Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Pascal Bonitzer
Como toda história, aquela do cinema é a história das divisões, das deiscências,
das rupturas que afetaram a arte do filme, a transformaram e a fizeram o que ela é. Uma
história plena de som e fúria (não somente nas telas, mas por trás delas), de polêmicas
sangrentas, dejetos e cadáveres. Inextricavelmente ligada a essa história, fazendo parte
dela, é a história das teorias de cinema.
O cinema se nutriu, desde as origens – e mesmo talvez antes – de teorias. Seus
maiores inventores foram também teóricos (eles inventaram sua linguagem; eles foram,
segundo o termo de Roland Barthes, “logotetas”), e o cinema jamais foi tão grande, tão
fecundo, tão vivo quanto na época em que as teorias o atravessavam e se afrontavam –
época, é verdade, quando o cinema ainda não se confundia inteiramente com o show-
business e a teoria ainda não se havia refugiado na universidade, no tédio das análises
plano a plano, mas se encontrava posta em prática nos filmes.
O último avatar, o ponto de suspensão, ao mesmo tempo, que se quiser, a
redução caricatural desta co-proximidade da teoria e da prática cinematográficas teriam
sido talvez, no período recente, as fórmulas lapidares de Godard em sua série
“militante” pós-68, e notadamente a expressão famosa, talvez a expressão que resume
tudo (em um intertítulo de Vent d’est1): isso não é uma imagem justa, é justo uma
imagem.
Justo uma imagem: por que, com efeito, não recomeçar daí? Por que não
questionar novamente o corpo, a linguagem do cinema a partir dessa fórmula estranha e
bela, simplesmente do que ela parece oscilar à beira do puro non-sens – pois afinal, com
1
Vent d’est (França/Itália/Alemanha Ocidental; 1969) (N. do T.).
2
2
O significante não quer dizer nada e não significa nada, senão em sua oposição a um outro significante:
ele “representa o sujeito para um outro significante”. “Justo uma imagem”, se entenderia então assim: esta
imagem não é o reflexo (justo) da realidade, mas é necessário somente (justo) considerá-la na relação que
ela entretém com as outras imagens. Godard lacaniano.
3
Méditerranée (França; 1963) (N. do T.).
4
Ver André Bazin, “Montage interdit” e notadamente “L’évolution du langage cinématographique” in
Qu’est-ce que le cinéma? (ontologie et langage).
3
5
Life & death (Holanda; 1979) de Jost Roelofsz e Rogier Proper (N. do T.).
4
mal, segundo Jean Mitry, viria de um monstro terminológico forjado após a guerra pelos
críticos (i.e. André Bazin): o “plano-sequência”.
Para Mitry, com efeito, existe apenas uma única definição válida do termo
“plano”; é a definição “de escala” das distâncias-câmera. Um plano é uma “curta cena
ao curso do qual os personagens principais são registrados segundo um mesmo
enquadramento e sob um mesmo ângulo, a uma distância da câmera. Divide-se de modo
inteiramente arbitrário em primeiríssimo plano, primeiro plano [...], plano geral, à
medida que o quadro envolve um “campo” espacial cada vez mais extenso” (Dicionário
do cinema, Laroussse, 1963). Não saberia, neste sentido, ter planos-sequências, pois o
“plano” e a “sequência” pertenceriam à duas ordens incompatíveis, uma exclusivamente
espacial e a outra exclusivamente temporal. Uma sequência é uma reunião sintagmática,
diacrônica, de cenas, elas próprias compostas de um conjunto de planos. Geralmente,
esta reunião se faz pela montagem, segundo uma decupagem preestabelecida. Nisto que
se chama (erroneamente, então, segundo Mitry) o plano-sequência, esta reunião se faz
simplesmente na continuidade do registro, durante a filmagem. A montagem é
simplesmente reabsorvida na mise-en-scène, substituída e, se quiser, implicitada pelos
movimentos de câmera: “[...] não há (ou muito pouco) planos-sequências, ou seja,
planos nos quais a montagem ou as “condições de montagem” não intervêm... Nesses
pretensos casos de “plano-sequência”, a câmera, ao contrário, está em perpétuo
movimento (conforme Soberba, Festim diabólico6, etc.). É uma contínua mudança de
ângulos e de pontos de vista. De fato, no lugar de “montar”, colando uma ponta com
outra de planos diversos registrados separadamente, se faz montagem em estúdio,
realizando-a nesta mesma sucessão de planos em um único e mesmo movimento
contínuo, o curso de uma única tomada”.7
Segundo a concepção rigorosa de Mitry, não se saberia então, no limite, falar de
“plano” em si, mas, pelo menos implicitamente, sempre se referir ao “tamanho” deste,
ao valor diferencial que ele exprime no espaço fílmico. A noção de plano, com efeito,
não nasceu com o cinema, mas com a montagem, ou seja, com a multiplicidade de
pontos de vista introduzida por Griffith: “Quando, após as primeiras tentativas de D. W.
6
The magnificent Amberson (EUA; 1942) de Orson Welles e Rope (EUA; 1948) de Alfred Hitchcock. (N.
do T.).
7
Jean Mitry, Esthétique et psychologie, t. I., Éditions universitaires, p. 156. Um pouco mais acima Mitry
escreve: “[...] como, por definição mesma, um plano é uma determinação espacial fixa, falar de um plano
único enquanto se trata de um travelling é um non-sens [...] De um modo geral, poder-se-ia dizer que um
travelling é um conjunto de planos sucessivos (cada imagem ou quase correspondente a um ponto de vista
diferente), assim como um círculo é uma sucessão de linhas retas”. (p. 153).
5
8
Id, ibid, p. 149.
9
Mitry, Dictionnaire du cinéma, Larousse, 1963.
10
Id, Esthétique et psychologie du cinéma, t. I, p. 155.
6
11
Id., ibid.
7
scène, mas a escolha judiciosa, genial, de um ângulo fixo da tomada. O trem “monta”
sozinho, até o primeiro plano, e os espectadores abandonam a sala, aterrorizados pela
“impressão de realidade”, mas não há como falar propriamente de primeiro plano. Do
mesmo modo, no admirável pequeno filme de Méliès, onde a cabeça de um mágico
incha até preencher toda a cena, não há como falar propriamente de primeiro plano,
mesmo se a câmera efetua um travelling para frente, escondido pelo efeito da máscara.
O ponto de vista do espectador é aqui ainda considerado como absoluto, o que implica
que a cena é rígida, como naquela do teatro à italiana ou do teatro de fantoches. O
público ainda não é um público de cinema, é um público de feira de atrações, de music-
hall, de teatro de fantoches. Há apenas um único ponto de vista, ao mesmo tempo
absoluto, cego e fascinado, como o do basbaque, para quem os bastidores e os segredos
da mágica são escondidos, e a quem o cúmplice do escamoteador corta os cordões da
bolsa (no quadro de Hieronymus Bosch). Isto também é verdade para os primeiros
burlescos, por exemplo os Carlitos, onde tudo se agita, se metamorfoseia e se desloca
de modo alucinante em um cenário único, registrado frontalmente por uma câmera fixa.
Não há como, nesta época do cinema, falar de planos.
Os planos, os diferentes valores (ou como se diz tamanhos) de plano surgem
quando o ponto de vista da câmera cessa de coincidir com aquele dos espectadores e
começa a jogar com a parte de cegueira, até então votada apenas à fascinação tranquila
do basbaque que implica a visão parcial, e com a sensação de proximidade diretamente
produzida pelas vistas aproximadas. Importa pouco saber em que filme, ou em que parte
de filme, apareceu “o primeiro primeiro plano”. É muito mais interessante determinar
em que momento se sistematizou um certo uso de vistas aproximadas em relação às
vistas afastadas. Griffith fez estourar o espaço fílmico e, com o mesmo golpe,
transformou radicalmente as condições do espetáculo cinematográfico cessando de
regular a câmera sobre o ponto de vista do público em relação à tela. Quando a tela
cessou de ser assimilada a um palco de teatro, de music-hall ou de teatro de fantoches,
nasceu o cinema da multiplicidade dos pontos de vista, do leque dos planos. Os planos
são o efeito da montagem griffithiana, ou seja, da introdução da diferença no ponto de
vista, no campo fílmico, nos corpos, e são, então, menos as unidades de base de uma
linguagem cinematográfica cuja língua, como notou Metz, é inencontrável (e afinal, o
que quer dizer uma linguagem sem língua?) do que as marcas diferenciais de um
sistema de escritura, de um agenciamento de signos e de sensações.
8
12
Cf. Gilles Deleuze, Logique de la sensation, Éditions de la Différence, à propósito da pintura de Bacon.
“Mais a mão é [...] subordinada, mais a visão desenvolve um espaço “ótico” ideal, e tende a apreender
suas formas seguindo um código ótico. Porém, esse espaço ótico [...] apresenta ainda referentes manuais
com os quais se conecta: chamar-se-á tácteis tais referentes virtuais, tais como a profundidade, o
contorno, o modelado..., etc. Essa subordinação relaxada da mão ao olho pode dar lugar, por sua vez, a
uma verdadeira insubordinação da mão: o quadro permanece uma realidade visual, mas o que se impõe a
visão é um espaço sem forma e um movimento sem repouso que ela tem dificuldade de seguir, e que
desfaz o ótico. [...] Enfim, chamar-se-á de háptico cada vez que não houver mais a subordinação estreita
em um sentido ou outro [...], mas quando a própria visão descobrir em si a função de tato, que lhe é
própria, e pertence apenas a ela, distinta de sua função ótica. Dir-se-á então que o pintor pinta com seus
olhos, mas somente enquanto ele toca com os olhos. E sem dúvida, essa função háptica pode ter sua
plenitude diretamente e de um só golpe, sob formas antigas, as quais perdemos o segredo (arte egípcia).
Mas ela pode também se recriar no olho “moderno” a partir da violência e da insubordinação manuais”
(p. 99). Poder-se-ia assim ver na paixão pelo primeiro plano, pela visão em primeiro plano, que suprime a
profundidade táctil-ótica, uma tentativa de instaurar uma ordem diferente da visão: a “háptica”. Os
9
violento, sensacional, do primeiro plano. Como todo mundo, e mesmo um pouco mais
que todo mundo. Eles não somente investiram todas as suas elucubrações sobre a
linguagem, a forma e a significação, mas foram sensíveis, antes de tudo, ao arbitrário
dos procedimentos, ao artificio e, se quiser, à monstruosidade da forma em relação ao
material registrado, enfim eles passaram por cima da função dramática desses
procedimentos para se deixar fascinar pela violência dos signos e o absoluto das
sensações: os “picados” da montagem e o choque dos primeiros planos.
Eles são, essencialmente, Eisenstein e Vertov. As múltiplas experiências de
Kulechov consistiram essencialmente em estabelecer os automatismos, as reações
reflexas dos espectadores em presença das rupturas na montagem dos filmes. Elas vão
todas no sentido de uma “cicatrização” imaginária do espaço fracionado pela
montagem; elas tendem todas a mostrar que é impossível não supor uma relação (uma
contiguidade, um sentido) entre duas imagens, entre dois corpos, arbitrariamente,
coladas uma em seguida à outra. Contudo, Eisenstein e Vertov insistiram sobre o
fracionamento; eles quiseram a diferença e a intensidade; eles quiseram o primeiro
plano. (Entretanto, eles não quiseram a mesma coisa, e em sua batalha pelo primeiro
plano e pela montagem, eles se opuseram ao tratarem dessa última).
Então, o que é um primeiro plano? Por que, entre todos os tipos de plano
destacados sobre a profundidade do espaço fílmico, o primeiro plano possui este valor
particular? Por que os historiadores do cinema sempre procuraram – para encontrá-la
sempre em filmes diferentes – a primeira aparição, por que essa aparição do primeiro
plano no espaço cinematográfico parece sempre contemporânea aos primeiros balbucios
de uma “linguagem cinematográfica”? Por que, enfim, o primeiro plano é o objeto,
segundo as épocas e as ideologias, ora de uma tal exaltação (para dizer a verdade,
ninguém o exaltou tanto quanto Eisenstein, que o fez a sua causa perdida), ora de uma
tal denúncia (Rossellini, mas sobretudo André Bazin)?
Então, pode-se encontrar um elemento de resposta no fato de que o primeiro
plano apresenta, por definição, um objeto parcial, propício então ao fetichismo como à
fobia. Aliás, é preciso notar que existe, pelo menos, dois tipos de primeiro plano, que a
Língua Inglesa nomeia diferentemente: close-up e insert; por um lado, quando o objeto
enquadrado for um rosto ou por outro lado, quando for uma parte do corpo ou um
primeiros planos de Vertov e Eisenstein, mas também aqueles de Godard, com os traçados manuais de
vídeo e as incrustações desfigurativas.
10
objeto qualquer. Eisenstein e Vertov se interessaram tanto pelos inserts quanto pelos
close-ups.
Porém, o primeiro plano não faz funcionar toda parte do corpo ou todo objeto
precisamente como um rosto? Deleuze e Guatarri o pensam: “Mesmo um objeto de uso
será ‘rostificado’: de uma casa, de um utensílio ou de um objeto, de uma roupa, etc., dir-
se-á que eles me olham... O primeiro plano de cinema pode ser tanto de uma faca, uma
xícara, um relógio, uma chaleira quanto de um rosto ou um elemento de rosto. Assim,
em Griffith, a chaleira me olha”.13 A primeira aparição do primeiro plano no cinema
seria a primeira aparição do rosto, objeto de uma busca inquieta, e também o do terror
específico (aquele do olhar) que porta consigo. Sem primeiro plano, não há suspense
nem terror, esses domínios tão consideráveis do cinema que se identifica quase que com
eles.14
Em todo caso, é bem esse terror que buscou e desejou Eisenstein, desde a época
em que, contra a dispersão esquizofrênica do cine-olho vertoviano, ele proclamava
querer “rachar os crânios com um cine-punho”, até à época em que, criticado e
marginalizado pelo cinema oficial stanilista, teve que se defender:
Essa mesma lei, acrescentava misteriosamente, pode nos conduzir para além do
cinema.
Fazia alusão a uma função política do terror do primeiro plano? Não é proibido
pensar isso.
Porém, ele pensava talvez sobretudo nas leis mais gerais da figuração e da
desfiguração. Também se encontra primeiros planos no romance – Griffith retira seus
13
Deleuze e Guattari, Mille plateaux, Éditions de Minuit, p. 214.
14
Um dos primeiros filmes “em primeiro plano” é o The big swallow [1901], primeiro plano de uma boca
mastigando.
15
S. M. Eisenstein, Au-delà des étoiles, 10/18, p. 112.
11
16
S. M. Eisenstein, “Dickens, Griffith et nous”, in Cahiers du cinéma, nº 231-235.
17
Id, Au-delà des étoiles, p. 229.
18
Id, ibid, p. 164.
19
Id., É necessário aqui sem dúvida indicar a parte de má fé em S. M. Eisenstein. Ele melhor reconheceu,
em outra parte (cf. supra), a sua dívida com Griffith.
12
20
¡Qué viva México! (EUA/México; 1932) e Bezhin lug (URSS; 1937); ambos filmes de Eisenstein, não
terminados por problemas políticos (N. do T.).
21
Id., ibid, p. 112.
22
André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? Une esthétique de la réalité: le néoréalisme, Éditions du Cerf,
p. 12.
13
Trinta anos depois, com algumas poucas exceções, nós ainda estamos aí.
“Análise convencional de uma realidade contínua”, diz Bazin. É necessário acrescentar
algumas notas. Em relação ao espaço intelectual múltiplo, implicando igualmente um
tempo não linear (a estátua do czar se reconstruindo em Outubro23, ou a metamorfose
dos ídolos no mesmo filme) que havia tentado Eisenstein, encontra-se aqui em um
espaço restrito, mesmo fechado (percorrido pelo vai-e-vem do campo-contracampo),
onde o primeiro plano se encontra investido de uma função bem definida, aquela de
fixar a angústia, ou se quiser de fixar o olhar. Nada a ver com o “terror” eisensteineano,
nada a ver com o olho “intelectual” da montagem de atrações, da montagem vertical.
Aqui, o espectador é fixado na tela a um lugar muito definido, aquele da vítima
potencial de um suposto carrasco, em um espaço fechado. Não é um acaso se Bazin
utiliza a imagem do primeiro plano-maçaneta da porta: é que a câmera trabalha em
estúdio ou em locação e que o primeiro plano, que constitui um limite do sistema ótico
integrado da decupagem hollywoodiana (difração “suturada” da visão), funciona como
um ponto-limite, a maçaneta de uma porta dando para o desconhecido.
O sistema aqui é inteiramente outro, no extremo oposto da anarquia poética, da
efusão sem freio dos primeiros planos eisensteineanos, e mais ainda vertovianos. O
primeiro plano é um fecho, uma maçaneta de porta, o espaço é fechado, o espectador crê
saber aonde ele está, no centro de um cubo cenográfico. É a visão em “plano médio”, a
câmera “na altura de um homem” que domina. Pode-se dizer que esse sistema é
“clássico”, no sentido em que os espectadores estão aí, um a um, agarrados pelos traços
identificatórios dos personagens e fisgados no interior do drama. O suspense seria assim
a forma clássica do espetáculo cinematográfico.
É Hitchcock, como se sabe, a quem se identifica o mais radicalmente com o
suspense. Ele também invoca Grifittih (eu retornarei aí alhures), mas como ao inventor
da emoção narrativa. Ora, o suspense oferece novas possibilidades que o cinema de
montagem intelectual e rítmica inventado por Eisenstein e Vertov não podiam encarar.
Inicialmente, a profundidade de campo; para um cinema no qual as
profundidades do espaço desempenham um papel dramático fundamental. Sabe-se que
Welles e Hitchcock foram os que mais exploraram os recursos do travelling e da mise-
en-scène em profundidade (de modo diferente: Welles teria a tendência de partir do
primeiro plano para fazer fugir o espaço e Hitchcock, ao contrário, a culminar aí, como
23
Oktiabr (URSS; 1927) de S. M. Eisenstein. (N. do T.).
14
24
Young and innocent (Reino Unido; 1937) e Notorius (EUA; 1946) (N. do T.).
25
Psycho (EUA; 1960) e The birds (EUA; 1963) (N. do T.).
15
26
Ludwig, requiem für einen jungfräulichen König (Alemanha Ocidental; 1972) de Hans-Jürgen
Syberberg (N. do T.).