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SCENA
OUTUBRO-DEZEMBRO 2023
Nº 03
ANO 1
CRÍTICA
SCENA
Editorial S
Temos a satisfação de apresentar aos leitores a última edição de 2023 de Scena
Scena Crítica
Crítica, mantendo a linha de um editorial temático, como fizemos ao longo das Filosofia, literatura, artes, cultura
edições deste ano. Nesta edição procuramos prestar tributo a Dom Luigi Giussani,
padre e teólogo italiano, fundador do movimento Comunhão e Libertação, no
Scena Crítica é uma publicação
tempo propício do encerramento das celebrações de seu centenário de
trimestral, sem fins lucrativos
nascimento.
A partir da figura de Giussani esperamos gerar reflexões sobre o modo de operar
scenacritica@gmail.com
o apostolado católico a partir dos conceitos deixados em sua vasta obra,
apoiando-nos especialmente em sua tese central sobre o senso religioso. scenacritica.my.canva.site
É mister para nós, como revista de inspiração católica, suscitar o debate e a
instagram.com/scenacritica
reflexão sobre os temas que são caros e necessários ao contexto eclesial
moderno, sempre atados a um amplo editorial que versa sobre temas diversos de
interesse do conjunto da sociedade e da academia.
Editor
Inspirados por nossos egrégios patronos, fizemos, como de costume, a revisão de
textos de suas autorias, elegendo para esta edição de fim de ano Gustavo Corção
Filipe Machado
em sua crônica sobre as festividades natalinas, procurando, assim, contextualizar-
nos ainda mais no tempo em que vivemos, em um final de ano que se apresenta
cheio de turbulências e questões que não solucionadas nos fazem olhar para um Colaboradores desta edição
futuro povoado de incertezas.
Continuamos dando sequência a nossos editoriais temáticos, além de reunir Bárbara Bedôr
novos autores que, pela primeira vez, contribuíram para nossa Ágora Literária, na Barbara Lima
expectativa de que assim atraiam novas contribuições para o nosso jovem Eduardo Silva
periódico. Guilherme Chapini
Fazemos, então, votos de um desdobramento feliz para este ano, nosso ano 1, Gustavo de Moura
depositando nossas esperanças e expectativas no Logos que tantos ansiavam e Carlos Frederico Calvet
que se encarnou no seio da Virgem, correspondendo aos homens em suas Júlia Rocha
expectativas e temores. Liécifran Martins
Rafael dos Santos
Gloria in excelsis Deo Sofia Brunstein
et in terra pax hominibus bonae voluntatis! Telmo Olímpio
Tiago Cavalcante
Filipe F. Machado
Eduardo D. S. Silva
Editores
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 3
I T I N E R Á R I O
I T I N E R Á R I O
Na esperança
O ocaso do ano e a proximidade das festividades natalinas A filosofia tem espaço privilegiado neste edição. No artigo
trazem o terceiro número de Scena Crítica. O tempo do A Trindade na ponta dos dedos Carlos Frederico Calvet
Advento, que marca as quatro semanas que preparam o traz uma análise da exposição de Tomás de Aquino, o
Natal, muito nos fala da temática da esperança, palavra grande filósofo e teólogo medieval, acerca da Trindade na
que permeia o projeto desta revista, que prossegue na Suma Teológica. Kant também marca presença no texto
esperança de contribuir para o enriquecimento cultural e de Tiago Cavalcante que analisa Dignidade humana e
intelectual do cenário brasileiro contemporâneo. boa vontade na obra do filósofo alemão. Filipe Machado
A temática que guia esta edição é a experiência religiosa. retorna no Carderno de Cinema confrontando dois
Para isso, fomos buscar na pessoa do sacerdote, educador grandes filósofos do séc. XX, Bergson e Deleuze, acerca do
e escritor italiano Luigi Giussani (1922-2005), fundador do tema cinema-movimento.
movimento Comunhão e Libertação, as indicações para Barbara Lima brinda esta edição com um texto cujo tema
uma análise do senso religioso em nossos dias. A figura de é ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. O
Giussani e sua contribuição é explanada por Filipe artigo Entre axé e salaam: a influência de práticas
Machado no artigo Dom Giussani: um homem de Ação islâmicas no Candoblé do nordeste brasileiro traz à luz
Católica. No Dossiê, a entrevista com Alexandre Ferraro, pontos de grande importância na compreensão da
responsável nacional do movimento Comunhão e formação religiosa e cultural na história do Brasil.
Libertação, é-nos oferecido um amplo panorama do O médico e o monstro, de Robert L. Stevenson, é o
movimento no Brasil e no mundo. clássico que Julia Rocha traz nesta edição na resenha da
Sendo o Natal, que logo celebraremos, uma expressão do coluna Livro Aberto. E Rafael Santos, na coluna Ensaios
senso religioso, a coluna Vox Patroni traz Gustavo Corção do cotidiano, convida-nos a um agradável passeio na
em seu premiado romance Lições de Abismo, expondo as temática do prazer, enquanto Bárbara Bedôr nos conduz
contradições da sociedade e um Natal a cada dia mais na relação entre Inspiração e poemas.
tomado pelo consumismo. Na Ágora, a praça de divulgação literária, quatro
Eduardo Silva, nas Crônicas de um tempo peculiar, promissores poetas. Sofia Brunstein, Guilherme Chapini,
oferece-nos uma singela crônica sobre a experiência da Liécifran Borges e Gustavo Rodrigues colaboram com a
confissão, que marca a realidade cultural do ocidente poesia brasileira contemporânea e, para inspirar os novos,
desde o medievo. Telmo Olímpio retorna para nossas trazemos um poeta clássico: o sempre atual Jorge de
páginas com uma profunda meditação no texto Cegueira Lima. Boa leitura!
da vista e cegueira da alma.
ÍNDICE
Dossiê, pág. 13
Um ano jubilar
Ágora, pág. 17
Praça de divulgação literária
CRÔNICAS DE UM
TEMPO PECULIAR
Ordem Franciscana. Olhando para o emblemático
conjunto sacro colonial, recordei-me de minha pobre
condição de pecador e, encorajado pela fé e pela
diminuição do volume de água a cair, atravessei a rua e
adentrei o longo e escuro corredor em cujo fundo havia o
elevador que conduzia ao convento e à igreja anexa.
Não encontrei o tradicional vai e vem de fiéis e turistas,
nem outros penitentes. Vi tão somente, no fundo da escura
sala do capítulo onde os frades atendem as almas aflitas,
um filho de São Francisco a caminhar, estola roxa ao
pescoço e terço na mão. O dramático crucifixo barroco na
parede do fundo completava aquela cena digna de uma
pintura, mas que não teve outro pincel que não meus
olhos inquietos. Ao virar-se e perceber minha presença, o
frade logo fez sinal para que me aproximasse. Tinha um ar
venerável em seus cabelos brancos e sua postura
encurvada.
Sentei-me diante do frade. Atrás dele, o crucificado fitava-
me, como que a suplicar em sua agonia: “Tenho sede!”. Mas
como! A única água que tenho agora é suja e fétida, pois é
como que o chorume desse lixo pestilento que são meus
pecados. “Dá-me! Acaso eu que transformei água em vinho
não posso também purificar as águas turvas e fazê-las
límpidas outra vez?”.
Os olhos azuis penetrantes do idoso frei, olhos com misto
de rigor e ternura, pareciam vasculhar minha alma
enquanto punha para fora os tais resíduos acumulados.
Não foi a primeira, e muito menos, infelizmente, a minha
última confissão. Os conselhos dados pelo confessor não
S
precisa ser dito.
ei que talvez a geração mais nova não seja lá “Eu te absolvo...”. Cada vez que ouço sobre mim as palavras
muito acostumada a ouvir as palavras “confissão” da absolvição sacramental percebo como o homem não
ou “confessionário” no sentido que aqui trago. No precisa de muito para ser feliz. Ao menos não um muito
máximo podem achar que falo de algum quadro de reality visível. Ao sair pelas portas que davam para o pátio de
show ou algo do gênero. Mas de início preciso esclarecer pedra, a chuva tinha parado. Os raios de sol abriam
que não. Refiro-me a confessar pecados a um padre brechas nas nuvens cinzentas e dali de cima davam um
mesmo. Ainda há pessoas, digamos, peculiares, como eu, cenário espetacular ao centro da cidade. A natureza
que se prestam a isso. naquele dia se assemelhara à minha alma.
Ao longo da vida, vamos sempre sentindo necessidade de Desci e caminhei pelas ruas, agora tomadas pelas poças
encontrar formas de fazer escoar certos excessos que d’água. Assim é a alma após a tempestade dos erros com
vamos acumulando. Más escolhas, conflitos de que se depara ao examinar sua consciência. A chuva se vai,
relacionamentos, falas ditas sem reflexão (ou talvez com mas suas consequências visíveis ficam. É necessário
excesso de reflexão maldosa), pensamentos provindos paciência e esforço para que as poças escorram e sequem.
sabe-se lá de que precipício da consciência, enfim, todo Até lá, há que se fazer como o VLT que vi ao passar pela
um arcabouço de resíduos a se descartar. Uns não estão rua Sete de setembro. Diante de um grande bolsão, teve
muito preocupados em se desfazer desses badulaques. que diminuir a velocidade, para depois seguir seu percurso
Outros despejam esses acúmulos na terapia. Os católicos em velocidade normal. Também eu, ao deparar-me com os
insistem num método menos freudiano (ainda que não o bolsões lentamente escoantes de meus vícios em processo
desprezem de todo) e mais medieval (sem nada de de correção, preciso diminuir o ritmo e atravessar com
pejorativo no termo): a tal da confissão. paciência.
Como católico de longa data, confessar-me já faz parte do Uma confissão. É pena que muitos não tenham essa
meu cotidiano. Mas há algumas confissões que ganham mesma experiencia. Mas hão de ter outras, nisso creio
um lugar de destaque na memória, talvez como forma de firmemente. Mas essa minha experiência, desculpem-me
preencher o espaço deixado pelos resíduos psicológicos os da nova geração, não há reality show que supere.
despejados nos ouvidos de um paciente sacerdote. Uma
confissão, particularmente, traz-me até hoje interessantes
reflexões.
Indo certa vez ao centro do Rio de Janeiro, ali pelos idos
de novembro, recordo-me que, ao sair de um Eduardo Silva, graduado em
compromisso num prédio, deparei-me com uma chuva História pela UFRRJ e em Filosofia
torrencial, dessas que a metrópole carioca sabe muito pela PUC-Rio, encaminha os
bem produzir em dias de calor sufocante. Abrigado da estudos também para a literatura e
a teologia, sempre a partir de um
chuva na longa marquise, via os passantes a correr pelo diálogo entre o pensamento
Largo da Carioca. Logo do lado oposto ao prédio onde tomista e as diversas correntes
estava, o plurissecular Convento de Santo Antônio, da contemporâneas.
7 Scena Crítica | Outubro-dezembro 2023
Dom Giussani
Um homem de Ação Católica
Cegueira da vista
e cegueira da alma
Dossiê
Giussani não é, em termos filosóficos, um A mesma exigência de libertação que o muito mais lenta, pois vai de pessoa em
realista, no sentido em que só há a mundo vivia nos anos 1960 e percebe-se pessoa, mas no fim é muito mais eficiente,
realidade e o sujeito não conta. Não, para que é a comunhão cristã a melhor pois a transformação é autêntica.
ele o conhecimento é um encontro correspondência a esse anseio. Então, o
misterioso do sujeito com a realidade, que era um movimento de estudantes SC: Podemos dizer que houve, em
portanto um conjunto dessas duas coisas. secundaristas começa a ficar muito mais algum momento, uma coincidência
presente no ambiente universitário, já com entre Comunhão e Libertação e a
SC: Gostaria que você aprofundasse um o nome de Comunhão e Libertação. Democracia Cristã?
pouco mais sobre esse conceito de Um fato interessante é que, já em 1974, o
experiência. Cardeal Arns de São Paulo, em visita a Alexandre Ferraro: Esta é uma questão
Milão, contatou Giussani para levar o muito importante, pois foi assim que o
Alexandre Ferraro: Experiência não é movimento à pastoral universitária de São movimento foi taxado por décadas, sem,
simplesmente viver e passar por situações. Paulo e assim ele chega ao Brasil já nos no entanto, nunca ter sido assim. Giussani
Experiência implica em algo fora de mim, anos 1970. É interessante notar que o sempre manteve uma saudável distância
que em mim produz a compreensão do movimento chega ao Brasil com aspecto disso, mas como era um movimento
significado do vivido. Esses dois fatores são de pastoral universitária. Já havia uma numericamente expressivo e cheio de
necessários para chegar no nível da certa resistência em Giussani de exportar o jovens competentes, os bispos pediam dos
experiência. método comunhão e libertação, pois ele, membros apoio à Democracia Cristã.
como padre diocesano, compreendia que Giussani não queria entrar na polêmica
SC: O movimento iniciou a partir da as suas atividades deveriam estar restritas sobre o plebiscito do divórcio na Itália,
experiência de Giussani como professor à Diocese de Milão. mas por obediência aos bispos italianos
secundarista e da Juventude Estudantil Com a eleição de João Paulo II houve uma acabou adentrando na polêmica em que a
grande sintonia com Giussani, até que em Igreja saiu perdedora. Então havia uma
Católica. Como o movimento se
1984, o Papa vai finalmente identificar ligação por obediência de Giussani à
distinguiu de uma ação exclusiva para
Comunhão e Libertação como um carisma hierarquia. Nos documentos, comunicados
estudantes e se tornou um movimento
e faz o apelo a que o movimento se oficiais e pronunciamentos é possível
de espiritualidade abrangente? espelhasse pelo mundo. Então o Papa perceber que ele nunca acreditou nessa
universaliza um carisma que na cabeça de união. Ele ensina que não se deveria
Alexandre Ferraro: Giussani nunca quis Giussani era algo restrito ao contexto acreditar nela. Mas na prática muitos,
criar um movimento. Ele não teve uma italiano. especialmente de esquerda, acreditam
intuição, como ocorreu com outros
que o movimento coincidia com a
funadores. Giussani era o assistente da SC: Fale um pouco do cenário do Democracia Cristã ou era seu braço
Ação Católica Estudantil, que era movimento no Brasil. eclesial.
fortíssima naquele período na Itália.
Em seu estilo de estar com os jovens
Alexandre Ferraro: O movimento no SC: Como está a situação do Movimento
estudantes, pela insistência na experiência
Brasil existe em mais de 40 cidades após o pedido de reformas do Papa
e nesse diálogo aberto, já que ele era um
espalhadas de Norte a Sul, e estou como Francisco?
homem de profundo diálogo ecumênico e
responsável há 3 meses.
cultural, muitos começaram a segui-lo.
No Brasil, por motivos históricos, os nossos Alexandre Ferraro: De fato há 3 anos o
Basicamente até os anos 60 era
abraçaram a necessidade de demonstrar Papa Francisco pediu a todos os
fundamentalmente um grupo da Ação
que a justiça social é mais bem alcançada movimentos e expressões leigas algumas
Católica da Diocese de Milão. No final dos
a partir da comunhão eclesial do que pela alterações que nasceram da avaliação
anos 60 com a revolução cultural de 1968,
mudança das estruturas. Há uma frase que dessa experiência nova que foram os
muitos abandonaram esse grupo, no
sempre repetimos: “ Aquilo que muda as movimentos. Todos os movimentos
entanto uma parcela significativa que
estruturas é o mesmo que muda o coração começaram a partir do século XX, e depois
levava a sério o desejo de libertação que
do homem”. Então, em última análise, nós de algum tempo dessas experiências já é
era a tônica daquele momento,
servíamos no Brasil de antítese à teologia possível à Igreja fazer uma avaliação do
perceberam que encontravam com
da libertação. Foi esse o movimento que status dessas organizações, sobretudo no
experiência que faziam junto a D. Giussani
eu conheci, em 1984, como calouro da aspecto do Direito Canônico. No fundo, é
uma resposta concreta a esses anseios de
faculdade de medicina. Portanto, havia de pensar como a Igreja hierárquica se
libertação. Essa libertação se encontrava
um lado a teologia da libertação, e de relaciona com a dimensão carismática. Há
pela comunhão vivida no seio da Igreja.
outro o Comunhão e Libertação todo um diálogo entre hierarquia e
Portanto é a partir da comunhão que
procurando responder às mesma questão carisma. Isso é muito próprio da Igreja
nasce a libertação.
de pontos de vista Católica, se pensarmos, por exemplo, em
opostos. São Francisco de Assis, São Domingos,
É interessante notar que, Santo Inácio… Há sempre um diálogo com
hoje no Brasil, sem esses carismas que vivem renovando
exageros, centenas de periodicamente através do apelo da Igreja.
milhares de pessoas são A originalidade é que o século XX fez com
beneficiadas pela atuação que esse movimentos “carismáticos”, no
social do movimento. Isso sentido mais amplo da palavra, fossem de
prova, então, que a leigos, o que traz um certo ineditismo,
intuição estava certa, de inclusive no aspecto jurídico.
que o amor à Igreja, à sua Por isso o Papa pede algumas mudanças.
tradição e à sua Talvez a principal seja que os presidentes
hierarquia, ou seja, de que dos movimentos passam a ter um
aquilo que o muda as mandato de 5 anos com direito a somente
estruturas é o mesmo que uma renovação.
muda o coração do No dia 15 de outubro do ano passado,
homem que é o encontro portanto no início da comemoração do
com Jesus Cristo, isso centenário de D. Giussani, o Papa
chega ao nível da Francisco, dirigindo-se aos membros do
transformação social. É movimento presentes na Praça de São
muito diferente, Pedro, disse que a Igreja e o Papa esperam
certamente, do processo mais de nós e recordou que ainda há
revolucionário, é inclusive muito do carisma a ser compreendido,
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 15
recordando, portanto, que estamos apenas Dos meus alunos que começam a
no início. frequentar o movimento 99% deles são
A reforma estrutural que é pedida, nós ateus. Então, em geral, quem se atrai pelo
compreendemos que seja um enorme carisma do movimento são pessoas que
chamado à corresponsabilidade, todos são estão muito distantes da Igreja. Em todos
chamados a ser corresponsáveis por esse os homens há um traço da Verdade de
carisma. Sendo assim, o estatuto está Cristo, então todos ou autores, todas as
sendo revisado, nós estamos finalizando o expressões artísticas nos interessam.
novo estatuto que perecisa ser aprovado Fazer um caminho, demonstrando que
pelo Dicastério responsável em Roma. De todo gênio artístico, independente até da
nossa parte essa revisão deve estar pronta sua posição ideológica, é profeta de Cristo,
até o fim deste ano, mas o tempo total vai é entusiasmante para todos, mesmo para
depender das aprovações da Cúria quem não tem fé, e acaba se sentindo
Romana. muito atraído.
Às vezes aqueles que já têm fé preferem
SC: No início do pontificado de ficar em grupos de estudo bíblico ou de
Francisco se levantou que haveria uma “louvor”, enquanto os que não têm se
relação de Bergoglio com o movimento mostram mais entusiasmados em fazer
na Argentina. Como de fato era essa este percurso.
relação? A expressão comunitária do movimento
também é outro fator fortemente atrativo.
Alexandre Ferraro: O Papa conhecia É uma experiência de pertença a uma
muito bem o movimento, especialmente a comunidade que é Corpo de Cristo. O meu
partir dos anos 1990, portanto mais de 30 encontro com Cristo em carne e osso é a
anos de relação. Ele tinha uma grande comunidade cristã. Isso tudo somado a
afinidade com o pensamento de Giussani, nossas atividades culturais e festas é muito
especialmente sobre o senso religioso, mas atraente aos jovens.
não só, também uma grande proximidade Então, em síntese, seria: abertura cultural,
na forma de pensar a figura de Cristo, capacidade de dialogar sem preconceitos
com o mundo contemporâneo e a força
inclusive tendo prefaciado os dois livros.
comunitária, pois apostar tudo na força do
Bergoglio há mais de 30 anos possui uma
indivíduo, como se o cristianismo fosse um
afinidade com o movimento, não muitos
mais do que isso. A proximidade de heroísmo, para o homem ferido do século
Francisco vem da leitura de Giussani, XXI, resultará em menos sucesso.
diferente dos últimos dois papas: João
Paulo II e Bento XVI. Ratzinger e Giussani
eram muito próximos, tanto que ele pediu
que nossas Memores Domini cuidassem da
sua casa, demonstrando assim a grande
estima que nutria pelo movimento.
Francisco nutre estima, mas essa estima
nasce mais das leituras de Giussani, que
como ele mesmo diz, o ajudaram e
formaram.
Livro aberto
O MÉDICO E O MONSTRO
na verdade, a mesma pessoa.
Robert Louis Stevenson Numa tentativa de burlar o
que propõe a teoria de Freud,
Jekyll elabora uma poção que
O
o permite se transformar em
médico e o monstro ou O estranho caso do dr. outra pessoa, um alter ego, seu
Jekyll e do sr. Hyde é uma novela gótica escrita gêmeo maligno. Hyde é a
por Robert Louis Stevenson e publicada em 1886. A
corporificação do lado sombrio
obra ficou conhecida por tratar do tema do duplo ou sósia,
da personalidade de Jekyll,
revelando que todos nós temos um lado bom e um lado mau.
enfim libertado depois de
Essas partes, apesar de opostas, seriam indissociáveis e
tanto tempo recalcado no
complementares, compondo a mais genuína natureza
fundo de seu inconsciente. Seu
humana.
objetivo era dar vazão às às
Todos nós temos características das quais não nos orgulhamos.
pulsões reprimidas de seu
Defeitos que buscamos esconder a todo custo para
duplicata, garantindo, ao
recebermos aprovação daqueles que admiramos. Assumimos,
mesmo tempo, que sua
muitas vezes, uma espécie de máscara social, na intenção de
imagem social não fosse
performar algo que não somos. Freud, em seu livro “O mal-estar
maculada. Dessa forma, Hyde
na civilização”, afirma que a vida civilizada pressupõe o
funcionaria como uma espécie
recalque das pulsões e a submissão do princípio de prazer ao
de álibi.
princípio da realidade. Isto é, o homem teria aberto mão de
Se cada um, pensei, pudesse ocupar identidades distintas, a
sua felicidade para viver em segurança na sociedade. E é sob a
vida seria aliviada de tudo que é insuportável, o injusto seguiria
luz dessa dicotomia que se inicia essa história. seu caminho, livre das aspirações e do remorso de seu gêmeo
Dr. Jekyll é um médico muito respeitado e conceituado pela mais digno; e o justo poderia percorrer com passos fortes e
sociedade britânica. No entanto, há algum tempo, ele vem seguros seu caminho ascendente, praticando as boas ações que
despertando a suspeita de seu advogado e amigo pessoal, o sr. lhe dão prazer, não mais exposto à desgraça e à penitência
Utterson. Tudo começa quando Jekyll, em seu testamento, causadas por obra daquele mal extrínseco. A maldição da
humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem
concede plenos poderes, em caso de morte ou
sido amarrados juntos — que no ventre angustiado da
desaparecimento, a um sujeito chamado Edward Hyde. O consciência aqueles gêmeos opostos lutem continuamente.
problema está na (má) fama de Hyde, um homem de (STEVENSON, 2022, p. 125-126).
comportamentos, no mínimo, estranhos, sempre envolvido em
A história de Jekyll e Hyde nos mostra que o bem e o mal são
atos violentos e criminosos. O leitor embarca em uma
intrínsecos à natureza humana, portanto, indissociáveis e
inquietação junto a Utterson para descobrir: afinal, qual é a
complementares. O admirado médico sucumbiu graças a sua
ligação entre dois sujeitos de personalidades tão distintas
ganância, pois tornou-se obcecado pela própria persona, tal
e tão incompatíveis?
como Narciso se apaixonou pela imagem refletida no lago.
A palavra estranho não está no título à toa: a relação entre Como em um episódio de Scooby-Doo, o monstro da história
Jekyll e Hyde é estranha; a aparência e comportamento de era, na verdade, humano. Um ser humano incapaz de assumir
Hyde são estranhos; a súbita mudança de hábitos de Jekyll é suas fraquezas e de sustentar quem realmente era.
estranha. Entramos no campo do insólito, onde nada é como
espera-se que seja. No lugar da ordem, o caos. No lugar da O mal que Hyde encarna não é externo a Jekyll, não vem como
um componente da poção preparada e ingerida por ele. O
luz, as trevas. Há algo misterioso pairando no ar, circulando
monstro emerge do próprio Jekyll, é seu corpo que se
pelas ruas de Londres a noite. E nós seguimos no encalço do transforma no monstro simiesco que resulta em Hyde. O
dr. Utterson, que encarna o detetive e sai numa verdadeira ca- monstro, o mal, não vem de fora, vem de dentro do círculo do
ça às bruxas, ou melhor, ao bem representado por Jekyll. Bem e Mal não configuram um
monstro. dualismo para Stevenson, mas uma dualidade, ambos provêm
O sr. Hyde era pálido e da mesma matéria-prima. Jekyll e Hyde não são dois seres, mas
quase um anão, dava a dois modos de ser. (GARCIA-ROZA, 2022, p. 14-15).
impressão de ser aleijado, A dinâmica entre aquilo que é recalcado e aquilo que é
sem nenhuma deformidade revelado é a base das relações entre indivíduo e sociedade. A
identificá-vel, possuía um
natureza é repleta de dinamismos. Bom e mau. Moral e imoral.
sorriso
desagradável,comportara- Amor e ódio. Vida e morte. O equilíbrio está no jogo de cintura
se diante do advogado que fazemos para andar na corda bamba.
com um misto execrando
de timidez e ousadia, e
falava com uma voz rouca, STEVENSON, R. L. O médico e o monstro: o estranho caso do dr.
sussurrante e pouco fluida; Jekyll e sr. Hyde. São Paulo: Penguin Companhia, 2021.
todos esses pontos
depunham contra ele mas
nem todos juntos podiam
explicar a repugnância, o
ódio e o medo que
inspirava no sr. Utterson e
que ele nunca sentira antes.
(STEVENSON, 2022, p. 75)
Julia Rocha, 24 anos, formada em
O grande plot twist da licenciatura em Letras Portugês-
narrativa acontece quando Literatura pela UFRJ.
o mistério é finalmente
revelado: Jekyll e Hyde são,
Out-dez 2023 | Scena Crítica 17
Cançonetista
apresenta uma interpretação de passagens textuais que motivo é o dever, fica entendido que é o indivíduo que, em
levam ao conceito da fórmula da humanidade. Já na sua racionalidade, encontra o dever que move a sua boa
segunda seção aponta que a fórmula é uma “ordem direta ação. Portanto, os conceitos morais estão a priori na razão.
da razão”, não sendo justificada através da referência a um E somente o dever é o motivo que faz com que a ação seja
valor. Na seção seguinte aborda a aplicação dessa fórmula boa. Caso a finalidade seja o motivo da ação, esta torna-se
e então discute, na última seção, a principal objeção egoísta. Ora, a partir do momento que o indivíduo age
contra a fórmula da humanidade, segundo a qual ela seria contra o dever, não pratica a boa ação, está cometendo o
vazia e destituída e conteúdo. equívoco contra a sua própria razão.
Robinson dos Santos, em seu texto Sobre autonomia e Tomando esse assunto para a discussão, toma-se o
dignidade como base para justificação dos direitos exemplo: se o indivíduo não se eleva ao patamar de sujeito
humanos, mostra que o problema fundamental que digno por não ter boa vontade, essa ação pode ser
motivou o trabalho de Sensen foi o de entender se os seres universalizada? Não faria sentido na própria dinâmica que
humanos são respeitados por terem dignidade ou se eles Kant propõe. Não teria fundamento com o que ele expõe
têm dignidade por serem respeitados. Caso a primeira em seu texto. Seria uma contradição ao que ele escreve.
afirmação fosse considerada, então está se tratando da Todo e qualquer ser humano pode cair em contradição
interpretação tradicional do conceito de dignidade. A com a sua razão.
dignidade é o fundamento do respeito. Já tomando a Nessa perspectiva, Tonetto atesta que na Doutrina da
segunda possibilidade tem-se uma compreensão Virtude, Kant também escreve que não se deve negar o
totalmente oposta à primeira, pela qual a dignidade respeito ao homem vicioso e nem negar o seu valor moral,
decorre do mandamento do respeito que tem a sua pois “de acordo com esta hipótese ele jamais poderia vir a
origem na razão. ser corrigido, o que é incompatível com a ideia de um
homem que, enquanto tal (como ser moral) não pode
nunca perder a disposição para o bem”. Portanto, isso vai
contra a ideia de Sensen sobre só ter dignidade aquele
que possui boa vontade. Até mesmo o indivíduo com
comportamento vicioso deve ser respeitado. Ele também
possui dignidade e não pode ser tratado como mero meio.
A ética kantiana possui entre os seus deveres o respeito
incondicional à dignidade do outro, não colocando como
limitador a boa vontade das suas ações.
Conclusões
Se para Kant a ação ser boa depende de que ela não seja
praticada sem qualquer finalidade específica, com a razão Tiago Cavalcante é graduado em
Filosofia pela Universidade Católica
utilizando-se de um motivo a priori que está nela mesma de Petrópolis – RJ, onde atualmente
de tal modo que dirija à vontade e pratique a ação, e esse é graduando em Teologia.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 20
A
aparição e disseminação do Islã em África se dá a século X, Zitouna em Tunis, Al-Quaraouiyine em Fés,
partir do século VII na Etiópia e progressivamente Djenné e Tombuctu , Pirés...) e mesquitas que tinham
para o resto do continente africano no século se- papel fundamental no processo de islamização e de
seguinte seguindo as rotas comerciais seculares, prática do Islã, não só na região da Senegâmbia, objeto de
sobretudo no caso da África Ocidental. Por muito tempo Mota, mas também em outras partes do continente.
teve-se o entendimento de que a religião ao chegar ao (MOTA 2014:341). É importante salientar que as instituições
continente africano, principalmente, na África subsaariana, de ensino formaram excelentes eruditos que circulavam
teria tomado características diferenciadas do seu entre a África - o mundo ibérico e o Oriente.
“original”, o que foi chamado por estudiosos franceses A adesão do Islã no continente africano teve vieses
(sobretudo Vincent Monteil no seu livro L´Islam Noir) diversos, justamente por se engendrar na pluralidade de
como Islam Noir, ou Islã Negro. Contudo, é importante sociedades’ existentes, mas boa parte da literatura sobre o
salientar que desde o seus surgimento, as práticas do Islã assunto aponta uma inserção bastante pacífica,
foram sendo modelas segundo os contextos linguísticos e principalmente anterior ao período das jihads, guerras
culturais. santas islâmicas, começarem a tomar espaço na neste
Esse tipo de “classificação” é claramente resultado do espaço da África. Thiago H. Mota elucida que até o século
imperialismo francês, como aponta Thiago Henrique Mota XVII, anterior à chegada de religiosos guerreiros, os
em seu artigo Questões sobre o processo de islamização conhecimentos islâmicos sofriam uma “releitura” para
na Senegâmbia (1570-1625). Neste mesmo texto, Mota adequar-se aos contextos culturais e políticos locais,
pontua as problemáticas acerca desse conceito garantindo um dinamismo e particularidade do Islã
esclarecendo que o Islã encontrado na África negra é tão subsaariano, porém sem perder sua essência. (MOTA
legítimo quanto o Islã árabe. Porém, é necessário 2014:351-352) Esse engendramento entre Islã e cultura
relativizar a fala do autor na medida em que para o Árabe, tradicional desde África tem um grande peso e fará
o africano era e ainda continua sendo um muçulmano diferença na hora de analisarmos o tema do trabalho aqui
inferior. Á prova disso é a lei muçulmana que sentencia proposto. Contrariamente às afirmações de Mota, é
que não se pode escravizar outro muçulmano, mas Árabes importante destacar que houve forte resistência à nova
e nem mesmo os “berberes” arabizados respeitaram isso. A religião. No contexto da África do Norte, segundo Sylvia
captura e a escravização de Ahmad Bhabha, por exemplo, Serbin em seu livro Les reines d´Afrique et les héroines de
levado para o Marrocos, um dos maiores eruditos do la diaspora noire, as mobilizações foram encabeçadas por
império do Mali, é bem ilustrativo. Kahina – uma rainha berbere – resistiram militarmente por
O autor afirma a permanência dos preceitos islâmicos mais de um século contra a penetração do islã.
originais em África ao observar que a prática islâmica Durante o período de tráfico Atlântico, foram
africana mantinha a doutrina dos chamados Cinco Pilares, transplantados africanos de diversas sociedades, culturais,
que seriam a shahadah ou profissão de fé, as cinco salats classes sociais, profissionais de ambos os sexos e de
ou orações diárias, o zakat que concerne à doação de diversas regiões. Com isso, também vieram escravizados
dinheiro e outros bens para necessitados, o jejum no mês que eram muçulmanos, enviados principalmente às
de Ramadan e o hajj, que é a peregrinação a Meca que regiões da Bahia, Rio de Janeiro e de Pernambuco [1].
deve ser feita pelo menos uma vez na vida por todo Essas pessoas foram chamadas de malês no Brasil do
muçulmano que tiver condições financeiras e de saúde século XIX. Muitos deles foram vendidos como escravos
para fazê-lo. Além disso, constatou também a existência por vencedores de conflitos locais ainda no continente
de escolas corânicas, universidades (Al-Azhar no Egito no africano, principalmente após a jihad feita pelo sheikh [2]
fulani Usman Dan Fodio (este é um dos seus
nomes registrados), contra os hauçás. Esses
africanos escravizados e vendidos pós esses
conflitos tinham características muito
particulares. Embora a escravidão não fizesse
distinção entre pobres e ricos, letrados ou não, de
prestígio ou não; os malês tinham uma formação
intelectual que muitas vezes era superior a dos
seus próprios senhores. Eram bilíngues, sabiam
escrever e até mesmo ensinar o árabe. Por conta
disso, sempre faziam parte dos grupos de
resistência por não aceitarem tal condição.
Foram eles que pensaram e articularam com
outros não muçulmanos o grande levante de
escravizados da Bahia conhecido como Revolta
dos Malês. É interessante pensar a perspectiva de
sociabilização de escravizados no nordeste
brasileiro através dessa revolta. Sua configuração
mostra de forma clara que embora houvessem
diferenças pessoais entre todos os envolvidos, o
senso de coletividade e necessidade de sobrevi-
http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693
nordeste, pensemos como a presença dos mesmos nesses
espaços, que já tinham considerada disseminação de
cultura religiosa africana tradicional, foi capaz de
influenciar as práticas do Candomblé. Contudo a
apreensão da flexibilidade e da fluidez nos trânsitos dos
espaços religiosos nos obrigam a tomar em conta a
existência desta facilidade na própria África como
também os efeitos das extremas brutalidades coloniais em
novas terras que forçavam fortes intercâmbios culturais
para que esses escravizados continuassem vivos e ao
mesmo tempo fortalecia os laços entre os infelizes. diversas formas de racismo e preconceito que assolavam e
Nos trabalhos acadêmicos analisados para este trabalho, ainda assolam a esmagadora maioria da população
brasileira descendente de africanos por fazer acreditar que
nos quais friso o baixo número de produções feitas até o
o negro africano foi o único a ser escravizado ao longo da
presente momento, apontando um campo fértil ainda a história moderna da humanidade. (KALY2016:130)
ser explorado, é observado que é praticamente impossível
precisar o momento em que essa dita influência começou É importante ressaltar que a troca religiosa e cultural
a acontecer entre ambos os objetos. realizada pelo Islã e o Candomblé dos escravizados em
A longa e terrível viagem abordo dos navios negreiros era nada deslegitima ambas as religiões; pelo contrário,
um dos primeiros passos na tentativa de desumanização mostra como o processo de construção e afirmação de sua
do africano escravizado. Ainda dentro desse ambiente estrutura em terras brasileiras tem marcas do que foi a
hostil, as pessoas tentavam criar redes de associação, escravidão e como a mesma propiciou que cada uma
comunicação e de sobrevivência. Trocas multilaterais que fosse o que é até os dias de
permeavam todos os âmbitos da vida, inclusive suas hoje.
crenças. O autor Waldemar Valente, citado no artigo de Claudia
Retomando ao que foi falando anteriormente sobre a Lima e outros, estuda a questão Islã x Candomblé muito
islamização do continente africano, podemos observar que bem. Ele, por exemplo, estudou possíveis ligações entre
o convívio entre Islã e cultura tradicional se deu de muitos ditos “amuletos” islâmicos, usados desde África, que eram
séculos, portanto, anterior ao período do tráfico Atlântico. compostos por um cordão com um pingente que se
Desta forma, as primeiras trocas entre essas duas assemelhava a um livreto e que continha versículos do
instâncias se iniciaram antes mesmo dessa longa viagem Alcorão com o uso de patuás bantos que guardavam unha
até o outro lado do oceano. e cabelo para fins de proteção e cura. Valente (1957:57-58)
Existem diversos relatos, de clérigos da igreja, periódicos, citado por Lima (2009:292) destaca também que em
autores do período e relatos orais que apontam para diversos xangôs pernambucanos que tinham forte tradição
resquícios de prática islâmica que parecem ter adentrado gêge-nago, foi possível observar uma prática corânica
ao exercício da fé de Candomblé. muito comum que proíbe o uso de bebidas alcóolicas.
No artigo, Negros Islâmicos no Brasil: interpretação do A autora Claudia Lima apresenta outros elementos
presentes na prática do Candomblé pernambucano que
Islã no Brasil de Lidice Meyer Pinto Ribeiro a autora cita o
lembram exercícios de fé islâmicos. Lima cita que uma
estudioso Arthur Ramos, que acerca da interação entre o
dona de casa [de santo] de braços cruzados faz uma
Islã e religiões tradicionais diz: “O islamismo dos negros
reverência dizendo a frase Barica da Subá môtumba, que
malês do Brasil sempre esteve eivado das práticas
significa “meus respeitos”. (LIMA 2009:297). No Islã durante
religiosas africanas.” (RIBEIRO 2011:150) E Ribeiro ainda
a salat os muçulmanos sunitas ficam com as mãos sobre o
reafirma que tal fenômeno havia se iniciado ainda em
África, como apontado anteriormente. peito quando estão de pé, em uma postura de respeito a
Em outro artigo igualmente interessante, da autora Allah. O costume de tocar o chão e passar as mãos no
Claudia Maria de Assis Rocha Lima, de título Heranças rosto no rito de Candomblé nagô pernambucano também
se assemelha muito a prática da salat muçulmana que
Muçulmanas no nagô de Pernambuco: construindo mitos
pratica ambos durante a reza. Prostra-se à Allah ao mesmo
fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Lima
tempo em que se diz a expressão Allahu Akbar [3] em
inicia seu texto com elucidações um pouco problemáticas
reconhecimento a grandeza de Deus e passar as mãos no
envolvendo a questão do conceito de Islã Negro. Para ela
rosto para os muçulmanos e depositar as bênçãos que
“o islamismo negro é uma religião sincrética” (LIMA
Allah enviou aos fiéis durante a oração nas suas vidas.
2009:285), porém, como já foi aqui elucidado, essa
Lima também diz que:
afirmação reforça a ideia imperialista francesa de que o
Islã da África subsaariana é inferior, como se o praticado Outras evidências nos fazem supor que a arquitetura dos
terreiros, que surgiram no Brasil tem uma ligação com a
nessas regiões fosse apenas um islamismo completamente
disposição das mesquitas muçulmanas. Nas mesquitas,
afastado dos seus preceitos originais. E, como já foi homens e mulheres retiram os sapatos e dirigem-se a áreas
apresentado, no trabalho de Thiago Henrique Mota, pode- separadas, onde tapetes para orações são estendidos. Na
se ver que a situação é bastante diferente. maioria dos terreiros, estão estabelecidos os locais dos
A perpetuação desse tipo de discurso, de fato, gera ecos homens e das mulheres, tanto para assistência, como para
de desvalorização que acabam for favorecer manutenções os integrantes do culto. (LIMA 2009:299)
de imaginários sociais que o utiliza para perpetuar uma O babalorixá Eurico Ramos em seu livro Revendo o
brutalidade. Alain Pascal Kaly elucida isso claramente Candomblé: respondendo perguntas mais frequentes
quando diz: sobre a religião aponta diversas possibilidades de
O silêncio passou a contribuir bastante na periferização e assimilações islâmicas dentro dos terreiros. Ramos fala
invisibilização das contribuições da civilização árabo-
primeiramente sobre o xirê, palavra em ioruba que
muçulmana na formação da identidade nacional; também
contribuiu ideologicamente ao legitimar ndiretamente as significa roda em que são evocados os orixás, é o ápice
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 22
litúrgico em uma casa de Candomblé. É no xirê que é feita [1] É muito importante destacar que os portugueses, os espanhóis e
também parte dos franceses tinham sido colonizados pelos africanos
a roda das baianas. Essas baianas giram no sentido anti-
islamizados por quase nove séculos. Vide os trabalhos de Alain Pascal
horário, em volta da chamada cumeeira, que é o mesma Kaly (2016) Mamadou Diouf, Tata Cissé sobre esta presença. Foi esta
direção em que gira o planeta, representando assim o presença secular que vai lançar algumas das bases das conquistas do
processo evolutivo da humanidade e da Terra através das mundo atlântico.
histórias dos Orixás. Os muçulmanos também fazem esse [2] Título dado ao líder religioso no Islã.
[3] Que significa “Deus é grande”.
giro em torno de um pilar central no mesmo sentido, para
[4] Considera-se sunnah os meios que o profeta Muhammed escolheu
Ramos a diferença é que todo esse rito no Islã é feito com para aplicar a palavra de Deus revelada através do Alcorão. A palavra
muito sentimento e dor, enquanto no Candomblé é feito em árabe significa “caminho”, aquele no qual todo muçulmano deve
com muita alegria e festa. (RAMOS 2011:s/p). seguir.
É comum fazerem associações da palavra Oxalá com a
figura islâmica de Deus, geralmente chamada de Allah ou
Bibliografia
Alá. Porém, a grafia dessa palavra tem dois significados. O
primeiro é árabe, oriundo da expressão InshAllah que LIMA, Claudia Maria de Assis Rocha. Heranças muçulmanas no
significa “se Deus quiser” e o segundo vem da palavra nagô de Pernambuco: construindo mitos fundadores da religião
ioruba Òrìsànlá, nome de um orixá, a quem também de matriz africana no Brasil. Revista Brasileira de História das
chamam de Obatalá. Religiões. Ano I, nº 3, jan. 2009 – Dossiê Tolerância e Intolerância
Ramos aponta outras similaridades, como o do opaxorô, nas manifestações religiosas.
um objetivo em forma de cajado estritamente ligada a
vestimenta do orixá Oxalá e que representa a criação do KALY, Alain Pascal. A presença-ausência dos árabes e de
mundo. O babalorixá diz que: “os símbolos do opaxorô são muçulmanos nos processos de
modernização brasileira: a readequação dos mapas coloniais.
incrivelmente similares aos encontrados nas mesquitas
Repocs, v.13, nº 26, jul/dez 2016.
islâmicas, devido aos vestígios do Islã que permaneceram
na nossa religião até os dias de hoje.” (RAMOS 2009:s/p) e
MONTEIL, Vicent. L’Islam Noir. Revue de l'histoire des
acrescenta que essa influência se apresenta em diversos
religions, 1965, 168-2, pp. 225-226.
outros detalhes como nos torsos ou ojás nas cabeças, que
seriam semelhantes aos turbantes islâmicos, que embora MOTA, Thiago Henrique. Questões sobre o processo
não sejam encarados como regra por homens muçulma- de islamização na Senegâmbia (1570-1625). Revista
nos é considerado uma sunnah [4]. Também nos panos de Ciências Humanas. Viçosa: v. 14, nº 2, p. 339-
da costa, que lembram o uso do filá muçulmano que 335, jan/dez 2014.
muitas vezes também era utilizado com um pano joga-
do pelo pescoço e costas, a cor branca ser associada a RAMOS, Eurico. Revendo o Candomblé:
cor de Oxalá, o fato da sexta-feira ser um dia sagrado respondendo as perguntas mais frequentes
assim como no Islã, etc. sobre a religião. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Dentro das divindades do Candomblé tam-
bém é possível identificar uma falange de RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros Islâmicos
no Brasil. Revista USP. São Paulo: nº 91, p.
um orixá que está diretamente ligado
139-152, setembro/novembro 2011.
com a figura do muçulmano negro, que é
Ogum Malê ou Ogum Malei. Essa divinda-
SERBIN, Sylvia. Reines d'Afrique et
de é a sexta falange do orixá Ogum, que
héroïnes de la diaspora noire. Sepia Eds.
é um orixá guerreiro. Pouco conhecido, e
2004.
por isso faz com que se tenham poucas
representações do mesmo, Ogum Malê é SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a
tido como a figura de um guerreiro negro, rebelião de 1835 na Bahia. Revista
fortemente armado e com roupas mouras, Brasileira. n. 31, v. 8, 2002. p. 9-34.
ou seja, com vestimentas típicas dos povos
do norte da África que praticavam o Islã.
São muitas as possibilidades e objetos de
análise que este tema apresenta. Embora
ainda pouco estudadas no efervescente
meio de pesquisas acadêmicas em História do Brasil, as
conexões entre Islã e Candomblé são riquíssimas e se
apresentam prontas para serem exploradas. Os autores
que o fazem tentam reconstruir redes de interação que
por vezes parecem sutis, mas que quanto mais são
pesquisadas, mais saltam aos olhos do pesquisador.
Os estudos sobre escravidão são plurais e merecem
maior aprofundamento sobre esse tema.
Através dos apontamentos feitos nesse trabalho através da
leitura dos textos, é possível concluir que existiu sim uma
troca religiosa considerável entre as práticas islâmicas e as
de Candomblé. Hoje, ambas as religiões estabelecidas em
território nacional, cada uma com seus fiéis, parece que tal Barbara Lima é historiadora e
graduanda em Letras/Inglês. De
associação parece absurda ou até mesmo apenas interesses múltiplos, busca na
especulativa. Porém, entender que o período escravocrata multipotencialidade o equilíbrio
do Brasil separou negros de suas casas em África, que entre felicidade e ofício.
precisaram por sua vez fazer novas casas e famílias aqui, é
perceber que todo esse processo não poderia excluir as
práticas religiosas que se esbarravam no dia-a-dia que
geraram assimilações naturais de ambas as partes gerando
um cenário ainda mais plural do que nós já conhecemos.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 23
CADERNO
CINEMA
DE
Cinema-movimento
cotidiano
um valor, é bom em si: deixa-nos momentaneamente felizes,
plenifica ocasionalmente os sentidos e o buscamos para
participar da exuberância da vida. Isso tudo é muito bom,
mas infelizmente, na relação com os outros, muitas vezes
Q
Aqui chegamos num conclusão lógica: a moralidade do
uando tratamos de temas relacionados a sexu-a prazer depende do ato que lhe dá origem. Se aquilo que
lidade humana é fácil se limitar em tecer críti- causa o prazer é moral, o prazer é moral. Mas se aquilo que
cas a condutas e posturas inadequadas ou falar causa o prazer é nocivo, o prazer que dele provem é imoral e
mormente de procriação. Porque ir além é se não deve ser buscado. Existe, de certo, uma ligação direta
colocar diante de temas um tanto sensíveis e complexos. entre o prazer e a sexualidade. Se ele comporta uma relação
Falar de prazer quase tem sido um tabu em nossos ciclos. autêntica com o outro, que busca o seu bem, a sua realização,
Parece que ele é visto como um problema e não inserido ele é uma atitude madura. Se for o contrário, é imaturidade.
no sentido da própria sexualidade.
Na década de 1930, Freud anunciava que o prazer era
aquilo que levava todos os indivíduos a agir e se lançar em
qualquer projeto. Para ele, o único prazer verdadeiro era o
sexual e a sociedade, para se edificar, reprimia esses
instintos. Logo, segundo esse pensamento, viver em
sociedade necessariamente exigia a renúncia destes
prazeres para ter outras satisfações. O resultado a que
chegamos, segundo essa visão, é uma antinomia entre o
prazer e a sociedade.
Este pensamento equivocado resultou no florescer de uma
cultura hedônica, capaz de influenciar profundamente a
sociedade moderna, produzindo a ideia de que o prazer é
o único bem humano verdadeiro. E que o mal-estar ou
conflito social é resultado da renúncia forçada deste
instinto natural, negando outros elementos da
personalidade como a tendencia a agressividade existente
dentro de cada um de nós. É uma utopia pensar que,
liderado por seus próprios instintos, o homem conseguisse
alcançar um vida virtuosa e feliz. E o pior, que esse prazer
pudesse ser duradouro a ponto de determinar a vida.
Por vezes, no decorrer da história, a Igreja é acusada de ser
contrária ao prazer, inimiga do corpo. Essa é uma das
maiores caraminholas já propagadas. O prazer é um dos
temas centrais da doutrina cristã, embora não seja sempre
o mocinho, pois é colocado nos dois lados da discussão: é
moral enquanto facilitador da prática da virtude e imoral
enquanto fim em si mesmo e, nesse segundo caso, deve A sexualidade humana é relacional e por isso se vincula
ser evitado, pois não é caminho para a felicidade, a bem- naturalmente com o prazer. É na experiencia do prazer que o
aventurança, é apenas uma atitude egoísta e viciosa. homem dispõe o dom de si mesmo para acolher o outro. Se é
Sempre identificamos felicidade com prazer e fazemos dom, é gratuito e colocado a serviço, nesse caso, como troca,
isso porque é totalizante, gratuito, gratificante. Ousaria proporcionando alegria dos homens e mulheres.
dizer que constitui em si certa plenitude, pois é Enriquecendo-os de acordo com a sua abertura para o bem
autossuficiente, encerra o sujeito em si como um tipo, do outro. Nunca, jamais, na forma de egoísmo, quando o
talvez mais simplificado, de bem-aventurança. Essa outro é transformado num objeto.
identificação, embora comum, causa ambiguidade e gera O equilíbrio virtuoso da vida se dá, por vezes, pela renúncia.
um séria imprecisão, pois o prazer não é algo absoluto. Esse é um caminho seguro para o alcance da maturidade. O
Logo, não pode ser equiparado à felicidade, muito menos excesso de prazer é viciante, transforma-o num fim em si
à bem-aventurança. A felicidade está na esteira do desejo mesmo e dessa forma adultera o seu verdadeiro papel que é
pelo infinito, enquanto o prazer é sempre limitado, preso apontar para um bem maior. No sentido da sexualidade
ao instante, uma atividade precisa e acabada. humana o prazer deve sempre ocupar o seu verdadeiro lugar
É importante o cuidado para qualquer forma de que é na maturação social e pessoal das pessoas, ajudando
absolutização do prazer. Do mesmo modo, deve-se atentar tanto o homem na sua masculinidade como a mulher na sua
para não cairmos num outro extremo que é a sua negação. feminilidade a desenvolver-se como pessoas humanas
“Virtus est medium vitiorum et utrimquereductum”, a integras, maduras e harmoniosas em si e na relação com as
virtude é o meio termo entre dois vícios, equidistante de outras pessoas.
ambos. Assim dizia Horácio em suas Epístolas (Livro 1,18).
Portanto, é preciso aceitar que o prazer é um valor. Ao
mesmo tempo é também um meio, é util. Mas assim
caímos novamente em dois extremos: ou ele é
absolutamente moral, é um valor, ou é reduzido a simples Rafael dos Santos, sacerdote da
utilidade. Arquidiocese de São Sebastião do
Partamos então da categórica afirmaçãode que o prazer é Rio de Janeiro. Possui Formação em
Filosofia, Direito, Teologia e é
mestrando em Direito Canônico no
PISDC/Pontifícia Universidade
Gregoriana.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 25
Inspiração e poemas
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