliza o filme. Fica a interrogação para o
público: onde estaria o certo e o errado? Buscar trabalho ou pedir esmola? O des
fecho desagradou parte da esquerda argentina, que o considerou aberto demais.
O filme, segundo ela, não apontava o socialismo como saída para solução dos
problemas sociais apresentados.
Tire dié foi construído com variada estrutura cinematográfica. A voz off e
a encenação de várias passagens torna-o, praticamente, um documentário
do tipo clássico. Mas, há outras tomadas que o fazem inovador: a dos me
ninos, condutores da narrativa filmica, que correm livremente, de um lado
para outro; são perseguidos pelas câmeras, momento em que podemos ver a
imagem de um dos câmeras em ação, filmando os meninos; as contradições
propositais entre o discurso, a imagem e a montagem, realizada a partir de
fragmentos que, unidos em cadeia, expressam um terceiro sentido e dão ao
filme um caráter inédito.
História e cinema 385
Tire dié suscitou adesões e descontentamentos por parte dos críticos. Roberto
Raschella24, um desses críticos, afirma que com Tire dié nasce o cinema argen
tino. Questiona se Tire dié seria um filme (obra de arte) ou apenas uma pesqui
sa social sem valor cinematográfico. Responde que é uma obra de arte e coloca
Fernando Birri na tradição dos grandes documentaristas: Joris Ivens, Flaherty e
Grierson. Mas diz que ele deve ser avaliado de acordo com o momento específico
da evolução do cinema argentino e de acordo com sua concretude.
É interessante notar que Raschella foi em busca da tradição do Neo-Realismo
para endossar sua opinião. Afirmou que o cotidiano das pessoas comuns e a rea
lidade, importantes para Zavattini, estiveram também presentes em Tire dié. Ras
chella buscou representar para Fernando Birri o que Luigi Chiarini, um dos mais
importantes críticos italianos, representou para Zavattini, no sentido de ajudá-lo
a ser compreendido. Ele gostaria de ser o Chiarini de Fernando Birri. Discordou
dos críticos que diziam que Tire dié não possuía valor artístico por seus defeitos
técnicos. Para ele, a descontinuidade de estilo da composição fotográfica do filme
nasceu de sua própria estrutura e do método coletivo com que foi realizado. Con
siderou apenas que o som deveria ser corrigido. Atribuiu ao trabalho uma missão
futura - gerar o estudo, a autocrítica e a consolidação de ideais poéticos.
Tire dié também procurou mostrar a contradição entre as idéias de modernida
de das sociedades latino-americanas da metade dos anos cinqüenta e a condição
real de vida das suas populações excluídas. Setores das classes dominantes teima
vam em considerar, de boa ou má fé, que a miséria inexistia ou não era problema
porque poder ia ser facilmente superada.
Na narração, o filme utiliza dados de órgãos governamentais apontando o cres
cimento econômico da Argentina à época. Ao mesmo tempo sustenta que, se a
sociedade estava cada dia mais complexa, em crescimento e transformação, ain
da existiam setores sociais completamente alijados desse progresso. Em Tire dié a
maioria dos moradores do bairro são descendentes das populações indígenas. O
tema da exclusão histórica das populações nativas da América Latina começava
também a ser muito discutido pelos teóricos do desenvolvimentismo.
Carlos Guilherme Mota afirma que, na década de 1950, o ‘avanço do capitalis
mo impõe estudos sobre o coronelismo, sobre o caciquismo. Também os chama
dos ‘povos primitivos’ tornam-se objetos de exame, para posterior ‘aculturação’,
para a ‘integração na sociedade nacional’”.25
O momento histórico vivido pela Argentina, marcado pela vitória de Arturo
Frondizi e por um discurso nacional-desenvolvimentista, impunha uma nova visão
24 Raschella, Roberto. “Tire dié” Tiempo de Cine. Buenos Aires, ano I, n. 3, oct-dez., 1960, p. 18-19.
25 Mota, Carlos Guilherme. Ideologia e cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1977, p. 286.
386 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba
sobre o povo argentino. Essa nova concepção negava a esboçada nos antigos filmes
produzidos no país, melodramas baseados na tradição hollywoodiana de glamour
e beleza. Agora se buscava mostrar que as pessoas viviam em absoluta miséria, dis
tante das conquistas da humanidade, mergulhadas no “subdesenvolvimento”.
Para dar sustentação ao seu esforço industrializante, a burguesia argentina precisa
va ampliar seu mercado interno aumentando o número de pessoas com renda sufi
ciente para integrar-se ao consumo. Nesse mesmo sentido, os cineastas introduziam
em seus filmes camadas de despossuídos, dando-lhes reconhecimento e singularida
de. Esse novo “olhar” reforçava o projeto desenvolvimentista à medida que denun
ciava os resultados da política econômica anterior, ligada à tradição agroexportadora,
responsável pela geração de enorme cinturão de excluídos da vida social.
Os cineastas desse grupo compreenderam a fecundidade do momento de refor
mas sociais e abertura política, propício para expressarem suas concepções artís
ticas e acreditaram na possibilidade de traduzir arte em ação política, militante,
capaz de ajudar os oprimidos a lutar pela libertação.
Segundo a historiadora Mary Enice Ramalho de Mendonça:
Tire dié definiu um método de criação que hoje chamamos de Antropologia Visual e
marcou o cinemanovismo latino-americano dos anos 60, na área do documentário. Tire dié é
até hoje um cinema atual, por suas imagens, por sua força de realidade. Só no seu lançamento
estiveram presentes 4.000 espectadores. Esse filme permitiu a construção do Instituto de
Cinematografia da Universidade Nacional Del Litoral, que lançou muitos cineastas. No Brasil
podemos citar Maurício Capovilla e Vladimir Herzog, que, em São Paulo, naqueles anos,
fizeram os primeiros curta-metragens no Cinema Paulista, movidos pelas novas idéias de
Birri e que criaram e impulsionaram muitos trabalhos cinematográficos importantes.26
26 Mendonça, Mary Enice Ramalho de. História e Cinema: cinemanovismo e violência na América Latina
(década de sessenta e setenta). 2 vols. Tese de Livre Docência, ECA /Universidade de São Paulo, 1995, p. 33.
27 Avellar, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, Garcia Espinosa, Sanjinés, Aléa
Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo, Edusp, 1995, p. 47.
História e cinema 387
Com esta primera experiencia, producto moral y técnico de la voluntad de hacer de sus
alumnos, el Instituto de Cinematografia de la Universidad dei Litoral espera: 1) Colaborar
en la medida de sus jóvenes fuerzas a la superación de la crisis actual dei cine argentino
aportando América Latina mismo una problemática nacional, realista y crítica, hasta ahora
inédita. 2) Afianzar las bases para una futura industria cinematográfica local, santafesina,
de repercusión nacional, en la medida que los alumnos se perfeccionen técnicamente con la
periodicidad dei aprendizaje cotidiano. La industria cinematográfica argentina ha alcançado
una técnica fotográfica e sonora casi perfecta. Las imperfecciones de fotografia y de sonido
de Tire dié se a los médios no profesionales con los cuales se ha trabajado forzado por las
circunstancias, las cuales al obligar a una acción y a una opción han hecho que se prefiriera
un contenido a una técnica, un sentido imperfecto a una perfección sin sentido. 3) Utilizar el
cine al servicio de la Universidad y la Universidad al servicio de la educación popular. En sua
acepción más urgente esta educación popular va entendida como toma de conciencia cada
vez más responsable frente a los grandes temas e problemas nacionales, hoy y aqui.28
28 Birri, Fernando. La Escuela Documental de Santa Fé. Santa Fé, Editorial Documento, 1964, p. 52.
29 Esse tema foi, posteriormente, discutido e teorizado por vários cineastas da América Latina, entre os mais
importantes podemos citar o cubano Julio Garcia Espinosa e o brasileiro Glauber Rocha.
30 Festival financiado pelo Servicio Oficial de Difusión Radioelétrica, fundado em 1954.
História e cinema 389
Tire dié és la denuncia más descarnada que si hiciera, hasta entonces, de la miséria de las
masas, tomando como ejemplo a ninos pordioseros; el primero aporte argentino al cine
político latinoamericano que ya empezaba a surgir y, para muchos, el primer film político por
excelencia de todo el subcontinente (...).’*
Schumnn, Peter B. Historia dei cine latinoamericano. Buenos Aires, Cine Libre/Lalgasa, 1987, p. 24.
Sobre os organizadores
Professora titular em história pela Universidade de São Paulo, especialista em história política
com ênfase em história da América Latina e história do Brasil republicano. Atualmente desen-*
volve pesquisa sobre a propaganda política nos regimes iberoamericanos, com destaque para a
Espanha franquista. É autora de diversos livros, dentre os quais Multidões em Cena. Propaganda
Política no Varguismo e no Peronismo (Papirus, 1998) e Os Arautos do Liberalismo. Imprensa Pau
lista. 1920-1945 (Brasiliense, 1989).
Marcos Napolitano
Doutor em história social pela Universidade de São Paulo. Foi professor no Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná (Curitiba), entre 1994 e 2004 e, desde então, é pro
fessor de História do Brasil Independente na Universidade de São Paulo. Especialista no período
do brasil republicano, com ênfase no regime militar e na área de história da cultura, refletindo
sobre as relações entre música popular e política. Dentre os livros já publicados, Como usar o
cinema em sala de aula (Contexto, 2003) e Seguindo a canção: engajamento político e indústria
cultural na MPB (1959/1969) (Annablume/Fapesp, 2001).
Eduardo Morettin
Tuníco Amâncio
Professar do Departamento
de Cinema e Video da UFF