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O QUE É UM PLANO?

Pascal Bonitzer

A profundidade de campo deveria conduzir, pela


própria força do realismo, o autor de Cidadão Kane a
identificar o plano à sequência.
André Bazin

Como toda história, aquela do cinema é a história das divisões, das deiscências,
das rupturas que afetaram a arte do filme, a transformaram e a fizeram o que ela é. Uma
história plena de som e fúria (não somente nas telas, mas por trás delas), de polêmicas
sangrentas, dejetos e cadáveres. Inextricavelmente ligada a essa história, fazendo parte
dela, é a história das teorias de cinema.
O cinema se nutriu, desde as origens – e mesmo talvez antes – de teorias. Seus
maiores inventores foram também teóricos (eles inventaram sua linguagem; eles foram,
segundo o termo de Roland Barthes, “logotetas”), e o cinema jamais foi tão grande, tão
fecundo, tão vivo quanto na época em que as teorias o atravessavam e se afrontavam –
época, é verdade, quando o cinema ainda não se confundia inteiramente com o show-
business e a teoria ainda não se havia refugiado na universidade, no tédio das análises
plano a plano, mas se encontrava posta em prática nos filmes.
O último avatar, o ponto de suspensão, ao mesmo tempo, que se quiser, a
redução caricatural desta co-proximidade da teoria e da prática cinematográficas teriam
sido talvez, no período recente, as fórmulas lapidares de Godard em sua série
“militante” pós-68, e notadamente a expressão famosa, talvez a expressão que resume
tudo (em um intertítulo de Vent d’est1): isso não é uma imagem justa, é justo uma
imagem.
Justo uma imagem: por que, com efeito, não recomeçar daí? Por que não
questionar novamente o corpo, a linguagem do cinema a partir dessa fórmula estranha e
bela, simplesmente do que ela parece oscilar à beira do puro non-sens – pois afinal, com

1
Vent d’est (França/Itália/Alemanha Ocidental; 1969) (N. do T.).
2

a exceção de interpretá-la segundo a teoria moderna do significante2, o quê fazer de


“justo uma imagem”?
Houve, certamente, alguma coisa de heróica na tentativa de Godard em reduzir o
cinema somente às suas imagens. Um filme não se apresenta nunca apenas como uma
cadeia de imagens, que se entenda por isso o que singelamente se oferece à vista. Sem
falar do som – o qual Godard tinha precisamente devolvido, nos filmes desta época, a
“justeza” da qual queria as imagens privadas -, todo mundo sabe que num filme não se
está às voltas só com imagens, justas ou não, mas com uma realidade mais ou menos
truncada, decupada e ordenada na maioria dos filmes em cenas, em sequências e,
metonimicamente, em planos. Eu digo “na maioria dos filmes”, porque existem casos
(documentários, vanguardas, filmes tais como Méditerranée de Jean-Daniel Pollet3, por
exemplo) nos quais, pelo menos, as noções de cena e sequência não parecem pertinentes
(tais noções supõem uma continuidade narrativa que pode estar ausente).
Ao contrário, parece impossível filmar sem fazer planos. Desde que haja
enquadramento, há delimitação de um campo e (pelo menos) de um plano. Todo filme
parece se compor e se decompor em uma série de planos, e o plano, que é uma outra
coisa diferente da imagem, aparece assim como aquilo que dá a cada imagem a sua
unidade diferencial.
É a partir da noção de plano, enquanto unidade fílmica de base, que se pode falar
de “linguagem cinematográfica”. É em função de certos tipos de planos que se pôde
falar de uma “evolução da linguagem cinematográfica”: o uso do primeiro plano em
Eisenstein, o plano-sequência em Welles e Wyler4 (eu retornarei às essas noções).
Se, com efeito, Godard pôde, em Vent d’est, inserir entre duas imagens o
intertítulo “isso não é uma imagem justa, etc.”, nem por isso, o intertítulo em questão
nada diz daquilo que faz esta imagem una, o que a separa das outras, a fixa e a isola da
trilha-imagem. Antes de aparecer, de durar um tempo e de desaparecer na tela, pelo
efeito do desenrolar, à razão de 24 por segundo, de todos os fotogramas que a
compõem, foi necessário que essa imagem, qualquer que fosse, tenha sido, inicialmente,
enquadrada no visor da câmera, fixada assim segundo certos limites espaciais, em

2
O significante não quer dizer nada e não significa nada, senão em sua oposição a um outro significante:
ele “representa o sujeito para um outro significante”. “Justo uma imagem”, se entenderia então assim: esta
imagem não é o reflexo (justo) da realidade, mas é necessário somente (justo) considerá-la na relação que
ela entretém com as outras imagens. Godard lacaniano.
3
Méditerranée (França; 1963) (N. do T.).
4
Ver André Bazin, “Montage interdit” e notadamente “L’évolution du langage cinématographique” in
Qu’est-ce que le cinéma? (ontologie et langage).
3

superfície e em profundidade, registrada, em movimento ou não, segundo certos limites


de tempo, depois montada com outras imagens no rolo da película. Uma tal imagem –
uma imagem em movimento – é evidentemente instável; ela se decompõe em muitas
imagens (ainda que seja na multiplicidade de seus fotogramas). Porém, é, sem dúvida, o
caso de toda imagem: toda imagem contêm uma infinidade virtual de imagens, e é um
dos jogos do cinema, às vezes, fazer “sair”, pelo efeito por exemplo do travelling ótico
(para frente ou para trás), pelo alargamento ou retração indefinida do campo, uma
infinidade de imagens de uma imagem justa (este jogo pode mesmo se tornar, em alguns
cineastas, um fim em si: Busby Berkeley, Miklós Jancsó. Num desenho animado de
Joost Roelofsz, A vida e a morte, ele se confunde com o próprio filme5). Porém, isto
que, cinematograficamente, “informa” as imagens e as articula entre si, é o que nelas se
destaca como planos.
A mise-en-scène é um saber-agenciar-os-planos. A montagem também. Ora, é
aqui que a confusão, a contradição e a polêmica começam.
Com efeito, a confusão. Todo mundo, diretores, montadores, historiadores e
teóricos do cinema parecem concordar pelo menos em fazer do plano a unidade fílmica
de base, porém, não é sobre o mesmo plano ou sobre a mesma unidade que eles falam.
Com efeito, sabe-se, aprende-se a distinguir que existem isso o que se chama os
diversos “tamanhos” de planos: o espaço enquadrável é arbitrariamente dividido, em
função das distâncias da câmera a um personagem (ou se quiser, um corpo humano)
teórico, em primeiros planos, planos médios, planos gerais, planos de conjunto, etc
(existem categorias intermediárias). Por outro lado, distinguem-se os planos entre si
pelo eixo diacrônico da montagem, em função dos cortes e das colagens (assim,
correntemente, se fala de um plano de 15’’ ou de 2’30’’, etc.). Não se trata,
necessariamente, no primeiro e no segundo caso da mesma acepção da palavra “plano”,
pelo menos desde que a câmera é móvel e que os planos mudam na filmagem.
Assim, os teóricos se emocionaram com esta confusão terminológica que freme
de ambiguidade, de incerteza ontológica, o elemento celular de base do edifício fílmico.
Alguns (por exemplo, Noël Burch, em Práxis do cinema) sublinharam que esta
confusão seria própria da Língua Francesa. O Inglês utiliza dois termos diferentes: shot
para as distâncias-câmera (long shot, medium shot, close shot, etc; ponto de vista do
enquadramento) e take para a duração do registro (ponto de vista da montagem). Todo o

5
Life & death (Holanda; 1979) de Jost Roelofsz e Rogier Proper (N. do T.).
4

mal, segundo Jean Mitry, viria de um monstro terminológico forjado após a guerra pelos
críticos (i.e. André Bazin): o “plano-sequência”.
Para Mitry, com efeito, existe apenas uma única definição válida do termo
“plano”; é a definição “de escala” das distâncias-câmera. Um plano é uma “curta cena
ao curso do qual os personagens principais são registrados segundo um mesmo
enquadramento e sob um mesmo ângulo, a uma distância da câmera. Divide-se de modo
inteiramente arbitrário em primeiríssimo plano, primeiro plano [...], plano geral, à
medida que o quadro envolve um “campo” espacial cada vez mais extenso” (Dicionário
do cinema, Laroussse, 1963). Não saberia, neste sentido, ter planos-sequências, pois o
“plano” e a “sequência” pertenceriam à duas ordens incompatíveis, uma exclusivamente
espacial e a outra exclusivamente temporal. Uma sequência é uma reunião sintagmática,
diacrônica, de cenas, elas próprias compostas de um conjunto de planos. Geralmente,
esta reunião se faz pela montagem, segundo uma decupagem preestabelecida. Nisto que
se chama (erroneamente, então, segundo Mitry) o plano-sequência, esta reunião se faz
simplesmente na continuidade do registro, durante a filmagem. A montagem é
simplesmente reabsorvida na mise-en-scène, substituída e, se quiser, implicitada pelos
movimentos de câmera: “[...] não há (ou muito pouco) planos-sequências, ou seja,
planos nos quais a montagem ou as “condições de montagem” não intervêm... Nesses
pretensos casos de “plano-sequência”, a câmera, ao contrário, está em perpétuo
movimento (conforme Soberba, Festim diabólico6, etc.). É uma contínua mudança de
ângulos e de pontos de vista. De fato, no lugar de “montar”, colando uma ponta com
outra de planos diversos registrados separadamente, se faz montagem em estúdio,
realizando-a nesta mesma sucessão de planos em um único e mesmo movimento
contínuo, o curso de uma única tomada”.7
Segundo a concepção rigorosa de Mitry, não se saberia então, no limite, falar de
“plano” em si, mas, pelo menos implicitamente, sempre se referir ao “tamanho” deste,
ao valor diferencial que ele exprime no espaço fílmico. A noção de plano, com efeito,
não nasceu com o cinema, mas com a montagem, ou seja, com a multiplicidade de
pontos de vista introduzida por Griffith: “Quando, após as primeiras tentativas de D. W.

6
The magnificent Amberson (EUA; 1942) de Orson Welles e Rope (EUA; 1948) de Alfred Hitchcock. (N.
do T.).
7
Jean Mitry, Esthétique et psychologie, t. I., Éditions universitaires, p. 156. Um pouco mais acima Mitry
escreve: “[...] como, por definição mesma, um plano é uma determinação espacial fixa, falar de um plano
único enquanto se trata de um travelling é um non-sens [...] De um modo geral, poder-se-ia dizer que um
travelling é um conjunto de planos sucessivos (cada imagem ou quase correspondente a um ponto de vista
diferente), assim como um círculo é uma sucessão de linhas retas”. (p. 153).
5

Griffith, o cinema começou a tomar consciência de seus meios, ou seja, quando, de um


modo geral, filmaram-se as cenas segundo pontos de vista múltiplos; os técnicos
tiveram que qualificar essas diferentes tomadas a fim de distingui-las entre si. Para isso,
se referiu à situação dos personagens principais dividindo o espaço segundo planos
perpendiculares ao eixo da câmera. Daí o nome planos. Era, de algum modo, a distância
privilegiada junto à qual se regulava a marcação.”8 Então, há um tipo de paradoxo
histórico no purismo de Mitry: deve-se falar de plano apenas em função do registro, em
relação à profundidade, e não em função da montagem griffithiana que extrai a
diferença dos planos. Essa diferença é oriunda da montagem dos “pontos de vista
múltiplos”. Tudo ia bem enquanto a câmera era fixa e que a multiplicidade dos pontos
de vista era assegurada pela montagem, em função de uma decupagem preestabelecida
ou não. Nada mais funciona a partir do momento em que as “condições de montagem”,
como diz Mitry, são asseguradas durante a filmagem, pelos movimentos da câmera,
gruas, panorâmicas, travellings ou zoom – ou pior ainda, com a câmera na mão. As
unidades de planos tendem então a se desfazer no deslizamento dos registros, não há
mais, como diz Mitry, “homotetia do plano e da tomada.”9 Além do mais, nela própria,
a profundidade de campo põe em questão a unidade do plano.
A profundidade de campo, com efeito, embaraça Mitry mais do que os
movimentos de câmera, assimilados por ele, então, a uma montagem “à filmagem”. É
porque ela implica, pelo menos, a superposição simultânea de dois planos. Como
qualificar um tal plano? “Quando numa mesma imagem, com efeito, se vê na extrema
direita um rosto em primeiro plano e que, no resto do quadro, se percebe em plano
médio dois ou três personagens agindo de um certo modo, outros em plano de conjunto
e, no plano de fundo, alguém entrando no cômodo, parece bem difícil definir esse plano
segundo as normas estabelecidas. Como designá-lo? Plano geral, conjunto aproximado
ou o quê?”10
A resposta é forçosamente equívoca e Mitry conclui pela relatividade da noção
de plano, “simples comodidade de trabalho” (curiosa comodidade que põe tantos
problemas) e pela caducidade da designação clássica, embora, acrescenta ele, “o termo
plano não guarde menos a sua significação total”. Pode-se dizer, com efeito, que o

8
Id, ibid, p. 149.
9
Mitry, Dictionnaire du cinéma, Larousse, 1963.
10
Id, Esthétique et psychologie du cinéma, t. I, p. 155.
6

“plano” encara uma ação situada em um mesmo espaço e compreendendo um campo


único não diferenciado.11
De que se trata, finalmente? O plano é uma unidade? De que ele é unidade? É
alguma coisa? Essa alguma coisa, pode-se delimitá-la? Tudo parece claro enquanto se
encara, concretamente ou não, um primeiro plano, ou um plano de conjunto, e mesmo
as pessoas um pouco mais advertidas têm uma visão clara do que pode ser um plano
médio largo, um plano americano, etc. Tudo se obscurece desde que aparecem os
movimentos de câmera, a profundidade de campo, enfim a mise-en-scène. A noção de
plano se torna ambígua e penosa desde que os limites do plano não são mais
precisamente reparáveis, ou seja, desde que cessa a superposição perfeita (a homotetia,
para retomar a expressão de Mitry) entre a porção de campo decupada pelo
enquadramento e o segmento filmado destinado à montagem, entre a decupagem
espacial e o corte temporal (plano-sequência), ou ainda, entre a delimitação do campo e
aquela da ação (profundidade de campo). Tudo se passa como se o que se chama um
plano, longe de ser um corpo simples, fosse o efeito de uma multiplicidade de cortes de
naturezas diversas, um nó de cortes.
Há muito tempo que a maioria dos cineastas zomba da “linguagem
cinematográfica” (eu quero dizer de inventá-la) e se encontram bem felizes por pouco
que lhe reconheçam o ofício. Não é menos verdadeiro que tudo o que chegou de novo
na história do cinema consistiu, essencialmente, em um uso inédito, mesmo uma
modificação da natureza mesma desta entidade deslizante, o plano. Basta evocar as
batalhas teóricas que se travaram nos anos vinte em torno da questão do primeiro plano
e da função da montagem, ou daquelas, mencionadas acima, que fizeram nascer o
“plano-sequência” e o papel da profundidade de campo. É que, através da noção de
plano, é toda a formação, toda a articulação do corpo cinematográfico que está em jogo.
Todas as querelas teóricas do cinema se resumem à questão: Onde fazer passar o corte?
Entre que partes do corpo? do cenário? da fita fílmica? O cinema nasceu de um corte do
campo fílmico, quando cessou de identificar o ponto de vista da câmera com aquele do
público e, se quiser, com o do projetor (as primeiras câmeras Lumière também
funcionavam como projetores). É nesse sentido que a questão da primeira aparição do
primeiro plano preocupa tanto os historiadores do cinema.
Todos os planos do cinema, ou quase todos, estão contido em L’Arrivée d’un
train. Porém, esses planos têm apenas uma existência retrospectiva. Não há mise-en-

11
Id., ibid.
7

scène, mas a escolha judiciosa, genial, de um ângulo fixo da tomada. O trem “monta”
sozinho, até o primeiro plano, e os espectadores abandonam a sala, aterrorizados pela
“impressão de realidade”, mas não há como falar propriamente de primeiro plano. Do
mesmo modo, no admirável pequeno filme de Méliès, onde a cabeça de um mágico
incha até preencher toda a cena, não há como falar propriamente de primeiro plano,
mesmo se a câmera efetua um travelling para frente, escondido pelo efeito da máscara.
O ponto de vista do espectador é aqui ainda considerado como absoluto, o que implica
que a cena é rígida, como naquela do teatro à italiana ou do teatro de fantoches. O
público ainda não é um público de cinema, é um público de feira de atrações, de music-
hall, de teatro de fantoches. Há apenas um único ponto de vista, ao mesmo tempo
absoluto, cego e fascinado, como o do basbaque, para quem os bastidores e os segredos
da mágica são escondidos, e a quem o cúmplice do escamoteador corta os cordões da
bolsa (no quadro de Hieronymus Bosch). Isto também é verdade para os primeiros
burlescos, por exemplo os Carlitos, onde tudo se agita, se metamorfoseia e se desloca
de modo alucinante em um cenário único, registrado frontalmente por uma câmera fixa.
Não há como, nesta época do cinema, falar de planos.
Os planos, os diferentes valores (ou como se diz tamanhos) de plano surgem
quando o ponto de vista da câmera cessa de coincidir com aquele dos espectadores e
começa a jogar com a parte de cegueira, até então votada apenas à fascinação tranquila
do basbaque que implica a visão parcial, e com a sensação de proximidade diretamente
produzida pelas vistas aproximadas. Importa pouco saber em que filme, ou em que parte
de filme, apareceu “o primeiro primeiro plano”. É muito mais interessante determinar
em que momento se sistematizou um certo uso de vistas aproximadas em relação às
vistas afastadas. Griffith fez estourar o espaço fílmico e, com o mesmo golpe,
transformou radicalmente as condições do espetáculo cinematográfico cessando de
regular a câmera sobre o ponto de vista do público em relação à tela. Quando a tela
cessou de ser assimilada a um palco de teatro, de music-hall ou de teatro de fantoches,
nasceu o cinema da multiplicidade dos pontos de vista, do leque dos planos. Os planos
são o efeito da montagem griffithiana, ou seja, da introdução da diferença no ponto de
vista, no campo fílmico, nos corpos, e são, então, menos as unidades de base de uma
linguagem cinematográfica cuja língua, como notou Metz, é inencontrável (e afinal, o
que quer dizer uma linguagem sem língua?) do que as marcas diferenciais de um
sistema de escritura, de um agenciamento de signos e de sensações.
8

Signo ou sensação? A partir do momento em que começou a destacar e articular


entre si os planos, os valores ou tamanhos de planos diferentes, o cinema se encontrou
como que dividido entre duas possibilidades. De um lado, pela passagem regulada,
sábia, de vistas afastadas a vistas aproximadas, da visão ótica à visão “háptica” 12, a
mise-en-scène podia dirigir o interesse dos espectadores, lhes fazer tocar com o dedo, de
algum modo, com os primeiros planos, objetos sedutores, emocionantes, inquietantes ou
repugnantes, a montagem podia jogar com a sua visão parcial, relativa ao ponto de vista
da câmera, no suspense, enfim inventar e variar toda uma ordem de sensações. Assim,
por outro lado, e correlativamente, se criava todo um arsenal de signos
cinematográficos, cujos metteurs-en-scène, doravante autores e demiurgos, e não mais,
como nos primeiros tempos, engenheiros e técnicos, experimentavam com embriaguez o
poder. Ao mesmo tempo, o mundo se encontrava abalado, segundo o termo de um
jornalista.
No momento em que Griffith chegava ao apogeu de sua potência artística, onde
todos os procedimentos da montagem emocional eram não somente inventados mas
utilizados ao máximo nos vastos afrescos e sublimes melodramas, a Revolução de
Outubro explodia na Rússia e toda espécie de bricoleurs formalistas e futuristas, que
vagavam no teatro, na poesia, no cinema e montavam espetáculos com barbantes,
pedaços de papelão e caixas de conserva, se enfileiraram debaixo de sua bandeira. Em
pouco tempo, o cinema se tornava uma arte de Estado, e mesmo a mais importante –
dixit Lênin – e os mais geniais bricoleurs em questão começaram a poder experimentar
em grande escala (começaram – eles jamais puderam terminar).
Eles foram, como tudo, subjugados pela montagem griffithiana. Eles foram,
como todo mundo, impressionados por seu uso magistral, cada vez mais analítico e

12
Cf. Gilles Deleuze, Logique de la sensation, Éditions de la Différence, à propósito da pintura de Bacon.
“Mais a mão é [...] subordinada, mais a visão desenvolve um espaço “ótico” ideal, e tende a apreender
suas formas seguindo um código ótico. Porém, esse espaço ótico [...] apresenta ainda referentes manuais
com os quais se conecta: chamar-se-á tácteis tais referentes virtuais, tais como a profundidade, o
contorno, o modelado..., etc. Essa subordinação relaxada da mão ao olho pode dar lugar, por sua vez, a
uma verdadeira insubordinação da mão: o quadro permanece uma realidade visual, mas o que se impõe a
visão é um espaço sem forma e um movimento sem repouso que ela tem dificuldade de seguir, e que
desfaz o ótico. [...] Enfim, chamar-se-á de háptico cada vez que não houver mais a subordinação estreita
em um sentido ou outro [...], mas quando a própria visão descobrir em si a função de tato, que lhe é
própria, e pertence apenas a ela, distinta de sua função ótica. Dir-se-á então que o pintor pinta com seus
olhos, mas somente enquanto ele toca com os olhos. E sem dúvida, essa função háptica pode ter sua
plenitude diretamente e de um só golpe, sob formas antigas, as quais perdemos o segredo (arte egípcia).
Mas ela pode também se recriar no olho “moderno” a partir da violência e da insubordinação manuais”
(p. 99). Poder-se-ia assim ver na paixão pelo primeiro plano, pela visão em primeiro plano, que suprime a
profundidade táctil-ótica, uma tentativa de instaurar uma ordem diferente da visão: a “háptica”. Os
9

violento, sensacional, do primeiro plano. Como todo mundo, e mesmo um pouco mais
que todo mundo. Eles não somente investiram todas as suas elucubrações sobre a
linguagem, a forma e a significação, mas foram sensíveis, antes de tudo, ao arbitrário
dos procedimentos, ao artificio e, se quiser, à monstruosidade da forma em relação ao
material registrado, enfim eles passaram por cima da função dramática desses
procedimentos para se deixar fascinar pela violência dos signos e o absoluto das
sensações: os “picados” da montagem e o choque dos primeiros planos.
Eles são, essencialmente, Eisenstein e Vertov. As múltiplas experiências de
Kulechov consistiram essencialmente em estabelecer os automatismos, as reações
reflexas dos espectadores em presença das rupturas na montagem dos filmes. Elas vão
todas no sentido de uma “cicatrização” imaginária do espaço fracionado pela
montagem; elas tendem todas a mostrar que é impossível não supor uma relação (uma
contiguidade, um sentido) entre duas imagens, entre dois corpos, arbitrariamente,
coladas uma em seguida à outra. Contudo, Eisenstein e Vertov insistiram sobre o
fracionamento; eles quiseram a diferença e a intensidade; eles quiseram o primeiro
plano. (Entretanto, eles não quiseram a mesma coisa, e em sua batalha pelo primeiro
plano e pela montagem, eles se opuseram ao tratarem dessa última).
Então, o que é um primeiro plano? Por que, entre todos os tipos de plano
destacados sobre a profundidade do espaço fílmico, o primeiro plano possui este valor
particular? Por que os historiadores do cinema sempre procuraram – para encontrá-la
sempre em filmes diferentes – a primeira aparição, por que essa aparição do primeiro
plano no espaço cinematográfico parece sempre contemporânea aos primeiros balbucios
de uma “linguagem cinematográfica”? Por que, enfim, o primeiro plano é o objeto,
segundo as épocas e as ideologias, ora de uma tal exaltação (para dizer a verdade,
ninguém o exaltou tanto quanto Eisenstein, que o fez a sua causa perdida), ora de uma
tal denúncia (Rossellini, mas sobretudo André Bazin)?
Então, pode-se encontrar um elemento de resposta no fato de que o primeiro
plano apresenta, por definição, um objeto parcial, propício então ao fetichismo como à
fobia. Aliás, é preciso notar que existe, pelo menos, dois tipos de primeiro plano, que a
Língua Inglesa nomeia diferentemente: close-up e insert; por um lado, quando o objeto
enquadrado for um rosto ou por outro lado, quando for uma parte do corpo ou um

primeiros planos de Vertov e Eisenstein, mas também aqueles de Godard, com os traçados manuais de
vídeo e as incrustações desfigurativas.
10

objeto qualquer. Eisenstein e Vertov se interessaram tanto pelos inserts quanto pelos
close-ups.
Porém, o primeiro plano não faz funcionar toda parte do corpo ou todo objeto
precisamente como um rosto? Deleuze e Guatarri o pensam: “Mesmo um objeto de uso
será ‘rostificado’: de uma casa, de um utensílio ou de um objeto, de uma roupa, etc., dir-
se-á que eles me olham... O primeiro plano de cinema pode ser tanto de uma faca, uma
xícara, um relógio, uma chaleira quanto de um rosto ou um elemento de rosto. Assim,
em Griffith, a chaleira me olha”.13 A primeira aparição do primeiro plano no cinema
seria a primeira aparição do rosto, objeto de uma busca inquieta, e também o do terror
específico (aquele do olhar) que porta consigo. Sem primeiro plano, não há suspense
nem terror, esses domínios tão consideráveis do cinema que se identifica quase que com
eles.14
Em todo caso, é bem esse terror que buscou e desejou Eisenstein, desde a época
em que, contra a dispersão esquizofrênica do cine-olho vertoviano, ele proclamava
querer “rachar os crânios com um cine-punho”, até à época em que, criticado e
marginalizado pelo cinema oficial stanilista, teve que se defender:

Eu sempre agi com uma grande modéstia: eu tomei tal


ou qual traço ou aspecto do fenômeno cinematográfico
e me esforcei em analisá-lo da maneira a mais detalhada
possível.
Eu tomei o “primeiro plano”.
Porém, as leis da perspectiva cinematográfica são tais
que uma barata filmada em primeiro plano parece na
tela cem vezes mais temível que uma centena de
elefantes filmada em um plano de conjunto.15

Essa mesma lei, acrescentava misteriosamente, pode nos conduzir para além do
cinema.
Fazia alusão a uma função política do terror do primeiro plano? Não é proibido
pensar isso.
Porém, ele pensava talvez sobretudo nas leis mais gerais da figuração e da
desfiguração. Também se encontra primeiros planos no romance – Griffith retira seus

13
Deleuze e Guattari, Mille plateaux, Éditions de Minuit, p. 214.
14
Um dos primeiros filmes “em primeiro plano” é o The big swallow [1901], primeiro plano de uma boca
mastigando.
15
S. M. Eisenstein, Au-delà des étoiles, 10/18, p. 112.
11

procedimentos de Dickens16 -, na pintura... O primeiro plano é para Eisenstein uma


entidade, um signo “extático”, que faz sair o corpo de si mesmo, o espírito de si mesmo,
e também do espaço realista dos cem elefantes em plano de conjunto. O primeiro plano
introduz uma diferença absoluta: “mudanças absolutas das dimensões dos corpos e dos
objetos na tela”17, escreve. Na tela, e somente na tela, uma barata vale cem elefantes.
Tal é o efeito do primeiro plano, tal é o efeito do jogo cinematográfico, tal é o efeito,
também, da onipotência do artista. Essas “mudanças absolutas das dimensões dos
corpos...” supõem, com efeito, um mestre todo poderoso, um mestre absoluto, para
executar essas metamorfoses onde a realidade não tem parte. Mas também e
correlativamente um olho inteiramente livre em relação à realidade – um olho
puramente intelectual, um olho que não funciona segundo a perspectiva clássica, um
olho táctil, ou melhor dizendo, “háptico”. Todo o esforço de Eisenstein, com o primeiro
plano e a montagem, consiste em tentar suspender a hipótese realista do cinema, a sua
demasiadamente famosa fatalidade narrativa.
Tudo indica que, se apoiando sobre o primeiro plano e a montagem, Eisenstein
acreditou poder ir além dessa “honesta” narração que a montagem griffithiana e a
América souberam conduzir a uma tal potência: “A América não compreendeu a
montagem enquanto elemento novo, possibilidade nova. A América é honestamente
narrativa, ela não “constrói” seu “potencial evocador” sobre a montagem, mas mostra
honestamente o que se passa”.18 Dito de outro modo, a América não compreendeu a
possibilidade metafórica vertical da montagem, ela permaneceu na metonimia narrativa,
na visão ótica na qual cem elefantes valem cem elefantes, na qual uma barata equivale a
uma barata, na qual o olho não viaja através das “mudanças absolutas das dimensões
dos corpos e dos objetos na tela”. Griffith não compreendeu, segundo Eisenstein, nesse
artigo, “as possibilidades infinitas – intelectuais, físicas – que lhe ofereciam a sua
invenção, o primeiro plano e a montagem. Em definitivo, a montagem em Griffith,
ainda que “deslumbrante”, se reduz à montagem das perseguições”, e “a fragmentação
do diálogo em primeiro plano é imposta pela necessidade de mostrar alternadamente a
expressão do rosto das “coqueluches do público”.19

16
S. M. Eisenstein, “Dickens, Griffith et nous”, in Cahiers du cinéma, nº 231-235.
17
Id, Au-delà des étoiles, p. 229.
18
Id, ibid, p. 164.
19
Id., É necessário aqui sem dúvida indicar a parte de má fé em S. M. Eisenstein. Ele melhor reconheceu,
em outra parte (cf. supra), a sua dívida com Griffith.
12

Toda a história do cinema seria, nesse sentido, desde a invenção do sonoro,


aquela de uma redução sistemática, segundo a metonímia narrativa, dos poderes do
primeiro plano e da montagem. Não há espaço para “mudanças absolutas das dimensões
dos corpos... ” no sonoro: é então que as regras de continuidade experimentadas por
Kulechov se tornam uma lei imperiosa, que o campo-contracampo fecha novamente o
espaço cinematográfico ao nível do diálogo teatral e que todo o cinema tende a se
estabilizar “em plano médio”. O terror do primeiro plano e da visão “háptica” são
apreendidas e continuadas nos limites de um gênero: o filme de terror, o thriller. Tanto
na U.R.S.S. quanto em Hollywood (¡Qué viva México!, O prado de Beijin20), as
dificuldades de Eisenstein dão uma virada trágica.
Não há mais espaço para a “barata em primeiro plano”. O olhar se
antropomorfiza. Eisenstein se lamentava: “Demasiadamente frequente, nos escritos
cinematográficos, é o reino do “olhar e nada mais”, eis porque as minhas “baratas em
primeiro plano” fazem tanto medo”. 21
É então que se estabelece o reino da decupagem. O que é esse “olhar e nada
mais”? É o close-up na vedete, em um espaço trivialmente realista. É o reino da
identificação com os personagens principais, do jogo de pingue-pongue do campo-
contracampo. André Bazin muito bem analisou o sistema, a partir de um exemplo
forjado para a ocasião, mas que melhor valoriza a “domesticação” da multiplicidade de
ângulos e de planos por uma retórica ótica e narrativa. Após a Segunda Guerra Mundial,
no momento em que Hollywood triunfa, em que emerge o neorrealismo italiano e em
que Welles e Gregg Toland reinventam a profundidade de campo (ou seja, um novo
estilo de agenciamento de planos), eis como se encontram as coisas: “Um personagem,
encerrado em seu quarto, espera que seu carrasco venha encontrá-lo. Ele fixa com
angústia a porta. No momento em que o carrasco vai entrar, o metteur en scène não
faltará fazer um primeiro plano da maçaneta da porta girando lentamente; esse primeiro
plano é psicologicamente justificado pela extrema atenção da vítima a esse signo de sua
penúria. É a sequência dos planos, análise convencional de uma realidade contínua, que
constitui propriamente a linguagem cinematográfica atual”.22

20
¡Qué viva México! (EUA/México; 1932) e Bezhin lug (URSS; 1937); ambos filmes de Eisenstein, não
terminados por problemas políticos (N. do T.).
21
Id., ibid, p. 112.
22
André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? Une esthétique de la réalité: le néoréalisme, Éditions du Cerf,
p. 12.
13

Trinta anos depois, com algumas poucas exceções, nós ainda estamos aí.
“Análise convencional de uma realidade contínua”, diz Bazin. É necessário acrescentar
algumas notas. Em relação ao espaço intelectual múltiplo, implicando igualmente um
tempo não linear (a estátua do czar se reconstruindo em Outubro23, ou a metamorfose
dos ídolos no mesmo filme) que havia tentado Eisenstein, encontra-se aqui em um
espaço restrito, mesmo fechado (percorrido pelo vai-e-vem do campo-contracampo),
onde o primeiro plano se encontra investido de uma função bem definida, aquela de
fixar a angústia, ou se quiser de fixar o olhar. Nada a ver com o “terror” eisensteineano,
nada a ver com o olho “intelectual” da montagem de atrações, da montagem vertical.
Aqui, o espectador é fixado na tela a um lugar muito definido, aquele da vítima
potencial de um suposto carrasco, em um espaço fechado. Não é um acaso se Bazin
utiliza a imagem do primeiro plano-maçaneta da porta: é que a câmera trabalha em
estúdio ou em locação e que o primeiro plano, que constitui um limite do sistema ótico
integrado da decupagem hollywoodiana (difração “suturada” da visão), funciona como
um ponto-limite, a maçaneta de uma porta dando para o desconhecido.
O sistema aqui é inteiramente outro, no extremo oposto da anarquia poética, da
efusão sem freio dos primeiros planos eisensteineanos, e mais ainda vertovianos. O
primeiro plano é um fecho, uma maçaneta de porta, o espaço é fechado, o espectador crê
saber aonde ele está, no centro de um cubo cenográfico. É a visão em “plano médio”, a
câmera “na altura de um homem” que domina. Pode-se dizer que esse sistema é
“clássico”, no sentido em que os espectadores estão aí, um a um, agarrados pelos traços
identificatórios dos personagens e fisgados no interior do drama. O suspense seria assim
a forma clássica do espetáculo cinematográfico.
É Hitchcock, como se sabe, a quem se identifica o mais radicalmente com o
suspense. Ele também invoca Grifittih (eu retornarei aí alhures), mas como ao inventor
da emoção narrativa. Ora, o suspense oferece novas possibilidades que o cinema de
montagem intelectual e rítmica inventado por Eisenstein e Vertov não podiam encarar.
Inicialmente, a profundidade de campo; para um cinema no qual as
profundidades do espaço desempenham um papel dramático fundamental. Sabe-se que
Welles e Hitchcock foram os que mais exploraram os recursos do travelling e da mise-
en-scène em profundidade (de modo diferente: Welles teria a tendência de partir do
primeiro plano para fazer fugir o espaço e Hitchcock, ao contrário, a culminar aí, como

23
Oktiabr (URSS; 1927) de S. M. Eisenstein. (N. do T.).
14

nos travellings famosos nos tiques do rosto em Jovem e inocente ou na chave em


Interlúdio24).
E também, insistindo sobre essa parte do desconhecido “atrás da porta” sobre o
qual se funda o suspense para funcionar como tal, o espaço fora de campo. O suspense
repousa menos (Bazin o mostra pelo seu exemplo, mas sem se deter aí) sobre uma
distribuição convencional dos planos segundo uma decupagem da realidade do que
sobre a adjunção ao sistema do campo-contracampo de um fora de campo inquietante. O
primeiro plano preenche então uma dupla função. De um lado, indicar a ameaça de um
fora de campo (como no paradigma da maçaneta da porta), do outro, realizar essa
ameaça por um efeito de horror (rosto horrível, cadáver, sangue). Os filmes de
Hitchcock, em particular, são exercícios extremamente sábios sobre esta dialética do
campo, do fora de campo e de um contracampo “aumentado” de um efeito de horror (cf.
notadamente o rosto de “Mrs. Bates” em Psicose ou aquele do cadáver de olhos
arrancados em Os pássaros25). Assim, Hitchcock conduz até o fim, por um
desenvolvimento vertiginoso dos movimentos e dos planos no espaço vazio, a “visão
ótica-narrativa” do cinema, até o ponto em que se choca sobre o seu real, olho cavado,
órbitas ocas, imagem intolerável.
Porém, ele acrescenta então: “é apenas cinema”, e Godard responde em eco: “é
justo uma imagem”.
Justo uma imagem, somente um plano: uma superfície sem profundidade. O que
é, em definitivo, um plano? Uma secção fictícia (realizada pelo enquadramento) da
profundidade de campo. Mas tudo se passa como se, em um certo ponto, - e,
eletivamente, nesse ponto-limite da escala de planos que é o primeiro plano, close-up ou
insert – toda a profundidade desse espaço imaginário agenciado do cinema pela
combinação entre si dos diferentes planos e ângulos (seja pela montagem ou pelos
movimentos de câmera) desaguasse, basculasse em superfície pura. O primeiro plano
tende a anular a profundidade de campo (ou seja, o alinhamento dos planos segundo a
perspectiva) e com ela o “realismo” perspectivo. Esse realismo é como que conduzido,
por uma perda natural do olhar, em direção a um ponto de consistência: do prazer, do
horror ou do terror encarnado pelo primeiro plano. Mas, além desse ponto, é um outro
jogo que começa: os planos podem ser tratados a despeito de toda profundidade, de toda
coesão imaginária do espaço – para além da função ótica que assegura essa coesão –

24
Young and innocent (Reino Unido; 1937) e Notorius (EUA; 1946) (N. do T.).
25
Psycho (EUA; 1960) e The birds (EUA; 1963) (N. do T.).
15

como puras superfícies. Desemboca-se nas experimentações modernas, que quebram a


profundidade de campo acrescentando planos contraditórios. Eu penso não somente em
Godard, em seu uso das superfícies planas coloridas, e depois nos efeitos de superfície
do vídeo, mas também em Syberberg, que em um filme como Ludwig, réquiem para um
rei virgem26, utiliza as transparências frontais, os “transflex” e as descobertas para
inventar um espaço fantástico de planos contraditórios, não alinhados segundo a
perspectiva ótica, a profundidade. Também em Duras, que utiliza os planos fixos em
função dos planos sonoros (os “planos de voz”) divergentes, etc.
Tudo ocorre como se hoje o espaço cinematográfico clássico não satisfizesse
mais, se encontrasse saturado: a ficção científica vem a acrescentar novos
agenciamentos de planos, acrescentados em laboratório por computadores, de modo a
criar novas vertigens de profundidade, o vazio interestelar, os turbilhões de Descartes,
os buracos negros... E por outro lado, lá onde o dinheiro falta, os planos fixos e intensos
ou o recurso ao vídeo, ou seja, a um tratamento da imagem inteiramente em superfície.
Afastamento absoluto. Então, pode-se ainda falar de “evolução da linguagem
cinematográfica”, como na época de André Bazin, ou bem se trata de uma involução,
que o vídeo viria fechar?

Tradução: Fabián Núñez


BONITZER, P. Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinéma.
Paris: Cahiers du cinéma, 1999. pp. 09-28.

26
Ludwig, requiem für einen jungfräulichen König (Alemanha Ocidental; 1972) de Hans-Jürgen
Syberberg (N. do T.).

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