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Etnografia visual da Guerra Colonial.

Luta de libertação na Guiné


CATARINA LARANJEIRO

Introdução

O artigo abordará a fotografia enquanto meio de memória da guerra: as foto-


grafias que os antigos combatentes e guerrilheiros guardam da guerra e as his-
tórias que as fotografias congelam e transportam. Procurarei analisar aquilo
que as fotografias revelam e aquilo que elas escondem. A guerra que eu escolhi
tratar foi a que teve lugar na Guiné-Bissau entre 1963 e 1974, na qual a Guiné-
-Bissau lutava pela sua independência e soberania e Portugal pelo seu império
colonial. Deste modo, em Portugal esta guerra ficou conhecida como guerra
colonial, enquanto que na Guiné-Bissau tem o nome de guerra de liberta-
ção. Todos os sujeitos da minha investigação são guineenses, alguns dos quais
estiveram alistados no exército colonial, enquanto que os outros aderiram ao
movimento de libertação.
Importa referir que o colonialismo português em África era subalterno,
administrado a partir de um país semiperiférico. Tratou-se de um colonialismo
tardio que perdurou vários anos após a independência das colónias de outros
países europeus 1. Por sua vez, a luta de libertação foi liderada pelo Partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC), movimento
de libertação de carácter subversivo que no plano teórico operou segundo o
modelo revolucionário. Ao considerar ilegítima a sociedade colonial, optou
por um plano longo de guerrilha e resistência 2. As bases do PAIGC assenta-
vam num programa cuja organização espelhou o modelo marxista-leninista,
tendo como valores fundamentais a liberdade política e a construção de uma
nova sociedade. Consequentemente, para liquidar o colonialismo “era neces-
1
Miguel Vale de Almeida, “O Atlântico sário expulsar o ocupante estrangeiro e destruir as formas de exploração do
Pardo: Antropologia, Pós-Colonialismo homem pelo homem” 3.
e o Caso “Lusófono”, in C. M. Bastos Vale
de Almeida e B. Feldman-Bianco, orgs., Esta guerra enquadra-se num período histórico que teve o seu início com
Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros o fim da II Guerra Mundial, que dividiu o mundo em dois blocos, num con-
(Lisboa: ICS, 2002), p. 32.
2
Leopoldo Amado, Guerra Colonial e
flito latente, um confronto ideológico entre comunismo e capitalismo em que
Guerra de Libertação Nacional. O caso da os Estados Unidos e a União Soviética dividiram o mundo em duas zonas de
Guiné-Bissau (Lisboa: IPAD, 2009), p. 37.
3
Amado, Guerra Colonial e Guerra de
influência mas sem resvalar numa guerra generalizada entre os dois blocos 4.
Libertação Nacional, p. 39. O conflito sino-soviético e o guevarismo abalaram este equilíbrio tenso entre

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4. Resistência / Memória

as duas superpotências e vieram dar força aos movimentos de libertação que


optaram pela luta armada e pela guerrilha, colocando em perigo o Pacto de
Varsóvia.
Hoje, conquistada a independência pelas ex-colónias, conquistada a
democracia em Portugal, tendo este país entrado na União Europeia, e uma
vez colapsado o campo socialista de que as ex-colónias dependiam, a memó-
ria desta guerra e desta luta transformou-se, apagou-se e reconfigurou-se para
poder encaixar no tempo presente, sem o perturbar 5.
Metodologicamente, esta investigação centrou-se na análise de fotografias
enquanto suporte de memórias, uma vez que este é um objecto que permite
garantir a preservação do passado. Por esse motivo, surgem como recursos
particularmente úteis para a produção e reprodução cultural das memórias
subjetivas.
A grande vantagem destes objectos é que podem ser utilizados como fon-
tes que conectam os dados à história oral e à memória, o que, ao invés de expli-
car a guerra em termos de trajetórias objetivas históricas e políticas, permite
problematizar as memórias subjectivas de quem a experienciou. Pretende-se
assim ilustrar a relação entre os processos de construção de memórias sub-
jetivas e de memórias oficiais, sem esquecer a dimensão política associada à
representação pública da memória enquanto suporte simbólico legitimador de
relações de poder.
Tendo como ponto de partida as heranças e consequências do passado
colonial e imperial português, que permitem um novo modo de pensar o pós-
-colonial a partir do colonial, propus-me identificar os desafios que este pas-
sado traumático e silenciado implicam para esta jovem nação africana.
Encarando a memória como um sistema cultural de atribuição de sig-
nificado em permanente e constante actualização, a análise documental de
fotografias permitiu compreender como no presente estas memórias são
guardadas, transformadas, apagadas e validadas. Os dados recolhidos per-
mitiram analisar os processos de recordação e esquecimento, sublinhando a
importância do passado na criação e consolidação de identidades colectivas.
Consequentemente, o meu objectivo não era encontrar factos que corro-
borassem a História convencional, mas sim factos que a questionassem, ainda
que não fossem verdadeiros. Por isso, decidi afastar-me da historiografia con-
vencional e recorrer à metodologia da história oral. A história oral procura
compreender a história de vida do entrevistado, visando essencialmente a reme-
moração do passado concedendo à História o elemento da subjectividade 6.
Por exemplo, no decorrer da minha investigação sobre a guerra colonial/de 4
Amado, Guerra Colonial e Guerra de
libertação na Guiné-Bissau as entrevistas realizadas não acrescentaram muito Libertação Nacional, p. 35.
5
Vale de Almeida. O Atlântico Pardo:
sobre os custos materiais da guerra, mas acrescentaram muito sobre os custos Antropologia, Pós-Colonialismo e o Caso
psicológicos. Assim, ao invés de explicar a guerra em termos de trajectórias “Lusófono, p. 32.
6
Miguel Cardina, “Introdução” in
objectivas culturais, históricas, económicas ou políticas, permite-me proble- Alexandre Portelli, org., A morte de Luigi
matizar a experiência de quem viveu aquela guerra enquanto combatente 7. Trastulli e outros ensaios (Lisboa: Unipop,
Gostaria de destacar que foram recolhidas fotografias e realizadas as res- 2013).
7
Susan Sontag, Olhando o Sofrimento dos
pectivas entrevistas a 18 antigos combatentes do PAIGC, de entre os quais Outros (Lisboa: Gótica, 2003).

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Etnografia visual da Guerra Colonial. Luta de Libertação na Guiné

6 são mulheres; e 15 antigos combatentes do exército colonial. Por este motivo,


o meu corolário de análise é de tipo indutivo e não pode ser extrapolado para
um universo.

Memória e Fotografia ou como (não) ouvir uma história

As fotografias surgiram-me como o meio mais pertinente para facilitar a reco-


lha de testemunhos orais. Baseada em autores como Elisabeth Edwards, Susan
Sontag, Roland Bathes e Walter Benjamin, encaro a fotografia como um meio
de memória capaz de questionar as grandes abstrações e generalizações his-
tóricas. No livro Ensaio Sobre a Fotografia, Susan Sontag defende que a foto-
grafia se diferencia dos antigos registos, tanto verbais quanto visuais, pois não
se trata de uma interpretação como a pintura e a gravura. Significa, sim, um
fragmento do mundo, uma miniatura da realidade que todos podem construir
ou adquirir 8. Didi-Huberman acrescenta que as fotografias, não sendo “a ver-
dade”, são hoje: “um vestígio, um fragmento dessa verdade”, ou “o que resta
visualmente” dessa verdade o que nos permite no repto “benjaminiano” estu-
dar a história a contrapelo 9.
Por outro lado, a fotografia está extremamente relacionada com a história
oral, dado que estas “[...] as fotografias não actuam simplesmente como uma
história visual, mas desempenham uma forma de história oral, ligada ao gesto,
ao som e às relações nas quais e através dos quais essas práticas são incor-
poradas” 10. É o “ar” que, segundo Barthes, é uma impressão que emana das
imagens, que nos toca e que nos projecta num passado particular ou nos con-
duz a uma questão existencial. É o que está latente e que espera pelo olhar do
espectador para se manifestar 11. E eu esperava que as fotografias me guiassem
na recolha das histórias de vida dos meus entrevistados através da técnica de
photo-elicitation, que foi desenvolvida com o intuito de obter respostas que
seriam enriquecidas pela nitidez das memórias aí documentadas 12. Porque
falar sobre uma imagem costuma ser, em grande medida, falar de nós próprios
e consequentemente, os arquivos de imagens pessoais podem ser utilizados
como fontes que conectam os dados à tradição oral e à memória.
Tendo por objectivo investigar a memória da luta de libertação/guerra
colonial a partir das fotografias dos seus antigos combatentes, tinha desde já
uma limitação: a câmara fotográfica não era um objecto acessível nas décadas
de 60 e 70.
8
Susan Sontag, Ensaio Sobre a Fotografia
(Lisboa, Quetzal Editores, 2012), p. 28. Contudo, a prática fotográfica era frequente nos rituais associados à vida
9
Georges Didi-Huberman, Imagens Apesar militar portuguesa, nomeadamente fotografias de grupo, do juramente de ban-
de Tudo (KKYM: Lisboa, 2011), p. 58.
10
Elisabeth Edwards, “Photographs and deira, etc., pelo que aqueles que pertenceram ao exército colonial teriam foto-
the Sound of History. Visual Anthropology grafias suas.
Review”, Vol. 21 (2006), pp. 27-46, p. 29.
11
Roland Barthes, A Câmara Clara (Lisboa,
Ainda, muitos fotógrafos, jornalistas e activistas estrangeiros documen-
Edições 70), p. 119. taram as actividades ou missões diplomáticas dos movimentos de liberta-
12
Jon Prosser, Image based research. ção. Contudo, hoje essas fotografias não se encontram nas mãos de pessoas
A Sourcebook for Qualitative Researchers
(Oxford: Farmer Press, 1998). comuns, mas sim dos dirigentes do PAIGC.

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4. Resistência / Memória

Os dirigentes do PAIGC são pessoas que já na época colonial pertenciam


a uma elite, os chamados assimilados 13, como ilustra o seguinte excerto de
entrevista:

“Eu sou de uma família, parte de pai francesa mestiça, parte de mãe
negra, mas com meios de fortuna e preparação. Porque o meu avô, pai
da minha mãe, negro, mandou educar os filhos todos em Portugal, Lis-
boa. E tinha fortuna...” (Entrevista IV, Março de 2013).

Abaixo, podemos ler um outro caso bastante ilustrativo:

(...) fui estudar primeiro na Faculdade de Ciências e depois no Técnico


(em Lisboa), e com outros jovens cabo-verdianos e guineenses, desen-
volvemos uma actividade política que veio a desembocar na criação de
um comité do PAIGC em Lisboa (...) Eu como tinha problemas de servi-
ços militares, abandonei Portugal. Vou para Paris, e aí é que eu conheço
Amílcar Cabral14. (Entrevista VI, Março de 2013).

Foram pessoas que tiveram a possibilidade de estudar, viajar e que em


dado momento da sua vida se juntaram à causa anticolonial. No caso concreto
acima citado, trata-se de um antigo combatente que fez treino militar em Cuba
e participou activamente na guerrilha:

…fiz tudo… antiaéreo, infantaria, artilharia...fui comandante de um


corpo de exército, cuja principal função era combates de infantaria...mas
mesmo estando noutras funções sempre ia dando alguma ajuda ao pes-
soal da artilharia, sobretudo no norte, onde não havia muitos que soubes-
sem fazer os cálculos. (Entrevista VI, Março de 2013).

Após a independência, os comandantes da luta de libertação tornaram-


-se parte da nova elite nacional, aquela que mais tarde foi acusada de trair a
causa anticolonial, ocupando o lugar dos antigos governadores portugueses 15.
Numa entrevista realizada a um antigo comandante perguntei-lhe circunstan-
cialmente:

– Já mora há muito tempo nesta casa?

E a sua resposta não poderia ser menos surpreendente:

Desde a independência. Nunca mudei de casa. Esta casa pertencia a


um administrador português, depois nos anos oitenta, comprei-lhe a casa
13
Indígenas assimilados pela cultura
e pronto. Primeiro era alugada e depois comprei-lhe. Pelo menos aqui
colonial.
na Guiné, não tenho intenção de mudar de casa (…) 38 anos a viver aqui. 14
Líder político do PAIGC.
(Entrevista VII, Março de 2013).
15
Vale de Almeida. “O Atlântico Pardo:
Antropologia, Pós-Colonialismo e o Caso
Lusófono”.

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Etnografia visual da Guerra Colonial. Luta de Libertação na Guiné

Amílcar Cabral defendeu que o objecto da luta de libertação era desen-


volver o país num quadro de justiça social, descartando a possibilidade de ter
uma classe ou grupo de pessoas a superintender o trabalho do povo 16. Mas
após a independência muitos dos antigos combatentes do PAIGC ocuparam
imediatamente os mesmos lugares que os antigos administradores coloniais.
Interpretar os percursos de vida dos antigos combatentes do PAIGC significa
então procurar compreender como viveram estas rupturas e descontinuidades
políticas e ideológicas e como se (re) posicionam face aos novos Estados afri-
canos independentes.
As fotografias que me mostravam eram fotografias de um mundo que já
não existe: um bloco de Leste que apoiava incondicionalmente a libertação das
colónias africanas e que espalhava o ideal marxista-leninista.
Mas os seus comentários sobre estas eram meramente descritivos, como se
evidencia na leitura da entrevista abaixo transcrita.

X – Ali a mesma coisa, é o Presidente da Coreia do Norte, o avô do


actual.
X – Aí a visitar a residência.
Catarina Laranjeiro (CL) – Mas o que é que foram fazer à Coreia do
Norte?
X – Foi uma grande volta que demos praticamente a toda a Ásia em
1962.
X – Isto é na China, agora não me lembro bem.
X – Isto foi uma visita a uma academia militar. Não me lembro bem.
X – 6 de Agosto de 1972. Foi a última viagem que Cabral fez. Esta é
na China. Também é China.
X – Um exercício militar, não me lembro onde.
CL – Quem são as pessoas que estão na fotografia?
X – Alguns posso dizer, agora o resto...sobretudo os estrangeiros, eu
não me lembro.
CL – Diga os que souber...
X – Isto é na Checoslováquia, antes da independência.
CL – Quem está na fotografia?
X – Temos aí, eu, o Luís Cabral, a Ana Maria Cabral. Alvarenga, Mário
Pinto de Andrade...foi na Checoslováquia, lembro-me que estava frio,
mas não me lembro de mais nada. (Entrevista IX, Março de 2013).

Foi ao fim de algumas entrevistas que me apercebi que este exercício era
absolutamente inútil e comecei a questionar-me se Roland Barthes faria sen-
tido na Guiné-Bissau. Não há qualquer vestígio nestas conversas do “ar” de que
16
Amílcar Cabral, Our people are our
mountains; Amilcar Cabral on the Guinean
Roland Barthes trata projectando-nos as fotografias a um silêncio constrange-
revolution. Committee for Freedom in dor e a um passado, não particular, mas muito vago 17.
Mozambique (Angola & Guiné, London, Se não podia atribuir significado ao conteúdo das respostas dos meus
1972), p. 21.
17
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 35. interlocutores, a sua forma espartana e contrariada era muito reveladora das

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4. Resistência / Memória

Fotografia 1. Visita à Coreia do Norte.


Autor Desconhecido. 1963. Espólio da
família Cabral de Almada.

Fotografia 2. Encontro com Fidel


Castro. Autor Desconhecido. Data
desconhecida. Espólio da família
Cabral de Almada.

Fotografia 3. Fotografia de grupo


junto à estátua de Kim Il Sung. Autor
Desconhecido. 1963. Espólio da família
Cabral de Almada.

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Etnografia visual da Guerra Colonial. Luta de Libertação na Guiné

suas histórias de vida 18. Na sua famosa distinção entre o que chama studium
e punctum, Barthes descreve o punctum da fotografia como “esse item que me
perturba (mas também me comove)” 19. Como tal, o punctum é o centro de
subversão da fotografia, pelo que a fotografia é mais subversiva “não quando
assusta, repele, ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa, quando
pensa” 20. Era o silêncio e a resistência dos meus interlocutores que constituíam
o punctum de cada fotografia. Porque no constrangimento das suas respostas
estava a pergunta que Chris Marker coloca no filme Sunless: “O que o futuro
nos vai fazer, quando nos tornamos o passado?” 21
Adicionalmente, estes homens e mulheres são políticos formados em paí-
ses como a antiga URSS, Cuba ou Checoslováquia. Ao longo das minhas entre-
vistas, mesmo sem a presença das fotografias, não consegui que tivessem o
mínimo de espontaneidade. Cada palavra ou frase já tinha sido dita antes,
ensaiada. A câmara não os intimidava e tudo o que diziam eu já tinha lido em
livros de memórias ou de historiadores.
Uma das grandes vantagens da história oral é o facto de o narrador que
hoje relata ser diferente daquele que tomou parte nos acontecimentos de que
fala. Neste caso em concreto, houve uma alteração no contexto político que
os suportava – “O comunismo já não é um “horizonte de esperança” ou uma
“utopia concreta” como o defendia Ernst Bloch” – o fracasso do Bloco de Leste,
e a alteração da sua condição social de guerrilheiros a políticos, leva a modifi-
car, não os factos em si mesmo, mas o juízo que se faz sobre eles e, consequen-
temente, a forma como os narram 22. Na entrevista que acima citei, a reticência
em referir determinados objectivos das missões diplomáticas julgo que não
deriva tanto da deterioração da memória mas da adaptação da memória do
narrador ao contexto presente. Consequentemente, os conhecimentos mais
preciosos estão nos silêncios, nas reticências e nas deformações 23. E relativa-
mente à utopia socialista: “O que é certo é que o seu campo de experiência se
eclipsou da nossa paisagem memorial e que ainda espera a sua anamnese” 24.
Para além do silêncio, passavam-se dias sem que conseguisse falar com
ninguém. Marcava duas entrevistas por dia. E os entrevistados esqueciam-se.
E algumas vezes apenas dispunham de cerca de 20 minutos para estar comigo.
Salvo raras exceções, eu não sentia da parte deles uma vontade genuína em
partilhar a sua história comigo. Se a etnografia se baseia no conhecimento que
18
Tiago Matos Silva, “Os textos do silêncio
adquirimos através das relações que criamos com os nossos informantes, eu
– para um tratamento qualitativo do não estava a conseguir criar qualquer relação.
não-dito”, orgs, Paula Godinho, Usos da Relativamente aos combatentes do exército colonial também não posso
Memória e Práticas do Património. Instituto
de Estudos de Literatura Tradicional dizer que este processo tenha corrido muito bem. Quando me decidi a rea-
(Lisboa: Colibri, 2012). lizar o trabalho de campo em Bissau, pedi apoio logístico à Embaixada de Por-
19
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 119.
20
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 47. tugal, mais particularmente ao Instituto Cultural Português. Foi-me cedido
21
Chris Marker, Sunless, 1983. um espaço para trabalhar nesse instituto, sendo que o meu maior interesse era
22
Enzo Traverso O Passado, Modos de Usar
(Lisboa: Unipop, 2012), p. 112.
ter sempre à disposição um sítio com eletricidade e onde fosse seguro guar-
23
Alexandre Portelli, org., A morte de Luigi dar o material. No mesmo edifício trabalhava o sargento Viana, adido mili-
Trastulli e outros ensaios, p. 35. tar português, que foi o meu interlocutor privilegiado com a Liga dos Antigos
24
Enzo Traverso, O Passado, Modos de
Usar, p. 122. Combatentes do Exército Colonial guineense. O trabalho do sargento Viana é

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4. Resistência / Memória

atender antigos combatentes do exército colonial que procuram receber apoio


do Estado Português, especificamente reformas militares. É uma fila enorme
de gente que todas as manhãs espera à porta da embaixada. No primeiro dia em
que cheguei o sargento Viana pôs-me logo em contacto com a Liga dos Anti-
gos Combatentes e na minha primeira entrevista fui logo confrontada com
o pedido de um pequeno favor: pressionar o sargento Viana para lhe assinar
a documentação que lhe permitisse ir para Portugal. Referi que não poderia
interferir no trabalho da Embaixada de Portugal. Isto foi só o início. Todos os
antigos combatentes estavam comigo com a esperança que, de alguma forma,
a colaboração com a minha investigação lhes trouxesse algum benefício.
Eu apenas me propus a ouvir a sua história e eles pediam-me apoio, num dis-
curso impregnado de uma hierarquia colonialista, no qual o branco é que
detém o poder. Tentando manter a posição inicial de não interferência em
assuntos relacionados com a Embaixada Portuguesa e sabendo que com a
crise económica que Portugal atravessa o seu esforço pela reivindicação da sua
reforma seria bastante inglório, senti-me numa posição muito desconfortável.
Aproveitar-me da sua situação para recolher dados para a minha investigação
seria uma enorme falta de ética.
Relativamente às suas fotografias, o problema não era apenas o seu silên-
cio, mas sim a sua ausência física. Numa entrevista preliminar que fiz com um
antigo combatente guineense do exército colonial, em Lisboa, ele disse-me:

Eu escondi as fotografias, porque naquela altura (depois da indepen-


dência) muita gente morreu por causa das fotografias (…) escondia-as
envoltas em plástico, cavei um buraco no chão e tapei-as com cimento
(…) só a minha mulher sabia que elas estavam ali. (Entrevista I, Janeiro
2013).

E durante a minha pesquisa na Guiné-Bissau apercebi-me que de facto a


grande maioria dos antigos combatentes havia destruído as suas fotografias,
uma vez que estas constituíam provas incriminatórias da sua participação na
guerra.

“Eu não tenho nenhuma fotografia, queimámos tudo, porque


naquele tempo, se nos vissem com antigas fotografias da tropa, eras
preso” (Entrevista XIII, Abril 2013).

“eram fotografias que nos tiravam no quartel, com a farda, com os rádios
de transmissão, com a bazuca, com as armas americanas” (Entrevista VIII,
Abril 2013).

(…) naquela altura, fomos perseguidos. Se nos vissem com qualquer


documento, tanto fotografia militar como caderneta militar, apanhavam-
-te e levavam-te para fuzilamento. Muitos colegas queimaram os seus
documentos ou deitaram na fossa, outros esconderam-nos. Eu consegui

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Etnografia visual da Guerra Colonial. Luta de Libertação na Guiné

Fotografia 4. Treinos militares em


Bolama. Autor Desconhecido. 1968.
Espólio da família de Alfredo Djaló.

Fotografia 5. Fotografia de grupo


em Encheia. Autor Desconhecido.
1969. Espólio da família de Alfredo
Djaló.

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4. Resistência / Memória

esconder estes documentos. Mas eu tinha muito mais, eu só consegui sal-


var as imagens que vocês estão a ver. Mas nós sofremos muitos sacrifícios
na tropa. Com 19, 20 anos de idade, jovem, o que a gente passou a vida
militar. Temos vindo a criar a nossa associação, para reivindicar os nossos
direitos, através do Acordo da Argélia. Até hoje não vimos luz verde, mas
não parámos, continuamos a lutar pelos nossos direitos. Nem que morra-
mos todos, os nossos filhos ficarão cá a lutar pelos direitos dos seus pais.
(Entrevista IX, Abril 2013).

No livro 1984, de George Orwell, a luta dos cidadãos contra o poder do


Estado é a luta da memória contra o esquecimento compulsivo. Parte das suas
personagens tornaram-se arquivistas incansáveis, acreditando que se iriam
salvar a si mesmos e sobreviver como testemunhas para as gerações futuras25.
Aqueles que do exército colonial conseguiram esconder as suas fotografias e
outros documentos, guardam-nos hoje, na esperança que estas lhes sirvam de
prova nas reivindicações dos seus direitos ao Estado português: “Uma foto-
grafia passa por ser uma prova incontroversa de que uma determinada coisa
aconteceu” 26. E aquelas fotografias são a prova “que resta” da sua participação
no exército colonial. Segundo Le Goff, um documento não é algo objectivo e
inocente que “expressa uma verdade” sobre uma determinada época, sendo
que o que um documento manifesta é “o poder da sociedade do passado sobre
a memória e o futuro” 27. E por essa razão, o documento deve ser entendido
como o resultado de uma montagem das diversas épocas sucessivas durante
as quais ele continuou a existir e a ser manipulado 28. A mesma prova que no
final da guerra os poderia conduzir à prisão e à morte por fuzilamento é hoje,
40 anos mais tarde, a prova e a esperança para receber uma reforma militar do
Estado Português.
No que diz respeito, em particular, à memória social, constatamos que as
imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente 29. Por
esse motivo, é necessário apagar memórias ou transformá-las para poder jus-
tificar o passado no presente. O silêncio dos antigos dirigentes do PAIGC e a
destruição das fotografias dos antigos soldados da guerra colonial são disso
reveladores.
O mundo está a mudar de um modo demasiado rápido, e é muito difícil
garantir um lugar na História. E por esse motivo, é necessário apagar, trans- 25
Paul Connerton, Como as Sociedades se
formar e manipular certas memórias para que a história seja coerente com o Recordam (Lisboa: Celta Editoras, 1993),
tempo presente. Portugal, na sua entrada e consequente afirmação no espaço p. 84.
26
Susan Sontag, Ensaio Sobre a Fotografia
europeu, precisou de apagar ou pelo menos silenciar a memória colonial 30. (Lisboa, Quetzal Editores, 2012), p. 44.
E foi este silêncio que permitiu que as tropas coloniais guineenses (que não 27
Jacques Le Goff, Documento/Monumento.
Orgs: História e memória (Campinas:
foram recrutadas voluntariamente) fossem perseguidas e fuziladas após a Unicamp, 2003), p. 6.
independência. Hoje, a sua memória tende a reafirmar-se pela criação de ins- 28
Jacques Le Goff, Documento/Monumento,
p. 538.
tituições como a Liga dos Antigos Combatentes. 29
Paul Connerton, Como as Sociedades se
Por seu lado, a memória das lutas de libertação vive uma parábola aná- Recordam (Lisboa: Celta, 1993), p. 85.
loga à de outros movimentos emancipadores, na medida em que a sua memó-
30
Miguel Vale de Almeida, “O Atlântico
Pardo: Antropologia, Pós-Colonialismo e o
ria pública desapareceu. Hoje o povo guineense não é visto como um povo Caso Lusófono”, p. 35.

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que conduziu uma luta bem-sucedida contra o regime colonial. Vivemos uma
época de humanitarismo (e não de humanismo), e neste contexto já não há
vencidos mas apenas vítimas 31. Tal como outros movimentos emancipadores
africanos contra o imperialismo, este também foi silenciado, e recoberto por
outras representações “africanas” do mundo. Hoje, o povo da Guiné-Bissau é
outra vez vítima, na medida em que continua a ser objecto de salvamento. Por
seu turno, os países europeus, outrora colonizadores, como Portugal, conti-
nuam a cumprir a sua “missão civilizadora”, agora envolta na capa ideológica
do apoio ao desenvolvimento.
Consequentemente, toda esta experiência subsiste como uma memória
escondida, por vezes como contra-memória, pronta a questionar as grandes
generalizações e abstrações da historiografia convencional.
A fotografia como meio de memória foi escolhida devido às suas capa-
cidades analíticas na abordagem de representações subjectivas. Apesar da
relevância deste objecto per si, a análise das suas dimensões discursivas e per-
formativas permitiu aceder a novos dados sobre esta guerra, que revelam a
co-existência de versões em conflito que servem diferentes propósitos e inte-
resses. O trabalho do arquivo, pela sua natureza, determina uma certa maneira
de recordar e consequentemente marginaliza muitas pequenas histórias. Desta
forma, a história oral surge como uma abordagem para o estudo da memória
31
Enzo Traverso, O Passado, Modos de
que enfatiza as experiências de vida daqueles que a História enquanto instru-
Usar, p. 22. mento político insiste em apagar.

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