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por
Éric Rohmer 1
(« Le Cinéma, art de l’espace », La Revue du Cinéma N°14, junho de 1948)
1
Assinado como Maurice Schérer, seu verdadeiro nome. [Nota do tradutor]
2
Esquisse d’une psychologie du cinéma (Verve, 1941). [Nota do autor]
1
de expressão plástica, à constituição de uma “cineplástica” do gesto3. Tenhamos em
mente, entretanto, que algumas entre elas – quer se trate de Sangue de um Poeta de
Cocteau ou de Um Cão Andaluz de Buñuel – nos revelam um modo de significação
que está ligado mais a concepções literárias ou pictóricas do que de fato
cinematográficas. Não é pelo seu grau de abstração que se poderá determinar o grau
de pureza de um filme, mas pela especificidade dos meios que ele emprega.
Não se trata, então, de cravar aqui como alguns realizadores foram
influenciados pela estética da pintura – buscando uma “deformação” análoga à que se
pode encontrar num quadro de Paolo Uccello ou d’El Greco – ou pela estética da
dança – regulando o movimento dos atores como o dos personagens de um balé –,
mas sim de indicar em que medida o cinema pode, nessa área, utilizar meios de
expressão que lhe são próprios. A natureza própria da tela – espaço retangular
inteiramente preenchido que ocupa uma porção relativamente estreita do campo visual
– condiciona uma plástica do gesto muito diferente daquela a que as artes cênicas nos
habituaram. Por exemplo, esse movimento do braço, familiar ao ator de ópera, usado
pelos personagens dos filmes de Méliès, encontra mais facilmente a sua razão de ser
no espaço cênico – ao mesmo tempo fixo e determinado – do que no interior de um
quadrilátero cujas bordas são nitidamente marcadas e circunscrevem apenas de
maneira provisória uma porção mais ou menos estendida da superfície em que ocorre
a ação. O gesto do ator torna-se, progressivamente, não somente mais discreto, mas
mais “condensado”, deformado, por assim dizer, pela proximidade da borda da tela,
poupando o realizador de interrompê-lo no exato momento em que ele violaria esse
equilíbrio plástico cuja busca pode ser tão rigorosamente almejada quanto num quadro
ou num afresco. Por outro lado, por mais paradoxal que isso possa parecer, o espaço
da tela tem sido, mesmo antes da utilização sistemática da profundidade de campo,
um espaço em três dimensões, enquanto que o da cena geralmente tem apenas duas, e
a posição elevada deste último em relação a pelo menos parte dos espectadores torna
inexpressivo o movimento de vaivém.
Os maiores realizadores, ao contrário, se empenham em sugerir essa
profundidade cuja realidade está ausente na tela: não pode ser efeito de uma simples
coincidência que o tema visual do espiral se encontre em obras como Caligari (o rapto
de Lil Dagover), Nosferatu (o “oito” da carruagem no reino dos fantasmas), A Linha
Geral (o trem das carroças nas curvas da estrada) ou A Dama de Xangai (a descida do
tobogã). Enfim, as formas de expressão espacial deverão coincidir com os modos
gerais de expressão no tempo utilizado no filme, sendo toda deformação no espaço
acompanhada de uma deformação no tempo – ralenti ou aceleração. A montagem,
pelo estabelecimento do seu ritmo próprio, onde se integrará o ritmo particular de cada
plano, poderá modificar singularmente o caráter expressivo de tal ou tal movimento.
Assim, contrariamente ao que se poderia pensar a princípio, um filme incorrerá
na acusação de estetismo tanto mais quanto for menor o seu grau de pureza, já que a
vontade de estilo do realizador não conseguirá determinar com suficiente rigor o
conteúdo em função do modo de expressão adotado. As obras cujos temas são mais
3
Cf. De la cineplastique (Elie Faure, L’Arbre d’Éden), Idées d’un peintre sur le cinéma (Marcel
Gromaire, Le Crapouillot 1919. Le Cinéma d’avant-garde (Germaine Dulac), textos citados em
Intelligence du cinématographe de Marcel L’Herbier (Corréa). [N. do A.]
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ricos em poder emotivo direto são as que mais dificilmente conseguem se
desvencilhar de clichês visuais. Sendo o caráter expressivo do plano apenas um
elemento parasitário, a beleza da imagem será buscada por ela mesma. Do ponto de
vista em que nos posicionamos, os filmes mais valiosos não são aqueles que contêm
as mais belas fotografias, e a colaboração de um operador4 genial5 não pode fazer com
que elas nos imponham uma visão de mundo original.
4
Diretor de fotografia. [N. do T.]
5
A menos que se trate de um perfeito acordo entre as concepções do operador e as do metteur
en scène, como no caso de um encontro Toland-Wyler e Toland-Welles. [N. do A.]
3
meio adequado para significar, mais que um elemento criador de significações. Ao
contrário, um cinema menos refinado, consistindo numa concepção menos
psicológica do cômico, se aproxima antes de uma arte pura do movimento: o riso, riso
intenso embora menos “inteligente”, nasceu da simples confrontação de duas
dimensões, da repetição mecânica de um gesto. Poder-se-ia encontrar vários exemplos
nos filmes de Mack Sennett e nos primeiros burlescos americanos. O burlesco dos
Irmãos Marx, mesmo nos seus momentos mais cinematográficos (a cortina fechada
para impedir as balas de canhão em Duck Soup, a cabine lotada em Uma Noite na
Ópera), se refere ainda mais à significação habitual do gesto: o absurdo só irrompe
em relação a um sistema de significação já estabelecido.
É sobretudo – algo muito pouco notado – nos filmes de Buster Keaton que nos
é imposta a presença de um universo espacial em que gestos e movimentos irão
adquirir um novo sentido. Buster Keaton não é somente um dos grandes comediantes
da tela, mas um dos gênios mais autênticos do cinema. Insistiu-se no caráter mecânico
de sua comédia, que uma certa frieza se torna, à primeira vista, desconcertante.
Decerto, ele não pode ser situado entre os burlescos, cuja riqueza de imaginação ele
não possui, e nem entre os imitadores de Chaplin, por mais que ele tenha sido
fortemente influenciado por este último – e com razão julgava-se assaz pobres seus
trabalhos de estilo alusivo, que ele usa frequentemente. É que, para ele, a significação
psicológica do gesto conta muito menos que o cômico irrompendo da exata maneira
como o movimento se inscreve na tela. Em Boxe por Amor, por exemplo, vemos
durante cerca de quinze minutos o aluno boxeador tentando, em vão, reproduzir o tão
simples gesto do uppercut que o seu treinador lhe indica. Essa comédia de erros não
teria nada de original se a falta de jeito não tivesse sido, por assim dizer, desenvolvida
por ela mesma – na medida em que ela pode, pelo fato de sua repetição, encontrar
finalmente uma certa justificativa estética –, mas sobretudo porque ela aparece como
um tipo de questionamento do espaço, de pesquisa – aqui grotesca, mas que poderia
muito bem ser inquieta e trágica – sobre o “porquê” das três dimensões. Para ficar
neste filme, o momento mais extraordinário é, sem dúvida, quando o boxeador, contra
a sua vontade, se prende nas cordas tentando entrar no ringue: a impossibilidade de
dar uma ideia de cômico de uma tal “posição” a qualquer um que não tenha visto o
filme atesta a autenticidade do seu valor cinematográfico.
Ao contrário, as ações – mesmo as mais visuais – de Chaplin (Carlitos fazendo
malabarismo com tijolos, Carlitos andando de joelhos, Carlitos afundando na banheira
que ele acreditava vazia) já fazem rir quando descritas e sugeridas pela palavra. Não
se trata de momentos excepcionais: ao longo de seus filmes, Buster Keaton exprime
essa obsessão por um certo espaço de inadequação e solidão que não podemos
encontrar paralelo no cinema. Na nota que anexou à publicação de Amerika, Max Brod
nos disse que certas passagens do livro de Kafka “evocam, irresistivelmente,
Chaplin”. É sobretudo em Buster Keaton, não em Chaplin, e nem mesmo em
Langdon, que se deveria buscar uma visão de mundo mais semelhante – em seu caráter
de rigor absoluto, de atividade geométrica – ao mundo inumano de Kafka. A solidão,
em Chaplin, ainda que traduzida espacialmente pelas célebres imagens d’O Circo ou
de Em Busca do Ouro, nunca é outra que não a do homem numa sociedade indiferente,
ao passo que, em Buster Keaton, o isolamento dos seres e dos objetos aparece como
constitutivo da natureza própria do espaço, um isolamento exprimido em particular
pelo tema do movimento de vaivém – sendo como que “remetido” a si –, pelas quedas
violentas, pelo porte descuidado de objetos que escorregam ou quebram, como se o
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mundo exterior fosse por sua própria essência inapto a ser “apreendido”. Essa
obsessão, aliás, pode ser traduzida sob um aspecto mais estático: as relações de
dimensões dos diferentes objetos, do respectivo tamanho das personagens, são sempre
objeto de um tratamento rigoroso6.
O caso de Eisenstein
Um segundo exemplo pode ser tomado da obra de Eisenstein, que, certamente,
de todos os diretores, é aquele que possui mais intensamente o senso de proporção, a
ponto de cada um dos seus planos respeitar milimetricamente as leis da proporção
áurea. Do mesmo modo, falou-se de uma deformação análoga à que encontramos em
Grünewald, Tintoretto ou n'El Greco, deformação cuja utilização quase constante do
ponto de vista em contra-plongée não explica o segredo por si só. Sublinhemos aqui
que esse fluxo de oblíquas segundo uma ou duas direções privilegiadas, essa profusão
de curvas, opera sempre no sentido do movimento e organiza as linhas principais
seguindo aquelas cujas superfícies se movem no interior do plano, salvando-o, assim,
constantemente, do estetismo. Ademais, a precisão da montagem torna possível a
busca, por meio de uma série de planos, da mesma obsessão visual. Constitui-se,
assim, um universo no interior do qual o movimento, em sua forma mais abstrata,
recebe uma significação. O escopo humano da mensagem expressada em seus
primeiros filmes, o realismo de seu tema, nem sempre permite ver a que ponto o
mundo de Eisenstein é uma construção quase tão arbitrária quanto os de Caligari ou
A Paixão de Joana d'Arc. Pode-se achar Ivan, o Terrível menos cativante que
Potemkin, A Linha Geral ou Que Viva México!, mas de forma alguma estes
correspondem a um empobrecimento da imaginação de Eisenstein. Citemos, entre
outros exemplos, a morte de Ivan, o Terrível, e a união do exército em Alexandre
Nevski.
5
a crispação do rosto quando da fúria se enriquecem com um novo sentido que poderá
até os privar de seu poder emotivo direto e deixá-los somente o seu puro caráter de
fascinação.
Não se poderia acusar os expressionistas alemães, como se poderia acusar os
surrealistas, de se inspirarem em concepções extra-cinematográficas, sob o pretexto
de que a estética à qual eles aderem já havia se estabelecido no campo da pintura ou
do teatro. Não queiramos diminuir a influência que tiveram as ideias de Max
Reinhardt na mise en scène moderna, mas é preciso reconhecer que o cinema era,
ainda mais que o teatro, a forma de arte que melhor se prestava à sua aplicação. A
deformação do espaço operada pelo décor de Caligari é de um efeito muito mais
violento na tela do que no palco.
Convém aqui fazer uma homenagem particular a F. W. Murnau, a quem, na
falta de exibições mais frequentes, não é sempre dado o lugar que lhe é devido entre
os grandes realizadores, lugar que é, talvez, o primeiro. Por mais rigoroso que seja o
universo criado por Eisenstein, ele é por vezes somente o quadro de ações que têm
por si próprias uma beleza e uma grandeza. Murnau soube não somente evitar toda
concessão à anedota 7[7], mas desumanizar os temas mais ricos, aparentemente, em
emoção humana. Assim, Nosferatu é inteiramente construído em torno de temas
visuais correspondentes a conceitos que têm em nós correspondentes fisiológicos ou
metafísicos (conceito de sucção, de absorção, de possessão, de esmagamento etc.);
são eliminados todos os elementos que possam orientar nossa atenção a outra coisa
que não essa apreensão imediata da transcendência no interior do signo; tudo o que
contribuiria, por exemplo, com a criação de uma atmosfera de pavor, o caráter
fascinante da sensação de horror desaparecendo no momento em que se torna medo,
isto é, emoção. Tartufo, A Última Gargalhada, o admirável – e ainda muito discutido
– Fausto, Aurora e o “documentário romanceado” Tabu revelam, pela totalidade de
seus planos, a imaginação cinematográfica mais rica que há.
7
A maioria dos seus roteiros são de Carl Mayer. [N. do A.]
8
Anecdotique, no original. Aqui poderia ser entendido, talvez, como “caráter narrativo”. [N. do
T.]
6
noção de espaço que faria inveja em muitos dos filmes de vanguarda.. O espectador
moderno (e, neste sentido, não é a data de nascimento do cinema falado que marca a
“virada9” principal da evolução, mas o momento em que os procedimentos alusivos
de narração substituem o modo descritivo de história), depois de muito tempo,
habituou-se a interpretar o signo visual, a compreender a razão de ser da presença de
cada imagem para se interessar pela própria realidade de seu aspecto. O espetáculo
cinematográfico se apresenta a ele mais como decifração do que como uma vista; seu
olho não é mais ingênuo o bastante para se deixar fascinar, durante longos minutos,
pelas sinuosidades dos corpos envolvidos na “luta” habitual, pelo galope perturbado
que traça transversalmente a tela.
Orson Welles é, sem dúvida, o único realizador moderno que conseguiu impor-
nos a presença de um universo espacial e cuja riqueza de imaginação pode ser
comparada à de Murnau e sobretudo Eisenstein, com quem ele demonstra, ao menos
desse ponto de vista, uma certa afinidade de temperamento; presença, inclusive, de
obsessões espaciais, traduzida, entre outras, por um parti-pris de pontos de vista em
contra-plongée (aos tetos de Citizen Kane correspondem as baixas abóbadas de Ivan,
o Terrível).
De todo modo, a arte de Wyler parece muito mais de acordo com as exigências
do público atual. André Bazin, aqui mesmo10, lhe dedicou uma longa análise. Digamos
apenas que, no universo de Pérfida ou de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, a
relação entre signo e significado11 permanece contingente: trata-se apenas da
constituição de uma linguagem específica, exprimindo, por meios não somente de
ordem visual, mas espacial, um determinado conteúdo psicológico. A decupagem de
Wyler é intencional e alusiva, da mesma maneira que a montagem de Chaplin ou de
Pudovkin.
Os procedimentos que o realizador moderno utilizará no campo da expressão
espacial serão muito menos aparentes do que há vinte anos. É normal que a evolução
do cinema ocorra, como em todas as outras artes, no sentido de uma economia de
meios de expressão. Essa simplificação pode resultar num maior realismo: o mérito
de Rossellini em Paisà é ter apostado o mínimo possível nos efeitos da montagem e
evitado uma grande fragmentação em planos – fragmentação, no entanto, que parece
se impor quando se opera com fragmentos tirados da vida. Isso exige, em
contrapartida, mesmo numa arte tão realista, uma certa riqueza de expressão espacial,
mas num sentido muito diferente do da deformação plástica. Aqui, a própria escolha
do tema é primordial: os temas do soldado negro treinado pelo pequeno “sciuscia 12”,
da travessia do rio Arno, dos partisans vagando pela planície do rio Pó, correspondem
9
No original, “tournant”. O verbo “tourner”, em francês, é ambíguo: designa tanto “tornar”
quanto “filmar”. [N. do T.]
10
William Wyler ou le janséniste de la mise en scène, Révue du Cinéma N°10, fevereiro de
1948. [N. do T.]
11
Signe et signifié. [N. do T.]
12
Palavra originada na segunda guerra a partir do contato entre americanos e italianos. Referente
a “engraxate”, sciuscià é uma deformação de shoe-shiner (shoo-shaa). [N. do T.]
7
a uma obsessão cuja simples presença confere à anedota13 a eficácia de um mito.
Num sentido totalmente oposto – a busca pela estilização –, a obra de
Hitchcock é extremamente rica em ensinamentos, mas o brio de seu estilo não está
sempre a serviço de uma concepção muito rigorosa de relações entre o conteúdo e a
expressão. Mais pura é, sem dúvida, a arte de um Bresson, cujo filme As Damas do
Bois de Boulogne, tão injustamente criticado, representa a tentativa mais digna de ser
comparada à do Expressionismo alemão. O fato de que a estilização na expressão do
tempo toma aí mais cuidado do que a construção espacial, mensura, no entanto, toda
a distância que separa o cinema moderno do da "grande época" do cinema mudo.
Aprendendo a compreender, o espectador moderno desaprendeu a ver; e se o filme
tem trabalhado nossa educação visual, não é nos tornando mais sensíveis à pura
significação de certas formas ou movimentos. Na medida em que o cinema é ainda
uma arte da visão, somos, graças a ele, simplesmente mais aptos a compreender as
intenções de uma linguagem que pode ser tão nuançada, tão sutil quanto a linguagem
falada, mas que permanece, o mais das vezes, tão convencional quanto ela.
MAURICE SCHÉRER
13
Anedota, aqui, deve ser compreendido como “fato de caráter marginal, relativo a uma ou
mais pessoas, inédito ou pouco conhecido, ao qual se pode atribuir um significado, mas que
permanece acessório em relação ao essencial” (Larousse). [N. do T.]