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Introdução
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Etnografia visual da Guerra Colonial. Luta de Libertação na Guiné
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“Eu sou de uma família, parte de pai francesa mestiça, parte de mãe
negra, mas com meios de fortuna e preparação. Porque o meu avô, pai
da minha mãe, negro, mandou educar os filhos todos em Portugal, Lis-
boa. E tinha fortuna...” (Entrevista IV, Março de 2013).
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Foi ao fim de algumas entrevistas que me apercebi que este exercício era
absolutamente inútil e comecei a questionar-me se Roland Barthes faria sen-
tido na Guiné-Bissau. Não há qualquer vestígio nestas conversas do “ar” de que
16
Amílcar Cabral, Our people are our
mountains; Amilcar Cabral on the Guinean
Roland Barthes trata projectando-nos as fotografias a um silêncio constrange-
revolution. Committee for Freedom in dor e a um passado, não particular, mas muito vago 17.
Mozambique (Angola & Guiné, London, Se não podia atribuir significado ao conteúdo das respostas dos meus
1972), p. 21.
17
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 35. interlocutores, a sua forma espartana e contrariada era muito reveladora das
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suas histórias de vida 18. Na sua famosa distinção entre o que chama studium
e punctum, Barthes descreve o punctum da fotografia como “esse item que me
perturba (mas também me comove)” 19. Como tal, o punctum é o centro de
subversão da fotografia, pelo que a fotografia é mais subversiva “não quando
assusta, repele, ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa, quando
pensa” 20. Era o silêncio e a resistência dos meus interlocutores que constituíam
o punctum de cada fotografia. Porque no constrangimento das suas respostas
estava a pergunta que Chris Marker coloca no filme Sunless: “O que o futuro
nos vai fazer, quando nos tornamos o passado?” 21
Adicionalmente, estes homens e mulheres são políticos formados em paí-
ses como a antiga URSS, Cuba ou Checoslováquia. Ao longo das minhas entre-
vistas, mesmo sem a presença das fotografias, não consegui que tivessem o
mínimo de espontaneidade. Cada palavra ou frase já tinha sido dita antes,
ensaiada. A câmara não os intimidava e tudo o que diziam eu já tinha lido em
livros de memórias ou de historiadores.
Uma das grandes vantagens da história oral é o facto de o narrador que
hoje relata ser diferente daquele que tomou parte nos acontecimentos de que
fala. Neste caso em concreto, houve uma alteração no contexto político que
os suportava – “O comunismo já não é um “horizonte de esperança” ou uma
“utopia concreta” como o defendia Ernst Bloch” – o fracasso do Bloco de Leste,
e a alteração da sua condição social de guerrilheiros a políticos, leva a modifi-
car, não os factos em si mesmo, mas o juízo que se faz sobre eles e, consequen-
temente, a forma como os narram 22. Na entrevista que acima citei, a reticência
em referir determinados objectivos das missões diplomáticas julgo que não
deriva tanto da deterioração da memória mas da adaptação da memória do
narrador ao contexto presente. Consequentemente, os conhecimentos mais
preciosos estão nos silêncios, nas reticências e nas deformações 23. E relativa-
mente à utopia socialista: “O que é certo é que o seu campo de experiência se
eclipsou da nossa paisagem memorial e que ainda espera a sua anamnese” 24.
Para além do silêncio, passavam-se dias sem que conseguisse falar com
ninguém. Marcava duas entrevistas por dia. E os entrevistados esqueciam-se.
E algumas vezes apenas dispunham de cerca de 20 minutos para estar comigo.
Salvo raras exceções, eu não sentia da parte deles uma vontade genuína em
partilhar a sua história comigo. Se a etnografia se baseia no conhecimento que
18
Tiago Matos Silva, “Os textos do silêncio
adquirimos através das relações que criamos com os nossos informantes, eu
– para um tratamento qualitativo do não estava a conseguir criar qualquer relação.
não-dito”, orgs, Paula Godinho, Usos da Relativamente aos combatentes do exército colonial também não posso
Memória e Práticas do Património. Instituto
de Estudos de Literatura Tradicional dizer que este processo tenha corrido muito bem. Quando me decidi a rea-
(Lisboa: Colibri, 2012). lizar o trabalho de campo em Bissau, pedi apoio logístico à Embaixada de Por-
19
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 119.
20
Roland Barthes. A Câmara Clara, p. 47. tugal, mais particularmente ao Instituto Cultural Português. Foi-me cedido
21
Chris Marker, Sunless, 1983. um espaço para trabalhar nesse instituto, sendo que o meu maior interesse era
22
Enzo Traverso O Passado, Modos de Usar
(Lisboa: Unipop, 2012), p. 112.
ter sempre à disposição um sítio com eletricidade e onde fosse seguro guar-
23
Alexandre Portelli, org., A morte de Luigi dar o material. No mesmo edifício trabalhava o sargento Viana, adido mili-
Trastulli e outros ensaios, p. 35. tar português, que foi o meu interlocutor privilegiado com a Liga dos Antigos
24
Enzo Traverso, O Passado, Modos de
Usar, p. 122. Combatentes do Exército Colonial guineense. O trabalho do sargento Viana é
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“eram fotografias que nos tiravam no quartel, com a farda, com os rádios
de transmissão, com a bazuca, com as armas americanas” (Entrevista VIII,
Abril 2013).
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que conduziu uma luta bem-sucedida contra o regime colonial. Vivemos uma
época de humanitarismo (e não de humanismo), e neste contexto já não há
vencidos mas apenas vítimas 31. Tal como outros movimentos emancipadores
africanos contra o imperialismo, este também foi silenciado, e recoberto por
outras representações “africanas” do mundo. Hoje, o povo da Guiné-Bissau é
outra vez vítima, na medida em que continua a ser objecto de salvamento. Por
seu turno, os países europeus, outrora colonizadores, como Portugal, conti-
nuam a cumprir a sua “missão civilizadora”, agora envolta na capa ideológica
do apoio ao desenvolvimento.
Consequentemente, toda esta experiência subsiste como uma memória
escondida, por vezes como contra-memória, pronta a questionar as grandes
generalizações e abstrações da historiografia convencional.
A fotografia como meio de memória foi escolhida devido às suas capa-
cidades analíticas na abordagem de representações subjectivas. Apesar da
relevância deste objecto per si, a análise das suas dimensões discursivas e per-
formativas permitiu aceder a novos dados sobre esta guerra, que revelam a
co-existência de versões em conflito que servem diferentes propósitos e inte-
resses. O trabalho do arquivo, pela sua natureza, determina uma certa maneira
de recordar e consequentemente marginaliza muitas pequenas histórias. Desta
forma, a história oral surge como uma abordagem para o estudo da memória
31
Enzo Traverso, O Passado, Modos de
que enfatiza as experiências de vida daqueles que a História enquanto instru-
Usar, p. 22. mento político insiste em apagar.
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