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CINEMA, EDUCAÇAO E HISTÓRIA PÚBLICA


D1MENSõEs oo FILME 'X1cA DA S1LvA'

Rodrigo de Almeida Ferreira

As conhecidas transformações sócio-históricas (lo pós 1945, que atingiram seu


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ápice na década de 1960, infüüram também o repensar historiográfico, cujos
exemplos podem ser localizados na New .P.eview [,,eft1 , publicação aglutinadora
ela renova.ção de pensadores marxistas, sobretudo ingleses; e nos três volumes
dirigidos pelos franceses Jacques Le Goffe Ji'ierrl' Nora que compõem a obra f-aire
ele /'/1istoire2 ; marco da Nova Histó1ia Cultural. Em meio à efervescência caracte­
i
rística daquelas décadas, destaca-se a reivndicação de que o conhecimento his­
tórico deveria romper os muros acadêmicos paa1 aLingir um público mais amplo
e não especialista.. 0m do,; resultados desse esforço; capitaneado pelo professor
Rapbael Samnd, da Universidade de O::s.ford, que promoVf;u nma série de debates

e oficinas sobre o tema; culminou com a publiq:ição do History Workshop JournriP,
em 1976, logo identificado com a promoção de uma história pública.
Desde então, o periócUco se tornou um espaço privi1egiado de debates refe­
rentes à produção e à divulgação da históúa que colaborasse para uma maior di­
fusão deste conhecimento. O amadurecimellto desta discussão pode ser mensu­
rado nos cursos de história pública presentes, sobremaneira, na Inglaterra, EUA

l. Dlsponivel �rn: www.newlcoftreview.org/?pageehistury.


2. Or'ginal,ne111.1• lançada em francés. em 1974, a <>bra fm logo editada no Brasll, em 1976, sob<> tírulo
História: Noiws prable n,at., no1ms ��t/ordo.gens, no•.,-os objetos.
3. Disponível em: hw_í.oxfordjou,:lials.o,g.
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e Austrália, países onde a pre�rnpação cor\1 a produção, gestão e publ idzação do rica para estimul.ar reflexões históricas, pois a.borda o período colonial brasileiro,
saber histórico, especialmente para um público não academico, é crescen le. e111 especial a 1·egião produtora de diamantes da tapítania de Minas, no sécu­
No Brasil o tema é ainda incipiente, carecendo de uma discussão teórica lo }..'VIII, a partir da vida da ex-escrava Francisca da Silva, cujas re'j.)rêsenta.çéles
mais elaborada. O reflexo desta carência é a inexistência de rnrsos de graduação,
foram amplamente apropriadas pela sociedade brasileira,7 Para ating_ir esse pro­
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ou mesmo especialização, cm histól'.ia pública no país. Contu.dc1, a ausência do
pósito, primeira olharemos para a rela.çao entre cinema e hist� íia p;:ira, então,
refi.namenlo teórico ll. à.o significa que não sejam desf>nvolvidos Lraba.lhos neste
perceber a dimensão do uso fílmico na educação histórica, tanto no ambiente
campo. Afinal, sinteticamente pode-se entender história pública wruu produção
escolar quanto em espaços não escolares.
de conhecimento his tórico, realizada nào exc.lusivarnente por um historiador,
Datado do final do século XD{, o cinema se desenvolveu, em consonância
com ampla cirrnlaçào na soc.iedade. Trata -se, portanto, de uma pnítica que pre­
q:,m ;is nmovações tecnológicas. Logo deixou de ser uma cur,io;;�d�de mecânica,
cede a sistemat.izaçào metodológica s1;b ,)- c.rivo acadêmico.
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Ú inevitável associar o o·esci,mento <le trabalhos no campo da história tornando-se lma express:"\o artística e cultural caracteristf�a do século XX e al­
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pública com o desenvolvimento dos meios de comunicação. Novas linguagens de cançando ampla popularidade, a ponto de ser reconhecido corny a sé( ifl;111 arte.
\ comu11kaçao e suportes, como a televisão,. c inema, vídeo cassete, DVD e internet, A relação entre cinema e história é identificada desde o surgimento da lin­
dinamizaram também a abordagem de temas históricos e a sua circulação. O guagem cinematográfica. Dada a amplitude do púbhcq atingi.do por um filme, o
impacto da produção históri�a e sua ampla difusão in.fluenóarn, naturalme1lte, cinema-história é um importante veto, para a histó.ría pública, ,afiual.,
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no processo de educação da sóciedade. desde o i nicio, o cinema tem se favorecido de acontecimento5 bis'tóricos e atle.p­
Destacando o papel do cinema ele gênero histórico', ou cinema-história, e taçôes de cUssicos da literatura. Nos anos mais recentes, tein emergido tim novo
da produç.ào historiográfica , a pr�posta deste texto é analisar a relação entre a gênero ele fi lmes, que têm como ponto de partida o problema de .i:ecµperar o
história púbüca P. a educação histórica. Para isso utilizamos o fi.lme Xíca da Silva5 , passado a partir do presente.. (S�muel, 1981, p. 172)
com direção de Cacá Diegues, lançqdú em '1 976.'; Est;i película é potencialmente O valor das imagens como verdade susàtou discussões aindáhô século XD(,
4. José Ma.ria Ca r�riús Lera define três tipos de fi.lmes hfatóricos: (1) com valor l,istó, ico ov �odoló1,�co, como indicava, em 1898, Bolcslas Matuszewski, ex-assistente dos irrúãos Lumiê­
nu1.,; que nào têm intenç�o de ser UJn;i 1·ei,te�: entação histórica; (2) gênero l:.i�tórico, '(Ue se sustentin, re: "O cinematógrafo não dá talvez a história integral, mas pelo menos o que
em acont:edm�ntos histórico�, porem sem se atl:tem a um. a rigoro.s,-\ rct:onstituiç3n; (3) com lnr.endona�
li:dade his:t6Tica, cujo objetivo ê repres.e11tai um a.o,Jntecimcnto, sendo el<l.Lvtddf>s c:om maior rigor t!m ele fornece é incontestivel e de uma verdade absoluta" (Matuszewslü apud Kor­
te,mos acadêmicos. rcsgu. ardndas as liherdade, autor�is. V,,, Le,a (l.997), nis, 1992, p. 240). Uma in terpretação distinta apresenta o cineasta russo Sergei
S. Ficha técnica básica: títuln -Xica du Silva,; diretor - Caca Diegues; rolciro - Cad Diegues e ,João Felicio
Eisenstein, que chamou a atenção para a manipulação da imagem, destacando
dos Santos; ano de l a u,amento - 197tl: naciona. llda <fo - Brasil; k1ca.çào - Dia.maulin;,iMG: companhias 1

produtoras -J. B. Produ.ções CinematogrJftcas Ltda. e Distrifiltnes Ltcl,, .: companhia coprodutQr� - Eut• g\le sua compreensão deve ser realizada a partir da montagem f-ilmica (Rornís,
brafilme S.A.; produção - Jarhas Barbosa; cámera - José Mcdeu-os: niontagem: Mair Tavares: musica 1992). Analisar o filme como imagem-verdade já não é consensual. O debate
- Jorge Ben e ftoberlu Menescal; elenco. - iezé Motta {Xica da Silva); Walnwr Chagas (João Fernandes
de Oli<'ei .ra); Altah Lima (intendeute), EE<e Mata.vilha (Horténsia), Stepao Ncrcessian tJosé), Rodolfo prosseguiu por to<lo o século XX e é pauta ainda hoje. Mas, apesar da ideia do ci­
A rena (sargento-mor), José Wilker (co11de Va!adaies), Marcus Vinicius (Teodoro). -� ficha técnic• com· nema como verdade histórica já ter sido há muito repensada, ainda há lugar para
pleta está disponível em: V,f1,,Jv.•.dnematcc::.� .g9v.br.
a percepção, tão cara a Matuszewski, de que o cinema é um tegi.stro autêntico e
6. Cacá Diegues, como é popul,u·me.nte conheddo o drieasta C:irlos Diegues, se destaca no meio cinema­
logrâfico com uma vasta fil ii,ografi. a.. Muicns de setu; tít ulos .ikançaram sw:essos de público e bilhete1ia, '7. Considera·se que ,, s representações culturais são construidas e apreendidas pela popttlação. que pod �
como G,mgn Z11mba (1964); Xicn da Silw, (1 97G); By� IJye Llrnsil (1979); QHifoml,o (1984); Tiet,1 (1995), rej nterpretá•las e ressignific.i-bs. Para os con<eitO$ de representação culrur.il e aproprlaçiio, ver Char­
Orfe« (1999); ;, Deus é Brasil,il'o (2002), tier (1990).
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preciso de .acontecimentos, sobre tudo fora dos meios acadêmicos e dentro do vànc:ia de concentrar a s análises no conteúdo, para pe'(ceber a s representaçfü�s e
gênero documentário. 8 lapsos, ch eg. ando assim ás análises/conna-análises d,1 soded;;ide.
Percebe-se, portanto, que o diálogo enlre cinema e hlstória é intenso, com­ Reconhece-se a infiuéncia teóríca de iVl.1rc Ferro por trazer o cinema para o
pl exo e ambíguo. Ai11da assim, foi apenas no final da década de 1960 que houvE campo da história. Não obstante, algumas q,u estões propostas pelo autor foram
um maior esforço da academia par.1 se compreender essa fron teira. Esse pionei­ redimensiona.das. O hjstoriador Eduardo Moi•ettin (2007) concorda com Feno
rismo ê atribuído ao historiador francês Marc Ferro, em funçào da publicação sobre o d oema ul trapassar os limites ideológicoB. Entretanto, não wnobora sua
do artigo O {i.lrrrt'.: Uma contra-análise da. sociedade?� Naquele contexto, o autor -proposta de aná.lise da relação entre (inema e história por u m esquema de dico­
destacav, a .a, importância do cinema, tndependente do gênero, como fome his­
tomias: "visível" e "não-visível"; "análise'' e.· "contra-análise'', como se a análise
tórica moderna i)ara o historiador, bem como alertava para a resistência ao seu
devesse se incltLil' ou no campo da história ou no da contra-história. Segundo
uso: "seria o fihnP u.m doc umento ind esejável para o historiador� Muito em breve
Morettin, o filme não pode ser analisado em ;:ispectos separados: enredo e arte; o
centenáno, mas ignorado. ele não é considerado nem sequer entre as fontes mais
q11e a,carretaria a perda do ca1·áter poliss&rrnco dâ imagem.
desprezíveis. O fi lme não faz patte do universo mental do histoúador" (Ferro,
Pelo conrririo. afi.nuamus que um filme pód� abrigar leltw,as opo�tas acerca de
1992, p. '79).
ul1\ determinarlo fato, fazendo desta lP ru;::,,I) um dado intrínseco à sua própria
A preocupação de Mal'c Ferro o levou a reivindicar a construção de uma
estrntma ,nterna. A perc-epçã.o desse movimento deriva d<> rnnhedmento espe·
metodologia para utili,:ar o filme como uma fonte h istórica, considerando o filrne
cif,co do meiu. o gue nos permite encontrar os p,,ntos dé: adesão ou dt: rejeiçiío
na.o apenas em seus aspectos cinematográficos . Segundo . o autor, a aná.lise fO­ existentes PntrP o proj,� to ideológico-e&1et1co de um determinado grupo social e
mica permite ide.ntifir.ar elemen tos que ajudam a compreender a sociedade para a sua formataçao em imagem. (Mon±tt in, 200'/, p. 42)
além das representações operadas pelos grupos dominantes, pois o filme
Desde as primeiras considerações de M:itc Ferro, os pr,ocedimentos ineren­
destrói a imagem do duplo que cada instituição. cada indivíduo conseguiu wns­
tes à análise fílm..ica possuem urna cl iroensiio comurn, ainda que existam partirn­
tnLir di;rnte d;i sociedade. A câmera revela o funcionamento real, diz mais sobre
laridades entre autor.es/escolas diferen tes. Destaca-se, nas reflexões m.ais con
cada um do q,te seria d.esej.ível ile mostrai:. Ela desvenda o segredo, apresenta o
avesso ele uma socie,fade, s�us "lapsos''. Ela atinge suas estruturas. (... ) A ideia de temporâneas, a proposição rnetod0Jóg1ca do espanhol José Caparrós Lera, 1" Em
4ue um ge5to poded,1 ser uma frase, ou um olhar, um longo discurso, é comple­ síntese, pode-se entender que este processo con templa duas dimens� es interde­
tamente insuportável: isso não signifiuria qu. e a imagem, as imagens_ t. .. ) consti­ pendentes: a externa e a interna.
Lueru a matéria de uma úutra história quê não a História, uma contra-análise da A análise extern:i consiste em identificar e contextualizar u momenlo em que
sodedad.?? (F'errn, 19�2, p. 86)
a produção foi realizada. Nesta etapa, é fundamental que o esforço de p esqufaa se
Em :.ua proposição metodológica, o autor sugere que, para se analisar um co)'lcentre- se em analisar a produção do roteiro e sua relação com as fontes para
filme, sejam avaliados os seu� elementos internos, próprios da produção fílmica;
a sua idealização; perscrutar as rela,;ões políticas e de fmanc.iamento inerentes à
e externos, relacionados aos textos e cr[tícas decorrentes. Ressalta, ainda, a rele-.
10. Para o autor, ba quat10 ernpas a serem ohse,;v.,das: ( l) Contextualiza{àO. tanto histórica, em que
8. Bill Nichols defoodc a ideia d� que há dois géneros fílmicos; o filme d, fic.çn., e o filme niio-fii:ç,fo, já que, se aborda as reiere11cias históricas e sociopoHtit3,; do período representado, quanto fllmica, em que se
p<1ra o &uHir, "todo o filme é um docurnenra.no. ( . .) pmler/-amos dizer que existem dois tipos de filmes, analisa o momento da produç1,.o do filme: {2j Produpi,o artistica e comercial: se ilwesliga o pro�esso de
(1) dotunworários de satisfa;.ão de ikseíos e (2) documentários de icepresenração soc.ial" (Nichols, 2005, cria.�ãô. composição a,·tisl'ir.a, financiamento e clist'l·i:iulç.ão: (3) Análise du fi.lme: o pesquisador deve
p, 26). buscar desvendar as proposições ideulógica.s, O!i deut�nLOs e!>têtkos, as menst1ge11s e a ·1 ecepçâo pilblica
9. Ori;,�n,1'.mente, Mar� f�rro publicou o artigo na ob,·a dirigida por Jacques Le G0ff e ?kne Nora. em do lí.lme: (4) O impacto do filme: avalia-se a repe,cus�1.o sociocuh mal do tilme, t,ai,to no momento d.e
19?4_ Neste léJ<tO, foi utilizada a publicação brasileira (feno, 1992). seu lan�amento quanto a long.:, prazo. Ver Lera (l�/91$).
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pro<luçào elo filme; identifi, car possíveis processos


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de censura extern<l e/ou inter- anos de existência, o I. NCE se tornou um importante centro p.rodutor e d/fusot
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�a; questões mercadológicas; contexto do lançamento; repercussões do filme. de filmes ligados às temáticas educacionais. Além desta atuação, 'cabia ao INCE
Já a análise interna volta-se para 9s elementos expLícitos e de conteúdo pre­ preparar o professor para utilizar o cinema, capacitando-o para o uso 1esta mo­
sentes no filme: os diálogos, os cenâr·i� s, a it1dumentátia, enfim, a narrativa e derna ferramenta didática. ·' •
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seu discurso histôric.o. A seguir, volta-se para a análise daquilo que o flme diz Mesmo após a extinção do INCE, quando foi subst-i.tuidó pélo l�stituto N.:.-
indiret a mente: ironia, mensagens subliminares, imagens t1ão-canõnicas 1 1 , fuga donal de Cinema (INC), em 1 966 15. os fümes educativos wn�i(1'uaram ll ser con­
à censura. Por este prncesso, aliado 'à análise externa, é possível vislumbrar de siderados. A criação da Embrafilme, no final de 1969, visava colaborar com o
modo crítico a construção e clifosào de representações culturais. INC, atuando na promoção dos filmes nacionais. Contudo, tendo,se torn;ido cada
A complexidade da relação enh·� um filme e o saber his tórico é, portanto, vez mais dependente da Eni,braúlme, o INC foi extinto pelo governo miiitar em
!
considerável, e é ponto de reflexões desde o inicio da história do cinema. Cedo .1 1'9 75. A Embrafilme passou, então, a concentrar todo o assunto 'rel'acionado a
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Lambém foi percebida a potencialià ade do uso do ftlme com fins educativos. A cinema, inclusive o de natureza educativa, conforme detenninava o.a rtigo 5 ° de
historiador.a Rosália Dual·te destaca a irr!portância do cinema para a educação seu estatuto social. Ademais, a relação entre cinema e educação p.�P.ce ter sirlo
e socialização de todos, desde a mais tenra idade, pois "ver ídrnes é ltma práti­ redimensionada, já que roteiros com temáticas consideradas importantes para a
ca soda! tão importante, do pop1..o de vista da formação cultura) e educacional compreensão política e histórica eram considerados projetos vl.áveis, recebendo
1

das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas apoio fmanceirn e promocional. O filme Xica da Silva, cuja pri:iclução começou
justa.mente em 1975, usufruiu desse apoio, sendo inclusive a prodúção mais cara
1

mais" (Duarte, 2009, p. 16).


' 1
No Brasil, pensar o cinema com finalidades educativas remonta à década de até então produzida no país.
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1920. 12 Mas foi em 1932 que o governo federal procurou regular a produção e Após a redemocratização e a promulgação da nova Lei de Diretri�es e Bases

exibição de filmes, instituindo a cen�ttril e tornando obrigatória a exibição de fil­ d.a Educação (LDB) 1\ em 1996, e dos Parâmetros Curriculares Nadonais (PCN),

mes brasileiros. 13 Na década p.e 1930, o presidente Getúlio Vargas mostrou-se um em 1 998, especificamente para o Ensino de História, em todos os n'íveis de esco­

entusiasta da contribuição que o filme poderia oferecer à educação e à formação larização, o cinema passou a -ser entendido como mais um recurso 'a set util· iz.ado

identitária brasileira (Sirois, 2008, p. 29-30). Em janeiro de 1 937, meses antes de pelo professor no processo de ensin o-aprendizagem.

desferir o golpe qué iuiciaria a ditadurç1 do Estado Novo, Vargas regulamentou o De fato, constata-se que o dnema educativo já não é ma :is pensado exclusi­

funcionamento do Instituto Naciqnal de Cinema (I NCE), "destin.ido a promover vamente como produção voltada para fins didáticos. O aspecto educativo de uma

e orientar a utilização da ciner11atqgrafia, especialmente corno processo auxiliar película não está restrito, portanto, àquelas que integram projetos governamen­
tais, como fui o caso ela produção gerenciada pelo INCE. A potehcialidade edu­
do ensino, e ainda como meio de educação poplLlar em geral". M Ourante seus 40
cativa dos filmes ultrapassa a prnduçi-'i. o para uso pedagógic-0, esta-1do também
11. l'ara. í:lla� Sallba. imagcn.<en11ônlt11s são aqttelas que "wustituem pontos de re.foréncia inconsden1es,
presente nas produções com erciais. afinal "o cinema é o campo no q,úl a estética,
sendo. or)rtanto, c!e,ís ivas em :;eus efoitos snbliminares ele ídemifica çso colet i\•a·• (Saliba, 2007. I?· 88).
O autor salienta, em contt'apartidtt, ,, ré:lev.i.._�da da inulgem não•wnónica, ou sej a, u111à lrn.ageru aJterna o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos sào sintetiz.ados numa m<1�­
tiva i111bulda de valm-es e radonaJ;dade para a reflexão histódca. Ver Salíba (2007) . ma obra de arte" (Napolitano, 2008, p. 1 2).
12. Em 1928. Fr-rnanclo de Azevedo, cu j o destacado papel nos proj etos edurncioDais (lo período o leva1ia Já não predomina mais aquela visão da história como representa�:ão da ver·
• ••r um ,ln, signatários do Maniíesto dos Pione iros pela Educação (1932), desucava a ímp ortftnda do
uso do cinema na edu<..,\'.ào ( Simis, 2008 , p. 25) . J.5, Ver Decreto-lei nº. 43, de 18 de novembro de 1966. Disponível �:n: WW\v.sQleis.adv.b t/cinema p,>li·
13. Ver Decreto 11 ° . 21 .240, de 4 de abril d.e 1932. Disponlvel em; "''"'"'-�ncine.gov.br. tic0J1acio11�l htm.
14. Ver Lei 11•. 378, de 13 de j aneiso de 19'.P, Disponível em: �ortal.mec.gov.br/arq uivos/pdf/L378. pdf. .16. Ver Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de J..996. Dispm1ivel �m: www.planaJto.goy.J,i:/ccjvil,
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d.ade, mas sim corno construção de interpretaçõ,�s sobre o passado. A primeira. nas Ger;iis està atrelada às riquezas do o uro e dos diamantes, descobertos no
visão levou à curiosa posição do historiador Jonathas Serrano, ao lançar o livro final do século }..'VII e início do XVIII. O esplendor daquele período, que ainda
intitulado Cinema e educaçiio, em 1931, de defender o uso do filme cm quase to­ pode ser visuali:,:ado nos conjuntos arqui tetônicos civil e religioso da.s cidades
das as disciplinas, com exçeçâo da Flsica e da coloniais, revalida o mito do eldorado, Entretanto, o filme permite a pergunta:
Históri'a, Cjn� estuda o passado, o cinema também cabe pouco. Caber.í, sim, de quem se beneficiava de tanta áqueza? A populàção era bastante pobre, e no caso
agora por diante para fixar os acontecimentos contemporâneos, que já deviam da região diamantina sofria restriçõ.es ainda niaiores. 19 Também é possível perce­
ter . exi'gído o -recolhimento dos filmes que fossem documentos para a História ber as relações inerentes ao sistema escra-vista, cakatlas na exploração violenta e
C..). O� clt1 restauração históric<J, não são aconselháveis. Por maior que seja o nas humilhações; mas que, também, podem a.ssinalar possibil'idades de arranjos
lllXO de,ai. gu11s, há sempre larga porção de fantasia, em que não e possível marcar entre o senhor e o escravo, como exernplificacl.o t>ela alforria de Xíca em decorrên
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a lillha divisória da realidade. É essa a opinião d,1 maioria dos especiaJiscns dé
eia de �eu relacionamento amornso con'l o contratador dos diamantes. 10 Outro
cinema ;:,de história. (Serrano & Venâncio Filho, 1931, p. 79) /
eiKo temát ico diz respeito ao regime monárquico, cuja autoridade reaJ - embora
Cestamente, a renovação histoiiográfüa assinalada no Lnício deste texto foj distante, já que o rei residia em Portugal - era inquestionável. Ainda assim, seus
essencial para transformar também a relação entre os filmes e a história. A inter­ leais foncionários muitas vezes aproveitavam da estrutma burocrática em be­
disciplinaridade e a a,m pliaçâo das tipologia� de fontes, que tanto dinamizaram a neficio próprio. Ressalta-se que o filme foi realizado durante a ditadu1·a militar,
\
pesquisa históriGa, tambérn foram usufruto de cineastas e roteiristas. sendo inevitável reconhL'Cl'Y, em um exercício d� contra-análise histórica, corno
É o caso do filme Xirn da Silva. Lançado em 1976, obteve grande sucesso de sr�gere Ferro (19.92). algumas criticas ao poder autoritário, à corrupção e à vio·
público e bilheteria. Selt rnLeiro foi redigido a partir de uma parceria entre o dire­ léncia praticada pelos administradores.
tor Cac.i Diegues e o escritor João Felício dos Santos. O filme narra. a história da Os eixos temáticos iden li rtcados no fi1me Xica da Silva, porlanlo, oferecem
escrava Francisca, que teve um longo e pofêmico romance com o con tratador dos conhecime nto histórico ao espectador. Contudo, é essencial reconhecer o local
diamantes, João Fernandes de Oliv�·ira, então um dos homens mais poderosos desse p(tb] ico espectador. Sendo um público esi:oldr: a) a análise fíl m ica, orienta
de Minas, pervertendo as regras de sociabilidade vigentes. da pelo professor, deve1á ocorrer em conson�ncia com um wnjunto de conteú­
Mas qual a relevância deste filme para a divulgação da História? Primeiro dos históricos, geralmente paut ados em textos e materiais didáticos; b) dew-se
porque, ao naTrar a vida da negra Xica da Silva, recria-se, por meio da repl"e­ respeitm· a recomendação para a faixa etária, o que restringirá o u�o escolar do
sentaçào cili.ematográfica (cenários, figurinos, diálogos, expressões corporais), o filme ao Ensino l'vl édio. Nào obstante, é póss[vel ao professor selecionar cena$
período colonial brasileiro. Trata-se de um momento histórico presente no ima­ específicas - que nào atentem contra a faixa etária discente - pa1·a abordar pon­
ginário soda1 17 brasileiro. Sob essa perspectiva, o filme aborda vá tias dimensões tos privilegiados em �eu plano de ensino e, dessa forma, ampliar a circulação do
da colonização portuguesa e traz à tona representações da sociedade setecentista filme entre os alunos do ensino básico.
mi neira_La Caso o filme seja assistido fora do �mbiente escolar, há duas possibilidades
Um bom exemplo é o espaço onde se desenvolve a trama. A histót·ia de Mi- de perf ü de espectador: a) alguém que já cursou o ensino regular, logo capacitado
17. O irn1:;gind1-io soda! ultrapassa o aspecto simbóli. co presente 1,a sodedaàe. põis faz pãt'te ,· ln cotirl i� 110 em um conhecimento histórico - ao menos quai1do consideramos os princípios
dos agentes soda1s 1 Cô-rl$tnlindo e redefinindo �rur:,os e proj�ros polít-icos revel�,riores das rontradi� rliretivos curricularesj b) algném que nunca cursou a escola ou a abandonou an-
çóes sociais e ,da montagem das estn11;ur�s de pod.;.r (Baczko, 1 985),
18, A sociedade mineira setecentista pOS$1.Ji múltipla.s ·reprcset1caçõe.s. AlgtLns tl'.!mar. canônko:-; rê.m sido 19, Ver Ferr0-ira (2009) e furtado (1996).
pli•tilegfodos neste procc,so, como 'f irauentes; pata suas rep,esentaçôes no cinema, ver Ra,,,os (2002). 20. É vasta a produçao bibliográfica sobre o esCl"avism,, no Bra,il - ver Gorender (1991), �,'lattoso (200l)
Já P"ª suas representações icooográfica.s e na educação, ver Fonseca (2001; 2006). e Paiva (19fl5i
tes de aprender sobre a coloniza\:àO do Brasil. Para ambos os perfis, no entanto, ressignificaram os aspectos ligados à beleza 21 e à sexualidade; fazendo desses
é latente a opot tunidade de aprer1 dizado, seja complementar ao conhecimento atributos as maiores qualidades da famosa mulatcJ do Tejuco. J.oaquim Felício
escolar, seja em primeiro contato com aquele tema histórico. dos Santos, ao registrar a história de uma ex-escrava, ainda que de modo pejora­

Uma segunda justificativa da relevância do filme Xica da Silva para a educa­ tivo, retirou Francisca da Silva do anonimato e abriu as portas para sua poste,ior
consolidação no imaginário social de Minas Gerais.n
ção histórica e a história pública deve-se ao fato de abordar a vida ele um agente
Xica da Silva tornou-se uma imagem canônica do periodo da escravJdào, es­
histórico com destaque na sociedade mineira do século XVl l l. Entretanto, se­
pecialmente ligada à resistência aos sofrimentos da condição cativa e à espci·ança
guindo essa U11ha argumentativa, uma nova questão é pertinente: como, e até
de superação. Uma projeção interessante para a sociedade brasileira conteinpo·
que ponto, a história da ex-escrava Francisca da Silva revela o conhecimento so­
rânea, sobretudo para as parcelas mais pobres. Daí a frequência com que Xka da
bre a h ist<ii-ia de Minas eíou; quiçá, do Bi-asil colonial?
Silva e Ol.tt ros personagens ligados à escravidão foram representados em outros
Para desenvolver esta reflexão é preciso con siderar que a personagem Xlca da
campos da cultura nacional. Além da literatura em verso e prosa, os escravos e
Silva é bastante populaT na cultura brasileira. É certo que o filme de Cacá Diegues ex-escravos brnsileiros foram temas na música, no teatn1, nas escol.as de samba e
e a in terpretação da atriz Zezé Motta, no papel da protagonista, contribtúrarn nos livros acadêmicos.
para essa popularizaç.:io. Mas isto não se deve apenas a exib ição da história nos Antes de se tornar filme, o tema Xica da Silva foi c;imavaliza. do. Em 1963, ;:i
cinemas. Na realid;ide, o próprio. fato da história de Xica da Silva se tornar filme escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro levou para a Avenida Presiden­
indica sua inserção nos cõdig(ls culturais do brasileiro. te Va.rgas, onde ocorriam os desfiles, o enredo A mulata que era escrava, composto
Desde o final do século XIX, a bist6ria ela ex-escrava que conquis Lou glória por três partes: "a origem da escrava Xica; a liberdade após o casamento com o
e poder ao se tornar companheira do contratador João Fernandes de OUveira contratador João Fernandes de Oliveira: e os seus caprichos, representados pelo
começou a ser difu11dida. O memorialista Joaquim Felício dos Santos publicava lago que mandara construir para passear de barco, o teatro, a liteira para assistir
as histórias do Dist rito Diamantino no jornal dia mantinense O Jr.quitinhonha, em às missas e todo o luxo que ostent;i va". 2,

1861, que foram compiladas no livro Memórii1s do Distrito Diamantino e do Serro A ousadia do carnavalesco Axlindo Rodrigues em representar a história ele
um personagem negro funcionou, pois a escola sagrou-se campeã ao.realiz.ar um
Frio, cuja primeira ediçào foi lançada em 1868. Nas Memória$ foram lançadas as
desfile considerado perfeito, e que contribuiu para a renovação da h.istólia do
bases de representaçào de Xica da Silva:
càrnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro. O sa1nl7a-enredo Xica da Silva,
!:oi célebre está mulher, única .pessoa ante quem se curvava o orgulhoso Con ·
composto por Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho, foi um grande sucesso e, em
tratador; sua vontade era cegamente obededda, seus mais leve.� ou frívolos ca­
parte, reitera a visão oitocentista.. Mas, se a beleza da Xica permanec �a secundá­
prichos prontamente sal isfeitos. Domiuadora no Tejuco [nome do arraial, hoje
ria na fotTa elo samba'\ a interpretação carnavalesca de Isabel Valença, esposa
Diamantina], com a influência e poder do amante, fazia afard é de um luxo e gran­
deza, íJUe deslwnbrava m as familiar, mais ricas e importantes (. .. ) Francfaca ela
21. Segundo Ec o (2004), o conceito de belez.1 é uma construção histórica, variâvel<om os valores sociais.
Silva era uma mulata de baixo nascimento. (. . .) Tinha as feições grosseiras, alta, 22. Pa ra a históda de Xiclz da SilPa. ve.r Vasconrnlos (1966); Santos (1976; 2007); Abreu (1983); e l'ur·
corpulenta, LTazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira anelada em ca­ tadc, (2003).
chos pendentes, como então SI! usava; nào possuía graça, nào possuía heleza, não 13. Disponivcl et:l! www.<algL:eiro.eom.br/S2008/lndex.asp.

possu.ia espírito, não tivera educação, enfim, não possula atrativo algum, que ?4 Os versos inicíais do samba--,,medo dimensionam essa visão: "Apesar/ De não poss,iir gTaode bele•
za/ Xica da Silva/ Surgiu n.o seio/ Da mais alta nobreza/ O contratador/ .foão Fernandes de Cilivei.J"a/ A
ptidesse justificar uma forte paixão. (S an tos, 1976, p. 1 23·4)
cómprnu/ Para ser a sua companhei,·a/ E a mulata gue era escra,"11/ Sentiu forte t 1·�nsformação/ Trocac,­
AproprLações culturais postedores reiteraram o poder da ex-escrava, mas do·o gemido da. senzala/ Pela fidalgu ia do salão".
do presklente da escola à época, a trouxe para o primeiro plano Sua bde·t a e in­ A nova linguagem consolidou uma Xica da Silva sensual e ardilosa, desafia ncl<,
r
terpretação lhe torna- am conhecida como a ei'erna Xica dr S1/vn. Uma associaçào a estrutura social domina nte e ousando reivindicar t:spaços vetados à maioria
que se repetiu também com as atrizes Zezé Motta, intérprete da personagem no da poplllaçâo. No mesmo caminho segueró as representações das artes plásti­
cinema (1976) e Tais Araújo, que deu vida a Xka da Silva na novela homônima, cas, como exemplificam os painéis pintadoii por Márcio Ávila na Casa de Xica da
veiculada pila extinta Rede Manchete (1996-1997). Sil.va, antiga residência da ex-escrava e hoje espaço turístico-cultural, onde tam
O impacto do desfile ao Salgueiro foi relembrado por Cacá Diegues como bém funciona a sede do Instituto do· Patrimônio Histórico e Artfatirn Nacional
uma das referências para elaborar o roteiro7\ em conjunto com João . Pelicio dos (IPHAN), em Diamantina.
S,mtos. Seu e.oi-roteirista ern um literato que se destacava em textos de ficção As representações de Xica da Silva v·àssuem grande fle>ribilidade interpret a­
1
histórka , redigindo, apesar das críticas feitas pelos historiadores acadêmicos, 1 tiv.� , constatando-se transformações ém suas formas e aprop1·iações. Suportes
vários títulos embasados em pe,sonagens e acontecimento� históricos.' 6 Uma i distintos operam as ressignificações de acorde, com seus objetivo� e seus profis­
1
curiosidade na elahoraçào deste roteirn é o fato de que ele se tomou um livro , sionais. Esse processo revela o caráter poli�sêmic.:o da sociedade, cujas represen­
l,mçadci simu.ltaneamente ao filme; como destacou Cacá Diegues, um "caso raro tações refletem interesses de reconhedmento f> exercício de poder pelos grupos
de um fitmc que deu origem a um livm". 27 Outro destaque é a reedição d;i par­ sociais. O poder simbólico contribui par� divulgar e reforçar a legitimidade de
\ ceria n,�s me,:anos moldes, em 1984, para o filme Quilombo, mais um sucesso na ações políticas e culturais de grnpos espedficos. Mas também pode deslegitimar
filmografia do cint: asta.W determinada realidade, favorecendo a ruptura e a inauguração de um novo pro­
O falo de ser sobrinho-neto de Joaquim Felicio dos Sa11tos certamente o jeto político, pois
influenciou na redação do roteiro, embora a Xica da Silva representada no filme os imaginários sociais constituem ou.tros r.antos pontos de referência 110 vas­
seía me11os submissa ao contratador, tendo a sua força caJcada na engenhosi,hde t·o sistema simbólico que qu,tlqu.er coktív:idade produz e arravés do qual, como
e sensualidade (Soare�, 2008). Elemento importante nessa ressignificação é o disse Mauss, ela se pen.epdona, <livi<le :; c:1abor.:. os SéU� próp1·ios objetivos ( ... )
O imaginá.rio social elaborado e consoli'dado por uma rnletividade ê uma das
papel . da ,trilha sonot,1 , em especial o suingue do tema Xiw da Silva, composta e
respostas que esta dá d.os seus conflitos; divisôc.s e violências reais ou potenciais.
interpretada por Jorge Ben. Mais de três décadas depois, a música pennaneçe
Todas as coletivid;,,des têm os seus modos de Í\r:n donamento específicos a este
viva na mem(gia musical popular brasileira.29
ripo ele r�presentaçõçs. (Baczko, 19!!5, p. 309)
P9}le·se diz�r que, desde a exibição do filme, em 1976, essa reapropriação
A leitura e a incorporação de representações pelos filmes favorecem o refo�­
na represent�çào de Xica da Silva se consolidou no imaginário social brasileiro.
ç.o eíou recriação de interpretações históricas. Trata-se de u m proces8o c<lucaciu­
Vinte apos após estrear nas grandes telas, foi feita urna versão em telenovela.
nal, que náo necessariamente se atrela à rnbrica do saber histórico produzido na
25. Caól DJei:ues nfirmavà que ,mno pouc.as as referências históricas sobre o rema, desucando a fanú academia.
liazid�rle com o enredo do Salgueiro, o poema de Cecília Meireles e .loãc, Felicio dus Santos; ver llangel
Contudo, eidste uma legítima preocupação entre os historiadores quanto
(1976),
26. Enµ·e alguns livros do ,mtor estão: Majol' Ca/abar (l960); Ganga Zumba (1962); Carlota Joaquina• - ,\ aos (re)ajustes nas form;i,s de represen tal' um •sujeito ou tema hbtórieú, opera­
rninh� de!>nssa (1968), Disponível em: www.joaofdidudossan, tos.eom.br/home.hnnl. dos por suportes distintos, como os de 11a rureza artística, que às vezes fogem
27. Entrevi�ta ao jornal Bswdo ,t, Mir,as, "m 03 de março de 2007. às assertivas historiográficas. Zelosos peta divulgaçao de informações históricas
28. Disponível em: w,,,.,,.,.,dncmateca.org.b,·.
precisas, os historiadores reafirmam a necessidade do rigor metodológico no de­
29 Os vers<>s inkiais da cançlio, "ai ai ai ai ai a.i ai :ri ,lÍ Xica da... Xica da... Xira da ... XJc� da Silsa, a
negral" carrcg.m a. perspectiva s�xualizada de Xica da Silva, sobretudo quando atrelada à interpretaiÕO senvolvimento das pesquisas, como assi nala Júnía Furtado na introdução do seu
faC"eir,1 que a at,r,lz. Zez.é ?vlotta empreepdeu � per.s.onagein_ livro C/,ica da Sil,,c, e o contratador dos diamant�s: O outro lado do mito;
,, , . t

nu

Bruxa. sedutora. hernina. rainha ou esc �4va: a J1n�l, qu,cm era Chica da Silva? u�1a mútua influência. Neste sentido, muitos lugares-c.ómuns, ou pontos de re­
Após quase rrês séculos, a falta de mna pesquisa histórica sobre sua vida con­ ferência, são reforçados e/ou recolocados pela fü111og-ra.fia:
tribuiu para que a pergunta permanecesse 'sem resposta efetiva, Este trabalho
Em p11mcirn lugar, os intelectuais e consultores fornecem ao diretor <? qu):Jdro
procura conhecê-la não com clli'iosiçlade, nem como exceção, 111as, por meio dela, ,• -1
geral - a leitura du lema oriunda já de um reco.rte bibliográfico, a fontes escritas
lançar lu.z sob1°e as derna.is mulh eres daguele período, inserindo-as n;i história. 1
e visuais a serem consultadas e reproduzid;is, o material musital a s.er uti.\izad_o
Só assim é possível libertar o mito dos estereótipos que lhe fonm irnp11tados ao
e a poslç20 da obra dentro de um conjunto de iniciativas de época'". (.Morettln,
longo do IPm po. (Pl1rtado, 2003, p. 19)
2001, p. 5)
Em grande medida, o c,lnem,a-história é confrontado pelo historiador
O cinema é recorren te em usar outras produções artísticas e .icadêmicas
diante das incorreções histór.icas con i'í&�s nas produções cinematográficas. Está
1 Lomo lastro para seus argumentos. O filme torna-se, assim, um ca:ffipO privilegia­
d;iro que não se deve esperai' do cincr'na.-história a recriaç.5.o da história; d.o con·
trário seria urna visão historioWáfica. q1!as� posit ivista, próxima das considera­ / do para a. h;stória pública, funcionando como c.ana I de produção e de transmissão
de c.onhedmentos históricos, que os "incorpora a um circuito de p rod\.tção e per­
ções de 13oleslas Matuszewski ou Jo'natlras Serrano. Um filme não é um trabalho
peluação da memóri.a" (Morettin, 2001. p. 6).
cientí.fico de hist ória. Antes de tudo, a equipe de produção fílmica, os atores e os
\ Mesmo quando um filme de gênero histórico apresenta representaç. ões lús­
grupos financiadores almejam no filme muito mais do que recontar o pa.ssado.
tóricas distorcidias, há ,1 possibilidade de estabelecer debates sobre tais equívo­
Mesmo que realizado a partir de uma minuciosa pesquisa histórica, as interpre­
tações artísticas são liwes. Sem falar que a recepção do público é imprevisível. .
cos, o que se constitui em oportunidade de desenvolvimento de pesquisas sobre
... ..
a temática. Ademais, o cinema-história não deve ser tratado como trabalho ar.;1 --
devendo ser considerado também o papel dos críticos de cinema, e da própria
dêmico, embora possa contribuir para se pensar hi�toricam. ente, como indicou o
a.cademia, na construção de significados para um filme. Por isso, concorda-si' que
cineasta Cacá Diegues
o cinema-história
o que sabemos da Xica da Silva, além das raras fontes erudi_tas, nos fo,i trans1;r.li­
nunca pode ser um substituto pa1·a qualguer outro meio: não pode sei: tão com­
tido pela imaginação popular através da tradição oral ou pelos r<;>m."-nces, peças
pleto quanto um livro; nem tJo replelu de dad()S como um artigo. Na verdade,
de te�trn, porma� e sambas. Tanto melhor. Não é intenção do filme dtscu_tir a
não deve ser ilensamentP. comr;osto pç,r Jníormayão tacti,a.l, por causa das li111i­
cró11iw históric,, elo pais, se bem que possamos colaborar com ela. Pretenflemos
tações físicas dos espectadores, que :;ó podem assimilar a parti1· de uma triagem,
pois não se permite qlte eles parem a exibição como se faz p,ua reler mn parágra­ apenas acender uma luz nova sobre um importante personagem mitko brnsilP.i•
fo, ou uma página ou duas, sempre c1ue tenham p"l'rclldo o fio de um arg1.1mento ro e, através dele, fazer o elogio poético da liberdade, da hnagin,1ção criadora e cl,l
escrito, Mas is.so não condena o filme corno um méro _provedor de uma visão sensualidade de u1n povo - o nos,,o.11 (Diegues apud Silva, 1975, p. 21)
simplií1ca.ila .la hi.stúria. (La•.,:aetz, 1976, p. J.24) A complexa relação entre o conhecimento produzido pelas pesquisas histó­
É imporLaote ainda perceber que o cinema-história se constrói a partir dos ricas, as fontes históricas (documentos, icon.ogra.fia e literatura.), .e o argllmento
diálogos entre a historiografia fó o conhecimento histórico dissemina.do entre construído pata o cinema-história, estabelece a circul.u idclde do 'CClnbecimento,
a população - cuja drcularidade ocorre por diversos mediadores - do mesmo cujo dinamismo termina por influenciar a reflexão sobre o passado. Na realida-
, '
modo que estas películas influenciam (óu podem influenciar) na representas·ão de, ao considerar que a educação histórica ocorre por diversas forn;as,. além dos
social.'º Portanto, nas relações entre o cineina -hfatôria e o :imaginário social hã muros da escola, pressupõe-se que este conhecimento é vivenciado pela popuJa-

30. Segue-se Carlo Guind,urg conto inspi.t-.1ção para ;in�li�.:.r r1 relação entTe historiografia, ónr.mrt­ e cultura erud,ita, o qtie poderia sugerir a produç�o historiográfica acadêmic.1 corno saber �ruditQ, en­
·h.i$tóri,, e h.istólia p(1l,lica • partir do conçeito. de ' cirrnla rid.ade rnlturnl. Não obsta:nle, diferentemente quanto a h.istória públiu e o cinemahi�tórió> �orno expressão da cultura popular. Ver Ginzburg (2006).
do entendimento do r.1 ul' ôr. não se compartilha nesse exercido reflexivo a d.!· visào en tl'e cultura. r�opul:1r 3 1 . Entrevista ao jorn,,lista All,erto Silv�. quat1do o filme ainda estava sendo rodado (Silva. 1975).
liiiiiiiiii,=1-Q;------l<Di.....=--------==---------------

:n
do. Uma prt>OCllp"ção ,,ertmente, port,mto, é perceber como o conhecimento La GOF?, J., f\l Or<A. P. \org.) Hfotória: Novos proÜ�m,.2, 11ov.ts a!J o1·dagens, r.ovos obje•
tos. Rio de Janei1 o: r tan.:i�co Alves, 1 976. 3 "·
elabor:i.do acaci... micamune e o saber de ou lras areas dialogam, criam/recriam o
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Analisar a rchção entre os filmes comerciais de gênero histórico e o saber 1996,
histórico � releva nte para se ampliar o entendimento de como práticas não csco­ MATroso, K. M. Q. Ser escravo no Br.asil. 3ª cd. São Pau lu: Hrasili,mse, 'l OOl
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