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JAIRO FERREIRA – ENSAIOS

SHOHEI IMAMURA

Entrar no trabalho de Shohei Imamura exige muita energia humana. Sua


visão de mundo está entre as mais caóticas. Seus filmes dão impressões
incongruentes. As pessoas dizem coisas horríveis sobre Imamura. Que
ele está obcecado. Um poeta tragico-grotesco. Um expoente do
irracional. Um louco como Watanabe, um destruidor como Oshima, um
demônio como Uchida. O monge ciclista caminha pelas profundezas do
inferno, sempre com a teimosia de um cão derrotado. (1) As crônicas
entomológicas destroem o Manual de Antropologia. O homem-porco é
amante da mulher-inseto. Ela é a mulher mais despossuída que já
apareceu na tela. Ele foi massacrado pela invasão dos ratos. O bicho-
da-seda é um personagem desta época de insatisfação. As antenas entram
em ação: o que importa é a energia que impulsiona a sobrevivência. O
ferro elétrico está ligando e espelha a imagem distorcida dos
animais. Todos procuram uma fuga, mas não encontram saída. "Os desejos
são suficientes para viver."

Os personagens de Imamura trocam os fins pelos meios: os homens só


lutam quando não há mais nada a perder. A multidão amorfa aglutina-se
nas ruas da cidade: os porcos rosnam mórbidamente. É a revolução dos
insetos contra os porcos. O cenário visto pelo olho de uma câmera
retardada é alucinatório. Imamura não apela à compaixão de
ninguém. Ele entende os mecanismos e não tem medo de divagar. O
irracionalismo passa pelo crivo do racionalismo e se transforma em
pureza cristalina. O Templo dos Cães procura novos adeptos, mas todos
acabam arruinados no grande Estádio de Ciclismo. O monge que perdeu a
fé no budismo, ou apenas uma partida de jogo. A carne de porco é mais
cara que a carne de cachorro. O velho monge teve um passado incestuoso
e morre como um cachorro cansado. A antropofagia é o caminho em tempos
de guerra. A serenidade oriental mantém um ressentimento milenar. O
Oriente promete engolir o Ocidente. O Japão assina um tratado de
segurança com os EUA. Os ianques debocharam o tesouro das belas damas
japonesas. É consanguinidade política. Os imprudentes aplaudem as
manobras dos jatos em bando. Eles ignoram que seus filhos estão na
barriga do lobo. As novas gerações reagem a tudo como os insetos com
suas antenas. É o momento da ingratidão. A miséria humana entorpece o
raciocínio, desfigura a moralidade, corrói os sentimentos. O trabalho
de Imamura tem o poder da bomba H: é uma vassoura gigantesca no centro
da aberração. Tirando a esperança da depressão, a ternura da tortura,
a nobreza da abjeção, o brilho da confusão total.

Imamura é o campeão do jogo dialético. Na sua visão não há


limitações. Se não houver uma saída objetiva, Imamura entende tudo
através da imaginação. É o conflito entre porcos e deuses. Tudo o que
importa é a energia que comanda a sobrevivência. Imamura tem os pés em
terra firme. Ele é um desmistificador. Seus personagens dão o máximo e
nunca conseguem chegar ao mínimo. É a condição humana. É o fogo que
nunca se apaga. São cinzas fornecendo energia para uma nova abertura,
onde o pesadelo será rasgado, o absurdo explicado, o cotidiano
compreendido.

Para os poucos que sabiam onde encontrar a sua obra, Jairo Ferreira foi,
desde o seu início como crítico em 1965 até à sua morte em 2003, sempre uma
voz única a ter em conta. Ele ainda é mais conhecido, mesmo em seu país de
origem, por seu excelente livro sobre o cinema underground brasileiro, Cinema
de Invenção ('cinema de invenção' – alguns trechos em inglês aparecem
em Framework , nº 28). Foi também um cineasta de primeira linha, trabalhando
principalmente em Super 8; sua filmografia inclui Antes que eu me
esqueça (1977), O Insigne Ficante (1980), Horror Palace Hotel (1978) e o
último filme de crítica que virou diretor, O Vampiro da
Cinemateca (1977). Além disso, foi colaborador frequente de muitos dos nomes
mais obscuros e inventivos do cenário cinematográfico brasileiro, como
escritor, assistente ou ator.

Os dois ensaios aqui selecionados provêm de dois momentos distintos de sua


carreira. 'Cinema: Music of Light' foi encomendado para um livro de 1986
sobre como os críticos viam seu trabalho. É mais convencional e direto que o
trabalho habitual de Jairo, mas lhe permitiu falar sobre quase tudo: sua
paixão pelo cinema (e principalmente por aqueles que tentam fazer algo
diferente); e o que ele não gostava na crítica e no cinema brasileiro por
volta de 1986. O pequeno ensaio sobre Shohei Imamura (falecido em 30 de maio
de 2006), um exemplo muito típico da abordagem não convencional de Jairo à
crítica, foi escrito em 1967, no início de sua carreira e da do diretor, para
o São Paulo Shimbum – o jornal paulista japonês comunidade, onde na época
mantinha uma coluna semanal.

O cinema, arquitetura em movimento,


consegue despertar sensações musicais que
se solidificam no espaço, através de
sensações visuais que se solidificam no
tempo. Na verdade, é a música que nos
toca através do olhar.

-Elie Faure

O cinema é a invenção mais misteriosa entre todas as artes –


ilusão, música de luz. Jean Renoir afirmou ter a convicção de que o
cinematógrafo é uma arte mais secreta que todas as outras. As
pessoas acreditam que o cinema é feito para seis mil espectadores
no Palácio Gaumont, mas não é assim; é feito para três entre esses
milhares de espectadores. Mas um dos ensaios mais proféticos sobre
o enigma do cinema ainda é a declaração de Abel Gance (citada
na Anthologie du cinéma de Marcel Lapierre, de 1946 ):

A era da imagem chegou! Explicar? Comentar? Para


que? Caminhamos, alguns montados em cavalos-nuvens, e
quando entramos em choque é com a realidade, para obrigá-la
a transformar-se em sonho! O bastão do mágico está em todas
as câmeras, e o olho de Merlin se transformou na lente.

A era da imagem chegou! De uma forma ou de outra, a invenção do


cinema – uma arte adolescente com apenas noventa anos de existência
e não o milénio das artes mais tradicionais – deveria ser moldada
pela poesia, para que possamos ter hoje um cinema de invenção, de
narrativas sintético-ideogramáticas e novas percepções. Se isso não
acontecer, como disse Orson Welles, o cinema continuará a ser uma
baleia cheia de palha, apenas uma curiosidade mecânica.

Quanto à formação que um crítico de cinema deve ter: penso que


deveria ser tão ampla e eclética quanto possível, pois vejo o
cinema como uma arte antropofágica, polarizada e transcendental na
forma como sintetiza todas as seis artes anteriores e se
metamorfoseia numa inquietação sobre o seu futuro neste fim de
século em que se fala demasiado sobre o cinema holográfico e a
laser da era do lazer. Ou, como coloco no início do século XXI (a
saber, o meu próprio Cinema de Invenção ): Amphicinema. Nova e
velha Grécia, techno-pop, eletrônica. Substituição lenta do filme
por fita tridimensional de alta definição. Cinema sem tela. Cinema
de sinalização, cinema satélite. Sendo a informática uma síntese, a
formação do crítico não deve limitar-se ao cinema, mas abranger, ao
mesmo tempo, a leitura dos clássicos, da banda desenhada, do
ocultismo, de tudo o que diz respeito à pintura/arquitetura/teatro,
ao jornalismo, à rádio, à televisão, ao circo, à ciência. ,
astrologia, sem esquecer a filosofia e a sociologia, mas com
especial importância dada à poesia e à música – tudo o que é
verdadeiramente vivido.

A função da crítica, vista como atividade especializada, é, assim,


estabelecer uma ponte criativa entre filme e espectador,
radiografando sempre as estruturas narrativas que geram elações de
múltiplas ordens, da metafísica à dialética. Os grandes filmes
exigem do crítico um verdadeiro salto para as profundezas do abismo
– e nem sempre é necessário que ele volte à superfície com artigos,
ou mesmo palavras faladas. Às vezes um crítico simplesmente volta
como cineasta, como Jean-Luc Godard, que foi um grande crítico nos
anos 50 e começou a filmar para entender melhor o mistério do
cinema – e continuou crítico depois de se tornar cineasta. Nesse
sentido, vale lembrar o que disse Ezra Pound: os melhores críticos
são aqueles que efetivamente contribuem para melhorar a arte sobre
a qual escrevem.

Padrões de análise de filmes: aqui está um assunto


controverso. Poderíamos não aceitar o julgamento de um crítico, mas
não podemos aceitar uma total falta de padrões ou qualquer
irresponsabilidade. Entre nós, é frequente que estes padrões sejam
derivados mais dos editores do que dos críticos, quando são os
padrões pessoais do crítico que devem prevalecer. Esses padrões
devem variar de filme para filme. Para escrever sobre um filme
como O Encouraçado Potemkin (1925), o crítico deveria saber muito
sobre a revolução de 1917, a posição de Eisenstein entre as
vanguardas de seu tempo, seus escritos sobre montagem, e assim por
diante. Mas, para analisar alguns filmes populares brasileiros, não
é preciso conhecer mais do que algumas novelas. Quanto aos meus
próprios padrões, minha base é a percepção Poundiana, por isso
valorizo os filmes de invenção (aqueles feitos por cineastas que
encontram novos caminhos no processo estético) e os filmes de
mestres (aqueles que afirmam um certo número de processos e os
utilizam como bem como, ou melhor que, os inventores).

Na minha visão crítica do cinema (brasileiro ou não), enfatizo


justamente o potencial inventivo dos nossos cineastas mais
independentes, de Mário Peixoto a Júlio Bressane. Há toda uma
linhagem de cineastas aventureiros, como o Major Thomaz Reis, que
expôs seus negativos de filmes no coração da selva. Em condições de
produção incertas, estes cineastas alcançaram, nos seus filmes,
excelentes resultados estéticos e poéticos. Outras vezes, quando os
cineastas tinham condições favoráveis, os resultados nem sempre
eram satisfatórios. Daí concluo que as produções de médio porte são
as mais funcionais para o cinema brasileiro. Houve, de certa forma,
muito mais independência criativa no início do que vemos hoje. Quem
fazia cinema tinha que ter verdadeiro talento, mas agora é a era de
quem tem melhor conhecimento da manipulação política. Esperemos que
novos ventos tenham começado a surgir da produção de curtas-
metragens, a terra reservada da revitalização geral.

Se é verdade que bom crítico é aquele que aprimora a arte sobre a


qual escreve, a crítica brasileira deveria oferecer soluções para o
cinema brasileiro. Mas isso nem sempre acontece. Os críticos que
realmente contribuem para esta melhoria necessária geralmente não
permanecem nos seus empregos o tempo suficiente. Os nossos críticos
falam muito à distância crítica – o filme está aí, e eles estão
longe dos problemas do nosso cinema, muito atentos às últimas
fofocas de Hollywood. Falta-nos intimidade crítica, envolvimento
direto do crítico na produção: só assim podemos criar um novo
movimento, uma nova tendência, um novo período criativo.

O elemento-chave da minha formação cinematográfica foi a


crítica. Isso me ajudou a ver filmes com outros olhos. Então
1. Boca do Lixo era o bairro de São
comecei a ver filmes uma segunda vez e descobri que a crítica só é
Paulo onde eram feitos os filmes B respeitável quando o crítico já viu o filme muitas vezes. (Estou
brasileiros (e também sede da maior falando dos grandes filmes – para os filmes ruins nem precisa ficar
parte do cinema underground paulista).
até o final). Desde a adolescência sempre me interessei por uma
crítica mais dinâmica, do tipo que encontrei em teóricos como Jean
2. A Embrafilme foi uma
produtora/distribuidora estatal que
Epstein, Louis Delluc, André Bazin e, aqui no Brasil, Paulo Emílio
uncionou do final da década de 1960 a Salles Gomes. O gênero ensaio deveria ter mais espaço, pois é aí
1990. que o crítico poderá desenvolver melhor suas ideias.

3. Vera Cruz foi um grande estúdio


undado na década de 1950 e sediado
As escolas de cinema têm um papel fundamental mas aqui, entre nós,
em São Paulo. não cumprem essa função. Eles são salvos pelo uso técnico, quando
uma das boas câmeras foi parar nas mãos de um artesão da Boca do
4. Esta é principalmente uma Lixo. (1) Esse é o caminho que parece ter sido encontrado
referência à forma como o recentemente pela Embrafilme, que inaugurou um novo centro técnico
inanciamento através da Embrafilme no Rio, além de promover seminários para expositores, convidando
uncionou nos anos 80, quando o
dinheiro do governo foi investido em técnicos estrangeiros para falar sobre acústica teatral, (2) à moda
alguns autores estabelecidos com as antiga que Vera Cruz abriu e mantém até hoje uma verdadeira
conexões certas (geralmente ex- escola. (3) O problema é que os talentos nunca vão à escola e o bom
cineastas do Cinema Novo) ou em
ilmes comerciais medíocres e de nível cinema é sempre obra de cineastas autodidatas – que não passam os
médio. seus truques a novas pessoas.

O Estado poderia fazer muito pelo cinema brasileiro, se


atrapalhasse menos. Nos últimos quinze, vinte anos o seu papel tem
sido o de adversário, matando carreiras promissoras e estabelecendo
um festival constante de mediocridades bem feitas, sem qualquer
força criativa. (4) O Estado deveria limitar-se a criar uma
legislação corajosa, afastando-se da coprodução de longas-
metragens, incentivando a área cultural com curtas e médias-
metragens experimentais, bem como desenvolvendo a publicação de
revistas e livros.

Normalmente não separo o cinema brasileiro do cinema estrangeiro,


pois o país do cinema é o próprio cinema. Entre os dez melhores
filmes de todos os tempos, incluiria três
brasileiros: Limite (1931), de Mario Peixoto, Deus e o Diabo na
Terra do Sol, de Glauber Rocha , e O Bandido da Luz Vermelha , de
Rogério Sganzerla ( O Bandido da Luz Vermelha , 1968). O melhor
ainda é Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, pela criação de uma
estrutura estética complexa que representa um desafio aos melhores
críticos – que divertia seu inventor, que ainda considero ser
também o maior cineasta de todos os tempos. Godard é outra paixão,
mas eu incluiria apenas um filme dele no Top Twenty ( One Plus
One , 1968): em todo caso, ele é o exemplo perfeito do
experimentador e inventor incessante. Posso citar também aqueles
cineastas de cujos filmes gosto quase todos: Eisenstein, Hitchcock,
Antonioni, Fuller, Ford, Bressane, Ozualdo Candeias, Chaplin,
Hawks, Lang, Buñuel, Glauber e muitos outros autores-inventores.

O futuro do cinema? Estou com Roberto Santos: “ O cinema ainda não


nasceu. É muito jovem, apenas deu os primeiros passos ”. Na verdade,
noventa anos é pouco em relação ao milénio de artes que veio antes. O
cinema laser já mostrou os seus trailers e o século XXI irá consolidar a
força expressiva desta arte sintética.

O cinema – mas nunca o cinema – já passou. O filme e seu processo


mecânico já foram substituídos pelo vídeo do cinema eletrônico. Cinema
agora é televisão e Godard já faz seus filmes em vídeo. Neste momento o
vídeo está mais próximo do cinema, mas a tendência é que o cinema se
aproxime da televisão.

Quanto ao papel do circuito alternativo e da produção: este é o caminho


usual para trabalhos experimentais que, no Brasil, eram exibidos em telas
convencionais, com exceções como Limite, que nunca recebeu esse
privilégio porque foi rodado a dezesseis quadros por segundo e, portanto,
precisava de um projetor que tivesse essa velocidade. É do circuito
alternativo que virão as ideias e as formas – que mais tarde o cinema
convencional difundirá em escala industrial. Toda cultura cinematográfica
tem o cinema alternativo como sede, como capital.

A crítica costuma considerar o tema cinematográfico como sua prioridade,


graças ao seu conteúdo e à sua formação sócio-ideológica. Mas não separo
o tema do filme da sua forma: da forma nasce a ideia (Flaubert), e não há
linguagem revolucionária sem forma revolucionária (Maiakovsky) e, tal
como o poeta Roberto Piva, só acredito na poeta experimental que vive uma
vida experimental

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