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SCENA
ABRIL-JUNHO 2023
Nº 01
ANO 1
CRÍTICA
SCENA
Editorial
Dedicatória
Filipe Machado
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 3
I T I N E R Á R I O
I T I N E R Á R I O
Júbilo pascal
Ao lançarmos, nestes dias em que se celebra a Páscoa, a Uma das grandes referências filosóficas de Scena Crítica é
primeira edição da Revista Scena Crítica, o fazemos para Jacques Maritain. E quem o traz nesta edição é Hélder
que esse novo projeto surja dessa alegria pascal que deve Luis, com seu artigo Jacques Maritain e a influência do
tomar conta do coração humano, alegria da certeza de humanismo na filosofia política brasileira.
que os percalços da vida não têm a última palavra sobre a Na coluna Livro aberto, Barbara Lima abre para nós O
nossa liberdade, se bem ordenada. tesuro escondido, do Cardeal português José Tolentino
O material que doravante divulgamos é amplo e variado. Mendonça, traçando um percurso para a busca interior.
Trazendo a "peculiaridade" com tentativa de análise social, Na Ágora, nossa praça de divulgação literária, brilham três
cultural e histórica, Eduardo Silva abre suas Crônicas de promissores nomes da produção poética: Barbara Bedor,
um tempo peculiar de forma instigante. Maurício Dias, Haloma Reis e Tainara Vasconcellos, com textos a serem
por sua vez, traz ao debate a relação entre economia e degustados. Na praça ainda há espaço para Eliseu Cidade
socidade, traçando um panorama sobre o status atual da que nos apresenta o conceito de antropoceno no livro
questão em seu artigo O ovo e a galinha. Homo Deus.
Cumprindo nosso dever de reverenciar os que nos Gustavo Corção, além de marcar presença nesta edição no
precederam, a coluna Vox Patroni reverencia Ariano Vox Patroni, retorna como A esfinge raspada, no
Suassuna pela voz de Gustavo Corção. Saindo do armorial excelente resgate que Pedro Paulo dos Santos faz de sua
e chegando ao clássico greco-romano, encontramos a figura. Rafael Santos, por sua vez, inaugurando seus
análise de Telmo Olímpio a partir da obra homérica, Ensaios do Cotidiano, convida-nos a um olhar sobre o
discorrendo sobre O desejo humano pela glória. eros, partindo da perspectiva da esponsalidade.
Nada melhor do que um britânico para nos fazer Camila Porfiro, em seu artigo O judiciário e a opinião
megulhar na Londes do final do séx. XIX e ali encontrar pública, insere-nos no que há de mais atual no cenário
Sherlock Holmes, o detetive consultor de Sir Arthur brasileiro acerca da relação entre o poder judiciário e a
Doyle, o que Jeremy Boot faz com maestria. voz das ruas. Após dar uma passada no In Scena para
No Dossiê desta primeira edição, Scena Crítica, sempre conferir as novidades bibliográficas e os eventos, não deixe
atenta ao hoje, apresenta aos leitores o jovem mas conferir, na coluna O monge Copista, o texto de Pedro
promissor movimento Comunhão Popular e sua proposta Henrique Abreu, análise sobre o Reino Unido e seu
de política social. sistema político.
Estreando o Caderno de Cinema, Filipe Machado nos traz Como o leitor pode notar, Scena Crítica, conforme indica
um belo percurso sobre as impressões da Igreja acerca da o editorial desta edição, procura unir ideias que parecem
sétima arte, passando pela amizade entre o cineasta diversas, mas que se encontram na motivação comum de
Pasolini e o jesuíta Fantuzzi até chegar aos inícios da divulgar saberes, sempre com um olhar a partir da
crítica cinematográfica no Brasil. integralidade da pessoa humana.
ÍNDICE
Dossiê, pág. 14
Sob Deus com os pobres
In Scena, pág. 45
O monge copista, pág. 45
Em xeque
"E enquanto o verdadeiro homem de letras participa, dolorosa ou
alegremente, de todas as dores ou alegrias dos outros homens de
quem se sente o intérprete e o guia, – deixa a vaidade literária
apenas subsistir, no desejo malsão de aparecer, a ilusão ridícula das
gloríolas e a tola preocupação da publicidade. Essa pseudoliteratura
é o paraíso do individualismo."
CRÔNICAS DE UM
TEMPO PECULIAR
príncipe do paradoxo”, dizia que o mundo moderno é pior
do que qualquer sátira que dele se faça. Não sei se a
realidade é realmente pior, mas, de fato, olhando as
notícias, reels e posts que pululam em tempo real em
nossas time lines, parece que vivemos todo dia numa
sátira (e de muito mau gosto na maioria das vezes. Se bem
que parece que há quem goste. É como se diz: há gosto
para tudo).
Não quero que o desavisado leitor pense que sou um
pessimista. Sou totalmente avesso ao pessimismo. Tomo
para mim aquela máxima de Pessoa no Livro do
desassossego: “Ser pessimista é tomar qualquer coisa
como trágico, e essa atitude é um exagero e um
incômodo”. Mas também não sou um ingênuo. In medio
virtus, diriam os escolásticos medievais, seguindo
Aristóteles. Entendo que a melhor posição diante do
mundo é o realismo, procurar ver tudo como se é. E nesse
exercício percebe-se, de fato, que a vida tem lá suas cenas
trágicas. Mas tem também suas cenas heroicas, épicas até,
e isso traz esperança. Não há pessimismo que resista
diante de uma esperança bem fundada, realista, sem nada
de ingenuidade ou sentimentalismo medíocre. Não à toa a
tradição cristã colocou a esperança na mais alta categoria
das virtudes, ditas teologais, junto da fé e da caridade.
Diante dos dias em que vivemos, dias pós-pandêmicos,
com ares de guerra mundial e de crise político-social no
cenário brasileiro, esperança é uma palavra interessante,
ou melhor, peculiar. As vezes surge vazia, numa frase
inocente, ou numa fala de ingenuidade constrangedora,
piegas. Outras vezes, mais classicamente, surge
apanhando na boca dos pessimistas. Já o realista, hoje
animal raro, vê na esperança certa virtude de combustível
que impulsiona o presente ao futuro incerto, amparado
pela experiência do passado.
Mas não é de esperança que trata esse texto. É de
peculiaridades, conjunto de características muito próprias
desses dias, surgidas dos mais diversos apelos, ideias e
tendências que habitam o mundo hodierno.
Peculiaridades boas. Mas também peculiaridades más, não
A
(perdoe-me o benevolente leitor por mais esse latinzinho),
pesar de minha pouca idade, já consigo perceber bonum ex integra causa – o bem provém de uma causa
perfeitamente que não existe era de ouro. Cada íntegra.
tempo tem lá seus percalços e seus dramas e seria E já que o leitor benevolente me perdoou os latinismos
ingenuidade demais achar que houve tempo perfeito, desta crônica, permita-me, então, um pouco de
ainda que grande seja a tentação de condenar os dias que etimologia. Peculiar vem do latim, peculiaris, aquilo que é
se vive, idealizando um passado que não existiu. Vá lá, não
adquirido por pecúlio, por economias. Toda peculiaridade,
é fácil olhar para essa década de 20 do séc. XXI e não fazer
portanto, tem um preço. E algumas um preço muito caro.
comparações com os “dourados” anos 1920.
Vejo que muitos até se endividam existencialmente para
Buscando um adjetivo que pudesse caracterizar o
adquirir e manter certas peculiaridades. Talvez na raiz
presente em que vivo, observo e atuo, achei-o na palavra
disso tudo esteja uma sede justa por autenticidade. As
“peculiar”. Nela é possível utilizar um tom crítico sem ser
fontes, porém, onde se busca saciar essa sede, parecem-
ácido, indicar as particularidades do hoje evitando
me um tanto duvidosas.
comparações anacrônicas, destacar suas contradições sem
Aqui, portanto, serei um observador de peculiaridades,
pedantismos. Peculiar é o passado que não vivi; e o futuro
sem deixar de ter as minhas próprias. Sem deixar de estar
que não viverei há de ter as suas próprias peculiaridades.
de alguma forma imerso e atingido pelas peculiaridades
Mas, como vivo no hic et nunc, no aqui e agora, é dele que
que formam nossa sociedade. Serão crônicas de um tempo
posso falar das peculiaridades com alguma propriedade. peculiar, a tratar de certas peculiaridades crônicas.
Com isso não quero dizer que ao falar do presente não vá
buscar ajuda no passado. Demonstra grande ignorância
quem queira viver o hoje desprezando o ontem. E tentar
especular, sóbria e objetivamente, sobre o futuro incerto
Eduardo Silva, graduado em
que nos aguarda, é um exercício natural de quem vive um História pela UFRRJ e em Filosofia
dia de cada vez. Portanto, nessas peculiares crônicas que pela PUC-Rio, encaminha os
agora inicio, falarei muito do presente, mais um tanto do estudos também para a literatura e
passado e alguma coisa do futuro. a teologia, sempre a partir de um
diálogo entre o pensamento
Chesterton, que muito propriamente foi apelidado de “o tomista e as diversas correntes
contemporâneas.
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A
ao Direito, e contar a história de sua disciplina fora do
pergunta sobre o que veio primeiro sempre escopo dos grandes paradigmas das demais Ciências
aparece ao longo da História, seja nas nossas, Sociais, o que o difere dos demais. A utilização da
pessoais, ou em seu sentido c oletivo. Pode-se matemática com a modelagem econométrica e estatística,
dizer que a ideia de causa e consequência remete para ainda que comecem a aparecer com maior projeção nos
esta questão. A noção de dialética também, ao seu modo. demais campos, também foi um fator determinante para o
O ponto é que o primeiro fator, aquele que gera todas as seu isolamento nas últimas décadas.
demais consequências, é a pedra filosofal de muitos Parte desse movimento também ocorre porque não há
debates intelectuais. muito interesse em alguns setores da sociedade em um
Tanto Marc Bloch, que discordava da busca pela origem maior debate sobre a política econômica. Restrita a grupos
dos eventos na História, quanto Ernst Mach, que defendia cada vez mais enxutos e técnicos, a sua reverberação na
a posição descritiva dos fenômenos na Física, discordavam imprensa mais parece buscar uma só visão do que veicular
em alguma medida da noção peremptória de causa e as várias possibilidades democráticas de se pensar a
consequência, ainda que em ambientes científicos economia do país.
distintos. Esse samba de uma nota só muitas vezes leva ao ponto já
No debate econômico, a projeção de causa e levantado de que os debates de outras áreas ficam a
consequência tem o seu valor, ganhando contornos cada mercê dos economistas, além de parecer que todo o
vez maiores com a utilização da matemática em sua assunto relevante do país tem que passar pelo aval dos
metodologia científica, ocorrida com relativa aceleração mesmos. A projeção de pensarmos o ramo da saúde, por
especialmente a partir dos anos 1950. exemplo, sem analisarmos a relação custo-benefício e os
Quero defender uma hipótese pouco usual neste breve gastos públicos parece no atual cenário uma heresia.
texto: o debate econômico, em especial o veiculado pelas Evidente que há relevância em estudos e discussões com
mídias, mas também o acadêmico, é menos relevante e é esse viés, mas o problema é pautar quase todo o debate
mais consequência do que causa para a resolução de sobre a saúde do país a partir deste prisma, estabelecendo
problemas e a busca por soluções de um determinado uma hierarquia de importância que pouco se traduz na
país. E é consequência de outros debates fora da esfera discussão efetiva sobre o ecossistema da indústria da
econômica a que estamos acostumados. saúde, a gestão dos profissionais, a introdução do 5G em
A minha provocação reside em três pontos centrais. O processos disruptivos de análise médica, etc.
primeiro, e talvez o mais óbvio, é o de que os debates Utilizei o exemplo da saúde, mas educação, segurança,
econômicos se apropriam dos termos, da linguagem e do ciência e muitos outros pontos também sofrem desse
espírito de tempo de cada sociedade. apequenamento. A questão é, portanto, de ênfase. Se tem
Vejamos o seguinte exemplo. Hoje vivenciamos uma colocado a economia como mestra maior de assuntos que
hipertrofia das identidades, respaldadas pelo mundo ela deveria ser secundária ou nem sequer ter papel
intelectual e cultural do país. A aceitação desta relevante. Não é por acaso que um presidente pode usar o
enunciação reverberou nos debates econômicos a ponto argumento da economia para permitir a população
de muitos estudos se apropriarem dos termos e formas de circular durante uma pandemia e parte da população
pensar desta questão. Mesmo na mídia, questões acatar como destino inexorável.
relacionadas ao preconceito e à representatividade fazem Nesse sentido, o terceiro ponto vai de encontro ao destino
parte da pauta de assuntos de ordem econômica. que nos é traçado. Porque o debate sobre a comunidade, a
Outro exemplo é a utilização do uso de dados utilizados nação ou o que nós enquanto sociedade queremos ser é,
nos mais diversos setores da sociedade. A economia, em ou deveria ser, a locomotiva de projeção do país, com o
especial a sua abordagem micro, catapultou estudos em debate econômico sendo consequência desta primeira
que a base metodológica passa pela apropriação de antevisão.
dados, em detrimento de debates teóricos. Na imprensa
há muito vezes um frisson pelo dado econômico mais
recente e a possibilidade de projeção feita pelos mais
diferentes órgãos. É o Zeitgeist dos tempos que vivemos.
O segundo ponto, que vai ao encontro do primeiro, é o de
que a economia é parte da sociedade e não o seu
contrário. O que também parece uma obviedade ao
primeiro olhar, não é tanto se observarmos uma
autonomização do debate econômico em relação a uma
série de outros debates na sociedade.
Há um curioso paradoxo na forma como tem sido
externalizado o debate sobre a economia no Brasil:
enquanto outras áreas da gestão pública, como educação
e ciência, estão sendo sugadas por um economicismo até
então paralisante, a veiculação da política econômica fica
presa em pontos tão exíguos que mesmo os debates na
academia sobre a economia brasileira não aparecem nas
discussões públicas sobre a condução da política
econômica.
É bem verdade que o saber econômico oriundo das
universidades brasileiras, mais heterogêneo e amplo, tem
uma dificuldade notória em se popularizar nos debates
mais cultos do país, em parte porque não há muito
interesse na própria imprensa sobre essas questões, em
parte porque os estudos universitários têm histórica
dificuldade para se popularizar. O próprio campo econô-
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Em outras palavras, o desenvolvimento econômico de um É um erro pressupor que tais debates não tiveram relação
país depende mais de debates sobre a nação, sobre o que alguma com o crescimento e desenvolvimento econômico
queremos e o que não queremos ser como país, do que da época, até porque tais autores e obras são oriundos de
sobre a taxa de juros, a dívida pública ou o mercado embates que já estavam sendo travados no mundo
financeiro. Não quero com isso negar a importância de tais intelectual nacional do contexto mencionado. A reflexão
discussões, mas quero relativizá-las como fatores sobre o que queremos ser como coletivo singular é
primordiais para o sucesso de uma nação. Essa fundamental para minimamente darmos alguma direção
relativização acontece na medida em que cada país, sobre o nosso futuro em sociedade, e evidentemente tais
quando assume uma postura sobre o que quer como pontos têm impacto direto no caminho que queremos
nação, acaba por observar esses pontos na esteira dos vislumbrar na área econômica. Independente do regime
primeiros, se tornando, portanto, mais consequência do político, da orientação ideológica e da liderança em
que causa para a mudança projetada. questão, o debate que existiu no Brasil durante esse
Pode parecer estranho à primeira vista, mas uma iniciativa período era mais rico, mais focado em questões relevantes
como a Scena Crítica que procura transmitir textos com para o país e mais consciente do seu papel do que nos
boa qualidade dentro das Ciências Sociais e Humanas tem dias de hoje.
um papel mais relevante para a economia do que Não quero aqui de maneira alguma menosprezar as
possamos supor. Tendo em vista que a economia vem a discussões em torno de política industrial, sobre a
reboque de outras forças da sociedade, de ordem estrutura produtiva do país ou mesmo sobre os impostos e
intelectual, empresarial, religiosa e moral, qualquer pressões de grandes interesses econômicos na condução
iniciativa que tem por objetivo a melhora do debate tem da política econômica – pontos esses que, por sinal,
efeitos na esfera econômica, ainda que pequenos e também aparecem muito pouco nas grandes mídias – mas
secundários. defender a hipótese de que os debates sobre o Brasil,
Vejamos um caso mais concreto. O Brasil foi o segundo sobre o que somos, sobre a nação que queremos e a
país de maior crescimento econômico no mundo entre as posição do país perante as questões no mundo são os
décadas de 1930 e 1970. Por mais que possamos debates essenciais que redefinem a economia de um país.
reinterpretar esse fato à luz de eventos exógenos, como a As questões econômicas são secundárias a essas e, por
Segunda Guerra Mundial, ou endógenos, como a consequência, são mais determinados do que
duplicação da população brasileira no mesmo período, o determinantes.
fato é que esse período o país vivenciou um crescimento Não é surpreendente ver que a economia do país patina,
bastante significativo e destoante dos seus demais mesmo com todo o economicismo que nos é jogado. Hoje
períodos históricos. o debate brasileiro está no nível do risível. Mesmo nos
Paralelamente esse foi o período de grandes debates espaços destinados ao debate público, carecem elementos
nacionais em torno da nacionalidade brasileira, sobre o afetivos e mesmo alguma criatividade para se pensar o
que seríamos e deveríamos ser como nação. Já na década Brasil. O país perdeu o rumo no qual a sua própria
de 1930 temos a publicação de Casa Grande & Senzala de identidade e existência está em causa frente aos vários
Gilberto Freyre que, à luz dos muitos estudos ataques que vem sofrendo nas últimas décadas.
antropológicos e sociológicos da época, reinventa a forma Praticamente não há entendimento entre as divergências
como devemos olhar para o Brasil, afirmando a que existem.
importância das culturas indígena e africana na formação Nem a galinha entende o ovo, como já disse Clarisse
social do Brasil, calcado na mistura de etnias e na Lispector. O ovo, primeira moradia de muitos animais,
plasticidade social. fonte de muitas proteínas e eterno rival da galinha sobre
Na mesma década Sérgio Buarque de Holanda inicia a sua causa e consequência. O ovo tem muito mais variabilidade
trajetória intelectual buscando pensar o Brasil moderno a do que a galinha, ainda que a galinha seja o primeiro meio
partir do legado transmitido durante a colonização de transporte do ovo. São rivais de peso. Que isso nos
portuguesa. Mesmo em tom crítico, a sua investigação ajude a pensar sobre quem veio primeiro, a economia ou a
projeta novos olhares para o enfrentamento do que viria a sociedade? Talvez nesta última rivalidade não demoremos
ser o Brasil urbano e moderno, mas ainda atrelado às muito tempo para achar a resposta.
posturas que remetem para a vida colonial.
Caio Padro Júnior e Celso Furtado foram dois pensadores
do desenvolvimento brasileiro, cada um ao seu modo, e Maurício Dias é graduado e mestre
Ignácio Rangel buscou integrar os ciclos longos do em História pela UERJ e PUC-RJ e
desenvolvimento capitalista na particularidade brasileira, possui formação em Edição e
com textos inovadores sobre a inflação e a esfera Montagem Cinematográfica pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
produtiva do país. E podemos também falar em Darcy Atualmente faz doutorado em
Ribeiro, com a sua proposta de pensar a sociedade Economia Política pelas
brasileira como um povo novo, que destoa dos demais Universidades de Lisboa, Coimbra e
pelo caráter miscigenado e pela diversidade. Instituto Universitário de Lisboa,
pesquisando a interação do
pensamento econômico com as
demais áreas das Ciências Sociais.
9 Scena Crítica | Abril-junho 2023
A ARIANO SUASSUNA
Gustavo Corção, 1971
T
ivemos quarta-feira passada na Permanência, numa Por essa e outras, receio muito pela mantença do regime
sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais re- (refiro-me à vetusta e quase centenária República) se
pleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o aparecerem por aí muitos Suassunas, porque na verdade
Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia verdadeira somos todos nós, e não só os incorrigíveis
apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou franceses que decapitaram sua história, temos nostalgia
um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro de um reinado. Lembro-me de um bom jardineiro
do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de português, talassa, ultramontano, que plantou flores no
seu último grande livro, “A Pedra do Reino’ (Ed. José jardim de minha infância — flores que ainda perfumam
Olimpio, 1971), Ariano Suassuna levantou-se, digo melhor, meus sonhos — e que explicava desolado à minha mãe,
desengoçou-se e começou por dizer que era canhestro e depois do assassinato do Rei Dom Carlos de Portugal, que
gago, coisas que aliás logo se viram: mas a República era o começo do fim do
creio que ao cabo de poucos minutos todas mundo. E quando nós o cercávamos para
as pessoas presentes estavam a sonhar com exigir dele uma explicação mais clara, o
um mundo em que a humanidade inteira, e bom súdito perene de Dom Sebastião e de
principalmente os escritores, fossem Dom Carlos, com gestos largos e simples,
canhestros e gagos como Ariano Suassuna; que devem ser o dos cantores que Homero
e creio também que no mesmo breve compendiou, meu bom português
tempo Suassuna sentiu que já ganhara o respondia com olhar iluminado:
coração de toda a Permanência — e que a — Ai! os meninos não sabem o que é a
nota principal daquela grande família que o gente ver o Rei passar...
ouvia com tanta atenção e alegria é a E o gesto reticente era a comitiva de um
amizade, amizade começada na terra e Rei que passa diante de todas as lendas do
desabrochada no céu —, e amizade na qual mundo.
já se acha solidamente inscrito o rapsodo “Ver o Rei passar”. Certo carnaval antigo, há
que nos trouxe ontem a notícia da cem ou duzentos anos dos mil que já
maravilhosa poesia popular que são as vivi,andava em moda uma canção e
flores e os cardos de nosso amado e sofrido lembra-me bem o impacto violento que
nordeste. recebi numa esquina quando vi caído no
Ariano Suassuna, numa introdução chão um papel com o nome da canção em
improvisada e desordenada, falou de si grossas letras: “Que Rei sou eu?”. Deus nos
mesmo com graça e humildade, como só fez Rei, Homem-Rei, de todas as coisas do
sabem fazer as almas dotadas e sofridas mundo inanimado, do mundo de plantas
que têm o vivo sentimento do trágico e do odoríferas e animais que voam, correm ou
ridículo da vida. Falou-nos de sua composi- se arrastam. Mas nós, ai de nós, aonde dei-
ção, de sua heteronomia, entre cujos elementos xamos esqu nossa coroa? Quisemos ser Rei do Rei, e aqui
predominam o palhaço e o rei que todos somos. E aqui, estamos nos carnavais da vida, metade-rei metade-
para responder ao susto de uma boa senhora que me palhaço, a indagarmos aflitos: “Que Rei sou eu?”.
telefonara espantada de meu aviso no jornal, onde ***
anunciava a conferência de “um comunista”, Ariano Deixemos o regime em suas bases e agora vamos ao
Suassuna explicou que era monarquista e que suspeitava Romanceiro que Suassuna nos trouxe. Confesso que até
que metade da sala o fosse sem saber, ou sem ousar ontem, talvez por ter nascido no Rocha, nesta metrópole
confessar. Acrescentou seu horror ao marxismo que o bom que há muitos séculos, no tempo em que os animais não
povo do nordeste energicamente repeliu, como o repeliu falavam, foi uma cidade maravilhosa, ou por alguma outra
também o bom povo camponês da Sibéria. E a razão com que não atino, nunca dediquei em toda minha
demonstração, como se costuma dizer, estava na cara do vida a devida atenção — agora friso o termo devida — a esta
homem menos pedante que em toda minha longa vida já casta de cultura, de ascensão humana, de conquista, que
encontrei. Nós sabemos que há duas espécies da mesma se esconde, como o Romanceiro do Nordeste, sob o
hedionda deformação do homem, manifestada no disfarce da pequenez à espera de um Homero que a
pedantismo: há o pseudo-científico e desidratado transforme em espanto dos milênios. Não quero assustar a
pedantismo dos marxistas, e o floreado pedantismo tão modéstia de Suassuna apontando-o desde já como o
bem representado pelo professor Cândido Mendes de Homero das terras nordestinas que não são mais ásperas
Almeida de que já tratamos na quinta-feira. Não logrando do que as daquela península espantosa que abrigou o
a síntese essencial do cômico e rei, esta casta de retórico Povo Eleito da Razão, como diz Maritain: direi que ele é o
só consegue realizar o hemisfério palhaço de nossa mísera João Batista de tal Homero, fazendo votos, entretanto, que
condição. Suassuna está nos antípodas dessa raça de sua cabeça não seja pedida por nenhuma Salomé.
anões que em vão se esticam, ele é alto de pernas e de Eu disse que o Romanceiro se esconde na pequenez. Suas-
coração.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 10
SHERLOCK HOLMES
O Detetive Consultor de Sir Arthur Doyle
N
ão pode haver muitos leitores que nunca tenham Mesmo na segunda guerra mundial, o caráter de Holmes,
ouvido falar de Sherlock Holmes. Na verdade, a- cerca de meio século depois, foi usado para adaptar
prendi português – ou pelo menos muito vocabulá- histórias bem conhecidas para rastrear e denunciar nazis e
rio – ao ler as suas façanhas nas 'Obras Completas de Sher- frustrar conspirações contra os aliados por espiões. Há que
lock Holmes' compradas quando estava de férias em dizer que estas pseudo-histórias foram bastante terríveis e
Portugal há cerca de trinta anos. Como já conhecia as até cómicas na sua produção – especialmente as
histórias em inglês, não precisava de um dicionário a cada produzidas nos EUA e no Canadá. Pode-se ter horas de
cinco minutos para as descodificar. 'O Vale do Terror', 'A diversão contando os erros e solecismos que só países não
Caixa Macabra', 'O Homem de Lábios Torcidos', 'Um ingleses poderiam produzir tão involuntariamente.
Escândalo na Boêmia' todos serviram o seu propósito, mas, Com o advento do rádio e da televisão, uma série de
mais do que isso, deixou-me com uma apreciação histórias foram adaptadas, primeiro amplamente no rádio,
duradoura destas histórias cativantes e a estranha particularmente no Reino Unido e nos EUA. Mas na década
colaboração de Holmes, o detetive consultor e seu de 1980, a Granada TV, no norte da Inglaterra, produziu os
assistente Dr. John Watson, criados por Sir Arthur Conan filmes definitivos de Sherlock Holmes com Jeremy Brett no
Doyle. papel principal. Antes disso, muitos atores tinham tentado
A adaptação destas histórias (escritas entre 1887 e 1930) os papéis, mas Brett destacou-se e foi idealmente
espalhou-se rapidamente por todo o mundo, traduzindo- adequado em temperamento e caráter para o papel.
se em quase todas as línguas – imagina-se com graus A publicação das histórias originais na Revista The Strand
vários de sucesso. Sei que os primeiros filmes na Rússia, entre 1891 e 1930 foi tão popular, que CononDoyle, o seu
por exemplo, assumiram prontamente os personagens, autor, se cansou de todo o negócio e procurou eliminar
talvez atraídos pela atitude muitas vezes bizarra e Holmes com uma luta final nas Cataratas do Reichenbach
inconformista de Holmes perante a autoridade e ('A Solução Final') Portuguese (Portugal) translation. com
confirmando as características mundiais dos ingleses uma última luta terrível até à morte com o arqui-inimigo
como excêntricos incorrigíveis, percorrendo Professor Moriarty – até então mencionado apenas como o
perpetuamente uma Londres nebulosa e sujeitos a todas 'cérebro' por trás de todos os crimes de Londres, mas
as improváveis sequências de causa e efeito imagináveis. A nunca visto até aquele episódio. Em teoria, ambos
vida no século XIX nunca foi assim, mesmo em Londres. pareciam morrer na luta, mas tal era o clamor público (The
Strand era um periódico, o que fazia com que os leitores
aguardassem ansiosamente a próxima aventura) que
Conan Doyle foi obrigado a ressuscitar o herói, para seu
aborrecimento. Ele reapareceu - depois de alguns anos
viajando com vários disfarces, passando um tempo com o
Dalai Llama, escalando montanhas e estudando línguas
estrangeiras.
Por fim, disfarçado de livreiro de rua, Holmes visita o Dr.
Watson na sua clínica em Londres e, com um floreio, retira
o seu disfarce e aparece como o próprio Holmes, ao que o
pobre Dr. Watson, persuadido da sua morte, desmaia com
choque e tem de ser reanimado. Isto permitiu que a série
continuasse, o que aconteceu até à década de 1930.
Talvez o sucesso destes contos seja o fato de que o núcleo
sólido do enredo é curto e claro e fácil de se adaptar ao
teatro e, em particular, para as telas. As adaptações de
Granada que mencionei acima, têm uma hora de duração
cada. As histórias mais longas, como o famoso "Cão dos
Baskervilles" preenchem facilmente o tempo de um filme,
mas histórias mais curtas precisam de um pequeno
acolchoamento. A caracterização dos dois protagonistas é
boa, mas as partes do perpetuamente confuso Detetive
Lestrade da Polícia Metropolitana e outros escritórios
menores em outros lugares, precisam de um pouco de
amplificação. O tema é geralmente o mesmo: Holmes vê
através dos detalhes de pistas invisíveis ou sem
importância para os outros e reconstrói eventos que
resolvem o problema e Portuguese (Portugal) translation.
todos os fios são finalmente bem reunidos. O 'Ritual de
Musgrove' tem uma riqueza de personagens: o mordomo
apaixonado, que interpreta um documento de família
antigo, e bastante mais inteligente do que o seu mestre,
usando trigonometria e inteligência nativa, localiza e
encontra os restos da Coroa do decapitado Carlos I da
Guerra Civil Inglesa que estavam escondidos na casa an-
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 13
lismo ibérico. uma de minhas referências permanentes, cursos ministrados, seja pela atuação nas
inclusive do ponto de vista pessoal. Padre redes sociais. Assim, ao longo dos últimos
4. A quem você atribuiria Ávila fundou o segundo departamento de anos, consegui agregar de modo orgânico
historicamente os direitos do sociologia da história do Brasil, na PUC um grupo de pessoas entusiastas do tema.
pensamento social cristão no Brasil? Rio; foi membro do Pontifício Conselho Muitas vezes, sobretudo na proximidade
Justiça e Paz, do Vaticano; atuou como das eleições, essas pessoas me cobravam
Creio que tivemos várias correntes assessor especial da CNBB durante o saber quando os ideais que eu
políticas influenciadas pela Doutrina regime militar, influindo muito na disseminava iriam para a prática, como
Social da Igreja. O trabalhismo brasileiro percepção social dos bispos; foi eleito para eles ingressariam na política de fato. No
associado ao Vargas, por exemplo, a Academia Brasileira de Letras. Enfim, ele entanto, nunca me entusiasmei pela ideia
certamente possui essa influência. O consagrou a sua vida a pensar a doutrina de um projeto pessoal.
Alberto Pasqualini, principal teórico do social cristã e sua aplicação na realidade Foi quando aconteceu algo mais ou menos
trabalhismo brasileiro, era fortemente brasileira. casual, mas bastante determinante. Em
influenciado pela DSI. Citava os A propósito, a Comunhão Popular também 2021, eu estava escrevendo um artigo para
documentos do Magistério em diversos bebe muito dos grandes intérpretes do uma revista acadêmica espanhola, sobre a
escritos. Também o presidente João Brasil. Um movimento político de relação entre a Doutrina Social da Igreja e
Goulart, em seu famoso discurso da inspiração cristã feito para o nosso país o cooperativismo. Foi quando soube da
Central do Brasil, cita o Papa João XXIII. E necessita de um certo viés nacionalista, no existência do Insieme, o partido político
a própria legislação trabalhista de Vargas, sentido de que a DSI não é uma receita italiano liderado pelo Stefano Zamagni, do
consagrada na CLT, tem uma forte fechada, mas um conjunto de princípios a qual falei algumas perguntas atrás. Ao
inspiração na doutrina social cristã. Alceu saber do partido, de modo muito
Amoroso Lima e outros intelectuais do espontâneo, acessei meu Facebook e
Centro Dom Vital influenciaram muito na escrevi uma postagem, dizendo como era
sua redação. constrangedor ver na Itália um homem
Ainda assim, acredito que o movimento octogenário usando do pouco tempo que
brasileiro mais fiel aos anseios sociais da lhe resta para empreender um projeto
doutrina católica foi o antigo Partido político de inspiração cristã, enquanto no
Democrata Cristão (1945-1965). O fundador Brasil ninguém toma esta empreitada para
do PDC, que era um pequeno partido, foi o si.
professor paulistano Cesarino Júnior, um Pois o post teve uma repercussão
negro, primeiro catedrático do direito do inesperada! Rapidamente, dezenas de
trabalho na história do Brasil. Mas a pessoas se apresentaram, dizendo que
fundação também está ligada, como não queriam sim levar adiante um movimento
poderia deixar de ser, ao Centro Dom Vital, como aquele em nosso país. Parte dessas
na pessoa do Dr. Alceu, ainda que ele pessoas, obviamente, depois se desligou
nunca tenha se filiado. da iniciativa, mas outros também
A principal liderança democrata-cristã na chegaram com o tempo e o processo em
história nacional foi o André Franco si já havia sido iniciado. Em janeiro de
Montoro, presidente do PDC no começo 2022, ou seja, cerca de 2 meses e meio
dos anos 60, quando o partido alcançou após a repercussão do texto nas redes
sua máxima expansão, mas foi forçado ao sociais, a Comunhão Popular já era uma
fechamento, como todos os outros, por realidade de fato. Com base em muitas
decreto da ditadura militar. O Montoro se reuniões e intensos debates internos,
tornou, inclusive, uma grande figura da tínhamos enfim um manifesto fundador,
resistência ao regime instaurado em 1964. um nome, um logotipo, um site, uma
Nos anos 80, foi eleito governador do estrutura organizativa. Em março do ano
estado de São Paulo e se tornou o grande passado, começamos nossas ações nas
promotor do movimento Diretas já. Com o redes sociais. No fim do mesmo ano,
fim da ditadura e a redemocratização, já obtivemos mais de 1200 votos, lançando
no fim da vida, Montoro foi um dos ser aplicado de acordo com as realidades dois candidatos – um a deputado federal
membros-fundadores do PSDB, levando locais. Se nos detivermos apenas nos no Rio e um a deputado estadual no
para ele alguns outros democratas-cristãos princípios objetivos da DSI, acabamos por Paraná.
das antigas, como o grande político e cair em uma visão demasiadamente Sobre o momento histórico em que
pensador mineiro Edgar de Godói da formalista que ignora nossas surgimos, penso que o ambiente era o
Mata-Machado especificidades. Especialmente no caso de mais propício. Havia – e há, ainda hoje –
Eu resumiria da seguinte maneira: o uma nação como a nossa, em posição de uma demanda reprimida dos cristãos
Trabalhismo foi o movimento político fragilidade no cenário internacional, o brasileiros por darem uma expressão mais
brasileiro que melhor expressou a elemento nacionalista se torna urgente. consequente à sua fé, sem mutilações de
Doutrina Social da Igreja em seus aspectos Em nosso mergulho nas raízes do Brasil, direita ou de esquerda. Além do mais, o
socioeconômicos; já o antigo PDC foi o identificamos em alguns autores chaves: ano de 2022, por se de eleição
que melhor encarnou a DSI em sua Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e, sobretudo, presidencial, favoreceu bastante nosso
totalidade, privilegiando inclusive o que Ariano Suassuna, que é inclusive nosso crescimento.
hoje chamamos de pauta de costumes. patrono oficial. Apesar de não ter sido um Sobre o ambiente da Igreja, penso que ele
sociólogo de ofício, o autor do “Auto da é, ao mesmo tempo, receptivo e
5. Quais as influências teóricas da Compadecida” soube traduzir como desconfiado em relação a uma proposta
Comunhão Popular, especialmente no poucos a essência da alma brasileira. como a nossa. Receptivo porque há, como
disse, uma demanda reprimida, inclusive
pensamento brasileiro?
6. Quando se iniciou o movimento? Qual do clero. Na medida em que une a defesa
a pertinência dele no momento dos valores cristãos como a luta por
Temos algumas influências determinantes.
histórico brasileiro e no ambiente reformas sociais, a CP responde a essa
Em primeiro lugar e antes de tudo, o
eclesial? demanda. Por outro lado, a sociedade
padre jesuíta Fernando Bastos de Ávila,
brasileira atual está muito polarizada, e a
que eu julgo sinceramente o maior
Igreja, infelizmente, não é uma exceção.
especialista em DSI da história brasileira. Eu, pessoalmente, já tenho um trabalho de
Como busca superar as alternativas
Ele que foi minha porta de entrada para a divulgação da DSI há muitos anos, seja em
existentes, que consideramos falhas, a CP
DSI, quando tinha 15 anos de idade, e é artigos publicados em jornais, seja em
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 16
Dossiê
que formalmente, um compromisso
internacional contra a agenda do aborto.
Em sentido positivo, creio que um bom
exemplar foi o fortalecimento dos órgãos
que tratam da política indígena, reunidos
agora até mesmo sob a estrutura de um
ministério.
O grande problema, porém, é que nas
decisões mais substanciais, o governo se
mostra hesitante, titubeante, sem
convicção. Há muito discurso e pouco ato.
Durante a campanha, por exemplo, Lula
acertadamente criticou o modo como se
fez a privatização da Eletrobrás. Uma vez
empossado, contudo, não tomou
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 17
CADERNO
CINEMA
Mateus. Surpreende ainda mais no prólogo da película a
dedicatória da obra ao Papa João XXIII.
DE É certo que o Concílio institucionalizou uma prática já
comum nos meios de ação do laicato, que organizavam
com periodicidade grupos de análise fílmica que apesar
de em seus primórdios padecerem dos mesmos objetivos
de resguardar a moral e contribuir com a censura, com o
passar dos anos transferiram a finalidade para a primazia
da crítica e da análise artística cada vez mais apurada.
Do Coliseu ao cinematógrafo Como em outros momentos da história, o clero italiano
dos anos 1960, especialmente os jesuítas, pareciam muito
A
o lançamento de sua adaptação do Evangelho encontrou o
o referir à relação da Igreja Católica com o cinema patrocínio do ultraconservador Cardeal Siri de Gênova,
moderno, imediatamente se recordará a encíclica de como relata Luis Antonio Vadico:
1936, Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, que marca a pri-
Quando pediu apoio financeiro do grupo ‘Pro civitate
meira menção do magistério eclesiástico à questão.
Christiana’, seu diretor procurou o conselho do poderoso e
Com Vigilanti Cura, o primeiro passo estabelecido nessa conservador arcebispo de Gênova, Giussepe Siri que,
relação não parecia cobrir a questão do cinema na inteireza surpreendentemente, encorajou-o a promover o projeto de
da sua complexidade; na verdade, se estava levando em conta Pasolini (Vadico, 2016).
primordialmente aspectos ligados ao conteúdo moral das
Talvez não seja tão difícil intuir o porquê de uma ação
obras e à legitimação dos órgão encarregados da censura e
como essa. Seria reducionista pensar que o clero,
classificação dos filmes, especialmente centrado no cinema
especialmente o alto clero, que contava com uma
norte-americano.
privilegiada formação intelectual fosse se fechar a uma
Já com o Concílio Vaticano II a perspectiva irá se transformar e
evidente obra-prima como a de Pasolini por mero capricho
tornar mais cauta ao cinema em uma concepção mais positiva
ideológico. Ainda que neste período não se pudesse dar o
e atenta ao fenômeno na sua totalidade. Será no Decreto Inter
devido reconhecimento oficial e público por parte das
Mirifica sobre os meios de comunicação social de novembro
altas esferas eclesiásticas, este não tardaria por vir.
de 1963 que chegaremos a uma sentença e a um apelo de No mesmo período em que estava ocorrendo toda esta
atenção ao fenômeno: efervescência nos ambientes culturais e também da
Como não convém absolutamente aos filhos da Igreja
produção de cinema, estava sendo gerado no seio dos
suportar insensivelmente que a doutrina da salvação seja
jesuítas aquele que se tornaria futuramente o crítico mais
obstruída e impedida por dificuldades técnicas ou por
gastos, certamente volumosos, que são próprios destes longínquo do caderno de cinema do L’Osservatore
meios, este sagrado Concílio chama a atenção para a Romano, o padre Virgilio Fantuzzi, S.J. que, futuramente,
obrigação de sustentar e auxiliar os diários católicos, as seria responsável por conceder o reconhecimento e a
revistas e iniciativas cinematográficas, as estações e cidadania a Pasolini e a outros autores na mais alta
transmissões radiofônicas e televisivas, cujo fim principal é redação da cristandade.
divulgar e defender a verdade, e prover à formação cristã
Fantuzzi aos 27 anos, ainda seminarista, teve seu primeiro
da sociedade humana (Inter Mirfica, n. 17).
encontro com Pasolini. Em entrevistas o jesuíta recordava
E ainda mais adiante: que desde a primeira ocasião em que assistiu O Evangelho
Todavia, como a eficácia do apostolado em toda a nação segundo Mateus, notava a ocorrência de uma contradição:
requer unidade de propósitos e de esforços, este sagrado
Concílio estabelece e manda que em
toda a parte se constituam e se apoiem,
por todos os meios, secretariados
nacionais para os problemas da
imprensa, do cinema, da .rádio e da
televisão. A missão destes secretariados
será de velar por que a consciência dos
fiéis se forme rectamente sobre o uso
destes meios e estimular e organizar
tudo o que os católicos realizem neste
campo (Inter Mirifica 21).
Seria interessante procurar compreender a
evolução da relação eclesial em seu
modus pós-conciliar na mesma esteira em
que se avançou na compreensão dos
diversos temas de relevância social
durante este período. Parece haver uma
saída de um relativo pessimismo e até de
uma pré indisposição para um otimismo
receptivo, e por vezes ingênuo.
A Crítica Católica
https://www.avvenire.it/agora/pagine/addio-a-padre-fantuzzi-il-gesuita-amico-di-fellini-e-pasolini
Igreja/Cinema e também no contexto da própria história
da crítica cinematográfica no Brasil o caderno de cinema
da revista A Ordem do Centro Dom Vital que por anos
contou com a colaboração do acadêmico Otávio de Farias,
o primeiro a aventurar-se no Brasil em uma história e
teoria do cinema.
O caderno de cinema da revista A Ordem antecipou em
algumas décadas um interesse que se tonaria frequente
nos cineclubes da Ação Católica apenas nos anos 1940 e
1950. A capacidade firme de análise de Otávio de Farias fez
com que conseguisse analisar de forma contundente os
grandes movimentos de um cinema ainda embrionário.
Mas isto já é assunto para uma outra edição.
Jacques Maritain
e a influência do humanismo na filosofia política brasileira
na maritainiana pelo Brasil. No Brasil, Jacques Maritain (1882-1973) foi mal lido e pouco
Em Minas Gerais, outro político profundamente marcado compreendido. Estudiosos do pensamento luso-brasileiro
chamaram atenção para o fato de sua influência entre nós
pela filosofia política de Maritain é Edgar Godoi da Mata-
ter sido predominantemente religiosa e política, muito
Machado. Nascido em Diamantina, no ano 1913, percorreu mais que filosófica. [...] Seus adeptos do Rio de Janeiro
uma notória carreira na política, na filosofia, no jornalismo polemizaram longamente com seus detratores,
e no direito. Dentro da política, atuou como secretário de representantes do tradicionalismo do Recife. Nos anos
estado, deputado estadual, deputado federal e senador. sessenta, [...] Maritain foi substituído por Mounier no papel
Seu testemunho exemplar na política influenciou uma de guia religioso e político da intelectualidade brasileira. A
publicação em 1967 do livro O camponês do Garona,
geração de brasileiros. Mata-Machado foi duramente
erroneamente interpretado como uma “guinada à direita”
perseguido durante a ditadura militar, tendo inclusive o
que negava a obra anterior de Maritain, deu pretexto a que
seu mandato cassado e perdido os seus direitos políticos fosse esquecido por quase todos os seus antigos
por 10 anos, devido à incansável luta que fez contra o seguidores. Esta interpretação, que pretende opor O
autoritarismo opressor do povo brasileiro. camponês do Garona ao Humanismo Integral, é sinal claro
Mata-Machado está entre os maiores discípulos de de que a obra de Maritain foi lida muito mais do ponto de
Jacques Maritain no Brasil, com quem trocou algumas vista religioso e político que filosófico. Indica também que
correspondências pessoais. A formação intelectual de a obra do filósofo não foi lida no seu conjunto.
Edgar é de raiz tomista. Sendo Maritain um dos maiores No entanto, apesar das incompreensões, enfatiza-se o
expoentes do neotomismo do século XX, foi nele que o testemunho do professor universitário brasileiro Antonio
mineiro encontrou os princípios democrático-cristãos que de Rezende Silva:
se tornaram o fundamento de sua atuação política. Edgar
dá o seu testemunho pessoal quanto à importância de Maritain fornecia o instrumento teórico sob medida que
permitia fazer a costura com linha firme de cristianismo e
Jacques Maritain para o Brasil: “para minha geração,
democracia. Quem dos discípulos de Maritain não teve o
Maritain foi não apenas um mestre de doutrina, mas um coração incendiado ao ler as páginas memoráveis em que o
exemplo humano. Ele deu testemunho da autenticidade filósofo demonstra ser a democracia de essência
de sua fé e do seu amor em cada um dos menores e dos evangélica? (POZZOLI; LIMA, 2012, p. 219).
maiores movimentos de nossa época” (POZZOLI; LIMA,
Assim sendo, verifica-se a necessidade de se conhecer,
2012, p. 203).
aprofundar e divulgar a filosofia de Jacques Maritain no
Além destas personalidades, muitos outros brasileiros
Brasil, visto a sua grande contribuição à nossa nação. Isto
foram profundamente influenciados, direta ou
consiste numa proposta mais do que justa.
indiretamente, pela filosofia política de Jacques Maritain.
Citaremos aqui alguns deles: Sobral Pinto, Hamílton
Nogueira, San Tiago Dantas, Milton Campos, Gustavo
Corção, Pedro Aleixo, Magalhães Pinto, João Camilo,
Hargreaves, dentre outros.
Dessa forma, compreendendo a grande repercussão da
filosofia política de Maritain no contexto político brasileiro, Irmão Helder de Maria é um jovem
uma pergunta que não se cala é porque sua doutrina é tão religioso da Comunidade dos
esquecida e pouco falada no Brasil ainda hoje? Pozzebon Irmãozinhos da Divina e Trina
(1996, p. 8-9) diz que: Ternura (Guarapuava, PR). Formou-
se bacharel em Filosofia pela
Claretiano em 2020 e atualmente
cursa bacharelado em Teologia pela
mesma instituição.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 22
Livro aberto
O TESOURO ESCONDIDO
José Tolentino Mendonça
N
a obra O Tesouro escondido: para uma busca inte- mente deveriam fazer parte
rior, do cardeal, poeta e teólogo português José de todo e qualquer
Tolentino Mendonça, encontramos um convite para empreendimento de
entendermos que o longo caminho da descoberta autoconhecimento do
humana sobre si mesmo é também uma jornada de cristão.
conexão e religação à essência do próprio Cristo. Em seus Em um primeiro momento
inúmeros títulos publicados, o cardeal trabalha temas nos deparamos sobre a
caros ao homem moderno sob uma perspectiva sensível, questão primordial para o
traduzindo com maestria tópicos filosóficos que tocam em entendimento dessa obra:
profundidade o coração do cristão. Em suas explanações sabemos, de fato, do que
na obra aqui abordada, Tolentino inicia seu texto tocando somos feitos e o que é esse
justamente naquilo que, em geral, causa incômodo a interior que tanto se busca? Tal questionamento, que
muitos: nós mesmos. parece banal à primeira vista, descobre-se fundamental
Na conjuntura social, política, econômica e global da para que saibamos o que estamos procurando antes do
atualidade não é incomum encontrarmos início de qualquer jornada. O peregrino, que Tolentino
questionamentos diversos acerca de Deus e de nós abordará mais ao final de sua obra, não poderá iniciar
mesmos sobre nossa fé. Certamente tal feito não é, de caminho algum sem antes saber o que se procura e o
forma alguma, surpresa a Nosso Senhor; mas não deixa de objetivo de tal empreitada.
ser algo que necessita de nossa atenção para além da Os temas oração e conversão são os primeiros a surgir no
consciência de que isto existe. No momento presente texto. Tal escolha não é arbitrária, uma vez que ambos são
muito se questiona e muito se busca pelo interior. Há um pilares importantes para o desenvolvimento de qualquer
sem-número de pessoas ao redor do globo dispostas a cristão, seja ele nascido ou converso. É na oração que se
tentar auxiliar o outro na busca do caminho inverso, encontra o silêncio, aquele que permite que não
introspectivo e silencioso da quietude do ser que habita a venhamos a nos distrair com o externo e nos permite
matéria corpórea humana. No entanto, quanto dessa escutar os sons de dentro.
busca interior para o cristão está, de fato, alinhado a Tolentino expõe que é o silêncio que proporciona tais
Cristo? questionamentos com maior clareza e lucidez, pois que é
Devemos recordar diariamente que carregamos conosco o exercício do tentar descolar-se da realidade material e
uma fé que leva o nome de seu mestre, Jesus Cristo. terrena e buscar no nosso relacionamento com Cristo,
Parece óbvio nos atentarmos no ordinário sobre a A busca por ser inteiro se diverge na lógica material e
necessidade de toda e qualquer busca humana estar espiritual, explica Tolentino. No plano material existe,
pautada naquilo dispensado a nós através da Graça. quase sempre, uma terceirização do trabalho de formar-se
Porém, é a partir do entendimento de que há hoje uma único, inteiro. Buscarmos nos outros recursos para que
busca incessante pelo descobrimento da essência e esse projeto da construção de si mesmo seja mais fácil,
daquilo que se esconde em nosso íntimo que devemos mais palatável e menos dolorido. Não seria, portanto, esse
entender se esta jornada empreende-se na simples alegria o caminho totalmente inverso daquele feito por Cristo?
da conquista pessoal e do ego ou se de fato nos promove Nas três décadas vividas com os homens, em momento
um crescer interno também para com nossa fé. algum Jesus se colocou como aquele que buscava o fácil,
É neste sentido que encontramos o trabalho de José muito menos nos passou a ideia de que a caminhada no
Tolentino Mendonça que, com sensibilidade ímpar, se tempo da Graça seria sempre um grande processo
encarrega de trazer questionamentos e reflexões sobre o prazeroso consigo mesmo. Foi ele mesmo o tentado, o
interior do homem à luz da Graça e do Cristo, que natural- flagelado, o traído; como poderíamos nós entender nossa
matéria humana fora do aspecto da adversidade?
João Porfírio/Observador
Ágοrα
Praça de divulgação literária
Amor conjugado
Eu amava,
La mélancolie
mas meu pretérito era imperfeito.
Você não me amou.
Sinto chegando perto da minha orelha seus
lábios suaves. E um sussurro qualquer lembra
Se nossos tempos fossem os mesmos,
um acontecimento. Sorrio largo, rostos se
nos amaríamos.
acariciando em intensa conexão. Memórias
Nosso futuro sairia do pretérito
de dias bons, coração em chamas. Flash de
e caminharia rumo ao futuro do presente.
momentos ruins, coração no chão. Viramos e
nos beijamos entre um turbilhão de
Mas imaginar ter te amado foi só ilusão.
pensamentos. Pronto!
Não fiquei só,
Do abraço agradável e pele macia, ao beijo
e nem de ti ausente,
de traição e início de uma passageira dor.
pois é impossível ser feliz com o pronome errado. antes que o pavio do afeto se apague por completo
Quando ela vem me pega desprevenida.
antes que o amor derreta como sorvete no verão
Nunca bate a porta ou manda um recado,
Tu amas a ti mesmo mais que a alguém. do rio de janeiro
apenas aparece e é sempre a mesma coisa.
Eu amarei a mim e a quem quiser conjugar me diga
Tão sutil que se instala sem ser percebida,
No tempo e no modo certo, se te amar foi um erro
mas é notada em meio ao alvoroço. Os sinais,
o verbo amar.
talvez negligenciados, ecoam nos ouvidos de
questiono sempre ao universo, à vida, se nosso
quem só deseja um pouco de paz.
encontro foi planejado. se sim, quem planejou que
Ela me prometeu memórias... O passado.
eu sofresse tanto pela sua partida? enfrentar as
Prometeu que seria como antes. De olhos
facetas do abandono foi amargo, ainda é, e
fechados pensei ter voltado lá, naqueles dias
provavelmente nunca vai deixar de ser. esses dias,
felizes. Mas se tornou apenas um enfadonho e
num domingo preguiçoso e feliz, senti saudades
pesado abraço que nunca acaba. Eu queria
suas. visitei o lugar em que te deixei há muito
ver o mundo, mas voltei apenas para a minha
tempo, que quase não lembrava mais onde era, e
Fases própria desgraça. Ela me prometeu a vida,
constatei o que não tinha coragem de admitir: não
mas me jogou direto na sarjeta da
te amo mais. e imaginei que doeria admitir isso,
Como lua minguei por ti. melancolia.
mas não dói. não é mais incômodo. a dor que você
A ausência do seu amor Mãos escorrendo sobre o cabelo. Lágrimas
me causou me anestesiou de tal forma que decidi
arrancou-me um pedaço. descendo pelos olhos. Uma enorme cobrança.
não mais te amar. talvez meu coração tenha se
Calma, respira - são as únicas coisas que
esquecido disso por uma fração de segundo, por
Como lua enchi de mim. consigo falar depois que ela já fez o seu show.
isso a saudade. eu não ando bem de memória.
Reconstruí caco por caco As perguntas sobre como aquilo foi acontecer
o pavio do afeto se apagou. o amor derreteu. nasci
a única parte que importava. se tornaram rotina. E a impotência de quem
com o desejo intríseco de te amar
sempre acha que já venceu, também. O ciclo
incondicionalmente até o fim dos meus dias, mas
Como lua vicioso sem fim.
não pude realizá-lo. me perguntei por muito tempo
cresci sem ti. As palavras de amor logo viram dor. E dois
o que faria com todo o amor que construí por você
E descobri que sua falta não mais me falta. segundos de brecha no pensamento abrem
ao longo dos anos, e o que fiz foi o seguinte: nada.
aquela porta que nunca foi batida. O barulho
ele se desconstruiu assim como foi construído e deu
Como lua, do salto a anunciou, mas só podia ficar se
lugar à algo infinitamente melhor.
e como gente, fosse bem-vinda. Apelou então para as
renasci no que me importa. memórias-meu ponto fraco-, para que assim
vivi o luto e reconstruí meu mundo sem você
O amor não morre em um, fosse entendido que ela havia chegado. Não
te amar não foi um erro.
renasce em diferentes fases. descansa até encontrar e poucos minutos são
mas deixar de te amar me libertou
suficientes para ela.
agora posso
Bábara Bedôr Novo é moradora do bairro de
e consigo
Irajá, subúrbio carioca. Bacharel em Prazer, diz ela, Melancolia.
te esquecer
Biomedicina pela UNIRIO, é autora de Ecos do
interior (Multifoco, 2020), coletânea de poemas Tainara de Vasconcellos é historiadora e
que tomaram forma durante o seu Haloma Reis, nascida e criada no Rio de fotógrafa, nascida no Rio de Janeiro. Entre fotos
deslocamento no transporte público entre a Janeiro, católica, tem no sangue o amor pela e palavras, usa a arte para revelar ao mundo um
casa e a faculdade. poesia, livros, gatos, café e arco e flecha. pouco de si.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 24
O antropoceno
na obra Homo Deus
O
antropoceno constitui a era do protagonismo hu- mos humanos seriam responsáveis por proporcionar
mano na terra. Conforme Yuval Harari sugere em sensações, sentimentos e pensamentos. No mundo animal,
sua obra Homo deus — uma breve história do vemos por exemplo a identificação de uma presa que se
amanhã, o homo sapiens foi capaz de alterar a ecologia aproxima, a observância de um parceiro sexual e o avanço
global, modificando assim suas relações com o ambiente. na obtenção do alimento são estratégias importantes para
“O homo sapiens reescreveu as regras do jogo”. A partir a sobrevivência das espécies que são organizadas por
dessa máxima, o escritor enfatiza o caráter reformador que algoritmos gerados pela bioquímica. Harari tem uma
o homem, sendo o expoente da gênese orgânica, provocou cosmovisão exageradamente cientificista e reducionista —
no planeta durante todo o processo evolutivo. o que evidencia a decadência espiritual de sua era. Essa
Em termos históricos, o homem altera a natureza desde decadência é um sintoma patológico de sua época ao
tempos remotos datados da Idade da Pedra. Desde o tratar com distância a espiritualidade individual.
surgimento humano na costa da África e sua posterior A lógica das relações agrícolas usa sempre o animal como
ocupação nômade nos demais continentes, o homem instrumento disponível para o desenvolvimento humano e,
sempre modifica o ambiente ao qual ele está portanto, subordinado a este. No contexto dessas crenças,
inserido.Segundo o autor, essa relação quase simbiótica a hierarquia do homem em relação ao animal é algo
entre homem e natureza foi marcada pelo desequilíbrio de natural. Portanto, na visão de Harari, a Revolução Agrícola
ecossistemas e pela extinção de animais continentais foi tanto econômica quanto religiosa. A partir desse
devido a sua exploração indevida. momento, após a domesticação animal, as atitudes e o
Após discorrer sobre a relação homem e natureza, o autor modo de pensar dos animais, por parte dos humanos, foi
recupera as origens antropológicas humanas em relação às radicalmente diferenciada. Animais não possuem mais
suas crenças mais primordiais. A crença animista, por atributo divino, eles fazem parte da criação, mas estão à
exemplo, considerava os animais como seres quase disponibilidade do homem. Esse comportamento em
indissociáveis de características humanas, uma vez que os relação aos animais se constitui, por assim dizer, em um
animais teriam alma, e assim, manteriam conexão periculum iminente para sua sobrevivência, uma vez que
profunda com os homens. Essa visão leva em conta a suas existências foram reduzidas às necessidades
existência espiritualista dos seres animados, e não alimentícias e lucrativas humanas.
somente a visão materialista de seres formados por Posteriormente, o autor analisa a relação entre a
aglomerados orgânicos. Revolução Agrícola e a Revolução Científica. Enquanto
Mais adiante, o escritor recorre às narrativas religiosas a aquela estabeleceu relação direta entre o homem e os
fim de enunciar a relação estabelecida entre animal e deuses e colocou os animais como coadjuvantes, esta
homem. Ao recordar o relato do livro bíblico de Gênesis, o rompeu a relação do homem com Deus. Através das novas
autor reafirma seu argumento por meio da explicação da descobertas científicas iniciadas no século XVII, o homem
origem do nome Eva dentro do contexto das línguas foi capaz de romper seus próprios limites e, na minha
semitas, que significaria serpente. A narrativa do jardim do opinião, posteriormente, romper com ele mesmo. Dessa
Éden, para o historiador, seria a ruptura da relação maneira, o ser humano passa a ser o protagonista do
próxima do humano com o animal, devido à ocorrência da conhecimento e investigação, uma vez que antes o saber
Revolução Agrícola. era monopolizado e selecionado pelas autoridades
A Bíblia refletiria o período da Revolução Agrícola, que era eclesiásticas. Os resultados da Revolução Científica foram
o novo estágio da relação entre o homem e os animais, categoricamente importantes para o avanço das técnicas
caracterizado pela domesticação de animais. A partir e das ciências empíricas. Desde as contribuições de
desse momento, tem-se uma nova realidade econômica, Newton para a dinâmica das forças na mecânica, William
baseada na supremacia do homem em relação ao animal, Harvey e Vesalius com as descobertas sobre a circulação
pois o animal passa a ser parte de suas riquezas e sanguínea e Galileu com suas descobertas astronômicas
propriedade. Assim, as necessidades dos animais se proporcionadas pelo primeiro telescópio.
manteriam subordinadas ao desejo humano de suprir sua Por fim, a Revolução Agrícola teria formado a religião
demanda nutricional. Sem exorcismos teoréticos para com teísta, o que justifica a agricultura em nome de Deus. A
o historiador, porém o autor com algum exagero Revolução Científica originou o humanismo, que justifica o
ambiental tematiza o processo de subjugação animal vem mundo moderno, em seu sentido industrial e tecnológico,
acompanhado da banalidade da vida animal em que seres cultuando o humano. A ciência e a tecnologia atuais são
viventes são reduzidos, muitas vezes, à matéria inorgânica capazes de tornar o homem independente da ação dos
para a geração de um deuses e fazer do homo sapiens senhor absoluto de seu
produto final. próprio destino através do estudo e previsibilidade de
Em seguida, o tópico fenômenos — chegando ao último estado, o de homo deus.
foca no conceito e
aplicação de algoritmos.
A emoção seria, por Eliseu Cidade é graduando em Relações
assim dizer, um Internacionais pela UFRJ e escreve
algoritmo bioquímico, regularmente poesias, contos, crônicas,
já que ela faz parte de resenhas, ensaios e artigos.
uma série de reações
fisiológicas enumeradas
assim como os
algoritmos são capazes
de desempenhar nos
softwares. Em termos
conceituais, o algoritmo
seria o conjunto de
etapas executadas de
maneira lógica para a
obtenção de Gostaria de ter seu texto divulgado na
determinado resultado. Ágora? Confere lá no nosso site
(scenacritica.blogspot.com) as regras
Desse modo, os algorit-
para submissão. Poemas, cronicas,
contos, resenhas, todos tem espaço em
nossa praça de divulgação literária.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 25
A esfinge raspada
Uma urgente recuperação da memória de Gustavo Corção
N
a antiga sociedade egípcia, como em outras cultu-
ras arcaicas, em contexto de grande perturbação
social e religiosa, era mister a desfiguração da
representação social iconográfica de um dirigente ou líder
militar que caíra em desgraça.
Tratava-se de uma operação política realizada pela
oposição vencedora. A ‘Esfinge raspada’ representava a
tentativa bem sucedida de eliminação do poder
indesejável a alguns, como também tirar da memória do
povo a figura, a história, os valores de um determinado
dirigente. Era uma forma de banimento da esfera pública
daquele personagem, de obstrução do direito à memória
coletiva. No Egito este gesto também selava o poder
sobrenatural daquele dirigente, através da evocação
diante da esfinge.
Os gregos, por exemplo, submetiam ilustres cidadãos ao
exílio através da nomeclatura do ostracismo, isto é, o
banimento de um sujeito público da democracia
ateniense.
Uma punição ante-mortem. O ostracismo ou "limbo" em
vida de qualquer um que incomodasse de tal modo a
coletividade a ponto de merecer o apagamento ou
cancelamento de sua presença e portanto, de sua
memória ("Quem não é visto, não será recordado"). Esta
punição era oficial, exequida através do voto de uma
assembléia ateniense.
Mas em que nos interessa tal metáfora?
Gustavo Corção (1896-1978), um personagem destemido
em sua pena e idéias sofrerá, antes de seu decesso, a
condenação e o banimento da memória intelectual
brasileira moderna. Ele será expulso do pânteon brasileiro,
como jornalista, escritor e mesmo do ambiente católico
"de esquerda" que se impunha paulatinamente a partir do
fim dos anos 60.
Alceu de Amoroso Lima, por exemplo, foi cultuado quase
como único candidato do catolicismo intelectual, dada a
percepção de "progressimos" projetada por essa mesma
elite eclesiástica de sinistra sobre sua obra.
Como está relatado no início deste artigo, tratava do
castigo máximo a um escritor "conservador e católico",
excesso de culpa para deixá-lo impune.
Autor de vasta obra, inclusive com edições póstumas, a importantes para o processo de recristianização. Suas
maioria delas formada por crônicas, foi principalmente um ações no Rio de Janeiro continuaram alinhadas ao que foi
escritor de jornais, um cronista nacional, seguindo a proposto em sua célebre carta pastoral de 1916, com o
tradição dos literatos brasileiros do seculo XIX. objetivo principal de encaminhar o “[...] Brasil para a
felicidade e para a glória. Será no dia em que, instruídos
O Contexto Espiritual do Intelectual e Escritor na Religião, constituírem os católicos uma cruzada
vencedora contra a descrença que assola e devasta a
Não há ideias no vácuo. O pensamento se destaca a partir organização da pátria” (LEME, 1916, p. 43 – 44).
de seu complexo e às vezes, labiríntico "fundo" formado
pela cultura, pela política, pela religião, bem como Reler, descobrir e reconfigurar uma Esfinge
também pela economia, ao mesmo tempo que
dialeticamente modifica esse cenário. Esta premissa vale Corção emerge como protagonista nas décadas décadas
para a questão sobre a vida, a obra e o destino (conceito de 40 a 70, como um agente vivo desses ambientes de
de "fortuna" na recepção da obra) de Gustavo Corção. conversões de intelectuais ao catolicismo, inseridos na
A década de 30 inaugura-se sob a égide do magnificus mente da ação católica como método, e fará das letras
Cardeal Leme, um tempo de frutuoso ativismo intelectual diárias, através dos jornais, seu mais relevante acervo.
católico. Contemporâneo a todo o período Getuliano, Reler e redescobrir as trincheiras literárias deste pensador
sobretudo do Estado Novo, Dom Sebastião Leme era "católico e conservador", que teve sua "esfinge" raspada há
cônscio da urgente questão sobre o futuro do mais de 40 anos, no atual cenário brasileiro e global,
catolicismo a partir da nova situação republicana, e é de salutar importância.
das tarefas de enfrentamento. Ele parece ter sido Segundo o historiador Ricardo da Costa, deve
um sujeito icônico de um momento tão fértil na haver uma forma de paixão e de amor no ação
conturbada recente história do Brasil e da Igreja. de desenterrar os mortos, ex-umá-los, de pertur-
Segundo muitos autores, pode-se denominar este barlhes o repouso... senão é assim, estamos di-
período, no qual o Cardeal Leme é central, de ante de um crime civil e teológico: a profana-
"Restauração Católica". ção da memória. Pura e mórbida curiosidade
Não se tratou de um fenômeno exclusiva- sobre a vida passada. Perturbação da paz dos
mente brasileiro. Diversos países tradicio cemitérios.
nalmente católicos, com matizes Esta necro-fagia é o rito científico do amor
diversos, passaram por estes esforços aos mortos, em busca da verdade, da-
de enfrentamento com a laicização quilo que em suas vidas nos fasci-
do Estado. O Papa Pio IX, no fim do na e impõe-se ao nosso presente.
século XIX, com a Encíclica Quanta Queremos que eles voltem a falar,
Cura deu o "ponta pé" inicial na conversar conosco sobre coisas
questão que ocupava a Cúria Ro- que tendo realizado ainda se re-
mana, naqueles tempos, denomina- fletem em nosso cotidiano,
dos "modernistas". Período de mui- de modo às vezes oposto ao que
tos conflitos entre a religião, a ciên- imaginaram ao criá-las, ou ao
cia e a politica. contrário, ao mesmo tempo, por-
Dom Leme vai liderar no Brasil um que o tempo apagou coisas e
movimento de recatolização, que se instituições que inventaram no
insere numa moldura internacional seu tempo, como tentativas in-
por parte da Igreja Católica. Diversos teressantes de respostas à situ-
são os projetos lançados por ele: a ações desafia doras em que
participação efetiva de clérigos e passaram.
leigos católicos na politica nacional, a formação de Acordemos o grande escritor católico e militante cultural,
intelectuais e de centros escolásticos e acadêmicos nos Gustavo Corção Braga, de um sono ‘induzido’ pela
quais se desenvolvesse uma verdadeira ‘educação católica’. esquerda nacional e eclesiática. Temos muitas coisas a
Esse período marcará a ereção de Instituições acadêmicas conversar com ele.
e colégios Romanos responsáveis pela formação do Clero
Brasileiro e Latino americano na Pontifícia Universidade Bibliografia de Gustavo Corção
Gregoriana.
A atuação das lideranças católicas colaborou para a A Descoberta do Outro (1944)
inauguração do conceito de ‘homo ecclesiae’ na primeira Três Alqueires e Uma Vaca (1946)
metade do século XX, defensor da ordem social, da Obras póstumas:
Lições de Abismo (1950) (Romance)
autoridade, da contrarrevolução, do nacionalismo e da As Fronteiras da Técnica (1954)
restauração de uma moral, todos com base nos Dez Anos (1956) Conversa em Sol Menor (1980)
ensinamentos cristãos. Tal proposta também se Claro Escuro (1958) As Descontinuidades da
estruturava na necessidade da organização de uma forma Machado de Assis (1959) Criação (1992)
de ‘neocristandade’ atuante a partir dos ensinamentos Patriotismo e Nacionalismo (1960) Gustavo Corção Tomista (2012)
eclesiásticos e o combate às doutrinas contrárias ao O Desconcerto do Mundo (1965) Uma Teologia da História
pensamento da Igreja Católica. Dois Amores, Duas Cidades (1967) (2015)
Como segundo Cardeal Brasileiro, a partir de 1921, Dom A Tempo e Contra-tempo (1969) A Igreja Católica e a Outra
Leme atuará firmemente nesta direção. Onde foi nomeado Progresso e Progressismo (1970) (2018)
o segundo cardeal brasileiro. Com as suas atividades na O Século do Nada (1973)
capital federal a partir de 1921, o eclesiástico teve a
oportunidade de desenvolver um trabalho efetivo de
politização do clero e reivindicar os projetos da Igreja
Católica em espaços próximos do poder governamental. Doutor em Teologia Bíblica pela
A fundação da revista ‘A Ordem’, do ‘Centro Dom Vital’ e as Pontifícia Universidade Gregoriana e
parcerias estabelecidas com Jackson de Figueiredo (1891 – em Letras pela PUC-Rio, Pedro
Paulo dos Santos é sacerdote,
1928) e Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983) estruturaram um
escritor, colunista e apresentador. É
novo momento na trajetória de Dom Sebastião Leme. Na autor de A Interpretação da Bíblia:
capital do país, o bispo intensificou o trabalho com os estudos de hermenêutica (Letra
intelectuais católicos, com a organização de elementos Capital, 2019) e Apocalipse: do
Espirito de verdade ao Espírito da
profecia (Editora Reflexão, 2009)
Ensaios do
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 27
O
vivido na ordem querida por Ele.
Deus que nos chamou a existência, também nos Nas Sagradas Escrituras, muitas são as vezes que Deus se
convida a estar com Ele na eternidade, a sermos utiliza da imagem do casamento para mostrar seu desejo
santos. Há, portanto, na vocação do homem uma amoroso de estar unido a seu povo. Como nos diz em
orientação para a conquista de sua plena realização, de Isaias: “Assim como um jovem desposa uma jovem, aquele
sua maturidade. Isso perpassa toda a sua sexualidade. É que te tiver construído te desposará; e como a recém-
nela que este chamado se materializa no apelo de tornar- casada faz a alegria de seu marido, tu farás a alegria de
se homem e mulher inteiros capazes de fazer e teu Deus. ” (Is 62,5) do mesmo modo na profecia de
proporcionar experiências humanas sadias, estabelecendo Ezequiel: “Cresceste. Ficaste moça. Teus seios se formaram,
relações autênticas. veio-te o pelo. Mas estavas nua, inteiramente nua.
A interação sexual é uma abertura que propõe escuta, Passando junto de ti, verifiquei que já havia chegado o teu
aceitação, atenção e respeito. Ela não se compõe de um tempo, o tempo dos amores. Estendi sobre ti o pano do
sujeito isolado, mas se constrói na comunhão, na mútua meu manto, cobri tua nudez; depois, fiz contigo uma
colaboração, no intercâmbio, na partilha, na oblatividade. aliança ligando-me a ti pelo juramento – oráculo do
Só se faz e alcança seu objetivo quando é vista e recebida Senhor Javé – e tu me pertenceste. ” (Ez 16, 7-8). Deus toma
como dom, gerando continuamente vida, sendo fecunda, a iniciativa e devota amor pelo seu povo. O deseja e quer
cumprindo o seu papel unitivo com a capacidade de para Si, o ama, mas antes o cobre, e dá, o faz descobrir o
reciprocidade e complementariedade. Quando cada um se verdadeiro sentido de sua sexualidade.
vê, não para si, mas para os outros. Santidade consiste nisso: estar com Deus. É uma união
O homem na sua masculinidade e a mulher na sua para qual o homem se prepara toda a vida, adequando sua
feminilidade desenvolvem-se como pessoas humanas vontade com a do Criador, crescendo em virtudes e
íntegras, maduras e harmoniosas em si e na relação com vencendo os males gerados pelo pecado original em nossa
os outros na medida em que suas sexualidades são vividas carne. O homem e a mulher vivem uma comunhão que se
como dons de si mesmas. É a sexualidade que permite o assemelha com aquela que Deus vive em seu íntimo,
relacionamento interpessoal e essa sua integração se dá como Trindade. É uma união querida por Deus e é
pelo amor, seja amor doação, seja pelo amor fecundidade protótipo da união eterna com Ele. Por isso a identificação
ou ambos. Esta troca de dons gera uma divisão de bens do amor fiel dos esposos com o amor que Cristo se
espirituais capaz de deixar tanto um como o outro mais entrega à humanidade, uma verdadeira aliança.
rico. Assim está expressa na máxima: “quando dividimos os A essência da concepção cristã da sexualidade está
dons materiais ficamos mais pobres, quando divido os impressa em nós em forma de aliança que se torna plena
bens espirituais ficamos mais ricos”[1]. e verdadeira quando identificada ao amor próprio do
O verdadeiro encontro é maduro quando se caracteriza coração de Cristo, que se une a nós de forma espiritual e
pela aceitação do outro como ele é e se doa para carnal. Ele nos ama com todo o seu coração, sua vontade e
amadurecê-lo. Só o amor verdadeiro capacita a pessoa a inteligência, mas também nos ama com seu corpo. Para
integrar a sua sexualidade no modo de ser: um ajuda o nos salvar consentiu que seu sacratíssimo corpo fosse
outro a alcançar a sua estatura plena. É um desenvolver-se despedaçado e continua a doá-lo na Eucaristia. Se somos
por inteiro, sem reduzir a sexualidade à simplesmente cristãos e o seremos eternamente é porque esse amor
afetividade ou genitalidade como é comum em alguns esponsal de Cristo é indissolúvel e fecundo: é para sempre
círculos. Devemos levar em consideração todos os seus e o fruto abundante destas núpcias foram celebrados na
aspectos: espiritual, na relação com Deus; cultural, nas Cruz são consumados na Eucaristia.
relações com o ambiente e a ordem moral; social, na No céu há um corpo humano, inteiro. É Cristo, que subiu.
relação com os outros; psicológica, na relação Na oração coleta da Solenidade da ascen-
consigo mesmo; e físico, no controle das ção do Senhor assim rezamos: “a ascensão
funções. Tudo isso é sexualidade humana e do vosso Filho já é nossa vitória”. Tem um
tudo tem como objetivo nos levar em todas homem no seio da Trindade e pelos méritos
estas ordens a maturidade, plena realização de Sua Paixão somos todos um n’Ele,
a um amor íntegro. participamos de sua divindade.
O Papa Bento XVI na encíclica Deus caritas Ainda não de forma plena, mas já
Est (n. 7) nos diz que “Deus nos ama com de modo real pelo batismo. Devemos ter
amor erótico”. Quer dizer que o próprio consciência de que esse nosso Corpo é
Deus se Encarna, vem ao nosso encontro, chamado à glória, está pela graça recebendo
assume uma sexualidade para redimir a nossa. esplendor, mas ainda carrega as mazelas do
Se coloca como perfeito modelo de homem, pecado. Mesmo assim foi destinado ao céu para
íntegro, maduro. E esse mesmo Deus quer estar receber a dignidade que lhe é
conosco, unido para sempre. Como um Esposo própria e uma vez lá, na eterna beatitude, nunca mais
que desposa a sua esposa. Para nós pode até soar será perdida. As núpcias do Cordeiro são as nossas.
estranho já que nosso erotismo está contaminado Nossa vocação é esponsal, nosso lugar é com Ele e
com as mazelas do pecado original e precisa passar n’Ele por todo o sempre.
por um processo de purificação. Mas em Deus há
também amor Eros. Eros e ágape estão unidos à própria
fonte do amor, que é Ele mesmo.
Criou-se no nosso mundo uma espécie de negação do
eros, como se ele fosse em si mal, visto em contraposição
ao ágape. Mas isso é uma forma de fragmentar o amor Rafael dos Santos, sacerdote da
Arquidiocese de São Sebastião do
humano. Um homem que não ama com eros é frio, morno, Rio de Janeiro. Possui Formação em
possui um amor que não desce para o coração e não Filosofia, Direito, Teologia e é
penetra a alma. Não podemos negar que existe uma mestrando em Direito Canônico no
função positiva do eros; obviamente ele precisa passar por PISDC/Pontifícia Universidade
Gregoriana.
um caminho de purificação, mas não deve ser ignorado.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 28
In scena
Movimentos
messiânicos e
religiosidade popular
no Brasil (1808-1938)
Em 2023 comemoramos os 130 anos
ALEXANDRE ANTOSZ
do nascimento de duas grandes
FILHO
figuras da literatura brasileira: o
Benedictus, 2022,
poeta, pintor e médico alagoano
304 págs
Jorge de Lima (1893-1953) e o crítico
literário, escritor e líder católico Alceu
Amoroso Lima (1893-1983).
Leandro Garcia, professor da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais-UFMG, em
Jorge de Lima & Alceu Amoroso
Lima: correspondência traz à luz
diversos aspectos dos dois escritores,
testemunhas e agentes de um Fruto da tese de doutorado em História da Igreja
período fecundo na formação literária defendida na Pontificia Università della Santa Croce,
nacional na primeira metade do séc. Movimentos messiânicos e religiosidade popular no
XX. Brail, de Alexandre Antosz Filho, traz um panorama de
mais de um século acerca das manifestações religiosas
populares de caráter messiânico, analisando desde os
movimentos mais famosos, como Canudos e Contestado,
até outros menos recordados, como Cidade do Paraíso
Jorge de Lima & Alceu Amoroso
Terrestre e os Monges Barbudos do Lagoão.
Lima: correspondência
LEANDRO GARCIA RODRIGUES (Org.)
Francisco Alves/Eduneal, 2022,
532 págs
centrodomvital.com.br
instagram.com/centrodomvital
comunicacao@centrodomvital.com.br
Tel.: 21 2516-2046
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 30
O monge copista
Opiniões e comentários sobre tudo e mais um pouco
Em xeque
O
falecimento da rainha Elisabeth II ocorrido em 08 de setembro de 2022 e a ascensão do novo rei
Carlos III certamente despertaram o interesse internacional pela monarquia britânica, que parece ser
um dos poucos pilares de estabilidade em um mundo marcado pela rapidez das mudanças políticas.
Fato é que por quase mil anos, o sistema político inglês, marcado pelos seus dois pilares, a saber, o monarca e
o parlamento, apresenta-se como uma linha de continuidade que liga o atual Reino Unido a um passado de
grandes feitos e conquistas que fizeram das pequenas ilhas britânicas o epicentro de um grande império
apelidado “the empire on which the sun never sets”.
Toda esta estabilidade é promovida pela ordem existente entre coroa e parlamento, onde as funções são
claramente delineadas, ainda que o país não tenha uma constituição escrita bem definida, além da ausência
de interferência de poderes, pelo menos desde o século XVIII, e a clara consciência do dever a ser exercido
em cada função, fazem com que as crises no país sejam leves e ligeiras não afetando a vida pública. A prova
de tal fato é a recente situação pela qual passou o Reino Unido em 2022 a reboque da crise do coronavírus,
com altos índices de inflação para os padrões britânicos, crise de abastecimento, sucessão na coroa e a troca
de três primeiros-ministros em menos de dois meses, de forma alguma foram capazes de fortemente afetar o
establishment, ou provocar greves generalizadas, a invasão do parlamento ou a destruição do rico patrimônio
histórico.
A razão para tal reside no conservadorismo britânico vacinado contra todo tipo de atitude revolucionária. Esse
conservadorismo não significa de forma alguma ausência de mudanças ou adaptações a certas necessidades
que a evolução da sociedade impõe à vida pública, mas sim na forma como essas mudanças são
implementadas. David Starkey, famoso por suas obras a respeito da dinastia Tudor, mostra que o ser
conservador difere do ser revolucionário, à medida que este último visa não somente promover mudanças,
mas radicar toda memória histórica, única capaz de promover os laços do presente com o passado, enquanto
o conversador promove mudanças da maneira como elas historicamente aconteceram. Neste sentido nada
mais conservador do que as mudanças ocorridas na sucessão do trono britânico, onde a proclamação da
notícia “the queen is dead” é prontamente seguida aclamação “long live the king”, evidenciando aquilo que
muitas vezes falta em regimes republicanos: continuidade.
Se a coroa apresenta tal continuidade, o mesmo é válido para o parlamento, onde a substituição de Boris
Johnson por Liz Truss e de Truss por Rishi Sunak em menos de dois meses não representou um abalo das
estruturas sociais, políticas e econômicas do Reino Unido. A razão para tal fato está na clareza de que a figura
central da vida pública não é política nem partidária, mas sim reside na figura monarca que está acima de
qualquer disputa de poder. Além do mais, a quase inexistência do pluripartidarismo fazem com que as
maquinações políticas e o jogo de poder entre partidos sejam inibidos, sendo que desde o início de sua vida
pública, o político é marcado como membro deste ou daquele partido não existindo conchavos e frequentes
trocas de partidos, que no fundo apenas demostram a falta de comprometimento de políticos com uma ideia
ou agenda política de um partido. Assim sendo, o nome do primeiro-ministro importa menos do que o
partido que está no poder, pois espera-se que aconteça uma continuidade independente de que quem esteja
habitando em Downing Street.
Desta forma, o sistema político britânico continua a questionar os modelos de governo baseados na rápida
troca de personagens políticos e no pluripartidarismo, como, por exemplo, o brasileiro, onde um governo
busca frequentemente apagar a memória do antecedente, evidenciando uma falta de planejamento para o
futuro da nação. Talvez seja a hora de questionarmos até que ponto é válido insistir com o presidencialismo
brasileiro, que já se mostra mais que desgastado depois de tantos episódios deploráveis que permearam toda
a história republicana. Certamente, desta vez, quem está em xeque-mate não é o rei.