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Transformação: A Aristocracia
Essa modesta recuperação demográfica e econômica com certeza não
fez da baixa Idade Média um lugar agradável para viver. A grande maioria
da população vivia, sob nossa perspectiva, em condições chocantes e sob
constante ameaça da fome e da brutalidade de uma pequena, porém, vio-
lenta elite. No entanto, essa elite mudou radicalmente durante a baixa Idade
Média. O sistema bárbaro de Gefolgschaft ("seguidores") com seus vínculos
pessoais fortes e diretos entre os chefes e seus guerreiros ainda era bem vi-
sível. Essa estrutura só poderia permanecer intacta em sua forma mais pura
em um estado de guerra quase permanente, porque apenas a guerra daria
aos guerreiros uma raison dêtre. E só a guerra poderia manter o sistema de
troca de presentes (ver p. 122-126), que ocupava um lugar central no padrão
das relações sociais, econômicas e políticas das elites. Portanto, a guerra era
urna característica essencial da cultura e do ethos dos primórdios da aris-
tocracia medieval. Mesmo nas unidades políticas mais avançadas da baixa
110 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
em latim) era cada vez mais evidente: havia pessoas que rezavam (cléri-
gos), pessoas que lutavam e pessoas que faziam trabalhos manuais. Não
havia dúvida de que os camponeses, livres ou não, pertenciam à terceira
categoria, e não mais à segunda. O primeiro texto que mencionou esse fato
foi a tradução anglo-saxã do livro de Boethius, De Consolatione Filosofiae
(1he Consolation of Philosophy; 524), feita para o rei Alfredo o Grande de
Wessex (871-899).
Vemos uma evolução similar na administração da justiça no império
carolíngio. Os francos originalmente requisitavam todos os homens livres
para assistirem os processos jurídicos públicos e, caso fossem solicitados,
de proferirem uma sentença, ou darem um veredicto de acordo com a lei
usual predominante. À medida que o conjunto de leis que regulava a admi-
nistração da justiça aumentou e tornou-se mais complexo, isso passou a ser
uma tarefa muito árdua, e Carlos Magno liberou os homens livres comuns
dessa obrigação referente à posição social deles. A incumbência de admi-
nistrar a justiça passou a ser realizada por juízes permanentes conhecidos
como scabini (conselheiros municipais) que, cabe lembrar, não devem ser
confundidos com os "conselheiros municipais" da alta Idade Média ou do
início do período moderno. Tanto quanto sabemos os scabini carolíngios
eram sempre aristocratas e lidavam com casos de ampla jurisdição, em ge-
ral de um pagus inteiro (condado).
Desenvolvimentos desse tipo eram sintomáticos do incessante enfra-
quecimento das funções sociais públicas dos homens livres comuns, em
contraste com a crescente concentração de propriedade de terras e poder
político e militar nas mãos da aristocracia. O processo foi fortalecido por
outro acontecimento ainda mais abrangente: a formação de uma grande
classe de pessoas que não eram livres, os servos, ligados à gleba e depen-
dentes de um senhor. No final do império o número de servos cresceu
enormemente por dois motivos. Por um lado, os camponeses livres procu-
ravam a proteção de proprietários de terras aristocráticos, voluntária ou in-
voluntariamente e, por outro, a posição dos escravos melhorou por razões
que iremos discutir.
Uma tendência semelhante surgiu em outros lugares além das frontei-
ras do antigo Império Romano. Na Islândia, por exemplo, que fora coloni-
zada pela Noruega na segunda metade do século IX, estimava-se que logo
após esse período só 3% ou 4% da população era constituída por campone-
ses livres. A sociedade era dominada pelos senhores (gothar) e seus guer-
reiros. Quase todas as pessoas abaixo da posição social deles eram escravos.
Só na França, ao sul do Loire, e na Catalunha a escravidão e a posse da terra
por pessoas livres e não aristocráticas continuaram a coexistir mais ou me-
nos na forma clássica até o final do primeiro milênio.
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N.T.: Etimologia do latim medieval slavus, sclavus, mais tarde "eslavo, escravo, cativo':
de slovéninu, nome que se dava aos povos eslavos.
CAP. 5-SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADEMÉDIA 1 115
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116 1 INTROOUÇÀO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
casos de crime grave quando eles eram responsáveis por entregar o acusa-
do aos tribunais régios, pelo menos onde funcionavam. É difícil julgar os
fundamentos desses direitos, é possível que fossem considerados uma auto-
ridade natural pelos que a exerciam em sua condição social de aristocratas,
proprietários de terras e de pessoas. Nesse contexto, os historiadores ale-
mães usam os termos "proprietários" e "domínios" para defini-los (Grun-
dherrschaft). Pelos padrões modernos os interesses privados e os elementos
do exercício da autoridade pública eram inextricavelmente ligados nesses
direitos senhoriais.
O crescimento desse tipo de autoridade senhorial em grandes re-
giões no início do período medieval na Europa foi acompanhado por
uma mudança fundamental na forma de transferência dos excedentes da
produção agrícola para a aristocracia. Os historiadores marxistas usam
o termo "extração do excedente" para demonstrar que a transferência
não obedecia às forças operacionais livres do mercado e, sim, era afetada
por pressões não econômicas relacionadas ao poder senhorial. Como e
quando essa extração do excedente ocorria é explicado por um diagrama
simples (Figura 5.1) de um ciclo econômico rural, que nada mais era do
que uma economia agrária de pequena escala pouco especializada e com
excedentes escassos. O diagrama mostra os caminhos que os camponeses
tinham de seguir para assegurar a manutenção do rendimento dos três
fatores clássicos de produção (terra, mão de obra e bens de capital), que
lhes permitiam sobreviver. Eles conseguiam manter o rendimento utili-
zando a maior parte dos produtos agrícolas e de atividades não agrárias
em sua subsistência e na criação de animais, no cultivo de sementes, ou
na produção de roupas, sapatos, moradias, ferramentas, artigos domésti-
cos, combustível etc.
A parte direita do ciclo produtivo no diagrama mostra um comércio
incipiente, porque os esforços dos camponeses direcionavam-se ao seu sus-
tento. Nesse sentido, as expressões "economia de subsistência" ou "econo-
mia de sobrevivência" eram usadas com frequência.
O diagrama mostra os quatro pontos nos quais os proprietários de
terras na baixa Idade Média poderiam extrair o "excedente": por meio do
trabalho (1) e do suprimento de parte da produção física agrária e não agrá-
ria (2 e 3). O excedente era menos expressivo devido aos pagamentos em
espécie efetuados depois da venda dos produtos no mercado (4). É preci-
so enfatizar mais uma vez que o nível de obrigações não era determinado
pela escassez de fatores expressos nos preços de mercado, mas apenas por
questões arbitrárias e pelas tradições habituais. Assim, o peso dos encargos
regulares dos camponeses variava muito de propriedade para propriedade
ou, até mesmo, dentro da mesma propriedade.
CAP. 5- SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA 1 117
Ilustração 5.1 O tesouro de ouro encontrado no túmulo de um nobre frísio (e. 630) consiste
em pedras preciosas e joias feitas de moedas
FATORES DE PRODUÇÃO
2 Mercado
Bensde
capital
~
f
t
Produção Venda do
Terra _ agrária ·······-····-··-· .. ···········► produto
Proiç1/
ã· Suprimento
' interno
não agrána
Suprimento!
----------
interno Consumo
Reprodução
. ..
. •.
······. de bens
Compra do
insumo
Bens de
capital
..
120 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
..
122 1 INTROOUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
GEFOLGSCHAFT
(Comitiva arm.ida)
/ (21
Camponeses
subservientes
Figura 5.2 Circulação de bens de prestígio no início do período medieval por meio da reci-
procidade (1) e da redistribuição (2)
Frísios e Vikings
No início da Idade Média, ou até antes, como sugerem alguns estudio-
sos, as costas do Mar do Norte e do Mar Báltico (que abrange a região ao sul
da atual Escandinávia, o norte da Alemanha, os Países Baixos e a Inglater-
ra) eram regiões extremamente dinâmicas para as migrações e o comércio
que prosperou durante a baixa Idade Média. Esse fato deve-se em parte à
posição estável do império franco, que se concentrava na área entre a bacia
do Sena e no Reno. Uma crescente parte do comércio de longa distância
de artigos de luxo direcionou-se para essa área. Descobertas arqueológicas
no sul da Escandinávia revelaram isso claramente. Os contatos comerciais
importantes com a região do Mar Negro eram feitos pela estrada dos Rios
Vístula e Dniester até o início do século VI. Quando os abares e vários
grupos eslavos invadiram a Europa central essa estrada estava fechada, e o
comércio escandinavo deslocou-se com uma relativa paz e grande influên-
cia para o norte da Gália.
CAP. 5 - SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA 1 127
Thul1londen Vlkingen
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130 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
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