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irmão.

O diretor transforma certas expressões em cenas literais:


Macunaíma “trepa” nas costas de Sofará, ela “come” literalmen- O HOMEM D O
te um dedo do herói, iniciando, assim, um jogo sadomasoquista
que vai se repetir nas cenas com Ci, a dominadora com roupa
PAU-BRA SIL *
de couro. O sexo é, no melhor dos casos, uma relação de for-
ças, ou então puro jogo de cena quando se trata de enganar o POR PAULO ANTONIO PARANAGUÁ
outro, de obter um favor, ou, ainda, o obscuro objeto do desejo,
o muiraquitã. As gags visam a provocar o riso, mas não deixa
de haver por trás delas uma visão pessimista, que vai explodir
Visto na época por dois milhões de brasileiros, o filme
em outro filme de Joaquim Pedro, Guerra conjugal (1974). Mais
Macunaíma (1969) estabeleceu um diálogo – excepcional até en-
descontraído, Vereda tropical (1977) elogia o prazer solitário, em
tão no Cinema Novo – com o público nacional e ao mesmo tem-
lugar do prazer solidário. O conflito dos sexos encontra, afinal,
po com os atores da nossa cultura, que encontraram inspiração
uma solução puramente utópica em O homem do pau-brasil (1981).
ou confirmação para embarcar no tumulto do Tropicalismo.
A “leitura” de Macunaíma feita por Joaquim Pedro estava fil-
Lançado em plena abertura, O homem do pau-brasil (1981) não
trada pelas suas leituras de Oswald de Andrade. A adaptação
conseguiu repetir a dupla façanha. Sua recepção na imprensa
foi um processo de apropriação e reconstrução, dizia o crítico
foi muito desigual, a ponto de provocar uma reação de defesa
Ronald F. Monteiro, as quais vêm a ser operações tipicamen-
do diretor, Joaquim Pedro de Andrade, magoado. Três décadas
te modernistas. Pelo visto, nem todos os exegetas da obra de
depois, o filme ainda é um objeto voador não identificado no
Mário de Andrade apreciaram. No entanto, o filme mostrou
firmamento audiovisual.
a absoluta atualidade da sua mitologia sincrética, além de sua
Em lugar de uma biografia tradicional, com psicologia e
pertinência no debate cultural, mesmo na conjuntura específi-
dramaturgia convencionais (um biopic), trata-se de uma evoca-
ca dos anos de chumbo.1
ção dos temas e preocupações que agitaram a vida de Oswald
de Andrade. Biografia intelectual também não é o termo
1 Sobre Macunaíma, Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema adequado. Primeiro, porque se trata de um retrato de grupo.
Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Brasiliense: São Paulo, 1993, p.138-158. Segundo, porque a encarnação de boa parte das figuras do
Modernismo é feita num tom de comédia, inclusive de farsa
bufa, com uma sucessão de gags e invenções que conjuram
* PARANAGUÁ, Paulo Antonio. “Macunaíma”. In: A invenção do cinema
qualquer didatismo e que fazem do filme uma pura curtição
brasileiro: modernismo em três tempos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2014, pp. 144-148. de cenas surpreendentes, personagens insólitas, proclamações
irreverentes ou utópicas.

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Oswald é interpretado simultaneamente por Itala Nandi principais organizadores da Semana de Arte Moderna, sem a
e Flávio Galvão. A dupla funciona às vezes como um dueto e menor sombra de caricatura – imposta a praticamente todos os
outras vezes é dissociada, como se o lado macho e fêmea do demais personagens, muitas vezes em altas doses.
escritor tomassem rumos diferentes. De certa maneira, é o que O sarcasmo talvez seja uma resposta à tensão vivida pelo
ocorre no desfecho, quando a segunda proclama o matriarca- próprio Joaquim Pedro entre razão e imaginação, ciência e arte,
do de Pindorama e tira de cena o primeiro. aspiração individual e coletiva, cultura e messianismo. Seu
Poetas e escritores declamam, enquanto burgueses e revo- projeto seguinte, O imponderável Bento contra o crioulo voador,
lucionários pontificam. Mas a abundância de palavras e diálo- mostrava a mesma disposição para a fabulação e a jocosidade.
gos não interrompe a carnavalização, como se a avacalhação É o seu roteiro mais buñueliano. A proliferação de anacoretas
fosse uma vocação nacional. Nesse desfile, alguns personagens no Planalto Central, por exemplo, é uma referência explícita a
famosos comparecem sem nome ou com o seu nome verdadei- Simón del desierto (Luis Buñuel, México, 1964). Sagrado e profa-
ro, outros com nome trocado (Tarsila do Amaral, Pagu), outros no estão ligados nesse retrato de Brasília na época da ditadura,
com trocadilhos (o poeta francês Blaise Sans-Bras – sem braço onde o frenesi da modernidade convive com a miséria humana
–, em lugar de Blaise Cendrars, mutilado de guerra). da alta sociedade. Infelizmente, não foi filmado.2
A identificação dos personagens não é indispensável, ela Em O homem do pau-brasil, filme-testamento de Joaquim
acrescenta apenas um eventual comentário ou apreciação, Pedro, a família modernista é interpretada por atores e atrizes
da mesma maneira que não é preciso conhecer a evolução de que tinham trabalhado em filmes anteriores do diretor, alguns
Oswald para acompanhar o enredo. A comicidade é imediata, tão emblemáticos quanto Macunaíma (Dina Sfat, Grande Otelo,
não precisa de mediações, mas nem por isso elimina a perple- Paulo José). O cineasta convocou sua trupe de comediantes
xidade, ou pelo menos a curiosidade. Talvez esse fosse um dos para representar e renovar o repertório do Modernismo. O
objetivos de Joaquim Pedro, descrente da pedagogia e da ins- gran finale é uma revolução contra o patriarcado, a possibili-
trumentalização do cinema. dade de uma afetividade e de uma sociabilidade mais abertas,
A trajetória libidinosa, debochada e contraditória de menos preconceituosas. A família eletiva que rodeia o cineas-
Oswald parece corresponder ao ceticismo do cineasta a respei- ta se superpõe, assim, à utopia da família reconstituída repre-
to de qualquer sistema de pensamento. Assim mesmo, a evolu- sentada na tela, capaz de reconciliar os tumultuados afetos de
ção do profeta da Antropofagia tem no filme uma certa coerên- Oswald. No entanto, O homem do pau-brasil é de um otimismo
cia dialética, talvez por necessidade dramatúrgica. Da mesma quase forçado.
maneira que a fita Macunaíma era oswaldiana, O homem do pau
-brasil é uma versão racionalizada, articulada, quase mario-
2 Joaquim Pedro de Andrade, O imponderável Bento contra o crioulo voador,
andradina do Oswald. Mário aparece no filme como um dos Marco Zero-Cinemateca Brasileira, São Paulo, 1990.

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O sincretismo mitológico e paródico do Macunaíma de comediantes vindos da chanchada, como José Lewgoy, Colé e
Mário de Andrade tinha adquirido um tom mais desesperado Norma Bengell, Tabu assinala uma inflexão na obra de Bressane.
na versão oswaldiana de Joaquim Pedro. O “herói sem nenhum O antigo realizador do Udigrudi ou Cinema Marginal estabele-
caráter” não merecia, a seus olhos, a mínima condescendên- ce um diálogo fértil com a tradição cultural, com destaque para
cia – ainda mais levando em conta a dramática história recente o Modernismo: Quem seria o feliz conviva de Isadora Duncan?
dos brasileiros. Macunaíma preto e branco, Oswald homem e é um episódio das Oswaldianas filmado para o centenário de
mulher, as contradições e divisões do Brasil contemporâneo Oswald (1992), e seu filme Miramar (1997) é livremente inspira-
encontraram memoráveis encarnações na figuração moder- do nas Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald.
nista do cineasta. Na sua visão, alimentada pelo diálogo cons-
tante em torno da cultura nacional, esses impasses remontam
às origens da civilização brasileira, que ele pretendia plasmar
no filme Casa grande, senzala & cia., livremente inspirado pelo * PARANAGUÁ, Paulo Antonio. “O homem do pau-brasil”. In: A invenção do
cinema brasileiro: modernismo em três tempos. Rio de Janeiro: Casa da
clássico de Gilberto Freyre.
Palavra, 2014, p. 149-153.
A Antropofagia oswaldiana tinha inspirado outros filmes
do Cinema Novo, a começar por Como era gostoso o meu francês
(Nelson Pereira dos Santos, 1971). Nesta fita de uma ironia sutil,
o canibalismo tranquilo e assumido substitui a antiga idealiza-
ção romântica do Índio, destinada a conjurar o estigma da es- O HOMEM DO PAU-BRASIL
cravidão do Negro. O diretor encena os indígenas Tupiniquins
Joaquim Pedro de Andrade | 1980
e Tupinambás, em conflito entre si, como uma reportagem
com câmara na mão: esse falso “cinema verdade” desmente os MACUNAÍMA
relatos mentirosos legados pelos colonizadores, citados na in- Joaquim Pedro de Andrade | 1969
trodução e nos intertítulos. Apesar da aparente simplicidade
a curadoria
do dispositivo, o filme funciona também como uma alegoria indica:
dos brasileiros manipulados pelos estrangeiros durante a dita-
dura militar “entreguista”.
Oswald de Andrade comparece ainda num encontro
imaginário com o compositor Lamartine Babo, organizado
pelo cronista João do Rio, no filme Tabu, de Júlio Bressane
(1982). Interpretado pelo tropicalista Caetano Veloso e por

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