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Angola 1961,

o horror das imagens


AFONSO RAMOS

“Aqui vimos coisas que escrevê-las parece


que faz dúvida vê-las.”

FRUTUOSO RIBEIRO, relação de Luanda (1580) 1

Sobre o papel da fotograia na guerra colonial – ao contrário de trabalhos


pioneiros noutros campos da cultura e média, como a literatura, cinema ou
rádio –, pouco, ou nada, foi dito para interpelar as ideias-feitas que matam à
partida a discussão: que esta foi uma guerra sem imagens, invisível porque tra-
vada longe do olhar público, inimaginável pois silenciada pela censura, impe-
netrável dado que bloqueada pelo trauma. O legado imagético, tanto se repete,
é parco, pobre e comprometido, nunca tendo merecido escrutínio crítico – à
excepção do pontual ensaio 2 e de novos projetos artísticos que começam a
alumiar tabus e buracos no arquivo colonial tardio. Embora várias recolhas
de imagens da guerra a partir de colecções privadas venham dando origem
a álbuns e exposições recentes, conferindo visibilidade ao passado repri-
mido, estas surgem mais como auxílio mnemónico de e para aqueles que a
lutaram, e menos como um fórum público para discutir o signiicado deste
conlicto ao nível da representação, imaginação, interpretação e memória
colectiva.
A inexistência de relexão sobre as imagens da guerra procede não ape-
nas da extrema diiculdade em olhar para estes eventos dolorosos e ideologi-
camente contestados, como repousa sobre a resignada rotina de descartar a
1
Citado em Amândio César, Angola 61 análise crítica e imputar os vazios a uma suposta ausência de tradição visual
(Lisboa: Verbo, 1961). em Portugal, qual fatalidade biológica. Porém, adverte Ariella Azoulay, moti-
2
O único ensaio crítico sobre fotograia
da guerra colonial deve-se a Paulo de
vos não faltam para a exclusão ou a míngua de fotograias, e as causas, sejam
Medeiros, “War Pics: Photographic elas ideológicas, políticas, ou pragmáticas, deveriam ser investigadas a fundo 3.
Representations of the Colonial War”, Luso-
O caso vertente é um deles, olvidado no buraco negro que os anos 60 ocupam
Brazilian Review, vol. 39, n. 2
(Winter 2002), pp. 91-106. nas histórias da fotograia em Portugal. Devedoras de agendas modernistas,
3
Cf. Ariella Azoulay, he Civil Contract estas privilegiam certas práticas, certos autores e certos discursos identitários,
of Photography (New York: Zone Books,
2008). sobre valores sociais ou políticos, remetendo assim uma década inteira de

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cultura visual para rodapé. Contra esta visualidade negligenciada, e de encon-


tro a um modelo expandido de fotograia que englobe suportes e géneros
diversiicados, obras vernaculares ou anónimas, partamos do axioma central
que deine o tema, de que esta foi uma guerra sem imagens, para defender
antes, por contraste, que esta foi uma guerra por causa das imagens.
As fotograias em causa terão sido as de maior impacto público na histó-
ria do país, e de longe as mais reproduzidas e distribuídas pelas autoridades
oiciais, pertencendo à categoria particularmente complexa das fotograias de
atrocidade. Embora coloquem graves problemas éticos na exposição pública,
tema de muita atenção académica recente, ao exibirem morbidamente todo o
tipo de violências extremas sobre corpos, uma busca na internet por ‘fotogra-
ias da guerra colonial’ devolve logo a vasta galeria grotesca a preto-e-branco
que domina por completo os resultados: centenas de cadáveres profanados,
sangrentos e desmembrados, com intestinos de fora, crânios rebentados,
entranhas pútridas, caras desiguradas ou genitália serrada. São imagens todas
relativas a Angola e a um ano em particular, 1961, mobilizadas em sites para
exigir vinganças ou denunciar traições, reiteradas sempre que estala polémica
sobre o passado colonial, sabotando discussões com os ícones aterradores,
consideradas geralmente como a visão imparcial, insuperável, indiscutível e
imutável da verdade da história.
Considerando que em Angola, em 1961, ano conhecido como la terreur,
se inicia a ofensiva militar, e se estima terem morrido mais de 60 mil pes-
soas, não é estranha a abundância de fotograias de atrocidade. No entanto,
quase todas elas se coninam a dois dias apenas, à volta do evento que levou
ao confronto armado: os massacres da UPA no Norte de Angola. Mas ape-
sar da limitação no tempo, e da sua intensa circulação ainda hoje, a violência
que exibem e o fascínio pelo evento, cegaram-nos para as questões essenciais
sobre este arquivo escabroso que, meio século depois, nunca foram levanta-
das por ninguém: o que signiicam ainal estas imagens? Quais foram as con-
dições de produção e circulação? Quem as fez e com que inalidade? Deveriam
estar expostas no espaço público? Como se articularam com a violência polí-
tica de então, e que efeitos obtiveram a curto e longo prazo? O que fazer com
elas hoje?
A carência bibliográica sobre as imagens, e a falta de discurso público em
relação a esses dias, resiste a abordagens críticas. Mas tendo em conta a vio-
lência destas imagens na história e na memória, indissociáveis dos eventos que
levaram à guerra, urge considerar, como exorta Judith Butler, “o modo como
o sofrimento nos é apresentado e como essa apresentação afecta a nossa res-
posta” 4. Apesar de difíceis de olhar, quanto mais de ponderar, a seriedade da
violência exibida pelas imagens e a sua excepcional carga emocional, exigem
que se investigue as suas condições particulares de produção e recepção na
ligação a este evento histórico.

4
Judith Butler, Frames of War: When Is
Life Grievable? (London: Verso, 2010,
p. 63).

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Angola 1961, o horror das imagens

Fotografias de Atrocidade

A história do uso de fotograias de atrocidade surge, na verdade, interligado


à evolução dos movimentos humanitários e paciistas, estando subjacente a
ideia de que expor a realidade perversa da guerra é, por inerência, um protesto
contra ela. Mas embora este discurso de optimismo humanista ainda preva-
leça, o papel das fotograias para legitimar argumentos de destruição, morte e
perseguição foi desde sempre igualmente forte, usadas sobretudo em campa-
nhas dirigidas a civis, para ilustrar o inimigo como assassino, canibal, viola-
dor ou animal, tendo justiicado inúmeras guerras ou, por exemplo, a invasão
da Polónia pelo regime nazi. Se a tónica entre os estudos sobre fotograia é
invariavelmente colocada no potencial emancipatório deste suporte para
contestar injustiças sociopolíticas (geralmente ilustrado pela luta anti-apar-
theid) ou acabar guerras (usando o exemplo máximo do Vietname), durante o
mesmo tempo histórico, a utilização da fotograia para iniciar guerras ou agra-
var injustiças também atingiria o auge, sobretudo durante as descolonizações,
com a diferença de que estes casos padecem de atenção académica.
O caso paradigmático foi a experiência britânica no Quénia, quando, após
ataques dos Mau Mau contra europeus, o governo inglês, sabendo por expe-
riência passada dos dividendos políticos a extrair do horror semeado pelas
foto-graias, explora imagens não tanto do inimigo como das vítimas, para
mobilizar o público e justiicar a repressão. Impondo assim um clima de
pânico e trauma colectivo, abre oportunidade para arquitectar radicais trans-
formações sociais que de outro modo seriam intoleráveis 5. Após o massa-
cre de Lari, os aviões da RAF espalham pelo território panletos com imagens
5
Cf. Naomi Klein, he Shock Doctrine: he explícitas de mulheres e crianças mortas. O terror é espremido ao absurdo.
Rise of Disaster Capitalism (Toronto: Knopf Publicam-se fotos grotescas na Time e na Life, com denúncias de comunismo
Canada, 2007).
6
Um dos trabalhos-chave neste campo
e testemunhos sensacionalistas que contrapõem o heroísmo dos brancos à
deve-se a Caroline Elkins em Imperial bestialidade do negro, descrito, em tom eliminacionista, como regredido ao
Reckoning: he Untold Story of Britain’s
estado animal. As populações brancas são aterrorizadas a tal ponto que alguns
Gulag (New York: Henry Holt and
Company, 2005). Esta investigação sobre a encorajam castigos sádicos e indiscriminados sobre terroristas. Desumaniza-
resposta britânica à rebelião dos Mau Mau dos como drogados, violadores e canibais, esta mentalidade logo se traduz
nos anos 50 demonstra que, ao contrário
da ideia generalizada sobre o sucesso da numa matança no terreno, à medida que, aplicando o foco constante sobre os
reforma liberal e dos campos de detenção ataques para ofuscar qualquer agenda política, o Oice of Information apoiou
no Quénia, estes, na verdade, tinham sido
o palco de torturas sistemáticas contra
dissimuladamente panletos de imagens macabras, aim de com elas silen-
membros da etnia Kikuyu, provocando, ciar os críticos da acção colonial. Contudo, embora algumas fotograias sejam
segundo a autora, cem mil mortos. Estes
dados sistematicamente ocultados – pela
cedidas, a maior parte delas acabaria por ser limitada pelos poderes oiciais,
destruição de documentos ou o seu enco- que temiam o seu efeito sobre o grande público, decidindo circulá-las só pelos
brimento em arquivos nacionais – foram Foreign Oices, e fechando-as na biblioteca da Casa dos Comuns para con-
compilados em livro, e serviram de prova
legal em tribunal contra o governo inglês. sulta dos parlamentares 6.
O julgamento, em 2011, não só levou ao A resposta das autoridades portuguesas aos ataques da UPA no Norte
aparecimento de trezentas caixas (até então
consideradas inexistentes) com relatos de de Angola, incomparavelmente mais cruéis e massivos, tem inúmeros para-
atrocidades num arquivo britânico, como lelos com esta campanha, mas superou tais pruridos éticos, levando, como
se tornou a primeira vez em que um antigo
regime colonial pagou compensações aos
nenhuma outra potência colonial, o horror da fotograia às últimas conse-
sobreviventes de torturas. quências – embora o episódio escape por inteiro à crescente bibliograia sobre

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imagens de atrocidade. Para ensaiar uma espécie de biograia crítica das cente-
nas de fotograias que conhecemos sem nome, data ou autor, comecemos por
indagar em que condições foram tiradas.

chefes militares sabem que autoridades


relevantes de Lisboa e Luanda haviam sido
15 de Março de 1961, Angola alertadas para a eventualidade.” Cinco
regimes na política internacional (Lisboa:
Editorial Presença, 2006), p. 110. Um dos
protagonistas mais estupefactos com a
“Devia ter desconfiado que Angola acabou inacção foi Viana de Lemos, incumbido
pelo Ministro da Defesa, Botelho Moniz, de
para mim quando mataram as pessoas duas enviar, a 4 de Março, um telegrama “Muito
fazendas a norte da nossa (…)”. Secreto” e “Muito Urgente” ao Chefe do
Estado-Maior das Forças Armadas, Beleza
Ferraz (então em Angola), com o aviso
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, O Esplendor de dado nesse dia por um adido americano
em Portugal, de que um grupo terrorista
Portugal, 1997, p. 203.
sediado em Leopoldville iria atacar a 15
de Março. Estranhando o efeito nulo do
alarme, Lemos decidiu investigar, e após
conirmar que o telegrama nunca chegou ao
Se os ataques a 15 de Março pela UPA de Holden Roberto, planeados por destinatário, apurou contudo que tinha sido
Frantz Fanon, tinham por intuito responder às chacinas de milhares de africa- recebido pela Estação Rádio Naval, então
responsável pelas comunicações com o
nos meses antes, e provar a existência de trabalho forçado, acabaram por man- ultramar. Anos depois, em 1966, encontrou
char a luta anticolonial com cenas de terror que o regime vira avidamente a seu inalmente no Quartel da Região Militar
de Angola a cópia arquivada do telegrama,
favor. A chacina espalha-se por semanas, revelando a impreparação e triba- e constatou, chocado, que fora alterado
lismo da UPA, formada por bacongos que assassinaram grotescamente entre “por forma a dar-lhe menos aspecto de
4 a 5 mil negros, ovimbundos e quimbundos, levados para labutar nas fazen- urgência”, e que, em lagrante violação do
protocolo, tinha sido sonegado por dois
das, e cerca de 300 a 800 brancos, as famílias dos colonos. Estudos recentes 7 oiciais, por motivo desconhecido, sob o
revelam que, ao contrário do dogma oicial de que este massacre fora perpe- falso pretexto: «Arquive-se, o assunto já é
do conhecimento do Comando». Viana
trado por estrangeiros, contra a vontade das populações locais, e em surpresa de Lemos, Duas crises, 1961 e 1974
absoluta, foram vários os avisos do levantamento para esse dia, tanto por mili- (Lisboa: Edições Nova Gente, 1977),
p. 37. Ainda em 1961, Luiz Iglezias,
tares e civis, como pelo governo norte-americano, serviços secretos alemães defensor acérrimo e incondicional
(BND) e PIDE. Mas nada foi feito para evitar ou minorar a chacina, ainda que do regime colonial, escreve no Brasil:
a sua escala e extensão excedessem o previsível 8. Pelo contrário, quando se “Há na tragédia de Angola um detalhe
profundamente estranho. Muita gente,
iniciou o ataque, articulado com a votação na ONU contra a política colonial quase tôda a gente, tanto da Província
portuguesa, a ordem de Lisboa foi de bloqueio total de informação durante quanto da Metrópole, previu o que ia
acontecer. Inclusive, altas personalidades do
dois dias, proibindo menções à rebelião em curso; 48 horas em que, por causa mundo intelectual e oicial. Mas, ninguém
do silêncio na rádio, muitas das povoações isoladas que apenas assim podiam tomou providências, ninguém deu um
passo para evitar a tragédia. (…) Isto tudo
ser avisadas, não escaparam à chacina, enquanto, ante a inoperância superior, icou escrito, foi lido, todos veriicaram
os civis se agrupam em milícias armadas, ou contratam aviões privados para que tudo se baseava em fatos, mas nada
fugir para Luanda, onde as suas histórias atrozes de pânico e tragédia força- se fêz para prevenir os perigos esboçados
no horizonte. (...) Todos sentiam. Todos
ram o inal deste blackout mediático. O silêncio seria oicialmente justiicado sabiam. Mas ninguém agiu.” A verdade
para não agravar os ânimos das populações brancas – cuja resposta ao ataque sôbre Angola (Rio de Janeiro: Gráica Nossa
Senhora de Fátima, 1961), pp. 87 e 89.
das prisões de Luanda, um mês antes, levara à matança indiscriminada de cen- 8
Filipe Ribeiro de Meneses considera
mesmo que “o maior fracasso de Salazar ao
longo das quatro décadas no poder terá sido
a sua incapacidade de proteger a população
7
Cf. Dalila Cabrita Mateus e Álvaro várias fontes conirmam o conhecimento branca e os seus trabalhadores no Norte de
Mateus, Angola 61. Guerra Colonial: antecipado: “(…) se, para as populações, Angola em 1961”, Salazar. Uma Biograia
causas e consequências (Lisboa: Leya, as chacinas ocorridas no Norte de Angola Política (Lisboa: Dom Quixote, 2010),
2011). Como lembra Medeiros Ferreira, surgem com o impacto da surpresa, já os p. 478.

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tenas de negros nos musseques da cidade –, que tinham ainda bem presentes
imagens dos refugiados belgas que embarcam no Lobito e Luanda, e para evi-
tar que a proposta da Libéria para discutir as colónias na ONU fosse aprovada.
Tendo fechado o país a olhares inconvenientes de fora, uma prioridade
do executivo, após o desacordo entre Salazar e o Ministro da Defesa, o gol-
pista Botelho Moniz, que pretendia o acesso da imprensa internacional à zona
operacional para que testemunhasse esta barbárie, a maioria das imagens hoje
conhecidas foram captadas nos primeiros dias, de um modo nada aleatório
ou acidental. Pelo contrário, muitas resultaram de ordens superiores para
integrar um grande número de fotógrafos e operadores de câmara dos ser-
viços oiciais entre as primeiras colunas de batedores a subirem Angola a 17
de Março, com a missão de documentar exaustivamente os cenários dantes-
cos de caos e morte. Uma missão de recolha de imagens de acesso interdito
a jornalistas estrangeiros, realizada por, entre outros, Joaquim Cabral, Horá-
cio Caio, Silva Campos, José Elyseu, Manuel Graça, Ricardo Mesquita, Hélder
Mendes, Perdigão Queiroga ou António Silva, para o Exército, RTP, CITA,
ou Imagens de Portugal, cujos feitos seriam reconhecidos com distinções oi-
ciais. Esta insólita preocupação com o registo imagético surgia embedded na
vanguarda do aparato militar, e portanto, inteiramente submetida à perspec-
tiva estabelecida pelas autoridades – deinindo como, e o que podia ou não
ser capturado. Esta voragem fotográica alimenta-se ainda de imagens forne-
cidas pelas milícias civis e pelos próprios batedores, que embora se tornem o
símbolo de abusos na resposta portuguesa, serão os autores dos documentos
a partir dos quais os eventos se dão a conhecer e julgar, e passariam à história,
deinindo o campo de visão da opinião pública, ditando e controlando como
este deveria ser interpretado. Um dos fotógrafos dos ataques é o próprio alfe-
res Robles, a quem se atribuiriam as piores atrocidades de então 9:
9
Segundo declara Rui de Azevedo Teixeira:
“A espiral do terror continua com a
selvática reacção dos brancos, na qual a Das chacinas eu tenho fotografias, tiradas por mim, de brancos e
qualidade da violência não desmerece da de negros. Foi um rolo que, suponho, depois de ter sido entregue no
dos bacongos e à quantidade de negros
mortos perde-se o número. Há negros que Quartel-General em Luanda, serviu para fomentar todo esse cariz do ter-
são enterrados vivos, outros enterrados rorismo na ONU 10.
até ao pescoço, sendo depois as cabeças
esmagadas por bulldozers, ou, então, em
interrogatórios, cortam-se os pénis às Se a fotograia se torna um mecanismo humano para lidar com o absurdo
rodelas obrigando os seus donos a
comê-las. Nesta vertigem da violência,
da violência que, de outro modo, seria inacreditável, impunha-se acima de
um nome se destaca: Fernando Leal tudo como uma das primeiras armas de retaliação e combate. Segundo relatos
Robles. O alferes Robles (…) assassina disponíveis, os fotógrafos, chegando aos cenários de destruição, avançavam
negros dos mais diversos modos: pondo-
-os em ila indiana para poupar munições, para o ritual de documentar detalhadamente os cadáveres em decomposi-
juntando-os «para a fotograia» e ção, e uma vez amplamente retratados, eram então enterrados por soldados.
metralhando-os de seguida, etc. Robles,
cujo nome circula pelas instâncias e jornais São poucas, porém, as imagens de destroços materiais, vistas gerais ou pis-
internacionais, torna-se no único célebre tas forenses para ins militares. Não se tratava de apurar responsáveis e factos,
criminoso de guerra português”
A Guerra de Angola, 1961-1974
identiicar vítimas, ou reunir informação por meios visuais, mas de montar
(Matosinhos: QuidNovi, 2010), p. 69. apelos e denúncias que, longe de passivas, continham já em si o julgamento e a
10
Depoimento do tenente Fernando Robles interpretação dos eventos. Através de close-ups perturbadores, a lente é encos-
em João Garção Borges, Ultramar, Angola
1961-1963, Acetato e RTP (1999). tada aos detalhes da abjecção, sorvendo minuciosamente, segundo a expressão

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4. Resistência / Memória

então popular, os “requintes de selvajaria” sobre os corpos humanos, de vários


ângulos e com insistência metódica, concentrando-se, não tanto nas massas
de corpos mortos espalhados pelo terreno, mas sobretudo na experiência indi-
vidual do sofrimento, para o máximo de efeito dramático.
Embora grande parte destas fotograias date de entre 15 a 18 de Março,
a busca de imagens, reconhecendo o valor da recolha efectuada, vai intensi-
icar-se. Um memorando enviado ao Governador-Geral de Luanda, já dois
meses depois, a 10 de Junho, relata uma coluna militar que sobe ao Negage, à
Fazenda Maria José, por sua ordem, com a expressa missão de obter imagens,
levando três fotógrafos, apesar do perigo da rota, com fogo cruzado e feridos
graves. O relatório declara o sucesso da missão: obtiveram centenas de foto- 11
O relatório encontra-se integralmente
transcrito em Bernardo Teixeira, he fabric
graias muito chocantes, enquanto as tropas vomitavam ao enterrar os mor- of terror: three days in Angola (New York:
tos, resultando dois envelopes de imagens, etiquetados A e B, de cadáveres Devin-Adair, 1965), pp. 128-138.
Desconhece-se o paradeiro destas
deste massacre, e outro, etiquetado C, perto de Camabatela 11. O certo é que fotograias.
cinco dias após o início do massacre, a 20 de Março, chegara a Lisboa o resul- 12
AN/TT AOS CO UL 30D, relatório da
tado destas expedições imagéticas, em relatório da PIDE com um envelope de PIDE 353/61-GU, 20 de Março de 1961.
13
No dia após o início do ataque, João
16 fotos de duas mulheres e um homem nu sobre o capim, enviado a Salazar e Nogueira Garcia relata: “Dia 16. Começa
Ministérios do Ultramar, Interior, Defesa Nacional e Exército: a caça ao preto, enquanto vão chegando
notícias de mortes por todo o norte de
Angola.” Regista depois como, para travar
Juntam-se fotografias do estado em que ficaram alguns europeus a debandada geral, os homens civis brancos
acabariam por ser impedidos de abandonar
residentes em Madimba, depois dos ataques que sofreram por parte
o território, como lhe foi comunicado no
dos terroristas. É neste estado, sem excepção, que ficam todos, depois Posto Militar: “Senhor Garcia, se há alguém
das barbaridades mais repelentes praticadas pelos assaltantes que, sem aqui que merece ir a Luanda, o senhor
é essa pessoa. Mas eu estou proibido de
olharem a idades ou sexo, e enquanto as vítimas estão vivas, as violen- deixar sair alguém para lá, pois todos os
tam. Consta que, como estes, há centenas de casos idênticos 12. que foram autorizados a irem, nenhum
regressou.” Este autor, entre as ileiras de
civis que mantiveram o domínio português
Antes ainda de haver posição oicial sobre os massacres, o que se arrastou enquanto o envio das tropas tardava,
manifestou ainda repúdio pelo posterior
indeinidamente enquanto as populações indefesas em Angola desesperam reconhecimento oicial de que foi alvo:
com a falta de ajuda (muitas sucumbindo a novos ataques) e contestavam a “Ser condecorado por aqueles mesmos que,
total inacção superior, o governo empenhou-se sobretudo em explorar obses- meses antes, nada izeram para alertar da
iminência de um ataque traiçoeiro, que não
sivamente a agonia da sua victimização, para fortiicar a sua presença colonial e poupou mulheres e crianças, e que vêm,
rebater os críticos 13. Os canais governamentais aos quais a circulação da gene- agora, hipocritamente, como detentores
dos valores morais da Pátria escolher entre
ralidade das fotos dos mortos se coninava, não discute restrições de acesso, os portugueses envolvidos numa tragédia
nem permissões dos familiares, e bombardeia-as quase indiscriminadamente quem foi herói ou cobarde.” Quitexe 61
– Uma Tragédia Anunciada – O Velho
na esfera pública. Ainda em Março, muitas imagens impublicáveis começam Cazenza e Outras Histórias (Lousã: Tip.
a surgir em Luanda 14. A máquina de propaganda não procura acalmar, con- Lousanense, 2003), pp. 16, 83 e 94.
ter ou controlar a situação. Pelo contrário, consentânea, acelera esta espiral
14
A 14 de Abril de 1961, o correspondente
do jornal belga Le Soir em Leopoldville
de ódio, ao propalar novas imagens império fora, em jornais, revistas, livros reporta: “Numerosas fotograias é possível
ou na televisão, conseguindo publicá-las fora de portas em Maio, por exem- obter em Luanda, e que foram tiradas por
colonos ou por soldados apenas horas
plo, num especial de seis páginas do popular semanário brasileiro, O Cruzeiro. depois da passagem dos assaltantes, revelam
A exibição directa das cenas de sangue, em violenta ruptura do entendimento que, em todos os casos, os terroristas se
mostraram implacáveis. (…) as fotograias
ético do mundo e dos puritanos códigos sociais tão severamente policiados revelam as odiosas violências e as torturas
pela censura, introduzia um nível de horror público sem precedentes. Não a que foram submetidas as vítimas (…)”
apenas por aquilo que mostravam, mas pelo modo como mostravam a abjec- Citado em Alencastre Telo, Angola – terra
nossa (diário do terrorismo) (Lisboa:
ção, focando os detalhes nauseabundos sem iltro, em hipérboles visuais cujo ed. autor, 1962), p. 55.

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Angola 1961, o horror das imagens

Figura 1. Stills da transmissão televisiva


do discurso de Vasco Garin na sede
da ONU, em Nova Iorque, a 7 de
Junho de 1961, enquanto são erguidas brutal imediatismo apenas visava obter respostas físicas e viscerais para gerar
quatro ampliações monumentais das a indignação geral, chocando e aterrorizando as consciências. Se dúvidas hou-
fotografias do Norte de Angola.
vesse do envolvimento do regime na criação e na distribuição desta imagética
necrofágica, em grande parte captada, note-se, a mando oicial em Angola,
foram logo colocadas monumentais ampliações das fotograias de atrocidade
nas vitrines do Palácio Foz, sede do SNI, no Largo dos Restauradores, em Lis-
15
Cf. Diana Andringa, “Lutar para boa, semanas depois dos incidentes, forçando a população a confrontar, no
fugir” (16 de Julho, 2009) www. coração do império, os obscenos ícones dos mortos 15.
caminhosdamemoria.wordpress.
com/2009/06/16/fugir-para-lutar/ [acedido
Ao mesmo tempo, em Nova Iorque, a condenação internacional subia de
a 10 de Setembro, 2013]. Este episódio abre, tom contra vários abusos na repressão e a delegação portuguesa na ONU, acos-
aliás, um dos romances centrais sobre a
sada pela falta de apoio, exaurida de argumentos contra os críticos, começa a
guerra colonial, narrando um encontro do
director da PIDE com Salazar para o avisar abandonar as sessões em protesto. Mas, a 7 de Junho, uma aparatosa mudança
do 15 de Março: “Conseguiu inalmente de estratégia ocorre no Conselho de Segurança, quebrando a regra de silên-
falar com o Chefe, teve de esperar
quinze dias, apesar da urgência. Veio de cio. Enquanto o embaixador Vasco Garin discursa perante as câmaras de tele-
propósito de Luanda para o informar do visão, os seus ajudantes erguem quatro ampliações colossais de imagens de
levantamento que se prepara no Norte da
Província. Agora tem de guardar a resposta
bébés mortos no berço, duma mulher violada e dos cadáveres no capim de
só para si: «Deixe andar, é um sacrifício Madimba que foram enviados a Salazar, pondo-as depois a circular perante o
necessário, só assim poderemos contar com
pasmo dos presentes:
o apoio do país e do Ocidente.» (…) Lázaro
Asdrúbal gostava de poder desabafar com
ele, contar-lhe a conversa com o Presidente
do Conselho, dizer-lhe da sua alição e da
sua impotência: dentro de meses, quem Com a sua permissão, Sr. Presidente, mostrarei aos membros do
sabe se dentro de dias, vai haver um Conselho fotografias que ilustram esta história de degradação humana.
levantamento em Angola e ele, director
da Polícia Internacional e de Defesa do
Demonstram um terrorismo grotesco que nenhum homem decente
Estado, nada poderá fazer. O Chefe quer poderá olhar sem um profundo sentimento de horror. Apenas mostrei
assim, talvez tenha razão, por cá ninguém se
quatro destas imagens dado que não ouso mostrar muitas das outras em
preocupa com o futuro da Província, talvez
o sangue acorde o país, talvez depois seja público, tão horríveis e revoltantes são elas. Mas tenho-as aqui, e quem
mais fácil mandar a tropa.” Manuel Alegre, quiser vê-las pode fazê-lo; estão aqui mesmo. E ainda temos mais, muitas
Jornada de África (Lisboa: Dom Quixote,
2007), pp. 11-12. mais, no nosso escritório. Esta é a prova nua e nauseante da selvajaria

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4. Resistência / Memória

Figura 2. A imagem mais icónica e reproduzida, mostrando,


no enquadramento, um adulto decapitado e dois bébés que,
segundo certos autores, foram mortos à catanada. Quanto à
origem e ao local, ver discussão no texto.

16
Apesar das imagens terem sido cruciais
para a reavaliação da posição dos EUA,
Reis Ventura escreve: “Oportunamente,
o embaixador Vasco Garin mostrou-lhes
inacreditável dos terroristas que atravessaram a fronteira do norte de publicamente, no «Palácio de Vidro», as
fotograias horríveis dessa pobre gente
Angola para degolar, violar e mutilar as nossas mulheres e crianças por chacinada. E depois de observarem
todas as fazendas e aldeias indefesas em que passavam, sem a menor atentamente, no insoismável documentário
provocação, sem o menor conflicto racial (...) Não importa quanto gri- fotográico, os velhos agricultores
esquartejados, as mães com o vente aberto
tam sobre a repressão portuguesa, sobre exploração portuguesa, não à catana e as criancinhas degoladas no
importa quão alto gritam as suas mentiras e fabricações para encobrir berço, – que izeram os representantes do
governo norte-americano? Taparam os
estes crimes atrozes que encorajaram e continuam a encorajar, a prova olhos, horrorizados, reclamando um castigo
nua está aqui, demasiado nauseante para ser olhada 16. exemplar para tão hediondas atrocidades?
Nada disso. Eles que, indeferindo os
pedidos de clemência do mundo inteiro,
ataram Chessman à cadeira eléctrica,
votaram que Portugal deixasse à vontade
Notavelmente, este longo discurso, que marcou um ponto de viragem na
os beneméritos assassinos de homens,
estratégia diplomática, centra-se exclusivamente nas fotograias, detalhando mulheres e crianças…” O caso de Angola
como os selvagens castram o pénis dos homens, atirando-no ao ar enquanto (Braga: Editora Pax, 1965), p. 21. Para
Américo Barreiros, a importância das
dançam e cantam, como amputam os pés e as mãos às crianças, e cortam os imagens na ONU radicava no facto de,
seios a todas as mulheres, depois de violadas. Ao focar a natureza violenta em consonância com a doutrina oicial, as
considerar como única e exclusiva fonte
do ataque, refutava-se a legitimidade política dos movimentos de libertação, segundo a qual se pode interpretar os
por se saber terem o apoio internacional dos países ali reunidos. Sabendo do ataques da UPA: “Para se documentarem e
bem, nada melhor que ver nessas fotograias
poder particular das imagens grotescas para matar a discussão, dada a imo-
os cadáveres de homens, mulheres e
ralidade do horror se sobrepor a tudo, tornando qualquer questão heresia, crianças, cortados aos bocadinhos,
são mobilizadas despudoramente para aplacar os críticos. O sensacionalismo pelos negros desta Angola, tornados
completamente inconscientes por drogas
e chantagem emocional da estratégia de exibir o espectáculo doentio dos mor- que negros de além-fronteiras introduziram
tos, provou-se politicamente eicaz, tendo-se imposto ao debate racional, blo- na nossa terra, onde o paciismo e a
coniança do preto na nossa Administração
queando a análise, paralisando os presentes. Os ganhos da perversa manobra nunca sofreram reparos de dentro e de fora
primavam sobre os escrúpulos com a dignidade das vítimas e o luto das famí- (…) Antecipem-se os senhores da Comissão
a redigir o seu relatório com base, apenas,
lias. E a centralidade das imagens na psique nacional era vincada: “a dolorosa
nos hediondos crimes que tais fotograias
prova de muitos destes casos permanecerá para sempre na nossa memória revelam e deixem-se de mais hipocrisias
através destas fotograias horrendas tiradas pelos socorristas, que chegaram que já cheiram mal.” A verdade sobre os
acontecimentos em Angola (Carmona:
demasiado tarde.” Tip. Angolana, 1961), p. 133.

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Angola 1961, o horror das imagens

Em semanas, as imagens alastram como fogo pela paisagem cultural de


Portugal, com o beneplácito da censura que, embora redobre a actividade
então, abre excepção para as maiores aberrações já vistas no espaço público.
Violando proibições culturais contra a nudez, sexo e a morte, esta monstruosa
campanha psicológica canalizou e capitalizou a eicácia ditatorial das imagens
de atrocidade como mecanismo de condicionamento da percepção pública
(obrigando a olhar a vulnerabilidade máxima do corpo morto, focando os gol-
pes e o sangue na carne, detalhes da abjecção e torturas sexuais sobre mulheres
e crianças), para instalar o choque e suprimir o contexto, exigindo a indigna-
ção dos cidadãos que, em geral, não ousam metê-las em causa, nem conse-
guem pô-las em perspectiva 17. O poder destas imagens da dor, putrefacção e
morte de outrém, não podia senão levar ao medo, à repugnação e à náusea,
como respostas automáticas. A “política de terror colonial” dependia do hor-
ror visceral e pré-cognitivo das representações, i.e., da irracionalidade caótica
da violência que parecia irromper ab nihilo, fora de qualquer encadeamento
histórico, para contrapor o poder benevolente do governo, reforçando assim
um caminho único para a pátria: a rejeição do reformismo ou negociação, e
a intensiicação da violência e repressão 18. Terá sido a força agenciadora des-
17
É necessário recordar, como nota Diana
Andringa, que “A Censura impedira os tas fotos que, airma Eduardo Pitta taxativamente, levou Salazar a declarar a
portugueses de conhecer outros massacres guerra colonial um mês após os ataques, no dia 13 de Abril: “Para Angola,
anteriormente ocorridos: milhares de
mortos de população civil angolana, na
rapidamente e em força” 19. Como observam Natércia Coimbra e Joaquim
repressão da revolta dos plantadores de Ramos de Carvalho:
algodão da Baixa do Cassange, centenas
de mortos nos ataques aos musseques de
Luanda e na repressão em Icolo e Bengo, Impressionados pela exibição das fotografias dos terríveis massa-
na sequência do assalto pelos nacionalistas cres de Angola, verdadeiras mas de uma só face, os Portugueses res-
às prisões e quartéis da capital angolana,
ocorrido a 4 de Fevereiro.” A não existência ponderam, de forma geral, com generosidade ao apelo do ditador, sem
de registos visuais destes acontecimentos poderem formular livre juízo de valor sobre o seu empenhamento 20.
permitia assim a manutenção, para o
exterior, da ideia idílica de paz total nesta
colónia até aos eventos de 15 de Março. O mote bélico que acudiu paternalmente ao clima generalizado de pavor e
Cf. Andringa, “Lutar para fugir”. pânico que se espraiava de Luanda a Lisboa, deixou para trás a “estranha inac-
18
Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto
da Cruz, “Terror e saberes coloniais: ção de Salazar”, cuja cegueira em relação aos recentes eventos africanos, e o
Notas acerca dos incidentes na Baixa de desdém pelos avisos do ataque iminente, recusou medidas preventivas (como
Cassange, janeiro e fevereiro de 1961”,
Miguel Bandeira Jerónimo (org.), O Império mudanças ao número mínimo e ao material obsoleto das forças armadas em
colonial em questão (sécs. XIX-XX): poderes, Angola) para lidar com a violência no horizonte, enviando quase nenhuns
saberes e instituições (Lisboa: Edições 70)
passim.
reforços para acudir e conter a matança que se alastrava 21. Carlos de Matos
19
“As fotograias deram a volta ao mundo. Gomes e Aniceto Afonso sugerem que, ante a crescente oposição interna e
Foi por causa delas que Salazar pronunciou pressão mundial de então, um evento catrastróico seria o acontecimento
a frase famosa [...]”, Eduardo Pitta,
“War Notes 3”, Julho 24, 2006, in http:// necessário para unir os portugueses à volta do regime debilitado, capitali-
daliteratura.blogspot.co.uk/ [Acedido a 20 zando o choque para recuperar a autoridade e implementar radicais alterações
de Agosto de 2013].
20
In site do Centro de Documentação do políticas: “Em abono desta tese pode apontar-se o facto de rapidamente terem
25 de Abril, Universidade de Coimbra: sido despachados jornalistas e fotógrafos para as zonas de massacre” 22. O certo
www1.ci.uc.pt [Acedido a 20 de Agosto,
2013].
é que as fotograias que exploravam a ideologia da victimização, usando os
21
Carlos de Matos Gomes e Aniceto mortos como armas na luta política, uniicaram, de facto, pessoas de cores
Afonso, Os Anos da Guerra Colonial políticas opostas face ao inimigo comum (na diferença deinida como o negro,
(Matosinhos: Quidnovi, 2009), p. 65.
22
Idem, p. 68. estrangeiro e comunista) que viola mulheres, mata crianças e castra homens,

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4. Resistência / Memória

em rituais sexualizados e orgias antropofágicas nunca antes vistas 23, em locais


onde antes, como se repetia, reinava o sentimento mútuo e multirracial de fra-
ternidade cristã, sob uma só bandeira. Rasgando as imagens rarefeitas desta
longínqua província e o colorido escapismo mítico da generalidade das repre-
sentações coloniais, com o hiperrealismo dramático e pornográico que assalta
de súbito a metrópole a preto e branco, a visualidade está no centro desta vio-
lência inaugural cuja chama demorou mais de uma década a ser extinta. Se as
primeiras notícias minimizavam os incidentes, divulgando notícias discretas
que garantiam estar tudo sob controlo, sucederia um empolamento proposi-
tado que é indispensável para perceber o clima de terror vivido e o inevitá-
vel extremismo das acções que suscitaram 24. De uma existência sonâmbula à
histeria do socorro, começa a guerra colonial, nessa convulsão recordada por
Filipe Leandro Martins:

As colónias chamam-se agora províncias ultramarinas, o Salazar fala


na rádio, a rádio não se cala, o SNI organiza exposições de fotografias
onde se podem ver mulheres brancas cortadas aos bocados pela UPA
e pretos ferozes de catana em punho. Fardas novas e claras começam
a vestir militares portugueses, rapazes que tinham feito Goa voltam a
embarcar e passeiam no Rossio em caqui de verão 25.

Guerra em curso
23
Sobre a centralidade das imagens na
intimação de canibalismo, escreveu Isabel
Castro Henriques: “As últimas operações
“As fotografias que iam chegando a Lisboa ligadas à banalização da antropofagia
foram certamente as que nasceram após
corriam de mão em mão, impressionando os actos de violência física dos africanos
vivamente o povo português, que reagiu da UPA a partir de Março de 1961, na
zona cafeeira do norte de Angola, e que
protestando em manifestações de rua.”
foram amplamente divulgadas pelos
serviços oiciais portugueses […] inúmeras
MÁRIO ANTÓNIO, A descolonização portu- companhias militares portuguesas
guesa, 1979, p. 62. podendo evocar ou até mostrar fotograias
das operações antropofágicas realizadas
pelos soldados portugueses, que tinham
“(…) numerosas fotografias que percorriam sido treinados no quadro da mitologia
Angola de ponta a ponta e mostravam alguns antropofágica dos africanos. [...] Todavia,
são portuguesas as fotograias que mostram
desses terríveis massacres. (…) fotografias (no século XX!) os cadáveres decapitados e
que espelhavam todo o horror daquela noite as cabeças espetadas em paus, para as exibir
ao mundo civilizado! Não bastava então
e daquele dia de pesadelo e lançaram um as crueldades da tortura e da morte, era
natural pânico por toda a população.” indispensável assegurar a eternidade das
imagens, prova da eicácia da violência, que
LUÍS RODRIGUES, A última jóia, 2006, pp. 45 e 52. só podia responder à antropofagia mítica
com a antropofagia real.” Os pilares da
diferença – relações Portugal-África: séculos
XV-XX (Casal de Cambra: Caleidoscópio,
2004), p. 244.
A exploração do imenso potencial detonador destas imagens escabrosas 24
Cf. Nuno Mira Vaz, Opiniões públicas
não se cinge a legitimar publicamente o envio das tropas para Angola. Pros- durante as guerras de África: 1961-74
segue a todo o vapor na mobilização para a guerra, com o apoio de organis- (Lisboa: Quetzal, 1997).
25
Filipe Leandro Martins, A pele branca
mos oiciais e semi-oiciais. A mais grandiosa destas manifestações decorreu das acacias (Lisboa: Caminho, 1986), p. 68.

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Angola 1961, o horror das imagens

entre 5 de Julho e 7 de Agosto, quando a Sociedade de Geograia de Lisboa


monta, na Sala Algarve, uma exposição das fotograias de atrocidade. Em ape-
nas um mês, a aluência foi tal que tiveram de improvisar medidas para regu-
lar a entrada: mais de cinquenta mil visitantes foram espreitar os cadáveres
de Angola, um recorde absoluto para exposições de fotograia em Portugal.
O desígnio político e ideológico deste macabro certame para o grande público,
que, de modo inigualável nessa metade do século, espectacularizava a morte
alheia em toda a sua obscenidade, era declarado:

Trazendo ao conhecimento de nacionais e estrangeiros este irrefu-


tável documentário – quadro terrível da realidade que Portugal tem de
encarar hoje naquela parte de Angola –, a Sociedade de Geografia de
Lisboa considerou que tal concorreria para fundamentar ainda melhor as
razões porque resistimos em África à onda de ambições e de anarquia
que nesta hora se conjuram contra a integridade da Pátria 26.

A reencenação do lagelo e morte das vítimas nas instalações da Socie-


dade, expostas sem roupas, sem dignidade e sem vida, ixadas para sempre
num estado de brutal crueldade perante o voyeurismo do público, não era
vista como nova degradação e humilhação. A existência individual e a noção
de privacidade eram preteridas por esta epidemia de fotos que procurava
captar a magnitude máxima da agressão, que se queria como apelo às armas.
Exigia o dever patriótico publicar o impublicável, ultrapassando as barrei-
26
“Exposição das Fotograias de
Atrocidades Cometidas no Norte de ras que ixavam relações sociais, numa autêntica “banalização do mal”. Uma
Angola”, Boletim da Sociedade de Geograia bolha editorial sem precedentes teve, por isso, lugar em Portugal, inserindo
de Lisboa, Lisboa: Sociedade de Geograia
de Lisboa, Série 79 (Jul-Set 1961), p. 316. as fotos chocantes em literatura comercial, com tiragens inauditas: A verdade
Na mesma senda, a revista Ultramar, sobre os acontecimentos de Angola, de Américo Barreiros (14 edições); San-
ao pontiicar então sobre os ataques
(“O negro é muito sugestionável: deixa-se
gue no Capim, de Reis Ventura (14 edições); Angola 1961, de Amândio César
levar sem resistência desde que seja (8 edições); he Fabric of Terror, de Bernardo Teixeira (5 edições); Angola
possível impressioná-lo, como não é Heróica, de Artur Maciel (3 edições), entre tantos, com profusos extratextos
difícil arrastá-lo no sentido contrário,
impressionando-o com uma nova sugestão de fotograias, ampliadas, repetidas, e sempre repletas de minuciosas descri-
forte. O negro vai sempre atrás da última.”) ções do terror. As imagens mórbidas de corpos nus e cabeças decapitadas, vís-
caucionava o papel decisivo da fotograia,
airmando que a sua importância política ceras sangrentas e entumescidas, lacerações profundas e genitália mutilada,
devia sobrepôr-se a considerações éticas tornam-se ubíquas, e o excepcional institui-se em norma nacional, até nos
sobre a emissão massiva de imagens
chocantes ou o tipo de acções a que daria
livros mais comedidos. É o caso do estudo histórico de Hélio Felgas, Guerra
azo: “Eu compreendo que não se devem em Angola, e da recolha de reportagens por Almeida Santos, Angola Mártir,
publicar algumas das fotograias que cuja monumental capa ampliava a fotograia dos bébés mortos no berço, exi-
eu vi em Luanda, ou descrever alguns
dos horrores praticados [mas] bida por Vasco Garin na ONU.
É preciso sentir a dor dessa gente, para Nenhum dos livros que aproveita imagens explícitas do sofrimento alheio
se compreender todas as suas exigências,
a principiar pela exigência da nossa foi censurado. Pelo contrário. O mais popular deles todos, pelo jornalista da
solidariedade mais irme e mais fortemente RTP, Horácio Caio, Angola, os dias do desespero, foi logo proibido na África
comprovada.” Ultramar: Revista da
Comunidade Portuguesa e da Actualidade
do Sul 27. Em Portugal, no entanto, foi um dos livros mais vendidos de sempre:
Internacional, ed. 3 (1961), p. 111. 12 edições em apenas alguns meses de 1961, e chega às 19 em 1969. Conside-
27
Jonathon Green, Nicholas Karolides, rado, ainda hoje, um dos relatos mais moderados, este livro é essencial para
Encylopedia of Censorship (New York: Facts
of File), p. 526. perceber o contexto discursivo das fotograias que reproduz em abundância.

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4. Resistência / Memória

Figura 3. Capa e contracapa do livro Angola Mártir (1961) de Almeida Santos.

Embebidas na retórica inlamada da vingança, e escamoteando o número


superior de vítimas negras, o texto elucida o tom e intenção da campanha de
disseminação visual dos mortos:
a calma a estes homens. Como poderão
eles estar calmos se conservam ainda as
Não quero neste momento que alguém tenha piedade dos nossos mãos manchadas do sangue dos seus e, nos
olhos, a imagem dos negros enfurecidos
mortos. Exijo muito mais: que se condene quem praticou estas chacinas!
e esigurados, degolando as crianças e
É humano. Ou só a circunstância de um indivíduo ser negro lhe garante as mulheres?” Idem, p. 40. Predominava
a impunidade 28? entre a literatura da época o apelo à
irracionalidade, secundando a toda a linha
as acções da população branca armada
Ao serviço da causa maior do ultimato ao terror negro, a transformação pelo regime. Escrevia Amadeu Ferreira,
alorando de novo o papel estratégico
do martírio humano em objecto de exposição pública é trivializada, exacer- das imagens na resposta portuguesa,
bando, de modo irreparável, o fosso racial e o pendor terrorista que pautou “Não peçamos agora inteligências claras
e ouvidos abertos a boas razões! Não
as chacinas da UPA. A vingança é exigida em termos abertamente racistas, esperemos intenções rectas, raciocínios
identiicando o agente do mal como o “indivíduo negro”. Os verbos usados sem preconceitos, soluções imparciais. (…)
Temos que entender as reacções dos que
têm nos olhos, nos ouvidos, no sangue os
28
Horácio Caio, Angola, os dias do na reacção, como o Governador-Geral gritos e as imagens das crianças retalhadas,
desespero (Lisboa: Grupo de Publicações de Angola, Silva Tavares, permaneciam das virgens violentadas.” Catana,
Periódicas, 1961), p. 49. Se algumas iguras todavia uma minoria. Caio bradava no Canhangulo e Arma Fina (Braga: Editora
políticas apelavam publicamente à calma seu bestseller: “Não se pode recomendar Pax, 1964), pp. 68-69.

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Angola 1961, o horror das imagens

são frequentemente “aniquilar” ou “eliminar”, como era o caso de outro dos


livros mais populares entre o público português, por Amândio César, con-
tendo nova colecção de fotograias macabras:

Saímos do laboratório fotográfico, sem uma palavra. Um de nós


acrescentou ao nada que se dissera até ali: «isto é horroroso!». […] E hou-
vera, um ano antes ou uns meses antes, quem tivesse dito e quem tivesse
acreditado que o preto, de uma maneira geral, era o homem bom, o bom
selvagem, inventado por Rousseau! Como estes intelectuais de pacoti-
lha, saídos das escolas superiores ou lá professorando, andam longe das
realidades!… 29

A obra que reunia reportagens oiciais transmitidas na Emissora Nacio-


nal, passou imune à censura, e não contém avisos ao leitor. Na Suíça, porém, a
crítica destacava: “as fotograias horríveis da fúria dos assassinos contêm uma
violência difícil de suportar, o que faz com que este livro não possa circular
por todas as mãos. Apenas para o especialista prevenido” 30. Mas não bastava
coagir o público a olhar as imagens de atrocidades. Era preciso determinar
como deviam olhá-las, ixar o seu signiicado. Um livro editado pela Reparti-
ção Municipal de Turismo e Cultura de Luanda, Luanda 61, é disso exemplo,
ao oferecer centenas de imagens do desenvolvimento multiracial da cidade
que culminam na supracitada imagem, a página inteira, dos bébés mortos no
berço. Sob ela, uma legenda instrui assim:

Tudo era calmo até então! A vida decorria simples e boa (…) Tu, que
és pai, olha bem a fotografia. Tu, que és mãe, aperta os teus filhinhos
contra ti. Imagina, por momentos, aquelas crianças, igualzinhas a todas
as crianças do mundo, que poderiam ser os teus filhos. (…) Vê as grossas
lágrimas na carita daquele inocente de dois anos, os brasitos estendidos,
os seus gritos ao ser dilacerado pelos requintes de perversão sexual dos
monstros. Ouve o agudo choro do bebé ao ser desfeito à catanada. (…)
Olha bem a fotografia. Vê-os ali, naquele terreiro, despedaçados e mor-
tos. (…) Tudo era calmo até então! Hoje… HÁ LUTO NA NOSSA CASA! 31

A constante exortação a olhar vinha ligada a uma retórica de intimidação


e aterrorização sempre repetida: a ideia de que pessoas morriam a menos que
se tomasse uma acção imediata, e a desconcertante sugestão de que é o espec-
tador, de certa maneira, quem ali morria. O testemunho visual grotesco tinha
de ser dominado, mitigado, e posto ao serviço de ópticas adequadas aos objec-
tivos do poder. Os livros cumpriam esta função de modo coerente, consoli-
29
Amândio César, Angola 1961, Lisboa: dando as narrativas canónicas para enquadrar os ícones.
Verbo, 1961, p. 61.
30
Genève-Afrique, vol. 5 (1966), p. 97.
A primeira, e a mais sistemática delas todas, consistia em despolitizar o
31
Almeida Santos (coord.), Luanda 61 massacre, e desumanizar o inimigo, concentrando-se no como do ataque e
(Luanda: Neográica, 1961), s. p. nunca no porquê, desligando-o do contexto de quaisquer ódios acumulados
32
Cf. Mateus e Mateus, Angola 1961,
p. 142. ou violências políticas 32. Em contradição a chefes militares que, em relatórios

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4. Resistência / Memória

conidenciais, atribuíam a cruel violência aos abusos laborais, à espoliação dos


direitos, e como resposta à brutal repressão da revolta da Baixa do Cassange
dois meses antes e aos acontecimentos de Luanda no mês anterior (ambos
levando à morte de milhares de negros), buscava-se apoio na autoridade da
ciência colonial portuguesa para validar ideias racistas sobre o primitivismo,
atavismo ou bestialidade do negro que, drogado e selvagem, se torna num ani-
mal que mata, viola e aterroriza. José Redinha explica:

O que viu nas fotografias que para aí circulam tem explicação, factor
por factor, nos rituais indígenas. Fizeram-nos regressar a tempos imemo-
riais de barbárie e selvajaria. (...) souberam trabalhar bem a besta-fera
que jazia adormecida dentro da alma negra 33.

O mesmo conirma, por exemplo, outro decano da etnologia portuguesa,


Eduardo dos Santos, no estudo cientíico mais inluente sobre os ataques,
Maza, no qual caucionava a necessidade de decapitar os insurgentes, dada a
crença entre estes difundida de que, caso contrário, ressuscitavam. Além de
notar, sobre as imagens, que “a Imprensa, toda a Imprensa não pôde ocultar
estes desvarios e selvajaria”, como se por inevitabilidade e jamais consenti-
mento ou intencionalidade, encerrava o seu apregoado ensaio com este vere-
dicto: “Têm de regressar as populações a uma exploração mais opressora do
que nos tempos do Pacto Colonial. Dir-se-ia que a África quer voltar à era do
colonialismo” 34. 33
César, Angola 1961, p. 61.
Outra narrativa tem nas imagens a ilustração cruel da conspiração contra 34
Eduardo dos Santos, Maza: elementos
Portugal, reproduzindo-as ao lado de tiradas xenofóbicas contra a desumani- da etno-história para a interpretação do
terrorismo no noroeste de Angola (Lisboa:
dade estrangeira, reclamando genocídio e holocausto, acusando quem não as E. Santos, 1965), pp. 49 e 360. Valerá
imprime de propaganda capitalista ou comunista, quando não anticristã, satâ- também a pena, para perceber até que
ponto se procurou expurgar o ataque de
nica, semita. Jingoísmos condensados por Orbelino Ferreira, que as vê como qualquer vestígio político ou contexto
“braseiro ateado ao sopro comunista na base judaico-americana em que acen- histórico, tudo investindo no retrato do
deram a fogueira criminosa” 35, ao tempo em que oicialmente se declara que negro como sub-humano e animal, ler o
que escreveu Djalma Bettencourt sobre os
“Portugal representa uma concepção de vida incompatível com as forças anti- ataques: “O mais lamentável é que o efeito
-humanas que procuram dominar o Mundo” 36. A terceira narrativa recruta da fúria dos nativos é produto exclusivo de
causas extraordinárias alheias à sua própria
sobretudo autores estrangeiros e reinvidica as imagens como a prova irrefutá- vontade. É como se nós déssemos a beber a
vel de que se trata do pior crime de toda a história da humanidade, desvelando algum elefante alguns litros de uma droga
excitante e violenta... Transformaríamos
a verdadeira face da suprema aliança do mal, o nacionalismo negro e o comu- o pacíico e bondoso – quasi doméstico –
nismo vermelho, que punham em causa a sobrevivência da civilização ociden- paquiderme na mais formidável das feras.
tal. Robert Ruark, então celebrado pelas suas populares descrições de horrores Alguns nativos, aprisionados, voltam ao
seu estado normal e choram como crianças,
dos Mau Mau no Quénia que varriam o mundo, originando romances e ilmes arrependidos do que izeram.” Prefácio de
de Hollywood, foi chamado a depôr sobre o caso de Angola: Iglezias, Verdade sôbre Angola, s.p.
35
Pedro Pires, Mário de Oliveira, Orbelino
G. Ferreira, Braseiro da morte: Diário dos
Observei as imagens de apenas um dia de horror, e não têm des- primeiros 150 dias de terrorismo nas terras
de Angola (s.l.: Edição dos Autores, 1963),
crição, mesmo que se tenha bom conhecimento dos Mau Mau (…) pior
p. 41.
do que as atrocidades somadas dos portugueses ao longo de 500 anos 36
Boletim Geral do Ultramar, n. 438 (1961),
de colonização – pior do que os alemães em Tanganica, pior do que os p. 242.
37
Robert Ruark, “Preface” in Teixeira, he
belgas no Congo central 37. Fabric of Terror, p. viii.

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Angola 1961, o horror das imagens

O horror das fotograias atestava a supremacia do ataque sobre as atroci-


dades acumuladas do passado: pior que os horrores da escravatura e as depre-
dações do colonialismo, e mais grave que os campos de concentração nazi,
então ainda em julgamento. A eicácia chocante das fotograias, e a subse-
quente capitalização ideológica, é atestada por Douglas Reed: “Durante doze
anos após o massacre de 1961 a imagem desse dia nunca me saiu da cabeça.
Nem Estaline nem Hitler conseguiam ter inventado estes horrores” 38. Um
panleto oicial destas imagens destinado ao público norte-americano, sob o
título On the Morning of March 15, permite perceber como o regime pro-
curava situar este evento na história:

Pede a qualquer ex-correspondente de guerra para te descrever em


detalhe a carnificina que testemunhou nas praias da Normandia no Dia
D. Considera que a sua descrição mais horrenda é um mero eufemismo.
Depois regressa aos tempos em que os americanos corajosos conquista-
ram o Oeste Selvagem, sob pena de serem torturados em fogueiras, ou
escalpados vivos pelos Índios Vermelhos. Acrescenta a esta visão imagi-
nária do horror as torturas inflingidas nas masmorras da idade média e
o pior dos acontecimentos degradantes que ocorreram nos campos de
concentração europeus durante a guerra... e mesmo assim não vais con-
seguir imaginar o que cidadãos portugueses brancos, mulatos e negros,
tiveram de passar em Angola às mãos dos terroristas por quem a ONU
exprime tanta simpatia! 39

Foi, aliás, este mesmo panleto que um ideólogo conservador, Edward


Griin, levou à televisão, mostrando as imagens ao público norte-americano
como prova acabada de que o perigo comunista era mais alarmante do que
38
Douglas Reed, he siege of Southern
uma ameaça nuclear americana, ao revelar “modos de morrer que fazem o
Africa (Johannesburg: Macmillan, 1974), lash instantâneo de uma bomba nuclear parecer piedoso” 40.
p. 32. São estes panletos cheios de fotograias de atrocidade que, de forma
39
On the Morning of March 15 (Boston:
Portuguese-American Committee on mais consistente, as levam aos alvos estratégicos e orquestram a política do
Foreign Afairs, 1961). terror por meios visuais. Sobretudo após uma irma de relações públicas,
40
G. Edward Griin, he grand design: a
lecture on U.S. foreign policy, housand Selvage & Lee 41, ser contratada pelo governo português para mudar a opinião
Oaks, Calif.: Grand Design (1968). pública americana em relação às colónias, usando como arma a publicação,
41
O contrato com a empresa Selvage &
Lee, no valor de $500 000 USD por ano,
em Setembro de 1961, de centenas de milhares dos referidos On the Morning
foi celebrado pela Associação Portuguesa of March 15, que destilam exemplarmente a função e a mensagem ideoló-
das Empresas do Ultramar, a 2 de Maio de gica das imagens. São o exemplo paradigmático da demagogia fotográica em
1961, na sequência dos ataques da UPA, e
assinado, entre outros, por Alexandre Pinto causa, ao mostrar ao leitor as cenas do massacre lado a lado com as seguintes
Basto, Presidente do Caminho de Ferro de questões:
Benguela; Ernesto Vilhena, Presidente da
Diamang; e os banqueiros Manuel Espírito
Santo e Manuel Queiroz Pereira. Hearing Estarão aptos a governar os que inspiraram e ordenaram estes actos?
before the Committee on Foreign Relations,
Estarão aptos a merecer o apoio das Nações Unidas ou de qualquer
United States Senate (88th Congress, First
Session) on Activities of Nondiplomatic sociedade civilizada e cristã? Estarão aptos a ter o apoio dos Estados
Representatives of Foreign Principals in Unidos?
the United States (Washington D.C.: U.S.
Government Printing Oice, 1963), p. 834.

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4. Resistência / Memória

Figura 4. Quatro panfletos oficiais com


fotografias de atrocidade: o primeiro
concebido pela firma norte-americana
A avaliar pelo conteúdo e graismo idêntico, o esforço foi coordenado de relações públicas Selvage & Lee,
com o SNI, com quem a irma mantinha estreitas relações, e que publicou contratada pelo governo português;
e os outros três publicados pelo SNI.
logo depois em Portugal três versões destes panletos: em português, Geno-
cídio contra Portugal; inglês, Death on the march in Angola; e italiano, Geno-
cidio contro l’Europa. Terão sido, no total, milhões os panletos impressos e
distribuídos, sempre adaptados a diversos contextos. Se no caso português se
apela ao sacrifício do sangue como sinal do glorioso destino nacional, com
intimações dos desastres que aguardam em caso contrário, e certiicando que
a discussão colonial não passava do plano ilosóico da história, as versões em
inglês viliicavam os grupos de libertação como sanguinários a soldo soviético,
e são enviadas obsessivamente para todos os cantos do mundo, à mínima refe-
rência a Portugal. Chegam até a jornais tão distantes como o Indonesia Obser-
ver ou o Times of Indonesia, a cujas acusações de repressão brutal em Angola,
o SNI respondeu imediatamente por carta com “uma colecção de fotograias
que vos permitirá tirar as vossas próprias conclusões” 42. Entretanto, nos EUA,
todos os congressistas e senadores receberam um exemplar destes panletos,
com uma mensagem: “Pedimos desculpa por todos os horrores denuncia-
dos, mas sentimos que este panleto é necessário para contrabalançar a tor-
rente de propaganda dirigida contra Portugal como parte da total conspiração
comunista mundial para destruir a NATO e o mundo livre” 43. E quando, por
exemplo, o Senador Albert Gore do Tennessee – pai do ex-Vice-Presidente
dos EUA, Al Gore – aludiu em discurso a abusos na reacção portuguesa em
Angola, foram logo distribuídos acusatoriamente panletos pela totalidade dos
jornais desse estado americano, 161, usando, como se tornara prática oicial 42
AN/TT SNI, cx. 2908.
43
Hearing..., p. 943.
comum, o sensacionalismo abjecto dos cadáveres para estancar a crítica, inju- 44
O discurso em causa teve lugar em
riando este político junto do eleitorado como simpatizante comunista 44. Middlebury, Vermont, a 24 de Março de
Outro dado crucial sobre a circulação destas fotograias é revelado pelos 1962, no qual, entre outras coisas, o senador
Gore apelou a um maior escrutínio da
grupos a quem se coniou a distribuição de panletos nos EUA, invariavel- ajuda americana prestada a Portugal para
mente racistas, anticomunistas e ultraconservadores, com declaradas agendas certiicar que esta não serviria para “matar,
castigar, ou intimidar os africanos.” Idem,
anti-semitas e segregacionistas, contra a descolonização e os direitos civis. É o p. 974.

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Angola 1961, o horror das imagens

caso do National States Rights Party, da John Birch Society ou da Billy James
Hargis’s Christian Crusade, além dos panletos serem citados por um dos
principais livros da supremacia branca 45. A associação dos vários grupos de
supremacia branca, a White Citizens’ Council, que se destacava então, ao lado
do Ku Klux Klan, pela fortíssima oposição à integração racial através de amea-
ças violentas e boicotes económicos (denunciando dívidas, negando emprésti-
mos e créditos, e sabotando os negócios de afro-americanos), foi também um
dos orgãos seleccionados para divulgar os panletos pela irma que operava
sob instruções precisas do governo de Salazar. Além deste grupo ter publi-
cado as fotos dos cadáveres portugueses numa das suas revistas, he Counci-
lor, usando-as para atacar os direitos civis, denunciando uma putativa aliança
entre Holden Roberto e Martin Luther King, e exibindo a chacina como pre-
núncio de um futuro com igualdade racial nos EUA; anuncia ainda, em página
inteira da sua revista oicial, he Citizen, a venda dos panletos com as fotos
das vítimas portuguesas que morreram em Angola que o governo português
pagou e lhes fez chegar em quantidade, como objectos de colecção sobre a
“selvajaria negra”, instando o leitor a apressar-se antes que se esgotassem,
aceitando encomendas em avulso (1$), três (2$) ou dez cópias (5$):

ATROCIDADES AFRICANAS CHOCANTES! ON THE MORNING OF


MARCH 15. Prova fotográfica da selvajaria negra em Angola! (…) A prova
fotográfica da bestialidade, mutilação e tortura praticada pelos selvagens
negros está incluída neste panfleto. Aviso: Isto não é para os mais impres-
sionáveis! UMA QUANTIDADE REDUZIDA DESTES PANFLETOS ESTÁ
AGORA DISPONÍVEL PARA OS LEITORES DO “THE CITIZEN”. ESTE É O
PRIMEIRO ANÚNCIO DA SUA DISPONIBILIDADE – E PROVAVELMENTE
SERÁ O ÚLTIMO! Use o cupão abaixo para os encomendar 46.

Por seu lado, a versão italiana destes panletos do SNI, embora inanciada
por este e impressa em Lisboa, foi concebida para ser integrada numa coleção
de livros da Ordine Nuovo, grupo terrorista de extrema-direita dissolvido em
1973 pelo parlamento, na sequência de múltiplos atentados com dezenas de
mortos em Itália, e por tentarem restaurar o partido fascista de Mussolini. Foi
a este grupo que o SNI decidiu entregar as fotograias dos mortos de Angola,
reproduzidas ao lado de títulos da colecção como “o mito do extermínio dos
judeus,” atribuindo o crime à esquerda sanguinária, e à conspiração geno-
45
Cf. William G. Simpson, Which Way
Western Man? (Washington D.C.: National cida do “capitalismo yankee, l’imperialismo sovietico e la barbarie afroasiatica”
Alliance, 1978). contra Portugal e a Europa 47.
46
he Citizen: Oicial Journal of the
Citizens’ Councils of America, vol. 6, Embora não caiba aqui esmiuçar as implicações políticas dos canais de
Jackson: Citizens’ Council, 1961, 32. distribuição preferidos pelo regime português, enquanto defende publica-
47
O SNI edita então outro título de Pino
Rauti (L’Europa e l’Africa), fundador
mente a permanência em África com base na sua excepcionalidade multir-
deste grupo abertamente neofascista e racial e brandura de costumes, é crucial notar que, se nas edições para fora
anti-semita, e membro da falsa agência de do país, as fotograias estão quase sempre vedadas por avisos para não cho-
notícias montada por Salazar, a Aginter
Press. car o público, ou são exibidas com parcimónia, a atitude para com o público

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4. Resistência / Memória

Figura 5. Selo protector separando


o texto das fotografias no interior do
panfleto Death on the march in Angola.
“AVISO: NÃO QUEBRAR ESTE SELO
ANTES DE LER A SEGUINTE NOTA:
Esta secção selada do nosso panfleto
contém fotografias de corpos
horrivelmente mutilados.
São ilustrações atrozes do pior tipo
de atrocidades e por isso não devem
chegar às mãos de menores. Nem
são próprias para a generalidade dos
adultos observar. São apresentadas,
com muita relutância, apenas como
prova irrefutável de afirmações
que são tão horríveis que de outro
modo poderiam não ser acreditadas.
Esperamos sinceramente que a maior
parte dos leitores aceitem como
verdadeiro o material escrito submetido
na primeira parte deste panfleto, e
que possam assim tomar em conta
que lhes será poupada muita dor se se
abstiverem de quebrar o selo.”

português não podia ser mais contrária. O panleto inglês do SNI, por exem-
plo, tem um selo que separa o texto das imagens, alertando conter corpos hor-
rivelmente mutilados, a não ser vistas nem por menores, nem pelo comum
adulto. A versão americana reitera que estas são mostradas com muita reni-
tência, uma vez que são “completamente impublicáveis – nem para uma dis-
tribuição geral nem para a circulação privada.”
No entanto, o mesmo panleto, dirigido à população portuguesa, era des-
provido de qualquer aviso, e o mesmo sucede com a maioria dos livros, dos
jornais e das exposições que as reproduzem. Ao contrário do que era pre-
gado fora de portas, a distribuição geral e circulação privada eram a regra em
território nacional, uma vez que, conscientes do potencial traumático das
fotograias, as autoridades não só não condenavam a exibição gratuita da vio-
lência perante menores e adultos, como eram os seus principais promotores
– mesmo que controlando activamente quais saíam sob a sua chancela, para
não se levantarem questões inconvenientes sobre a sua incapacidade de pro-
tecção das populações. Quando não as publicam, facilitam o acesso a arquivos
das expedições do horror para edições comerciais, que agradecem as cedên-
cias de fotograias às autoridades militares e civis, sobretudo ao CITA (Centro
de Informação e Turismo de Angola), mas também ao Serviço Cartográico
do Exército, à Força Aérea, ao SNI, e aos jornais O Comércio, A Província de
Angola ou Diário de Luanda.
Se antes da declaração de Salazar (“rapidamente e em força”), as imagens
já saturavam os jornais e a televisão (em 1961, a RTP emite 9h30 só de repor-
48
Vasco Hogan Teves, História da
Televisão em Portugal, 1955/1979 (Lisboa:
tagens de Angola 48), chegam também ao cinema em 1962, alternando justa- TV Guia Editora, 1998), p. 114.

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Angola 1961, o horror das imagens

mente o discurso com as fotograias de atrocidade e o envio das tropas, uma


montagem ideológica bem reveladora do nexo indissociável entre o início da
guerra colonial e a violência ocular. Esta co-produção da RTP, Angola, Deci-
são de Continuar, por Vasco Hogan Teves, com texto de Horácio Caio, rom-
peria assim, mais uma vez, pelo terror, todas as convenções éticas de que havia
memória, ao utilizar “de modo inédito no cinema colonial português, ima-
gens chocantes” 49. Outros ilmes continuariam a reciclar e a fetichizar estas
fotograias, como Uma Jornada Histórica – do Terrorismo no Congo à Mani-
festação em Lisboa (1963), de António Lopes Ribeiro e Perdigão Queiroga,
ou ainda Angola na Guerra e no Progresso (1971), de Quirino Simões que,
insatisfeito com a brutalidade das imagens de cadáveres, maximiza-a ainda
mais, sonorizando-as com gritos, vozes e choro 50. E entre tantos meios de pro-
pagação dos mortos que resta inventariar, foi-me gentilmente aiançado por
um membro da audiência, ao apresentar esta comunicação 51, que carrinhas
de propaganda móvel penetravam aldeias remotas do país (no caso concreto,
perto da Covilhã), divulgando as fotograias entre as populações locais 52.
O certo é que a ecologia de imagens no início da guerra colonial – que, oicial-
mente, não era nem guerra, nem colonial – seguia a técnica de manipulação
de alternar o excesso da violência inominável e o nada dos clichés da propa-
ganda em perfeita articulação, contrapondo crianças degoladas ou mulheres
violadas, a imagens de tropas com bébés ao colo e mulheres brancas em êxtase,
recebendo os soldados da metrópole, limitada aos embarques e desembarques,
e à acção de tropas entre nativos e a visitas oiciais. Entre mil partidas e chega-
das, nada. Como versejou Fernando Assis Pacheco, então em Angola, “Julgas
que tirei, se tiram fotograias? / Aquilo a gente vai, volta e sossegadinhos” 53.
Tendo esboçado alguns dos principais meios de circulação das imagens, é
mais claro o propósito da campanha de recolha visual das terras devassadas,
em total desconsideração por ideias de ética da exposição pública. Manuel
Graça – que, em 1962, exibiu em Luanda as suas reportagens e fotograias da
chacina, quebrando assim um novo recorde de público a nível de exposições
49
Jorge António e Maria do Carmo em Angola, e, em reveladora transposição camoniana para a era moderna,
Piçarra, Angola – O nascimento de uma adoptando o lema: “numa das mãos a metralhadora, na outra a máquina foto-
nação (Volume I: O cinema do império)
(Lisboa: Guerra e Paz, 2013), p. 29. gráica” –, explicita os intuitos desta mostragem massiva:
50
Cf. Idem.
51
Uma versão preliminar deste artigo
Atraiçoar-nos-íamos se, ao contrário, preferíssemos guardar estas
foi inicialmente apresentada no colóquio
“O Império da Visão: Fotograia no fotos num artístico alvo, porque dando-as ao público, prestamos mais
contexto colonial português (1860-1960)”, um serviço à Pátria – essa mesma Pátria que reconheceu a necessidade
organizado por Filipa Lowndes Vicente no
Instituto de Ciências Sociais em Lisboa, da nossa presença nas linhas mais avançadas da guerra de Angola. (...)
entre 26 e 28 de Setembro de 2013. [o leitor] nelas encontra, sem dúvida, a razão bastante que o obrigou, a
52
Até ao momento não foi possível
comprovar esta informação não abandonar Angola nesses momentos de tragédia 54.
documentalmente.
53
Fernando Assis Pacheco, Catalabanza,
Quilolo e Volta (Coimbra: Centelha, 1976),
Contudo, nem todos alinham na política oicial de aproveitamento público
p. 48. do sofrimento alheio. O próprio Horácio Caio, compreensivelmente transtor-
54
Manuel Graça, Angola 60-65: a surpresa, nado pelas cenas vividas, refere um funcionário do CITA que, chocado com
a guerra, a recuperação (Luanda: Edições
SPAL, 1965), s.p. as imagens explícitas transmitidas pela RTP, o repreende logo: “Falei com

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4. Resistência / Memória

Lisboa. O país está alarmado com as reportagens da Televisão. Isto não pode
continuar assim. Não podem ilmar mais sem a minha autorização.” Caio, a
quente, replicou apenas: “Para o raio que o parta!” 55. Se é verdade que, ape-
sar de amplamente divulgadas pela comunicação social, nem todas as ima-
gens foram transmitidas na televisão, Caio disponibilizou stills escabrosos no
seu livro – close ups dos genitais de um soldado suspensos de um ramo ou
uma mulher mutilada de pernas abertas para a câmara, etc. Se o país estava
alarmado, mais alarmado icou. Há, contudo, pelo menos notícia dum jorna-
lista, Pereira da Costa, que airma ter recusado publicar as suas reportagens
até 1969, em reacção ao alarmismo do momento em que “numerosos livros,
sem qualquer valor informativo e de nula capacidade formativa, atingiam tira-
gens de dezenas de milhares de exemplares (muitas vezes graças à inserção de
fotograias chocantes)”. Considerava, acima de tudo, que, contrariamente ao
que era a prática oicial diária, “a morte de milhares de portugueses brancos
e negros merecia um respeito que não se coadunava com a exploração do seu
sacrifício” 56.

No teatro da guerra

“Em Quipedro o capitão Francisco man-


dou a Eduardo formar a companhia para
ministrar uma palestra sobre as grandes
razões da presença das tropas portuguesas
em Angola. Mostrou um livro com dezenas
de fotografias de brancos barbaramente
assassinados pelos terroristas da UPA/FNLA
naquela região, no ano de 1961. Cabeças
sobre estacas, mulheres brancas com paus
espetados no sexo, crianças retalhadas...”

FERNANDO FRADINHO LOPES, O alferes


Eduardo, 2000, p. 75.

“Vinham para participar na guerra. Mas


que guerra iriam encontrar? (…) A televisão
mostrara, em reportagem de péssima qua-
lidade, algumas barbarices, que os traziam
revoltados e enojados (…) Era todo um hor-
ror de imagens de ódio e de violência bes-
tiária, que repugnavam, que não poderiam
ser toleradas (…)”.
55
Caio, Os dias do desespero, p. 31
JOAQUIM MANUEL MENSURADO, Os páras
56
Pereira da Costa, Um mês de terrorismo:
Angola. Março-Abril de 1961 (Lisboa: Polis,
na guerra, 1961-63, 1968-72, 2002, p. 30. 1969), s.p.

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Angola 1961, o horror das imagens

“(...) o Governo fez um apelo ao senti-


mentalismo português e à necessidade de
vingar as 3 mil vítimas que a FNLA tinha feito
no Norte de Angola; foram até distribuídas
várias fotografias. Eu tinha até uma colecção
que me tinham dado.”

GENERAL COSTA GOMES, Angola: depoi-


mentos para a história recente, 1999, p. 285.

Contudo, era rara a oposição à torrente oicial de terror que aproveitando


a força das fotograias de atrocidade para cegar e galvanizar, dividir e reinar,
as inscreveu inclusivamente na própria frente de guerra. Por um lado, esco-
lhiam-se as imagens mais chocantes das vítimas negras, decapitadas, castradas
e decepadas, para serem mostradas aos “iéis bailundos”, o grupo étnico mais
atacado pelos bacongos da UPA, incitando o ódio tribalista dos ovimbundos
na resistência, para combaterem do lado dos portugueses 57. Além disso, como
parte de uma política de aterrorização, estas fotograias, segundo revelou a
Présence Africaine, foram também usadas para intimidar e ameaçar as popula-
ções locais ao longo do Norte de Angola nos tempos que se seguiram, a im de
colaborarem com as autoridades:
Os soldados portugueses fotografaram tudo e publicaram as ima-
gens assim obtidas em todas as outras aldeias para mostrar aos habi-
tantes destas aldeias o que lhes aguardava se se recusassem a mostrar
a mata onde se escondiam os combatentes angolanos, ou se simples-
mente declarassem ser pela independência de Angola 58.

Por outro lado, quando chegavam os primeiros contingentes de jovens da


metrópole a Luanda, a maior parte sem qualquer noção, nem preparação, para
aquilo que iam encontrar, eram imediatamente confrontados com uma selec-
ção das fotograias mais grotescas. Só que, desta vez, mostrando somente as
vítimas brancas. As imagens eram apresentadas como o próprio fundamento
da guerra, como na epígrafe acima, as “grandes razões da presença das tro-
pas portuguesas”, vendendo a guerra como vingança. O alferes miliciano José
Figueira, chegado a Luanda a 14 de Maio de 1961, foi um dos jovens que air-
mam ter conhecido a guerra pela primeira vez pelas fotograias mostradas
pelo director d’O Comércio:
Todas as imagens mostravam brancos mortos pelos terroristas.
Os cadáveres estavam em muito mau estado. Sabíamos que eles tinham
sido cortados, serrados como madeira, estropiados. Sabíamos que as
57
René Pélissier, La colonie du Minotaure:
casas onde moravam ainda tinham o seu sangue, que tínhamos de os
nationalismes et révoltes en Angola (1926-
1961) (Orgeval: Pélissier, 1978). vingar. Isso serviu de incentivo para os homens, porque eu disse-lhes:
58
Présence Africaine, ed. 45 (1963), p. 114. ‘Estão a ver o que aconteceu? Não podemos tolerar isto, pois não?’ Foi aí
59
“Quando o País mergulhou na Guerra,”
Correio da Manhã (15 de Março de 2011). que a guerra começou para nós 59.

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4. Resistência / Memória

Além de serem manipuladas para atiçar os dois lados da resistência, estas


fotograias cumprem, no terreno, uma dupla função: a de marcar iniciatica-
mente o primeiro encontro com a carniicina; e a de instigar violências des- 60
Apesar de haver testemunhos pessoais
medidas em resposta. Se a circulação das imagens violava todas as convenções, das decapitações nos meses violentos
de 1961, o primeiro documento escrito
apelava igualmente a uma resposta inconvencional, suspendendo códigos só surgiu há seis anos: um relatório do
morais e legais na eliminação do mal, exigindo determinação e urgência, inci- Exército português que só sobreviveu por
um erro burocrático que o trouxe a Lisboa,
tando a crueldade. em vez de, como os outros exemplares,
Para mais, de acordo com relatos de então, em alguns casos as imagens ser queimado por ordem do comandante
serviriam também de prova e exemplo a imitar, dado que os soldados eram militar de Angola. O relatório – similar ao
que Mário Moutinho de Pádua transcrevera
encorajados a repetir o que haviam visto, replicando métodos similares de décadas antes – descreve uma destas
esquartejamento e decapitação 60. Otelo Saraiva de Carvalho regista então: cerimónias a 27 de Abril de 1961, na
Sanzala Mihinjo. Divulgado pela primeira
vez no Brasil por Marcelo Bittencourt em
(…) fui obrigado, uma tarde, a formar todo o pelotão sem faltas. 2008, foi reproduzido integralmente por
António Araújo em “Sanzala Mihinjo,
O assunto era sério e, para mim, odioso. O capitão havia-nos lido, em
abril de 1961”, Jerónimo (org.), O império
tom grave, uma «norma operacional» dimanada do Quartel-General, colonial em questão, pp. 37-53.
obrigando a que, pagando terror com terror, as nossas tropas cortassem
61
Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em
Abril (Lisboa: Bertrand, 1977), p. 34.
as cabeças dos guerrilheiros abatidos durante os recontros que tiveram 62
Depoimento no documentário de
lugar e as espetassem em paus à beira das picadas. Para dar o exemplo 61. Joaquim Furtado, A Guerra, 3º episódio,
produção RTP (2010).
63
Entre inúmeros testemunhos, Joaquim
Os atributos da fotograia para militar, fanatizar ou antagonizar eram Paula de Matos escreve: “Guardo ainda
na memória as imagens dessas fotograias
levados ao limite, focando o sofrimento da vítima e não informação sobre que de forma conidencial me foram
o inimigo, agindo menos como um reconhecimento documental de factos e mostradas enquanto soldado-cadete do
mais como dispositivos calibrados para incendiar hostes, plantar pânico, exi- Curso de Oiciais Milicianos e, portanto,
na qualidade de futuro combatente cujo
gir sangue e repudiar o diálogo – ica então célebre a injunção de “matar pri- espírito guerreiro tinha que ser estimulado
meiro, perguntar depois”. Segundo o coronel Carlos Fabião, que esteve entre pelo despoletar do ódio contra os autores
de tão horríveis atrocidades.” (8 de Agosto
o desembarque das tropas em Luanda: de 2006), http://memoriasfuturass.blogspot.
co.uk/2006_08_06_archive.html [Acedido a
10 de Setembro, 2013]
Chegava um batalhão, eram cercados e mostravam-lhes fotografias. 64
Citado em José Freire Antunes, A guerra
Havia um espírito quase assassino de revanchismo, de desejo de vingança de África (1961-1974) (Lisboa: Círculo
muitíssimo grande, e a tropa num instantinho ficou bem preparada 62. de Leitores, 1995), p. 126. “As primeiras
tropas a saírem de Luanda para o Norte
já só encontram restos das atrocidades
A circulação de fotograias era tal que todos os militares estavam familia- de semanas antes. Em Úcua, espetadas
em estacas, há cabeças africanas de onde
rizados 63: o sangue seco pende sob a forma de
estalactites. Tinham sido ali deixadas pela
OPVDCA [Organização Provincial de
o major Silva Sebastião (…) convidou-me para almoçar. A certa altura,
Voluntários da Defesa Civil de Angola]
eu estava ao lado dele, tínhamos as fotografias de cadáveres cortados todo o tempo, para servirem de exemplo.
com catanas. (…) E disse um dos médicos, que estava ao meu lado: «É (...) Para algumas autoridades mais
legalistas, os colonos que perpetraram
por causa disto que eu e os meus colegas nos recusamos a ir lá acima ao massacres durante os dias da cólera deviam
Norte assistir à caça aos pretos» 64. ser sujeitos à Justiça. No entanto, a corrente
dominante (que conta com a colaboração
de Adriano Moreira) tratará de fazer retirar
As imagens intoleráveis de vítimas destinavam-se a disparar uma emoção esses elementos da região (ou mesmo
de Angola, nos casos mais graves) e de
apenas, o terror, e esta resposta física só podia ser aliviada pela acção. Difundi- permitir que o tempo faça esquecer o que
das para desenvolver o ódio visceral pelo inimigo e endoutrinar os contingen- se passou.” João de Melo (org.), Os Anos da
tes num clima de guerra total, é clara a ligação entre a campanha psicológica guerra, 1961-1975: os portugueses em África:
crónica, icção e história (Lisboa: Círculo de
destas fotos e a mentalidade com que as tropas portuguesas são atiradas para Leitores, 1988), p. 113.

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Angola 1961, o horror das imagens

a guerra, aliás patente no discurso de despedida em Lisboa do Ministro do


Exército, Mário Silva: “Vamos para combater, não contra seres humanos, mas
contra feras e selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos
como animais selvagens” 65.
Nenhum suporte terá contribuído tanto para uma desumanização total do
outro lado como estas imagens, adquirindo um valor quase totémico, como
para esse sargento, descrito por Bernardo Teixeira, que exigira uma cópia da
foto dos bébés para levar na carteira sempre que ia matar terroristas 66. A fonte
visual não trabalhou para identiicar o inimigo, mas antes, no espectáculo
abjecto da vítima, para um desespero total do medo, exigindo respostas radi-
calizadas de vingança, justiicando todo o tipo de acção contra “animais” que,
uma vez excluídos da raça humana, não deviam ser presos, mas antes elimi-
nados 67. Como diria Vasco Garin, “já não eram exactamente seres humanos.”
65
João Paulo Guerra, Memória das guerras
coloniais (Porto: Afrontamento, 1994), p.
Tais imagens impediam, como teoriza Susie Linield, “capacidade analítica,
183. compreensão histórica e maturidade política precisamente no momento em
66
Teixeira, he Fabric of Terror, p. 109. que são tão drasticamente necessárias. (…) ao diminuírem a capacidade do
67
Mário Moutinho de Pádua, que
redigiu a maior denúncia dos excessos da observador para formar juízos ponderados, são o veículo perfeito para alimen-
retaliação portuguesa (nunca editada em tar soluções simplistas e vinganças irrelectidas em vez de inteligência polí-
Portugal), garante que uma circular no
Comando-General de Angola apelava então tica” 68. Situações que não tardam em veriicar-se. Um soldado, Etelvino da
à eliminação de todas as formas de vida Silva Baptista, regista no diário, “O maior prazer de certos brancos é matar
nas regiões acima do Negage. Mas como
declara: “Quanto ao comportamento do
pretos. Quando chegavam a Luanda camionetas cheias de presos pretos, os
Exército Português em Angola, creio poder brancos civis abatiam-nos a tiro como se fossem cães.” Nogueira e Carvalho,
precisar que a grande maioria dos militares depois inspector da PIDE, também nota: “Os excessos começaram a surgir
que conheci não colaborou nas atrocidades.
Os soldados mais corajosos fugiam delas e a ser muitos, preocupando-nos quase tanto como os actos terroristas (...)
ou ignoravam-nas. Eram os medrosos, as Ouviam-se frases como esta: Hoje em dia, quem ainda não matou um ter-
hienas da guerra, os pides, os frustrados
e os colonos sem escrúpulos quem as rorista, não é homem” 69. Um jornalista exilado, Miguel Urbano Rodrigues,
praticava com deleite.” Escreveria também: escreve: “Em Angola tudo se passa de maneira diferente. O militar recém-che-
“O ministro das Colónias que por aqui
veio há pouco, obrigado pelas reclamações
gado não tem apenas que enfrentar uma formidável máquina de propaganda.
exaltadas dos congoleses brancos, airmou, O incitamento ao crime é permanente, mórbido. Com a agravante de que o
algures, num discurso, que se tramava um genocídio é exaltado como epopeia. Assassinar friamente um africano deixa
genocídio. Mas referia-se ao genocídio
dos brancos pelos pretos. Esqueceu-se de de ser um ato punido pelas leis e códigos para se transformar em demonstra-
falar nas represálias... A sua impudência ção do mais puro patriotismo” 70.
só é igualada pela sua desonestidade.”
Guerra em Angola: diário de um médico de As fotograias de guerra, como disse John Berger, conseguem despoliti-
campanha (Luanda: União dos Escritores zar o tema da guerra, ao ponto de reduzirem as respostas a uma reacção mera-
Angolanos, 1985), pp. xiv e 36.
68
Susie Linield, he Cruel Radiance:
mente moral 71. A sua capacidade única para eclipsar toda a dimensão política,
Photography and Political Violence como o racismo e o trabalho forçado na origem do ataque (e que só sofre-
(Chicago: Chicago University Press, 2010), riam alterações legais por causa dele), foi bem aproveitada pelo regime, lem-
p. 131.
69
Citados em Mateus e Mateus, Angola bra Pezarat Correia:
1961, p. 149.
70
Miguel Urbano Rodrigues, “Introdução”,
Pádua, Guerra em Angola, pp. 3-4. A forma bárbara e indiscriminada como a UPA desencadeara a sua
71
John Berger, “Photographs of Agony”, vaga de terrorismo sistemático e o realismo cruel das imagens estam-
About Looking (New York: Pantheon,
padas na comunicação social foram habilmente instrumentalizados pelo
1986), pp. 37-40.
72
Pedro Pezarat Correia, Descolonização sistema, que conseguiu mobilizar as atenções para a conjuntura – defesa
de Angola: A jóia da coroa do império das vidas, dos bens e da ordem – e desviá-las da questão estrutural – a
português (Lisboa: Ler & Escrever, 1991),
p. 43. natureza do regime e a questão colonial 72.

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4. Resistência / Memória

A insistência do regime em circular fotograias da brutalidade repugnante


dos ataques, como comenta Nuno Mira Vaz, “não só desvalorizava os moti-
vos que lhe estavam na origem, como ao mesmo tempo subtraía da discus-
são pública a sua própria imprevidência” 73. A campanha do choque provou
a tremenda eicácia política do sofrimento físico – os “poderes do horror”,
segundo Julia Kristeva 74 –, ao instaurar um escândalo psíquico. Há inúmeros
casos de traumas inlingidos pelas imagens que penetravam todos os secto-
res da sociedade. Amândio César relata, por exemplo, que alguém em Luanda
“entrou alarmado por causa de sete pretos suspeitos que se encontravam nas
imediações do C.I.T.A. A mestiça icou absolutamente apavorada (…) É que
ela vira, como eu próprio tinha visto, as fotograias das mestiças, como ela,
rasgadas de alto a baixo pela catanas assassinas” 75. Manuel Acácio resume o
efeito transversal e irreversível: “Por mais que tentássemos, não conseguíamos
conciliar as imagens coloridas de uma Luanda de bilhete-postal (…) com as
fotos a preto e branco que encheram as páginas dos jornais de corpos retalha-
dos, crianças degoladas e mulheres com estacas cravadas na vagina” 76. Mas o
testemunho mais penetrante da eicácia transformadora das imagens pertence
à jornalista Diana Andringa, que começou por recordar assim a sua infância
em Angola: 73
Vaz, Opiniões públicas durante as guerras
de África, pp. 88-89.
A primeira memória é de fotografias, fotografias terríveis, de corpos
74
Cf. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur
(Paris: Editions du Seuil, 1980).
esventrados, decepados, mutilados. […] nesse primeiro momento, eram 75
César, Angola 61, p. 42.
apenas a noção de um mundo a desabar, a memória de uma terra lon- 76
Manuel Acácio, A balada do ultramar
(Cruz Quebrada: Oicina do Livro, 2009),
gínqua que de lugar de sonho se transformava em lugar de pesadelo, p. 121.
o medo imenso que aqueles que se conhecia pudessem estar entre as 77
Diana Andringa, “Crescer em tempo
de guerra”, Aniceto Afonso e Carlos de
vítimas ou os assassinos. À noite, entre os ruídos familiares, infiltravam-
Matos Gomes (orgs.), Guerra colonial
-se os dessa outra noite, africana, já não cruzada pelo som amigo dos (Lisboa: Notícias Editorial, 2000), p. 334.
batuques, mas por gritos e gemidos, e a dúvida «se eu estivesse lá?» Era Como escreveu Rogéria Gillemans: “Foram
publicados vários livros com fotograias
uma pergunta sem resposta simples, as fotografias tinham feito o seu tra- das vítimas massacradas nas fazendas de
balho, a violência das imagens sobrepunha-se ao raciocínio, diminuíam a Angola. Cristina nunca teve acesso a vê-
los, porque o pai os fechava à chave numa
capacidade de pensar. Pessoas insuspeitas de simpatia pelo regime, par- gaveta. De facto, não eram livros para
tidárias da independência das colónias, leitoras de Fanon ou de Césaire, crianças, as fotograias eram demasiado
horrorosas e chocantes.” Longe é a lua:
admitiam participar em milícias nas colónias, invocando a legítima
memórias de Luanda – Angola (Mafra: Rolo
defesa 77. & Filhos, 2008), p. 87.

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Angola 1961, o horror das imagens

Do outro lado

“Trazem luto pelos familiares mortos em


Angola, com o levantamento do Norte? Rejei-
tou a ideia. Não têm morrido tantos como a
propaganda oficial proclama. Convém a Sala-
zar criar o clima de histeria colectiva, cente-
nas e centenas de brancos trucidados pelos
terroristas, Angola é uma fogueira imensa,
temos de defender a Pátria e os portugueses.
Para Angola em Força! A propaganda estava
a resultar, tinha de reconhecer.”

PEPETELA, A Geração da Utopia, 2001, p. 12.

“Vi fotografias destas atrocidades e nunca


mais as poderei esquecer. No entanto, os
comunistas e outros profissionais da mentira,
pretenderam que isso fora apenas encena-
ção organizada pelos Portugueses para justi-
ficar as suas medidas de repressão.”

MUGUR VALAHU, Angola: chave de África,


1968, p. 80.

“Oh, fotografias. É normal que eles possam


fazer isto.”

JOÃO CÉSAR CORREIA, ex-combatente da UPA,


Angola: Depoimentos..., 1999, p. 162.

Para que o efeito das imagens sobre o público seja compreendido, é crucial
que nos lembremos sempre que, apesar da ixação com este evento e da crueza
da carniicina representada, o objecto material em causa é, na verdade, uma
fotograia. Esta percepção apenas seria então ousada publicamente por auto-
res estrangeiros, que não as viam como documentações neutras e factos irre-
futáveis, mas representações altamente mediadas e politizadas, inscritas numa
máquina de propaganda. René Pélissier foi um desses autores que, perplexo ao
descobrir a livre circulação desta “iconograia macabra de riqueza alucinante”,
a estudou, e regista que algumas fotos parecem “um pouco “arranjadas” para
suscitar mais o horror e a reprovação da população branca (nomeadamente
pela introdução de paus nas vaginas de cadáveres de certas raparigas)” 78.
78
René Pélissier, op. cit., 535n22. Outras imagens mostram ainda, no topo dos cadáveres, crânios limpos que

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4. Resistência / Memória

não lhes pertencem; ou corpos que foram sendo remexidos, como o do soba
de Cassoneca. O problema, contudo, não jaz tanto na veracidade das fotogra-
ias (sabendo das atrocidades hediondas que lá tiveram lugar), mas antes no
manobramento político a partir da sua autoridade incontestada, apesar das
contradições e conlictos à sua volta.
A discrepância das legendas é sintomática. Tomando apenas o exemplo
mais icónico, e aquele que encabeçou toda esta campanha visual: a fotogra-
ia dos bebés mortos em Madimba que Vasco Garin exibiu na ONU, foi ao
mesmo tempo reproduzida com a legenda de Quitexe por Horácio Caio, Vale
do Loge por Luiz Iglezias, Nova Caipemba por Pedro Pires, e de Quibaxe por
Amândio César, lugares separados por centenas de quilómetros. Na televisão,
a RTP airmou ser Camabatela. Bernardo Teixeira, que descreveu em detalhe a
captura da imagem por um fotógrafo do exército, segundo apurou em Angola,
garantiu ser Mavoio. Philippa Schuyler publicou-a também, mas airmando
representar um massacre que teve lugar no Congo belga, e não em Angola 79.
A precariedade da informação contextual leva mesmo o delegado indiano na
ONU, J. N. Sahni, a interpelar Vasco Garin a 2 de Novembro. Referindo-se a
uma colecção de fontes oiciais, exigia que o representante português preci-
sasse onde e quando foram feitas, e se possível identiicasse as vítimas, para
perceber “o propósito segundo o qual as fotograias foram tiradas e exibidas”.
Ressalvando não querer sugerir que estas fossem forjadas, considerava, no
entanto, que “Portugal deve oferecer provas de que são autênticas, e não, por
exemplo, fotograias da biblioteca de Eichmann” 80. Instava a que fosse dispo-
nibilizada toda a informação sobre elas a im de se clariicar as circunstâncias
da sua produção e divulgação. Uma tarefa nunca feita, deixando o quem, quê,
como, porquê e o quando da maioria destas representações em aberto. 79
Philippa Schuyler, Who killed the Congo?
René Pélissier nota também como as imagens rapidamente foram usadas (New York: Devin-Adair Co., 1962). Esta
foi apenas uma de quatro proeminentes
para justiicar todo o terror retaliatório, carta branca para inúmeras atroci- fotograias do 15 de Março que a autora
dades, no seio desta “guerra de extermínio onde a política não tinha qual- americana reproduz neste livro, garantindo
quer papel”. Lembrando as prisões indiscriminadas e as execuções sumárias tratar-se de um massacre perpetrado
pela etnia Baluba em Katanga, no Congo
de negros, em áreas inacessíveis aos repórteres estrangeiros, restringindo a belga, entre 1960 e 61. Cabe salientar
visão dos eventos exclusivamente ao aparato militar e governamental, Pélis- que esta celebrada pianista trabalhava
como propagandista do regime colonial
sier escreve: português, tendo-lhe sido então pagas
viagens por Angola e Moçambique com o
intuito de dar delas uma boa imagem em
Os canalhas dos jornalistas bem podiam espernear às portas de
palestras, artigos para jornais e entrevistas
Angola que não se admitia ninguém de fora nos matadouros de Ouro na televisão americana, além de lhe serem
Negro. E a quem se impacientasse com esta longa quarentena, o pai dedicados vários concertos em Portugal e
de Franco Nogueira lhe ter prometido um
do Menino oferecia-lhes fotografias de bébés brancos trucidados no seu lugar como solista no Festival de Música
berço, e de europeias mortas com um pau na vagina. É o comunismo da Gulbenkian. Cf. Kathryn Talalay,
Composition in Black and White: he Life
internacional, afirmava o Doutor, e todos repetiam em coro 81. of Philippa Schuyler (New York: Oxford
University Press, 1995), p. 227.
80
Man Singh Deora, Role of India in
As fotograias eram escudo e espada: por elas se atacava o inimigo, e com Angola’s Freedom Struggle (New Delhi:
elas se delectia os seus ataques; inspiravam um horror cego e cegavam hor- Discovery Publishing House, 1995), p. 313.
rores perpetrados em seu nome. Notavelmente, Ernst Jünger, um pioneiro do
81
René Pélissier, Explorar – Voyages en
Angola et autres lieux incertains (Orgeval:
uso da fotograia chocante no contexto da propaganda bélica, visita por acaso Pelissier, 1979), p. 126.

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Angola 1961, o horror das imagens

Angola e depara-se no hotel com o livro de Caio. No diário, a 23 de Outubro


de 1966, comentou que tais imagens nunca deviam ser expostas ao público,
pois violam estas pessoas, ao conservá-las para sempre como objectos horri-
velmente indigniicados, e agravam o crime original, dado que congelam os
instantes do ódio e impedem assim o trabalho de luto. A exibição directa do
obsceno ao público, havia aliás teorizado, apenas estimula a necessidade mór-
bida de consumir mais imagens semelhantes, e tende a gerar atrocidades pio-
res do que aquelas que as motivaram – um julgamento presciente a que nunca
foi dado ênfase no caso de Angola.

As coisas muito repulsivas que temos visto ou de que temos ouvido


falar, é melhor calá-las; e não por consideração pelo criminoso, mas por
consideração pela espécie humana (…) Todo o historiador conhece as
circunstâncias calamitosas dos grandes conflitos, circunstâncias essas que
seria melhor não terem ido parar a documentos que “ninguém jamais
deseja ver”. Na nossa era, essa tendência para o repulsivo parece crescer,
graças a certos excessos na documentação, sobretudo da fotografia 82.

Jünger lembra, ainda, que a fotograia jamais vale por si própria, nunca é
inequívoca como documento, e tem de ser interpretada. Mas foi precisamente
o escândalo da interpretação, ao escapar às suas leituras canónicas, que moti-
vou ataques virulentos do regime contra um documentário da NBC, Angola:
Journey to War (1961). Aqui, as imagens da chacina são juxtapostas à crise de
refugiados e eventos então censurados do público português, como o massa-
cre da Baixa do Cassanje, a violência do trabalho forçado, o uso de napalm
e execuções sumárias, mondando e relativizando a força extraordinária das
imagens quando restritas a um lado. É o próprio Horácio Caio, o mais cele-
brado dos cronistas do terror, que anos depois, confessou: “Houve realmente
uma retaliação que foi muito violenta também, de que não há notícia, não há
imagens, não há memória, porque era do outro lado. Não éramos nós que
íamos ilmar isso, nem isso se podia ilmar” 83. Um autor americano, John Fre-
derick Walker, vai ainda mais adiante, e considera: “As fotograias que os por-
tugueses tiraram da carniicina eram de dar a volta ao estômago. (…) [Mas]
Tendo em conta a matança que se seguiu, aldeias inteiras e os seus habitantes
cobertos de chamas e por aí fora, é seguro concluir que as fotograias da vin-
gança teriam conseguido facilmente igualar o horror das do levantamento” 84.
O impulso da produção e da reprodução desenfreada destas fotograias
82
Ernst Jünger, Siebzig verweht I (Stuttgart:
Klett-Cotta, 1980), p. 479. Em ensaio de atrocidade, era o mesmo que se intensiicava a impedir que outras com-
prévio, Sobre a Dor (1934), declarara já: petissem com elas, a garantir que só um lado da história icaria para contar.
“é de grande malícia o procedimento
que consiste em usar fotos de pessoas Cada documento visual é por isso também testemunha daquilo que omite.
assassinadas como cartazes na luta política.” Do outro lado da barricada, atendendo à ausência de relatos que não esti-
83
Depoimento no documentário de
Joaquim Furtado, A Guerra, 3º episódio,
vessem subordinados ao aparato colonial, a UPA conseguiu apenas que uma
produção RTP (2010). agência encenasse fotos no mato, simulando cenas de combate, para se apre-
84
John Frederick Walker, A Certain Curve sentarem internacionalmente. Seria um esforço inútil. A força das fotogra-
of Horn (New York: Atlantic Monthly Press,
2004), p. 132. ias da sublevação era tal que, a 17 de Março de 1961, quando chegam a Nova

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4. Resistência / Memória

Iorque, onde estava Holden Roberto, até este, estupefacto, hesitou em recla-
mar a autoria da UPA (“Vi imagens que não me agradaram”) 85. Nos meses
seguintes, contudo, estas fotograias passariam para o centro das suas críti-
cas, uma vez que os protestos das suas guerrilhas no mato, alegando torturas
e extermínios, e chegando por via clandestina, jamais podiam competir con-
tra uma campanha bem orquestrada, com descrições e testemunhas oculares,
cujas imagens se sobrepunham sempre a todas as denúncias verbais. E, para
mais, porque a própria ausência de fotograias da retaliação, um elemento sine
qua non para a ideia moderna do que constitui uma atrocidade, como airma
85
Depoimento no documentário de
Joaquim Furtado, A Guerra, 3º episódio,
Susan Sontag, signiicava, em última análise, que nada havia sucedido do lado produção RTP (2010).
da reacção 86. No dia 18 de Novembro, a partir dos EUA, Holden Roberto con- 86
Cf. Susan Sontag, Olhando o sofrimento
dos outros (Lisboa: Quetzal, 2003).
testava: 87
Holden Roberto, Entrevista de rádio
por Dick Elman, WBAI-FM, Nova Iorque
(18 Novembro de 1961, 16h30). Esta foi a
Concordo que houve atrocidades de ambos os lados. Mas eu gosta-
tradução portuguesa entregue a Salazar, in
ria de esclarecer que algumas das atrocidades que os portugueses nos AN/TT, Arquivo de Salazar, AOS/CO/UL.
imputam foram cometidas por eles próprios. Eles mataram gente em
88
Pires et al., Braseiro da Morte, p. 85.
89
“Datam desse período as fotograias, que
Angola que depois fotografaram a fim de fazer crer ao mundo que tínha- circularam em todo o espaço português, de
mos sido nós. Mas isso não é verdade. Não temos possibilidades como colonos ou de soldados exibindo as cabeças
decapitadas dos africanos que, naturalmente
os portugueses de mostrar fotografias de todas as atrocidades que eles mudaram de estatuto: eram indígenas, mas
cometeram 87. passaram para a categoria de terroristas e de
“turras”.” Jorge Ribeiro, Marcas da Guerra
Colonial (Porto: Campo das Letras, 1999),
Multiplicar-se-iam queixas de que certas fotograias, embora usadas como p. 167. Além destas fotograias, surgiram
prova legal contra os crimes da UPA, foram encenadas e falsiicadas, mos- outras mais complexas no início da guerra,
em que os soldados posavam em arranjos
trando chacinas perpetradas pelos portugueses. Há, inclusivamente, registos orquestrados com cadáveres esquartejados
de equipas oiciais de recolha de imagens que, ao chegar aos lugares, atri- e cabeças decepadas de negros. Sobre
elas, escreveu o psiquiatra Afonso de
buíam alguns dos massacres a milícias civis: “A brigada da Televisão chegou a Albuquerque: “[S]ó podem ser entendidas
Carmona. Antipática, a insultar os que sofrem e choram a morte de entes que- como uma adaptação inconsciente ao
medo, ao macabro, ao sinistro, ao horror.
ridos, acusando a população europeia de provocar a chacina” 88. Mas servia de Eles sabiam que podiam ser as próximas
pouco. O terror da imagem só podia ser combatido através da imagem. Assim vítimas. Neste caso, posar para a máquina
principia a guerra de fotograias na Sala das Curadorias da ONU, onde, rea- fotográica tinha o mesmo efeito do treino
militar, ou seja, permitia uma exposição
gindo à estratégia de Vasco Garin, que deixara disponíveis para consulta as gradual ao real. Era um modo de aprender
imagens exibidas no Conselho de Segurança, é exposta, a 1 de Novembro, ape- a conviver com o perigo, com a morte.”
Citado em Luís Quintais, “Trauma e
sar dos protestos portugueses, uma colecção de fotograias, ainda hoje difíceis Memória: Um Exercício Etnográico”,
de obter, gerando a condenação geral. Eram as fotograias troféu de cabeças de Etnográica, vol. IV (2000), p. 85.
90
“Certa ocasião, alguém trouxe a Otelo
negros, espetadas em paus erguidos por militares sorridentes, e apresentadas, uma série de fotograias de cabeças de
por proposta da Guiné (aprovada com 70 votos, contra a abstenção da África negros espetadas em paus, dispostas ao
do Sul, Espanha, França e Portugal) diante da Assembleia Geral, perante a longo de uma picada. Um colega seu do
curso de Artilharia tinha sido o autor
resposta imediata da delegação lusitana, que não só as declarou falsas, como da proeza. Essas imagens seriam mais
se apressou a oferecer mais uma colecção de fotos das chacinas da UPA. tarde exibidas na ONU, como prova
das atrocidades das tropas portuguesas.
As fotograias de cabeças em causa, garante Alfredo Margarido, tiveram bas- Eram práticas não só usuais, mas também
tante projecção em Portugal 89, circulando como a contrapaga sádica de atro- encorajadas pelas autoridades militares.
Chegava-se a humilhar ou a chamar
cidades sofridas, olho por olho, dente por dente. O impacto foi tremendo, ao cobarde a quem não as adoptasse.” Paulo
desmentir a imagem dominante da propaganda que mostrava a benevolência Moura, Otelo: O Revolucionário (Alfragide:
da acção paciicadora das tropas como agentes civilizadores que mantinham Dom Quixote, 2012), p. 88.
91
Cf. Felícia Cabrita, “O tabu de Cunhal”,
a ordem 90. Acolhidas logo no espólio do PCP, à guarda de Blanqui Teixeira 91, Tabu, n. 377 (22 de Novembro, 2013), p. 7.

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Angola 1961, o horror das imagens

foram impressas em jornais internacionais de esquerda, embora de pouca cir-


culação, como no belga La Gauche, no tunisino Afrique Action, ou no marro-
quino At-tahila. José Saramago descreveria duas destas fotograias:

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos


braços um negro que talvez não esteja morto. Outro soldado empunha
um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é
a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotogra-
fia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau e os soldados riem.
O negro era um guerrilheiro 92.

Todavia, nada ilustra o valor da fotograia no contexto da guerra colo-


nial, e a obsessão do poder em monopolizar e em patrulhar o arquivo destes
eventos, como um episódio insólito que teve lugar em 1961. Agostinho Neto
é preso na Cidade da Praia, em Cabo Verde, e levado para o Aljube em Lis-
boa por dois anos, sob acusação (nunca provada) de possuir uma destas fotos,
atraindo protestos da comunidade internacional 93. Um inspector da PIDE
redigiu a 25 de Setembro:

Parece que a mulher do Dr. Agostinho Neto que, recentemente


regressou da Metrópole, trouxe para esta cidade uma fotografia, onde
se vê um grupo de militares europeus com a cabeça de um prêto espe-
tada num pau. Diz-se que a fotografia em referência foi tirada em Angola
mas, certamente, tratar-se-á de uma falsificação destinada a propaganda
política. Que se saiba, o Dr. Agostinho Neto tem mostrado a aludida foto-
grafia a alguns indivíduos do grupo com quem se relacionou na cidade
da Praia, aproveitando a ocasião para fazer comentários desprestigiantes
á acção do Governo 94.

A singular prisão por alegada posse de uma fotograia, sintomaticamente


logo desqualiicada como falsa e propagandística, deve ser entendida como
parte do esforço excepcional de eliminar todos os traços da resposta à cha-
cina da UPA, ao mesmo tempo que imagens desta saturavam todas as esferas
da vida pública. O valor subversivo de uma imagem apenas – na total ausên-
92
José Saramago, “O fator Deus”, Folha de cia de registos visuais da revolta da Baixa do Cassange, ou da matança nos
S. Paulo (19 de Setembro, 2001). musseques de Luanda que pudessem oferecer contra-imagens – remete tam-
93
O historiador angolano Carlos
Pacheco airmou, no entanto, que a razão bém para a iniabilidade e a instabilidade violenta do arquivo. Ainda hoje se
determinante deste encarceramento terá podem encontrar no acervo do SNI largas dezenas de fotos de negros mortos,
sido a detecção de uma rede operacional
no Senegal que se preparava para libertar sem narrativa, contexto ou legenda, e tendo apenas por título Angola – atro-
Neto. Cf. Carlos Pacheco, Repensar Angola cidades cometidas pelos terroristas, ou Angola – atrocidades (pretos). Quem
(Lisboa: Edição Vega, 2000).
94
Maria Eugénia Neto, Irene Neto (coord.),
seriam? Quando, e em que condições foram mortos? Serão as vítimas hiper-
Agostinho Neto e a libertação de Angola, visíveis do terrorismo, ou as invisíveis do contra-terrorismo? Como airmou
1949-1974: arquivos da PIDE-DGS, vol. II o então director da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, referindo-se ao pro-
(Luanda: Fundação Dr. António Agostinho
Neto, 2011), p. 146. blema das inindáveis imagens, e ao seu grave desaio historiográico, “É claro

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4. Resistência / Memória

que já vimos fotograias de massacres em Angola e já ouvimos e lemos teste-


munhos pessoais de soldados, mas não sei em que contexto foram produzidas,
de onde saíram, quem as fez, como chegaram até aos livros e aos sites onde as
podemos ver” 95.
Ao mesmo tempo, não temos ideia de que colecções terão sido queima-
das ou perdidas, nem do que reservam ainda os arquivos privados, sobretudo 95
Excertos de entrevista com Silvestre
Lacerda, “Este documento sei de onde
após a revelação recente de Felícia Cabrita no Expresso 96, de um militar da vem, quem o fez e em que circunstâncias”,
5ª CCE que disponibilizou pela primeira vez fotos da Fazenda Tentativa, Público (17 de Dezembro de 2012).
96
Cf. Felícia Cabrita, Massacres em África
Caxito, em resposta à UPA, com vários mortos torturados e empilhados, ati- (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008).
rados para valas comuns abertas por outros prisioneiros que eram fuzilados 97
Há duas décadas, uma revista
de seguida, mas oicialmente morrendo baleados ao fugir. Um caso particular portuguesa declarava: “Estas histórias e
as dos massacres cometidos pelas tropas
de 800 vítimas, que ixa, através da força única e insubstituível do documento portuguesas estão registadas em fotograias
fotográico, o que corria perigo de se esvanecer ou obliterar como rumor e ilmes que estão na posse das cheias
militares e de ex-combatentes da guerra
infundado, dada a indisponibilidade das provas visuais, a falta de registos oi- colonial. Mas em Portugal, os poderes
ciais sobre punições, e a regra de secretismo e impunidade sobre os eventos 97. político e militar e a sociedade, de uma
maneira geral, têm evitado discutir esta
A fotograia revela assim a sua força vital contra negações e revisionismos da página negra da vida do país.” Notícias
história. Recorde-se o que Artur Maciel havia então escrito, predicado sobre o Magazine (17 de Março, 1996), p. 23.
desbalanço das imagens de um lado e do outro:
98
Artur Maciel, Angola heróica: 120 dias
com os nossos soldados (Lisboa: Bertrand,
1963) p. 219.
99
Como o sociólogo Bruno Sena Martins
O canibalismo das hordas terroristas acha-se largamente documen- comentou, em relação à construção
tado, não escasseando sequer as imagens fotográficas mais arrepian- narrativa do importantíssimo documentário
de Joaquim Furtado sobre a guerra colonial
tes. Alguma coisa, no entanto, está ainda por dizer. E é preciso que se – relevando a importância estrutural das
conheça, quando se assacam ao Exército violências, crimes de desumani- imagens: “(…) ao iniciar a narrativa pelo
dia em que foram cometidos os terríveis
dade, que o nosso Exército em tempo algum cometeu. Como esse, por massacres pela UPA nas fazendas do Norte
exemplo, «de ter atirado para as valas abertas à pressa, depois de fuzi- Angola, Joaquim Furtado entroniza esse
momento como uma espécie de violência
lamentos em massa, montões de corpos de negros, uns mortos, outros
fundadora. Essa violência desabrida e cruel
ainda agonizantes (…) 98. é tão mais chocante para o espectador
porque não se percebe de onde vem.
(…) não deixa de produzir um insanável
desequilíbrio narrativo. Só muito depois
A súbita erupção pública a partir de fontes privadas, meio século depois, ouviremos dos eventos da Baixa do
redeine a maneira como olhamos para os ícones da UPA e revela como estes Cassange (…) nos quais as populações
condicionaram a história a leituras singulares, polarizadas e afectivas, não só negras foram massacradas pelo exército
português numa fúria aniquiladora ímpar
impondo-se como uma espécie de grau zero da história, mas exercendo tam- (aqui faltariam também os registos visuais,
bém uma hegemonia que eclipsa outros crimes dos dois lados, cometidos existentes no 15 de Março, para repor
algum equilíbrio). (…) Só muito depois
na ausência de câmaras, deinindo o modo como este passado é mediado e (…) é que Joaquim Furtado aborda enim
escrito 99. Um autor, Humberto Nuno de Oliveira, confessa aliás, na sua histó- a violência estrutural que “segurava” uma
ordem social marcada pela subjugação e
ria do início desta guerra, haver “tropeçado nas cruéis (mas reais) imagens da humilhação das populações negras.” “A
obra de Horácio Caio que, subtraídos indevidamente à biblioteca do meu pai, Guerra” (Março 11, 2008) http://avatares-
me marcaram profundamente e seguramente condicionaram a minha opinião de-desejo.blogspot.co.uk/2008_03_01_
archive.html [Acedido a 9 de Setembro,
sobre o conlito e os seus agentes” 100. 2013]
Uma tese defendida por Luis Peres, em Pretória, adverte igualmente de 100
Humberto Nuno de Oliveira,
“O Cinquentenário do Quê? A Guerra
início que a investigação “trouxe à memória imagens fotográicas chocan- de África 1961-1974”, Lusíada-História,
tes de corpos mutilados espalhados em fazendas de Angola que observei em n. 8 (2011), p. 13.
101
Luis Peres, Henrique Galvão, 1895-1970:
segredo na biblioteca dos meus pais. Tudo isto pode ter estruturado subcons- Aspects of a Euro-African Crusade [Tese de
cientemente algumas das questões centrais que motivaram este estudo” 101. Mestrado] (UNISA, 2009), p. X.

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Angola 1961, o horror das imagens

Por muito que hoje as imagens sejam relegadas para os conins de sótãos ou
bibliotecas, isto mostra que permanecem centrais à urdidura do discurso his-
toriográico, condicionando subterraneamente as direcções, termos e alvos
das investigações, ao exercer uma espécie de prerrogativa fotográica. Air-
mar, como Luís Reis Torgal a propósito delas, que “As imagens não são his-
tória, mas apenas uma fonte para a história” 102, signiica não entender que
estas foram, a um tempo, constituintes e constitutivas do evento histórico.
Não é apenas a ideia geral de que as fotograias permitem um acesso mais ime-
diato ao passado que deve ser posta em causa, lembrando os processos media-
dores que envolvem o enquadramento da representação visual, mas também
aqui, a necessidade de problematizar um enviesamento ideológico e a falta de
sujeição a veriicação independente e ao escrutínio analítico. A menos que um
tratamento crítico desaie a transparência destas representações, estas fotogra-
ias do horror continuarão encerradas numa politização. A tarefa imperativa
é a de desaiar a ortodoxia interpretativa das imagens, contestando a ixidez
dos seus signiicados nas últimas décadas, devido a um imediatismo que mata
o contexto – desviando os olhos da negligência do governo no ataque, das
desumanidades estruturais do trabalho forçado e da questão racial na sua ori-
gem, da brutalidade dos massacres que o precederam e o sucederam –, escru-
tinando e equacionando os ângulos mortos que estas fotograias continuam
a potenciar sem a adequada resistência. Reproduzi-las de outro modo, não
tem que ver com a construção de uma história, mas com a manutenção de um
ponto de vista, confundindo o que visualmente representam com o que ideo-
logicamente veiculam – ignorando não só as contradições e as ambiguidades
internas das imagens, mas também, em muitos casos, o total desconhecimento
sobre a sua captura. Como destrinçar seriamente se os retaliadores foram tam-
bém, em grande medida, os autores dos documentos fotográicos? Urge come-
çar a discutir o que estas fotograias tornam visível, mas também aquilo que
102
Luís Reis Torgal, Estados novos, estado falham em tornar visível, escrutinando melhor os relexos condicionados e
novo: ensaios de história política e cultural, as focagens selectivas em relação à memória histórica. No contexto extrema-
vol. 1 (Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2009), p. 38. mente polarizado que deiniu estes meses em Angola, é preciso chamar a aten-
103
Shawn Michelle Smith, At the Edge ção para “o modo como as fotograias criam ângulos mortos ao instigarem os
of Sight: Photography and the Unseen
(Durham: Duke University Press, 2013)
observadores a focarem-se naquilo que está retratado em prejuízo daquilo que
p. 192. não está, ou não pode ser representado fotograicamente” 103.

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4. Resistência / Memória

Conclusão

“O português onde quer que se tenha enrai-


zado, como colonizador, levou a ternura
como princípio, porque ela está na própria
massa do seu sangue. O português jamais
implantou o terror. [...] E o português, até na
hora em que devia ser vingativo, como qual-
quer ser humano, é complacente.”

DJALMA BETTENCOURT em Iglezias, A verdade


sôbre Angola, 1961, s.p.

“– Filhos da puta!
– Hão-de pagá-las todos e com juros!”

REIS VENTURA, Sangue no capim, 1962, p. 54.

“Rola
Sangrenta
Uma bola
No chão
De Angola.”

JONAS NEGRALHA, A Bola, 1963.

Um ano apenas, e um país só, permitem ver como o papel da fotograia na


guerra foi tudo menos secundário. Nenhuma outra fonte material foi tão ei-
caz a galvanizar e antagonizar a população. Não admira que o sucesso desta
campanha aterradora na articulação da guerra, tenha sido levado à exaustão
pela propaganda justiicativa do regime, reciclando insistentemente as ima- 104
Guerra Colonial: Fotobiograia (Lisboa:
gens das atrocidades (a maioria, curiosamente, antecedendo a guerra) até ao D. Quixote, 1990), pp. 11-12. Já em 1973,
inal do conlicto. Como registam Renato Monteiro e Luís Farinha, “exclu- era notada pela crescente oposição à guerra
a contradição entre a visibilidade inicial,
ído o curto período entre os anos de 1961 e 1963, a reportagem de guerra não “As fotograias publicadas pelos jornais, os
foi cultivada na imprensa escrita ou na televisão portuguesas, uma e outra documentários exibidos nos cinemas e a
constrangidas pelas normas censórias do regime, que impunha uma estratégia exposição fotográica que posteriormente se
veio a realizar na Sociedade de Geograia de
ideológica fundamentalmente apostada na minimização do esforço e na ocul- Lisboa” e a ocultação posterior, “A pouco
tação, quase sistemática, da guerra perante a opinião pública” 104. Apesar dos e pouco, as reportagens de guerra foram
desaparecendo das páginas da imprensa,
mecanismos de invisibilização da guerra colonial aumentarem gradualmente, para subsistirem apenas os comunicados
ao ponto de até as inócuas imagens dos embarques e desembarques desapa- oiciais das Forças Armadas.” Resistência,
n. 64 (Lisboa: Editorial Resistência, 1973),
recerem dos jornais em 1969 105, o regime continuou sempre a reverter para p. 27.
o terror inaugural, o único momento desta guerra que foi glosado no modo 105
Margarida Calafate Ribeiro, “África
no Feminino: As Mulheres Portuguesas
épico, com heróis e vilões. À medida que o ímpeto inicial da vingança desva-
e a Guerra Colonial“, Revista Crítica de
necia e os motivos do empenhamento turvavam, enquanto o regime escondia Ciências Sociais, n. 68 (Abril 2004), p. 26.

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Angola 1961, o horror das imagens

a guerra em curso, procurava extrair ainda o máximo daquilo que restava da


reserva de comoção popular com os massacres iniciais, repetindo as imagens
todos os anos, lembrando a razão pela qual se combate 106. São estas imagens
que ainda dominam os poucos ilmes e livros mais tardios alusivos à guerra,
reproduzindo as cenas da recepção triunfal dos contingentes pelas popula-
ções, revelando a barbárie dos terroristas e enaltecendo a reconquista, na ines-
106
Cf. Francisco Rui Cádima, Salazar,
Caetano e a televisão portuguesa (Lisboa:
gotável crónica heróica da vingança, que se agarra a este momento histórico
Editorial Presença, 1996). para barrar a visibilidade do conlicto inacabável. São estas imagens que pau-
107
“[Luanda, 8-6-68] De tarde fui ver o tam, por exemplo, a exposição de fotograias da guerra em Angola, em 1968,
desile das nossas tropas e mais cerimónias
que comemoravam o Dia da Raça. no Palácio do Comércio de Luanda, perseguindo uma legitimação que nunca
A seguir fui ao Palácio do Comércio, ver se repete, à medida que, para muitos jovens, a vingança soçobrava e só sobrava
a Exposição de Fotograias da Guerra em
Angola. Foi qualquer coisa de espantoso, o medo 107. A 24 de Maio de 1973, foi a própria PIDE/DGS a pedir à sua dele-
mas havia muita pose dissonante. Depois gação de Angola as fotograias de atrocidades de 1961. O telegrama, de carác-
te contarei. [Algumas fotograias eram
nítida propaganda: as que se conhecia do
ter “Muito Urgente”, presume que esta tem os negativos, lembrando que foi
início da Guerra e correram mundo; as que essa delegação que as tinha remetido inicialmente para a metrópole, tendo
mostravam a captura de elementos inimigos depois sido distribuídas pelo governo, não restando nenhuma colecção na
e outras de cariz pluriracial, paternalista e
«igualitário»].” Cesário Costa, Morto por sede em Lisboa. Quanto ao motivo, doze anos depois: o Presidente do Con-
te ver: cartas de um soldado à namorada selho, Marcello Caetano, tinha um “GRANDE EMPENHO” em mostrá-las
(Angola, 1967-1969), (Porto: Afrontamento,
2007), p. 134. numa exposição, solicitando-se o “ENVIO URGENTE TITULO DEVOLU-
108
IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo TIVO COLECCOES NEGATIVAS REFERIDAS FOTOGRAFIAS.” Foram
16. 10. A, Terrorismo. Del. Angola, NT.
1210.
enviadas cinco dias depois, de Luanda: “Tenho a honra de junto enviar a V.
109
Em 1972, fotos de soldados portugueses Exª. uma colecção de fotograias sobre atrocidades cometidas na eclosão do
sorridentes erguendo cabeças de negros terrorismo. Não vão os negativos em virtude de não os possuirmos” 108.
foram impressas como posters com o
logo da Gulf Oil e a legenda “BOYCOTT Apenas um par de meses depois desta requisição oicial, a estratégia da pro-
GULF”. Esta campanha, em particular, dução do evento da guerra através da fotograia virar-se-ia em força contra o
foi organizada pelo Roxbury Multi-
Service Center e colocou 50 mil posters regime colonial, cujo inal acabou irreversivelmente daniicado pelas imagens
em 25 cidades dos EUA, em protesto de massacres por portugueses – fosse em ilmes como o Nô Pintcha de Tobias
contra o apoio empresarial americano ao
colonialismo luso, visando sobretudo a Gulf
Engel (1970); em cartazes de boicotes ao café angolano e à Gulf Oil nos EUA
Oil, acusada de inanciar a quase totalidade
109
; e em jornais (a Junho de 1970 no Der Spiegel e a Setembro de 1972 no Jeune
do custo da guerra nesse território através Afrique). Tudo isto culminaria no maior dos escândalos contra o regime, um
das rendas pagas ao governo português.
Cf. Randall Robinson, Defending the Spirit: desastre de relações públicas internacional de que nunca recuperou. Em Julho
A Black Life in America (New York: de 1973, em Londres, o jornal he Times publica uma denúncia do padre Has-
A Plume Book, 1999).
110
Jean-Luc Moreau, Dominique de Roux: tings, cujas fotos brutais do massacre de Wiriyamu, Moçambique, correram o
dossier (Lausanne: L’Age d’Homme, 1997), mundo e causaram uma indignação generalizada contra Portugal. A ironia his-
p. 393.
111
“Nos mass media ocidentais, a revelação
tórica era o facto de várias destas imagens não terem sido captadas em Moçam-
de imagens alusivas às atrocidades bique, mas em Angola, em 1961. Só que, enquanto as fotograias oiciais dos
cometidas pelas Forças Armadas ataques da UPA foram repetidas à exaustão e eram de imediato reconhecí-
portuguesas sobre populações civis – como
as fotograias de cabeças cortadas na capa veis, as da sua reacção foram tão pouco vistas, que poucos jornalistas notaram
do Der Spiegel que Caetano fez questão de a duplicação 110. Qual efeito bumerangue, a mesma guerra de fotograias que
enviar a Kaúlza de Arriaga, ou a denúncia
dos massacres de Wiriyamu na imprensa ocorrera na ONU uma década antes, voltaria a digladiar-se e com as mesmas
europeia – impedia também que o discurso imagens. Só que, desta, o regime perdia no seu próprio jogo, deixando claro
colonial mais ‘humanitário’ de Caetano
obtivesse qualquer espécie de eco fora
que, como Holden Roberto avisara, os movimentos de libertação não tinham
de portas”, Pedro Aires de Oliveira, capacidade para responder com meios visuais próprios, tanto que as fotogra-
A transição falhada. O marcelismo e o im ias de franca denúncia do colonialismo português nasceriam da apropriação
do Estado Novo (Lisboa: Editorial Notícias,
2004), p. 317. daquelas que haviam sido capturadas pelas forças ao seu serviço 111.

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4. Resistência / Memória

O recurso a formas de comunicação visual espectaculares e violentas com


que Portugal montou uma máquina de intimidação e aterrorização em res-
posta aos cruéis massacres da UPA, ultrapassando deliberadamente todos os
limites éticos, deine os eventos iniciais da guerra colonial a uma escala sem
paralelo nessa metade do século. O sucesso desta campanha era inegável. Não
admira ter sido herdada e adoptada na luta interpartidária em Angola 112, nem
tampouco na defesa dos restantes regimes minoritários em África, em par-
ticular na Rodésia: não apenas porque um livro importante de Reg Shay e
Chris Vermaak, he Silent War (1971), reproduzia a foto dos bébés mortos
como emblema do genocídio contra os brancos em Angola 113, mas porque o
governo circula também similares panletos com imagens de cadáveres, em
decalque da retórica portuguesa: apontando o dedo à bestialidade dos negros,
à desumanidade do comunismo, e à traição da ONU 114.
Se os ataques da UPA puseram, por instantes, um regime enfraquecido
em cheque, expondo uma mitologia colonial carente de real implantação e o
falhanço na defesa substantiva das populações, o tabuleiro político é eximia-
mente virado.
Um ror de fotograias do massacre da UPA, colhidas sob ordens oiciais,
multiplicou-se viralmente, certiicando que, ao invés da posição inglesa de
relativa discrição, o medo e terror não poupam então ninguém, invadindo
todas as casas do império, ampliicando o clima de pânico e explorando o
martírio das populações isoladas para ins políticos. O trabalho local do ter-
rorismo foi ampliado à escala global pela nefasta estratégia que procurou,
deliberadamente, criar um momento de trauma colectivo: desde as circuns-
tâncias sinistras da captura até à inundação pública em múltiplos formatos
(sonorizadas, ampliadas, sequenciadas, aixadas, ilmadas, desiladas, descri-
tas) e suportes (televisões, montras, panletos, jornais, revistas, cartas, cine-
mas, livros, museus, batendo recordes de tiragens e visitas), encabeçando
diferentes estratégias belicistas para o circuito diplomático, civil e militar. São
a igura máxima da violência mediática do regime e o exemplo mais virulento
da exploração política do foto-choque nesse período histórico – no ano em
que Bataille lança um pioneiro ensaio sobre fotograia e violência extrema 115.
Uma centralidade para o imaginário nacional aliás astutamente reconhecida
no ilme Os Capitães de Abril (2000), cuja crónica principia justamente com
estas imagens.
Embora a guerra colonial tenha sido o resultado forçoso das contingências
históricas e de uma espiral de violências políticas, importa relembrar como os 112
Cf. A FNLA em Angola (Luanda:
mecanismos manipuladores das fotograias, enfatizando a ameaça às mulhe- Ministério de Informação da República
res, a alição das crianças, as acusações de canibalismo, aliando crimes sexu- Popular de Angola, 1975).
113
Reg Shay, Chris Vermaak, he Silent
ais a medos raciais, romperam assim todos os códigos do visível, estruturando War (Salisbury: Galaxie Press, 1971).
uma viragem. Ao exacerbar a resposta de indignação a um clima de irracionali- 114
Alguns dos panletos emitidos pelo
governo de Ian Smith incluíam Red for
dade e paranóia, de inimizade irreconciliável, negando a humanidade comum, Danger (1968); Anatomy of Terror (1974);
abriram caminho a uma escalada de violência irreversível. O modo extremista Massacre of the Innocents (1978); ou he
como o sofrimento foi apresentado aos portugueses, determinou pois a res- Murder of Missionaries in Rhodesia (1978).
115
Cf. Georges Bataille, Les larmes d’Eros
posta. Nenhum material escrito poderia obter a reacção física ao horror desta (Paris: Pauvert, 1961).

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Angola 1961, o horror das imagens

iconograia do medo, apoderando-se do público ao ponto de evitar questões,


usando a chantagem e intimidação como armas políticas e solicitando a reta-
liação desapiedada. Qual teria sido a reacção aos ataques sem estas imagens?
De que modo alterariam o empenhamento e a mobilização pública na guerra
colonial? E se este luxo de imagens, em vez de unívoco, tivesse coberto os ata-
ques portugueses censurados? Se, segundo Ernst Jünger, um evento histórico
só se poderá tornar um evento se puder ser reproduzido, como nos devemos
posicionar e como podemos calibrar o saber histórico para aprender a lidar
com as violências fora da representação?
A criação da guerra através das imagens devia motivar mais investigação
para tentar contextualizar e compreender. Talvez não seja coincidência que as
imagens mais reproduzidas em contexto colonial sejam as que nos fazem des-
viar os olhos, demasiado horríveis para serem vistas e demasiado problemá-
ticas para serem ignoradas, erigindo barricadas no caminho do trabalho da
história. Impõe-se assim colocar mais pressão sobre elas e tentar saltar fora do
regime maniqueísta que perpetuam. Não havendo a opção de negá-las ou de
escondê-las, é necessário discutir publicamente sobre o que fazer com frag-
mentos imagéticos do passado e os vazios visuais desta história traumática.
O que podem e não podem dizer-nos? De que modo respostas afectivas conti-
nuam a inibir e comprometer a sua compreensão? Como deiniram a impos-
sibilidade do diálogo e impedem um olhar retrospectivo? São questões abertas
116
“Graphic images of raped and mutilated aim de negociar estratégias para regressar às imagens que abolem a humani-
settlers enlamed the Portuguese public’s dade dos outros e lançam um efeito de eclipse sobre o sofrimento não fotogra-
rage, and the army launched a murderous
counter-ofensive in northern Angola, fado. O dilema suscitado por estas imagens é o de procurar distância, apesar
destroying dozens of villages and killing at da imediatez e brutalidade do que mostram torná-lo quase impossível, e inter-
least 20,000 Africans before the uprising
was put down.” Edward George, he Cuban rogar: onde radica a maior violência, na representação que vemos do terror,
Intervention in Angola, 1965-1991: From ou no terror invisível atiçado por ela? A falta de empenho oicial em apurar
Che Guevara to Cuito Cuanavale (London:
Frank Cass, 2005), p. 10.
os números concretos dos eventos é sintomática, embora geralmente se julgue
117
O London Observer alegou mesmo que três a cinco vezes maior o número de mortos na vingança, com historiadores
em um mês apenas, Maio de 1961, haviam que colocam a estimativa entre 20 a 30 mil mortos 116 – e um balanço inal, para
sido mortos mais africanos em Angola do
que nos cem anos precedentes na África do 1961, de 1 a 2 mil brancos, e 50 a 60 mil negros mortos, além de meio milhão
Sul. Cf. William Hofmann, Paul Mellon: de refugiados 117. Se as fotograias sinistras foram a pólvora desta explosão e
portrait of an oil baron (Chicago: Follett,
1974), p. 83. uma das armas de guerra e propaganada, não signiica, porém, que o número
118
“África adeus... A Província que se segue superior de mortos que deixaram atrás de si lhes tenha roubado impacto, nem
ANGOLA”, Bandarra, nº 2 (28 de Setembro
de 1974), p. 7.
tampouco o izeram as apropriações racistas, obscenas, incendiárias e totali-
119
A aceitação acrítica destas fotograias tárias que constituem a sua história. Cinquenta anos depois, as imagens dos
pelo discurso público prova-se no modo cadáveres das vítimas ainda não pararam de se multiplicar em várias sobre-
como ainda circulam nos media, como se
sem peso, contexto ou história. Veja-se, por vidas, tendo ressuscitado mal acabou a guerra colonial, como um símbolo de
exemplo, a recensão crítica no Público ao protesto contra a “traição” da descolonização 118, retomando o discurso oicial
livro da jornalista britânica Lara Pawson
sobre os eventos do 27 de Maio de 1977 em de que era preciso vingar os mortos através duma guerra sem im. Veja-se, por
Angola, ilustrada, sem explicação, por uma exemplo, a imediata apropriação da fotograia dos bébés mortos pelo jornal
imagem de Quimbele em 1961, mostrando
um mar de negros mortos olhados por um
Bandarra para condenar o destino de Angola independente; ou a nova ver-
grupo de brancos com armas a tiracolo. são Capim no sangue atraiçoado (1977) que Reis Ventura enche de imagens.
José Pedro Monteiro, “Em Nome do Povo: Desde então, estas têm pululado como estandarte na internet para todo o tipo
memória e história de Angola,” Público
(20 de Junho, 2014). de exaltações neocoloniais e anti-abrilinas 119.

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4. Resistência / Memória

Totalmente desprovidas de atenção académica, esta tentativa de biogra-


ia crítica procura abrir as fotograias fundadoras da guerra a investigações
críticas. Esta carência é em si relevante, comprovando a continuada pressão
das imagens no presente, dada a sua capacidade visceral para subtrair o pano-
rama analítico. Como é evidente, as fotograias não são isentas de valores, nem
deviam ter esta imunidade crítica. Por isso, contextualizá-las ao nível das suas
implicações no projecto da guerra colonial permite repolitizar o arquivo her-
dado, a im de contrariar uma certa tendência historiográica em sanear a vio-
lência colonial – ou trivializar o drama da guerra, tendo por critério único a
leviana contagem dos mortos de um só lado 120.
Se os sórdidos massacres passaram ao imaginário colectivo, em larga
medida, através do doloroso registo de fotograias, não signiica que elas sejam
inocentes, inseparáveis da máquina de propaganda e de um argumento polí-
tico moralizado, que, deliberadamente aterrorizante, incita o observador a
testemunhar, a emitir um julgamento, a tomar lados. Reproduzir descontex-
tualizadamente estas imagens signiica aceitar o modo como o regime queria
a história escrita, assente sobre o desequilíbrio lagrante entre as repetições
excessivas de um lado e a total omissão do outro, o paroxismo das relações
de poder coloniais. A disparidade entre estas fotos de três dias, e a hegemo-
nia esmagadora que ainda hoje exercem sobre o arquivo visual de uma guerra 120
Em recensão à História de Portugal de
Rui Ramos, por exemplo, o historiador
de treze anos, permite, como nenhuma outra fonte material, perceber a duali- Diogo Ramada Curto nota não apenas
dade de critérios e as assimetrias na escrita da história, pondo a nu os diferen- a omissão do trabalho forçado e da
questão racial, mas também a ausência de
ciais coloniais – qual a visibilidade de cada vida, qual o valor de cada morte, referências ao uso de napalm, às políticas
qual a relevância de cada história, qual a preponderância de cada narrativa. de aterrorização e à acção psicológica. Entre
São, por isso, essenciais para perceber o clima de terror de então e a centra- as “linhas de análise [que] correspondem
a uma espécie de discurso oicial da época
lidade do papel do poder formal nele. Só assim se poderá remover as víti- sobre a guerra,” refere o facto de o autor
mas de uma morte instrumentalizada para ins políticos, deixando de expor os caracterizar a guerra como essencialmente
“pouco mortífera”: “Este dado é, aliás,
seus corpos sacriicados como meros ventríloquos ideológicos, e libertando- considerado de tal modo importante que
-as do ónus propagandístico para negociar novos modos de as relembrar que “determinou tudo” (...) Porém, há um
outro dado, contabilizado mais adiante,
fujam ao vácuo histórico para onde foram atiradas. Repensar a guerra colo- que importa reter: o número de mortos
nial através da imagem, como via oblíqua de acesso, permite não só explo- do “inimigo” foi vinte vezes superior.
rar as representações desta violência, assim revertendo a tendência instalada Frente a esta desproporção, como se
poderá analiticamente argumentar –
para a iconofobia, mas também compreender a violência dessas representa- numa História que se pretende arredada
ções, implicando-a directamente nos resultados sangrentos desse ano. Ape- de uma perspectiva nacionalista – que a
guerra foi pouco mortífera? Por que razão,
sar da escala e obscenidade desta campanha política, explorando as imagens numa análise pejada de comparações, esta
da carniicina, ser internacionalmente ímpar, a radicalidade das suas estraté- desproporção não ica sujeita à mesma
veriicação?” Diogo Ramada Curto, “Por
gias e consequências continuam, meio século depois, sem nenhuma análise, um debate de ideias num panorama sem
crítica, ou história. Até onde terá esta guerra sido provocada pelas fotograias? crítica”, Público (8 de Setembro, 2012).

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