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"Nous aimons la verité, nous aimons Dieu,

nous aimons tous les hommes." - Jacques Maritain

SCENA
OUTUBRO-DEZEMBRO 2023
Nº 03
ANO 1

CRÍTICA

FILOSOFIA | LITERATURA | ARTES | CULTURA


Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 2

SCENA

Editorial S
Temos a satisfação de apresentar aos leitores a última edição de 2023 de Scena
Scena Crítica
Crítica, mantendo a linha de um editorial temático, como fizemos ao longo das Filosofia, literatura, artes, cultura
edições deste ano. Nesta edição procuramos prestar tributo a Dom Luigi Giussani,
padre e teólogo italiano, fundador do movimento Comunhão e Libertação, no
Scena Crítica é uma publicação
tempo propício do encerramento das celebrações de seu centenário de
trimestral, sem fins lucrativos
nascimento.
A partir da figura de Giussani esperamos gerar reflexões sobre o modo de operar
scenacritica@gmail.com
o apostolado católico a partir dos conceitos deixados em sua vasta obra,
apoiando-nos especialmente em sua tese central sobre o senso religioso. scenacritica.my.canva.site
É mister para nós, como revista de inspiração católica, suscitar o debate e a
instagram.com/scenacritica
reflexão sobre os temas que são caros e necessários ao contexto eclesial
moderno, sempre atados a um amplo editorial que versa sobre temas diversos de
interesse do conjunto da sociedade e da academia.
Editor
Inspirados por nossos egrégios patronos, fizemos, como de costume, a revisão de
textos de suas autorias, elegendo para esta edição de fim de ano Gustavo Corção
Filipe Machado
em sua crônica sobre as festividades natalinas, procurando, assim, contextualizar-
nos ainda mais no tempo em que vivemos, em um final de ano que se apresenta
cheio de turbulências e questões que não solucionadas nos fazem olhar para um Colaboradores desta edição
futuro povoado de incertezas.
Continuamos dando sequência a nossos editoriais temáticos, além de reunir Bárbara Bedôr
novos autores que, pela primeira vez, contribuíram para nossa Ágora Literária, na Barbara Lima
expectativa de que assim atraiam novas contribuições para o nosso jovem Eduardo Silva
periódico. Guilherme Chapini
Fazemos, então, votos de um desdobramento feliz para este ano, nosso ano 1, Gustavo de Moura
depositando nossas esperanças e expectativas no Logos que tantos ansiavam e Carlos Frederico Calvet
que se encarnou no seio da Virgem, correspondendo aos homens em suas Júlia Rocha
expectativas e temores. Liécifran Martins
Rafael dos Santos
Gloria in excelsis Deo Sofia Brunstein
et in terra pax hominibus bonae voluntatis! Telmo Olímpio
Tiago Cavalcante
Filipe F. Machado
Eduardo D. S. Silva
Editores
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 3

I T I N E R Á R I O

I T I N E R Á R I O
Na esperança

O ocaso do ano e a proximidade das festividades natalinas A filosofia tem espaço privilegiado neste edição. No artigo
trazem o terceiro número de Scena Crítica. O tempo do A Trindade na ponta dos dedos Carlos Frederico Calvet
Advento, que marca as quatro semanas que preparam o traz uma análise da exposição de Tomás de Aquino, o
Natal, muito nos fala da temática da esperança, palavra grande filósofo e teólogo medieval, acerca da Trindade na
que permeia o projeto desta revista, que prossegue na Suma Teológica. Kant também marca presença no texto
esperança de contribuir para o enriquecimento cultural e de Tiago Cavalcante que analisa Dignidade humana e
intelectual do cenário brasileiro contemporâneo. boa vontade na obra do filósofo alemão. Filipe Machado
A temática que guia esta edição é a experiência religiosa. retorna no Carderno de Cinema confrontando dois
Para isso, fomos buscar na pessoa do sacerdote, educador grandes filósofos do séc. XX, Bergson e Deleuze, acerca do
e escritor italiano Luigi Giussani (1922-2005), fundador do tema cinema-movimento.
movimento Comunhão e Libertação, as indicações para Barbara Lima brinda esta edição com um texto cujo tema
uma análise do senso religioso em nossos dias. A figura de é ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. O
Giussani e sua contribuição é explanada por Filipe artigo Entre axé e salaam: a influência de práticas
Machado no artigo Dom Giussani: um homem de Ação islâmicas no Candoblé do nordeste brasileiro traz à luz
Católica. No Dossiê, a entrevista com Alexandre Ferraro, pontos de grande importância na compreensão da
responsável nacional do movimento Comunhão e formação religiosa e cultural na história do Brasil.
Libertação, é-nos oferecido um amplo panorama do O médico e o monstro, de Robert L. Stevenson, é o
movimento no Brasil e no mundo. clássico que Julia Rocha traz nesta edição na resenha da
Sendo o Natal, que logo celebraremos, uma expressão do coluna Livro Aberto. E Rafael Santos, na coluna Ensaios
senso religioso, a coluna Vox Patroni traz Gustavo Corção do cotidiano, convida-nos a um agradável passeio na
em seu premiado romance Lições de Abismo, expondo as temática do prazer, enquanto Bárbara Bedôr nos conduz
contradições da sociedade e um Natal a cada dia mais na relação entre Inspiração e poemas.
tomado pelo consumismo. Na Ágora, a praça de divulgação literária, quatro
Eduardo Silva, nas Crônicas de um tempo peculiar, promissores poetas. Sofia Brunstein, Guilherme Chapini,
oferece-nos uma singela crônica sobre a experiência da Liécifran Borges e Gustavo Rodrigues colaboram com a
confissão, que marca a realidade cultural do ocidente poesia brasileira contemporânea e, para inspirar os novos,
desde o medievo. Telmo Olímpio retorna para nossas trazemos um poeta clássico: o sempre atual Jorge de
páginas com uma profunda meditação no texto Cegueira Lima. Boa leitura!
da vista e cegueira da alma.
ÍNDICE

Crônicas de um tempo peculiar, pág. 6


Uma confissão

Vox patroni, pág. 7


Estamos em véspera de natal

Dom Giussani, pág. 8


Um homem de Ação Católica

Cegueira da vista e cegueira da alma, pág. 10

A Trindade na ponta dos dedos, pág. 11


Cinco verdade sobre a Trindade na Suma de
Santo Tomás

Dossiê, pág. 13
Um ano jubilar

Livro aberto, pág. 16


O médico e o monstro

Ágora, pág. 17
Praça de divulgação literária

Dignidade humana e boa vontade, pág. 18


Uma reflexão em Kant

Entre axé e salaam, pág. 20


A influência de práticas islâmicas no candomblé do
nordeste brasileiro

Caderno de cinema, pág. 23


Cinema-movimento

Ensaios do cotidiano, pág. 24


O prazer

Inpiração e poemas, pág. 25


In Scena, pág. 26
"A literatura é o homem. É no homem aquela vocação misteriosa e
imprevista, condicionada por mil elementos exteriores e íntimos,
mas desabrochada pelo mistério do espírito, que sopra onde quer."

ALCEU AMOROSO LIMA


Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 6

CRÔNICAS DE UM

TEMPO PECULIAR
Ordem Franciscana. Olhando para o emblemático
conjunto sacro colonial, recordei-me de minha pobre
condição de pecador e, encorajado pela fé e pela
diminuição do volume de água a cair, atravessei a rua e
adentrei o longo e escuro corredor em cujo fundo havia o
elevador que conduzia ao convento e à igreja anexa.
Não encontrei o tradicional vai e vem de fiéis e turistas,
nem outros penitentes. Vi tão somente, no fundo da escura
sala do capítulo onde os frades atendem as almas aflitas,
um filho de São Francisco a caminhar, estola roxa ao
pescoço e terço na mão. O dramático crucifixo barroco na
parede do fundo completava aquela cena digna de uma
pintura, mas que não teve outro pincel que não meus
olhos inquietos. Ao virar-se e perceber minha presença, o
frade logo fez sinal para que me aproximasse. Tinha um ar
venerável em seus cabelos brancos e sua postura
encurvada.
Sentei-me diante do frade. Atrás dele, o crucificado fitava-
me, como que a suplicar em sua agonia: “Tenho sede!”. Mas
como! A única água que tenho agora é suja e fétida, pois é
como que o chorume desse lixo pestilento que são meus
pecados. “Dá-me! Acaso eu que transformei água em vinho
não posso também purificar as águas turvas e fazê-las
límpidas outra vez?”.
Os olhos azuis penetrantes do idoso frei, olhos com misto
de rigor e ternura, pareciam vasculhar minha alma
enquanto punha para fora os tais resíduos acumulados.
Não foi a primeira, e muito menos, infelizmente, a minha
última confissão. Os conselhos dados pelo confessor não

Uma confissão tiveram nada de extraordinário ou espetaculoso. Falava


com simplicidade de coisas simples, obvias até, mas com
profundidade tal que confirmava esta verdade: o óbvio

S
precisa ser dito.
ei que talvez a geração mais nova não seja lá “Eu te absolvo...”. Cada vez que ouço sobre mim as palavras
muito acostumada a ouvir as palavras “confissão” da absolvição sacramental percebo como o homem não
ou “confessionário” no sentido que aqui trago. No precisa de muito para ser feliz. Ao menos não um muito
máximo podem achar que falo de algum quadro de reality visível. Ao sair pelas portas que davam para o pátio de
show ou algo do gênero. Mas de início preciso esclarecer pedra, a chuva tinha parado. Os raios de sol abriam
que não. Refiro-me a confessar pecados a um padre brechas nas nuvens cinzentas e dali de cima davam um
mesmo. Ainda há pessoas, digamos, peculiares, como eu, cenário espetacular ao centro da cidade. A natureza
que se prestam a isso. naquele dia se assemelhara à minha alma.
Ao longo da vida, vamos sempre sentindo necessidade de Desci e caminhei pelas ruas, agora tomadas pelas poças
encontrar formas de fazer escoar certos excessos que d’água. Assim é a alma após a tempestade dos erros com
vamos acumulando. Más escolhas, conflitos de que se depara ao examinar sua consciência. A chuva se vai,
relacionamentos, falas ditas sem reflexão (ou talvez com mas suas consequências visíveis ficam. É necessário
excesso de reflexão maldosa), pensamentos provindos paciência e esforço para que as poças escorram e sequem.
sabe-se lá de que precipício da consciência, enfim, todo Até lá, há que se fazer como o VLT que vi ao passar pela
um arcabouço de resíduos a se descartar. Uns não estão rua Sete de setembro. Diante de um grande bolsão, teve
muito preocupados em se desfazer desses badulaques. que diminuir a velocidade, para depois seguir seu percurso
Outros despejam esses acúmulos na terapia. Os católicos em velocidade normal. Também eu, ao deparar-me com os
insistem num método menos freudiano (ainda que não o bolsões lentamente escoantes de meus vícios em processo
desprezem de todo) e mais medieval (sem nada de de correção, preciso diminuir o ritmo e atravessar com
pejorativo no termo): a tal da confissão. paciência.
Como católico de longa data, confessar-me já faz parte do Uma confissão. É pena que muitos não tenham essa
meu cotidiano. Mas há algumas confissões que ganham mesma experiencia. Mas hão de ter outras, nisso creio
um lugar de destaque na memória, talvez como forma de firmemente. Mas essa minha experiência, desculpem-me
preencher o espaço deixado pelos resíduos psicológicos os da nova geração, não há reality show que supere.
despejados nos ouvidos de um paciente sacerdote. Uma
confissão, particularmente, traz-me até hoje interessantes
reflexões.
Indo certa vez ao centro do Rio de Janeiro, ali pelos idos
de novembro, recordo-me que, ao sair de um Eduardo Silva, graduado em
compromisso num prédio, deparei-me com uma chuva História pela UFRRJ e em Filosofia
torrencial, dessas que a metrópole carioca sabe muito pela PUC-Rio, encaminha os
bem produzir em dias de calor sufocante. Abrigado da estudos também para a literatura e
a teologia, sempre a partir de um
chuva na longa marquise, via os passantes a correr pelo diálogo entre o pensamento
Largo da Carioca. Logo do lado oposto ao prédio onde tomista e as diversas correntes
estava, o plurissecular Convento de Santo Antônio, da contemporâneas.
7 Scena Crítica | Outubro-dezembro 2023

Vox patroni dando voz aos que nos precederam

ESTAMOS EM VÉSPERA DE NATAL


Gustavo Corção, 1950

E stamos em véspera de Natal. O movimento das ruas


dobrou; triplicou. Os automóveis buzinam, imobi-
lizados nas esquinas entupidas; as lojas regurgitam; os
vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os
dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso
universo.
Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre
o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um
clientes, entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem- urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos
se, acotovelam-se, mas sorriem, sim, sorriem - porque parados de contas azuis.
parece que todo o mundo está muito contente. - Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que
(...) esconderam o menino Jesus?
Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma O menino Jesus estava na esquina de Assembleia com
casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava.
autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas!) não
dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E
ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre.
e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga
preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas o tirara de uma lata de despejo.
na cabeça, Quando eu
parecia alheia à passei, ele
discussão: tentava pegar a
- É muito cara. chupeta caída
- Foi remarcada, nos trapos sujos
madame. A da mãe. Levava-a
senhora não à boca, sem jeito,
encontrará uma metendo os
boneca destas dedinhos nos
por menos de lábios, de onde
cem cruzeiros... corria uma saliva
Mas se a senhora clara e inocente.
quiser, temos A mãe, de braço
outras bonecas estendido, pedia
mais baratas. uma esmola pelo
Qual é o seu amor de Deus.
orçamento, Seria mãe de
madame? verdade? Dizem
A dama de azul que se alugam
franziu crianças para
ligeiramente os mendigar. A
sobrolhos. mendiga é falsa.
- É para uma A criança é falsa.
menina pobre. A A mãe é falsa. E
filha da dessa falsidade
empregada. todo mundo
Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o desconfia.
limite de “seu orçamento” como queria o desajeitado A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável.
vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre, Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino
explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos.
sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela; Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E
de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para o menino sorriu. Para mim!
a filha da criada.
O vendedor compreendeu logo que o problema se
deslocava para um novo sistema de microunidades.
Ninguém, evidentemente, mede em quilômetros o
diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em
milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o
glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas CORÇÃO, Gustavo. Lições
de Abismo. Rio de Janeiro:
Agir, 1989, p. 140.145-146.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 8

Dom Giussani
Um homem de Ação Católica

O Em 1959 o Papa João XXIII tomava de surpresa a


cristandade com o anúncio de que pretendia
convocar um Concílio Ecumênico, como de fato o
fez. A 11 de outubro de 1962 foi solenemente inaugurando o
Sacrossanto Concílio Vaticano II.
o laicato aparecia articulado através dos diversos órgãos da
Ação Católica. No cenário político a Igreja aparecia bem
representada pela Democracia Cristã. Tudo parecia confluir
para o bem-estar da Igreja.
O grande trunfo da análise de Giussani reside justamente
O seu antecessor do século XIX, o homônimo Vaticano I, teve naquilo que se tornou um de seus léxicos mais célebres: a
como tônica o reforço do poder hierárquico, especialmente experiência.
do poder papal, resultando na proclamação do dogma da É a experiência o grande trunfo para distinguir a mera
infalibilidade do Romano Pontífice. exterioridade das práticas religiosas e a real adesão ao
O Vaticano II notabilizou-se, ou ao menos recebeu a fama, de cristianismo. O interessante é notar que as estruturas, e até
ser o Concílio que garantiu a maioridade do laicato na Igreja, certo ponto os esquemas de pastoral e apostolado, não são
ainda que muitas de suas páginas se concentrem em por si descartáveis, mas, pelo contrário, podem ser meios
desenvolver uma teologia do episcopado e do reforço da eficazes para proporcionar e até mesmo fortalecer a relação
autoridade dos prelados em suas igrejas particulares. do sujeito em sua experiência da religião.
Como o Concílio e mais ainda o seu espírito foram E foi justamente através das estruturas de ação pastoral que
dogmatizados ao longo dos anos subsequentes de forma Giussani iniciou sua atuação, mais especificamente nas
sistematizada e ideológica, acabamos por cair em um fileiras da Ação Católica, onde notabilizou-se na direção do
ambiente em que análises críticas da conjuntura eclesial no setor estudantil. Não fosse o contato com a Juventude
pós-Concílio acabam por ser inviabilizadas, especialmente no Estudantil Católica, Giussani não poderia ter antecipado o
que diz respeito a dois aspectos: as dinâmicas pastoral e sentimento que discretamente pairava na mentalidade
litúrgica que se seguiram ao Vaticano II. juvenil e que resultaria nos acontecimentos de 1968.
É preciso lançar um olhar sem preconceitos e vícios Há uma sentença particularmente marcante de D. Giussani:
ideológicos para a situação da Igreja nos anos que As pessoas abandonaram a Igreja, mas antes a Igreja as
imediatamente precederam o Concílio, de modo a buscar na abandonou. Ora, é preciso de uma chave hermenêutica para
história da Igreja de sempre soluções e alternativas às bem compreender esta declaração de um Giussani já ancião.
questões que afligem a Igreja do nosso tempo, e também O fato é que ele percebia que o discurso eclesiástico, durante
sem temor inovar naquilo que necessitar progredir na muito tempo, ateve-se a uma pregação eminentemente
dinâmica irreversível da História. moralista, abrindo mão de um aspecto que Giussani
Este texto não tem a pretensão de apresentar soluções ou considerava fundamental: o evento.
alternativas à dinâmica da Igreja hodierna, mas através da O cristianismo é um evento na medida em que é encontro. E
biografia de um dos homens mais insignes da Igreja do é encontro pessoal e direto com uma pessoa viva e real. A
século XX, verificar aquilo que podemos extrair da sua religião reduzida a meros preceitos rituais e normas de
experiência do movimento que fundou, lições para nossa comportamento moral, ainda que seja eficiente
ação em prol da comunidade dos batizados e para o mundo temporariamente em fazer a manutenção de estruturas, não
que a deseja e almeja, ainda que a desconheça. gera um engajamento real e eficiente com os seus aderentes.
Em 1922 nascia, em uma comuna da É neste sentido que retomo a temática inicial do modus
Lombardia, Luigi Giovanni Giussani, que pastoral no qual estava localizado o início do movimento da
em 1945 seria ordenado sacerdote do juventude de Giussani. A atuação da Ação Católica, para
clero de Milão. Giussani certamente é além de apenas servir como longa manus da hierarquia,
mais notabilizado na atualidade, e
proporcionava um desdobramento da ação pastoral em
com razão, por ter sido o idealizador
um movimento ad extra, ao invés de concentrar-se,
de um dos maiores movimentos
como na pastoral hodierna, em aprisionar o leigo nas
eclesiais do século XX, o Comunhão
estruturas e locais que naturalmente não os perten-
e Libertação. No entanto, gostaria de
cem, nem mesmo dizem respeito a sua vocação, mas .
focar mais na figura do homem que,
pelo contrário, em cristianizar o ambiente social.
apesar do seu envolvimento nas bem-
Um dos pilares da filosofia de Giussani é uma adesão
sucedidas estruturas de organização
integral à realidade. Neste sentido, sua pregação sem-
do laicato do seu tempo, teve um olhar
pre se desenvolveu no sentido de afirmar que o cristia-
certeiro no diagnóstico das dificuldades
nismo não pode ser uma fuga do real, mas, pelo
que estariam por vir em um momento
contrário, leva o homem a comprometer-
em que tudo parecia razoavelmente
se com a integralidade dos fatores
no lugar.
que compõem a existência.
A Itália dos anos 1950, para
Ora, é evidente que há uma
um observador desatento,
certa impregnação do mé-
apresentava o aspecto
todo da Ação Católica no
de segurança para a
discurso e consciência
Igreja. Os seminários
de Giussani, pois só é
estavam cheios, a
possível tomar esta
frequência aos sacra-
atitude diante do
mentos era alta,
evento da vida se
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houver a disposição de tomar


uma postura ativa diante da
realidade, postura essa que
pode ser traduzida em: ver,
julgar e agir.
Chamo, então, atenção para
o nosso contexto eclesial
latino-americano. Após anos
de hegemonia, quase
solitária, da teologia da
libertação, seria quase que
natural uma tendência a
afastar-se da imanência, o
que de fato acabou
ocorrendo de forma
desastrosa. Após anos de
avanço de uma teologia de
caráter profundamente
sociológico e
antropocêntrico, o caminho
encontrado pela Igreja
Latino-Americana para
desvincilhar-se deste
caminho foi o de lançar-se
no extremo da “soteriologia”
que encontra sua
correspondência mais radical
e equivocada no neopente-
costalismo.
A primeira metade do século XX é marcada por célebres
É evidente que a partir dessas duas tendências inviabiliza-se
conversões que, não raramente, foram capitaneadas pelas
uma experiência autenticamente cristã. É inviabilizada
estruturas da Ação Católica, seja pelo método ou pela
porque o grande distintivo do cristianismo é a encarnação,
própria estrutura organizacional. Creio que, na verdade,
portanto não se pode associá-lo a nenhum tipo de doutrina
seria mais apropriado o termo reconversões, uma vez que
que pretenda a alienação. Por outro lado, o mistério da
a maior parte desses conversos já era batizada, além de
encarnação consiste no enraizamento do Logos na natureza
viverem em um contexto cultural muito mais próximo à
humana, não permitindo a exclusão do elemento
religião que o hodierno.
transcendente em sua experiência e discurso.
Neste sentido, já havendo distinguido a mera prática da
Uma vez que se conheça e confesse que o Logos se encarnou
autêntica experiência religiosa, chegamos finalmente à
em Jesus Cristo, não há outro lugar para onde o homem
questão, que ainda que não pretenda solucionar ou propor
possa direcionar o seu instinto religioso. Ou melhor, no léxico
soluções neste momento, ponho à reflexão. O sucesso do
de Giussani, é ali que ele encontrará a correspondência mais
movimento fundado por Giussani, depois conhecido por
satisfatória para a experiência universal do senso religioso.
Comunhão e Libertação, é um desdobramento orgânico
A questão que coloco reside em demonstrar que a pastoral
da Gioventù Studentesca que nada mais era do que uma
deve ser um facilitador para que o homem se depare com
variação da Juventude Estudantil Católica, órgão da Ação
essas questões essenciais, já que dizem respeito a sua
Católica.
própria constituição natural, de modo a permitir que viva de
Ora, o modo de ação apostólica não só de Giussani, mas
modo mais autêntico e integral a vida à luz da experiência
de muitos movimentos que apresentaram sucesso após o
com o Real.
Concílio, em um momento histórico de profunda aridez
A experiência da Igreja após o Vaticano II gira em torno de
para a Igreja, utilizavam o modus operandi anterior ao
duas reflexões: uma reflexão introspectiva da Igreja (Lumen
Concílio. Grosso modo, a experiência demonstra que
Gentium) e uma nova perspectiva, a partir desta nova forma
considerar o laicato no seu ambiente natural, ou seja, a
de lidar consigo, para relacionar-se com o mundo moderno
sociedade, é muito mais eficiente e menos dispendioso do
(Gaudium et spes).
que uma práxis pastoral que procura subverter essa ordem
Em Gaudium et spes se diagnostica, finalmente, que há um
inserindo-os no contexto do “apostolado sacramental”.
profundo distanciamento do homem moderno com relação
As espiritualidades e movimentos que se pretenderem
à religião, inclusive pela tendência de acreditar que o
perenes, parecem ter que fazer uma revisão, até muito.
afastamento da religião e de suas práticas constituem
própria, do Concílio: é preciso que se reestabeleça os
condição sine qua non para o desenvolvimento da ciência e
vínculos com o mundo, é preciso que façamos pazes com
da técnica. Ora, como resposta a essa tendência o Concílio
a realidade.
vai afirmar a vocação religiosa do homem. É certo, e creio,
que nenhuma antropologia poderá desconsiderar que é da
constituição humana universal a elaboração de sistemas de
crença e culto aos quais o homem dedica-se afim de dar
vazão a um instinto natural.
O ponto que quero notar é que as tensões entre o dogma e o
avanço da modernidade no mundo ocidental ocorre de
muitos séculos, ao menos desde a baixa Idade Média.
Contudo, trazendo ainda para mais próximo dos eventos do
Vaticano II, é possível notar uma ação eficiente do Com especialização em roteiro pela
apostoladoem prol da reconciliação de um número não Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
negligenciável de homens, por muita das vezes hostis, com a Filipe Machado é bacharel em
filosofia pela PUC-Rio e licenciado
religião.
em História. Atualmente suas
pesquisas estão centradas nos
autores que compuseram a cena
intelectual católica do século XX
com especial ênfase em Gustavo
Corção.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 10

Cegueira da vista
e cegueira da alma

Q uando, nos anos escolares, li Sófocles, impressio-


nou-me sobremaneira a figura de Édipo. A peça
é marcada de ambiguidades e por um destino
inexorável que leva seu protagonista a uma profunda
angústia e desespero. Qualquer um fugiria do fado de matar
o próprio pai e casar-se com sua mãe. E mesmo resistindo ao
máximo aos planos dos deuses comunicados pelo Oráculo,
Édipo cumpre sua sina e vive a vida que já lhe havia sido
imposta. Tais fatos levam a personagem a tirar a vista dos
seus olhos, terminando seus dias cego.
O que não pude considerar na tenra idade, só a leitura mais
madura veio evidenciar. Édipo não ficou cego, uma vez que
sempre o fora. Ele não conseguia enxergar nada, vivia na
ignorância da sua origem, da sua identidade e também da
absurdidade de seus atos. Não consideramos aqui o valor
moral de suas ações, mas tão simplesmente quantas coisas
ele fez sem se dar conta porque não sabia, porque não via. E
pergunto-me: ele poderia ver? Acaso poderia saber?
Na trama do poeta grego, pode-se ver retratada duas
cegueiras; uma é física, o próprio homem tira-lhe dos olhos a
luz; a outra é anímica, psíquica, mental: o homem não vê seu
entorno, suas circunstâncias, sua própria existência. Sem ver,
o homem não pode se dirigir por um caminho, não pode
escolher uma via, não pode traçar as escolhas da vida.
Também nos evangelhos, encontramos outro homem cego,
Bartimeu. Diferente de Édipo, que ao retirar a venda da alma,
resolve cegar a vista, o pobre do tempo do Nazareno é cego
desde o dia em que nasceu e, por ordem divina, cura-se Não à toa, os cristãos chamaram o Céu tantas vezes de visão
concomitantemente tanto da cegueira da vista quanto da beatífica, a plena visão. Não ver, perceber-se no escuro, é a
cegueira da alma. Seu clamor, como narra Marcos, foi ouvido sensação mais angustiante e, ao mesmo tempo, mais
e toda sua vida encontrou sentido e visão neste encontro. purificadora que pode haver. Desta sensação parece emergir
Não seria exagero, ao considerarmos a contemporaneidade, duas possibilidades: buscar a vista como Bartimeu ou cegar-
se de vez como Édipo.
dizer que a maioria dos seres humanos vivem a cegueira da
Voltamos a Sófocles e seu Édipo cego, e percebemos que
alma que independe da cegueira da vista; ainda que se possa
depois de ver não podemos voltar à cegueira. E isto também
ter as duas. Encontramos diversas pessoas ao longo do
pode ser estarrecedor quando nos damos conta dos
caminho que parecem viver sem se dar conta do sentido
recônditos mais sombrios dos seres humanos e também os
último de sua existência, sem perceber minimamente suas
de nossa própria alma. Finalmente, quando Édipo se dá
circunstâncias ou as do mundo. Pessoas, que embora vejam conta de sua própria vida, das circunstâncias terríveis em
tantas coisas nas telas dos seus celulares, que embora leiam que ele se encontra, aquilo que ele tanto quis ver, resolve
todas as últimas notícias sobre as guerras e sobre a cegar os próprios olhos. No entanto, a alma que viu não pode
economia, que embora se pensem mais lúcidas que todas, deixar de enxergar. A tormenta continua a consumir-lhe e,
são na verdade reproduções fiéis de tantos édipos e tantos embora cego, vê mais do que nunca. .
bartimeus. E talvez, por um longo período de suas vidas, Ver é um bem inestimável, não tenho dúvidas. Confirma isto
assim como os personagens da literatura e do evangelho, não a escrita do Apocalipse: Vi o céu aberto... vi descer um anjo...
se deem conta da própria cegueira espiritual. vi um novo céu e uma nova terra. Confirma a prece do cego:
O fenômeno do ofuscamento da alma contemporânea foi Domine, ut videam ― Senhor, que eu veja. Confirma
alvo da análise do português Saramago. Em “Ensaio sobre a também a filosofia tomista sobre o belo: Pulchrum est quod
cegueira”, a cegueira física é símbolo e também meio de o visum placet ― O belo é o que agrada a visão.
ser humano dar conta da sua cegueira interior, do Sem vista, não há beleza, não há sentido, não há vida. Que eu
conhecimento individual e coletivo do agir em sociedade. e tu, meu caro leitor, vejamos!
Como se percebe, a cegueira é tema recorrente, desde os
antigos até nós, que também tantas e tantas vezes não
conseguimos enxergar. Queremos ver, entender, inteligir
nossa vida no mundo e não conseguimos. Talvez, por isso
justamente, alastra-se por toda parte uma série de
profissionais que pretendem ajudar-nos a ver, os tais
Telmo Olímpio é mestrando em
psicólogos, coaches, mentores, etc. Letras Clássicas pela UFPR, bacharel
Estamos certos desde nossas adolescências, quando talvez em Direito pela UFRJ e em Filosofia
demos conta de uma falta de conhecimento próprio, que a pela PUC-RIO
cegueira da alma é a pior coisa que pode ocorrer à existência.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 11

A TRINDADE NA PONTA DOS DEDOS


Cinco verdades sobre a Tridade na Suma de Santo Tomás

S anto Agostinho diz, em seu Tratado sobre a Trinda-


de, que em nenhuma parte há algo mais perigoso,
laborioso e frutuoso do que este estudo. Efetiva-
mente, muitos dos erros relativos à Trindade foram
superados pelo labor dos Padres. À época de Tomás, já se
podia, há alguns séculos, desfrutar da beleza e da
profundidade do mistério trinitário, sem os perigos do
passado, embora com exigências igualmente laboriosas.
Dom Cirilo Folch Gomes inicia a conclusão de uma de suas
mais fascinantes obras, em que trata justamente da
Trindade, com a seguinte questão: “É possível ainda hoje,
na presente situação cultural, falar do Pai, Filho e Espírito
Santo como ‘três Pessoas’, se nos referimos a Seu mistério
íntimo e eterno?” (1979, p. 355). Santo Tomás, que guiou a
investigação de Dom Cirilo, oferece-nos elementos
doutrinais importantes que podem ser com fins
meramente didáticos, sem prejuízo do mais importante, o
mistério.
Tomás tratou esse mistério de modo tão excelente e, ouso
dizer, também didático, que, com os cinco dedos de uma
de nossas mãos, podemos abordar os temas principais
relativos à Trindade imanente. São cinco, justamente como
os dedos da mão, em ordinal também, os temas que nos
interessam aqui: um Deus, o polegar; duas processões, o
indicador; três Pessoas, o médio; quatro relações, o anular;
cinco atos nocionais, o mínimo.
1. Deus é uno. A questão 31 da primeira parte da Suma
Teológica discute em quatro artigo a unidade de Deus na
Trindade. Como é possível que um Deus que é
simplesmente uno e único possa ser, em sua essência, três
pessoas. Ao reconhecer que Deus é tino, no primeiro artigo
desta questão, Tomás ressalva que Deus não é tríplice, mas
trino (ST I, q. 31, a. 1, ad 3). Há trindade em Deus, isto é, há
número determinado de pessoas. O que indica a distinção
das Pessoas “não é o mesmo que diversidade ou diferença”,
porque a distinção é uma oposição relativa, isto é, que
exprime uma relação. Trata-se de dizer a essência de Deus
é três, isto é, o três em Deus não é propriamente um
número (ST I, q. 30, a. 3), como se acrescentássemos uma
unidade ao um, para fazermos dois, e uma unidade ao dois
para fazermos três. Três é a essência mesma de Deus.
Omnia tria...
2. Duas processões. O Filho procede do Pai; e o Espírito
procede do Pai de do Filho. A processão é uma relação,
porém enquanto a relação em nós é um acidente, como
em Deus não há acidentes, estas relações são subsistentes,
de modo que pertencem ao próprio Deus por essência. E
há somente duas processões (ST I, q. 27, a. 5): a processão
do Verbo, que é a geração (ST I, q. 31, a. 2); e a processão do
Espírito, que não é geração, é a processão do Amor, pois
como a natureza intelectual tem duas ações, a do
intelecto e a da vontade, a processão do Verbo é conforme
a ação do intelecto; e a processão do Amor é conforme a
ação da vontade (ST I, q. 27, a. 4).
3. Três Pessoas. Devem-se afirmar várias pessoas em Deus,
porque, em Deus, pessoa significa relação subsistente na
natureza divina (ST I, q. 30, a. 1). Ora, em Deus há várias
relações reais; logo, há várias pessoas, na verdade três. Por
quê? Porque duas relações opostas correspondem a duas
pessoas: assim, a paternidade e a filiação. A espiração e a
processão por espiração, por outro lado, são opostas entre
si. Contudo, se a espiração ao Pai e ao Filho, a processão
por espiração não lhes pode corresponder: logo, designa a
terceira pessoa: o Espírito Santo (ST I, q. 30, a. 2) .
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 12

4. Quatro relações. A relação em Deus é o mesmo que sua


essência, porque o que é acidental nos entes deve ser
atribuído a Deus de modo essencial, de modo que o ser da
relação é o mesmo que o ser da essência divina (ST I, q. 28,
a. 1). As quatro relações reais em Deus são: paternidade,
filiação, espiração e processão (ST I, q. 28, a. 4), porque não
pode haver relação real em Deus se não for fundada na A Trindade. Livro de horas de Llanbeblig, final do séc. XIV.
ação. Ora, as ações imanentes em Deus são duas
processões: a do intelecto (a do Verbo) e a da vontade (a
do Amor). Se a processão do Verbo é geração e a do Amor,
embora sem nome próprio, é a espiração e toda relação
tem dois termos, duas processões, com dois temos opostos
cada, constituem quatro relações: a do Pai com o Filho,
paternidade; a do Filho com o Pai, filiação; a do Pai e do
Filho como o Espírito, espiração; a do Espírito com o Pai e
o Filho, processão, no sentido de ‘procedido’ deles.
5. Cinco atos nocionais. Os atos nocionais devem ser
atribuídos às pessoas, porque, para designar a ordem de
origem das pessoas, se lhes atribui atos nocionais (ST I, q.
41, a. 1). As noções são pois: inascibilidade e paternidade; a
filiação; a espiração; e a processão. dessa forma, ao Pai se
referem as noções de inascibilidade e de paternidade e de
espiração comum (do Espírito com o Filho); o Filho é
conhecido pela filiação, como seu modo de proceder, pela
espiração comum, que um mesmo modo de
conhecimento com o Pai; e o Espírito que procede de
ambos é conhecido pela processão (ST I, q. 32, a. 3). Os atos
nocionais procedem de algo, porque o Filho procede da
substância do Pai; e em Deus há verdadeira e própria
paternidade, nascimento e filiação (ST I, q. 41, a. 3). Em
Deus, há uma potência em relação aos atos nocionais,
porque potência significa o princípio do ato; porque, ao se
compreender o Pai como princípio de geração e o Pai e o
Filho como princípio de espiração, é preciso que se lhes
atribuam as potências de gerar a Pai e a de espirar a
ambos (ST I, q. 41, a. 4). Sobre este aspecto, talvez o menos
conhecido da doutrina, diz Vanier: “A ação nocional e
todas as ideias relacionadas tornaram-se, na Suma, formas
simples de conceber exigidas pelo nosso espírito. A
precisão e consistência adquiridas por estes conceitos são
notável. Mas a importância do seu desenvolvimento vem
acima de tudo da pureza que permitiram dar aos
primeiros conceitos de teologia científica trinitária: a
procissão imanente e a sobreviver ao relacionamento
pessoal” (1953, p. 88) .
Concluo com o mesmo autor com que iniciei esta
exposição didática, Dom Cirilo Folch Gomes. Sua resposta
à pergunta, que ele mesmo propôs, aparece no último
parágrafo de sua obra citada: “Assim, um conceito se abre
para o outro. Compreendemos melhor o que sejam as
Pessoas divinas quando refletimos sobre a doação que nos
autoliberta, sobre a caridade que nos abre as portas da
autorrealização. E compreendemos melhor que
verdadeiramente a doação nos liberta e a caridade nos
realiza, se pensamos naquilo que são as divinas Pessoas”
(1979, p. 371). Usar cinco dedos para falarmos na Trindade
pode ser um modo didático e mnemônico útil, sobretudo
ao ensino. O importante, porém, é reconhecer que as
verdades reveladas sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
foram-no de modo progressivo, na economia da Salvação.
E mais, que a Trindade continua a ser mistério e é na
experiência do mistério, isto é, no culto, que conhecemos
e vivemos a dinâmica trinitária do amor de Deus.

GOMES, Cirilo Folch. A Doutrina da Trindade Eterna. Rio de


Janeiro: Lumen Christi, 1979.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. V. 1. São Paulo: Loyola, 2009.
VANIER, Paul. Théologie Trinitaire chez Saint Thomas d’Aquin: Pós-doutor pela Universitat
Évolution du Concept d’Action Notionelle. Paris: Jean Vrin, 1953. Autònoma de Barcelona e doutor
em filosofia pela Pontificia
Università San Tommaso, Carlos
Frederico Gurgel Calvet da Silveira é
professor titular da Universidade
Católica de Petrópolis e professor
agregado da PUC-Rio.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 13

Dossiê

Comunhão e Libertação no Brasil


Entrevista com o responsável nacional do movimento

E m 2022 comemorou-se o centená-


rio do sacerdote, professor e escritor
italiano Luigi Giussani. Seu nome es-
tá inteiramente vinculado ao movimento
que fundou, originado em seu apostolado
Essa intuição brotava dos encontros que
promovia com os jovens estudantes. De
fato, o que ocorria é que a frequência
religiosa não correspondia a uma prática
religiosa. A vida concreta, a cultura
na 1ª edição de O senso religioso nos anos
1980.
No livro ele propõe um percurso
epistemológico para que o leitor conheça
e se aproprie do que é o senso religioso,
com estudantes desde a década de 1950, o estavam sendo construídas por uma onde ele introduz 3 premissas: o realismo;
Comunhão e Libertação. Em seus escritos, mentalidade ateia e de esquerda. a razoabilidade, ou seja, o uso da razão e o
que alcançaram popularidade, trabalhou A ideia de senso religioso não nasce sentimento.
com o conceito de senso religioso, que propriamente com Giussani, mas com Ao introduzir o tema do realismo ele irá
parece ser uma resposta no mínimo Montini, àquela altura seu Bispo. Por volta citar um célebre frase de Alexis Carrel:
interessante, e que apresenta eficácia de 1956 Montini publicou uma carta “Pouca observação e muito raciocínio
pastoral considerável no atual contexto de pastoral falando sobre o senso religioso, e conduzem ao erro. Muita observação e
secularização da sociedade ocidental. a partir daí Giussani irá desenvolver pouco raciocínio conduzem à verdade.”
Resgatando a figura de Giussani e seu exaustivamente essa temática. A partir do que diz Carrel, ele quer afirmar
movimento, Scena Crítica foi ao encontro Portanto, o senso religioso é um traço que devemos privilegiar a observação à
de Alexandre Ferraro, professor da universal nos homens de todos os tempos dialética, ou seja, eu devo mais observar o
Faculdade de Medicina da USP, atual e culturas que se expressa em um objeto de meu conhecimento, no contexto
responsável no Brasil pelo movimento conjunto de exigências fundamentais, do senso religioso, mas o método se aplica
Comunhão e Libertação, que tem seu como as exigências da verdade, do amor, a qualquer outro objeto.
apostolado presente em pelo menos 40 da justiça e da beleza; e em evidências Mas o que é o senso religioso sobre o qual
cidades em todo o país. como, por exemplo, a evidência da própria nós devemos nos deter e observar? O
existência humana ou a evidência da senso religioso é uma experiência. A
Scena Crítica: Quem foi Luigi Giussani? realidade como um todo e que produz em realidade se manifesta na experiência. É
nós a percepção da existência do mistério. somente quando eu chego no nível da
Alexandre Ferraro: Nas palavras do Senso religioso, portanto, em última experiência que se manifesta a realidade.
próprio Giussani: um simples padre da instância coincide com a razão, é o ápice
Diocese de Milão. da razão. O senso religioso é, então, aquela
Toda a formação para o sacerdócio faculdade que há em nós que nos permite
ocorreu lá, de fato. A pedido do bispo, que olhando para o real percebamos o
quando ainda jovem sacerdote, tornou-se mistério.
professor de religião em escolas públicas.
Graças à formação que teve percebia o SC: Ao escrever sobre o senso religioso
cristianismo de tal forma que atraiu Giussani propões algumas premissas.
multidões. Essas pessoas a quem esse Você poderia falar de modo especial
cristianismo atraiu formou o que, hoje, sobre a premissa do realismo?
conhecemos como Comunhão e
Libertação, movimento que está espalhado Alexandre Ferraro: Ao longo dos
em mais de 80 países. anos D. Giussani foi aperfeiçoando
o conceito do senso religioso,
SC: Há um conceito central no especialmente a partir das
pensamento de Dom Giussani que é o aulas que ministrou na Univer-
Senso Religioso. Do que se trata? sidade do Sacro Cuore e
que acabaram resultando
Alexandre Ferraro: Giussani era
considerado para ser um teólogo de vida
acadêmica devido ao seu particular
pendor aos estudos. O ambiente que o
rodeava na Itália dos anos 1950 era de
aparente otimismo com relação à
presença da Igreja na sociedade. A religião
estava presente na educação pública, era
muito bem representada na política pela
Democracia Cristã, as igrejas se
encontravam cheias, etc. No entanto, D.
Giussani já intuía que todo aquele
aparente ambiente de hegemonia eclesial
não se sustentaria por muito tempo. É
importante frisar isto, porque, ainda hoje,
temos a tentação de nos acomodarmos
quando percebemos que um movimento
ou outra realidade qualquer na Igreja está
sendo bem-sucedida numericamente, o
risco é de estarmos promovendo um falso
diagnóstico da realidade. Para D. Giussani
o fator numérico realmente não era um
critério.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 14

Giussani não é, em termos filosóficos, um A mesma exigência de libertação que o muito mais lenta, pois vai de pessoa em
realista, no sentido em que só há a mundo vivia nos anos 1960 e percebe-se pessoa, mas no fim é muito mais eficiente,
realidade e o sujeito não conta. Não, para que é a comunhão cristã a melhor pois a transformação é autêntica.
ele o conhecimento é um encontro correspondência a esse anseio. Então, o
misterioso do sujeito com a realidade, que era um movimento de estudantes SC: Podemos dizer que houve, em
portanto um conjunto dessas duas coisas. secundaristas começa a ficar muito mais algum momento, uma coincidência
presente no ambiente universitário, já com entre Comunhão e Libertação e a
SC: Gostaria que você aprofundasse um o nome de Comunhão e Libertação. Democracia Cristã?
pouco mais sobre esse conceito de Um fato interessante é que, já em 1974, o
experiência. Cardeal Arns de São Paulo, em visita a Alexandre Ferraro: Esta é uma questão
Milão, contatou Giussani para levar o muito importante, pois foi assim que o
Alexandre Ferraro: Experiência não é movimento à pastoral universitária de São movimento foi taxado por décadas, sem,
simplesmente viver e passar por situações. Paulo e assim ele chega ao Brasil já nos no entanto, nunca ter sido assim. Giussani
Experiência implica em algo fora de mim, anos 1970. É interessante notar que o sempre manteve uma saudável distância
que em mim produz a compreensão do movimento chega ao Brasil com aspecto disso, mas como era um movimento
significado do vivido. Esses dois fatores são de pastoral universitária. Já havia uma numericamente expressivo e cheio de
necessários para chegar no nível da certa resistência em Giussani de exportar o jovens competentes, os bispos pediam dos
experiência. método comunhão e libertação, pois ele, membros apoio à Democracia Cristã.
como padre diocesano, compreendia que Giussani não queria entrar na polêmica
SC: O movimento iniciou a partir da as suas atividades deveriam estar restritas sobre o plebiscito do divórcio na Itália,
experiência de Giussani como professor à Diocese de Milão. mas por obediência aos bispos italianos
secundarista e da Juventude Estudantil Com a eleição de João Paulo II houve uma acabou adentrando na polêmica em que a
grande sintonia com Giussani, até que em Igreja saiu perdedora. Então havia uma
Católica. Como o movimento se
1984, o Papa vai finalmente identificar ligação por obediência de Giussani à
distinguiu de uma ação exclusiva para
Comunhão e Libertação como um carisma hierarquia. Nos documentos, comunicados
estudantes e se tornou um movimento
e faz o apelo a que o movimento se oficiais e pronunciamentos é possível
de espiritualidade abrangente? espelhasse pelo mundo. Então o Papa perceber que ele nunca acreditou nessa
universaliza um carisma que na cabeça de união. Ele ensina que não se deveria
Alexandre Ferraro: Giussani nunca quis Giussani era algo restrito ao contexto acreditar nela. Mas na prática muitos,
criar um movimento. Ele não teve uma italiano. especialmente de esquerda, acreditam
intuição, como ocorreu com outros
que o movimento coincidia com a
funadores. Giussani era o assistente da SC: Fale um pouco do cenário do Democracia Cristã ou era seu braço
Ação Católica Estudantil, que era movimento no Brasil. eclesial.
fortíssima naquele período na Itália.
Em seu estilo de estar com os jovens
Alexandre Ferraro: O movimento no SC: Como está a situação do Movimento
estudantes, pela insistência na experiência
Brasil existe em mais de 40 cidades após o pedido de reformas do Papa
e nesse diálogo aberto, já que ele era um
espalhadas de Norte a Sul, e estou como Francisco?
homem de profundo diálogo ecumênico e
responsável há 3 meses.
cultural, muitos começaram a segui-lo.
No Brasil, por motivos históricos, os nossos Alexandre Ferraro: De fato há 3 anos o
Basicamente até os anos 60 era
abraçaram a necessidade de demonstrar Papa Francisco pediu a todos os
fundamentalmente um grupo da Ação
que a justiça social é mais bem alcançada movimentos e expressões leigas algumas
Católica da Diocese de Milão. No final dos
a partir da comunhão eclesial do que pela alterações que nasceram da avaliação
anos 60 com a revolução cultural de 1968,
mudança das estruturas. Há uma frase que dessa experiência nova que foram os
muitos abandonaram esse grupo, no
sempre repetimos: “ Aquilo que muda as movimentos. Todos os movimentos
entanto uma parcela significativa que
estruturas é o mesmo que muda o coração começaram a partir do século XX, e depois
levava a sério o desejo de libertação que
do homem”. Então, em última análise, nós de algum tempo dessas experiências já é
era a tônica daquele momento,
servíamos no Brasil de antítese à teologia possível à Igreja fazer uma avaliação do
perceberam que encontravam com
da libertação. Foi esse o movimento que status dessas organizações, sobretudo no
experiência que faziam junto a D. Giussani
eu conheci, em 1984, como calouro da aspecto do Direito Canônico. No fundo, é
uma resposta concreta a esses anseios de
faculdade de medicina. Portanto, havia de pensar como a Igreja hierárquica se
libertação. Essa libertação se encontrava
um lado a teologia da libertação, e de relaciona com a dimensão carismática. Há
pela comunhão vivida no seio da Igreja.
outro o Comunhão e Libertação todo um diálogo entre hierarquia e
Portanto é a partir da comunhão que
procurando responder às mesma questão carisma. Isso é muito próprio da Igreja
nasce a libertação.
de pontos de vista Católica, se pensarmos, por exemplo, em
opostos. São Francisco de Assis, São Domingos,
É interessante notar que, Santo Inácio… Há sempre um diálogo com
hoje no Brasil, sem esses carismas que vivem renovando
exageros, centenas de periodicamente através do apelo da Igreja.
milhares de pessoas são A originalidade é que o século XX fez com
beneficiadas pela atuação que esse movimentos “carismáticos”, no
social do movimento. Isso sentido mais amplo da palavra, fossem de
prova, então, que a leigos, o que traz um certo ineditismo,
intuição estava certa, de inclusive no aspecto jurídico.
que o amor à Igreja, à sua Por isso o Papa pede algumas mudanças.
tradição e à sua Talvez a principal seja que os presidentes
hierarquia, ou seja, de que dos movimentos passam a ter um
aquilo que o muda as mandato de 5 anos com direito a somente
estruturas é o mesmo que uma renovação.
muda o coração do No dia 15 de outubro do ano passado,
homem que é o encontro portanto no início da comemoração do
com Jesus Cristo, isso centenário de D. Giussani, o Papa
chega ao nível da Francisco, dirigindo-se aos membros do
transformação social. É movimento presentes na Praça de São
muito diferente, Pedro, disse que a Igreja e o Papa esperam
certamente, do processo mais de nós e recordou que ainda há
revolucionário, é inclusive muito do carisma a ser compreendido,
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 15

recordando, portanto, que estamos apenas Dos meus alunos que começam a
no início. frequentar o movimento 99% deles são
A reforma estrutural que é pedida, nós ateus. Então, em geral, quem se atrai pelo
compreendemos que seja um enorme carisma do movimento são pessoas que
chamado à corresponsabilidade, todos são estão muito distantes da Igreja. Em todos
chamados a ser corresponsáveis por esse os homens há um traço da Verdade de
carisma. Sendo assim, o estatuto está Cristo, então todos ou autores, todas as
sendo revisado, nós estamos finalizando o expressões artísticas nos interessam.
novo estatuto que perecisa ser aprovado Fazer um caminho, demonstrando que
pelo Dicastério responsável em Roma. De todo gênio artístico, independente até da
nossa parte essa revisão deve estar pronta sua posição ideológica, é profeta de Cristo,
até o fim deste ano, mas o tempo total vai é entusiasmante para todos, mesmo para
depender das aprovações da Cúria quem não tem fé, e acaba se sentindo
Romana. muito atraído.
Às vezes aqueles que já têm fé preferem
SC: No início do pontificado de ficar em grupos de estudo bíblico ou de
Francisco se levantou que haveria uma “louvor”, enquanto os que não têm se
relação de Bergoglio com o movimento mostram mais entusiasmados em fazer
na Argentina. Como de fato era essa este percurso.
relação? A expressão comunitária do movimento
também é outro fator fortemente atrativo.
Alexandre Ferraro: O Papa conhecia É uma experiência de pertença a uma
muito bem o movimento, especialmente a comunidade que é Corpo de Cristo. O meu
partir dos anos 1990, portanto mais de 30 encontro com Cristo em carne e osso é a
anos de relação. Ele tinha uma grande comunidade cristã. Isso tudo somado a
afinidade com o pensamento de Giussani, nossas atividades culturais e festas é muito
especialmente sobre o senso religioso, mas atraente aos jovens.
não só, também uma grande proximidade Então, em síntese, seria: abertura cultural,
na forma de pensar a figura de Cristo, capacidade de dialogar sem preconceitos
com o mundo contemporâneo e a força
inclusive tendo prefaciado os dois livros.
comunitária, pois apostar tudo na força do
Bergoglio há mais de 30 anos possui uma
indivíduo, como se o cristianismo fosse um
afinidade com o movimento, não muitos
mais do que isso. A proximidade de heroísmo, para o homem ferido do século
Francisco vem da leitura de Giussani, XXI, resultará em menos sucesso.
diferente dos últimos dois papas: João
Paulo II e Bento XVI. Ratzinger e Giussani
eram muito próximos, tanto que ele pediu
que nossas Memores Domini cuidassem da
sua casa, demonstrando assim a grande
estima que nutria pelo movimento.
Francisco nutre estima, mas essa estima
nasce mais das leituras de Giussani, que
como ele mesmo diz, o ajudaram e
formaram.

SC: Como é a sua experiência em


relação ao apostolado na Universidade,
sendo do movimento e ao mesmo
tempo professor?

Eu sou médico, mas me dedico apenas ao


magistério, uma vez que sou professor de
medicina da USP. Não tenho mais
consultório, não faço clínica, sou apenas
professor universitário.
Diferente da minha época de estudante,
onde havia um certo anticlericalismo, já
que, de certa maneira, a Igreja ainda era
uma presença social com a qual era
“necessário” entrar em choque, o jovem
universitário de hoje está a quilômetros de
distância da experiência religiosa, tomado
de um indiferentismo total. Isso, pela
minha experiência, parece ter tornado
muito mais fácil a nossa missão, a nossa
pastoral, pois havia um preconceito que
não há mais. Foi a geração dos pais desses
estudantes que rejeitou a religião.
Resultou que há um profundo
desconhecimento da cultura religiosa,
portanto vejo de forma positiva a situação.
Há uma abertura, pois há todo um mundo
a ser evangelizado do zero.
A vida da comunidade cristã é tão bela
que se torna humanamente atraente, pois
é bom estar juntos, é belo estarmos juntos.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 16

Livro aberto
O MÉDICO E O MONSTRO
na verdade, a mesma pessoa.
Robert Louis Stevenson Numa tentativa de burlar o
que propõe a teoria de Freud,
Jekyll elabora uma poção que

O
o permite se transformar em
médico e o monstro ou O estranho caso do dr. outra pessoa, um alter ego, seu
Jekyll e do sr. Hyde é uma novela gótica escrita gêmeo maligno. Hyde é a
por Robert Louis Stevenson e publicada em 1886. A
corporificação do lado sombrio
obra ficou conhecida por tratar do tema do duplo ou sósia,
da personalidade de Jekyll,
revelando que todos nós temos um lado bom e um lado mau.
enfim libertado depois de
Essas partes, apesar de opostas, seriam indissociáveis e
tanto tempo recalcado no
complementares, compondo a mais genuína natureza
fundo de seu inconsciente. Seu
humana.
objetivo era dar vazão às às
Todos nós temos características das quais não nos orgulhamos.
pulsões reprimidas de seu
Defeitos que buscamos esconder a todo custo para
duplicata, garantindo, ao
recebermos aprovação daqueles que admiramos. Assumimos,
mesmo tempo, que sua
muitas vezes, uma espécie de máscara social, na intenção de
imagem social não fosse
performar algo que não somos. Freud, em seu livro “O mal-estar
maculada. Dessa forma, Hyde
na civilização”, afirma que a vida civilizada pressupõe o
funcionaria como uma espécie
recalque das pulsões e a submissão do princípio de prazer ao
de álibi.
princípio da realidade. Isto é, o homem teria aberto mão de
Se cada um, pensei, pudesse ocupar identidades distintas, a
sua felicidade para viver em segurança na sociedade. E é sob a
vida seria aliviada de tudo que é insuportável, o injusto seguiria
luz dessa dicotomia que se inicia essa história. seu caminho, livre das aspirações e do remorso de seu gêmeo
Dr. Jekyll é um médico muito respeitado e conceituado pela mais digno; e o justo poderia percorrer com passos fortes e
sociedade britânica. No entanto, há algum tempo, ele vem seguros seu caminho ascendente, praticando as boas ações que
despertando a suspeita de seu advogado e amigo pessoal, o sr. lhe dão prazer, não mais exposto à desgraça e à penitência
Utterson. Tudo começa quando Jekyll, em seu testamento, causadas por obra daquele mal extrínseco. A maldição da
humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem
concede plenos poderes, em caso de morte ou
sido amarrados juntos — que no ventre angustiado da
desaparecimento, a um sujeito chamado Edward Hyde. O consciência aqueles gêmeos opostos lutem continuamente.
problema está na (má) fama de Hyde, um homem de (STEVENSON, 2022, p. 125-126).
comportamentos, no mínimo, estranhos, sempre envolvido em
A história de Jekyll e Hyde nos mostra que o bem e o mal são
atos violentos e criminosos. O leitor embarca em uma
intrínsecos à natureza humana, portanto, indissociáveis e
inquietação junto a Utterson para descobrir: afinal, qual é a
complementares. O admirado médico sucumbiu graças a sua
ligação entre dois sujeitos de personalidades tão distintas
ganância, pois tornou-se obcecado pela própria persona, tal
e tão incompatíveis?
como Narciso se apaixonou pela imagem refletida no lago.
A palavra estranho não está no título à toa: a relação entre Como em um episódio de Scooby-Doo, o monstro da história
Jekyll e Hyde é estranha; a aparência e comportamento de era, na verdade, humano. Um ser humano incapaz de assumir
Hyde são estranhos; a súbita mudança de hábitos de Jekyll é suas fraquezas e de sustentar quem realmente era.
estranha. Entramos no campo do insólito, onde nada é como
espera-se que seja. No lugar da ordem, o caos. No lugar da O mal que Hyde encarna não é externo a Jekyll, não vem como
um componente da poção preparada e ingerida por ele. O
luz, as trevas. Há algo misterioso pairando no ar, circulando
monstro emerge do próprio Jekyll, é seu corpo que se
pelas ruas de Londres a noite. E nós seguimos no encalço do transforma no monstro simiesco que resulta em Hyde. O
dr. Utterson, que encarna o detetive e sai numa verdadeira ca- monstro, o mal, não vem de fora, vem de dentro do círculo do
ça às bruxas, ou melhor, ao bem representado por Jekyll. Bem e Mal não configuram um
monstro. dualismo para Stevenson, mas uma dualidade, ambos provêm
O sr. Hyde era pálido e da mesma matéria-prima. Jekyll e Hyde não são dois seres, mas
quase um anão, dava a dois modos de ser. (GARCIA-ROZA, 2022, p. 14-15).
impressão de ser aleijado, A dinâmica entre aquilo que é recalcado e aquilo que é
sem nenhuma deformidade revelado é a base das relações entre indivíduo e sociedade. A
identificá-vel, possuía um
natureza é repleta de dinamismos. Bom e mau. Moral e imoral.
sorriso
desagradável,comportara- Amor e ódio. Vida e morte. O equilíbrio está no jogo de cintura
se diante do advogado que fazemos para andar na corda bamba.
com um misto execrando
de timidez e ousadia, e
falava com uma voz rouca, STEVENSON, R. L. O médico e o monstro: o estranho caso do dr.
sussurrante e pouco fluida; Jekyll e sr. Hyde. São Paulo: Penguin Companhia, 2021.
todos esses pontos
depunham contra ele mas
nem todos juntos podiam
explicar a repugnância, o
ódio e o medo que
inspirava no sr. Utterson e
que ele nunca sentira antes.
(STEVENSON, 2022, p. 75)
Julia Rocha, 24 anos, formada em
O grande plot twist da licenciatura em Letras Portugês-
narrativa acontece quando Literatura pela UFRJ.
o mistério é finalmente
revelado: Jekyll e Hyde são,
Out-dez 2023 | Scena Crítica 17

Ágοrα Inspirando a nova geração...


O ano de 2023 marca os 130 anos do

Praça de divulgação literária


nascimento do grande poeta alagoano Jorge de
Lima (1893-1953), autor de obras como Poemas
Negros, Tempo e eternidade e Invenção de
Orfeu.

No mar Distribuição da Poesia

No mar eu te encontrei, Mel silvestre tirei das plantas,


e te amei. sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Sobre as ondas eu amei. Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
Meu Pranto para oferecer ao Senhor.
Os ventos conspiraram, Não tirei ouro da terra
O que dizer sobre você? ao nosso favor. nem sangue de meus irmãos.
Companheiro há tantos anos A favor do nosso amor. Estalajadeiros não me incomodeis.
Vimos juntos o crescer dos ramos Bufarinheiros e banqueiros
Os ramos, tantos ramos, do meu ser Ondas fortes entre, sei fabricar distâncias
as ondas flutuei. para vos recuar.
Meu pranto, sincero e sofrido E no mar eu te amei. A vida está malograda,
Libertador e aguerrido creio nas mágicas de Deus.
Esclarecedor dos medos distantes Amei no mar. Os galos não cantam,
(Inverossímeis guardados nas estantes) Sobre as ondas amei. a manhã não raiou.
Eu achei que esse poema seria sobre você No mar eu amei. Vi os navios irem e voltarem.
(Mas não é) Vi os infelizes irem e voltarem.
Sentir o mar. Vi homens obesos dentro do fogo.
Aqui, eu presto o meu agradecimento Amei no mar. Vi ziguezagues na escuridão.
Por sempre estar disposto E fui feliz ao ar. Capitão-mor, onde é o Congo?
A todo e qualquer momento Onde é a Ilha de São Brandão?
A descer pelo rosto Capitão-mor que noite escura!
E me permitir ver Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
Que você não é um “amigo” qual o país que desejais?
Mas é um “querido conhecido” Mel silvestre tirei das plantas,
Que, por vezes, me fornece abrigo sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Depois de um tempo transcorrido Só tenho poesia para vos dar.
(Acho que é assim, não é?) Liécifran Borges Martins é compositora, Abancai-vos, meus irmãos.
escritora, poetisa e parodista. Técnica em
Sofia Brunstein é membro da União Brasileira Química pelo Instituto Federal do Espírito In: Tempo e
de Escritores do Rio Grande do Sul e autora de Santo (IFES)
eternidade, 1935
Arquivos Escritos (Editora Alcance, 2021).

Cançonetista

Enquanto a chuva não chega ao sertão,


Sabiá canta triste - no quintal
A dor que chora e clama pela vida,
O Sul Verdadeira maestria lacrimal.
O Sol que racha, queima e alumia,
Hoje a lua nasceu no lado contrário Estimula o lamento da graúna.
Não sei se ela estava errada Sofredoras e tristes lamúrias,
Ou se finalmente eu acordei Acrescenta aos lamentos de reúna.
(E olhei) E quando o astro vai sumindo no horizonte,
Para o lado certo. A carimbamba logo enceta seu penar.
Dando à noite perfeita melodia
Guilherme Nélio F. Chapini, nascido no Estimando a Lua que bela pousará.
interior de Goiás, 30 anos, escreve, cria e
Gustavo Rodrigues de Moura, nascido em Gostaria de ter seu texto divulgado na
acredita no poder da arte, do amor e da
Ágora? Confere lá no nosso site
alteridade e age nesse sentido. Teresina-PI, é professor, músico e escritor.
(https://scenacritica.my.canva.site/) as
Acadêmico de Letras-Português, vê na regras para submissão. Poemas, cronicas,
educação a chance de mudar o mundo. contos, resenhas, todos tem espaço em
nossa praça de divulgação literária.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 18

Dignidade Humana e Boa Vontade


Uma reflexão em Kant

O presente texto é resultado de um Trabalho de con-


clusão de Curso apresentado no ano de 2022 na
Universidade Católica de Petrópolis – RJ, sendo
orientado pelo professor Daniel Leite da mesma
universidade. Este trabalho visava responder à pergunta:
formulação é o critério que deve ser utilizado para uma
decisão moral.
O segundo modo é a fórmula da humanidade como fim
em si: “Aja de tal modo a tratar a humanidade, tanto em
sua pessoa como na de outros, como um fim e nunca
somente o homem com boa vontade (ou bom caráter) apenas como meio”. Pode-se constatar aqui a lei
pode ser entendido como sendo digno? Essa reflexão foi autoimposta pela razão, livre da sensibilidade. A ação deve
feita utilizando a obra Fundamentação da Metafísica dos ser realizada considerando a si mesmo como digno e aos
Costumes (FMC), de Immanuel Kant (1724 – 1804). demais também.
Nesta obra, Kant revela a capacidade do ser humano em O terceiro modo é a fórmula “a ideia da vontade de todo
não ser um meio para se realizar alguma coisa, mas sim ser racional como uma vontade legisladora universal”.
um fim em si mesmo. Esse conceito de dignidade está Este último princípio será substituído a se-
diretamente relacionado à questão do valor, por ser a guir pela formulação do reino dos fins, a
dignidade algo que não tem preço e nem pode ser saber, “que toda máxima originada de
negociado ou trocado por outra coisa. nossa legislação deve harmonizar em
Também buscamos analisar aqui a interpretação de Oliver um reino de fins, com um reino da
Sensen do conceito kantiano de dignidade, segundo a natureza”. A segunda e a terceira
qual a dignidade estaria atrelada ao bom caráter, ou fórmulas aproximam a razão da
ainda, que só seria digno aquele que possui bom caráter intuição, de tal
(ou boa vontade), algo que tornaria o conceito kantiano modo que o
bastante controverso, não apenas no campo acadêmico, imperativo cate-
mas também no campo prático das ações humanas. O que górico possa ser
seria ter uma boa vontade? Utilizar-se de uma vontade mais facilmente
que não fosse boa não feriria a própria dignidade do ser? aceito.
Quando uma pessoa
Os Conceitos de Boa Vontade age bem com outra
e Dignidade Humana em Kant pessoa apenas para
parecer ser boa peran-
Kant evoca o conceito de boa vontade já na primeira frase te as outras pessoas, ela
da obra FMC: “Neste mundo, e até fora dele, nada é está agindo sob a condição,
possível pensar que possa ser considerado como bom sem imposta por uma inclinação,
limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”. de que “é necessário agir bem pa-
Todos as demais coisas que poderiam ser tomadas como ra ser bem visto por outra pessoa”.
boas, chamados por ele, talentos do espírito, a saber, Na visão kantiana, a pessoa que
discernimento, capacidade de julgar, argúcia de espírito está sendo ajudada está sendo
ou ainda as qualidades do temperamento, como coragem, um meio para se obter algo, e
decisão, constância de propósito são coisas boas e não um fim. A pessoa que
desejáveis, podem ser más e prejudiciais se a vontade não age dessa forma também faz
for boa, se o caráter não for bom. de si mesma um meio e não
Para entender o conceito de Kant para a dignidade um fim.
humana faz-se necessário explicar os imperativos Como, para o filósofo, a digni-
hipotéticos e categóricos. Os imperativos hipotéticos dade possui valor em si, a
mostram apenas a conexão entre um meio e um fim, pois, dignidade do homem na visão
se é desejado o fim, também se deseja o meio para obtê- kantiana mostra a ideia de
lo. O que é necessário, por exemplo, quando se deseja que ele é um fim em si mes-
fazer um bolo. Para tal, é necessário que se aprenda a mo, e não um meio. O
cozinhar e também como utilizar as receitas de modo que homem não pode ser um
saia o resultado final, o bolo pretendido. Essa necessidade mero meio para algo porque
é só para aqueles que desejam fazer o bolo, não é algo possui a faculdade de liber-
universalizável. Uma pessoa pode viver sem aprender a dade e razão.
fazer um bolo, não uma lei, portanto. Quanto ao
Irina Borsuchenko / Shutterstock.com

imperativo categórico, este obriga, de maneira Os conceitos kantianos de


incondicionada, que o comando seja obedecido. Como por dignidade humana segundo
exemplo, salvar a vida. Na segunda parte da FMC, Kant Oliver Sensen
oferece três formulações do princípio de moralidade. Essas
formulações são formulações de um mesmo imperativo Sensen aborda no terceiro
categórico. capítulo de seu livro,
O primeiro modo, ou formulação, do imperativo categórico Kant on Human
kantiano é a fórmula da lei universal: “Aja somente com Dignity, a fórmula kan-
aquela máxima através da qual você pode ao mesmo tiana da humanidade.
tempo querer que se transforme em lei universal”. Esta Inicialmente ele apre-
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 19

apresenta uma interpretação de passagens textuais que motivo é o dever, fica entendido que é o indivíduo que, em
levam ao conceito da fórmula da humanidade. Já na sua racionalidade, encontra o dever que move a sua boa
segunda seção aponta que a fórmula é uma “ordem direta ação. Portanto, os conceitos morais estão a priori na razão.
da razão”, não sendo justificada através da referência a um E somente o dever é o motivo que faz com que a ação seja
valor. Na seção seguinte aborda a aplicação dessa fórmula boa. Caso a finalidade seja o motivo da ação, esta torna-se
e então discute, na última seção, a principal objeção egoísta. Ora, a partir do momento que o indivíduo age
contra a fórmula da humanidade, segundo a qual ela seria contra o dever, não pratica a boa ação, está cometendo o
vazia e destituída e conteúdo. equívoco contra a sua própria razão.
Robinson dos Santos, em seu texto Sobre autonomia e Tomando esse assunto para a discussão, toma-se o
dignidade como base para justificação dos direitos exemplo: se o indivíduo não se eleva ao patamar de sujeito
humanos, mostra que o problema fundamental que digno por não ter boa vontade, essa ação pode ser
motivou o trabalho de Sensen foi o de entender se os seres universalizada? Não faria sentido na própria dinâmica que
humanos são respeitados por terem dignidade ou se eles Kant propõe. Não teria fundamento com o que ele expõe
têm dignidade por serem respeitados. Caso a primeira em seu texto. Seria uma contradição ao que ele escreve.
afirmação fosse considerada, então está se tratando da Todo e qualquer ser humano pode cair em contradição
interpretação tradicional do conceito de dignidade. A com a sua razão.
dignidade é o fundamento do respeito. Já tomando a Nessa perspectiva, Tonetto atesta que na Doutrina da
segunda possibilidade tem-se uma compreensão Virtude, Kant também escreve que não se deve negar o
totalmente oposta à primeira, pela qual a dignidade respeito ao homem vicioso e nem negar o seu valor moral,
decorre do mandamento do respeito que tem a sua pois “de acordo com esta hipótese ele jamais poderia vir a
origem na razão. ser corrigido, o que é incompatível com a ideia de um
homem que, enquanto tal (como ser moral) não pode
nunca perder a disposição para o bem”. Portanto, isso vai
contra a ideia de Sensen sobre só ter dignidade aquele
que possui boa vontade. Até mesmo o indivíduo com
comportamento vicioso deve ser respeitado. Ele também
possui dignidade e não pode ser tratado como mero meio.
A ética kantiana possui entre os seus deveres o respeito
incondicional à dignidade do outro, não colocando como
limitador a boa vontade das suas ações.

Conclusões

Pode-se concluir que a dignidade em Kant não possui


como limitante a boa vontade, ou o bom caráter. Como o
próprio filósofo afirma, até o homem com os piores vícios
devem ser respeitados. Posicionamo-nos assim contra a
ideia de Sensen de que a boa vontade determina se o
indivíduo é ou não digno.
Entende-se assim que tratar a humanidade como fim em
si mesmo com o devido foco na dignidade tanto
representa deveres quanto direitos para o indivíduo. O
respeito pelas pessoas é um ato horizontal, e não vertical.
Não há elevação daquele que é mais virtuoso em relação
ao que é menos virtuoso. O imperativo categórico
kantiano, que norteia o princípio do respeito pelos outros,
é fundamental pois dá luz a uma dignidade incondicional
e intrínseca que pertence a cada indivíduo e que conecta
cada ser humano um com o outro em uma sociedade
onde todos devem respeitar-se mutuamente.
O estudo sobre o pensamento de Kant acerca da
dignidade é muito importante ainda hoje, principalmente
no que diz respeito aos direitos humanos. E ao afirmar que
Para Sensen, o ser humano deve respeitar o até os menos virtuosos devem ser respeitados,
outro pois isto lhe é ordenado pelo imperativo considerando a sociedade atual que ainda nega tantos
categórico presente na fórmula da humanidade. Os direitos a tantas pessoas que são excluídas e não possuem
direitos não são fundados no valor dos seres humanos. seus direitos respeitados, pode-se constatar que o ato de
Como na FMC Kant diz que o valor intrínseco é “elevado tomar o outro como fim em si mesmo e não como um
sobre todo preço”, “não admite um equivalente” e “não tem meio acaba por trazer uma luz filosófica ao tema.
um valor meramente relativo, mas um valor incondicional
e incomparável”, os seres humanos têm dignidade, mas
não como valor absoluto ou intrínseco, segundo a visão de
Sensen, já que para ele não é a humanidade que possui
um valor absoluto, mas sim a moralidade. Um indivíduo
não deve respeitar os demais porque eles possuem
dignidade, mas a relação é oposta, eles possuem
dignidade e valor porque devem ser respeitados.

Uma análise sobre dignidade e boa vontade

Se para Kant a ação ser boa depende de que ela não seja
praticada sem qualquer finalidade específica, com a razão Tiago Cavalcante é graduado em
Filosofia pela Universidade Católica
utilizando-se de um motivo a priori que está nela mesma de Petrópolis – RJ, onde atualmente
de tal modo que dirija à vontade e pratique a ação, e esse é graduando em Teologia.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 20

Entre axé e salaam


A influência de práticas islâmicas no Candomblé do nordeste brasileiro

A
aparição e disseminação do Islã em África se dá a século X, Zitouna em Tunis, Al-Quaraouiyine em Fés,
partir do século VII na Etiópia e progressivamente Djenné e Tombuctu , Pirés...) e mesquitas que tinham
para o resto do continente africano no século se- papel fundamental no processo de islamização e de
seguinte seguindo as rotas comerciais seculares, prática do Islã, não só na região da Senegâmbia, objeto de
sobretudo no caso da África Ocidental. Por muito tempo Mota, mas também em outras partes do continente.
teve-se o entendimento de que a religião ao chegar ao (MOTA 2014:341). É importante salientar que as instituições
continente africano, principalmente, na África subsaariana, de ensino formaram excelentes eruditos que circulavam
teria tomado características diferenciadas do seu entre a África - o mundo ibérico e o Oriente.
“original”, o que foi chamado por estudiosos franceses A adesão do Islã no continente africano teve vieses
(sobretudo Vincent Monteil no seu livro L´Islam Noir) diversos, justamente por se engendrar na pluralidade de
como Islam Noir, ou Islã Negro. Contudo, é importante sociedades’ existentes, mas boa parte da literatura sobre o
salientar que desde o seus surgimento, as práticas do Islã assunto aponta uma inserção bastante pacífica,
foram sendo modelas segundo os contextos linguísticos e principalmente anterior ao período das jihads, guerras
culturais. santas islâmicas, começarem a tomar espaço na neste
Esse tipo de “classificação” é claramente resultado do espaço da África. Thiago H. Mota elucida que até o século
imperialismo francês, como aponta Thiago Henrique Mota XVII, anterior à chegada de religiosos guerreiros, os
em seu artigo Questões sobre o processo de islamização conhecimentos islâmicos sofriam uma “releitura” para
na Senegâmbia (1570-1625). Neste mesmo texto, Mota adequar-se aos contextos culturais e políticos locais,
pontua as problemáticas acerca desse conceito garantindo um dinamismo e particularidade do Islã
esclarecendo que o Islã encontrado na África negra é tão subsaariano, porém sem perder sua essência. (MOTA
legítimo quanto o Islã árabe. Porém, é necessário 2014:351-352) Esse engendramento entre Islã e cultura
relativizar a fala do autor na medida em que para o Árabe, tradicional desde África tem um grande peso e fará
o africano era e ainda continua sendo um muçulmano diferença na hora de analisarmos o tema do trabalho aqui
inferior. Á prova disso é a lei muçulmana que sentencia proposto. Contrariamente às afirmações de Mota, é
que não se pode escravizar outro muçulmano, mas Árabes importante destacar que houve forte resistência à nova
e nem mesmo os “berberes” arabizados respeitaram isso. A religião. No contexto da África do Norte, segundo Sylvia
captura e a escravização de Ahmad Bhabha, por exemplo, Serbin em seu livro Les reines d´Afrique et les héroines de
levado para o Marrocos, um dos maiores eruditos do la diaspora noire, as mobilizações foram encabeçadas por
império do Mali, é bem ilustrativo. Kahina – uma rainha berbere – resistiram militarmente por
O autor afirma a permanência dos preceitos islâmicos mais de um século contra a penetração do islã.
originais em África ao observar que a prática islâmica Durante o período de tráfico Atlântico, foram
africana mantinha a doutrina dos chamados Cinco Pilares, transplantados africanos de diversas sociedades, culturais,
que seriam a shahadah ou profissão de fé, as cinco salats classes sociais, profissionais de ambos os sexos e de
ou orações diárias, o zakat que concerne à doação de diversas regiões. Com isso, também vieram escravizados
dinheiro e outros bens para necessitados, o jejum no mês que eram muçulmanos, enviados principalmente às
de Ramadan e o hajj, que é a peregrinação a Meca que regiões da Bahia, Rio de Janeiro e de Pernambuco [1].
deve ser feita pelo menos uma vez na vida por todo Essas pessoas foram chamadas de malês no Brasil do
muçulmano que tiver condições financeiras e de saúde século XIX. Muitos deles foram vendidos como escravos
para fazê-lo. Além disso, constatou também a existência por vencedores de conflitos locais ainda no continente
de escolas corânicas, universidades (Al-Azhar no Egito no africano, principalmente após a jihad feita pelo sheikh [2]
fulani Usman Dan Fodio (este é um dos seus
nomes registrados), contra os hauçás. Esses
africanos escravizados e vendidos pós esses
conflitos tinham características muito
particulares. Embora a escravidão não fizesse
distinção entre pobres e ricos, letrados ou não, de
prestígio ou não; os malês tinham uma formação
intelectual que muitas vezes era superior a dos
seus próprios senhores. Eram bilíngues, sabiam
escrever e até mesmo ensinar o árabe. Por conta
disso, sempre faziam parte dos grupos de
resistência por não aceitarem tal condição.
Foram eles que pensaram e articularam com
outros não muçulmanos o grande levante de
escravizados da Bahia conhecido como Revolta
dos Malês. É interessante pensar a perspectiva de
sociabilização de escravizados no nordeste
brasileiro através dessa revolta. Sua configuração
mostra de forma clara que embora houvessem
diferenças pessoais entre todos os envolvidos, o
senso de coletividade e necessidade de sobrevi-

Gravura do séc. XVIII representando


http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693
muçulmanos na região do Senegal.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 21

vência faziam com que os mesmos se ajudassem entre si,


principalmente em momentos de luta pela liberdade.
Alberto da Costa e Silva em seu texto Sobre a rebelião de
1835 na Bahia cita João José Reis que diz: “Se quisermos
definir resumidamente o movimento de 1835, podemos
dizer que a conspiração foi malê e o levante foi africano.”
(grifo feito por Reis) (SILVA 2002:10).
Após essa breve elucidação acerca do caminho dos negros
muçulmanos que saíram de África e chegaram ao nosso

http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693
nordeste, pensemos como a presença dos mesmos nesses
espaços, que já tinham considerada disseminação de
cultura religiosa africana tradicional, foi capaz de
influenciar as práticas do Candomblé. Contudo a
apreensão da flexibilidade e da fluidez nos trânsitos dos
espaços religiosos nos obrigam a tomar em conta a
existência desta facilidade na própria África como
também os efeitos das extremas brutalidades coloniais em
novas terras que forçavam fortes intercâmbios culturais
para que esses escravizados continuassem vivos e ao
mesmo tempo fortalecia os laços entre os infelizes. diversas formas de racismo e preconceito que assolavam e
Nos trabalhos acadêmicos analisados para este trabalho, ainda assolam a esmagadora maioria da população
brasileira descendente de africanos por fazer acreditar que
nos quais friso o baixo número de produções feitas até o
o negro africano foi o único a ser escravizado ao longo da
presente momento, apontando um campo fértil ainda a história moderna da humanidade. (KALY2016:130)
ser explorado, é observado que é praticamente impossível
precisar o momento em que essa dita influência começou É importante ressaltar que a troca religiosa e cultural
a acontecer entre ambos os objetos. realizada pelo Islã e o Candomblé dos escravizados em
A longa e terrível viagem abordo dos navios negreiros era nada deslegitima ambas as religiões; pelo contrário,
um dos primeiros passos na tentativa de desumanização mostra como o processo de construção e afirmação de sua
do africano escravizado. Ainda dentro desse ambiente estrutura em terras brasileiras tem marcas do que foi a
hostil, as pessoas tentavam criar redes de associação, escravidão e como a mesma propiciou que cada uma
comunicação e de sobrevivência. Trocas multilaterais que fosse o que é até os dias de
permeavam todos os âmbitos da vida, inclusive suas hoje.
crenças. O autor Waldemar Valente, citado no artigo de Claudia
Retomando ao que foi falando anteriormente sobre a Lima e outros, estuda a questão Islã x Candomblé muito
islamização do continente africano, podemos observar que bem. Ele, por exemplo, estudou possíveis ligações entre
o convívio entre Islã e cultura tradicional se deu de muitos ditos “amuletos” islâmicos, usados desde África, que eram
séculos, portanto, anterior ao período do tráfico Atlântico. compostos por um cordão com um pingente que se
Desta forma, as primeiras trocas entre essas duas assemelhava a um livreto e que continha versículos do
instâncias se iniciaram antes mesmo dessa longa viagem Alcorão com o uso de patuás bantos que guardavam unha
até o outro lado do oceano. e cabelo para fins de proteção e cura. Valente (1957:57-58)
Existem diversos relatos, de clérigos da igreja, periódicos, citado por Lima (2009:292) destaca também que em
autores do período e relatos orais que apontam para diversos xangôs pernambucanos que tinham forte tradição
resquícios de prática islâmica que parecem ter adentrado gêge-nago, foi possível observar uma prática corânica
ao exercício da fé de Candomblé. muito comum que proíbe o uso de bebidas alcóolicas.
No artigo, Negros Islâmicos no Brasil: interpretação do A autora Claudia Lima apresenta outros elementos
presentes na prática do Candomblé pernambucano que
Islã no Brasil de Lidice Meyer Pinto Ribeiro a autora cita o
lembram exercícios de fé islâmicos. Lima cita que uma
estudioso Arthur Ramos, que acerca da interação entre o
dona de casa [de santo] de braços cruzados faz uma
Islã e religiões tradicionais diz: “O islamismo dos negros
reverência dizendo a frase Barica da Subá môtumba, que
malês do Brasil sempre esteve eivado das práticas
significa “meus respeitos”. (LIMA 2009:297). No Islã durante
religiosas africanas.” (RIBEIRO 2011:150) E Ribeiro ainda
a salat os muçulmanos sunitas ficam com as mãos sobre o
reafirma que tal fenômeno havia se iniciado ainda em
África, como apontado anteriormente. peito quando estão de pé, em uma postura de respeito a
Em outro artigo igualmente interessante, da autora Allah. O costume de tocar o chão e passar as mãos no
Claudia Maria de Assis Rocha Lima, de título Heranças rosto no rito de Candomblé nagô pernambucano também
se assemelha muito a prática da salat muçulmana que
Muçulmanas no nagô de Pernambuco: construindo mitos
pratica ambos durante a reza. Prostra-se à Allah ao mesmo
fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Lima
tempo em que se diz a expressão Allahu Akbar [3] em
inicia seu texto com elucidações um pouco problemáticas
reconhecimento a grandeza de Deus e passar as mãos no
envolvendo a questão do conceito de Islã Negro. Para ela
rosto para os muçulmanos e depositar as bênçãos que
“o islamismo negro é uma religião sincrética” (LIMA
Allah enviou aos fiéis durante a oração nas suas vidas.
2009:285), porém, como já foi aqui elucidado, essa
Lima também diz que:
afirmação reforça a ideia imperialista francesa de que o
Islã da África subsaariana é inferior, como se o praticado Outras evidências nos fazem supor que a arquitetura dos
terreiros, que surgiram no Brasil tem uma ligação com a
nessas regiões fosse apenas um islamismo completamente
disposição das mesquitas muçulmanas. Nas mesquitas,
afastado dos seus preceitos originais. E, como já foi homens e mulheres retiram os sapatos e dirigem-se a áreas
apresentado, no trabalho de Thiago Henrique Mota, pode- separadas, onde tapetes para orações são estendidos. Na
se ver que a situação é bastante diferente. maioria dos terreiros, estão estabelecidos os locais dos
A perpetuação desse tipo de discurso, de fato, gera ecos homens e das mulheres, tanto para assistência, como para
de desvalorização que acabam for favorecer manutenções os integrantes do culto. (LIMA 2009:299)
de imaginários sociais que o utiliza para perpetuar uma O babalorixá Eurico Ramos em seu livro Revendo o
brutalidade. Alain Pascal Kaly elucida isso claramente Candomblé: respondendo perguntas mais frequentes
quando diz: sobre a religião aponta diversas possibilidades de
O silêncio passou a contribuir bastante na periferização e assimilações islâmicas dentro dos terreiros. Ramos fala
invisibilização das contribuições da civilização árabo-
primeiramente sobre o xirê, palavra em ioruba que
muçulmana na formação da identidade nacional; também
contribuiu ideologicamente ao legitimar ndiretamente as significa roda em que são evocados os orixás, é o ápice
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 22

litúrgico em uma casa de Candomblé. É no xirê que é feita [1] É muito importante destacar que os portugueses, os espanhóis e
também parte dos franceses tinham sido colonizados pelos africanos
a roda das baianas. Essas baianas giram no sentido anti-
islamizados por quase nove séculos. Vide os trabalhos de Alain Pascal
horário, em volta da chamada cumeeira, que é o mesma Kaly (2016) Mamadou Diouf, Tata Cissé sobre esta presença. Foi esta
direção em que gira o planeta, representando assim o presença secular que vai lançar algumas das bases das conquistas do
processo evolutivo da humanidade e da Terra através das mundo atlântico.
histórias dos Orixás. Os muçulmanos também fazem esse [2] Título dado ao líder religioso no Islã.
[3] Que significa “Deus é grande”.
giro em torno de um pilar central no mesmo sentido, para
[4] Considera-se sunnah os meios que o profeta Muhammed escolheu
Ramos a diferença é que todo esse rito no Islã é feito com para aplicar a palavra de Deus revelada através do Alcorão. A palavra
muito sentimento e dor, enquanto no Candomblé é feito em árabe significa “caminho”, aquele no qual todo muçulmano deve
com muita alegria e festa. (RAMOS 2011:s/p). seguir.
É comum fazerem associações da palavra Oxalá com a
figura islâmica de Deus, geralmente chamada de Allah ou
Bibliografia
Alá. Porém, a grafia dessa palavra tem dois significados. O
primeiro é árabe, oriundo da expressão InshAllah que LIMA, Claudia Maria de Assis Rocha. Heranças muçulmanas no
significa “se Deus quiser” e o segundo vem da palavra nagô de Pernambuco: construindo mitos fundadores da religião
ioruba Òrìsànlá, nome de um orixá, a quem também de matriz africana no Brasil. Revista Brasileira de História das
chamam de Obatalá. Religiões. Ano I, nº 3, jan. 2009 – Dossiê Tolerância e Intolerância
Ramos aponta outras similaridades, como o do opaxorô, nas manifestações religiosas.
um objetivo em forma de cajado estritamente ligada a
vestimenta do orixá Oxalá e que representa a criação do KALY, Alain Pascal. A presença-ausência dos árabes e de
mundo. O babalorixá diz que: “os símbolos do opaxorô são muçulmanos nos processos de
modernização brasileira: a readequação dos mapas coloniais.
incrivelmente similares aos encontrados nas mesquitas
Repocs, v.13, nº 26, jul/dez 2016.
islâmicas, devido aos vestígios do Islã que permaneceram
na nossa religião até os dias de hoje.” (RAMOS 2009:s/p) e
MONTEIL, Vicent. L’Islam Noir. Revue de l'histoire des
acrescenta que essa influência se apresenta em diversos
religions, 1965, 168-2, pp. 225-226.
outros detalhes como nos torsos ou ojás nas cabeças, que
seriam semelhantes aos turbantes islâmicos, que embora MOTA, Thiago Henrique. Questões sobre o processo
não sejam encarados como regra por homens muçulma- de islamização na Senegâmbia (1570-1625). Revista
nos é considerado uma sunnah [4]. Também nos panos de Ciências Humanas. Viçosa: v. 14, nº 2, p. 339-
da costa, que lembram o uso do filá muçulmano que 335, jan/dez 2014.
muitas vezes também era utilizado com um pano joga-
do pelo pescoço e costas, a cor branca ser associada a RAMOS, Eurico. Revendo o Candomblé:
cor de Oxalá, o fato da sexta-feira ser um dia sagrado respondendo as perguntas mais frequentes
assim como no Islã, etc. sobre a religião. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Dentro das divindades do Candomblé tam-
bém é possível identificar uma falange de RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros Islâmicos
no Brasil. Revista USP. São Paulo: nº 91, p.
um orixá que está diretamente ligado
139-152, setembro/novembro 2011.
com a figura do muçulmano negro, que é
Ogum Malê ou Ogum Malei. Essa divinda-
SERBIN, Sylvia. Reines d'Afrique et
de é a sexta falange do orixá Ogum, que
héroïnes de la diaspora noire. Sepia Eds.
é um orixá guerreiro. Pouco conhecido, e
2004.
por isso faz com que se tenham poucas
representações do mesmo, Ogum Malê é SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a
tido como a figura de um guerreiro negro, rebelião de 1835 na Bahia. Revista
fortemente armado e com roupas mouras, Brasileira. n. 31, v. 8, 2002. p. 9-34.
ou seja, com vestimentas típicas dos povos
do norte da África que praticavam o Islã.
São muitas as possibilidades e objetos de
análise que este tema apresenta. Embora
ainda pouco estudadas no efervescente
meio de pesquisas acadêmicas em História do Brasil, as
conexões entre Islã e Candomblé são riquíssimas e se
apresentam prontas para serem exploradas. Os autores
que o fazem tentam reconstruir redes de interação que
por vezes parecem sutis, mas que quanto mais são
pesquisadas, mais saltam aos olhos do pesquisador.
Os estudos sobre escravidão são plurais e merecem
maior aprofundamento sobre esse tema.
Através dos apontamentos feitos nesse trabalho através da
leitura dos textos, é possível concluir que existiu sim uma
troca religiosa considerável entre as práticas islâmicas e as
de Candomblé. Hoje, ambas as religiões estabelecidas em
território nacional, cada uma com seus fiéis, parece que tal Barbara Lima é historiadora e
graduanda em Letras/Inglês. De
associação parece absurda ou até mesmo apenas interesses múltiplos, busca na
especulativa. Porém, entender que o período escravocrata multipotencialidade o equilíbrio
do Brasil separou negros de suas casas em África, que entre felicidade e ofício.
precisaram por sua vez fazer novas casas e famílias aqui, é
perceber que todo esse processo não poderia excluir as
práticas religiosas que se esbarravam no dia-a-dia que
geraram assimilações naturais de ambas as partes gerando
um cenário ainda mais plural do que nós já conhecemos.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 23

CADERNO
CINEMA
DE

Cinema-movimento

N o presente artigo, gostaria de iniciar uma jornada mais


reflexiva a cerca do estudo da filosofia do cinema,
principalmente a partir das obras de Deleuze e
Bergson, onde perceberemos que há muito que se entrelaça
entre essa modalidade de arte e a mais antiga das formas de
O filófofo Henri Bergson
pensar. (1859-1941)
Na relativamente recente história do cinema, não tardou em
haver autores que teorizassem sobre o cinematógrafo já na
proximidade do seu surgimento. É interessante notar que ao oferece imediatamente uma imagem-movimento.”
teorizar sobre algo que parece tão contemporâneo, nos A questão que nos deparamos, então, é que na verdade o
deparamos com dilemas e questões que remontam à temas cinema simplesmente recria uma ilusão que já está presente
de grande antiguidade na filosofia.
Um dos pioneiros no estudo do cinema foi o francês Henri em nosso modo de perceber o movimento no mundo, como se
Bergson (1859-1941) que ao postular suas teses sobre o houvesse uma espécie de cinematógrafo interno que nos faz
movimento criou o material necessário para que outro filósofo perceber esta ilusão do movimento, com tudo Deleuze irá
francês, Gilles Deleuze, pudesse postular o conceito de responder negativamente a esta impressão, pois a grande
imagem-movimento.
É interessante notar que em Deleuze há uma distinção clara diferença entre as duas modalidades de percepção é que na
de que filosofia e cinema não se confundem. A filosofia para natural não há correções no aparelho visual a posteriori,
ele é a atividade que lida com os conceitos, enquanto que o enquanto que no cinematógrafo há.
cinema lida com a imagem e os símbolos. Apesar de o cinema utilizar-se de meios artificiais para obter a
Deleuze começa a tratar sobre a temática do movimento, a
ilusão do movimento, a sua resultante é natural, pois aquilo
partir de 3 teses que ele toma da filosofia antiga. A primeira
que o expectador experimenta pela visão é o movimento real
trata do movimento e o instante, para isso temos de retornar
através da sucessão dos fotogramas, que no início do cinema
aos paradoxos de Zenão, que datam do século V a.c. . Esse
eram 18/segundo e atualmente são 24/segundo.
paradoxo se afirma de muitos modos, em diversas alegorias,
Bergson que obteve destaque em sua filosofia por substituir o
utilizarei aqui a mais clássica e a que também penso deixar
conceito de eternidade pelo conceito de “novo”, irá aplicar isso
mais clara a questão: Na suposição de uma corrida entre
também ao cinema. Begson acreditava que o que é novo não
Aquiles e uma tartaruga, Aquiles que naturalmente é muito
pode aparecer nos seus primórdios, pois tende a ser rejeitado
mais veloz que a tartaruga a concede uma determinada
e portanto aparecem inicialmente apenas com os caracteres
vantagem para que ela percorra um determinado espaço
antes da largada e depois de atingida essa vantagem, Aquiles em comum com o que já há. Isto aplica-se também ao cinema,
inicia sua trajetória. quando pensamos que no seu início o cinema possui apenas a
O paradoxo está justamente no fato de que Aquiles, ao menos tomada fixa, o tornando imóvel, e em sua evolução o cinema
em tese, não conseguirá atingir a tartaruga, pois quando ele adquiri formalmente o movimento quando adota a câmera
atingir o ponto em que ela estava, a tartaruga já terá avançado móvel.
mais um pouco, mais um pouco e mais um pouco e assim É interessante notar também que do ponto de vista mais
sucessivamente, de modo que Aquiles nunca conseguirá empírico, dos criadores do cinematógrafo, já havia uma
alcançar sua adversária. tentativa de recriar a partir do cinema a percepção natural do
Bergson, em sua obra “Matéria e memória”, dirá que o movimento. Não é atoa que nas primeiras projeções, os irmãos
problema deste paradoxo está justamente nas premissas, pois Lumière, tentavam impactar o público, de modo a despertar
não se deve deduzir o movimento do espaço/distância, não se nele o impacto da visão.
deve utilizar as posições estáticas É importante também acrescentar que a ideia da imagem-
como princípio, mas devo pensar no ato movimento é anterior ao ingresso do cinema na filosofia de
de mover-se, um mover que não Bergson, este conceito é cunhado, em 1896, em sua obra
está no espaço, mas sim no tempo. “Matéria e memória”, enquanto que só tratará do cinema, em
O cinema nos oferece, ao mesmo 1907, em sua “A evolução criadora”, onde irá aplicar com mais
tempo em que nos dá a imagem, perfeição a ideia à coisa.
a impressão do movimento. Nisto Iniciamos assim o percurso sobre a filosofia da imagem-
Deleuze reconhece o acerto da movimento de Bergson/Deleuze, que poderemos aprofundar
fenomenologia, pois esta conside- nos artigos que serão subsequentes. Neste apresentamos a
rava que a percepção natural primeira das três teses sobre o movimento.
do movimento se difere da per-
cepção cinematográfica, justa- DELEUZE, Gilles. A imagem movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
mente porque no cinema BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Unesp, 2010
imagem soma-se ao movi-
mento, criando então a
imagem-movimento.
Nas palavras de Deleuze: Com especialização em roteiro pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
“Em suma, o cimema não
Filipe Machado é bacharel em
nos oferece uma ima- filosofia pela PUC-Rio e licenciado
gem à qual acrescenta- em História. Atualmente suas
ria movimento, ele nos pesquisas estão centradas nos
autores que compuseram a cena
intelectual católica do século XX
O filófofo Giles Deleuze com especial ênfase em Gustavo
Corção.
(1925-1995)
Ensaios do
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 24

cotidiano
um valor, é bom em si: deixa-nos momentaneamente felizes,
plenifica ocasionalmente os sentidos e o buscamos para
participar da exuberância da vida. Isso tudo é muito bom,
mas infelizmente, na relação com os outros, muitas vezes

O prazer encontramos prazer em ações danosas. Há aqueles que


sentem prazer no sofrimento dos outros, na dor, na
prostituição. Obviamente este prazer não é bom, nem pode
ser qualificado como um valor. Sem dúvidas ele não é moral.

Q
Aqui chegamos num conclusão lógica: a moralidade do
uando tratamos de temas relacionados a sexu-a prazer depende do ato que lhe dá origem. Se aquilo que
lidade humana é fácil se limitar em tecer críti- causa o prazer é moral, o prazer é moral. Mas se aquilo que
cas a condutas e posturas inadequadas ou falar causa o prazer é nocivo, o prazer que dele provem é imoral e
mormente de procriação. Porque ir além é se não deve ser buscado. Existe, de certo, uma ligação direta
colocar diante de temas um tanto sensíveis e complexos. entre o prazer e a sexualidade. Se ele comporta uma relação
Falar de prazer quase tem sido um tabu em nossos ciclos. autêntica com o outro, que busca o seu bem, a sua realização,
Parece que ele é visto como um problema e não inserido ele é uma atitude madura. Se for o contrário, é imaturidade.
no sentido da própria sexualidade.
Na década de 1930, Freud anunciava que o prazer era
aquilo que levava todos os indivíduos a agir e se lançar em
qualquer projeto. Para ele, o único prazer verdadeiro era o
sexual e a sociedade, para se edificar, reprimia esses
instintos. Logo, segundo esse pensamento, viver em
sociedade necessariamente exigia a renúncia destes
prazeres para ter outras satisfações. O resultado a que
chegamos, segundo essa visão, é uma antinomia entre o
prazer e a sociedade.
Este pensamento equivocado resultou no florescer de uma
cultura hedônica, capaz de influenciar profundamente a
sociedade moderna, produzindo a ideia de que o prazer é
o único bem humano verdadeiro. E que o mal-estar ou
conflito social é resultado da renúncia forçada deste
instinto natural, negando outros elementos da
personalidade como a tendencia a agressividade existente
dentro de cada um de nós. É uma utopia pensar que,
liderado por seus próprios instintos, o homem conseguisse
alcançar um vida virtuosa e feliz. E o pior, que esse prazer
pudesse ser duradouro a ponto de determinar a vida.
Por vezes, no decorrer da história, a Igreja é acusada de ser
contrária ao prazer, inimiga do corpo. Essa é uma das
maiores caraminholas já propagadas. O prazer é um dos
temas centrais da doutrina cristã, embora não seja sempre
o mocinho, pois é colocado nos dois lados da discussão: é
moral enquanto facilitador da prática da virtude e imoral
enquanto fim em si mesmo e, nesse segundo caso, deve A sexualidade humana é relacional e por isso se vincula
ser evitado, pois não é caminho para a felicidade, a bem- naturalmente com o prazer. É na experiencia do prazer que o
aventurança, é apenas uma atitude egoísta e viciosa. homem dispõe o dom de si mesmo para acolher o outro. Se é
Sempre identificamos felicidade com prazer e fazemos dom, é gratuito e colocado a serviço, nesse caso, como troca,
isso porque é totalizante, gratuito, gratificante. Ousaria proporcionando alegria dos homens e mulheres.
dizer que constitui em si certa plenitude, pois é Enriquecendo-os de acordo com a sua abertura para o bem
autossuficiente, encerra o sujeito em si como um tipo, do outro. Nunca, jamais, na forma de egoísmo, quando o
talvez mais simplificado, de bem-aventurança. Essa outro é transformado num objeto.
identificação, embora comum, causa ambiguidade e gera O equilíbrio virtuoso da vida se dá, por vezes, pela renúncia.
um séria imprecisão, pois o prazer não é algo absoluto. Esse é um caminho seguro para o alcance da maturidade. O
Logo, não pode ser equiparado à felicidade, muito menos excesso de prazer é viciante, transforma-o num fim em si
à bem-aventurança. A felicidade está na esteira do desejo mesmo e dessa forma adultera o seu verdadeiro papel que é
pelo infinito, enquanto o prazer é sempre limitado, preso apontar para um bem maior. No sentido da sexualidade
ao instante, uma atividade precisa e acabada. humana o prazer deve sempre ocupar o seu verdadeiro lugar
É importante o cuidado para qualquer forma de que é na maturação social e pessoal das pessoas, ajudando
absolutização do prazer. Do mesmo modo, deve-se atentar tanto o homem na sua masculinidade como a mulher na sua
para não cairmos num outro extremo que é a sua negação. feminilidade a desenvolver-se como pessoas humanas
“Virtus est medium vitiorum et utrimquereductum”, a integras, maduras e harmoniosas em si e na relação com as
virtude é o meio termo entre dois vícios, equidistante de outras pessoas.
ambos. Assim dizia Horácio em suas Epístolas (Livro 1,18).
Portanto, é preciso aceitar que o prazer é um valor. Ao
mesmo tempo é também um meio, é util. Mas assim
caímos novamente em dois extremos: ou ele é
absolutamente moral, é um valor, ou é reduzido a simples Rafael dos Santos, sacerdote da
utilidade. Arquidiocese de São Sebastião do
Partamos então da categórica afirmaçãode que o prazer é Rio de Janeiro. Possui Formação em
Filosofia, Direito, Teologia e é
mestrando em Direito Canônico no
PISDC/Pontifícia Universidade
Gregoriana.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 25

Inspiração e poemas

M uito se busca entender a respeito do que gera


inspiração para um poeta escrever. Alguns tentam
uma formula magica: “Conheça os 5 passos do poe-
ma perfeito”, ou ainda “Compre meu curso e se torne um
poeta de sucesso”. Mas a verdade é que não há receita de bolo
ou manual de instruções para escrever um bom poema. Muito
menos haveria de ter um checklist fixo para se ter inspiração.
A inspiração não reconhece padrões rígidos e pré-
estabelecidos; não responde quando você – pessoa – quer. A
inspiração, quando alimentada, flui livre como rio, traçando
seu curso, e aparecendo conforme lhe convém.
E o que a alimenta? Poderia muito bem dizer que a leitura é a
grande força motriz da inspiração. E, de fato, é um elemento
de suma importância no processo de escrita de um poema.
Mas se se delimitasse e isso, excluiria todos aqueles poetas
que mesmo sem um profundo conhecimento linguístico, ou
um habito de leitura bem fundamentado, compuseram belos
poemas, tendo seus textos escritos por outras pessoas. Uma
outra metáfora que podemos usar para a inspiração é que ela Isso vale para poemas sobre o amor. Afinal o que é o amor
é a grama, ou a flor, que surge entre os paralelepípedos, senão sentir-se alegre por estar com o outro? E, nesse sentido,
mesmo em ambiente pouco favorável e esperado para seu podemos expandir a ideia de amor não só para o amor
desenvolvimento. romântico entre casais, mas para o amor que sentimos por
Podemos, então, destacar a importância de outros elementos: estar com o outro. Esse outro pode ser um amigo, um
a sensibilidade, a empatia, o senso de justiça. Esses três
parente, ou talvez um vizinho, um colega de trabalho. E na
elementos quando bem presentes na alma, no coração e no
medida em que se cria uma relação social entre você e o
cotidiano de uma pessoa se tornam a verdadeira mola
outro, um laço de cuidado e de bem-estar surge, avivando,
propulsora para a inspiração surgir. A sensibilidade permite
assim, os três elementos já mencionados.
que nos incomodemos. A empatia faz com que entendamos
Por outro lado, há claros elementos que prejudicam a
uma situação que não vivemos, possibilitando que nos
constância da inspiração. Além dos óbvios antônimos dos três
aproximemos da experiencia vivida pelo outro, colocando-nos
pilares, devemos destacar também o estresse, o excesso de
no lugar dele. O senso de justiça, por sua vez, proporciona
preocupações e a dificuldade em “se desligar”. Vivemos uma
indignação com um cenário e o desejo de que ele não se
rotina que cada vez mais grita por produtividade, enquanto o
perpetue. Aquele que o possui consegue, na sua rotina,
enxergar os meandros e sutilezas de situações ordinárias, individuo roga por descanso. Nessa dicotomia, pende-se a
inconformando-se e denunciando injustiças e desigualdades balança para a rotina que se recusa a desacelerar, esmagando
tão comuns na sociedade e que nos endurece dia após dia. qualquer vestígio de criatividade, ou de tudo aquilo que não
traz algo concreto, físico, para si. Deixamos cada vez mais de
lado momentos de lazer, de reflexão ou de contemplamento
do belo, que nos ajudariam a restabelecer o equilíbrio. Esse
desequilíbrio nos desumaniza, e nos torna maquinas frias que
não se interessam pela dor do outro, por regular seus
sentimentos, e por reconhecer a importância de frear para se
preencher e recarregar.
Se quisermos ser propícios à inspiração devemos diariamente
transformar nossa rotina e nosso olhar para um modo de
enxergar o outro e o que nos cerca de modo humano, e não
como máquinas. A tarefa não é facil, e o impacto dessa
escolha muitas vezes toma proporções inimagináveis,
considerando a máxima vigente em muitos ambientes de
“produzir acima de tudo, trabalhar acima de todos”. Ser
humano exige uma escolha diária, sendo necessário se forçar
a ir contra os paradigmas, até que pouco a pouco tiremos
nossas cascas e nos reabituemos com a sensibilidade e a
contemplação tão características do ser humano. Assim
estaremos como um terreno fértil para receber a inspiração, e
deixá-la fluir, revelando excelentes compositores
desconhecidos.

Bábara Bedôr Novo é moradora do


bairro de Irajá, subúrbio carioca.
Bacharel em Biomedicina pela
UNIRIO, é autora de Ecos do interior
(Multifoco, 2020), coletânea de
poemas que tomaram forma
durante o deslocamento no
transporte público entre a casa e a
faculdade.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 26

In scena

Jackson de Figueiredo (1891-


Bioética: você sabe o
1928) foi uma figura marcante
que é?
no cenário brasileiro da década
de 20. Agitado, polêmico e ANDRÉ MARCELO M.
controverso, passou do SOARES
materialismo ao catolicismo, Benedictus, 2023,
fundando a revista A Ordem e o 180 págs
Centro Dom Vital como lugares
de debate e apologética. Sua
presença nos jornais, com
artigos inflamados e
apaixonados, é resgatada por
Daniel Fernandes em O amor
da ordem, onde são recolhidos
preciosos escritos que
testemunham uma parte do
Transitando entre saberes como a ética e a filosofia, a
Brasil no início do séc. XX.
biologia e a medicina, a bioética é um assunto cuja
atualidade se impõe, diante dos avanços das ciências.
André Marcelo Soares, um dos pioneiros dos estudos
bioéticos no Brasil, em seu livro Bioética: você sabe o
O amor da ordem que é? procura apresentar o tema de forma diádica para
Daniel Fernandes (Org.) que mais pessoas possam conhecer e perceber a
Eleia, 2023, importância e as implicações dos estudos em bioética no
548 págs dia a dia da sociedade contemporânea.

O segundo semestre no Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro, está


marcado por uma série de atividades. Entre os dias 19/10 e 30/11 o Centro
oferece o curso Apocalipse: Teologia e Literatura, ministrado pelo Prof.
Pe. Pedro Paulo Alves dos Santos, doutor em Teologia Bíblica e em Teoria
Literária. De 01/11 a 06/12 o Prof. Me. Pedro Ribeiro, fundador do
movimento Comunhão Popular, ministra a continuação de seu curso de
Doutrina Social, agora com a temática Visões do Brasil.
No dia 4 de novembro comemora-se os 95 anos da morte do fundador do
Centro, Jackson de Figueiredo. Para celebrar a efeméride, O CDV faz uma
solene seção em sua sede, com Missa de requiem celebrada pelo Pe.
Pedro Paulo Alves, assitente eclesiástico, saudação do presidente Prof.
Dr. Renato Beneduzi, e uma conferência intitulada Os princípios para
uma ação católica no séc. XXI, ministrada pelo prof. Filipe Machado,
fundador e editor de Scena Crítica, e pelo prof. Eduardo Silva.

CENTRO DOM VITAL


Rua Araújo Porto Alegre, n. 70, sala 110
Rio de Janeiro, Centro - RJ

centrodomvital.com.br
instagram.com/centrodomvital
comunicacao@centrodomvital.com.br
Tel.: 21 2516-2046
SCENA

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