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Lumière, "o último pintor impressionista"

Por que Lumière? Porque começar por Lumière um Tais figuras – aliás algo contraditório, pouco importa –
ensaio sobre o pictórico e o fílmico? não estão exatamente em tela. Se Lumière me fascina, é
Por que Lumière, a propósito de quem parece haver, como todo mundo, em sua relação com o cinema, com os
antes, razões negativas? Lumière nunca praticou a pintura, filmes; nesse térreo os paradoxos são inúmeros e estão. No
seu status de cineasta é duvidoso, não é certo que ele mais das vezes, repertoriados. Inventor do cinema, Lumière
pertença à história do cinema, a não ser como uma figura um vê nele apenas uma invenção sem futuro”. Preocupado
pouco marginal, um bricoleur, um comerciante, um amador. sobretudo com a fotografia – a autocromia continua a ser, e é
Estou exagerando, é claro. Por isso não manterei por o que ele sopra sem parar a seus biógrafos, a grande
muito tempo essa ficção retórica. Neste período vagamente aventura de sua vida -, permanece, para toda a eternidade, o
comemorativo, em que as polêmicas e as brigas, as questões inventor exclusivo do cinema.Primeiro produtor, primeiro
de precedência e de preeminências são incessantemente distribuídos de filmes, imprime sua marca, quase seu estilo,
alimentadas e relançadas por uma pletora de obras eruditas, a toda uma produção pela qual, no entanto, só é responsável
fica claro, ao menos, que o "caso" Lumière continua a indiretamente (não se tem sequer certeza de que tenha um
fascinar, que todo mundo, ainda, faz alguma coisa começar dia girado, efetivamente, a manivela). De resto, ele
com ele. É sobre esse "alguma coisa” que quero me abandona quase de um dia para outro seu grandioso sistema
interrogar. comercial e não se dá absolutamente conta da primeira
Há perfis de Lumière, estudados e retomados ad grande guinada do cinema: a da ficção. Primeiro a ter
nauseam. Lumière inventor (contestado, mas de todo modo compreendido que a produção de imagens animada só tinha
inventor: direi em que), e as histórias, piamente transmitidas interesse em relação a um público, a uma sala, a uma
por seus biógrafos, que fazem dele o tipo do cientista projeção, a um dispositivo1, como se diz hoje, e portanto, por
distraído mas realmente genial, um bricoleur sublime. isso, verdadeiro inventor do cinema, não de uma
Lumière industrial, pé na terra e prático, que triunfa sobre os cinematografia qualquer. Ele é também,
concorrentes simplesmente porque sua câmera polimorfa e incompreensivelmente, o primeiro a sair do jogo, com uma
multifuncional é também a única praticável. Lumière espécie de ostentatória negligência. Para o cinema, no fundo,
comerciante, em fim, e com erciante ímpar, cujo gênio
eclode no surpreendente sistema de exploração que, apenas 1
O termo “dispositivo” foi cunhado pelo teórico francês Jean-Louis
um mês depois da sessão do Grand Café, ele instala – Baudry, sem seu famoso artigo na revista Communications n.23, 1975, e
haveria uma romance e operadores, sobre a dialética se refere ao cinema como um sistema construído de três níveis
centralização-descentralização, desse sistema, sobre a articulados: 1) a tecnologia de produção e exibição
admirável aplicação dos princípios elementares do (câmera-projetor-tela); 2) o efeito psíquico de projeção-identificação e o
ilusionismo; 3) o complexo da indústria cultural como instituição social
capitalismo mais puro ao enriquecimento do catálogo de produtora de um certo imaginário. [N.E.]
filmes da produtora Lumière.
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ele não dá a mínima. filisteu Lumière era um pintor.
Entretanto – continuação dos paradoxos -, há tempos que A palavra soa, talvez, ainda um pouco como uma
os filmes produzidos pela produtora Lumière são vistos provocação: ela é retomada, tal e qual, do discurso mais
como filmes “de” Lumière. Toda uma cinefilia – a cineficlia provocante sobre Lumière, feito pelo cineasta mais
por excelência, a da época Langlois – fez dele, segundo uma provocante. Convidado, em janeiro de 1966, justamente na
afirmação de Philippe Garrel, “o grande mestre da seita”. inauguração da retrospectiva Lumiêre organizada por Henri
(Tempo forte desse culto póstumo: a retrospectiva Langlois, a dizer as palavras de costume, Jean-Luc Godard
organizada em janeiro de 1966, em Chaillot, talvez o vai, logo de saída, além de seu papel de apresentador, e
momento em que se lê, exatamante, a transformação do mito lança algumas frases inspiradas: “O que interessava a Méliès
Lumière, em que o inventor se torna cineasta) Cineasta era o ordinário no extraordinário, e a Lumiêre o
peculiar, sem filmes, sem gosto pelo filmes, e no entanto, extraordinário no ordinário. Louis Lumière, via
um dos maiores. Mas o discurso da cinefilia não pode ser impressionistas, era, portanto, bem o descendente de
criticado, nem ultrapassado: discurso do amor, ele só requer F1aubert, e também de Stendhal, cujo espelho ele levou ao
como prova positiva a prova de amor. longo dos caminhos". Um ano mais tarde, em A chinesa, e
No entanto, ainda, além desse murmúrio da adoração, por intermédio, dessa vez, da personagem interpretada por
Lumière cineasta suscitou também, mais recentemente, outro Jean Pierre Léaud, ele reincide, de modo ainda mais claro:
discurso mais sério – ainda que por vezes um tanto lúdico. Lumière era "um pintor", “o último pintor impressionista”,
Em uma época em que o “cinema dos primeiros tempos” “um contemporâneo de Proust”. Definição admirável, para
tornou-se na pesquisa universitária o tema certo, o excelente além do paradoxo sem dúvida rebuscado: ela tem esse
tema que conhecemos, é de bom-tom não apenas afirmar caráter de evidência, um lado ovo de Colombo, que faz com
Lumière como cineasta, mas demonstrá-lo como cineasta que se lamente não se ter sido a pessoa a encontrá-la.
narrativo. Em um gesto elegantemente paradoxal, que não Lumière pintor, ah, sim, deve ser verdade; afinal de contas, o
teria contradito o Burch das Structures et fonctions de l’aléa, que alguém, fazendo imagens por volta de 1900, podia ser,
descobre-se à porfia, aqui ou ali, algo narrativo no aleatório se não pintor?
lumieriano – talvez por se estar pronto para encontrá-lo em Passado esse primeiro sentimento de evidência, a
toda parte. indefinição, entretanto, permanece notável. “Contemporâneo
Em suma, motivos não faltam para começar por de Proust”: esse pintor nada tem de um Elstir. Será que ele
Lumiére, já que com ele e nele tantas coisas do cinema filmava a mesma coisa que Pissaro, Monet ou Renoir
teriam começado. pintavam? Um dos "últimos grandes pintores
---------- impressionistas da época?" Quem sabe? Para saber mais,
seria melhor, talvez, fingir a princípio não compreender, se
Ora, esses motivos acumulados só criam um motivo bastante perguntar ingenuamente como isso é possível, e em que
ruim: eles continuam sem explicar como posso me propor a terreno.
tarefa, ainda mais paradoxal, de examinar como e em que o Seria preciso, antes de tudo, apesar de Godart ou de seus
grande burgês, o parvenu, o reacionário, o paternalista, o porta-vozes de A chinesa, retirar a questão do modelo. A

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vaga similitude (excepcional, aliás) que pode ser notada antigos, não podem ser atribuídos a ninguém, mas à
entre O jogo de cartas, rodado no “castelo Lumiere" e, herança. Aliás, alguns motivos desse afastamento são claros
digamos, os Jogadores de cartas, de Cézanne, não significa e nós os reencontraremos, ampliados ao cinema em geral,
grande coisa, não mais que um duvidoso encontro entre nos próximos capítulos. Há, por exemplo, toda uma ala da
Almoço do bebê e o Almoço na relva. Pode-se mesmo pintura acadêmica que, voltada para a Idade Média, para a
pensar que Lumière ignorava até os nomes de Cézanne e de Antigüidade ou para o Oriente, põe em cena,
Manet (sua produtora não era, longe disso, a de um amador dramaticamente, episódios ficcionais, a excomunhão de
de arte) e, se ele encontra os impressionistas na escolha de Roberto, o Piedoso, ou o muezim chamando para a reza; as
tais modelos, é, no fundo, mera coincidência de classe. Sem leis dessa mise en scêne são simples, estereotipadas, mas
querer, é claro, reduzi-lo a esse único aspecto de sua obra. eficazes, e tais quadros vêm, de maneira extrema, quase
Lumière constitui uma verdadeira iconografia da burguesia excessiva, de uma definição da pintura como momento
ascendente por si mesma; não é de surpreender, portanto, sintético que o cinema justamente desloca. Até mesmo
que ele pareça encontrar pintores que, para além de sua quando se interessa, fora da ficção, pelo típico ou pelo
posição “escandalosa" no Salão, elaboravam, também eles, exótico, pelos jogos infantis ou pelos indígenas das colônias
uma iconografia do burguês em todos os seus estados francesas, Lumière só encontra a pintura pompier em um
(sintomaticamente, é como artista burguês que Godard - plano ideológico geral, o dos lugares-comuns sobre as raças,
novamente ele, mas não exatamente ele mesmo - ataca os povos e as profissões. O que o separa da pintura não é
Monet, em Vento do leste). Mas burguês, quem não o era, mais, dessa vez, a ficção, nem a síntese temporal, e sim o
fotógrafos de salão e pintores pompiers2 na linha de frente? recurso sistemático desta última ao arquétipo e ao
Tal aproximação não indica grande coisa. "essencial', lá onde o cinema(tógrafo) lida com o acidental,
O que é mais estranho para um pintor burguês, e já pode com o tal e qual.
sugerir um início de resposta, é a ausência flagrante de No total, os encontros mais manifestos entre os enredos
qualquer eco, em Lumière, da pintura acadêmica do fim do das "vistas" Lumière e outras imagens se dão em torno de
século (talvez seja o que Vincent Pinel queria dizer em sua temas banais, pouco marcados como artísticos, e
monografia quando, aparentemente na contramão de simplesmente pouco marcados. Poderíamos falar, e falamos,
Godard, afirmava que, não sendo de modo algum um de um lado "cartão-postal" da vista Lumière; o historiador
homem de espetáculo, Lumière escolhia seus enredos fora Jacques Deslandes, que não gosta de Lumière, fez disso
das referências pictóricas). Seja como for, e a redescoberta uma fórmula propositadamente maldosa. Notemos, aliás,
recente dos pompiers permite constatá-lo, tenha ele tido ou que, no final das contas, o cartão-postal ilustrado, cuja voga
não conhecimento da existência e da produção deles, começa por volta de 1890, é o contemporâneo mais estrito
Lumière não retoma nem seus enredos, nem seus temas, nem da vista, e que há, com efeito, mais de uma relação entre os
seus princípios de composição, a não ser aqueles que, gêneros de predileção de ambos, quando não, forçosamente,
uma correspondência, tema por tema: lugares
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Diz-se dos pintores que tratavam temas artificiais e enfáticos de representativos - os monumentos, os centros de cidades, as
maneira convencional (sec. XIX). [N.T.] avenidas -" mas pitorescos; o mundo do trabalho no

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cotidiano, mas imobilizado, idealizado em suas posturas ----------
"nobres"; as festas rituais, cujo paradigma é o destile
militar. No máximo deveríamos salientar uma divergência Já que não se chega a nada partindo da pintura, será preciso,
no tratamento dos temas excepcionais. Viés de classe, ainda portanto, reiniciar do cinema. Já disse, por alto, por que eu
ai: a vista Lumière preferirá sempre as cabeças coroadas aos considerava Lumière o inventor do cinema, ou, se
operários em greve, que o cartão-postal não negligencia.
pudéssemos dizer, "o mais inventor" do cinema: porque ele é
Estou forçando um pouco as coisas, é claro, mas está
mais ou menos claro que o que "Lumière-pintor" efetua não aquele que mais se aproxima da conjunção ideal dos três
é uma transposição, uma tradução de modelos pictóricos momentos maiores dessa invenção: imaginar uma técnica,
para outro registro. Uma comparação com a fotografia, até conceber o dispositivo no qual ela será eficaz, perceber o
mesmo a simples evocação desta, basta para confirmá-lo. objetivo em vista do qual essa eficácia se exerce.
Fora dos empregos específicos, mas limitados (sempre Como isso se traduz em seus filmes? De diversas
como documento, policial por exemplo), a fotografia no maneiras, sem dúvida alguma: salientarei apenas os dois
século XIX busca sua legitimação em um plágio
traços que melhor respondem à minha questão - a questão da
desavergonhado dos lemas da arte pictórica, e até mesmo,
escancaradamente, dos meios dessa arte. Em seu estúdio pintura. Antes, porém, uma observação: tudo o que se pode
moldado sobre o do pintor, o fotógrafo não pára de dizer da vista Lumière, do dispositivo Lumière, deve ser dito
estabelecer conivências, se necessário, contra a natureza tendo-se em mente a leve flutuação que marca a invenção do
(ver a obra de um Rejlander). Apogeu desse "complexo do cinema e sua visada. O próprio Lumière, pouco familiar,
bastardo", os pictorialistas franceses - os Demachy, os Puyo como já foi dito, ao mundo do espetáculo, só podia entrever
- se esmeram na imitação da Escola de Barbizon ou Corot, e de sua invenção um único traço - "sem futuro": a produção
de modo ainda mais grave na produção, por diversos
de um movimento aparente. Homem de estudo, em primeiro
artefatos que só têm em comum o fato de serem violências
impostas ao ato fotográfico, de uma aparência equivalente à lugar, ele parece ter sempre lamentado que essa
da pincelada pictórica (semelhança totalmente superficial, imagem-movimento não tivesse mais a ver com a ciência.
que não loca nada de essencial, a não ser a possibilidade de Haveria, em suma, na vista Lumière, uma confiança um
assinar a obra). pouco instintiva dada a certa virtude do material e da
Nada disso, evidentemente, no cineasta Lumière: nem na técnica, e, por conseguinte, uma espécie de invenção prática,
escolha dos temas (nada de mulheres nuas, de cenas
"de campo" de formas de representação adequadas ao que a
alegóricas, de paisagens), nem, tampouco, na aparência da
imagem. Por qualquer lado que a consideremos, a evidência invenção é e ao que ela sugere. (Conclusão, simples mas
godardiana escapole: nem influências, nem filiações, nem importante: Lumière, ou seus substitutos, não decifraram
co-naturalidade. Onde está, portanto, essa determinada partitura cultural; eles, literalmente,
contemporaneidade" entre Lumière e os impressionistas, e improvisaram. E conhecemos também o peso dos
Proust? Em outra parte, evidentemente. estereótipos na improvisação.)
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Primeiro ponto, portanto, que nos será indicado pelas
reações dos primeiros espectadores de Lumière. Pelo que
lemos de tais reações, nos relatos da imprensa, o que lidera
os espectadores e os críticos é, ainda e sempre, ao longo das
projeções, uma única coisa: a profusão dos efeitos de
realidade. Fala-se sempre da famosa reação dos espectadores
de A chegada de um trem à estação, de seu pavor, de sua
fuga desvairada: como lenda, essa história é perfeita
(impressionante e exemplar); mas não passa de uma lenda,
cujo vestígio real não encontramos em parte alguma. O que
encontramos, em compensação, e aos borbotões ao longo do
ano de 1896 são observações surpresas, incrédulas, OS EFEITOS DE REALIDADE: QUANTIDADE, QUALIDADE
extasiadas, alucinadas sobre outros efeitos, menos maciços,
menos propicias à lenda, efeitos evanescentes, mas Fotogramas de Lumière: O lago das Tulherias [acima]; Desfile de
Dragões [p. 35]; Demolição de uma parede [p. 38]: Chegada de um trem a
obstinados, sempre ali.
Villefranche-sur-Saône [p.40] (1896.97).
Sem querer substituir uma lenda por outra, o que
propomos aqui é um deslocamento importante da tônica: a TRECHOS DE RELATOS SOBRE AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES
história do pavor diante da locomotiva faz dos espectadores LUMIÈRE:
seres um pouco rudes, sensíveis a um efeito de real global e
Mais de cem personagens ou grupos animados passam, em 50 segundas,
bem primitivo. Ora, foi, de modo um pouco mais sutil, por
nessa porta projetada sobre a tela.
efeitos de realidade que eles foram tocados. Insisto sobre a
Distinguem-se todos os detalhes: as ondas do mar que vem se quebrar na
verdadeira força alucinatória desses efeitos: um vê, por praia, o fremir das folhas sob a ação do vento etc.
exemplo, as barras de ferro "incandescerem" (em
Ferradores), outro vê as cenas reproduzidas "com as cores Certainly the marvellous detail, even to the puffs of smoke from the
da vida"; de todos os relatos que li, não há um sequer que cigarette. spoke volumes for the perfection of the apparatus.3
lamente, ao contrário, só ter visto uma imagem cinza.
Ferreiros que pareciam de carne e osso se entregaram em seguida a seu
Manifestamente, são esses efeitos que prevalecem.
oficio. Víamos o ferro se incandescer, se alongar à medida que era batido,
produzir quando eles o mergulhavam na água, uma nuvem de vapor que
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“Certamente o detalhe mais admirável, até as baforadas de fumaça do cigarro,
revela os volumes devido á perfeição do aparelho.” [N.E.]

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se elevava lentamente no ar e que uma rajada de vento vinho no século XIX, talvez o único, é o caráter acabado do
repentinamente expulsar. detalhe, a precisão, a impecabilidade. Valor burguês, é
óbvio, a impecabilidade é igualmente cultivada pelo
O que isso significa? Duas coisas. Os efeitos de romântico e pelo pompier, pelo pintor de batalhas e pelo
realidade, às vezes esquecemos de dizer, são também efeitos mais frívolo dos pintores mundanos; ela está tanto em James
quantitativos, e é este, eminentemente, o caso na vista Tissot quanto em Gros ou Meissonier. O que causa a
Lumière. O que encanta o espectador é também o fato de lhe admiração do século XIX por esses quadros aos quais não
mostrarem um número tão grande de figurantes a um só falta sequer um botão de polaina? O que permite a
tempo e, sobretudo, de maneira não repetitiva. As transferência, para aquele valor, do deslumbramento técnico
"personagens" da Saída da fabrica ou da Place des que a pintura sempre procurou ("vejam minha virtuosidade":
Cordeliers são vistas como independentes umas das outras; leitmotiv do pintor ocidental)? É, de modo inegável, poder,
as pessoas ficam encantadas ao descobrir, na décima vez imaginariamente, "computar" o real, fazer com que ele
que vêem o filme, um gesto, uma mímica que até então recaia sobre o indefinidamente adicionável, sobre uma pura
havia escapado; a cada instante acontece alguma coisa, e aglomeração de peças e pedaços. O que seduz nas vistas
quantas se quiser, ou quase. Bastante esclarecedor, ao Lumière seria, portanto, também seu lado impecável, de
contrário, um filme como o Desembarque dos fotógrafos no uma rara perfeição, já que a quantidade de detalhes, e
Congresso de Neuville-sur-Saóne: bem individualizáveis, já sobretudo sua tão notada autonomia, tornam-se ai mais ou
que passam um a um diante da câmera, eles acabam menos infinitas. Junção inesperada, mas efetiva, por essa
parecendo todos iguais. Vemos todos fazendo os mesmos pletora, por esse transbordamento de realidade, a vista
gestos afetados, instalamo-nos na repetição, nos entediamos Lumiére escapa, de salda, de uma parte de sua herança - o
em um minuto! Tal efeito quantitativo tornou-se difícil de brinquedo, o zootrópio ou o fantascópio, o divertimento
ser apreciado; ficamos saturados e insensíveis. Ele foi, no baudelairiano -, e passa, de salda, para o lado da arte,
entanto, capital, até na concorrência entre Lumière e Edison, mesmo que ainda de uma arte menor.
e vários cr´iticos opõem expressamente a profusão sempre Segundo aspecto dos efeitos de realidade, mais
renovada, a generosidade visual dos filmes Lumière, à importante ainda, como veremos, sua qualidade.
avareza do cinescópio, onde um pobre grupo de figuras se Lembramo-nos da surpreendente reação de um dos
repete interminavelmente. primeiros espectadores do Lanche do bebê, Georges Méliès.
Será que há, em pintura, um equivalente Imaginável Desdenhando comentar o que é, hoje ainda, o charme do
desse tipo de efeitos de realidade, quero dizer, um filme, - as caretas da garotinha, seu jogo perverso com a
equivalente espectatorial que faça sentir o mesmo júbilo e o câmera, a atitude incomodada e afetada dos pais -', Méliès
mesmo reconhecimento? Não estou certo de que a dimensão só nota uma coisa: no fundo da imagem há árvores, e,
dos quadros tenha desempenhado ai algum papel: diante das maravilha, as folhas dessas árvores são agitadas pelo vento.
grandes máquinas pictóricas do século XIX, ficamos mais Em outra parte, serão a fumaça - as das Brûleuses d'herbe,
tocados do que maravilhados, e mais angustiados do que tão notadas -, a neblina, vapores, reflexos, marulho das
satisfeitos. O valor pictórico quantificável por excelência, e, ondas, tão perturbadores que ocultarão quase todo o resto e,

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em todo caso, bem rápido, o próprio movimento. Como se, ser por seus efeitos; ela é apenas a "cor" do ar... A herança
nas vistas Lumière, o ar, a água, a luz se tornassem luminista - a de Ticiano e Velázquez - deve ser repensada,
palpáveis, infinitamente presentes. seria preciso chegar a pintar o transparente em todos os seus
E não é um acaso se esse aspecto nos escapa, em 1989, estados.
menos que o outro. Claro, para nós, ele é óbvio, mas está - o irrepresentável; é, portanto, um desafio à habilidade
sempre ali e participa bastante desse efeito mágico tão bem do pintor, salientado como tal. Com a insistência um pouco
descrito por Langlois, Godard e Garrel. É que ainda hoje, obstinada que lhe é habitual, lngres quer resolver o
esse tipo de efeito responde a uma certa definição da arte problema pela força, pela força técnica: “As nuvens também
visual, e esquecemos que ao longo de ao menos um século a podem ser desenhadas, são linhas, nem mais nem menos".
pintura, e depois a fotografia, se obstinaram em produzir No outro extremo. Turner mergulha, espetacularmente, -
esse tipo de efeito. Há ai uma história, a da pintura das com outra virtuosidade, mas igual- qualquer linha em uma
nuvens, das chuvas, das tempestades e dos arcos-íris, a das explosão de cor. Irrepresentável, o fenômeno atmosférico
folhas trêmulas ao vento e do mar cintilante ao sol, uma suscita ainda mais, dir-se-ia, a obstinação teórica; é para
história da qual o século XIX fizera, entre outros, seu figurá-lo que Turner aplica Goethe, que os impressionistas
grande negócio. Seria um exagero, é claro, fazer disso um acreditam aplicar ChevreuI.
fato só desse século. Pintores tão importantes e tão - o fugidio, enfim, o infinitamente lábil, e portanto, em
diferentes quanto Poussin, Velázquez ou Chardin, entre profundidade, a irritante questão do tempo. Como fixar o
muitos outros, trabalharam para mostrar o tremor da luz nas efêmero em pintura de outra maneira que não no modo da
folhas, ou a atmosfera dos fins de tarde, ou o brilho síntese temporal, à qual a doutrina do instante pregnante
tranqüilo dos objetos do cotidiano. O que é próprio do condena? Retomaremos de modo mais demorado esse
século que vai inventar o cinema é o fato de ter ponto, mas notemos, logo, que a fotografia, ao
sistematizado tais efeitos, e sobretudo de tê-los cultivado “embalsamar” o tempo (André Bazin, duplicou a questão à
por si sós, de ter erigido a luz e o ar em objetos pictóricos. qual está submetida a pintura), aprofundou o desacordo
Nessa pesquisa, três traços são salientados., como entre a lentidão do pintor e a infinita rapidez do raio ao ser
questões relacionadas à pintura: pintado.

- o impalpável: a luz não pode ser tocada, ela é a É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça para
"matéria" visual por excelência, pura. Melhor ainda, a luz baixo, que ele ultrapassa definitivamente com seus efeitos
atmosférica não é, propriamente falando, sequer vista, a não de realidade, inocentes, e inocentemente perfeitos. A
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atmosfera continua aí impalpável, e, se quiser, de Lumière-pintor. Depois de Lumière, não haverá mais
irrepresentável; mas não deixa de estar presente no cintilar nuvens em pintura, não mais nuvens naïves. Elas se tornarão
das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem irônicas, em Dalí, parodísticas, em Magritte etc., e quando
infalivelmente os críticos: é mesmo o vento que eles querem pintores – refiro-me a pintores inventivos, não epígonos de
ver). Mas sobretudo, é claro, o fugidio é enfim fixado, e sem epígonos – se arriscarem ainda a figurar algo impalpável,
labor. É de acordo com o trabalho pictórico que se mede o este será, francamente, irrepresentável, imaterial a ponto de
melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com ser absolutamente invisível- a eletricidade dos futuristas (a
efeito, as centenas de folhas duramente pintadas, uma por Lâmpada elétrica, de Balla, 1913) -, ou radicalmente
uma, em um Théodore Rousseau, pelo aparecimento invisível- os "raios fantasmáticos dos raionistas -, mas os
imediato de todas as folhas. E, além do mais, elas se vapores, o arco-íris, porém, nunca mais. Todo mundo
mexem... ruminou, em algum momento, o velho lugar-comum sobre a
Tudo isso não explica inteiramente o sucesso "de grande foto, atingindo uma exatidão mimética tão perfeita que
público" do cinematógrafo, e há, sem dúvida, todo tipo de destrona a pintura e, ao mesmo tempo, libera para ela a via
gradações entre a reação apreciativa dos conhecedores e a rumo à abstração. Não é uma parte nesse processo que
massa do público "apavorado com o trem". É claro que aqui reivindico para o cinematógrafo: ele chega um pouco tarde,
eu me interesso menos pelo sucesso de público do que pelo a revolução fotográfica está feita - ao menos desde 1860 -
sucesso de crítica, pois por si só os efeitos de realidade mais com o instantâneo. É antes, ao contrário, a reivindicação
espantosos não teriam conquistado decisivamente um para o cinema, se não, realmente, para Lumière, de um lugar
público para o cinema. Houve outras invenções, outros no interior da problemática dos pintores. Lumière enfim
aparelhos, que resolviam, também eles, de modo igualmente contemporâneo, ligeiramente atrasado talvez, da pintura: o
brilhante, velhos problemas pictóricos, sem por isso ter cinema será sempre esse "pequeno último", mas o que a
adquirido um quarto da importância social do cinema. Que história das folhas que se mexem assegura é que ele faz
se pense apenas na vista estereoscópica, cuja voga, bastante mesmo parte da banda.
forte nos anos 1850, estava ligada, no fundo, à perfeição Uma última observação sobre este ponto: os efeitos de
absoluta de sua reprodução do espaço, problema pictórico, realidade são paradoxais, e, em sua vertente, são logo os
se for um. A comoção provocada por tais vistas com fantasmas que encontramos: o fantástico, o de Nosferatu e
"verdadeira" profundidade era, provavelmente, tão viva, em de Vampyr, surgindo como um efeito exacerbado da
seu gênero, quanto aquela causada pelas folhas ao vento. realidade mais banal e mais tranqüila. O extraordinário no
Aliás, o cinema se lembrará bem mais tarde da ordinário.
estereoscopia (no momento do "3-D"). Entretanto, o sucesso ----------
se esgotou: a vista estéreo ficou sendo uma curiosidade de Vamos nos entender: o quadro não esperou o
salão, na falta, essencialmente, de dispositivo espetacular cinematógrafo para existir, e de modo forte, na tradição
onde inclui-Ia. Mais profundamente porque um dispositivo representativa ocidental. Isso é mesmo tão evidente que
desses só existe no tempo. consagrarei um capítulo inteiro deste livro a ele. Por isso é
Seja como for, é esta minha primeira solução ao enigma menos do quadro do que do enquadramento que devemos

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falar agora, e para salientar um novo paradoxo. mostrada na forma de uma expansão a partir do centro, lá
A câmera dos irmãos Lumière, por mais cômoda que onde toda a prática da perspectiva linear acostumava o olho
seja e, já foi dito, eminentemente praticável, tinha ao menos ao trajeto inverso, das bordas para o centro (o vocabulário
um inconveniente técnico sério, que vale a pena salientar diz bem: o ponto de fuga é aquele onde, logicamente, o olho
para leitores acostumados com a prática das câmeras reflex. chega no fim do percurso). Insisto nessa inversão, vivida
Essa câmera, com efeito, não permitia enquadrar. Não como violenta em uma vista tão perfeitamente
apenas ela não tinha (evidentememe) um visor reflex, como perspectivista, e da qual não se deve duvidar que esteja na
não tinha visor algum. A prática mais corrente, a que se origem da lenda dos espectadores apavorados.
estabeleceu, de facto, ao longo das filmagens, consistia em Lerei uma inversão comparável no funcionamento das
operar em dois tempos: em primeiro lugar inseria-se na guia bordas do quadro. A borda é, em geral, voltaremos a dizer, o
da janela da câmera um pedaço de película velada, depois, que limita a imagem, o que a contém, no duplo sentido da
sempre com a câmera aberta, abria-se a objetiva girando a palavra; e o toque de gênio aqui é ter, ao contrário, deixado
manivela e se "enquadrava" graças à imagem que se a imagem transbordar: a locomotiva, os figurantes
formava então, no fundo da câmera, no pedaço de película. transgridem esse limite (o transgridem, quer dizer, não o
Enquadramento aproximativo, incômodo, que requeria abolem). É em boa parte graças a essa atividade nas bordas
inúmeros pequenos deslocamentos sucessivos para ajustar a da imagem que o espaço parece se transformar
visada. Rapidamente os operadores preferiram enquadrar incessantemente (como havia observado Sadoul, mas se
por instinto, mesmo tendo que verificar de vez em quando prendendo de modo por demais exclusivo às modificações
através desse procedimento penoso. Em suma, enquadrar internas ao campo): como se, de certo modo, as bordas se
com o cinematógrafo tem a ver com a habilidade, com o tornassem operadores ativos dessa transformação
feeling e hábito. progressiva.
Ora, um dos traços mais surpreendentes das vistas Enfim, o enquadramento institui uma relação entre a
Lumière é que, sem ser "milimétrico”; o enquadramento é posição da câmera e a do objeto; ele estabelece uma
sempre interessante: eficaz em relação ao tema filmado - superfície de contato imaginário entre essas duas zonas, a do
notadamente nos termos, reservados a um grande futuro filmado, a do que filma. Ainda aí, a A chegada de um trem é
fílmico, da centralização -, mas também operatório em espetacular: esse contato entre dois espaços não é
relação à definição de um espaço e de um campo. Principal significado por um no man’s land entre os dois, e sim, ao
exemplo: A chegada de um trem à estação, que Georges contrário - para seguir a metáfora matemática pela
Sadoul já havia elogiado com eloqüência nesse sentido. multiplicação das tangentes e dos pontos de reversão.
Demonstram-se ai, mais precisamente, três efeitos maiores Lembramos, em particular, o figurante que se entrega a uma
do enquadramento. valsa-hesitação, evidentemente improvisada, mas encenado
Em primeiro lugar, o efeito de centralização genérica já assim de maneira particularmente ostensiva com o espaço
mencionado, mas aqui reforçado por uma astuciosa ficcional, com a câmera, e até mesmo com o câmera.
inversão. A centralização é aquela, enfaticamente salientada Mais uma vez, o exemplo escolhido é excepcionalmente
pelo movimento do trem, da perspectiva; mas ela nos é legível: mais claro que a Saída da fábrica, que trabalha mais

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ou menos os mesmos efeitos, ele é sobretudo mais grosseurs de plan do vocabulário francês correspondem as
especifico do que, digamos, L’arroseur arrosé, onde o camera dlstances anglo-saxãs, ao gros plan o close-up, ao
tratamento do quadro, o tratamento do espaço em geral, plan d'ensemble o long shot.4
lembra, de modo por demais banal, o "teatro” e um teatro já É em relação a essas três dimensões, por seu perpetuo
banalizado. Acredito ter evidenciado, em todo caso, as desatar e re-atar, que tudo se passa, na vista Lumière, na
dimensões essenciais do jogo sobre o enquadramento que fotografia e na pintura suas contemporâneas, e ainda na
encontramos, tendencialmente, em todo Lumière, e que imagem movente de hoje. Incessante enriquecimento mútuo
podemos, portanto, formalmente, deduzir dos três pontos do campo e do fora-de-campo, mas também incessante
precedentes. mutação da relação entre o conjunto campo +
O quadro é, antes de tudo, limite de um campo, no fora-de-campo e esse outro fora-de-campo mais radical que
sentido pleno que o cinema nascente não tardaria em deveria se chamar o antecampo: aquele onde está o câmera,
conferir à palavra. O quadro centraliza a representação,
focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se
concentra o imaginário, ele é a reserva desse imaginário.
Acessoriamente (acessoriamente de meu ponto de vista;
para os narratólogos de toda espécie, é o aspecto principal),
ele é o reino da ficção e, aqui, da ficcionalização do real.

Corolariamente, o quadro é o que institui um e que nem sempre pertence ao mesmo espaço ficcional que
fora-de-campo, outra reserva ficcional onde o filme vai o campo. Isso é bem conhecido, tendo a teoria do cinema
buscar, se for o caso, determinados efeitos necessários a um tirado proveito disso, e só o lembro porque, me parece, a
novo impulso. Se o campo é a dimensão e a medida situação da vista Lumière não é exatamente, sobre esse
espaciais do enquadramento, o fora-de-campo é sua medida ponto, a do cinema em geral. No cinema em geral, no
temporal, e não apenas de maneira figurada: é no tempo que cinema hollywoodiano clássico, que ossificou essa estrutura,
se manifestam os efeitos do fora-de-campo. O fora-de- uma clivagem radical será estabelecida entre, por um lado, o
campo como lugar do potencial, do virtual, mas também do que diz respeito à ficção e ao imaginário (o campo, o
desaparecimento e do esvaecimento: lugar do futuro e do fora-de-campo, sua interação, o jogo narrativo e
passado, bem antes de ser o do presente. fantasmático, os efeitos de terror e de suspense) e, por outro,
O quadro, enfim, é o que assinala a distância: distância o que resulta da enunciação, do discurso (o quadro, o
do objeto filmado à câmera, ou antes - veremos que é mais fora-de-quadro antes, como lugar jamais recuperável
que uma nuance - distância da câmera ao objeto filmado.
4
Quadro-distância, o vocabulário técnico do cinema Grosseurs de plan, Gros plan, plan d’ensemble; respectivamente,
inscreveu essa dualidade no jogo de uma tradução: às “dimensões do quadro”, “primeiro plano”, “plano de conjunto”. [N.T.]

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imaginariamente, lugar eminentemente simbólico onde se ponto do espaço, ponto móvel e de repente fixado; ponto
maquina a ficção, mas onde ela não penetra). banal também, a priori qualquer ponto e que qualquer um
Ora, em Lumière, campo, fora-de-campo, antecampo pode vir ocupar. Se vidro algum separa aquele que filma do
permanecem infinitamente mais permeáveis; as fronteiras filmado, é porque os papéis são intercambiáveis, porque
são frouxas, ou melhor, porosas. Por quê? Precisamente por aquele que filma é alguém "como-você-eeu". Tal
causa da fraca carga ficcional desses filmes. Em um sistema característica é capital, tão capital que precisarei de um
em que a única narração localizável, quando muito, não sem capítulo para desenvolvê-la de modo mais amplo, sobretudo
violação, nem arbitrariedade, tem a obrigação de ser para ligá-la a suas verdadeiras origens, mais remotas. É
aleatória, as barreiras não podem ser rígidas entre o lugar do preciso acrescentar sem demora que ela vai além do simples
cineasta e o lugar do cinematografado, já que ambos estão caso Lumiére, que ela não é invenção sua, mas um outro
ainda marcados por sua origem comum no real. A ficção das desses traços em que Lumière - "pintor" _ coincide com
vistas Lumière não é ficcionalizada o bastante, sua questões pictóricas de seu tempo, com essa figura que
cinematografização não institucionalizada o bastante para chamarei de o olho variáveI.
que sejam realmente separadas em dois mundos estanques. A vista Lumière é, assim, literalmente, o que se vê a
Isso é bem sensível. notadamente, nesse subgênero que o partir desse ponto, o que mostra de visível o ponto
catálogo Lumière batizou de "vistas panorâmicas" - que escolhido, o exercício da visão (do olhar) a partir desse
nada têm a ver, precisemos, com o movimento de câmera ponto. Vista e vista, filme e percepção visual, o jogo de
hoje chamado de "panorâmica", no máximo com o que se palavras é menos tolo do que parece, e é com a visão que a
chama um travelling lateral, mas tudo a ver com o estética da vista Lumiére tem relação. Esbocei há pouco um
espetáculo dos panoramas, do qual voltaremos a falar no elogio a Lumière como "o mais inventor" do cinema, é hora
próximo capitulo. Trata-se de vistas móveis, no mais das de acrescentar um último argumento. Se Lumière é
vezes feitas a partir de um veiculo em movimento, e onde o superlativo é em relação à concorrência e, em primeiro
deslocamento do quadro em relação ao campo não funciona lugar, a de Edison. Ora, o que vemos no cinescópio de
como ato enunciativo visível, ao contrário do que sucederá Edison? Poucas coisas, é verdade, pouco mais que uma
quase sempre no cinema narrativo. Tais vistas salientam, ao performance sempre um pouco derrisória: Annie Oakley
contrário, a co-presença daquele que filma e do filmado em atira sobre pratos (ela erra um ou dois), índios executam a
um mundo referencial afirmado como real; colocam ambos dança do escalpelamento, uma fanfarra gira, um ginasta faz
no mesmo saco (e não penso apenas na famosa gôndola de seus movimentos, tudo isso em doses minúsculas e,
Promio5). sobretudo, diante do invariável fundo preto do Black Maria6.
Em uma palavra, assim, o enquadramento da vista Uma palavra qualifica, a um só tempo, esses filmes e o
Lumière é sempre e antes de tudo encarnação do ponto de dispositivo, do tipo peepshow, em que são apresentados: a
vista. É preciso pesar ambas as palavras. Ponto no espaço, vista Edison está fundada sobre o voyeurismo.

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Eugene Promio foi um dos “operadores-projecionistas” contratados por Black Maria era o nome do estúdio de Thomas A. Edison, um pioneoiro do
Lumière, e que inovou ao filmar numa gôndola em movimento. [N.E.] cinema. [N.E.]

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É ao gosto de Edison pelos números espetaculares, sua importância histórica - é um momento forte dessa
excepcionais, que se opõe melhor o amor da vista Lumière infiltração da visão na representação, que é metade da
pelo instante qualquer; e, se em Edison encontramos o história da arte. Estética da tomada de cenas, afirmando a
ordinário no extraordinário, é no sentido, desta vez, do representação como operação sobre o real (os dois termos
insípido. Trata-se, porém, de modo mais amplo, da oposição devem ser pesados: há realmente um operador, e é mesmo
de duas estéticas. O cinescópio alimenta o olho, mas com sobre o próprio real que ele opera), ela é, mesmo tendo sido
alimento claramente designado, objetivado, delimitado; ele muito rebaixada desde Bazin, uma das duas estéticas
satisfaz o olhar (a própria definição, segundo Lacan, da pensáveis do cinema. Mas sua posteridade não deixa de ler
perversão). Na performance sobre fundo preto, os indícios paradoxos e imprevistos: não chegará a confiança no real
de profundidade são mínimos, a centralização forçada do visível, nos anos de apogeu do cinema mudo, até a exaltação
objeto filmado limita mais a largura do campo: o olhar só de uma visualidade "pura': transformável em música (em
apreende o espaço "chocando-se" com o fundo para voltar Dulac ou Gance), em cine-poesia (em Hans Richter), em
sempre para a personagem, em uma alternância sem fim, Stimmung (em Béla Balázs)?
que sempre recentraliza, refocaliza, re-identifica o ----------
espectador com seu olhar. Estou exagerando, um pouco,
para melhor dizer como, na vista Lumière, o olhar passeia, Serei criticado por muitas coisas, por ter negligenciado
se perde e se dissolve, em suma, se exerce em um campo. fatores essenciais - o público, as salas, a técnica -, por ter
Tudo concorre para isso: a profundidade desse campo - assimilado abusivamente fatos heterogêneos, por ter passado
inclusive nas formas da "profundidade de campo" -, os rapidamente pela evolução extremamente rápida do sistema
efeitos de textura, a ilimitação do espaço e, de modo mais Lumière, e talvez por coisas piores ainda.
geral, a reprodução eficaz de todas as invariantes da Eu tentei apenas apreender em que Lumière podia ser "o
percepção (analogia da vista e da visão que está no cerne último grande pintor impressionista da época”: e minha
dos testemunhos contemporâneos e na raiz das alucinações resposta a essa questão consiste agora em duas idéias. Em
de todo gênero que mencionamos). primeiro lugar, Lumière encontra e, valens nolens, trabalha
Eu falava há pouco de estética, e podem achar que a dois problemas que pertencem de pleno direito à reflexão
palavra é um pouco pomposa. Seria preciso, de toda pictórica, e à pintura simplesmente. Esses dois problemas -
maneira, eliminar, de saída, os três-quartos do catálogo, as o dos efeitos de realidade, o do quadro - estão ligados e
vistas cômicas, os saltimbancos, os balés, A vida e a paixão particularmente no momento em que Lumière se apropria
de Jesus Cristo em treze quadros, - tudo o que já não é vista, deles, à questão mais geral da liberação do olhar no século
mas filme, e com certeza não é o melhor de Lumière. Se XIX. O cinematógrafo não é, aliás, por si só, o apogeu dessa
podemos tentar definir uma estética (uma estética de facto, liberação: ele aparece, - a coincidência é afinal de contas
não um projeto de artista), seria apenas sobre algumas enorme -, dois anos depois da primeira kodak, a máquina
dezenas de vistas, talvez, como que por acaso, aquelas que que se gabava de pôr, enfim, o instantâneo ao alcance dos
continuam a ser mostradas nas antologias. Mas, sobre amadores. Mas ele vai além e desloca de saída, nesse
aquelas, não há por que hesitar: a vista Lumière nascente - é terreno, tanto a pintura quanto o instantâneo fotográfico.

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Chego, portanto, ao ponto em que se torna evidente, de início, razoavelmente afastado da arte: é principalmente
espero, que no aforismo godardiano os termos devem ser ao público popular que ele agrada, e os bons espíritos o
frisados de modo diverso. O impressionismo continua a ser, recusam, com ferocidade, como na vituperação nietzschiana
Deus sabe, uma referência importante. Seu sfumato perpétuo da "prosternação diante dos pequenos fatos"; ou de modo
e generalizado exacerba, em uma certa direção, os efeitos de mais frouxo, como na definição da modernidade de
realidade (os efeitos atmosféricos, e atmosferismo conviria Baudelaire (ele é a metade, mas a metade apenas da
melhor do que Impressionismo, já que, propriamente modernidade). Ele precisará de décadas antes de se impor
falando, é no dito expressionismo que emergirá realmente a naquilo que, nesse meio tempo, longe de Lumière, terá se
impressão). Seu enquadramento simula a mobilidade tornado a arte do cinema. E "se impor" é excessivo: há
(mesmo que essa mobilidade seja um pouco factícia, um sempre aqueles, dentre os que estudam a estética do cinema,
pouco arranjada, em Monet sobretudo). Mas, em uma que vivem sua propensão ao realismo como uma
hipotética "origem das espécies" artísticas, eu diria que deficiência.
Lumière descende do impressionismo mais ou menos corno Tratava-se, portanto, com Lumière, e na estratégia
o homem descende do macaco. Ou seja, não é preciso particular deste livro, de poder, de saída, afirmar com provas
explicitá-lo, de jeito algum, para que o parentesco tenha aí que a relação entre pintura e cinema não tem mão única, não
efeitos visíveis. E isso deveria também bastar para dizer em é uma descendência nem uma digestão, - ainda que, é uma
que ele é o último: embora ele próprio não seja um pintor outra história, o cinema, às vezes, tenha desejado ser o
impressionista, depois dele não haverá mais nenhum, não herdeiro da pintura, ou pior, dado, às vezes, a impressão de
pode mais haver, já que, na vista Lumière, a "impressão” é regurgitá-la, não é, de modo algum, a retomada de formas
objetivada e como que fundada na natureza, realizando e que teriam saldo completamente armadas do cérebro dos
anulando as mais loucas esperanças pictóricas. (Deixo, pintores. É de outra relação que se trata e se tratarão aqui:
enfim, cada um decidir se Lumière era grande. Para mim, estimar o lugar que o cinema ocupa, ao lado da pintura e
não há dúvida.) com ela, em uma história da representação, em uma história,
Insistamos uma última vez: o próprio Lumière não era, portanto, do visível.
talvez, no final das contas, senão um "gênio manufatureiro"
(Sylvain Roumette): foi como figura, e se se quiser como
mito, que o considerei aqui. E isso porque, como pintor
putativo, ele faz melhor figura que esse outro gênio
manufatureiro, Edison. Esse mito não é, longe disso,
invenção minha, ele é até mesmo daqueles que tiveram a
vida singularmente dura, com uma única ressalva: que, em AUMONT, Jacques. Lumière: o último pintor impressionista. In: O
sua concepção e em seu desenvolvimento, é em paradigma olho interminável. Pg 25- 46.
do realismo que o mito erige Lumière. Esse realismo está,

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