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TempoPauloSocial;
Roberto Arruda de. A questão
Rev. Sociol. USP,doS.herói-sujeito em cabra
Paulo, 6(1-2): marcado
107-126, para morrer, filmeAde R
1994 Eduardo
T ICoutinho.
G O
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. (editado
Paulo, 6(1-2):
em107-126, 1994 (editado em jun. 1995).
jun. 1995).
A questão do herói-sujeito em
cabra marcado para morrer
filme de Eduardo Coutinho
PAULO ROBERTO ARRUDA DE MENEZES
RESUMO: Realizado em três etapas, 1964, 1981 e 1983, o filme procura UNITERMOS:
resgatar os acontecimentos trágicos que levaram à morte João Pedro cinema brasileiro,
relação sujeito-objeto,
Teixeira, presidente da liga camponesa de Sapé, no interior da Paraíba, em
esquerda brasileira,
1964. Cortado pelo Golpe de Estado, teve suas filmagens retomadas 17 linguagem,
anos depois. O artigo procura destrinchar a articulação do discurso de Eduar- fotografia,
do Coutinho como discurso da verdade por se colocar o tempo todo como violência,
dor,
um documentário, e portanto neutro, que retrataria os descaminhos e a vio-
ilusão,
lência da política brasileira da época. Ao analisar as imagens e sua monta- tempo,
gem, associadas ao discurso do narrador, procura mostrar que aí se cons- espaço.
truiu uma nova interpretação acerca dos fatos tomados como pano de fun-
do, que muito mais tem a dizer sobre uma certa visão acerca do campesinato
brasileiro e de uma forma de se fazer política, e conseqüentemente história,
do que sobre os fatos em si que, em princípio, se estaria narrando. Essa
flutuação faz com que quem deveria surgir como sujeito troque de lugar o
tempo todo, acabando por reforçar os mesmos artifícios que, primordial- Professor do Departa-
mento de Sociologia
mente, o filme se esforçaria em denunciar. da FFLCH-USP
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MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. A questão do herói-sujeito em cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho.
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 6(1-2): 107-126, 1994 (editado em jun. 1995).
O
filme de Eduardo Coutinho (visto por nós em 1984), entrou para
a história do cinema brasileiro aclamado por ser, ao mesmo tem-
po, um marco e um testemunho, da vida camponesa e de sua
repressão, bem como de uma trajetória de nossa história recente
interrompida pela ditadura. Mais de dez anos depois de sua chegada às
telas, merece agora uma outra leitura, realizada mais pelos olhos de uma
análise de suas imagens do que pelo impacto do conteúdo de seu enredo,
feita naquele momento de fim de ditadura, impulsionada pelos dolorosos
ditames do coração de uma geração órfã de sua própria história.
O impacto emocional deste filme sempre foi enorme. Falando de
sua receptividade, ao lado de Jango de Silvio Tendler, José Mário Ortiz
Ramos nos diz: “A volta efetuada pelos dois filmes ao período gerador dos
anos de chumbo da década de 1970 transbordava de sentimentos, remexia
fundo nos ricos depósitos da memória. Cabra é um achado dentro do cruza-
mento que efetua com vivências, memórias e política, voltando ao criticado
CPC com extrema habilidade, fugindo de velhos esquemas, marcado pela
contemporaneidade” (Ramos (org.), 1987, p. 443). “Cabra marcado faz chorar
e está cotado para prêmio”, é a manchete do Jornal do Brasil (25.11.1984),
enquanto a Folha de S. Paulo publica artigo de Marilena Chauí com o título
de “Do épico pedagógico ao documentário” (09.06.1984) e o Estadão o de
Pola Vartuck: “Filme comovente, um provável marco” (11.12.1984).
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Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 6(1-2): 107-126, 1994 (editado em jun. 1995).
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remos com isto dizer que as imagens caminham num processo ininterrupto
em direção a cada vez mais ilusão, no sentido em que Gombrich vê os
desdobramentos da representação na pintura principalmente entre os sécu-
los XV e XIX (cf. Gombrich, 1986)2. Mas queremos ressaltar que este
pressuposto está sempre lá presente quando as pessoas olham essas ima-
gens, independentemente de seu veículo.
Esta relação fica um tanto mais evidente quando a pessoa que ali
está nos é desconhecida. Ao vermos repetidas vezes seu retrato, sua ima-
gem, este processo aparece de maneira tão natural e imperceptível que
passamos a vê-la estranhamente com uma intimidade a um só tempo, curi-
osa e ambígua, pois completamente unilateral. Todos nós já ouvimos ou
falamos a seguinte frase: “Você conhece fulano?”, com a tradicional res-
posta que a segue: “Conheço por fotografia!”.
Uma fotografia surgirá sempre, neste contexto, como a
representificação de coisas e pessoas. Ao se colocar entre nós e o “mode-
lo”, como imagem materializada, ela nos coloca sempre e renovadamente
em presença de algo ou alguém que não está mais lá. É desta ilusão que
falamos, e de seus desdobramentos.
Isto está sempre tão presente em nós que nunca deixamos de nos
espantar com o fato de que a melhor pintura, por mais detalhista e por mais
“semelhança” que possua com o modelo que retrata, por mais perfeita e
elaborada que seja, por mais “realista” que se pretenda, será sempre menos
“parecida” com alguém que o pior dos retratos fotográficos desta mesma
pessoa. Se o esmero do artista for tal que arranque do público exclamações
de júbilo pela “veracidade” de sua obra, elas serão acompanhadas, invari-
avelmente, pelo “elogio” final que ressaltaria sua destreza: “este retrato é
tão perfeito, parece fotografia!”
Isto nos mostra que a peculiaridade deste processo não está fun-
dada na qualidade da imagem em questão, em sua nitidez ou em seu
detalhamento e, portanto, em nenhuma das qualidades técnicas intrínsecas
da reprodução fotográfica, mas no processo que criou esta imagem como
2
Em seu estudo, Gombrich tal e que lhe deu a capacidade de criar este tipo de ilusão. A partir disto,
nos mostra que existe
uma diferença funda- deve estar claro que, para compreendermos as peculiaridades deste pro-
mental entre o que ve- cesso de constituição de imagens, não devemos olhar para os resultados
mos e os artifícios que que este processo cria - as fotografias - mas, ao contrário, para os elemen-
utilizamos para repre-
sentar o que vemos. tos constituintes de sua gênese.
Segundo ele, as refe- No caso da fotografia, entre o homem e o objeto a ser reproduzi-
rências utilizadas na
representação dizem do, entre o modelo e o resultado do processo - sua imagem, existe somente
muito mais a outras uma máquina. Esse aparelho intermediário cria no imaginário um proces-
formas de representar, so de duplicação de imagens onde o homem está elidido. Com isto, está
que o artista já conhe-
ce, do que a elementos aberta a possibilidade de um puro meio técnico agir no sentido de transpor
tirados de uma obser- de um lado para outro, do mundo exterior para o mundo interno da ima-
vação direta, que ele
procuraria duplicar em gem, fisionomias, coisas e lugares. “A perspectiva foi o pecado original da
seu trabalho. pintura ocidental. (...) Niepce e Lumière foram seus redentores. A fotogra-
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dor está em busca de uma experiência viva, pois o cinema, como nenhuma
outra arte, amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa - e não
apenas a enriquece, mas a torna mais longa, significativamente mais longa”
(Tarkovski, 1990, p. 72). “Eu vejo a crônica, o registro de fatos no tempo,
como a essência do cinema: para mim, não se trata de uma maneira de fil-
mar, mas uma maneira de reconstruir, de recriar a vida” (p. 73).
E, talvez, seja esta a principal razão pela qual os cineastas fazem
seus filmes e as pessoas vão ao cinema. Ao recriar essas vidas, os cineastas
permitem a estas pessoas irem até lá buscar experiências que não puderam
viver, buscar o tempo perdido, buscar o seu tempo perdido.
Eduardo Coutinho em seu filme, como ele próprio nos diz, volta
para Galiléia sem nada preparado, sem roteiro, sem idéias preconcebidas,
para tentar reencontrar uma trajetória da memória, após 17 anos de inter-
rupção de uma vida e de sua história. Lá chegando, será inevitável seu
reencontro com os personagens originais de todo o drama de Sapé, centrado
nas experiências de João Pedro Teixeira e de Elisabeth, sua mulher.
Portanto, ao registrar aqueles fatos no filme, tenta reconstruir e
recriar essas vidas através da apreensão do fluxo do tempo em cada plano,
cada seqüência, cada tomada. É este fluxo que nos dará, como espectado-
res, a sensação de intensidade, a densidade dramática das imagens que o
compõem. Devemos ter sempre em mente as palavras de Paul Klee: A Arte
não reproduz o visível, mas torna visível. Com isto evitaremos uma leitura
epidérmica do filme, realizada através do impacto de seu “conteúdo” mais
imediato, eternamente mais simplificada e superficial.
Devo deixar mais claro, neste momento, um outro pressuposto
do qual parto: todo filme é uma ficção.
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Para que exista um filme e uma relação entre tela, projeção e O que normalmente
confunde o espectador
espectador, é necessário, como já vimos, que exista por parte da platéia é o fato de que o termo
uma pressuposição psicológica de verdade nas imagens que ela vai ver. Se ficção, na linguagem
todos pensassem no cinema, o tempo todo, que aquilo que eles estão ven- corriqueira, remete di-
retamente a um discur-
do é uma mentira, não haveria relação cinematográfica que se construísse. so imaginário sobre o
Mas vimos, também, que esta ilusão transpõe a realidade das coisas para a futuro, ou o passado,
não importa, ou então
realidade das imagens destas mesmas coisas. Esta transposição, necessá- à transposição para o
ria, omite o tempo todo os seus próprios fundamentos. Ao fazer isto, es- mundo das imagens de
conde o fato de que qualquer imagem é sempre construída, organizada, alguma estória imagi-
nada por alguém, mas
arranjada e rearranjada por alguém que não aparece mas que está por trás sempre relacionado
das câmeras. com o fato evidente de
ser uma invenção. A
Conseqüentemente, se todo filme é uma construção, uma ficção4, relação entre estes dois
pois que é uma elaboração de imagens que têm, obrigatoriamente, um es- termos é forte e eviden-
tatuto diferente da percepção direta dos fenômenos, pensar um filme que te em sua própria raiz
latina, o que nos faz
se coloca para nós como um documentário, nos faz enfrentar diretamente perder de vista que
uma série de outras questões. fictio é também ação de
modelar, formação e
A maior delas está, sem dúvida, na exacerbação da ilusão da criação, além de inven-
realidade do próprio filme que esta espécie particular de imagens nos pro- ção e suposição.
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envernizar, dispor as luzes. O cinema é uma ilusão, uma imagem que fun-
ciona pelo que é em si”.
Pois, afinal, “todos nós sabemos que a arte não é verdade. A
Arte é uma mentira que nos permite perceber a verdade. Ao menos a ver-
dade que nos é dada a perceber” (Picasso).
MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. The problem of the subject-hero in twenty years later
(cabra marcado para morrer) - Film by Eduardo Coutinho. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 6(1-2): 107-126, 1994 (editado em jun. 1995).
ABSTRACT: Run in three stages, 1964, 1981 and 1983, this film is an attempt UNITERMS:
to redeem the tragic events which provoked the death of João Pedro Teixeira, Brazilian filmmaking,
subject-object
president of Sapé Peasant League, Paraíba state, in 1964. Interrupted by
relationship,
the 1964 military coup, shooting was resumed 17 years later. The article is brazilian left wing,
an attempt at disentangling the articulation of Eduardo Coutinho’s speech visual language,
as the discourse of truth for, from beginning to end, it is posed as a docu- photography,
violence,
mentary, and neutral as a result, which would portray the excesses and vio-
pain,
lence generated by Brazilian politics at that time. By analyzing the images time,
and their editing in connection with the narrator’s speech, the article tries to space.
show that a new interpretation of facts taken as background has been made,
and such interpretation surely has much more to say about a certain view on
the Brazilian peasantry and a way of making politics - and therefore history -
rather than about the narrated facts as such. As a result of that fluctuation
the subject-character keeps changing places all the time, thus confirming
the very same tricks the film primarily strives to denounce.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAZIN, André. (1985) Qu’est-ce que le cinéma? 1ª edição. Paris, Les Éditions
du Cerf.
BERNARDET, Jean-Claude. (1991) O vôo dos anjos. 1ª edição. São Paulo,
Brasiliense.
FELLINI, Frederico. (1974) Fellini por Fellini. 1ª edição. Porto Alegre, L&PM
Editores.
FOUCAULT, Michel. (1981) As palavras e as coisas. Uma arqueologia das
ciências humanas. 2ª edição, tradução de Salma Tannus Muchail.
São Paulo, Martins Fontes.
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