Você está na página 1de 24

F O R T U N A C R Í T I C A

Ivan Teixeira

RETÓRICA E LITERATURA
No primeiro artigo da série Fortuna crítica, o

Fotos Reprodução
crítico Ivan Teixeira analisa a abordagem
retórica da literatura, que tem seus fundamentos
em Aristóteles e cujos tropos e figuras de
linguagem são dispositivos que permitem a
particularização do discurso poético
Estátua de Aristóteles no Museu Spada (Roma)

Série destaca as principais A abordagem retórica da literatura é quando chamado a se manifestar sobre
uma modalidade intrínseca de crítica, que coisas futuras é consultor, porque acon-
tendências da crítica literária leva em conta não apenas o texto em si, selha ou desaconselha uma ação ainda por
A partir desta edição, a CULT publica mas também o ato de emissão e seu efeito acontecer, como ocorre, por exemplo, na
a série “Fortuna Crítica”, com seis sobre o leitor, isto é, considera o produto, propaganda. No discurso demonstrativo
ensaios de Ivan Teixeira sobre as prin- o autor, o leitor e a circunstância em que ou epidítico, o ouvinte é apenas espectador,
cipais correntes da crítica literária e se processa a comunicação. Sempre reno- porque sua atenção recai sobre o presente,
das teorias poéticas. O primeiro, publi- vados, os estudos retóricos constituem- buscando tão-somente se deleitar com o
cado nestas páginas, aborda a retórica
de Aristóteles e Quintiliano. Os próxi-
se numa das mais antigas e permanentes louvor ou com a censura de uma ação
mos ensaios serão sobre o formalismo, preocupações do homem. ainda em vigência. Nesses casos, os
o new criticism, o estruturalismo, o new No terceiro capítulo da Retórica, ouvintes reúnem-se apenas para conhecer
historicism e o desconstrucionismo. Aristóteles ensina que há três gêneros de as ações; nos dois outros, para as conhecer
Ivan Teixeira é professor do Departa- discurso: o judicial (acusar ou defender), e determinar alguma coisa sobre elas. Os
mento de Jornalismo e Editoração da o deliberativo (aconselhar ou desacon- fundamentos dessas noções originam-se
ECA-USP, co-autor do material didático
do Anglo Vestibulares de São Paulo
selhar) e o epidítico ou demonstrativo em Aristóteles, mas alguns acréscimos
(onde lecionou literatura brasileira (louvar ou censurar). Essas modalidades apresentados aqui decorrem da versão
durante mais de 20 anos) e autor de definem-se a partir da posição do ouvinte setecentista de Quintiliano para o portu-
Apresentação de Machado de Assis perante o discurso. No gênero judicial e guês, levada a efeito por Jerônimo Soares
(Martins Fontes) e Mecenato pombalino no deliberativo, o ouvinte é sempre juiz, Barbosa, cujos comentários facilitam
e poesia neoclássica (a sair pela Edusp).
assumindo diferentes nuanças diante do muito a compreensão da matéria: Insti-
Ivan Teixeira tem se dedicado a edições
comentadas de clássicos – entre eles as discurso, conforme deva se manifestar tuições oratórias, 1788-1790.
Obras poéticas de Basílio da Gama sobre coisas passadas ou presentes. Quan- A partir dos acréscimos de Quin-
(Edusp) e Poesias de Olavo Bilac (Martins do chamado a se manifestar sobre coisas tiliano, pode-se afirmar que o gênero
Fontes) – e dirige a coleção “Clássicos passadas, o juiz é julgador, porque acusa demonstrativo é o que mais se aproxima
para o Vestibular”, da Ateliê Editorial. ou defende uma ação já concluída; do atual conceito de discurso literário,

42 CULT - julho/98
pois objetiva o aparato e a ostentação, segundo, organiza-as conforme a conve- criação, que integra a inventio e a dispositio.
intensificando a beleza do texto. Nele, o niência dos gêneros e dos argumentos; Conforme Lausberg, a elocução consiste
orador não pretende ganhar nenhuma no terceiro, aplica-lhes os ornatos, que na expressão lingüística das coisas
causa, mas a própria reputação, mediante são os artifícios mediante os quais se localizadas pela invenção. Jerônimo
o prazer proporcionado ao ouvinte. Em particularizam as coisas retóricas. Mas o Soares Barbosa afirma tratar-se da
vez de ocultar os artifícios da construção, que são coisas retóricas? São a matéria de expressão verbal capaz de acrescentar
coloca-os à mostra, procurando promo- que fala o poeta, a qual não deriva da vida nova força aos pensamentos, isto é, acre-
ver a maravilha e o espanto no ouvinte. empírica dos fenômenos, mas sim da copia ditava que a elocução tinha o poder de
Por isso, empenha-se nos tropos e nas rerum, que é o repertório coletivo de onde melhorar os pensamentos que já tivessem
figuras, então entendidos como ornatos se extraem as tópicas, moldadas pelas tido uma boa escolha e uma boa ordem.
do discurso, mediante os quais o orador contingências da questão finita. Entende- Todavia, a escolha e a ordem dos pen-
conquistava a aclamação. As operações se por questão finita o universo prático a samentos de nada valeriam sem expressão
do gênero demonstrativo em Quintiliano que se destina o discurso. eficiente.
não se distanciam daquilo que, hoje, se Em outros termos, as coisas retóricas Segundo Quintiliano, pensamentos
entende por função poética da linguagem, são os argumentos que se cristalizam sem expressão são como espadas na
em que os ornatos tornam o texto mais como casos passíveis de se converterem bainha. Conforme o mesmo Quintiliano,
denso, fornecendo ao leitor a essa parte da retórica divide-
Páris e Helena,
oportunidade de “apalpar” os se em duas modalidades: a
de Jacques-Louis
efeitos da ação do poeta sobre David, exemplifica elocução gramatical e a elocu-
o discurso. o uso pictórico da ção ornada. A primeira limita-
Em termos atuais, o as- alegoria, em que se à correta transmissão dos
pecto mais propriamente lite- idéias abstratas são pensamentos, vestida apenas
rário do epidítico é uma certa representadas por com clareza e elegância. A
ficcionalidade do gênero, pois figuras concretas segunda caracteriza-se pela
não pretende induzir a uma atribuição de força, luz e graça
ação imediata, de caráter práti- aos pensamentos. Pois não
co, como é o caso do gênero judicial e do em texto. Assim, a comunicação lin- basta ao sujeito falante ser claro e correto,
deliberativo. Ao contrário, pretende esti- güística funciona como uma espécie de deverá também causar admiração, caso
mular a contemplação das ações louvadas, simulacro da natureza, da mesma forma ambicione a aprovação dos sábios e o
assim como o repúdio das ações criticadas. que a poesia deve ser entendida como louvor do povo. E a admiração decorre
Nascem daí a poesia encomiástica (exal- uma cópia desse simulacro. Quaisquer da conveniente aplicação dos ornatos
tação da virtude) e a sátira (condenação que sejam as nuanças do vocábulo natu- retóricos, que são, basicamente, os tropos
do vício), entendidas ambas como moda- reza, parece indiscutível que sempre se e as figuras. Para realçar a importância
lidades recentes do epidítico. Tendo em associa ao objeto de referência do discurso do ornato na elocução, Quintiliano
vista o fim da poesia, esse gênero visava humano. Assim, o mundo imitado pela fornece dois exemplos bastante convin-
ao aprimoramento da vida moral, na poesia deve ser entendido como a reali- centes, dizendo que o brilho da espada
medida em que propunha modelos de dade dos casos retóricos, conjunto de intensifica o terror que ela pode causar
virtudes cívicas, assim como apontava o signos que representam as formas da vida. num combate, assim como o relâmpago
que se devia evitar no exercício da Se o mundo do poeta (fazedor) com- torna o raio mais impressionante.
cidadania. põe-se de coisas retóricas, o modo de Assim, entende-se que a elocução
Conforme a retórica antiga, a comu- articulação dessas coisas deve ocupar ornada seja a essência do discurso
nicação verbal envolve cinco estágios, dos especial atenção na análise retórica do convincente, apto a produzir um efeito
quais três ainda se podem considerar texto. Nesse sentido, a elocutio impõe-se favorável no leitor, causando maravilha
fundamentais: a invenção, a disposição e como o passo mais importante da – o que, tanto nos termos clássicos quanto
a elocução. No primeiro, o orador ou o comunicação verbal, pois confunde-se nos atuais, pertence à esfera do poético.
poeta escolhe as coisas retóricas; no com o dizer: o ato propriamente da De fato, nos modernos estudos de poética

julho/98 - CULT 43
tem-se levado em conta principalmente ria, a antonomásia e a onomatopéia. vocábulos. O mesmo ocorre com a ale-
a fase elocutiva da construção do discurso, Nesses casos, usam-se os vocábulos fora goria, que deve ser entendida como um
o que pode ser confirmado pelas inves- de sua acepção comum. conjunto interligado de metáforas. Na
tigações de feição estruturalista, desde os Em outros termos: aplica-se um alegoria, certas noções abstratas (vícios,
formalistas russos, John C. Gerber, vocábulo em lugar de outro, sendo que virtudes) são representadas mediante
Wayne Booth até Roland Barthes, Tzve- deve haver uma relação perceptível entre figuras concretas, como costuma acon-
tan Todorov e o Grupo da Universidade o vocábulo utilizado e o evitado. Se a tecer com a iconografia tradicional do
de Liège. relação entre o vocábulo utilizado e o diabo (alegoria do mal) e do anjo (ale-
Seguindo a tendência atual no ensino evitado for de semelhança, ocorre a goria do bem).
da retórica clássica, um pequeno manual metáfora, que é uma espécie de com- Da mesma forma, a antonomásia
popular na Inglaterra considera o termo paração abreviada. Se a relação entre os pertence à esfera do tropo, pois nela um
latino elocutio como nome próprio é subs-
sinônimo de estilo (Peter Detalhe tituído por uma qua-
Dixon, 1971). Francisco do quadro lidade desse nome, como
José Freire, na Arte Apoteose de se observa na expressão
poética (1759), não cansa São Tomás, de o Pai dos deuses em lugar
de exaltar a necessidade Andrea da Firenze de Júpiter. A invenção de
de uma elocução ornada (Santa Maria Novella, palavras com finalidade
Florença),
para o bom efeito da expressiva é também
representando
poesia, dizendo que, sen- a “Retórica” de
considerada uma espécie
do impossível ao poeta maneira alegórica de tropo, tal como se
sempre encontrar maté- constata na onoma-
ria em si maravilhosa, topéia.
deve produzir maravilha Se os tropos se mani-
e novidade pela força do festam pelo uso impró-
artifício ou pelo esqui- prio das palavras, as
sito da pintura. Numa figuras consistem no uso
palavra, o poeta deve personalizado das pala-
provocar o estranha- vras, sem que seu sentido
mento mediante a elo- original seja violado,
cução projetada para o como se observa, por
efeito de surpresa e arrebatamento, o que vocábulos for de contigüidade, ocorre a exemplo, no hipérbato, que nada mais é
se consegue principalmente mediante as metonímia. Os autores do Renascimento do que um tipo de inversão.
imagens artificiais fantásticas, tal como e os da Ilustração esforçaram-se por O mesmo ocorre com a antítese, que
a define no capítulo XV de sua indis- manter o máximo de lógica na relação consiste na justaposição de contrários,
pensável poética. entre os termos do processo metafórico. sem alteração dos termos contrapostos,
Do que fica exposto acima, conclui- Pela perspectiva dos poetas seiscentistas, embora a fusão de ambos acabe gerando
se que os tropos e as figuras de linguagem quanto mais imprevista e imaginosa a um terceiro elemento semântico. Quin-
são dispositivos importantes para a relação entre os termos da metáfora tanto tiliano não adota a distinção entre tropos
particularização do discurso poético. A mais apreciável seria o tropo. e figuras, considerando apenas que
retórica clássica costumava fazer dis- A ironia pertence ao mesmo tipo de existem tropos para significar (com
tinção entre os tropos e as figuras, geração de sentido, pois consiste em insi- alteração do significado próprio) e tropos
também chamadas esquemas. Por tropo nuar o contrário do que se diz. Nela, para ornar (sem alteração do significado
entendia-se o uso de um vocábulo em afirma-se uma coisa para sugerir o seu próprio). Como quer que se encare a
sentido impróprio, como acontece com a contrário, isto é, baseia-se no princípio questão, a adoção atual da retórica deve
metáfora, a metonímia, a ironia, a alego- da alteração do sentido próprio dos conduzir ao exame da geração do sentido

44 CULT - julho/98
B I B L I O G R A F I A
• Ensaio de Rhetorica, Confórme o Metodo
e Doutrina de Quintiliano e as Reflexões
dos Authores mais Célebres, que trataram
desta Matéria, por Frei Sebastião de Santo
Antonio. Lisboa, 1779.
• Arte retórica e arte poética, de
literário. Tratando-se de dispositivos vocábulo fora de sua classe: antimeria). Aristóteles. Introdução e notas de Jean
metalingüísticos e, portanto, com força No mesmo poema, há outro verso Voilquin e Jean Capelle. Tradução de
crítica, o simples conhecimento da enigmático: “Olhos sujos no relógio da Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo,
estrutura dos ornatos pode conduzir à torre”. Caso o leitor tenha consciência Difusão Européia do Livro, 1964.
significação dos mesmos. de que o poeta incorporou o esquema da • Ancient rhetoric and poetic, de Charles
Pense-se no início de “A flor e a adjetivação transferida (hipálage), logo Sears Baldwin. Nova York, The Mac-
náusea”, de Drummond. O primeiro atribuiria mais densidade semântica ao millan Company, 1924.
verso diz: “Vou de branco pela rua texto, traduzindo: “Olhos [limpos do • Instituiçoens Oratorias de M. Fabio
cinzenta”. Admita-se que o leitor poeta] voltados para o relógio sujo da Quintiliano, [...] Traduzidas em Lin-
perceba isoladamente as cores enu- torre”. Um passo a mais, e chegar-se-ia guagem, e ilustradas com notas Criticas,
meradas no verso, sem perceber a relação à idéia de que o tempo, a época, a história Historicas, e Rhetoricas, para uso dos que
contrastante entre ambas. Nesse caso, a é que estão encardidos pela conta- Aprendem, por Jeronymo Soares Barboza.
leitura seria menos completa do que a minação social (Guerra Mundial, Coimbra, 2 volumes, 1788-1790.
que registrasse a oposição entre a pureza Estado Novo, capitalismo inconse- • Rhetorical analyses of literary works,
da persona lírica (o poeta) e a impureza qüente). Estes são pormenores perfeita- de Edward P. J. Corbett. Nova York,
do lugar por onde caminha. Logo, a mente compatíveis com o sentido geral Oxford University Press, 1969.
simples consciência de que o poeta do poema. E decorrem do entendimento • Rhetoric, de Peter Dixon. Londres,
lançou mão da antítese para caracterizar da função estrutural dos artifícios Methuen, 1971.
o cenário e a personagem do poema elocutivos, interpretados como um • Arte Poetica ou Regras da Verdadeira
desvenda o significado da abertura do conjunto de formas destinadas à signi- Poesia em Geral, e de Todas as suas
texto. ficação. Especies Principais, Tratadas com Juizo
Mais adiante, no mesmo poema, lê- Assim, a noção antiga de ornato Critico: Composta por Francisco Joseph
se: “Mercadorias, melancolias es- transforma-se em ornato dialético, in- Freire [Candido Lusitano], 2 volumes,
preitam-me”. Trata-se de um verso trinsecamente vinculado à formulação Lisboa, 1759.
enigmático, que facilmente seria inter- do sentido literário do enunciado • Alegoria: construção e interpretação da
pretado como absurdo, caso o leitor não lingüístico. Da idéia de ornato dialético metáfora, de João Adolfo Hansen. São
soubesse da existência da metonímia, chega-se com facilidade ao conceito de
Paulo, Atual, 1986.
que faz pensar em: homens melancólicos arte como procedimento, um dos mais
• A practical rhetoric of expository prose,
ao lado de mercadorias, nas lojas, espiam a adequados redimensionamentos da
de Thomas S. Kanes e Leonard J.
passagem de um poeta indignado. O retórica clássica no século XX, levado a
Peters. New York, Oxford University
primeiro substantivo (mercadorias) está efeito pelos teóricos do formalismo
Press, 1966.
por mercadores; o segundo funciona russo, de que se tratará no próximo
• Elementos de retórica literária, de
como adjetivo do primeiro (uso de um artigo desta série.
Heinrich Lausberg. Tradução, pre-
fácio e aditamentos de R. M. Rosado
O poeta Carlos Fernandes. Segunda edição. Lisboa,
Drummond de Andrade, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
autor do poema • Camões e Vieira: As Artes e os Feitos, de
“A flor e a náusea”, Alcir Pécora. In: Revista do IFAC,
que utiliza as figuras
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura/
retóricas da metonímia e da
adjetivação transferida Universidade Federal de Ouro Preto,
para dar maior densidade nº 2, dezembro, 1995.
semântica a seus versos • Elementos da Invençam, e Locuçam
Rhetorica, ou Princípios da Eloquencia:
escritos, e ilustrados com breves Notas por
Antônio Pereira. Lisboa, 1769.

julho/98 - CULT 45
F O R T U N A C R Í T I C A 2
Ivan Teixeira

O FORMALISMO RUSSO
Movimento que desencadeou uma abordagem

Reprodução
lingüística da literatura teve Jakobson e
Chklovski entre seus representantes e procurou
mostrar como o texto poético instaura a
consciência formal do discurso literário em seus
níveis semântico, sintático e fonológico O lingüista russo Roman Jakobson

Série destaca as principais Um dos marcos da moderna teoria forma, entende a língua poética como
tendências da crítica literária literária encontra-se no ensaio “A arte uma oposição ao cânone literário domi-
como procedimento”, escrito em 1917 nante. Introduz, com isso, a noção de que
“Fortuna Crítica” é uma série de seis por Vítor Chklovski. Essa noção tornou- o valor artístico de uma obra decorre não
artigos de Ivan Teixeira sobre as prin- se consensual após os estudos de Victor apenas de sua estrutura verbal, mas
cipais correntes da crítica literária e das
Erlich nos Estados Unidos (1955) e, também da maneira como é lida. Con-
teorias poéticas. O primeiro ensaio,
publicado no número 12 da CULT sobretudo, depois que um teórico de forme essa perspectiva, não existe valor
(julho), abordou a retórica de Aristóteles orientação marxista, Terry Eagleton, se artístico em termos absolutos, pois
e Quintiliano. O presente texto delineia apropriou dos princípios do formalista afirma que há objetos concebidos como
o formalismo russo e, nos próximos russo em sua Teoria literária (1983), prosaicos e percebidos como poéticos,
ensaios, serão apontadas as diretrizes do atualmente o manual mais popular dessa assim como há objetos concebidos como
new criticism, do estruturalismo, do new
historicism e do desconstrutivismo. Ivan disciplina na Inglaterra. Como se sabe, poéticos e percebidos como prosaicos.
Teixeira é professor do Departamento de Roman Jakobson, outro integrante funda- Nesse sentido, o morfologista russo
Jornalismo e Editoração da ECA-USP, co- mental do Formalismo, é responsável por instaura uma espécie de teoria da rela-
autor do material didático do Anglo Ves- uma das teorias mais difundidas no tividade na avaliação da arte, cuja apre-
tibulares de São Paulo (onde lecionou Ocidente: a idéia de que a função poética ciação necessariamente implica uma
literatura brasileira durante mais de 20
anos) e autor de Apresentação de da linguagem consiste na ambigüidade teoria do conhecimento.
Machado de Assis (Martins Fontes) e da mensagem mediante o adensamento Chklovski define a arte como a singu-
Mecenato pombalino e poesia neo- do significante, princípio desenvolvido a larização de momentos importantes. Em
clássica (a sair pela Edusp). Tem se de- partir de pressupostos de Chklovski. rigor, os momentos tornam-se impor-
dicado a edições comentadas de clás- De fato, Chklovski é o desencadeador tantes somente depois de submetidos ao
sicos – entre eles as Obras poéticas de
Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de
da abordagem lingüística da literatura, processo de singularização artística,
Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige pois seu ensaio foi o primeiro a siste- porque, na vida prática, as coisas se tornam
a coleção “Clássicos para o vestibular”, matizar a idéia de língua poética como imperceptíveis em sua totalidade. Mo-
da Ateliê Editorial. um desvio da língua cotidiana. Da mesma vido pela pressa e pelo empenho em

3 6 CULT - agosto/98
imediatizar o cotidiano, o homem acaba decorre de técnicas específicas aplicadas facilitar o conhecimento. Por isso, a
por perder a consciência individual das às palavras, em seus níveis semântico, imagem devia ser mais simples do que
ações, dos objetos e das situações. Por isso, sintático e fonológico: instaura-se a aquilo que explica. Por essa perspectiva,
abreviam-se palavras, criam-se siglas, consciência lingüística da literatura. a história dos estilos e das escolas basear-
desenvolvem-se esquemas para tornar Desfaz-se, enfim, a concepção do se-ia no estudo das imagens carac-
mais rápida a superação dos compro- senso comum segundo o qual literatura é terísticas de cada autor nos diversos
missos e dos contatos com as pessoas. A expressão imediata da vida, como se o períodos. Contrariando essas noções,
lei da economia das energias reduz tudo texto não fosse um simulacro conven- Chklovski negou a idéia da imagem
a números ou a volumes sem identidade, cional de signos. Pela perspectiva desses como instrumento conhecido para se
processo que objetiva o máximo de teóricos, o desconforto dos enunciados atingir o desconhecido, assim como
rendimento com um mínimo de atenção. inovadores integra o complexo de pro- demonstrou que os autores e as escolas
Esse processo – pensa Chklovski – priedades que atribuem valor estético ao não criam as próprias imagens. Ao
resulta na automatização da vida psíquica, texto. Nesse sentido, os seguintes versos contrário, as imagens são essencialmente
pois, em nome da rapidez, anula-se a de Sousândrade servem de exemplo de as mesmas ao longo da história, cabendo
intensidade do ato de conhecer. Nele, as enunciado poético, cuja decodificação aos períodos e aos respectivos autores
coisas possuem importância apenas a seleção de velhas ima-
apenas quando reconhecidas, gens em novas combinações,
esvaindo-se o entusiasmo da como ocorre nesses versos de
descoberta. O próprio conceito Sousândrade.
de aprendizado pressupõe o uso O escritor Joaquim Segundo a teoria de
automático das noções e dos de Sousa Andrade Chklovski, as imagens são um
movimentos. O simples fato de (1833-1902), dos dispositivos pelos quais o
conhecido como
uma ação se tornar habitual basta poeta singulariza o texto, me-
Sousândrade, cuja
para desencadear a inconsciência poesia, para ser diante a produção do estra-
em quem a executa. melhor entendida, nhamento, responsável pela
Assim, a principal função da pressupõe uma dificuldade que atribui den-
arte seria restaurar a intensidade idéia formalista sidade à percepção estética.
do conhecimento, promovendo da literatura como Elas são uma das possíveis
a virgindade dos contatos e o organização de manifestações da idéia de
encanto da descoberta. Nesse signos procedimento artístico, que é o
sentido, o artista deve criar conjunto de atitudes rumo ao
situações inéditas e imprevistas, desvio da linguagem comum
em busca da restauração do ato em favor do insólito e do im-
de conhecer. Numa palavra, a finalidade pressupõe um mínimo de vivência com o previsto. Embrionária em Aristóteles,
da arte é gerar a desautomatização, conceito de literatura enquanto orga- essa idéia dominou as preceptivas seis-
mediante o estranhamento ou a singu- nização de signos: centistas, chegando até o século XVIII,
larização da estrutura que o artista Lá, onde o ponto do condor negreja, quando encontrou clara expressão em
oferece à contemplação. Se algo aspira à Cintilando no espaço como brilhos Muratori, vertido para o português por
condição de enunciado artístico, precisa D’olhos Francisco José Freire, em sua Arte poética
ser dito de forma impressionante. Ao Antes do ensaio de Chklovski, domi- (1759), onde se lê que o poeta reveste suas
contrário do convívio cotidiano com as nava na Rússia a idéia de que fazer arte é matérias “de tal maneira e lhes dá um tal
coisas, o convívio com a arte deve ser pensar por imagens, princípio defendido colorido que aparecem cheias de novi-
particularizado, dificultoso e lento. pelo teórico Potebnia e incorporado pelos dade e de beleza, por virtude do mara-
Tomando o texto poético como meto- poetas simbolistas. Conforme esse prin- vilhoso e esquisito artifício, da vivacidade
nímia de arte, o morfologista russo cípio, a função da imagem é procurar da pintura e do novo ornato poético que
entende que a particularização do texto semelhança entre coisas diferentes para lhes deu”.

agosto/98 - CULT 3 7
Transcendendo os limites das figuras sonagem (leitor incluso). A desautoma- garrafa. Conforme essa visão, a literatura
e dos tropos, a concepção de proce- tização decorre também da reiteração nunca é sobre coisas ou situações. Será
dimento artístico de Chklovski pode intensiva do vocábulo todos, pronunciado sempre o resultado da adequação entre
consistir em qualquer agudeza favorável quatro vezes em diferentes tons de procedimento e matéria, fenômeno que
ao estranhamento da disposição e da surpresa. automaticamente a insere num código de
elocução da matéria: qualquer escolha e A abordagem tradicional afirma que referência literária.
combinação que transmita a sensação de O alienista é uma novela sobre a falácia da Surge daí um conceito funcional de
surpresa e espanto. Dentre os inúmeros ciência, a precariedade do conceito de literatura, entendida não mais como um
exemplos de procedimento literário, discurso ornado e ficcional que visa à
o morfologista menciona o caso da imortalidade, mas como um modo
novela Kholstomer, de Tolstoi, em que especial de articulação da linguagem,
o ponto de vista não é o de um ser cuja idéia de valor é rigorosamente
humano, mas o de um cavalo, cujas relativa, pois leva em conta tanto a
observações sobre os homens pro- estrutura verbal do texto quanto a
duzem um relato carregado de percepção do leitor e o eventual
imprevisibilidades. Na literatura desgaste das formas, que, de estranhas
brasileira talvez o exemplo mais e desautomatizadoras, podem, com o
evidente de procedimento artístico passar do tempo, se tornar corri-
bem-sucedido se encontra nas Me- queiras e previsíveis. Até então,
mórias póstumas de Brás Cubas, em que jamais se chegara a um conceito tão
a perspectiva de um defunto é res- relativo do valor da obra de arte, que
ponsável pelo estranhamento do texto. passou a ser definida como uma
A abertura do capítulo XI de O estrutura sígnica contrária ou
alienista também se constrói conforme divergente do padrão dominante.
o princípio da singularização, capaz O relativismo da percepção do
de conduzir o leitor ao centro da O romancista russo Leon Tolstoi objeto artístico encontra apoio não
narrativa: (1828-1910), autor da novela apenas em Chklovski e Boris Toma-
E agora prepare-se o leitor para o Kholstomer, objeto de análise chevski, mas também em Jakobson,
mesmo assombro em que ficou a vila ao morfológica do lingüista Chklovski responsável por uma instigante teoria
saber um dia que os loucos da Casa Verde relativista da noção de Realismo,
iam todos ser postos na rua. apresentada no artigo “Do realismo
– Todos? artístico”, escrito na fase inicial do
– Todos. loucura e o autoritarismo dos governos. teórico, quando ainda integrava o grupo
– É impossível; alguns sim, mas todos... Os formalistas colocariam o problema dos formalistas russos, na década de 10.
– Todos. Assim o disse ele no ofício que de outra forma: as incertezas da ciência e Ao questionar a arbitrariedade da termi-
mandou hoje de manhã à câmara. a arbitrariedade dos governos são um nologia da crítica precedente, Jakobson
O estranhamento provocado pelo dispositivo para o exercício da alegoria. exemplifica essa crise mediante o exame
texto decorre sobretudo da inclusão do A motivação inicial de Machado teria do vocábulo realismo, então empregado
leitor no universo dos habitantes de sido a formulação da sátira ou do escárnio com muita imprecisão.
Itaguaí, cujo espanto com o recolhimento alegórico, categorias preexistentes ao Com extremo rigor lógico, o mor-
dos loucos fora tão grande quanto com a tema da loucura mal interpretada. Assim, fologista enumera diversas acepções do
súbita libertação deles: conhecedor do os procedimentos buscam suas matérias, termo e acaba por demonstrar que ele é
assombro em que vivia a cidade, o leitor é cujo resultado é a forma literária. Com praticamente nulo enquanto categoria
convidado a sentir o mesmo espanto dos isso, elimina-se a idéia de que as matérias descritiva. De modo geral, o termo se refere
moradores, deixando a posição de espec- podem ser incluídas ou excluídas de um a obras que aspiram a reproduzir fielmente
tador para assumir o estatuto de per- texto, como se fossem o conteúdo de uma a realidade, buscando o máximo de veros-

3 8 CULT - agosto/98
similhança, entendida não no sentido posturas com a idéia da incorporação do B I B L I O G R A F I A
clássico de adequação entre matéria e real: assim procederam os românticos, os
gênero literário, mas na acepção con- realistas, os simbolistas, os futuristas, os
temporânea de semelhança com a verdade impressionistas e os expressionistas.
referencial. A cristalização típica dessa Entre nós, convém lembrar que até a
tendência observa-se na escola artística poesia concreta, ao romper com a • Modern literary theory: a reader,
representada por Flaubert, Zola, Dostoi- linguagem discursiva, o fez sob o pretexto
évski e Aluísio Azevedo. da incorporação de certos traços dinâ- editado por Philip Rice e Patricia
Além desse sentido, há um outro, micos da realidade industrializada.
segundo o qual os autores propõem suas Os românticos alemães afirmavam
Waugh. Londres, Arnold, 1996.
obras como verossímeis, por se filiarem que o reino da fantasia é a própria rea- • “Narrative composition: a link
a um padrão tradicionalmente aceito co- lidade. Novalis, em particular, procla-
mo tal. Mas exatamente por se vincula- mou que, quanto mais poético o enun- between german and russian
rem a um cânone já estabelecido, essas ciado, tanto mais real. Como conclusão,
poetics”, de Lubomír Dolezel. In:
obras podem facultar ao crítico a Jakobson propõe que se tome o termo
interpretação delas como distantes da realismo como um código convencional Russian formalism – A collection of
realidade e próximas dos clichês. segundo o qual as diversas gerações
Nessa mesma dinâmica, em nome do procuram validar seus experimentos articles and texts in translation,
realismo, um escritor revolucionário poéticos. Mas não deixa de explicitar
editado por Stephen Bann e John
pode se afastar do cânone vigente como que a realidade não se confunde com a
meio de se aproximar da realidade, arte, cuja estrutura sígnica deve ser E. Bowlt. Edimburgo, Scottish
propondo deformações grosseiras como apreendida com toda a consciência das
índices de incorporação do real. Para os convenções intrínsecas a seu modo de Academic Press, 1973.
críticos de vanguarda, uma obra dessa ser.
• Russian formalism: history,
espécie será de fato realista; para os Pelo que fica exposto, evidenciam-se
conservadores, não só não incorpora o diversas conexões do método formal com doctrine, de Victor Erlich. The
real como também se afasta do padrão de a retórica antiga, o que foi enfim sufi-
bom gosto. cientemente demonstrado pelo estudioso Hague/Paris, Mouton, 1969.
O ensaio de Jakobson estuda inú- tcheco Lubomír Dolezel, mediante a • Teoria da literatura: formalistas
meras outras acepções do termo realismo, investigação do contato da poética russa
afirmando (e nisso consiste o aspecto com a tradição dos retoricistas ger- russos, organização de Dionísio de
mais interessante do ensaio) que todas as mânicos, representada sobretudo por
escolas literárias fundamentam suas Schissel, Seuffert e Dibelius. Oliveira Toledo e prefácio de
Boris Schnaiderman. Porto
Alegre, Editora Globo, 1971.
O escritor alemão
• Théorie de la littérature: textes des
Novalis (à direita) expressou
a idéia de que, quanto mais formalistes russes, reunidos, apre-
poético é um enunciado,
mais ele representa o real – sentados e traduzidos para o
formulação que teve forte
impacto sobre a noção de francês por Tzvetan Todorov,
realismo de Roman Jakobson prefácio de Roman Jakobson.
Paris, Éditions du Seuil, 1965.

agosto/98 - CULT 3 9
F O R T U N A C R Í T I C A 3
Ivan Teixeira

NEW CRITICISM
A vertente da crítica representada por

Fotos/Reprodução
William Empson e T. S. Eliot defendeu
o close reading – uma abordagem minuciosa
dos elementos técnicos ou formais do
enunciado poético –, criando conceitos
fundamentais, como o do “correlato objetivo” T.S. Eliot (1888-1965) por Wyndham Lewis

Série destaca as principais A maior contribuição do new criticism críticos” norte-americanos. A teoria
tendências da crítica literária para a leitura consciente do poema orgânica do texto já se esboçava nos
consiste na definição da autonomia do escritos teóricos de Samuel Taylor
“Fortuna Crítica” é uma série de seis texto literário, que passou a ser entendido Coleridge (Biographia literaria, 1817).
artigos de Ivan Teixeira sobre as prin- como uma entidade independente, livre Contrariando noções consagradas no
cipais correntes da crítica literária e das
das supostas relações determinantes da século XIX, Eliot recusou a idéia de
teorias poéticas. O primeiro ensaio,
publicado no número 12 da CULT (ju- sociedade com o artista e deste com o poesia como expressão da personalidade
lho), abordou a retórica de Aristóteles e texto. Evidentemente, os “novos críticos” do poeta, concebendo-a como resultado
Quintiliano; o segundo texto (agosto) foi sempre souberam estabelecer as devidas consciente do trabalho do espírito, que
sobre o formalismo russo. O presente conexões entre o escritor e a obra, mas organiza as experiências da persona-
ensaio é sobre o new criticismn e, nas não nos termos positivistas da abordagem lidade. Em vez de entender o poema como
próximas edições, serão analisados o
estruturalismo, o desconstrutivismo e o tradicional. As raízes imediatas da leitura conseqüência de sentimentos pessoais,
new historicism. Ivan Teixeira é pro- intrínseca do texto encontram-se em T. Eliot passou a encará-lo como uma forma
fessor do Departamento de Jornalismo e S. Eliot, um dos primeiros críticos de de apropriação pessoal da tradição
Editoração da ECA-USP, co-autor do língua inglesa a se empenhar na for- literária, em que a visão individual das
material didático do Anglo Vestibulares mulação de uma teoria objetiva da arte, coisas deve, essencialmente, se trans-
de São Paulo (onde lecionou literatura
brasileira durante mais de 20 anos) e defendida no famoso ensaio “Tradition formar em sabedoria técnica.
autor de Apresentação de Machado de and the individual talent”, publicado pela Nasce daí uma das noções eliotianas
Assis (Martins Fontes) e Mecenato primeira vez em 1917 e depois coligido mais influentes no new criticism e na
pombalino e poesia neoclássica (a sair no volume The sacred wood (1920). Outro crítica posterior: o correlato objetivo, cuja
pela Edusp). Tem se dedicado a edições precursor importante é William Empson teorização se acha no ensaio “Hamlet and
comentadas de clássicos – entre eles as
Obras poéticas de Basílio da Gama
(Seven types of ambiguity, 1930), seguido his problems”. Trata-se da criação de um
(Edusp) e Poesias de Olavo Bilac (Martins de I. A. Richards (Principles of criticism, conjunto de objetos, de uma série de
Fontes) – e dirige a coleção “Clássicos 1924), embora o psicologismo deste eventos, de uma situação ou de uma
para o vestibular”, da Ateliê Editorial. sempre tenha sido renegado pelos “novos paisagem com o poder de despertar no

34 CULT - setembro/98
leitor a emoção desejada. O poeta organizada por Cleanth Brooks e Robert Aquela triste e leda madrugada,
seleciona e dispõe os elementos de tal Penn Warren. O volume possui diversas cheia toda de magoa e de piedade,
forma, que, uma vez vislumbrados na seções, em que os poemas se organizam enquanto houver no mundo saudade,
leitura, desencadeiam imediata reação segundo pressupostos técnicos ou quero que seja sempre celebrada.
emocional. Quanto mais íntima a relação formais, de modo a facultar o estudo de
Ela só, quando amena e marchetada
entre os elementos do correlato objetivo elementos essenciais à estrutura do enun-
saía, dando ao mundo claridade,
e a vivacidade da emoção, tanto maior a ciado poético: poemas narrativos, poemas
viu apartar-se de uma outra vontade,
eficácia do texto. Adepto da concretude descritivos, problemas de métrica, de tom,
que nunca poderá ver-se apartada.
em poesia, Eliot chegou a censurar o de imagem, etc.
Hamlet de Shakespeare sob o argumento As lições desse livro consolidaram os Ela só viu as lágrimas em fio
de que o estado emocional do prota- critérios para uma leitura imanente do que, de uns e de outros olhos derivadas,
gonista não encontra suficiente lastro na texto poético, propondo a idéia de que se acrescentaram em grande e largo rio.
objetividade do discurso. todo poema deve ser abordado como se Ela viu as palavras magoadas
Entendido como fórmula particular fosse um pequeno drama, em que se que puderam tornar o fogo frio,
responsável por uma emoção específica, destacam um falante, uma estória e sua e dar descanso às almas condenadas.
o correlato objetivo pode indicar
não apenas um determinado A crítica tradicional só
O poeta e crítico
procedimento artístico, mas consegue ler esse soneto como
William Empson
também o conjunto acabado de registro emotivo de um dado
(1906-1984), que biográfico: partindo para o
uma obra. Nesse caso, o texto
lecionou durante exílio na Índia, Camões des-
funciona como a concretização
muitos anos na pede-se de sua prima e amante,
de uma experiência, sem se
confundir com a idéia de pro- China, foi um dos D. Isabel Tavares – a menina dos
jeção de traços da personalidade precursores do olhos verdes –, conforme se pode
do autor. Expressando-se indire- new criticism, ver pela tradição crítica repre-
tamente, o artista opera antes com com o livro sentada por José Maria Ro-
a sensibilidade do que com a Seven types of drigues e Teófilo Braga. Sem se
própria emoção. ambiguity deter na configuração pro-
Em 1941, John Crowe priamente artística do texto,
Ramsom publicou o livro New esses críticos entendem-no
criticism, que contém, dentre apenas como um pujante teste-
outros, estudos sobre Eliot, munho do amor empírico do
Empson e Richards, em cujos poeta, baseado na vida real,
ensaios se apontam deficiências e con- transmissão a um suposto ouvinte. Tais como se o simples fato de se tratar de um
quistas importantes. Essa obra é respon- componentes integram a situação discurso não alterasse essencialmente sua
sável não só pelo nome do movimento ficcional de qualquer poema. suposta condição de registro fiel da
mas também pela sistematização de mui- Essa noção é importante, pois, realidade.
tas de suas idéias, igualmente expostas em segundo ela, o poema – seja lírico, sa- Pela perspectiva do new criticism, a
outro clássico do grupo, The well whrought tírico, épico ou dramático – comporta correta apreciação do soneto deveria
urn: Studies in the structure of poetry (1947), sempre uma pequena ficção, e como tal abandonar a preocupação biográfica, e
de Cleanth Brooks. Todavia, quando esses deve ser lido. Em especial, os poemas entendê-lo como a ficcionalização de uma
livros saíram, algumas das idéias básicas líricos limitam-se a explorar o estado de despedida: depois de intensa união, os
do new criticism já haviam sido postas em espírito do falante momentos depois de amantes separam-se involuntariamente.
prática numa antologia comentada, de ele passar por uma crise amorosa ou Dilacerado pelo infortúnio, a persona lírica
grande influência nas universidades existencial, como se pode observar no sente o súbito impulso de expressão da
americanas: Understanding poetry (1938), seguinte soneto de Camões: dor – tão forte, que lhe rouba o equilíbrio

setembro/98 - CULT 35
e a justeza do espírito, provocando um A falácia da intenção consiste na idéia leitura. Esse exercício consiste no exame
verdadeiro delírio verbal, em cujo clímax de que o entendimento de um texto resulta minucioso (close reading) do poema, cuja
(tercetos) chega à desrazão de afirmar que da descoberta da intenção do autor ou da forma o novos críticos entendem como
suas lágrimas alagaram o terreno e que a identificação de seus sentimentos. Se, um organismo dinâmico, regido por
intensidade do sofrimento, por compa- diante de uma imagem obscura, o leitor tensões e ambigüidades. Entender o
ração, tornara tênue o tormento das almas interroga: o que o autor quis dizer com isso?, poema equivale a resolver essas tensões e
condenadas ao inferno. está incorrendo na falácia da intenção, ambigüidades, estabelecidas pela relação
A nova crítica preocupar-se-ia, ainda, pois confunde o poema com sua origem. entre as diversas unidades semânticas do
com o exame da tensão metafórica e texto, que independem do sentimento
paradoxal entre os vocábulos, assim do autor, mas que podem decorrer de
como em entender a personificação sua consciência estrutural no
da madrugada, caracterizada por in- momento da composição.
tenso cromatismo, em sua viva parti- A falácia da emoção consiste na
cipação no sofrimento dos amantes. idéia de que a análise do poema se
Esses traços formais compõem a cha- confunde com o exame da emoção
mada textura do poema, responsável provocada por ele. Por essa perspec-
pelo significado estético do enun- tiva, falar da emoção da leitura equi-
ciado. Representam indiretamente a valeria à interpretação do poema.
emoção imaginada pelo artista, Esse é um velho pressuposto da crítica
desencadeando um sentimento cor- impressionista, que dominou a cena
respondente no leitor. A perso- literária nos primeiros anos do século
nificação da madrugada explica-se, XX. O new criticism recusa tal
enfim, como um correlato objetivo do postura, baseado no argumento de
estado febril do falante, que, por sua que essa orientação confunde o que o
vez, se deve interpretar como a ficcio- poema faz com aquilo que ele é. A
nalização de uma possível experiência análise da emoção provocada pela arte
intelectual do poeta. pertence à psicologia; à crítica com-
O ensaio orienta-se agora para o pete a investigação formal do poema,
exame de mais duas noções im- Fernando Pessoa (em gravura de procurando nele os elementos desen-
portantes do new criticism, ambas José Macedo Bandeira) expressa cadeadores da emoção. Nesse sentido,
associadas aos pressupostos apre- em “Autopsicografia” o caráter o poema é entendido como uma forma
sentados acima: a falácia da intenção ficcional da emoção poética particular de conhecimento, mediante
e a falácia da emoção, desenvolvidas o qual se pode aprimorar e intensificar
em dois ensaios fundamentais para a for- O new criticism acredita que a o contato com a vida. Mas a função do
mulações da nova crítica: “Intentional interpretação do texto não deve levar em analista é examinar o texto, e não seu
fallacy” (1946) e “Affective fallacy” conta as intenções do autor. Da mesma efeito. A crítica deve procurar no texto as
(1949), escritos em parceria por W. K. forma, não se deve atribuir valor her- propriedades que o transformam em
Wimsatt e Monroe C. Beardsley. Poste- menêutico à idéia de que o significado poesia, caracterizando os componentes
riormente, ambos os ensaios foram reedi- do texto deve coincidir com a decifração que o convertem em instrumento de
tados num dos livros mais importantes dos possíveis sentimentos que lhe deram conhecimento e emoção estética, sem
do movimento, The verbal icon: Studies in origem. Ao contrário, a correta leitura jamais perder de vista a idéia de que a
the meaning of poetry (1954), assinado deve fundar-se em pressupostos objetivos, emoção do texto é ficcional e não se
exclusivamente por Wimsatt. Por fim, o consagrados pelo sistema de uma teoria confunde com a emoção vivida. Fernando
ensaio apresentará a heresia da paráfrase, aplicável a qualquer texto e à disposição Pessoa intuiu todas essas questões no
noção igualmente fundamental para os de qualquer pessoa com um mínimo de célebre poema “Autopsicografia”, em que
fundamentos do new criticism. condições técnicas para o exercício da afirma:

36 CULT - setembro/98
O poeta é um fingidor, Em síntese, cada passo da leitura deve B I B L I O G R A F I A
finge tão completamente, se integrar a um sistema coeso de cogni-
que chega a fingir que é dor ção, encaixar-se numa teoria. Assim como
a dor que deveras sente. a paráfrase, evita-se também a message-
Heresia da paráfrase (heresy of hunting, isto é, a leitura que encara a poesia
paraphrase): como se sabe, paráfrase é a como mero instrumento de conteúdos ou • “John Crowe Ramsom’s theory of
tradução de um texto supostamente difícil sabedorias práticas. Pela perspectiva da poetry”, de René Wellek. In: Literary
em termos simples e prosaicos. O senso “nova crítica”, a sabedoria da arte decorre,
theory and structure, editado por Frank
comum costuma confundir análise não da apreensão das mensagens, mas do
literária com a explicação literal do texto, convívio desinteressado com as formas que Brady, John Palmer e Martin Price.
confiante na idéia de que a decodificação as engendra. New Haven and London, Yale
do significado referencial basta para No Brasil, um dos primeiros a University Press, 1973.
conferir consistência à leitura. incorporar princípios do new criticism foi
• Modern literary theory: A comparative
Os “novos críticos” condenaram a Afrânio Coutinho, responsável pela
paráfrase como procedimento último da organização de A literatura no Brasil (1955- introduction, editado por Ann Jefferson
operação crítica, embora a admitissem 59), obra programada para 5 volumes, dos e David Robey. Londres, B. T.
como passo provisório na iniciação do quais saíram apenas quatro na primeira Batsford, 1997.
contato científico com o texto. Recusam edição. No conjunto, a obra resultou algo
• The armed vision: A study in the
a paráfrase porque consideram que o eclética, embora contasse com a presença
verdadeiro entendimento de uma imagem sistemática de Eugênio Gomes. methods of modern literary criticism, de
não consiste na captação de seu sig- Péricles Eugênio da Silva Ramos Stanley Edgar Hyman. Nova York,
nificado lógico, e sim na percepção de também demonstrou muita coerência na Alfred A. Knopf, 1948.
sua configuração estética, na fruição de apropriação de princípios da vanguarda
• “The intentional fallacy”, de W. K.
seu valor expressivo. Por isso, a boa anglo-americana, tendo deixado uma
leitura não será a que souber substituir notável antologia da poesia brasileira (5 Wimsatt and Monroe C. Beardsly. In:
um paradoxo ou uma ironia – volumes, a partir de 1964, editora 20th century literary criticism: A reader,
procedimentos essenciais ao repertório Melhoramentos), cujas introduções e editado por David Lodge. Londres,
do new criticism – por seqüências notas demonstram fina consonância com
Longman, 1972.
unívocas de significado, mas sim a que o espírito científico dos modelos es-
souber integrar as figuras de linguagem trangeiros. • “The affective fallacy”, de W. K.
à harmonia totalizante do texto e, ao Em particular, as traduções e ensaios Wimsatt e Monroe C. Beardsly. In:
mesmo tempo, descobrir sua função na de Augusto de Campos revelam o mesmo 20th century literary criticism: A reader,
geração do significado poético. tipo de parentesco e eficiência.
editado por David Lodge. Londres,
Longman, 1972.
O poeta Péricles Eugênio da • “Tradition and the individual
Silva Ramos, autor de uma
talent”, de T. S. Eliot. In: 20th century
antologia da poesia brasileira
cujas introduções e notas
literary criticism: A reader, editado por
mostram a coerência de suas David Lodge. Londres, Longman,
apropriações do new criticism 1972.
• Understanding poetry, de Cleanth
Brooks e Robert Penn Warren. Nova
York, Rolt, Rinehart and Winston,
1960.

setembro/98 - CULT 37
F O R T U N A C R Í T I C A 4
Ivan Teixeira

ESTRUTURALISMO
A crítica estrutural teve Roland Barthes

Fotos/Reprodução
e Tzvetan Todorov entre seus principais
representantes, empenhando-se na criação
de uma poética preocupada em construir
um modelo arquetípico que desse
conta de todas as narrativas existentes O crítico francês Roland Barthes

Série destaca as principais O estruturalismo representou a Sem deixar de estabelecer as neces-


tendências da crítica literária maior revolução metodológica nas sárias conexões entre os gêneros e as
ciências humanas nos últimos cinqüenta diversas obras da mesma série, a postura
“Fortuna Crítica” é uma série de seis anos, sendo certo que hoje se encontra imanentista encara o texto como objeto
artigos de Ivan Teixeira sobre as princi- em relativo descrédito, embora algumas autônomo, e não como documento ou
pais correntes da crítica literária. O pri-
de suas postulações se tenham incor- manifestação de qualquer instância
meiro, publicado no número 12 da
CULT (julho), abordou a retórica de Aris- porado definitivamente ao próprio modo exterior. O estruturalismo propõe o
tóteles e Quintiliano; o segundo texto de ser do pensamento contemporâneo. abandono do exame particular das obras,
(agosto) foi sobre o formalismo russo; o Nenhum intérprete das humanidades tomando-as como manifestação de outra
terceiro (setembro) estudou o new criti- pensará de forma adequada, caso não coisa para além delas próprias: a estrutura
cism. O presente ensaio é sobre o estru- incorpore os pressupostos estrutura- do discurso literário, formado pelo
turalismo. Nas próximas edições, serão
analisados o desconstrutivismo e o new listas, ainda que apenas para os negar. conjunto abstrato de procedimentos que
historicism. Ivan Teixeira é professor do Todavia, a teoria estrutural apresenta caracterizam esse discurso, enquanto
Departamento de Jornalismo e Editora- uma espécie de paradoxo relativamente propriedade típica da organização mental
ção da ECA-USP, co-autor do material à evolução dos métodos de crítica do homem. As obras individuais seriam
didático do Anglo Vestibulares de São literária no século XX. Esse paradoxo, manifestações empíricas de uma
Paulo (onde lecionou literatura brasilei-
ra durante mais de 20 anos) e autor de apenas aparente, decorre da seguinte realidade virtual, constituída pelas
Apresentação de Machado de Assis situação: desde alguns formalistas normas que regem as práticas singulares.
(Martins Fontes) e Mecenato pombalino russos – passando pelos esforços da nova A análise desse discurso, que paira acima
e poesia neoclássica (a sair pela Edusp). retórica, da estilística e do new criticism das obras e antes de sua existência
Tem-se dedicado a edições comentadas –, a orientação tida como mais moderna singular, é que consiste no objeto de
de clássicos – entre eles, as Obras
poéticas de Basílio da Gama (Edusp) e
tem se caracterizado pela abordagem investigação do método estrutural.
Poesias de Olavo Bilac (Martins Fon- imanente do texto, detendo-se no exame Os estruturalistas recusam a descrição
tes) – e dirige a coleção “Clássicos para da estrutura particular e concreta das imanente, por acreditar que um método
o vestibular”, da Ateliê Editorial. obras. científico não pode se esgotar em

34 CULT - outubro/98
operações práticas e singulares. Ao o propósito de descobrir semelhanças e objeto da poética estruturalista, decorre
contrário, deve voltar-se para o exame da relações entre elas. Com isso, os filólogos
de outra formulação de Saussure, talvez a
estrutura do discurso literário, abstra- pretendiam estabelecer as raízes comuns mais importante para as ciências humanas
tamente concebido, do qual as obras de certos vocábulos e, no limite, definir a
depois dele: a distinção entre langue e
concretas não passam de particula- aquisição da língua entre os homens. parole. Langue é o sistema abstrato de
rizações. Em última análise, a crítica Todavia, os filólogos não chegaram a normas segundo o qual se manifesta a
estrutural preocupa-se com a criação de formular uma teoria específica da língua parole, que é uma espécie de projeção
uma poética, não no sentido clássico de que a concebesse como uma, e apenas concreta daquela estrutura ideal, formada
conjunto de normas ou preceitos para a uma, dentre as inúmeras manifestações pelo conjunto hipotético de todas as
conquista da adequação das obras aos da linguagem. A filologia clássica paroles do homem. Assim, qualquer obra
respectivos gêneros, mas no sentido de considerava que a língua era uma espécie literária deve ser entendida como uma
uma teoria da estrutura e do funciona- de espelho da realidade (teoria mi- parole, isto é, como o uso individual da
mento do discurso literário. mética), entendendo que cada vocábulo langue, que é aquele sistema impessoal
Evidentemente, o estudo de obras possuía uma relação natural com a coisa constituído pelo conjunto de todos os
particulares desempenha um estágio a que se refere, sem se dar conta de que ausos que antecederam a apropriação
importante nas pesquisas estruturais, mas língua não reflete espontaneamente a específica desse sistema por um dado
apenas enquanto meio para a formulação natureza. autor num determinado momento.
de uma poética, preocupada em Assim como o usuário da
construir um modelo arque- língua se apropria de estruturas
típico que dê conta de todas as O princípio essencial que antecedem sua fala, o ro-
narrativas existentes e as que da noção de estrutura mancista lança mão de unidades
porventura venham a existir. O do discurso literário narrativas preexistentes a seu
objetivo da poética estrutural decorre da distinção romance. A crítica imanente
seria, enfim, a descoberta da entre langue e parole preocupava-se com a descrição
gramática segundo a qual se formulada pelo do romance (parole); a crítica
articulam as narrativas do lingüista suíço estrutural investiga o sistema de
homem, que não são aleatórias Ferdinand de Saussure unidades narrativas anteriores ao
nem imprevisíveis, mas que romance (langue). Nesse sentido,
obedecem a uma estrutura, a postura estrutural aproxima-
entendida como o conjunto de pro- Ao conceber a língua como um se do método extrínseco de investigação
priedades essenciais do discurso literário. aspecto da linguagem humana, Saussure literária.
Mas qual seria o modelo para a criou uma nova ciência, a semiologia, A diferença essencial entre os métodos
estrutura das narrativas do homem, tanto preocupada com a sistematização dos extrínsecos tradicionais e a crítica es-
as chamadas primitivas, estudadas por sinais, e não apenas com o estudo das trutural consiste em que aqueles asso-
Lévi-Strauss, quanto as literárias, línguas. Tomando-as como matriz de ciavam a literatura a um discurso hetero-
estudadas por inúmeros teóricos nos anos todos os demais códigos, o sábio de gêneo (história, sociologia, psicanálise,
60, dentre os quais o presente ensaio Genebra, em vez de se concentrar na psicologia etc.), conduzindo-a para uma
selecionou Roland Barthes e Tzvetan evolução das línguas (diacronia), área diversa do saber, ao passo que esta
Todorov como fontes principais? O orientou suas pesquisas sobretudo para o associa a literatura com uma instância
modelo por excelência do sistema exame do funcionamento delas no homogênea: a lingüística, de cuja
narrativo é aquele revelado pela lin- presente (sincronia), preocupando-se natureza decorre a própria configuração
güística saussuriana. com as leis que regem a geração do da literatura e cujo estudo deve neces-
Antes de Saussure, os estudos significado. A partir daí, criou também a sariamente ser regulado por uma poética.
lingüísticos preocupavam-se com o teoria da arbitrariedade do signo Mas se o estruturalismo recusa a
desenvolvimento histórico da língua lingüístico, segundo a qual as relações descrição imanente das obras individuais,
(visão diacrônica), sobretudo em sua entre os vocábulos e o mundo se assim como não incorpora os resultados
dimensão filológica. A filologia é o estabelecem, não por leis imanentes da dos estudos extrínsecos do fenômeno
estudo comparativo da evolução das natureza, mas por operações do espírito literário, como então caracterizar sua
línguas. Seu principal método consiste no humano (cultura). atividade? Em rigor, a crítica estrutural
exame, na descrição e na comparação Todavia, o princípio essencial da não recusa totalmente a descrição; apenas
entre as diversas línguas do mundo, com noção de estrutura do discurso literário, não partilha da idéia de que a obra

outubro/98 - CULT 35
individual se constitua no fim único e Diga-se o mesmo com relação às pesquisas existem as funções integrativas, que tra-
último dos estudos literários. Estes devem do antropólogo Lévi-Strauss, que, antes de balham em sentido vertical, seman-
objetivar a investigação das propriedades formular sua gramática do discurso tizando o sintagma narrativo: os índices.
do discurso literário, com vistas à mitológico, passou anos estudando os Correlatos do procedimento metafórico,
formulação de uma poética que pudesse mitos indígenas de diversos países, os índices são unidades que não con-
servir de base operacional à história incluindo os do Brasil. Propp chamou tribuem para o desenvolvimento linear
literária, que deveria, esta sim, dedicar- funções as unidades narrativas recorrentes da trama, mas para a caracterização das
se à descrição da estrutura particular das nos contos populares, assim como Lévi- personagens, dos ambientes e dos
obras com vistas ao estabelecimento de Strauss denominou mitemas as seqüências próprios núcleos narrativos. Há ações
um sistema de valor. Mesmo essa noção matriciais dos mitos indígenas. que integram a unidade da narrativa: por
é relativizada por Tzvetan Todorov em Roland Barthes desenvolveu as serem essenciais, a ausência delas produz
seu Estruturalismo e poética (1968), sob o pesquisas de Propp, demonstrando que uma lacuna no relato; essas sãos as
argumento de que a descrição imanente um conjunto de funções forma um núcleo funções cardinais. Existem outras, cuja
de uma obra implica seu desligamento ausência não prejudica a unidade da
da dimensão histórica. Logo, a verdadeira narrativa; a função delas é agenciar um
preocupação de uma história literária de significado geral para o texto ou ilustrar
feição estrutural deveria se caracterizar o tipo de ação que predominará no relato.
pelo exame da evolução das propriedades Veja-se um exemplo de ação indicial
do discurso literário, e não exatamente em O guarani, de José de Alencar: o fato de
pelo exame das obras em si. Peri subjugar uma onça no início do
Por causa de afirmações desse tipo é romance não possui nenhuma conse-
que Terry Eagleton identifica, em tom qüência no desenvolvimento da fábula. Sua
pejorativo, o método estrutural com o função é apenas revelar a força e a astúcia
idealismo, afirmando que o resultado de do índio, o que terá repercussão no final
seus trabalhos não passa de mais uma do romance, quando, no momento crítico
manifestação da “doutrina idealista da enchente, o herói arranca com os braços
clássica”, segundo a qual o mundo é uma palmeira secular, com a qual
constituído pela consciência humana, e improvisa uma jangada e salva Cecília.
não o contrário. De fato, o estruturalismo Essas seqüências, aparentemente seme-
jamais se submeteu ao materialismo lhantes, possuem natureza distinta: a
empirista. Roland Barthes afirma, na O antropólogo Lévi-Strauss primeira é distribucional, compõe-se de
Introdução à análise estrutural da narrativa passou anos estudando os núcleos; a segunda é integrativa, constitui-
(1966), que não seria necessário mitos indígenas de diversos se num índice.
investigar todas as narrativas do mundo países – incluindo os do Conforme Todorov, as condições
para chegar à essência do discurso Brasil – antes de formular essenciais para que uma poética seja
narrativo. Bastava o conhecimento de um sua gramática do discurso estrutural são: recusa da descrição
número considerável de exemplos para mitológico concreta das obras, eleição de organi-
obter as regras segundo as quais se zações abstratas anteriores à sua mani-
articulam as demais narrativas. Logo, o narrativo. Pela importância e pela festação em textos individuais, a correta
estruturalismo desde o início adotou o extensão dessas unidades, elas recebem o noção de sistema, a condução da análise
método dedutivo de conhecimento, e não nome de funções cardinais, as quais se unem até as unidades elementares do discurso
o indutivo. pela mediação de unidades menores e, por fim, a escolha explícita dos
Mesmo assim, não se pode descon- chamadas catálises. Compreendidos entre processos. Considere-se em particular a
siderar o vasto levantamento e o exame as funções distribucionais, os núcleos noção de que a poética deve se empenhar
concreto de inúmeras narrativas folcló- formam o sintagma narrativo, numa na decomposição do discurso literário até
ricas levados a efeito pelo formalista russo sucessão metonímica de aproximação e suas menores unidades. Do ponto de vista
Vladimir Propp, um dos principais distensão horizontal e seqüencial do prático, ao menos no que diz respeito ao
antecedentes do estruturalismo francês, relato, processo em que predomina uma ensino da literatura, esta última noção
para o estabelecimento das constantes relação de causa e efeito. tem-se mostrado útil, na medida em que
fundamentais do conto popular em seu Além dessas seqüências narrativas que facilita a apresentação imediata de
Morfologia do conto maravilhoso (1928). operam na horizontalidade do texto, qualquer romance, sem necessariamente

36 CULT - outubro/98
afastá-lo das abstrações da estrutura do grandes mecenas, a cujo gosto – um B I B L I O G R A F I A
discurso narrativo. gosto sistêmico – os artistas se inte-
Tome-se mais um exemplo de gravam. Em Portugal, O Uraguay, de
Alencar: Iracema. Quem de fato leu esse Basílio da Gama, articulou-se conforme
livro sabe que se trata de uma narrativa um padrão imposto pelo Marquês de
com diversos movimentos na fábula. Do Pombal. Nem por isso deixou de ser uma • Estruturalismo e poética, de Tzvetan
ponto de vista estrutural, talvez pudesse obra-prima. Diante da impossibilidade Todorov. Tradução de José Paulo Paes.
ser descrito da seguinte forma: chega ao do estabelecimento de qualquer parâ- São Paulo, Cultrix, 1970.
continente americano um explorador metro absoluto, Todorov entende os • “Introdução à análise estrutural da
europeu, que se une a uma virgem com juízos estéticos como simples propo-
narrativa”, de Roland Barthes. In:
funções sagradas em sua tribo. Essa sições de um processo de enunciação: o
união quebra um tabu. A moça paga com valor de uma obra depende de sua Análise estrutural da narrativa: Seleção
a morte. Deixa, no entanto, um filho estrutura, mas só se manifesta mediante a de ensaios da revista “Communications”
mestiço, que implanta a civilização leitura e os critérios de quem lê. [ nº 8, 1966]. Tradução de Maria
européia na região. Aplicado ao ensino O representante mais consagrado da Zélia Barbosa Pinto. Introdução de
da literatura, esse tipo de descrição crítica estrutural nos Estados Unidos Milton José Pinto. Petrópolis, Vozes,
demonstra uma possível aplicação da talvez seja Jonathan Culler, cujo
1971.
narratologia ao exame particular das Structuralist poetics (1975) retoma esse
obras, visto que a descrição do discurso postulado do estruturalismo francês para • Fifty key contemporary thinkers: From
literário propriamente dito não desenvolver, não mais uma poética do structuralism to postmodernity, de John
seguraria todos os alunos por muito discurso literário, mas uma poética da Lechte. Londres/Nova York, Routledge,
tempo em nenhuma aula de literatura leitura. Preocupado com a recepção da 1996.
no Brasil. obra de arte, procura estabelecer uma • Grammaire du “Décaméron”, de
Uma das grandes limitações do langue da interpretação. Depois de acusar
Tzvetan Todorov. Paris, Mouton,
método estrutural é que ele não consegue o excesso de interpretações concretas dos
solucionar o problema do valor artístico, textos literários, Culler propõe o exame 1969.
pois a caracterização do discurso literário do ato de interpretação em si, acreditando • Literary criticism: An introduction to
ou a descrição estrutural de uma obra não que o leitor, de alguma forma, possui uma theory and practice, de Charles E.
explicam as razões de sua beleza. O competência para a leitura, cuja estrutura Bressler. Englewood Cliffs, New
próprio Todorov reconhece os limites do precisa ser caracterizada tanto quanto a Jersey, Prentice Hall, 1994.
método estrutural diante do problema do estrutura do discurso narrativo. Deslo- •“ ‘Los Gatos’ de Charles Baudelaire”,
estético, embora afirme também que cando a atenção do texto para o leitor, o
análise estrutural de Roman Jakobson
nenhum sistema anterior o resolveu estudioso norte-americano procura
satisfatoriamente. Hegel, por exemplo, estabelecer o conjunto de regras ou o e Claude Lévi-Strauss. In: Estructu-
considerava que a perspectiva legiti- sistema que rege a leitura e a interpretação ralismo y literatura. Seleção de José
madora do belo era sempre a do príncipe. da obra literária. Como se vê, trata-se de Sazbón. Buenos Aires, Ediciones
Acrescente-se a isso a conhecida idéia de uma confluência entre o estruturalismo e Nueva Visión, 1972.
que quase toda a arte renascentista se a Teoria da Recepção, cujo expoente • Morfologia do conto maravilhoso, de V.
modelou pelo critério dos papas ou dos mais famoso é Hans Robert Jauss.
I. Propp. Tradução de Jasna Paravich
Sarhan. Organização e prefácio de
A descrição estruturalista
das obras de José
Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro,
de Alencar permite Forense-Universitária, 1984.
decompor unidades • Poética da prosa, de Tzvetan Todorov.
narrativas peculiares a Tradução Maria de Santa Cruz.
romances como Lisboa, Edições 70, 1979.
O guarani e Iracema, • Structuralist poetics: Structuralism,
sem perder de vista linguistics and the study of literature, de
as abstrações da
Jonathan Culler. Nova York, Cornell
construção discursiva
University Press, 1993.

outubro/98 - CULT 37
F O R T U N A C R Í T I C A 5
Ivan Teixeira

DESCONSTRUTIVISMO
Desenvolvida a partir das formulações do

Reprodução
filósofo francês Jacques Derrida,
a desconstrução atribui aos significados
a condição de construções culturais,
questionando a concepção metafísica
de centros unificadores do mundo O lingüista e filósofo Jacques Derrida

Série destaca as principais O movimento da desconstrução, filósofo francês, como é o caso, em


tendências da crítica literária representado sobretudo pelo filósofo diferentes graus, de Paul de Man, J. Hillis
francês Jacques Derrida, é apenas uma Miller, Geoffrey Hartman e Harold
“Fortuna Crítica” é uma série de seis das diversas tendências do pensamento Bloom.
artigos de Ivan Teixeira sobre as princi- crítico do chamado pós-estruturalismo, Derrida é ao mesmo tempo herdeiro
pais correntes da crítica literária. O pri-
dentre as quais se contam também as e crítico do estruturalismo. Começa por
meiro, publicado no número 12 da
CULT (julho), abordou a retórica de Aris- formulações de Michel Foucault e as do questionar a noção de centro no conceito
tóteles e Quintiliano; o segundo texto new historicism, proposto por Stephen de estrutura. Para o filósofo, centro é tudo
(agosto) foi sobre o formalismo russo; o Greemblatt no início dos anos oitenta. A o que preside a ordenação dos elementos
terceiro (setembro) estudou o new criti- desconstrução passou a tomar corpo de um sistema, mas que não participa da
cism; o quarto (outubro) apresentou o como movimento crítico depois da mobilidade das unidades que coordena.
estruturalismo. Na próxima edição, será
analisado o new historicism. Ivan Tei- célebre conferência proferida por Nesse sentido, o centro encontra-se ao
xeira é professor do Departamento de Derrida na Johns Hopkins University, mesmo tempo dentro e fora da estrutura.
Jornalismo e Editoração da ECA-USP, em 1966, quando o filósofo leu o ensaio Enquanto elemento interno, explica-se
co-autor do material didático do Anglo “A estrutura, o signo e o jogo no discurso por sua condição coordenadora; en-
Vestibulares de São Paulo (onde lecio- das ciências humanas”, que hoje integra quanto elemento externo, explica-se por
nou literatura brasileira durante mais de
20 anos) e autor de Apresentação de o volume A escritura e a diferença. Desde não participar do jogo e dos riscos do
Machado de Assis (Martins Fontes) e então, a desconstrução tem encontrado movimento inerente à idéia de estrutura.
Mecenato pombalino e poesia neo- muita ressonância nos Estados Unidos, Em rigor, o centro é uma entidade
clássica (a sair pela Edusp). Tem-se de- assumindo diferentes matizes conforme metafísica, pois possui valor absoluto e
dicado a edições comentadas de clás- o autor que se inspire nos fundamentos independe das contingências do todo.
sicos – entre eles, as Obras poéticas de
Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de
de Derrida. Assim se explicam alguns Como toda verdade metafísica, a noção
Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige trabalhos dos integrantes da Escola de de centro deve ser posta em questão, deve
a coleção “Clássicos para o vestibular”, Yale, preocupada em divulgar, comentar, ser desprezada na análise da estrutura de
da Ateliê Editorial. criticar e desenvolver os pressupostos do que participa. O centro não é uma

34 CULT - novembro/98
realidade, mas uma construção do possível por contrastar com a idéia de cultura de referência por princípio. Foi a
pensamento ocidental. O analista deve planície ou de depressão. Como se vê, partir do homem europeu que se
desconstruir esse construto, escolhendo Derrida é responsável pelo esboço de formularam todas as conclusões universa-
um enfoque que aborde a estrutura por uma espécie de teoria geométrica do lizantes (metafísicas) sobre o que se
um ângulo até então secundário na ordem conhecimento, cuja tradição se origina, entende por cultura ocidental. Os estudos
geral das coisas. Toda a filosofia ocidental pela ruptura com os significados de Lévi-Strauss provocaram um deslo-
partilha da idéia de centro, essencial- universais, em Nietzsche, Freud e camento desse foco de atenção: o interesse
mente vinculada ao princípio de valor e Heidegger. Fala-se aqui em teoria das pesquisas desviou-se da Europa para
de significado absoluto, característica geométrica do conhecimento, porque já culturas consideradas primitivas, sobre-
básica do pensamento metafísico. A Luís Antônio Verney divulgava, na época tudo a partir da análise de mitos sul-
noção de centro preside o próprio americanos. Tal descentramento estabe-
conceito do ser, determinado pela idéia leceu uma crise na história da metafísica,
João Carlos Volatão/Folha Imagem

de presença, de essência, de origem, de por questionar a noção de totalidade do


finalidade. A história do Ocidente seria humano, concebida exclusivamente com
uma sucessão de centros inquestionáveis, base no etnocentrismo europeu. Além
como Deus, homem, consciência, disso, ao desconstruir a noção de etno-
transcendência, eu, verdade – noções centrismo, Lévi-Strauss estaria, segundo
responsáveis pela idéia de centro Derrida, realçando a necessidade de uma
unificador do mundo. A esse pensamento linguagem crítica no discurso das
essencialista e transcendental Derrida ciências humanas. Antes disso, as
chama de “logocentrismo”. verdades do etnocentrismo apresen-
Derrida coloca-se contra a concepção tavam-se como dados da natureza, e não
logocêntrica do pensamento metafísico. como construtos de ordem cultural. Na
Para ele, o valor do centro é sempre prática, isso contribuía para a hegemonia
afirmado pelo não-valor de seu oposto: do pensamento metafísico, responsável
Deus/diabo, homem/mulher, natureza/ pela noção da superioridade da Europa
cultura, fala/escrita, espírito/corpo, sobre os demais continentes.
inteligível/sensível etc. O pensamento Harold Bloom, um dos Outra desconstrução importante
metafísico atribui valor intrínseco aos maiores críticos literários dos operada pelo pensamento de Derrida
elementos que compõem essas duali- Estados Unidos, país em que consiste no questionamento da ascen-
dades, em que se fundamenta quase toda a desconstrução encontra dência da fala sobre a escrita. O filósofo
a filosofia européia. Todavia, Derrida não ressonância assumindo denomina essa hierarquia de “fonocen-
reconhece significado essencial nos diferentes matizes conforme trismo”, entendendo-a como um aspecto
elementos desses pares. Nega qualquer o autor que se inspire em do logocentrismo. O pensamento meta-
verdade transcendental. Aplica a todos os seus fundamentos
físico sempre considerou a fala como
significados a condição de construções elemento mais importante desse par, não
culturais, entendendo-as a partir do só por pressupor a presença do falante,
relativismo da função distintiva do da Ilustração portuguesa, o princípio de como também por ser considerada a
conceito saussuriano de fonema. Isto é, que o conhecimento das formas cor- matriz da escrita, que foi interpretada
assim como o significante vaca se torna póreas depende da percepção da super- desde sempre como mera reprodução
perceptível apenas por contrastar com fície das coisas, de que trata a geometria. artificiosa do ato natural da fala. Assim, a
faca, o filósofo julga que só se conhece Derrida privilegia a etnologia na oposição fala/escrita gera outra dualidade
Deus por se tratar de um construto formação do discurso das ciências supostamente verdadeira: presença/
diferente de diabo. Da mesma forma, a humanas. Observa que, antes de Lévi- ausência, que acaba por implicar a su-
natureza só é percebida por se distinguir Strauss, essa ciência tomava exclusi- perioridade do presente sobre o passado,
da cultura, e assim por diante. Por essa vamente a Europa como origem para da natureza sobre a cultura. Eis o que
perspectiva, pode-se supor também que qualquer generalização acerca do Derrida chama a “metafísica da pre-
a percepção de uma montanha só se torna homem. A Europa era tomada como sença”, que o filósofo pretende descons-

novembro/98 - CULT 35
truir, invertendo a hierarquia desses pares a natureza da consciência humana, que de um trocadilho grafo-sonoro, porque
antitéticos. Esclarece que, tanto quanto a se confunde com a noção de linguagem. essas palavras possuem grafias distintas e
escrita, a fala obedece a um código Essa perspectiva não admite um centro uma só pronúncia. O neologismo do
preestabelecido, que ele denomina exterior responsável pela geração dos filósofo deriva de différer, que tanto pode
“arquiescritura”. Trata-se de um código significados a serem captados pelo significar diferenciar quanto adiar. Dife-
matricial abstrato, do qual nascem as espírito humano e “depois” veiculados renciar pressupõe a geometria dos corpos,
diferenças geradoras do sentido, tanto na pela linguagem. Ao contrário, ao criar espacialidade, pois o signo se explica pela
língua falada quanto na escrita. A maior configuração de seu contrário; adiar
conseqüência dessa desconstrução é a implica temporalidade, pois o signo
Milton Michida/AE
ratificação de uma idéia consagrada pela também retarda continuamente a idéia de
lingüística estrutural, segundo a qual não presença. Observem-se os fonemas /b/ e
existe origem absoluta para o significado. /p/: ambos são bilabiais explosivos. A
Este decorre de relações, e não de essên- diferença essencial entre eles é que o
cias isoladas: é sintagmático, jamais para- primeiro se caracteriza por uma
digmático. propriedade positiva: é sonoro; ao passo
O princípio de que o significado que o segundo, por uma propriedade
decorre de relações possibilita ao teórico negativa: é surdo. Por causa de sua
a formulação da idéia de suplemen- condição positiva, a lingüística tradi-
taridade, que consiste no pressuposto de cional tende a atribuir ao fonema /b/ o
que os termos dos pares do pensamento privilégio do centro. Derrida considera
metafísico se complementam mutua- essa conclusão uma construção meta-
mente. Esse princípio não só implica a física, afirmando que a propriedade
inversão dos elementos que constituem positiva do primeiro decorre da condição
as relações binárias, mas também negativa do segundo, assim como o
permite conceber esses elementos numa Há uma nova espécie de sentido de Deus depende da noção de
dimensão de antítese inclusiva, e não desconstrução em diabo. O vocábulo différance foi inventado
exclusiva. Nesse sentido, o conceito de andamento no ensaísmo para caracterizar esse processo de geração
verdade, por depender do de mentira, brasileiro, representada
do sentido, em que um significado
contém necessariamente um pouco de continuamente se refere a outro signi-
pelos textos de João Adolfo
seu oposto. Observe-se a idéia do bem. ficado e a toda a rede de significados da
Hansen (acima), que
Sabe-se que decorre de Deus, a origem língua, processo também designado de
utiliza fundamentos
total do ser. A noção do mal vem em suplementaridade do signo.
do historicismo de
segundo lugar e completa a plenitude As práticas de Derrida orientaram-se
de Deus, ao mesmo tempo que suple- Michel Foucault sobretudo para sistemas de interpretação,
menta e contamina a idéia de bem: pois, e não propriamente para obras literárias.
caso não houvesse o princípio da Queda, os significados e o respectivo sistema de Fundam-se principalmente em análises
seria impensável o conceito de bem. Vem signos, o homem estaria forjando a de pensadores como Platão, Rousseau,
daí que as antíteses conceituais do própria consciência, também constituída Nietzsche, Husserl, Freud, Marx e Lévi-
pensamento metafísico não passam de por elementos contrastivos. Strauss. Evidentemente, o filósofo de-
construtos culturais. Pertencem à ordem Como se vê, a linha de força do pen- teve-se também em textos ou concepções
dos signos, e não ao domínio das enti- samento derridiano consiste na teoria da artísticas, como é o caso de seus estudos
dades naturais. Mas qual a vantagem diferença, resultante de uma interpretação sobre Antonin Artaud e Mallarmé. A
desse tipo de desconstrução para a radical da lingüística de Saussure. partir daí, os sistematizadores da nova
filosofia da linguagem? Pela perspectiva Desenvolvendo criticamente a teoria do teoria estabeleceram alguns passos para
de Derrida, não só representaria um signo saussuriano, Derrida criou o a abordagem desconstrucionista do texto
estágio agudo do exercício crítico no vocábulo différance. Não só para se literário, como a seguinte, elaborada a
discurso das ciências humanas, como contrapor ao termo francês différence como partir de sugestões de Charles E. Bressler
também – e principalmente – revelaria também para complementá-lo. Trata-se e Jonathan Culler: (1) descobrir as

36 CULT - novembro/98
B I B L I O G R A F I A

operações binárias que estruturam o episteme o padrão que unifica a diver-


texto; (2) comentar os valores, os con- sidade de discursos de uma época. A
ceitos e as idéias que subjazem a essas partir daí, a produção de um autor passou • A escritura e a diferença, de Jacques
operações; (3) subverter as operações a ser entendida como a apropriação
Derrida. Tradução de Maria Beatriz
binárias existentes no texto; (4) descons- singular dos discursos coletivos de seu
truir as concepções implícitas no texto; tempo. Em função disso, reinaugura-se Marques Nizza da Silva. São Paulo,
(5) a partir das novas relações binárias, o esforço pela reconstrução das formas Perspectiva, 1971.
admitir a hipótese de uma terceira saída mentais do passado: redesenha-se o
• Gramatologia, de Jacques Derrida.
e de outros níveis de significação; e (6) espaço da arqueologia, que conduz ao
deixar em aberto a interpretação do texto, abandono de certas generalizações que Tradução de Miriam Schnaiderman e
supondo-se o princípio de que o sig- procuram unificar a diversidade da Renato Janine Ribeiro. São Paulo,
nificado é sempre móvel, múltiplo e história a partir de categorias do presente.
ilimitado. É o que se observa, por exemplo, com o Perspectiva, 1973.
No Brasil, Derrida foi muito bem- conceito de escola literária. Boa parte dos • Glossário de Derrida, supervisão de
recebido a partir dos anos 70, como deixa chamados estilos de época não passam Silviano Santiago. Rio de Janeiro,
ver, por exemplo, o útil Glossário de de discursos atuais voltados para a
Derrida, elaborado por alunos da PUC- anulação da diversidade de práticas do Francisco Alves, 1976.
RJ, sob a supervisão de Silviano San- passado. Paralelamente, recusa-se a • Critical theory & practice: A
tiago. Haroldo de Campos aplicou prin- leitura sincrônica das formas literárias, coursebook, de Keith Green e Jill
cípios do filósofo francês em seu O em franco progresso em outros setores
seqüestro do barroco na literatura brasileira: da produção cultural brasileira. Uma Lebihan. London, 1997.
O caso Gregório de Matos, com o propósito possível alternativa contra essas supostas • Fifty key contemporary thinkers: From
de rever alguns aspectos da teoria formu- formas anacrônicas de leitura tem sido o
structuralism to postmodernity, de John
lada por Antonio Candido na Formação estudo das poéticas, que faculta a
da literatura brasileira. apreensão da diversidade sem descon- Lechte. London/New York,
Registre-se, por fim, que há uma nova siderar a unidade específica de cada Routledge, 1996.
espécie de desconstrução em andamento período. Tal estudo pressupõe o conceito
no ensaísmo brasileiro, representada de história literária como a contínua • Literary criticism: An introduction to
sobretudo pelos textos de João Adolfo reapropriação dos diversos discursos do theory and practice, de Charles E.
Hansen. Desta vez, os fundamentos já homem. Nesse sentido, o passado não Bressler. Englewood Cliffs, New
não decorrem de Derrida, mas do histo- atua sobre o presente; o presente é que se
ricismo de Michel Foucault, para quem apropria do passado como forma de Jersey, Prentice Hall, 1994.
cada época possui uma episteme específica legitimação do ponto de vista segundo o • On deconstruction: theory and criticism
e intransferível. Foucault entende por qual se emitem os juízos. after structuralism, de Jonathan Culler.
Ithaca, New York, Cornell University
Luciana Whitaker/Folha Imagem
Press, 1992.
Nota-se que as idéias
de Derrida foram • Literary theory: a very short
bem-recebidas no Brasil introduction, de Jonathan Culler.
pelo aparecimento do
Oxford/New York, Oxford University
Glossário de Derrida,
organizado por Silviano Press, 1997.
Santiago (ao lado), e pela • A reader’s guide to contemporary literary
aplicação de princípios theory, de Raman Selden e Peter
desconstrutivistas por
Haroldo de Campos Widdowson. New York/London,
Harvester Wheatsheaf, 1993.

novembro/98 - CULT 37
F O R T U N A C R Í T I C A 6
Ivan Teixeira

NEW HISTORICISM
Influenciado pelas obras de Michel

Reprodução
Foucault e Derrida, o new historicism

Fotos
de Stephen Greenblatt afirma que a
produção poética está incrustada no
discurso coletivo de seu tempo,
restaurando a historicidade do texto e
postulando a textualidade da história O crítico Stephen Greenblatt

O movimento crítico hoje conhecido social, na qual se inscrevem não só


Série destaca as principais como new historicism originou-se nos elementos da língua adotada, mas tam-
tendências da crítica literária Estados Unidos, em 1988, por meio de bém das instituições e das convenções
“Fortuna Crítica” é uma série de seis
propostas apresentadas por Stephen segundo as quais se forma o repertório
artigos do ensaísta Ivan Teixeira sobre Greenblatt em seu livro Shakespearean do autor. Conforme a expressão de Louis
as principais correntes da crítica lite- negotiations: The circulation of social energy Montrose, outro defensor do novo
rária. As escolas de interpretação poé- in Renaissance England. Nas páginas dessa método, o crítico deve captar simultanea-
tica abordadas até este último texto fo- obra, o estudioso proclama o desejo de mente a historicidade do texto e a
ram a retórica de Aristóteles e Quin-
tiliano (publicado na CULT 12, em ju-
falar com os mortos. Em franca oposição textualidade da história. Partindo dessa
lho), o formalismo russo (CULT 13, agos- à orientação lingüística da análise textual perspectiva, o new historicism procura
to), o new criticism (CULT 14, setem- defendida pelo estruturalismo e pelos restaurar a forma mental da época
bro), o estruturalismo (CULT 15, outu- remanescentes do new criticism, tal decla- estudada, o que acaba por criar um objeto
bro) e o desconstrucionismo (CULT 16, ração tinha por objetivo restaurar polemi- próprio de pesquisa literária – objeto
novembro). Ivan Teixeira é professor do
camente a dimensão histórica dos estudos próprio mas multifacetado, a que
Departamento de Jornalismo e Editora-
ção da ECA-USP, co-autor do material literários. Greenblatt, apropriando-se da termino-
didático do Anglo – Vestibulares de São Apropriando-se de noções da teoria logia do antropólogo norte-americano
Paulo (onde lecionou literatura brasilei- dos discursos de Michel Foucault e de Clifford Geertz, chama cultura em ação.
ra durante mais de 20 anos) e autor de algumas posições do relativismo des- A integração da literatura no âmbito
Apresentação de Machado de Assis construcionista de Jacques Derrida, dos signos sociais obriga o entendimento
(Martins Fontes) e Mecenato pombalino
e poesia neoclássica (a sair pela Edusp).
Greenblatt recusa-se a entender a lite- do discurso histórico não como contexto,
Tem-se dedicado a edições comentadas ratura como fenômeno isolado das de- mas como texto de uma época. Conforme
de clássicos – entre eles, as Obras mais práticas sociais. Ao contrário, inter- os pressupostos foucaultianos do new
poéticas de Basílio da Gama (Edusp) e preta-a como uma dentre as muitas historicism, a produção poética de um
Poesias de Olavo Bilac (Martins Fon- estruturas em que se pode ler o espírito autor deve necessariamente ser consi-
tes) – e dirige a coleção “Clássicos para
de uma época. Como discurso, a literatura derada como discurso singular incrus-
o vestibular”, da Ateliê Editorial.
caracteriza-se antes de tudo como prática tado no discurso coletivo de seu tempo.

3 2 CULT - dezembro/98
Não se trata de entender a obra como verdadeiro etc. Os valores essenciais dos O ensaio mais célebre de Greenblatt
reflexo do contexto e muito menos de povos são sempre circunstanciais e su- talvez seja “Resonance and wonder”, de
considerar a história como pano de fundo jeitos ao jogo transitório das formulações 1990. Nesse texto, o autor enumera três
para uma compreensão supostamente históricas, das quais depende a escolha características essenciais do velho histo-
politizada da obra. Trata-se, ao contrário, das instituições e das pessoas que elabo- ricismo: (1) crença na idéia de que a
de entender a produção artística como ram e preservam o código que regula a história é presidida por um processo
parte integrante de um discurso mais relação entre os indivíduos e destes com inexorável e cujo curso o homem pratica-
amplo, o discurso histórico, do qual a os padrões e os valores vigentes. mente não pode alterar; (2) convicção de
obra de arte participa como se fosse frase Outro traço importante do pensa- que o historiador deve evitar juízos de
intercalada ou procedimento retórico. mento foucaultiano é a idéia de que a valor em seu estudo do passado ou de
Hayden White, que também partilha culturas antigas; (3) veneração do passado
da necessidade da renovação dos estudos ou da tradição.
culturais, julga que o discurso historio- Greenblatt opõe-se a essas três
gráfico possui a mesma natureza do categorias, propondo alternativas polê-
discurso literário, chegando a aplicar micas para elas. A primeira grande
categorias importantes da crítica literária, diferença entre o historicismo tradicional
como os gêneros e os tropos de linguagem, e o novo historicismo consiste na incor-
à classificação das diversas modalidades poração da idéia de história como dis-
de historiografia. Estabelece-se, assim, curso: a história não é o fato, mas o regis-
uma relação de homologia entre história tro dele. Essa noção não se esgota no
e literatura, e não apenas uma relação de preceito marxista segundo o qual a
complementaridade. As manifestações perspectiva do historiador determina a
culturais de um período nada mais são natureza política do registro. Trata-se de
do que uma constelação de signos da algo mais. Para que o fato se converta em
realidade que as compõe. A obra de arte história é preciso primeiro assumir a
integra essa constelação, a que Stephen condição de discurso, de logos, o que não
Greemblatt chamou poética da cultura, no O crítico Hayden White quer dizer que o evento deva necessa-
ensaio “Towards a poetics of culture”, de riamente atingir condição de enunciado
encontra uma relação de
1987. verbal para ser história, mas sim mani-
homologia entre o discurso
Segundo Foucault, as vozes do tempo festar-se num sistema autoconsciente de
historiográfico e o discurso
são variadas e quase infinitas, mas podem significação social. A morte absoluta-
literário, aplicando
ser sintetizadas pela idéia de episteme, mente ignorada de um indivíduo no
entendida como o modo de articulação categorias como gêneros e
deserto não pertence à história. Mas o
entre os vários discursos que compõem a tropos de linguagem aos assassinato secreto de um sem-terra nos
história de um povo: política, arte, relatos dos historiadores confins de uma fazenda do Mato Grosso
poética, ética, moda etc. O pensador é história, porque se insere num processo
francês não entende a história como história não é teleológica, quer dizer, não catalogado pela consciência social do
narrativa ou análise dos acontecimentos se orienta para um fim racionalmente momento. Nesse sentido, a história não é
em sua relação de causa e efeito, mas concebido pelo próprio devir das insti- feita pelo homem (categoria metafísica),
como um imenso discurso gerado pela tuições e dos fatos, como pensava a tra- mas por homens em busca de significação
vida orgânica das ocorrências físicas e dição metafísica. A concepção teleo- (categoria circunstancial). Não se trata,
espirituais de determinado momento. A lógica da história elege o presente como portanto, de um processo absoluto e
noção de episteme foucaultiana implica o ponto de chegada de todos os esforços irreversível, mas do resultado impre-
o afastamento de qualquer crença univer- do homem. Foucault, ao contrário, não visível de situações concretamente assi-
salizante, pois explica os valores em entende o presente como espaço privile- miláveis.
termos estritamente sociais, sem nenhum giado no tempo. Interpreta-o apenas Em sua refutação do segundo
recurso à metafísica. Cada época cria o como o lugar de onde se produz o conhe- princípio do historicismo tradicional,
padrão que estabelece a noção de certo cimento, do qual decorrem os discursos Greenblatt afirma que o passado deve
ou errado, de belo ou feio, de falso ou e as várias formas de poder de uma época. ser entendido pela perspectiva do

dezembro/98 - CULT 3 3
presente, isto é, partilha da idéia da Shakespeare se reveste de tanta atitude escreveu também um admirável poema
necessidade de juízos de valor sobre o política quanto se revestiu de propriedades herói-cômico: O desertor (1774), com-
passado. Todavia, temeroso talvez de dramáticas a coroação de Elizabeth I. Em pletamente esquecido hoje em dia. A
destoar da doutrina foucaultiana, outros termos, o new historicism atenua os escassa fortuna crítica desse texto se deve
Greenblatt não deixa de problematizar a limites entre discurso artístico e discurso principalmente ao magistério da inter-
aplicação desses juízos, criando uma social, entendendo aquele como projeção pretação romântica, que, por força de seu
estratégia operacional a que chama senso da estrutura deste. Não se trata, repita-se, nacionalismo, desqualificou o poema sob
de distanciamento. O senso de distancia- pretexto de não apresentar interesse para
mento leva-o a ratificar a noção de que o a formação da literatura propriamente
presente não decorre de suposta inevita- brasileira.
bilidade histórica (recusa da história Pela perspectiva do new historicism,
como progressão teleológica), devendo esse não seria o modo correto de ler O
ser entendido apenas como o ponto a desertor. Tendo sido escrito como parte da
partir do qual se reconstrói o passado. celebração da reforma da Universidade
Além disso, o ensaísta considera que de Coimbra, levada a efeito pelo Marquês
há dois modos de relacionamento entre de Pombal em 1772, esse texto deve ser
passado e presente: por analogia e por restituído ao discurso social de que fez
causalidade. Em qualquer dos casos, julga parte. Nesse caso, caberia ao crítico
inevitável a presença de juízos de valor, recompor o universo do mecenato
pois afirma que a suposta isenção do velho pombalino e estudar as instituições e os
historicismo não passa de subserviência valores que o ministro representava.
aos valores oficiais do Estado e aos estudos Caberia também investigar o rigoroso
acadêmicos, visto que a consciência da repertório coletivo de convenções que
impossibilidade de isenção do historiador estabelecia desde as tópicas literárias
na formulação do discurso histórico (coisas retóricas) e o modo de apro-
conduz ao cerceamento da imposição Há uma homologia priação delas até os princípios de organi-
arbitrária de valores atuais sobre o passado. histórica e artística entre zação da frase e do poema. Efetuada essa
Quanto ao terceiro item do paralelo a Estátua Eqüestre de operação, O desertor talvez renascesse para
de Greenblatt entre o velho e o novo D. José I e a retórica a sensibilidade atual, que poderia apreciar
historicismo, não parece necessário dizer celebrativa contida na nele não apenas a deliciosa ironia contra
que o ensaísta recusa a teoria da vene- poesia de Silva Alvarenga a neo-escolástica jesuítica, mas também
ração do passado e da tradição. Ao e Basílio da Gama o sugestivo encômio alegórico ao
contrário, empenha-se em criar categorias Marquês de Pombal, cuja política
substitutivas que incorporem e repre- colocava então a cultura lusitana em
sentem uma visão crítica da história. Em de entender a arte como reflexo ou como contato com o discurso ilustrado europeu.
lugar da veneração, propõe o sentimento produto condicionado por elementos O mesmo se pode dizer dos versos que
de maravilha (wonder), responsável pelo exteriores a ela, como fazem supor certas Basílio da Gama, mentor de Silva
desencadeamento do trabalho historio- aplicações do marxismo. Cumpre apenas Alvarenga na propagação do ideário
gráfico, que não deve apenas se dedicar à entendê-la como parte de discurso mais pombalino, escreveu para os festejos da
reconstrução da totalidade de culturas, amplo, para cuja compreensão é necessário inauguração da Estátua Eqüestre de D.
mas também se empenhar na análise da desintegrá-la do todo e, depois, em José I (1775), erigida por Pombal em
marginália dos processos unificadores, movimento heurístico, reintegrá-la ao homenagem ao rei. Os festejos dessa
como fragmentos de lendas, acusações de organismo de que é parte. inauguração incorporaram diversos
bruxaria, manuais médicos – pormenores Tome-se um exemplo da literatura em traços retóricos da alegoria poética, assim
simbólicos que, segundo Greenblatt, língua portuguesa. Como se sabe, como os textos celebrativos do evento se
revelam toda a estrutura imaginária e Manuel Inácio da Silva Alvarenga, autor apropriaram de outras tantas fórmulas
ideológica da sociedade que os produziu. de Glaura (1799), o mais prestigiado políticas do Antigo Regime. Dentre
Nesse sentido é que se deve entender a poema lírico do setecentismo brasileiro outras coisas, esse monumento repre-
reveladora afirmação de que uma peça de depois de Marília de Dirceu (1792), sentou a glorificação da carreira política

3 4 CULT - dezembro/98
B I B L I O G R A F I A

de Pombal, verdadeira apoteose em vida: relações entre arte e história, a crítica


na parte superior do monumento, acima tradicional fala em alusão, símbolo,
de tudo, com ares emblemáticos, vê-se a alegoria, representação e, sobretudo, em • “Towards a poetics of culture”, de
figura alegórica de um rei abstrato, mimesis. Considerando esses termos Stephen Greenblatt. Em The new
cavalgando um heráldico cavalo sem vida. insuficientes, Greenblatt proclama a historicism, editado por H. Aram
Em baixo, como suporte do conjunto em necessidade da criação de nova termi- Veeser. Nova York/Londres, Rou-
que se eleva o rei, ostenta-se o busto do nologia, capaz de descrever satisfato- tledge, 1989.
marquês, com traços singulares, estiliza- riamente a transferência da matéria de • “Resonance and wonder”, de
dos como retrato de Sebastião José de uma esfera discursiva para outra e, ao
Stephen Greenblatt. Em Literary
Carvalho e Melo. Enfim, o monumento mesmo tempo, capaz de explicar a
theory today, editado por Peter Collier
encarna a idéia de que Pombal era a base transformação do discurso histórico em
da sustentação política do Rei, noção que discurso estético. Qualquer que seja a e Helga Geyer-Ryan. Ithaca, Nova
se transformou em coisa retórica na arte saída, o ensaísta enfatiza que a trans- York, Cornell University Press, 1990.
do período. Homóloga à concepção ferência não se processa numa só direção, • “Introduction”, de H. Aram Veeser.
arquitetônica da Estátua Eqüestre, a porque o próprio discurso histórico já Em The new historicism, editado por
tópica de Pombal como base do poder traz em si inúmeras propriedades H. Aram Veeser. Nova York/Londres,
reitera-se em diversos momentos da estéticas. Rouledge, 1989.
poesia de Basílio da Gama, dos quais os Dentre as inúmeras contribuições do • “What is the new historicism?”, de
versos seguintes, extraídos de diferentes new historicism para o exercício profissional Ross C. Murfin. Em The dead, de James
poemas, podem servir de exemplo: da crítica, talvez a mais instigante (e útil) Joyce. Editado por Daniel R. Schwarz.
seja a ratificação da idéia do Belo como
Reconheço a JOSÉ. POMBAL eu vejo, Boston/Nova York, Bedford Books of
decorrência de convenções históricas.
Que a Coroa na testa lhe sustinha. St. Martin’s Press, 1994.
Subjaz à sua visão do fenômeno literário o
Reverente me inclino, e o Cetro beijo. • “New historicism”, de Charles E.
princípio de que a beleza ou a qualidade
• Bressler. Em Literary criticism: An
artística não decorrem da Graça nem
A mão, seguro arrimo da coroa, introduction to theory and practice.
exclusivamente do talento individual.
A mão que da ruína ergueu Lisboa.
Resultam, antes, da conformidade das Englewood Cliffs, Nova Jersey,
Assim, a produção de épocas passadas aspirações do artista com os padrões e com Prentice Hall, 1994.
só ganha sentido artístico no presente o repertório de sua época. Embora ele- • New historicism and cultural
quando posta em situação histórica, mentar, essa noção, que necessariamente materialism, de John Brannigan. Nova
quando entendida como projeção de uma implica a atenuação de certezas transcen- York, St. Martin’s Press, 1998.
cultura em ação, regida por traços dentes, não parece suficientemente acli-
• Meta-história: A imaginação histórica
específicos que devem ser arqueolo- matada nas manifestações diárias do debate
do século XIX, de Hayden White.
gicamente restaurados. Ao abordar as literário entre nós.
Tradução de José Laurêncio de Melo.
São Paulo, Edusp, 1995.
O filósofo • Trópicos do discurso, de Hayden White.
Divulgação

francês Michel Tradução de Alípio Corrêa de Franca


Foucault dá o Neto. São Paulo, Edusp, 1994.
nome de episteme • Possessões maravilhosas, de Stephen
à articulação Greenblatt. Tradução de Gilson César
das várias vozes Cardoso de Souza. São Paulo, Edusp,
que compõem 1996.
um imenso • A ordem do discurso, de Michel
discurso gerado Foucault. Tradução de Laura Fraga de
por determinado
Almeida Sampaio. São Paulo, Edições
recorte histórico
Loyola, 1996.

dezembro/98 - CULT 3 5

Você também pode gostar