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Transformação: A Aristocracia
Essa modesta recuperação demográfica e econômica com certeza não
fez da baixa Idade Média um lugar agradável para viver. A grande maioria
da população vivia, sob nossa perspectiva, em condições chocantes e sob
constante ameaça da fome e da brutalidade de uma pequena, porém, vio-
lenta elite. No entanto, essa elite mudou radicalmente durante a baixa Idade
Média. O sistema bárbaro de Gefolgschaft ("seguidores") com seus vínculos
pessoais fortes e diretos entre os chefes e seus guerreiros ainda era bem vi-
sível. Essa estrutura só poderia permanecer intacta em sua forma mais pura
em um estado de guerra quase permanente, porque apenas a guerra daria
aos guerreiros uma raison dêtre. E só a guerra poderia manter o sistema de
troca de presentes (ver p. 122-126), que ocupava um lugar central no padrão
das relações sociais, econômicas e políticas das elites. Portanto, a guerra era
urna característica essencial da cultura e do ethos dos primórdios da aris-
tocracia medieval. Mesmo nas unidades políticas mais avançadas da baixa
110 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
em latim) era cada vez mais evidente: havia pessoas que rezavam (cléri-
gos), pessoas que lutavam e pessoas que faziam trabalhos manuais. Não
havia dúvida de que os camponeses, livres ou não, pertenciam à terceira
categoria, e não mais à segunda. O primeiro texto que mencionou esse fato
foi a tradução anglo-saxã do livro de Boethius, De Consolatione Filosofiae
(1he Consolation of Philosophy; 524), feita para o rei Alfredo o Grande de
Wessex (871-899).
Vemos uma evolução similar na administração da justiça no império
carolíngio. Os francos originalmente requisitavam todos os homens livres
para assistirem os processos jurídicos públicos e, caso fossem solicitados,
de proferirem uma sentença, ou darem um veredicto de acordo com a lei
usual predominante. À medida que o conjunto de leis que regulava a admi-
nistração da justiça aumentou e tornou-se mais complexo, isso passou a ser
uma tarefa muito árdua, e Carlos Magno liberou os homens livres comuns
dessa obrigação referente à posição social deles. A incumbência de admi-
nistrar a justiça passou a ser realizada por juízes permanentes conhecidos
como scabini (conselheiros municipais) que, cabe lembrar, não devem ser
confundidos com os "conselheiros municipais" da alta Idade Média ou do
início do período moderno. Tanto quanto sabemos os scabini carolíngios
eram sempre aristocratas e lidavam com casos de ampla jurisdição, em ge-
ral de um pagus inteiro (condado).
Desenvolvimentos desse tipo eram sintomáticos do incessante enfra-
quecimento das funções sociais públicas dos homens livres comuns, em
contraste com a crescente concentração de propriedade de terras e poder
político e militar nas mãos da aristocracia. O processo foi fortalecido por
outro acontecimento ainda mais abrangente: a formação de uma grande
classe de pessoas que não eram livres, os servos, ligados à gleba e depen-
dentes de um senhor. No final do império o número de servos cresceu
enormemente por dois motivos. Por um lado, os camponeses livres procu-
ravam a proteção de proprietários de terras aristocráticos, voluntária ou in-
voluntariamente e, por outro, a posição dos escravos melhorou por razões
que iremos discutir.
Uma tendência semelhante surgiu em outros lugares além das frontei-
ras do antigo Império Romano. Na Islândia, por exemplo, que fora coloni-
zada pela Noruega na segunda metade do século IX, estimava-se que logo
após esse período só 3% ou 4% da população era constituída por campone-
ses livres. A sociedade era dominada pelos senhores (gothar) e seus guer-
reiros. Quase todas as pessoas abaixo da posição social deles eram escravos.
Só na França, ao sul do Loire, e na Catalunha a escravidão e a posse da terra
por pessoas livres e não aristocráticas continuaram a coexistir mais ou me-
nos na forma clássica até o final do primeiro milênio.
114 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
N.T.: Etimologia do latim medieval slavus, sclavus, mais tarde "eslavo, escravo, cativo':
de slovéninu, nome que se dava aos povos eslavos.
CAP. 5-SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADEMÉDIA 1 115
..
116 1 INTROOUÇÀO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
casos de crime grave quando eles eram responsáveis por entregar o acusa-
do aos tribunais régios, pelo menos onde funcionavam. É difícil julgar os
fundamentos desses direitos, é possível que fossem considerados uma auto-
ridade natural pelos que a exerciam em sua condição social de aristocratas,
proprietários de terras e de pessoas. Nesse contexto, os historiadores ale-
mães usam os termos "proprietários" e "domínios" para defini-los (Grun-
dherrschaft). Pelos padrões modernos os interesses privados e os elementos
do exercício da autoridade pública eram inextricavelmente ligados nesses
direitos senhoriais.
O crescimento desse tipo de autoridade senhorial em grandes re-
giões no início do período medieval na Europa foi acompanhado por
uma mudança fundamental na forma de transferência dos excedentes da
produção agrícola para a aristocracia. Os historiadores marxistas usam
o termo "extração do excedente" para demonstrar que a transferência
não obedecia às forças operacionais livres do mercado e, sim, era afetada
por pressões não econômicas relacionadas ao poder senhorial. Como e
quando essa extração do excedente ocorria é explicado por um diagrama
simples (Figura 5.1) de um ciclo econômico rural, que nada mais era do
que uma economia agrária de pequena escala pouco especializada e com
excedentes escassos. O diagrama mostra os caminhos que os camponeses
tinham de seguir para assegurar a manutenção do rendimento dos três
fatores clássicos de produção (terra, mão de obra e bens de capital), que
lhes permitiam sobreviver. Eles conseguiam manter o rendimento utili-
zando a maior parte dos produtos agrícolas e de atividades não agrárias
em sua subsistência e na criação de animais, no cultivo de sementes, ou
na produção de roupas, sapatos, moradias, ferramentas, artigos domésti-
cos, combustível etc.
A parte direita do ciclo produtivo no diagrama mostra um comércio
incipiente, porque os esforços dos camponeses direcionavam-se ao seu sus-
tento. Nesse sentido, as expressões "economia de subsistência" ou "econo-
mia de sobrevivência" eram usadas com frequência.
O diagrama mostra os quatro pontos nos quais os proprietários de
terras na baixa Idade Média poderiam extrair o "excedente": por meio do
trabalho (1) e do suprimento de parte da produção física agrária e não agrá-
ria (2 e 3). O excedente era menos expressivo devido aos pagamentos em
espécie efetuados depois da venda dos produtos no mercado (4). É preci-
so enfatizar mais uma vez que o nível de obrigações não era determinado
pela escassez de fatores expressos nos preços de mercado, mas apenas por
questões arbitrárias e pelas tradições habituais. Assim, o peso dos encargos
regulares dos camponeses variava muito de propriedade para propriedade
ou, até mesmo, dentro da mesma propriedade.
CAP. 5- SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA 1 117
Ilustração 5.1 O tesouro de ouro encontrado no túmulo de um nobre frísio (e. 630) consiste
em pedras preciosas e joias feitas de moedas
FATORES DE PRODUÇÃO
2 Mercado
Bensde
capital
~
f
t
Produção Venda do
Terra _ agrária ·······-····-··-· .. ···········► produto
Proiç1/
ã· Suprimento
' interno
não agrána
Suprimento!
----------
interno Consumo
Reprodução
. ..
. •.
······. de bens
Compra do
insumo
Bens de
capital
..
120 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
..
122 1 INTROOUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
GEFOLGSCHAFT
(Comitiva arm.ida)
/ (21
Camponeses
subservientes
Figura 5.2 Circulação de bens de prestígio no início do período medieval por meio da reci-
procidade (1) e da redistribuição (2)
Frísios e Vikings
No início da Idade Média, ou até antes, como sugerem alguns estudio-
sos, as costas do Mar do Norte e do Mar Báltico (que abrange a região ao sul
da atual Escandinávia, o norte da Alemanha, os Países Baixos e a Inglater-
ra) eram regiões extremamente dinâmicas para as migrações e o comércio
que prosperou durante a baixa Idade Média. Esse fato deve-se em parte à
posição estável do império franco, que se concentrava na área entre a bacia
do Sena e no Reno. Uma crescente parte do comércio de longa distância
de artigos de luxo direcionou-se para essa área. Descobertas arqueológicas
no sul da Escandinávia revelaram isso claramente. Os contatos comerciais
importantes com a região do Mar Negro eram feitos pela estrada dos Rios
Vístula e Dniester até o início do século VI. Quando os abares e vários
grupos eslavos invadiram a Europa central essa estrada estava fechada, e o
comércio escandinavo deslocou-se com uma relativa paz e grande influên-
cia para o norte da Gália.
CAP. 5 - SOCIEDADE E ECONOMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA 1 127
Thul1londen Vlkingen
..
130 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
LEITURA SUGERIDA
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132 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
OS MEROVÍNGIOS
Ilustração 6.1 Coroa de ferro com pedras semipreciosas dos séculos V e VI que era usada
pelos reis lombardos. Carlos V e Napoleão foram coroados com ela.
Apesar da derrota dos exércitos rivais, após 721, Carlos Marte! não
pôde exercer o poder livremente na região do reino franco. Não só ha-
via as intrigas habituais da alta nobreza e dos governantes vizinhos, como
também na Aquitânia havia ameaças de invasões dos mulçumanos vindos
da Espanha. Os mulçumanos avançaram em direção ao norte e saquearam
Bordeaux e Poitiers.
Eles foram detidos perto de Tours pelo exército franco de Carlos Mar-
tel, em uma batalha conhecida na literatura como "Poitíers 732•: mas estu-
dos acadêmicos recentes a situam um pouco mais ao norte de Tours, em
733 ou em 734. Ian Wood, o acadêmico que estabeleceu essa nova referên-
cia, também sugere que deram uma importância exagerada a essa batalha.
A cristandade não foi poupada da extinção em "Poitiers"
Os ataques dos mulçumanos deram a Carlos Marte! uma chance de
tornar-se o governante incontestável da Aquitânia; ele também fortaleceu
seu poder na Provença e na Borgonha. Seus sucessos militares, é claro, cau-
saram uma profunda impressão, e ele conquistou muitos seguidores leais
e o apoio de pessoas, que ofereceram seus serviços sem dúvida com uma
expectativa de aventura, recompensa e pilhagem das guerras. Além disso,
como vitorioso ele podia exigir tributo das regiões conquistadas e de con-
fiscar as terras para recompensar seus seguidores mais corajosos. Nem as
propriedades da Igreja foram poupadas, o que o difamou entre a comuni-
dade eclesiástica por ter roubado os rendimentos da Igreja.
De acordo com o estilo de um governante franco, embora apenas com
o título de prefeito do palácio, Carlos Marte! dividiu as regiões conquis-
tadas entre seus dois filhos antes de morrer em 741. Carlomano herdou
a região oriental, e Pepino III a região a oeste. Não há razão para supor
que os irmãos não tivessem um convívio harmonioso na época, mas Grifo,
filho de uma segunda mulher de Carlos Martel, reivindicou em vão uma
parte significativa da herança. Segundo o costume franco, ele não podia
ter sido privado da herança paterna, e os conflitos familiares somaram-se
às frustrações reprimidas da nobreza em relação às regiões periféricas da
Aquitânia e da Alemanha que Carlos Marte! conquistara. Depois de anos
de conflitos violentos, Carlomano ouviu um apelo divino e recolheu-se ao
mosteiro de Monte Cassino, em 747, cedendo seu poder como prefeito do
palácio ao seu irmão Pepino e ao seu filho.
É possível que a combinação de sucesso militar e de um governo
poderoso tenha influenciado Pepino III a fazer a famosa pergunta ao
Papa Zacarias, em 7 49: "se O fato de os reis dos francos exercerem ou
não o poder, como acontecia à época, era uma circunstância favorável
138 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
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Ilustração 6.2 Estatueta equestre de bronze de Carlos Magno, com a coroa e o orbe imperiais
144 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
Os reis podiam usar sua autoridade para convocar súditos livres para a
guerra e, portanto, em teoria, no final do século VlII o número de súditos
livres que podia ser convocado era de uns 100 mil homens. Originalmente,
todos os homens livres comuns eram sujeitos ao serviço militar. Na prática
isso significava que, devido à vasta extensão do império e à lentidão das
comunicações, o recrutamento só podia ser realizado em âmbito regional.
Como vimos no Capítulo 5, no início do século IX Carlos Magno limitou o
serviço militar aos vassalos reais, assim como aos homens livres que possuí-
am mais de quatro hectares (mansi) de terras. Todos os outros homens livres
comuns tinham de dar adiutorium ("ajuda"), ou seja, contribuir para o equi-
pamento do guerreiro. Ao mesmo tempo foram definidas normas referentes
à qualidade do equipamento e ao abastecimento de exércitos em marcha.
PATRIMÔNIO E ESTADO
Honrei e Snngue
É um lugar-comum dizer que nas sociedades tradicionais as relações
de consaguinidade são os meios mais universais e óbvios de unir as pes-
soas e organizá-las em uma hierarquia, assim como em uma rede poten-
cial de apoio. O grau biológico de parentesco, idade e sexo é culturalmente
avaliado para determinar a importância da posição das pessoas. Além ~a
consanguinidade, o parentesco em um sentido mais amplo de inter-relaçao
entre parentes por afinidade ou casamento também é importante. No início
da sociedade medieval o nome de um antepassado ilustre era mantido por
seus descendentes e louvado em sua honra.
A honra era o reconhecimento dos membros de uma comunidade do
valor atribuído à posição de uma pessoa. A alta posição social podia ba-
sear-se na descendência, riqueza ou realizações. Na melhor das hipóteses
havia três componentes que coincidiam. Cada vez mais, a propriedade de
terras era uma condição necessária para um guerreiro adquirir material
ou equipamento. Nas sociedades marciais as características necessárias
eram coragem, força e sucessos militares. Isso causou o enriquecimento
e o aumento das tropas do exército atraídas pela fama e pela partilha das
pilhagens. De modo similar, o direito de sucessão determinava a herança da
terra, mas, ao mesmo tempo, essa divisão sucessória era uma fonte essen-
cial do sentimento de solidariedade entre os guerreiros. A posse de bens e a
fama também eram transmitidas por relações de parentesco.
É compreensível, portanto, que a competição pela honra, riqueza, terras
e poder fosse incorporada aos laços familiares. Em razão de as famílias dos
governantes terem uma tendência acentuada de perpetuar uma posição he-
CAP. 6- O MUNDO DOS FRANCOS 1 145
Vassalos e Benefícios
Em seu relacionamento com a aristocracia franca os reis carolíngios deli-
beradamente intensificaram os laços não familiares de lealdade e dependência
pessoal. Um desses vínculos mais importantes foi a relação de vassalagem. Fon-
tes do período merovíngio mencionam a palavra vassus (no plural, vassi) refe-
rindo-se aos membros dependentes de posição social mais inferior da corte. A
palavra foi usada com frequência no final do século VIII até o século XI. Apesar
do significado ambíguo, ela referia-se sempre aos homens livres submissos a
um senhor ou senior (seigneur). A relação de vassalagem implicava uma de-
pendência mútua: o vassalo prestava serviços e apoiava seu senhor, ao mesmo
tempo em que o senhor o protegia e apoiava. Como recompensa, os vassalos
recebiam uma armadura e wna parte das pilhagens das guerras. Mais uma vez,
dois tipos de autoridade suprema foram mencionados - as instituições eclesiás-
ticas e os reis. Entre 801 e 813 Carlos Magno promulgou um decreto (capitular)
referente a cinco casos em que um vassalo poderia extinguir seu juramento de
fidelidade ao seu senhor, o que revela uma relação que estabelecia condições
para ambas as partes e que poderia ser rompida. Nessa época o termo vassi
dominici, que significava os vassalos do rei, referia-se a wna categoria especial
de fideles, isto é, homens ligados ao rei por um juramento especial.
Existem poucos relatos datados dos séculos VIII e IX que descrevem
em detalhes a submissão de um vassalo do rei ao seu senhor. Todos os re-
latos mencionam situações políticas complicadas, em que depois de uma
rebelião, em meio a uma grande cerimônia e diante de muitas testemunhas,
o vassalo era humilhado e tinha de prestar novo juramento de fidelidade
ao vitorioso. A fim de garantir que todos os detalhes se fixassem na me-
mória das pessoas presentes, realizavam-se diversos rituais, entre os quais
um em que a pessoa subjugada ajoelhava-se e colocava as mãos nas mãos
do senhor. O juramento acrescentava um elemento adicional de ratificação
porque, segundo o costume dos francos, ele concluía uma reconciliação
formal. Foi dessa forma, por exemplo, que Pepino O Breve tratou o rebelde
Duque Tassilo da Baviera em 757, que na ocasião se ofereceu ao rei na con-
dição de vassaticum. Porém, esse é um caso atípico, e na prática esse cos-
tume assumiu diversas formas, assim como houve situações diferentes nas
quais se prestavam juramentos de fidelidade ou se solucionavam conflitos.
Além das relações de vassalagem, os carolíngios basearam seu poder
na redistribuição de direitos de propriedade, em que o apoio eclesiástico foi
CAP. 6- O MUNDO DOS FRANCOS 1 147
UM ESTADO INCIPIENTE
rei. Em 799 o Papa Leão III foi a Paderborn pedir ajuda a Carlos Magno para
enfrentar uma facção da aristocracia romana, de cujas intrigas ele escapara
por pouco. Essa foi a oportunidade para Carlos Magno evocar o princípio
formulado em 749: "aquele que exerce a autoridade de um rex merece o tí-
tulo de rex". Como um verdadeiro imperador romano, ele não impusera sua
autoridade sobre todos os territórios cristãos, ou pelo menos nos territórios
do Ocidente? Com seu poder ele não era um protetor indispensável da Igre-
ja? Quando Carlos Magno partiu para Roma no outono do ano 800 para
restaurar a autoridade do papa, ele demonstrou sua eficiência como protetor
da Igreja e, assim, igualou-se ao imperador bizantino. Na cerimônia de sua
coroação na Igreja de São Pedro no dia de Natal, o papa "coroou-o" impera-
dor diante da aclamação do povo romano, que confirmou sua designação. A
partir de então, essa cerimônia seria mantida até o final da Idade Média.
Ilustração 6.3 O trono imperial na capela do palácio de Carlos Magno em Aachen eonstruí-
da nos anos 798-815. A abóbada octogonal, apoiada por colunas trazidas da Itália, represen-
tava a translatio imperii dos romanos para os francos.
ele, "um homem deveria jurar fidelidade ao seu senhor". Em 805 surgiu uma
exigência mais exclusiva na relação de fidelidade; além de jurar fidelidade ao
imperador, um homem livre só poderia jurar fidelidade ao seu senhor. Os
juramentos de fidelidade eram meios típicos de exercer o poder em uma so-
ciedade com uma cultura de escrita limitada. Os vínculos de fidelidade eram
diretos, pessoais e em grande parte verbais. Um juramento era feito com a
mão sobre um objeto sagrado, como uma relíquia ou as Escrituras. Romper
um juramento provocava sanções divinas, além de uma punição judicial se-
vera por perjúrio. Nesse império tão extenso, o rei, é óbvio, não podia mais
administrar todos esses juramentos pessoalmente e era representado por
seus funcionários nos vários territórios. Isso marca o início da tradição do
juramento que uma pessoa presta antes de assumir uma nova função onde,
em muitos lugares, a fórmula "fidelidade ao rei" ainda aparece.
Paralelas a esse exercício de poder, a chancelaria, as medidas adminis-
trativas e a legislação, a assembleia geral e a escola do palácio configuraram
formas iniciais de instituições do Estado independentes da pessoa do rei.
Os reis merovíngios encarregavam uma instituição eclesiástica de executar
a maior parte de seus trabalhos escritos, ou incumbiam uma pessoa a quem
se destinava o documento de prepará-lo. Uma chancelaria permitia que 0
rei concluísse mais trabalhos escritos sem ajuda externa, e de criar um ar-
quivo que lhe proporcionava um controle mais próximo de suas atividades.
Os reis merovingios tinham uma chancelaria com notários laicos, porém,
mais tarde os escribas foram predominantemente clérigos que trabalhavam
direto com o rei ou com o imperador. Uma atividade muito importante da
chancelaria era promulgar diversos capitulares, decretos reais ou imperiais,
divididos em capítulos separados ou seções, nos quais os regulamentos ad-
ministrativos e legislativos eram registrados. Com frequência, esses docu-
mentos formavam um relatório escrito de cláusulas aprovadas verbalmente
e decretadas pelos homens mais poderosos de um território em sua assem-
bleia geral anual (chamada de Campo de Março ou Campo de Maio; depois
de 7 55, a reunião passou a ser realizada em maio). Nesse contexto a palavra
falada tinha o poder de lei. A declaração pública exprimia consenso e, ao
mesmo tempo, impunha a todos os presentes o dever de cumprir o que fora
deliberado. Os capitulares serviam em primeiro lugar como uma espécie de
aide-mémoire para a chancelaria e para os missi dominici, os emissários que
eram enviados a todas as regiões do império do rei, a fim de se certificarem
de que as regras estavam sendo obedecidas. Esforços exaustivos a fim de
criar uma sólida instituição do Estado de acordo com o modelo romano
foram empreendidos em relação à divisão territorial e às funções que per-
tenciam a esses territórios. Carlos o Calvo usou o Codex Teodosiano, assim
como muitos outros usuários, inclusive a Igreja, durante o século IX. Em
CAP. 6 - O MUNDO DOS FRANCOS 1 153
..
156 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
Condes e Hereditariedade
Embora nesse ponto as funções do margrave, do duque e do conde
fossem exercidas com bastante autonomia e revelassem uma tendência ª
tornarem-se hereditárias, ainda eram consideradas como funções do rei.
Mas quando as conquistas carolíngias chegaram a um impasse e com o en-
fraquecime~t~ da autoridade do rei, em parte em consequência de proble-
mas sucessonas, um poder centrífugo vigoroso começou a agir. Duques,
margraves e condes julgaram que tinham a delegação e a autoridade para
--=,
CAP. 6-0 MUNOO DOS FRANCOS 1 157
PERIFERIAS DINÂMICAS
Inglaterra
A evolução dos sete reinos dos anglos e dos saxões foi, ao mesmo tem-
po, extremamente parecida e diferente do império franco. Os séquitos de
guerreiros, os feudos, uma espécie de economia senhorial e uma grande
desigualdade social existiam em ambos os lados do Canal da Mancha. A_s
vezes os reis anglo-saxões, assim como os reis carolíngios, pediam à Igreja
que cedesse uma área de terra para um guerreiro especial. Uma diferença
marcante revelava-se nas dooms, as leis anglo-saxãs escritas no idioma =:
náculo, ao passo que os capitulares francos eram escritos apenas em latim.
Será que as diferenças linguísticas eram tão maiores no império franco que
os carolíngios tentaram superá-las com o uso do latim? É também surpre-
endente a iniciativa do rei de Wessex, Alfredo o Grande (848/9-899), que
seguiu o exemplo de Carlos Magno e criou uma escola da corte. No en-
tanto, nessa escola as traduções eram feitas do latim para o vernáculo. No
longo prazo isso fomentou uma tradição de documentos legais escritos no
idioma vernáculo, que resistiu à introdução da legislação romana, realizada
no continente a partir do século XII.
Depois de 787 a natureza sagrada da realeza, talvez seguindo o mode-
lo carolíngio, foi confirmada com a consagração do rei de Mércia por um
padre. O rei tinha o direito de convocar homens livres para a guerra, mas,
diante da terrível emergência de um conflito com os dinamarqueses em
878, Alfredo o Grande só conseguiu mobilizar metade dos homens alter-
nadamente. Por outro lado, a categoria mais profissional dos guerreiros das
comitivas de homens poderosos era mais eficiente. Eles dividiam os saques,
às vezes recebiam um presente ou uma área de terra em troca de seus ser-
viços, e seus feitos eram celebrados em rodadas de bebidas na corte. O con-
traste mais marcante entre a Inglaterra e O continente foi o fato de, em 878,
o reino de Wessex ter conseguido deter as invasões dos dinamarqueses, e
durante a primeira metade do século X obteve a integração política dos sete
reinos anglo-saxões. Os escandinavos que haviam ocupado o nordeste da
Inglaterra usufruíam de tanta liberdade que nunca causaram problemas.
Enquanto as conquistas dos carolíngios provocaram uma expansão irnpe-
CAP. 6-0 MUNDO DOS FRANCOS 1 159
ria! excessiva, que se reduziu assim que os líderes fortes foram sucedidos
por pessoas mais fracas, a fusão gradual dos pequenos reinos na Inglater-
ra foi permanente. As fronteiras dos antigos reinos permaneceram como
fronteiras dos condados ou distritos, a maioria criada no século X. No nível
dos distritos e nos hundreds abaixo deles, foram criados tribunais que, sob
orientação de juízes indicados pelo rei, pessoas locais eminentes julgavam
as sentenças. Sob Alfredo o Grande, Wessex foi o primeiro reino a ter esses
tribunais, e durante o século seguinte o sistema estendeu-se pelo país intei-
ro. A Inglaterra anglo-saxã era muito mais avançada que o continente em
termos administrativos e na organização jurídica. Graças à força da monar-
quia, não houve usurpações de prerrogativas reais, e a distribuição de terras
como benefícios foi uma prática muito limitada.
Ilustração 6.4 Mapa da Inglaterra e da Escócia na Historia Major de Matthew, Paris, e. 1240.
A muralha de Adriano que se estendia de Newcastle a Carlisle é claramente reconhecível.
160 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
a viver da forma tradicional como pastores de gado. Seus laços tribais não
mudaram durante pelo menos três séculos. A região ao redor de Valência
e Múrcia foi cultivada por berberes da costa, usando métodos de irrigação
romanos e canais. Depois do período de conquistas, grandes grupos de ber-
beres começaram de novo a imigrar no final do século X. As comunidades
judaicas, especialmente importantes nas cidades, receberam as novas auto-
ridades islâmicas como libertadores em reação à repressão sofrida sob os
cristãos visigodos. E, é claro, havia uma expressiva maioria de cristãos que,
assim como os judeus, foi também tratada com uma tolerância razoável
pelos novos governantes. Eles podiam fazer serviços religiosos, seus bispos
eram respeitados, usufruíam de uma grande autonomia, e a justiça era ad-
ministrada seguindo sua lei habitual. Eles pagavam impostos como dhimmi
(não mulçumanos), de acordo com a lei islâmica. Ao longo do tempo mui-
tos cristãos adaptaram sua maneira de viver, sua língua e estilo de roupa,
mas não sua religião, à cultura árabe predominante e eram chamados de
mustarib em árabe, que significa "moçárabe". Os cristãos convertidos ao
Islamismo, os conversos, não recebiam o mesmo tratamento dos mulçuma-
nos originais, porém, podiam alcançar uma posição social melhor como
protegidos dos mulçumanos.
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CAP. 6- O MUNDO DOS FRANCOS 1 163
Os Vikings
Mais do que qualquer outro povo na Idade Média os vikings estimulam
a imaginação moderna: eles têm sido retratados de uma forma estereotipa-
da como homens rudes e louros com dois chifres nos elmos, que peram-
bulavam pelo mundo em navios esguios com uma cabeça de dragão. Esse
mito não pode ser provado, visto que nunca se encontrou um elmo viking
com chifres. Muitos monges piedosos que escreviam crônicas na época dos
vikings tinham uma visão ainda mais negativa: para eles esses pagãos lou-
ros matavam, saqueavam e cometiam sacrilégios. O Anglo-Saxon Chronicle
relata que em 786 três navios ancoraram na costa de Dorset e sua tripulação
matou a principal autoridade do rei em uma luta. Houve diversos ataques
todos os anos, visando em especial as abadias, cujas peças valiosas foram
roubadas e os altares profanados.
No século IX a história repetiu-se em inúmeros lugares ao longo das
costas e dos rios da Europa ocidental. Muitas cidades e abadias foram sa-
queadas, e os habitantes foram capturados como escravos. Através do co-
164 1 INTRODUÇÃO À EUROPA MEDIEVAL, 300-1550
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O sucesso notável das invasões dos vikings pode ser atribuído à rapi-
dez com que faziam os ataques e depois desapareciam nos barcos ligeiros.
A pesada cavalaria dos guerreiros francos não fora planejada para enfrentar
ataques de surpresa desse tipo. Eles demoravam muito para organizar as
tropas e, mesmo assim, quase sempre nada mais podiam fazer, a não ser ob-
servar da margem do rio ou da costa os navios dos vikings fora do alcance
deles. Os vikings só se tornaram vulneráveis quando começaram a passar
o inverno em lugares abrigados, sobretudo porque suas forças eram pe-
quenas. Por fim, ficou claro que os reis francos eram incapazes de proteger
seu povo, e foram os senhores locais que resistiram às invasões dos vikings
construindo fortes ao longo dos rios ou pontes fortificadas. A ponte sobre 0
Sena em Pitres, construída em 864, foi a última iniciativa de Carlos o Calvo
em uma de suas propriedades reais. Nesse sentido, as invasões ajudaram ª
acelerar o processo incipiente de descentralização do poder.
Por outro lado, os contatos prolongados dos vikings com a Europa
ocidental, embora tenham destruído a ordem existente, também propicia-
ram a expansão das atividades comerciais na região. Apesar do horror dos
padres e dos monges perante o roubo de seus objetos valiosos, do pon-
to de vista econômico os metais preciosos que por muito tempo haviam
sido guardados como reserva começaram a circular de novo para pagar
o comércio de longa distância. A fim de financiar a defesa contra os inva-
sores, ganhar tempo e evitar a despesa e o risco de um engajamento total,
os reis anglo-saxões introduziram um imposto fixo pago em moedas de
pra~a, 0 "Danegeld", um imposto sobre a terra que foi arrecadado até 1162,
m~ito _tempo depois que os reis dinamarqueses governaram a Inglaterra na
primeira metade do século XI. Em 1018 foram arrecadadas 22 toneladas
de moedas de prata. o que representou cerca de 42% do suprimento total de
~o_edas. Uma grande parte desse suprimento originava-se de fontes comer-
ciais dos francos. Essa riqueza em prata entrou em circulação e apoiou o
comércio ativo dos vikings com o Oriente. Dessa forma as atividades dos
viking~- na Euro~a ocidental estimularam a circulação d~ bens e de capital
na regiao, e sua inserção em um sistema comercial intercontinental.
LEITURA SUGERIDA
ABELS, Richard. Alfred the Great: War, Kingship and Culture in Anglo-Saxon England. Lon-
dres: Longman, 1998. 1·
.
BARBERO, Alessandro. Çharlemagne: Father of a Continent. Berkeley: Umvers1ty · ofCa1-
fornia Press, 2004, ( original italiano de 2000). . . nal
BECHER, Matthias. Charlemagne. New Haven, Conn.: Yale University Press, 2003 (ongt
alemão del999).