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TEORIA DA

LITERATURA

Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso


Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
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Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Mercado
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Direção de Polos Próprios
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Direção de Desenvolvimento
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Head de Produção de Conteúdos
Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli
Gerência de Produção de Conteúdos
Gabriel Araújo
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Coordenador de Conteúdo
Fabiane Carniel
Qualidade Editorial e Textual
Daniel F. Hey, Hellyery Agda
Design Educacional
Camila Zaguini Silva
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Fernando Henrique Mendes
Distância; PARADISO, Silvio Ruiz; VILLIBOR, Roberta Fresneda. Rossana Costa Giani
Nádila de Almeida Toledo
Teoria da Literatura. Silvio Ruiz Paradiso; Roberta Fresneda
Villibor. Projeto Gráfico
Reimpressão Jaime de Marchi Junior
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. José Jhonny Coelho
174 p.
“Graduação - EaD”. Arte Capa
Arthur Cantareli Silva
1. Estruturalismo e Formalismo Russo. 2. Teoria Literária. Editoração
3. Gênero Narrativo. 4. EaD. I. Título. Daniel Fuverki Hey
Humberto Garcia da Silva
ISBN 978-85-8084-719-2
CDD - 22 ed. 809 Thayla Daiany Guimarães Cripaldi
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Revisão Textual
Jaquelina Kutsunugi, Keren Pardini, Maria
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Fernanda Canova Vasconcelos, Nayara
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Valenciano, Rhaysa Ricci Correa e Susana Inácio
Impresso por:
Ilustração
Robson Yuiti Saito, Nara Emi Tanaka Yamashita
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos fará grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar –
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quan-
do investimos em nossa formação, seja ela pessoal
ou profissional, nos transformamos e, consequente-
mente, transformamos também a sociedade na qual
estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capa-
zes de alcançar um nível de desenvolvimento compa-
tível com os desafios que surgem no mundo contem-
porâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialó-
gica e encontram-se integrados à proposta pedagó-
gica, contribuindo no processo educacional, comple-
mentando sua formação profissional, desenvolvendo
competências e habilidades, e aplicando conceitos
teóricos em situação de realidade, de maneira a inse-
ri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais
têm como principal objetivo “provocar uma aproxi-
mação entre você e o conteúdo”, desta forma possi-
bilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos
conhecimentos necessários para a sua formação pes-
soal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cres-
cimento e construção do conhecimento deve ser
apenas geográfica. Utilize os diversos recursos peda-
gógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possi-
bilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente
Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e en-
quetes, assista às aulas ao vivo e participe das discus-
sões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de
professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTORES

Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso


Doutor em Letras com ênfase em Estudos Literários (Diálogos Culturais),
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e sócio-fundador da AFROLIC
- Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos. Teve
condução direta ao doutorado em 2010 com louvor. Professor de Literaturas
estrangeiras e Teoria da Literatura do Centro Universitário Cesumar
(UNICESUMAR) e da pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Jandaia do Sul (FAFIJAN). Tem curso de Extensão em Filosofia pela
University of Edinburgh, Extensão em Narrativas curtas e de média extensão
de Mia Couto (UEL), curso de Extensão em Pós-colonialismo (UEM) e História
e Cultura afro-brasileira e Africana (UEL).

Professora Me. Roberta Fresneda Villibor


Licenciada e Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá,
possui créditos de Doutorado em Letras pela UEL e é professora de Língua
Portuguesa para o Ensino Médio e para o Ensino Superior. Atualmente,
coordena e apresenta o programa Lendo, Vendo e Ouvindo na CBN Maringá.
APRESENTAÇÃO

TEORIA DA LITERATURA

SEJA BEM-VINDO(A)!
Caro(a) aluno(a),
Seja bem-vindo(a) aos Estudos Literários! A Teoria da Literatura, como disciplina cur-
ricular de Letras, constitui-se em um importante componente da matriz curricular de
todo professor em formação em Língua Portuguesa e Estrangeira e Literaturas Corres-
pondentes. Porém, discutir literatura nem sempre é uma tarefa fácil, ainda mais quando
entram em jogo regras e definições. De modo a prepará-lo(a) para o estudo da literatura
e de suas inúmeras metodologias – tão distintas entre si e, por sua natureza singular, dís-
pares e ao mesmo tempo imprescindíveis –, escrevemos o presente livro com o intuito
de introduzi-lo(a) à análise da obra literária.
Nas cinco unidades que compõem este livro, você encontrará um panorama sobre o que
se convencionou chamar de “Teoria da Literatura”.
Na Unidade I, discutiremos sucintamente sobre a questão do cânone literário, dividindo-
-o em dois gêneros: o narrativo e o dramático.
Na segunda Unidade, realizaremos uma imersão um pouco mais técnica e histórica so-
bre o Formalismo Russo e sobre o Estruturalismo, correntes de estudo da literatura do
século XX, que procuraram sistematizar a análise literária.
A Unidade III, por sua vez, desmembra de modo mais específico a narrativa e seus ope-
radores básicos, disponibilizando a você, acadêmico(a), as ferramentas necessárias para
a análise estrutural da narrativa – discussão já iniciada na Unidade II.
A quarta Unidade discute o Lírico, ou seja, a análise da Poesia. Nela, serão definidos con-
ceitos primordiais como escansão, verso, metro e métrica, além de definir algumas das
formas poéticas mais conhecidas.
Por fim, propomos algumas teorias críticas pós-estruturalistas e pós-modernistas. Nesta
quinta Unidade, você estudará uma breve introdução sobre o Feminismo, Teorias Étnico-
-raciais, o Pós-colonialismo e, por último, sobre a Estética da Recepção alemã.
Sabemos que este livro consiste em apenas uma síntese do universo gigantesco que
compõe a teoria da literatura. Para aprofundar seus estudos, propomos ao final uma
bibliografia de apoio, que deve ser consultada e, se possível, lida, ampliando assim seus
horizontes de leitura.
Bons estudos e excelente leitura!
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor
SUMÁRIO

UNIDADE I

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE

13 Introdução

13 Cânone e Anticânone

16 Literariedade

21 Gêneros Literários

49 Considerações Finais

UNIDADE II

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO

55 Introdução

55 Formalismo Russo 

65 Problemas da Abordagem Formalista

65 O Estruturalismo

73 Considerações Finais
8-9

SUMÁRIO

UNIDADE III

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES

81 Introdução

81 O Gênero Narrativo e seus Operadores

92 Considerações Finais

UNIDADE IV

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES

105 Introdução

105 O Lirismo

107 O Verso

108 A Escansão 

111 A Métrica

122 Ritmo e Rima

126 Figuras de Linguagem

135 Formas Poéticas

138 Consideraçãos Finais


SUMÁRIO

UNIDADE V

O PÓS-ESTRUTURALISMO

143 Introdução

143 O Pós-Modernismo e Pós-Estruturalismo

145 Teorias Pós-Estruturalistas

146 Teorias de Gênero

149 Estudos Etnorraciais

152 O Pós-Colonialismo

155 Teorias Críticas

158 Considerações Finais

163 CONCLUSÃO
165 REFERÊNCIAS
169 GABARITO
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

CÂNONE, ANTICÂNONE E

I
UNIDADE
LITERARIEDADE

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender os conceitos de cânone e anticânone.
■■ Estudar o conceito de Literariedade como elemento que define a
Literatura.
■■ Conceituar os diferentes gêneros literários e saber diferenciá-los.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Cânone e Anticânone
■■ Literariedade
■■ Gêneros Literários
■■ Principais gêneros narrativos
■■ Principais gêneros dramáticos
12 - 13

INTRODUÇÃO

Nesta Unidade, você estudará conceitos basilares para os Estudos Literários, com-
preenderá os conceitos de cânone e anticânone e se familiarizará com os gêneros
literários divididos em dois grandes campos: gêneros narrativos e gêneros dra-
máticos. Além disso, entenderá o elemento indispensável para o texto literário:
a literariedade.
Na primeira parte, uma provocação: afinal, o que é a literatura? Por que uma
bula de remédio, apesar de escrita em vernáculo, não é considerada literatura? A
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

provocação continua: quem define academicamente o que deve ou não ser lido
(e consumido) pelo público? Qual critério de valor é empregado na constituição
do que é boa ou má literatura? Aliás, existe boa e má literatura?
Na segunda parte desta unidade, você entrará em contato com aspectos
mais formais (que dizem respeito à estrutura) do texto literário: a classificação
dos gêneros, secionados em dois grupos: os narrativos (textos que contam/nar-
ram sequências de eventos em que um personagem foi agente e/ou paciente) e
os dramáticos – os que foram escritos para serem encenados. A partir dessa dife-
renciação, explicaremos de modo sucinto a diferença entre um romance, uma
novela, um conto, uma crônica e um ensaio, bem como entre uma fábula e um
apólogo. Por fim, faremos uma introdução aos conceitos gregos de tragédia e
comédia, terminando com a farsa.

CÂNONE E ANTICÂNONE

Nos Estudos Literários, uma palavra que você irá ter contato frequentemente
é o termo cânone. Ao ler o termo, você com certeza deve ter se recordado do
ato da canonização, que consiste em tornar “sagrado” determinado religioso a
partir do julgamento de seus atos. O mesmo processo pode ser verificado na
literatura, especificamente na crítica literária. Alguns críticos – notadamente
professores universitários – defendem determinadas obras como relevantes e de

Introdução
I

©shutterstock
leitura praticamente obrigatória para o estudioso da literatura.
Geralmente, chamamos estas obras de “clássicos da literatura”.
Ao fazê-lo, esses críticos estão elaborando sua “lista de lei-
tura”, que passa a ser estabelecida como parâmetro da chamada
boa literatura e, portanto, deve ou deveria ser seguida por quem
se pretende conhecedor dos denominados clássicos. É justa-
mente essa seleção do que é considerado uma boa leitura que
chamamos de cânone.
A palavra deriva do grego kanon, o que hoje seria conhe-

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cido como uma ‘régua’. O kanon era um objeto parecido com
uma vara, utilizado como instrumento de medida. Esta é a rela-
ção importante que você deve entender, o kanon servia para
mensurar, medir, determinar um tamanho, isto é, um modelo.
Logo, tudo que é canônico pertence ao cânone e, por con-
sequência, está inserido em um conjunto de modelo, tido como
ideal. No caso da Literatura, temos o Cânone Literário, ou seja,
uma lista de textos clássicos considerados “de valor” estético.
Ginzburg, em seu artigo Cânone e valor estético em uma teoria
autoritária da literatura (2006), revela:
Entre os elementos que podem ser examinados em
cursos universitários de Teoria da Literatura, está
o valor. Os estudantes devem saber distinguir uma
boa obra literária de uma obra sem interesse, um au-
tor relevante de um nome sem importância. Devem
fazê-lo não aleatoriamente ou por impulso emocio-
nal, mas com base em argumentos fundamentados
em um conhecimento seguro (GIZNBURG, 2006,
p.98).

O autor citado entende que o conceito de valor pode ser exa-


minado em articulação com a noção de cânone, mas não são
necessariamente análogos, isto é, dependentes. O que gosta-
ria de salientar é que não é porque um livro não pertença ao
cânone que ele não tem valor, já que

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


14 - 15

a reprodução passiva do cânone na formação de estudantes constitui


uma limitação na expectativa de desenvolvimento de pensamento crí-
tico. Para evitar isso, é preciso levar aos estudantes textos de variados
níveis de qualidade (CANDIDO, 1995 apud GINZBURG, 2006, p.99).

Um dos maiores estudiosos sobre o Cânone Literário é o crítico americano


Harold Bloom, que é explicitamente contrário a movimentos de renovação ou
reforma do cânone, afinal, para o estadunidense, os departamentos de estudos
literários ter-se-iam convertido em espaços dedicados a estudos de etnia, raça e
gênero, uma consequência do abandono de critérios estéticos (BLOOM, 1995,
pp. 312-313). Tal posicionamento de Bloom é alvo de críticas por parte de mul-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ticulturalistas e feministas. A posição de Harold Bloom, o grande defensor de


Shakespeare, pode até ser coerente com sua postura de crítico ocidental em rela-
ção ao cânone literário, mas que, entretanto, não apaga a base histórica a qual o
cânone fora construído. Bloom deixa explícita sua parcialidade ao defender um
“cânone anglo-cêntrico e ego-cêntrico”, na definição da professora Leyla Perrone-
Moisés, em Altas Literaturas (PERRONE-MOISÉS, 2003, pp. 200-201).
Se voltarmos aos primórdios da Literatura, veremos que esta ficava restrita
a apenas um pequeno grupo, levando em consideração a autoria (masculina, de
classe com alto poder aquisitivo, etnia predominante etc.). Alguns exemplos são os
gregos e romanos, os primeiros a sistematizar o que era ‘bom’ e ‘ruim’ na literatura.
Enquanto os romanos davam privilégios apenas aos textos romanos, e os gre-
gos consideravam bárbaros todos aqueles que não falavam grego, iniciou-se um
processo de hierarquização do texto: alta e baixa literatura. Logo, toda produ-
ção literária que não se enquadrava no kanon deveria ser considerada marginal
e inferior. Os tempos foram passando, mas o cânone continuava (e continua)
nas mãos da elite intelectual, que, quase sempre, pertence a um grupo determi-
nante (homens, brancos e ricos).
Todavia, com o avanço dos Estudos Culturais, desde a década de 60, a chamada
“baixa literatura” começou a ser estudada, já que também é arte/cultura de um
grupo. Assim, começam-se estudos da produção estética e cultural de autores(as)
considerados(as) “menores”, enfatizando as formações discursivas, trânsitos e
trocas intersemióticas, e estabelecendo diálogos e filiações com os(as) grandes
autores(as) tanto do cânone como do anticânone, perpassando no texto literário
as demandas minoritárias, além dos questionamentos às instituições literárias.

Cânone e Anticânone
I

Hoje, a literatura não tem mais apenas o dever estético de produzir emoção.
Além disso, a literatura tem o dever social, como podemos observar em obras
como Textos de intervenção, de Antonio Candido (2002), Literatura, História e
Política (2007), de Benjamin Abdala Jr., e Literatura e resistência, de Alfredo Bosi
(2002), todos críticos literários, tais como Harold Bloom.
Desta forma, o valor determinado para ‘medir’ a literatura é subjetivo, já que
tão subjetivo é o que faz um tempo ser ou não literário: a literariedade.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
LITERARIEDADE

Para um dos membros do Formalismo Russo (que iremos abordar na Unidade


II), Roman Jakobson, a poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o
objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que
torna determinada obra uma obra literária (JAKOBSON apud SCHAIDERMAN,
1978).
No ensaio A arte como procedimento, Victor Chklovski (1978), também um
dos formalistas, procura explicar o que é a literariedade (elemento que confere a
um texto o estatuto de literatura, ou seja, o que faz a letra de uma música de Tom
Jobim arte enquanto um rótulo de maionese não passa de um rótulo de maio-
nese). Para tanto, Chklovski faz uma distinção entre a natureza da linguagem
poética, chamada por ele de língua poética, e a natureza da linguagem cotidiana,
nominada língua prosaica. O que distingue uma da outra é justamente a cons-
trução – o procedimento – utilizada pelo autor para a elaboração da linguagem.
No dia a dia, utilizamos vocábulos simples, cujo objetivo é o de comunicar
algo a nosso interlocutor. Chklovski (1978) considera que essa língua prosaica
é utilitária, econômica, reducionista, automatizada, ao contrário do que ocorre
na língua poética, trabalhada de modo rico ao ponto de oferecer ao interlocu-
tor procedimentos de singularização, desautomatizando a linguagem cotidiana.
Para Chklovski, linguagem poética e linguagem prosaica se distinguem por meio
desses procedimentos, que opõem automatismo e percepção desautomatizada:

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


16 - 17

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para
provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte
é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o
procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos
e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a difi-
culdade e a duração da percepção; a arte é um meio de experimentar o
devir do objeto, o que já é “passado” não importa para a arte (CHKLO-
VSKI, 1978, p. 45).

E como o autor realiza esses procedimentos? O artista se utiliza de inúme-


ros recursos de linguagem – os procedimentos de singularização – de modo
a oferecer novas ideias e informações a temas cotidianos, que se encon-
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tram “pasteurizados”, neutralizados pelo uso recorrente. Para Franco Junior


(2003), esses procedimentos levam a uma crise nos hábitos que se regem
pelas informações automatizadas, provocando no leitor uma revisão de suas
expectativas e até mesmo de sua própria percepção de mundo. São, assim,
os procedimentos de singularização que definem a linguagem única, especí-
fica – singular – da arte.
De modo a fazê-lo(a) compreender melhor o que os chamados procedi-
mentos de singularização significam, propomos um exercício. Observe os dois
textos, dispostos a seguir:

TEXTO 1

Mulher assassinada na Rua da Constituição


A ex-prostituta Maria Elvira foi assassinada a tiros na Rua da Constituição. O crime foi
praticado, ao que tudo indica, pelo funcionário do Ministério da Fazenda Misael, 66, que
vivia com a mulher há três anos, motivado, ao que parece, por uma série de traições da
mulher.
Segundo testemunhas, o casal mudava de bairro toda vez que Misael, considerado um
homem avesso a escândalos, descobria uma nova traição da amásia. A polícia encontrou
a mulher em decúbito dorsal, com marcas de seis tiros pelo corpo.
(texto criado pelos autores a partir do poema narrativo de Manuel Bandeira)

Literariedade
I

TEXTO 2

Tragédia Brasileira
Manuel Bandeira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa
– prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em
petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,
dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom
Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez
no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,
matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de
organdi azul.
Fonte: <recantodasletras.com.br>

A história contada em ambos os textos é a mesma: a morte de uma mulher a


tiros, cometida por um homem com quem ela se relacionava e a quem havia tra-
ído repetidas vezes. Porém, enquanto o texto 1 é claramente marcado como um
texto jornalístico, caracterizado como uma notícia (observe o distanciamento
do jornalista do fato noticiado, de modo a aparentar para o leitor uma certa
neutralidade em face aos acontecimentos), o texto 2 pode ser considerado uma
narrativa literária, ou até mesmo um poema narrativo, marcado sobretudo pelo
conflito dramático, a fim de manter a atenção do leitor ao texto.
A história contada é a mesma, mas os procedimentos são os mesmos? Por
que motivos o texto 1 é classificado como uma notícia de jornal, portanto não
literário, ao passo que o texto 2 é considerado literatura e, consequentemente,
arte? Vamos por partes.
No texto 1, há o predomínio de informações que seriam consideradas rele-
vantes por um leitor do jornal no qual este fato se apresentasse: em primeiro
lugar, o leitor se perguntaria sobre o que aconteceu e obteria como resposta um

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


18 - 19

assassinato. Na sequência, o jornalista, de modo a compor o lead1 da notícia,


responderia a outros questionamentos relevantes, tais como, quem foi morto,
quando foi morto, como e o porquê da morte ter acontecido. Ao expor essas
respostas, o jornalista estaria tão somente levando a conhecimento do leitor
fatos, sem julgá-los, de modo que o importante seria informar e não relatar
a história.
No texto 2, em contrapartida, notamos um processo um tanto diverso do
que ocorreu no texto 1. Ao invés de meramente informar sobre o assassinato
de Maria Elvira, o narrador preocupa-se com detalhes da intimidade do casal,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma vez que o importante é a construção do conflito dramático envolvendo


os personagens. Nas minúcias do texto, percebemos informações subjetivas –
irrelevantes para uma notícia, porém relevantes para um texto literário –, tais
como, a descrição física de Maria Elvira quando Misael a conheceu, todos os
cuidados por ele dispensados para que a mulher tivesse beleza e saúde, nomes
de todos os bairros onde o casal morou, modo como a polícia encontrou o
corpo e a roupa vestida pela mulher. Na literatura, esses detalhes ganham
importância, pois garantem a dramaticidade do texto e possibilitam ao leitor
horizontes de interpretação variados, conferindo a ambiguidade textual. Para
Chklosvki (1978), são estas minúcias trabalhadas pela linguagem empregada
pelo autor que conferem ao texto 2 o estatuto de literatura, porque possui lite-
rariedade; além disso, a linguagem utilizada, apesar de simples, foi articulada
de tal modo que pode ser considerada desautomatizada, diferentemente do
processo ocorrido no texto 1.
Entretanto, Chklovski (1978, p. 41) revela que o objeto estético [artístico] é
criado através de procedimentos, cujo objetivo para estes mesmos objetos é de
ter uma percepção estética. Ademais, para o crítico russo, a singularização, isto
é, a propriedade em criar uma percepção particular do objeto diferenciando-o
dos demais, é um elemento importante no fazer ‘arte’.
A crítica literária foi construída sobre uma base burguesa, a qual teve o papel
de julgar o que é literatura, a boa e má literatura, a partir de critérios seletivos.

Lead, do inglês to lead (liderar), ou lide em português, é o período ou o parágrafo inicial que abre uma
1

notícia e deve responder aos questionamentos básicos do jornalismo: o que aconteceu, com quem
aconteceu, quando aconteceu, onde aconteceu, como e por que aconteceu.

Literariedade
I

Observe a figura a seguir, de Marcel DuChamps:

©tate

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Isto é uma obra de arte, chamada A Fonte.
A obra nada mais é que um urinol de porcelana branco, considerado uma
das obras mais representativas do dadaísmo na França, criada em 1917, sen-
do uma das mais notórias obras do artista Marcel Duchamp.
Há na obra de Duchamp uma singularização, afinal, o urinol foi levado a um
museu, não estando em um banheiro público. Além disso, esse deslocamen-
to dá ao objeto uma percepção estética – no museu, você observa atenta-
mente os detalhes do urinol, fato que dificilmente faria no dia a dia.
A obra de Duchamp entra em choque com as ideias estruturalistas sobre li-
terariedade, pois esta noção não está presa na estrutura, tampouco nos ele-
mentos internos do texto. A literariedade desloca-se para a esfera do leitor/
público, através de um ato interpretativo. (Você vê uma bicicleta, um urinol,
um vaso no museu, logo, você interpreta que são objetos artísticos, obras de
arte, não os objetos em si).

Sempre se buscou definir literatura enquanto objeto observável, concreto, obje-


tivo e estrutural. A ideia de que o texto literário tem certos elementos estruturais
(rimas, jogos de palavra, métrica, enredos, clímax etc.), que o faz diferente dos
demais textos, considerados não literários.
Todavia, não são características estruturais que definem um texto como literá-
rio ou não, e sim sua literariedade. Como observado, a literariedade não fica presa
no texto, e essa discussão chega ao auge em meados dos anos 60. Em Sociologia
da literatura e Histoire dês Littératures françaises, connexes et marginales, Escarpit

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


20 - 21

(1958) propõe uma abordagem sociológica da literatura, em que o caráter lite-


rário seria definido também por elementos externos, basicamente pela recepção
e relações estabelecidas entre autor, texto e público.
Desta forma, o fator literário leva em consideração não somente o texto (a
obra), mas o autor, e, principalmente, o público.

OBRA
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AUTOR PÚBLICO/LEITOR
Fonte: o autor

Se o cânone foi definido pela literariedade presa na estrutura do texto, o anticâ-


none será definido também pelo valor simbólico, ideológico, fruto da recepção
do leitor e dos motivos pelos quais o autor o escreveu. Assim, através da obser-
vação da tríade acima, a literatura passa de “texto” para “manifestação cultural”
(CANDIDO, 1981), ou expressão de uma sociedade.
Depois destas definições introdutórias, passemos à conceituação dos gêne-
ros literários no tópico seguinte.

GÊNEROS LITERÁRIOS

Muitos autores de renome consideram que a primeira referência aos gêneros lite-
rários surge com Platão, segundo quem, esta questão estava diretamente ligada à
relação poeta-obra e à mimese2. Com Aristóteles e sua Poética, os gêneros literários

2 Processo que, para Platão, implicava uma representação imitativa da natureza e, portanto, algo imperfeito.

Gêneros Literários
I

assumem um caráter mais normativo e são divididos em: Tragédia, o gênero cul-
minante, pois sendo ‘sério’ eleva o ser; Comédia (o avesso da Tragédia), a qual
consiste na imitação do feio, de uma falha e que não produz efeito catártico3, e
Epopeia, que se aproxima muito da tragédia, diferenciando-se desta apenas pela
métrica e pela extensão. Depois de Aristóteles, muitos conceitos surgirão, na maio-
ria das vezes, de interpretações equivocadas da Poética, pois como Aristóteles
leva em conta o receptor na questão dos gêneros, mas não define claramente
certos aspectos, a possibilidade de interpretações variadas acaba por ser natural.

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3 Efeito catártico: descarga emocional provocada por um drama, a qual seria, segundo Aristóteles, capaz de
purificar a alma.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


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O QUE É MIMESE?

O termo mimese (do grego mimesis, Entretanto, se você estudar a Alegoria da


μίμησις) remete ao século IV a.C., e corres- Caverna, no livro VII, de A República, obser-
ponde à ideia de imitação, representação, vará que Platão acreditava que toda a
ou seja, fazer ou criar algo que se asseme- criação humana já era uma imitação, mas
lhe a outro, imitando-o. O termo surgiu uma imitação de algo já pensando no plano
com Platão em A República, livros II, III e imaterial, o mundo das ideias. Para ele, se
X, e em Íon (Diálogos), mas também foi tudo no mundo já era imitação, as imitações
amplamente discutido com Aristóteles em dessas imitações, ou seja, as manifestações
A Poética. Tanto Aristóteles quanto Platão artísticas (escultura, pintura, poesia, foto-
observavam a mimese como uma imitação, grafia etc.) seriam uma imitação de segunda
ou representação da natureza. mão, absolutamente imperfeitas. Observe
os elementos abaixo:

1 - UMA PORTA: 2 - UM DESENHO DE UMA PORTA:


3 - UM POEMA SOBRE UMA PORTA:
A Porta (Vinícius de Morais)
Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente


Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!


Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!
Fonte: MORAES, Vinicius de. Obra Poética: Volume único. Editora: Cia. José Aguilar, 1968.

A figura 1 representa uma porta, um objeto, sou perfeitamente como a queria, tanto
neste caso de madeira, que faz o papel que, provavelmente, na ideia, a porta não
de abertura em um elemento de veda- teria arranhões, lascas, defeitos etc. A partir
ção arquitetônica, permitindo o trânsito do momento que o marceneiro a produ-
de pessoas e animais, de um ambiente a ziu (elemento 1), ela tornou-se cópia da
outro. Quem fez esta porta, a imaginou, porta do mundo das ideias (a original). Já
em um plano imaterial, uma ideia, logo, os elementos 2 (desenho) e 3 (poema) são
a porta existia antes de sua criação, neste simulacros da porta, ou seja, são cópias da
Mundo das ideias. Quem a pensou, a pen- cópia. A figura 2 é uma representação da
24 - 25

figura 1, não podendo apresentar todos Já Aristóteles via o texto dramático, por
os elementos de seu modelo, como pro- exemplo, como uma “imitação de uma
fundidade, textura, defeitos, cheiro da ação”, que na tragédia teria o efeito catár-
madeira etc. Também o poema (3), que fala tico. Diferente de Platão, Aristóteles rejeita o
e descreve uma porta, mas não consegue mundo das ideias, valorizando a arte como
expressá-la da forma como é. a real representação da natureza e mundo.

Desta maneira, a arte para Platão é imper-


feita, já que é cópia de segunda mão, um
simulacro, a cópia da cópia.


















I

Com o advento do Romantismo, surge um ataque ferrenho à separação didá-


tica dos gêneros, passando-se a acreditar que eles possuem uma íntima ligação
entre si, o que ocorre devido à propagação

©shutterstock
do idealismo que encontra na lírica (intui-
ção), sobretudo, o seu lugar de excelência.
Já no séc. XX, com o italiano Benedetto
Croce, permanece a ideia de que a obra de
arte não é mimesis, mas sim um todo indi-
vidual que nasce da intuição do autor. Logo,

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Croce concorda com os românticos na ideia
de que numa grande obra de arte não cabe
apenas um gênero literário. De um modo
geral, para os teóricos do século XX, a ques-
tão dos gêneros assumirá então esta postura:
os gêneros estão ligados a processos históri-
cos, são variáveis e, portanto, é difícil fazer
uma separação total deles na prática.
No século XXI, foi o crítico literário canadense, Northrop Frye, em Anatomia
da Crítica (1957), que deu contribuição marcante para o estudo dos gêneros
literários.
Ainda assim, para efeitos didáticos, veremos a seguir as características mar-
cantes de cada gênero, bem como suas subdivisões. Estudaremos o Gênero
Narrativo , Gênero Dramático e Gênero lírico, este, porém, separadamente na
Unidade IV.

GÊNERO NARRATIVO

Originalmente, este gênero era chamado de Épico, a partir do século XX,


convencionou-se chamar de gênero narrativo aquele que abrigava histórias
das mais diversas extensões, mas que mantinham entre si uma identidade
estrutural. A identidade estrutural de toda narrativa edifica-se sobre cinco

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


26 - 27

elementos, sem os quais ela não existe: o enredo, os personagens, o tempo, o


espaço e o narrador.
Por semelhança estrutural, apresentaremos o romance, a novela, o conto, a epo-
peia, o apólogo e a crônica, explicando e diferenciando cada um deles.

Romance
De todos os tipos de narrativa, o romance é, sem dúvida, o mais complexo.
Caracteriza-se principalmente pela extensão (bem maior que a da novela e
a do conto), pelo número de personagens e pela densidade da trama. Antes
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do século XIX, poucos foram os romances escritos; dentre eles, destaca-


mos D. Quixote, de Miguel de Cervantes. A partir do século XIX, porém, o
romance se torna o tipo preferido de narrativa dos autores, como se pode ver na
Literatura Brasileira, pela grande quantidade deles produzida no Romantismo
(A Moreninha, Helena, Lucíola, Senhora, Inocência, dentre tantos outros) e no
Realismo/Naturalismo (O cortiço, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom
Casmurro, O Mulato, O Bom crioulo), algo que só viria a sofrer alterações
com o advento do Modernismo, no início do século XX, que passaria a valo-
rizar muito o conto.

O Romance não está propriamente ligado às questões românticas. Roman-


ce, enquanto estrutura literária, é um gênero narrativo. Dependendo de seu
enredo, podemos chamá-lo de romance policial, de ficção científica, psico-
lógico, pornográfico etc.

Os romances podem ser classificados quanto a sua temática e não devem ser
confundidos com a palavra romance, designada para enlaces amorosos.
A seguir, temos um excerto do romance Gabriela, Cravo e Canela, de
Jorge Amado:

Gêneros Literários
I

“Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe


Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessá-
rio que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas [...].

Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as ante-


riores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior
riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. [...] Cresciam as roças de cacau,
estendendo-se por todo o sul da Bahia, esperavam as chuvas indispensáveis
ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos

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cacauais. A procissão de São Jorge, naquele ano, tomara aspecto de uma ansiosa
promessa coletiva ao santo padroeiro da cidade.

O seu rico andor, bordado de ouro, levavam-no sobre os ombros os orgulho-


sos dos cidadãos mais notáveis, os maiores fazendeiros, vestidos com a bata
vermelha da confraria, e não é pouco dizer, pois os coronéis do cacau não
primavam pela religiosidade, não frequentavam igrejas, rebeldes à missa e à
confissão, deixando essas fraquezas para as fêmeas da família”.
Fonte: AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela: Crônica de uma cidade do interior.
2.ed. São Paulo: Cia. das letras, 2008.

Como você deve ter percebido, em um romance predominam descrições e inú-


meras ações dos personagens, centradas em um conflito dramático único, que
hierarquiza todos os outros.
No caso de Gabriela, Cravo e Canela, temos uma protagonista, a mulata
Gabriela, que se apaixona pelo árabe Nacib. Apesar de Gabriela e Nacib serem
os personagens principais do romance, há um grande número de personagens
secundários, que como observado no excerto acima, serão personagens liga-
dos ao universo cacaueiro da Bahia (fazendeiros e suas esposas, as beatas etc.):
Tonico Bastos (antagonista), as irmãs dos Reis, Ramiro Bastos, Mundinho Falcão,
Coronel Amâncio Leal, Jacob, Malvina, Filomena etc.
Para dar cabo do enredo complexo, o narrador utiliza longas descrições e
se aprofunda na psicologia dos personagens – o que não é possível de ser reali-
zado em textos mais curtos, como a novela e o conto.
Para saber então o desenrolar desta história, são necessárias páginas e páginas,

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


28 - 29

o que torna o romance uma obra de extensão considerável, uma vez que, em para-
lelo à história principal, vemos outras, adjacentes, que ajudam a tecer a trama
narrativa. Mesmo com inúmeros personagens em paralelo, no romance todas as
ações convergem para a história de amor de Gabriela e Nacib.
Por ser um romance, percebemos dentro do enredo várias “sub-histórias”
que giram em torno da maior, podendo então se localizar pequenos conflitos
e até pequenos desfechos caracterizando um pequeno universo. Além disso, o
romance, por sua extensão, tem temas e subtemas. No excerto de Gabriela, já
percebemos que Jorge Amado propõe discutir a hipocrisia, a sensualidade e infe-
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rioridade da mulher brasileira, o coronelismo, o poder do dinheiro etc.

O romance entre o sírio Nacib e a mulata Gabriela, um dos mais sedutores


personagens femininos criados por Jorge Amado, tem como pano de fun-
do, em meados dos anos 1920, a luta pela modernização de Ilhéus, em de-
senvolvimento graças às exportações do cacau. Com sua sensualidade ino-
cente, Gabriela não apenas conquista o coração de Nacib como também
seduz um sem-número de homens ilheenses, colocando em xeque a lei
que exigia que a desonra do adultério feminino fosse lavada com sangue.
Publicado em 1958, o livro logo se tornou um sucesso mundial. Na televisão,
a história se transformou numa das novelas brasileiras mais aclamadas mun-
do afora. A Editora Cia das Letras disponibilizou o primeiro capítulo do ro-
mance para provar a maestria do autor baiano e despertar o desejo de leitura.
Acesse o link : <http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/87012.pdf>.

Um gênero mais curto e menos detalhado é a novela, gênero explicado a seguir.

Novela
Por ser um gênero pouco usual, nos dias atuais, muitas pessoas quando se depa-
ram com essa nomenclatura a associam às narrativas televisivas de mesmo nome,

Gêneros Literários
I

porém isso é um equívoco. A novela, como produção narrativa, nada mais é do


que um romance reduzido, em que as tramas são mais simples e há um menor
número de personagens e conflitos. Neste gênero, podemos destacar algumas
obras como A hora da estrela, de Clarice Lispector; Relato de um certo oriente,
de Milton Hatoum e A morte em Veneza, de Thomas Mann, cujo excerto você
verá a seguir.
A morte em Veneza narra a história do artista alemão Gustav Aschenbach,
que vai a Veneza para se recompor de um colapso gerado por seu trabalho
estressante. Lá ele conhece um jovem belíssimo chamado Tadzio, que lhe

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parece estátua grega, e acaba sendo seu único motivo de alegria, já que o ar
pesado e céu cinzento de Veneza deprimem Aschenbach. Fascinado e com-
pletamente atraído pela beleza do rapaz, Gustav decide ir embora antes de
cometer uma loucura. Porém, sua bagagem é enviada por engano para outra
cidade italiana, o que o obriga adiar a sua partida. Não bastasse isso, há nas
ruas da cidade o temor pela cólera asiática, que gera uma evasão dos que
querem se proteger contra a doença. É nesse cenário vazio e solitário que
Aschenbach sai à procura do jovem Tadzio, ainda que ele não possa confes-
sar ao rapaz a paixão que nutre por ele, pois isso provocaria um escândalo
constrangedor para ambas as partes. Só resta a Gustav, então, o sofrimento
de um amor impossível.

CAPÍTULO 1

Numa tarde de primavera do ano de 19..., que meses a fio vinha mostrando ao
nosso continente um semblante tão ameaçador, Gustav Aschenbach, ou von
Aschenbach, como passara a chamar-se oficialmente desde seu quinquagési-
mo aniversário, saíra de sua residência na rua do Príncipe Regente, em Munique,
para um longo passeio solitário. Muito agitado por uma manhã de trabalho ár-
duo e arriscado, a exigir justamente agora uma extrema cautela, circunspecção,
rigor e força de vontade, o escritor não conseguira, nem mesmo após o almoço,
sofrear a vibração do mecanismo criador em seu íntimo --aquele motus animi
continuus que, segundo Cícero, constitui a essência da eloquência --e não pu-
dera dispor do cochilo reparador que lhe era tão necessário durante o dia, ante
o crescente desgaste de suas forças. Assim, logo depois do chá, ele procurara o
céu aberto, na esperança de que um pouco de ar livre e movimento o restabe-
lecessem, propiciando-lhe uma noite proveitosa.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


30 - 31

Era início de maio e, após semanas úmidas e frias, irrompera bruscamente um


falso auge de verão. O Jardim Inglês, apesar de mal ter começado a cobrir-se
de folhas tenras, estivera abafado como em agosto e cheio de veículos e tran-
seuntes nos arredores da cidade. Buscando caminhos mais ermos e tranquilos,
Aschenbach chegara até Aumeister, onde se detivera por alguns momentos a
observar o terraço do restaurante, animado como de praxe, ao redor do qual
estavam estacionados alguns coches e carruagens; de lá, com o sol poente, to-
mara o caminho de volta pelo campo aberto, fora dos limites do parque; como,
porém, estivesse cansado, e dos lados de Föhring ameaçasse vir um temporal,
deteve-se junto ao Cemitério Norte, aguardando o bonde que deveria levá-lo
de volta à cidade, em linha reta.
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Fonte: MANN, Thomas. A morte em Veneza. Ed: Saraiva de Bolso, 2011.

Perceba que diferente do Romance, a Novela não possui tramas paralelas, focan-
do-se em apenas um conflito maior, neste caso, a trama gira no conflito de
Aschenbach. Didaticamente, a Novela é um gênero entre o Romance e o Conto.

Conto
Podemos dizer que o conto é um romance em miniatura: a trama é mais sim-
ples, concentra-se em um único conflito e o número de personagens é bastante
reduzido. Também o espaço e o tempo são tratados de modo mais direto e
econômico. Resumindo: no conto, conflito, tempo, espaço e personagens são
condensados. Muitos são os escritores brasileiros e estrangeiros que se des-
tacaram nessa modalidade narrativa, tais como, Machado de Assis, Clarice
Lispector, Nélida Piñon, Mia Couto, Jorge Luiz Borges, Hilda Hist, Lygia
Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Charles
Dickens, Edgar Alan Poe etc.

Gêneros Literários
I

Para ilustrar o conto, selecionamos No mundo das Letras, de Moacyr Scliar:

NO MUNDO DAS LETRAS

Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propó-
sito: facilita-lhe o trabalho.
Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Come-
çou roubando um texto escolar que precisava para o colégio: foi tão fácil que
gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica,
textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que
chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as

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cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um inciden-
te que recorda com divertida emoção.
No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A
coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou sim-
plesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias;
os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário,
correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve
todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação.
Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simples-
mente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; apa-
rentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.
Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade.
Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo
é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência.
Afinal, ele é o dono da livraria.
Fonte:<http://felmariano.wordpress.com/2010/12/13/no-mundo-das-letras-moa-
cyr-scliar/>.

Agora observe outro conto, Bezerro sem mãe, de Rachel de Queiroz. Leia o texto
e acompanhe a análise a seguir:

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


32 - 33

BEZERRO SEM MÃE

Rachel de Queiroz
Foi numa fazenda de gado, no tempo do ano em que as vacas dão cria. Cada vaca
toda satisfeita com o seu bezerro. Mas dois deles andavam tristes de dar pena:
uma vaca que tinha perdido o seu bezerro e um bezerro que ficou sem mãe. A
vaquinha até parecia estar chorando, com os peitos cheios de leite, sem filho para
mamar. E o bezerro sem mãe gemia, morrendo de fome e abandonado.
Não adiantava juntar os dois, porque a vaca não aceitava. Ela sentia pelo cheiro
que o bezerrinho órfão não era filho dela, e o empurrava para longe. Aí o vaqueiro
se lembrou do couro do bezerro morto, que estava secado ao sol. Enrolou naque-
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le couro o bezerrinho sem mãe e levou o bichinho disfarçado para junto da vaca
sem filho. Ora, foi uma beleza! A vaca deu uma lambida no couro, sentiu o cheiro
do filho e deixou que o outro mamasse à vontade. E por três dias foi aquela mas-
carada. Mas no quarto dia, a vaca, de repente, meteu o focinho no couro e puxou
fora o disfarce. Lambeu o bezerrinho direto, como se dissesse: “Agora você já está
adotado.” E ficaram os dois no maior amor, como filho e mãe de verdade.
Fonte: <www.falarachel.com.br/downloads/cronica-9-Bezerro-sem-mae.pdf>.

Reduzido em extensão e em complexidade de personagens em relação ao romance


e à novela, o conto trabalha com um único conflito dramático: no caso, o aban-
dono do bezerro, já que a mãe dele morrera, e sua posterior adoção por uma
vaca, cujo bezerro havia morrido. Apesar de sucinto, vemos neste texto todos os
elementos da narrativa: o narrador, em terceira pessoa, o espaço (uma fazenda
de gado), o tempo (quando as vacas dão cria) e a situação inicial: vacas felizes
com seus bezerrinhos. Na sequência, há o elemento que desestrutura a histó-
ria – a morte de uma vaca e de um bezerro. Os personagens – a vaca adotiva e
o bezerro por ela adotado – são os protagonistas. O clímax da história (auge do
conflito dramático) é atingido quando se cria o suspense: o plano do vaqueiro
– personagem secundário – pode ou não dar certo. A partir do momento que
ocorre a adoção, a história caminha para o seu desfecho, no caso um final posi-
tivo. Apesar de curtíssimo, esse conto condensa a teoria do gênero que lhe batiza:
narrativa curta, com unidade de tempo, de espaço e de ação, como postulava
Aristóteles. Traduzindo: o conto é um episódio da vida do personagem, nada
mais. Quando se narram vários acontecimentos da vida dele, em um crescente,
temos um romance ou uma novela, mas nunca um conto.

Gêneros Literários
I

Epopeia
Estilo narrativo, praticamente desaparecido, foi imensamente apreciado na Grécia e
Roma antigas. Trata-se de uma narrativa centrada em contar os feitos de um grande
herói, evidenciando as peripécias vividas por ele e sua imensa bravura para vencer
os obstáculos encontrados. Outra característica importante é que este tipo de nar-
rativa é construído em versos rimados e metrificados e compõe-se de cinco partes:
■■ Proposição: parte em que o autor indica genericamente o que vai cantar.
■■ Invocação: parte em que o autor invoca a proteção das musas literárias

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para que permitam a ele escrever um grande obra, digna do herói retratado.
■■ Dedicatória: parte que devota a obra a uma grande homem do momento
em que ela foi escrita, o qual, geralmente, era responsável por bancar os
custos de produção da epopeia.
■■ Narração: toma a maior parte do texto e é responsável pelo desenrolar
da história, propriamente dita.
■■ Epílogo: é o desfecho da narrativa em que se mostra a consagração do
herói.

Para que você compreenda melhor a definição de herói, explicamos: herói é um


protagonista com características superiores às
do grupo ao qual pertence, no caso de Os
Lusíadas, por exemplo, o herói é justamente
Vasco da Gama, que conduziu a armada por-
tuguesa até as Índias.
As obras mais importantes neste gênero,
sem dúvida, são A Ilíada e a Odisseia, de
Homero, e Os Lusíadas, de Camões, obra da
qual se lê um excerto a seguir:
©wikipedia

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


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OS LUSÍADAS: EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO


(Canto IV, estrofes 90 a 104) Excerto

“Qual vai dizendo: —”Ó filho, a quem eu tinha


Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
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Onde sejas de peixes mantimento!” —


[...]
“Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

“Mas um velho d’aspeito venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça

Gêneros Literários
I

Fazes no peito vão que muito te ama!


Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Fonte: CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Edição comentada. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1980.
Há textos que não são considerados epopeias pela maioria da crítica literária,
apesar de ter uma estrutura semelhante, como Prosopopeia (1601), de Bento
Teixeira, texto fundado do Barroco brasileiro, e No Fundo do Canto (2003), da
guineense Odete Semedo.

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Na sequência, trabalharemos a fábula e o apólogo, narrativas mais simples e
curtas.

Fábula e Apólogo
Tratam-se de gêneros aparentados, já que ambos são narrativas que utilizam
como personagens seres não humanos a quem se atribui características huma-
nas. A intenção dos dois gêneros textuais também é a mesma, de maneira
simbólica, pretendem levar o leitor a refletir sobre vícios e virtudes huma-
nas. A diferença está no fato de que na Fábula os personagens são animais,
como se vê nos clássicos textos de Esopo A raposa e as uvas, A formiga e a
cigarra, A lebre e a tartaruga, A rã que queria crescer, O escorpião e o sapo,
dentre muitas outras. Já no apólogo, as personagens são objetos, como se vê
no famoso Um apólogo, de Machado de Assis, que tem como personagens a
agulha, a linha e o alfinete.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


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FÁBULA: O ESCORPIÃO E O SAPO

©Nara Tanaka
Certa vez estavam um sapo e
um escorpião à beira de um rio,
quando a relva da margem em que
se encontravam começou a pegar
fogo. Ambos entraram em pânico,
com medo de morrer queimados,
assim o sapo pulou no rio, preten-
dendo nadar até a outra margem
para se salvar. O escorpião, porém,
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não sabia nadar e se viu em uma


situação desesperadora, resolveu
então recorrer ao sapo:
— Caro amigo sapo, você que é um sujeito bondoso, por favor, salve-me, se não
me ajudar eu morrerei queimado — apelou o escorpião.
— De modo algum, disse o sapo. Sou sim bondoso, mas se eu o colocar em mi-
nhas costas para leva-lo até a outra margem você vai me picar e eu vou morrer.
Sinto muito, mas não vou ajudá-lo.
— Por favor, implorou o escorpião. Eu prometo não picá-lo, até porque se eu o
fizer nós dois morreremos e eu não quero isso. Façamos um trato: você me dá
uma carona até a outra margem do rio, chegando lá, cada um toma o seu cami-
nho. Eu prometo não atacá-lo.
O sapo, que era um sujeito muito bom e muito crédulo, resolveu então dar um
voto de confiança ao escorpião e o colocou nas costas. Quando já estavam no
meio do rio, o sapo sentiu a ferroada nas costas. Irritado e indignado, perguntou
ao escorpião:
— Por que você fez isso? Agora nós dois iremos morrer! Você me prometeu que
não me picaria.
E o escorpião simplesmente respondeu:
— Sinto muito, não pude evitar, é a minha natureza.
Moral: Ninguém abandona sua verdadeira natureza.
Na fábula tradicional, vivida por animais, estabelece-se um eixo binário simples,
normalmente opondo um animal ao outro – no caso, um escorpião a um sapo –
que metaforizam algum comportamento humano, de modo a chamar a atenção
para virtudes ou defeitos que apresentamos ao longo da vida. A intenção é cla-
ramente didática: por meio da leitura do texto, o fabulista pretende que o leitor
reflita sobre sua própria vivência ou condição, de modo a levá-lo a uma possí-
vel mudança, com o intuito pedagógico. Erroneamente, as fábulas são associadas

Gêneros Literários
I

hoje em dia ao público infantil, o que não ocorria quando de sua invenção, na
Grécia Antiga. O mais famoso fabulista, Esopo, usava a fábula como elemento de
crítica social, tendo sido condenado à morte justamente por fazer o povo pen-
sar utilizando metáforas simples.
Leia a seguir um exemplo de apólogo:

UM APÓLOGO

Machado de Assis

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
©Nara Tanaka
Era uma vez uma agulha, que disse a
um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda
cheia de si, toda enrolada, para fingir que
vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê?
Porque lhe digo que está com um ar insu-
portável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não
tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem
é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem
os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro,
dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por
você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


38 - 39

— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adian-
te; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é
que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse
que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de
si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da
agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra
iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre
os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor
poética. E dizia a agulha:
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— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido
por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir pa-
lavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também,
e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que
o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a cos-
tura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto
acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-
se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E
enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro,
arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar
da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo
parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplo-
matas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o ba-
laio das mucamas?  Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um
alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar
da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a
cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro “Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos”, Editora Ática - São
Paulo, 1984, p. 59.

Gêneros Literários
I

A diferença primordial entre a fábula apresentada anteriormente e o apólogo


de Machado de Assis reside apenas no nível estrutural: ao invés de animais –
como o escorpião e o sapo da fábula lida –, temos agora a presença de objetos,
ou seja, seres inanimados: uma agulha, uma linha e um alfinete. A metáfora da
vaidade sobressai na discussão entre os três personagens e o leitor, por meio do
embate entre eles, é brindado com uma lição moral e pedagógica, à semelhança
das fábulas.
Já aproveitando, parábolas também são como as fábulas, promovendo ensi-
namentos morais, voltados, sobretudo, à espiritualidade. Podemos dizer que a

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tríade – fábula, apólogo e parábola – é “farinha do mesmo saco”.

Crônica
Embora este gênero não tenha uma forma exatamente fixa, contemporaneamente,
segundo Moisés (2004, p.11), “a crônica moderna concentra-se num aconteci-
mento diário que tenha chamado a atenção do escritor”. O autor explica ainda
que tal gênero implica na visão pessoal e subjetiva do autor perante fatos do
cotidiano e que “estimula a veia poética do prosador; ou dá margens a que este
revele-se como contador de histórias”.
A estrutura básica das crônicas costuma conter: relato do cotidiano, refle-
xões pessoais, uso de primeira pessoa, linguagem da norma culta, porém
coloquial. Até pouco tempo, a crônica era considerada um “gênero menor”,
posto ser publicada originalmente em jornais, o que fazia com que seu consumo
fosse diário e descartado na mesma velocidade em que era lida. Conforme
os cronistas deram mostras da qualidade do texto, sobretudo após a publica-
ção das crônicas de Machado de Assis, Sérgio Porto, Carlos Drummond de
Andrade e Lourenço Diaféria, o gênero conquistou definitivamente a crítica
literária e migrou do jornal para o livro, em compilações deliciosas como a
série Para Gostar de Ler, que reúne as melhores crônicas dos maiores cro-
nistas brasileiros.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


40 - 41

A crônica da qual tratamos nesta unidade é considerada um gênero tipica-


mente brasileiro, fruto do trabalho jornalístico. Ela não deve ser confundida,
portanto, com outros gêneros também chamados crônicas – como no filme
As crônicas de Nárnia. Fora do Brasil, a nomenclatura crônica, derivada do
grego kronos, faz referência ao deus mitológico do tempo, indicando nar-
rativas que respeitam a sequência começo, meio e fim. Por aqui, contudo,
o cronista está mais para um observador do cotidiano das cidades, apro-
ximando-se do leitor justamente por narrar episódios simples, por vezes
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engraçados, por vezes trágicos, do dia a dia das pessoas. Por isso a crônica
discute o prosaico, o rotineiro, o ônibus lotado para dirigir-se ao trabalho, a
fila de embarque nos aeroportos, a conversa de bar entre amigos em uma
happy hour, os percalços do casamento, uma festa infantil no verão carioca.

GÊNERO DRAMÁTICO

O gênero dramático é aquele que envolve


as produções teatrais. Como tal, tem como
característica mais marcante a ausência da
figura do narrador e a utilização maciça do
discurso direto, partindo-se do pressuposto
de que as obras desse gênero foram feitas
para serem encenadas e não apenas lidas, até
porque a significação em grego para o termo
“drama” é ação.
Assim, os textos pertencentes a esse
gênero, além das características anterior-
mente apontadas, possuem personagens,
descrição de cenário, espaço e tempo confi-
©shutterstock

gurados de acordo com o interesse da ação descrita e a presença da rubrica, que


nada mais é do que alguns comentários feitos pelo autor da obra e que facilita-
rão a montagem da peça, já que dão indicações ao diretor sobre o que pensou
o autor a respeito do cenário, do figurino, da luz, dentre outros componentes

Gêneros Literários
I

presentes na montagem do espetáculo.


O nascimento desse gênero se dá na Grécia Clássica, no século V, inicialmente
com as famosas tragédias, depois com as comédias. A seguir, veremos em detalhes
as características mais marcantes de cada um dos estilos de textos dramáticos.

Tragédia
De acordo com Aristóteles, em sua clássica obra A Arte poética, na qual descreve
os gêneros de composição, a tragédia é:
A imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num

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estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas
formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma
narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem
por efeito obter a purgação dessas emoções. Entendo por “um estilo
tornado agradável” o que reúne ritmo, harmonia e canto. Entendo por
“separação das formas” o fato de estas partes serem, umas manifestadas
só pelo metro, e outras, ao contrário, pelo canto. Como é pela ação que
as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que
uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos;
vêm, em seguida, a música e, enfim, a elocução (ARISTÓTELES, 2004,
p. 248)

Além disso, Aristóteles afirmava que deveria haver unidade na ação e veros-
similhança, já que o poeta não deveria narrar
o que aconteceu, mas sim o que poderia ter
acontecido. Sem dúvida, este foi o gênero
por excelência na Grécia Antiga, em que
nomes importantíssimos produziram tra-
gédias que continuam sendo referências,
tais como: Édipo-rei e Antígona, de Sófocles;
Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, e Medeia
e As bacantes, de Eurípedes. A tragédia
apresentava como principais caracterís-
ticas o terror e a piedade que despertava
no público. Para os autores clássicos, era o
©shutterstock

mais nobre dos gêneros literários. A tragé-


dia grega era constituída por cinco atos e,

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


42 - 43

além dos atores, intervinha o coro, que manifestava a voz do bom senso, da
harmonia coletiva, em face da hybris, ou seja, da desmedida dos personagens.
Diferentemente do que ocorre no drama, na tragédia o herói paga por algo que
ele não provocou diretamente a si, uma vez que teve o destino traçado e seu
sofrimento é irrefutável. Por exemplo: Édipo nasce com o destino de matar
o pai, Laios, e se casar com a mãe, Jocasta. A ação de Édipo não é motivada
por ele mesmo e sim por ações do pai, que teve toda sua linhagem de san-
gue condenada ao destino fatal. Édipo, portanto, apenas cumpre seu destino.
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A definição de Aristóteles é “imitação de uma ação de caráter elevado”, isto


é, para a Tragédia, necessita-se de um personagem de caráter grandioso,
heroico, ou seja, o herói trágico. Lembre-se: toda tragédia tem seu herói trá-
gico. Esse herói sempre é alguém com grandes qualidades, acima dentre os
outros mortais, que em tese, por superar seu antropos (condição humana),
gera nos deuses a nemesis (ciúme divino). Os deuses então, para puni-lo,
lembrando sua condição de thnetos (simples mortal), guiam o seu destino,
um destino imutável. O herói, por sua vez, guiado pela sua hybris (falha de
caráter), comete um ato que trará péssimas consequências, isto é, a hamar-
tia. A partir de então, a vida e sorte desse herói entram em declínio, reversão
ou peripeteia - da sorte para a má sorte. Essa reversão da sorte vai se acen-
tuando por causa de sua áte, ou seja, a cegueira da razão. Entretanto, pelo
processo de pathos (dor) e ágon (sofrimento), o herói inicia o reconheci-
mento do erro (anagnorisis), uma percepção de algo, uma verdade sobre si
mesmo, a qual ele, o protagonista, não havia percebido anteriormente - sua
falha. Todavia, esse reconhecimento acontece tarde demais, o herói passa
por uma mudança tão catastrófica que seu fim é apenas a morte. O que você
não pode esquecer é que tanto a nemesis, a hybris e a hamartia contribuem
para a queda do herói trágico, há a possibilidade de existir, também, um
destino inexorável que opera independentemente desses elementos, isto é,
no teatro grego, a fatalidade é a peça-chave do texto.

Gêneros Literários
I

Devemos lembrar, porém, que as tragédias tinham também um caráter peda-


gógico, isto é, sua função também era a de ensinar a população grega noções de
comportamento equilibrado. Além disso, a tragédia provocava no espectador
um efeito catártico, que pode ser traduzido como terror e piedade. Ao assistir a
uma encenação deste gênero, o espectador se apiedava do que via em cena, ao
mesmo tempo em que temia pela própria vida ao verificar o que acontecera com
os personagens.
Durante o período conhecido como
Elisabetano (1558-1603), por ser a época

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em que reinou na Inglaterra a rainha
Elisabeth I, surgiu o maior dramaturgo,
autor de tragédias depois dos gregos:
William Shakespeare. Embora sua pro-
dução não tenha sido exclusivamente de
tragédias, é nelas que todos reconhecem o
grande gênio do dramaturgo inglês, sobre-
tudo em peças como Romeu e Julieta, Otelo,
Rei Lear, Macbeth e Hamlet, que tanta influ-
ência exerceram em escritores posteriores
a Shakespeare. ©shutterstock

Não há como citar o bardo inglês sem


falar em uma de suas principais obras: Romeu e Julieta talvez seja sua peça
mais homenageada, adaptada, citada, enfim, relembrada, seja por meio do
cinema, da televisão, do teatro ou como produto da própria indústria cultu-
ral. A história do amor proibido entre dois jovens, filhos de famílias rivais
– Capuletos e Montecchios –, é, com certeza, um marco do teatro moderno.
Você terá contato mais profundo com Shakespeare na disciplina de Literatura
em Língua Inglesa I.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


44 - 45

Comédia
A origem da comédia é controversa: alguns estudiosos da cultura clássica afir-
mam que ela surgiu a partir de festas de foliões (daí o nome comédia, derivado do
grego komoidía, ou seja, canto de um grupo de foliões); outros defendem sua ori-
gem em festas em homenagem ao deus Dionísio (deus do vinho). Aristóteles, por
sua vez, afirma que o gênero é oriundo dos cantos fálicos (festas em homenagem
à fecundidade da terra, representada por celebrações e alegorias que imitavam o
membro sexual masculino). O que sabemos, contudo, é que enquanto a tragédia
dizia respeito a deuses, reis e heróis, a comédia centrava-se sobre homens comuns.
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Alguns críticos dividem a tragédia em estudos sobre o “alto corporal” (cen-


trados na nobreza do corpo humano, ou seja, no cérebro, fazendo o espectador
criar empatia pela narrativa encenada – daí a criação do efeito catártico), ao passo
que a comédia diz respeito ao “baixo corporal”, isto é, ações que dizem respeito
à escatologia do organismo humano (atitudes centradas nos órgãos sexuais e
nos órgãos digestor-excretores, que facilmente levam ao riso e, portanto, a um
afastamento entre espectador e ator). De caráter ácido, a comédia grega se des-
tacava por fazer duras críticas à política, como em Lisístrata ou A Guerra dos
Sexos, escrita por Aristófanes.

O efeito catártico (catarse, oriunda da palavra grega kátharsis) significa, na


linguagem médica da qual se originou, purificação, purgação. Junito de
Souza Brandão (1984, p.14), citando Aristóteles, afirma que “a tragédia, sus-
citando terror e piedade, opera a purgação própria a tais emoções, por meio
de um equilíbrio que confere aos sentimentos um estado de pureza des-
vinculado do real vivido”. Mas não apenas a tragédia é capaz de provocar o
efeito catártico. Quando assistimos a um filme e alguma cena nos emociona
a ponto de nos fazer chorar ou até mesmo quando lemos ou vemos algo
chocante em um noticiário (como não se colocar no lugar das vítimas da
boate Kiss, incêndio ocorrido em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em janeiro
de 2013?), também passamos pelo processo catártico, ou você pensou que
o teatro grego ficou preso à antiguidade clássica? Com certeza não, posto
que o vivenciamos com frequência em nossa experiência diária.

Gêneros Literários
I

Lembrando que as características do texto dramático são basicamente a


estrutura, geralmente, atos e cenas.
As falas das personagens podem ser em Diálogo (falas entre duas ou mais
personagens), em Monólogo (uma personagem falando consigo mesma), ou à
parte (falas de uma personagem para o público, pressupondo que não é ouvida
pelas outras personagens).
Há no texto dramático as indicações cênicas: listagem inicial das persona-
gens, indicação do nome das personagens no início de cada fala, informações
sobre a estrutura externa da peça (divisão em atos ou cenas), indicações sobre o

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cenário e figurino, indicações sobre a movimentação das personagens em palco,
as atitudes que devem tomar, os gestos que devem fazer ou a entoação de voz
com que devem proferir as palavras. Exemplos:
Trecho da peça Otelo, de Shakespeare:

Fonte: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/otelo.html>.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


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Trecho da peça O pagador de Promessas, de Dias Gomes:


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Fonte:<http://www.clickfacil.net/cf_conteudo/artmx_clientes/equipe/arquivos/anexos/1_o_pagador_de_
promessa.pdf>.

Farsa e Auto
Estes gêneros foram muito populares durante o humanismo português, sobre-
tudo devido ao apreço que tinha por ele o escritor Gil Vicente.
Uma farsa é um gênero teatral muito simples, centrado numa única trama
com personagens, cujos vícios são retratados de maneira exagerada para que se
leve o leitor a um final moralizador que tentará convencê-lo de que o bem deve
sempre se sobrepor ao mal. Normalmente, as farsas eram compostas a partir de
motes, ou seja, alguém sugeria ao autor um assunto a partir do qual ele escre-
veria a peça. Em A farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente e encenada em
1523 para o Rei D. João III, o mote de que partiu Gil Vicente é o seguinte: mais
vale um asno que me carregue do que um cavalo que me derrube.
Essa será a conclusão a que chegará Inês, visto que ela sempre quis ter marido
rico, mas ao conseguir, só fez ser maltratada por ele. Acaba então por casar-se
novamente com um homem rude, mas que lhe faz todos os gostos.

Gêneros Literários
I

Já o auto é uma composição teatral surgida na Idade Média. Este texto dra-
mático possui linguagem simples, personagens caricatos, elementos cômicos,
intenção religiosa e moralizadora. Alguns casos, como os autos de Camões ou
de D. Francisco Manuel de Melo, a intenção do auto é satirizar pessoas.

A obra está disponível em domínio público, no link <http://www.dominio-


publico.gov.br/download/texto/bv000111.pdf>.

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Os autos eram escritos em sua grande maioria em redondilhas, e no caso
dos autos de Gil Vicente, suas personagens representavam virtudes, pecados,
santos, anjos e demônios, além de tipos correntes do medievo, como clérigos,
judeus, mercadores, cortesãs e profissionais especializados (sapateiro, banqueiro,
padeiro etc.).
Devemos ressaltar, porém, que a linguagem utilizada pelo autor pode criar
alguns obstáculos à sua interpretação, uma vez que o português por ele utilizado
traz termos desconhecidos do grande público brasileiro. Versões com glossário
são recomendadas.

Os autos mais importantes de Gil Vicente foram o Auto da Alma e Auto da


Barca do Inferno, disponíveis neste link: <http://www.dominiopublico.gov.
br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1814>.

No Brasil, um dos autos mais conhecidos é o Auto da Compadecida (1955),


de Ariano Suassuna.

CÂNONE, ANTICÂNONE E LITERARIEDADE


48 - 49

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos nesta primeira unidade uma breve introdução aos Estudos Literários.
Procuramos explicar a você a diferença entre cânone e anticânone, suscitando o
debate do porquê algumas obras são alçadas à categoria literária enquanto outras
não. A partir daí, estudamos sobre a literariedade e o subjetivismo que ela carrega.
Já com os devidos conceitos, elencamos as características principais de
alguns gêneros narrativos, como o romance, o conto, a novela, a fábula, a epo-
peia, o apólogo, e de três gêneros dramáticos (a tragédia, a comédia e a farsa).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nosso intuito é que você, após a leitura atenta desta unidade, se familiarize com
as bases da literatura, que são a organização composicional dos gêneros e suas
peculiaridades. Sugerimos que faça a atividade de autoestudo de modo a refor-
çar os conceitos vistos até aqui.

Considerações Finais
1. Explique com suas próprias palavras a diferença entre cânone e anticânone.
2. Complete a tabela abaixo, apontando as principais características de cada um
dos gêneros narrativos solicitados:

GÊNERO NARRATIVO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS


ROMANCE
CONTO
NOVELA
CRÔNICA

3. Complete a tabela abaixo, apontando as principais características de cada um


dos gêneros dramáticos solicitados:

GÊNERO DRAMÁTICO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS


TRAGÉDIA
COMÉDIA
FARSA
50 - 51

MATERIAL COMPLEMENTAR

Acesse o site com 708 crônicas escritas pelos escritores mais consagrados do Brasil: <http://
sitenotadez.net/cronicas/>.

O vídeo a seguir, mesmo sendo curto e simples, nos dá belas imagens e explicações acerca do
teatro no mundo antigo.
<http://www.youtube.com/watch?v=PB-xAILAqns>.

O Cânone Ocidental
Harold Bloom
Editora: Objetiva
Sinopse: Uma viagem fascinante pelos grande poetas e escritores do
mundo ocidental. O respeitado ensaísta norte-americano Harold Bloom
desafia o multiculturalismo, o marxismo e o feminismo com o seu livro
O Cânone Ocidental, da editora Objetiva. Considerado uma obra-prima
pela crítica especializada, o livro investiga alguns expoentes da literatura
ocidental - como Shakespeare, Joyce, Beckett, Proust, Neruda, Borges e o contemporâneo Tony
Kushner, entre outros. Sofisticado e polêmico, O Cânone Ocidental causou furor nos meios
intelectuais norte-americanos, alcançando, quando foi lançado nos EUA, o expressivo número de
50 mil exemplares vendidos.

Teoria do Conto - Série Princípios


Nádia Battella Gotlib
Editora: Ática
Sinopse: Vale a pena se aprofundar no estudo do gênero conto por
meio da leitura de uma obra curta e acessível (em termos econômicos
e também de demanda de tempo de leitura): Teoria do Conto, de Nádia
Battella Gotlib, é o segundo título da Série Princípios, que tem por mote
abordar assuntos acadêmicos por meio de uma linguagem didática
e interdisciplinar. No livro, você encontra cinco unidades curtas nas quais
a autora se debruça sobre a origem do termo conto, os conceitos do gênero, suas definições
e transformações ao longo do tempo, passando por uma revisão conceitual de inúmeros
estudiosos, como Julio Cortázar, Vladimir Propp, André Jolles, Platão e Aristóteles. Ao fim da obra,
Gotlib disponibiliza uma bibliografia comentada, bem como um vocabulário crítico, ferramentas
interessantes ao estudioso que se propõe a aprofundar-se no tema.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teatro grego: Tragédia e Comédia


Junito de Souza Brandão
Editora: Vozes
Sinopse: A obra contém um estudo aprofundado sobre o teatro grego
antigo, explicando ponto a ponto suas características mais marcantes.
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

ESTRUTURALISMO E O

II
UNIDADE
FORMALISMO RUSSO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Apresentar as bases conceituais do Formalismo Russo e do
Estruturalismo.
■■ Diferenciar essas duas correntes estéticas.
■■ Apresentar os conceitos formalistas e estruturalistas como proposta
de análise da obra literária.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Formalismo Russo
■■ Problemas da Abordagem Formalista
■■ O Estruturalismo
54 - 55

INTRODUÇÃO

Nesta unidade, apresentaremos a você duas correntes de análise da obra literá-


ria essenciais para os estudos literários: o Formalismo Russo e o Estruturalismo,
correntes do século XX. Ambas contribuíram sobremaneira para que a análise
literária pudesse ser realizada de modo mais organizado, por meio da criação
de parâmetros científicos dos preceitos estéticos.
A unidade II foi elaborada pensando em sistematizar os conceitos formalis-
tas e estruturalistas de maneira simples, porém mantendo o rigor acadêmico. É
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

importante que você leia com bastante atenção cada tópico abordado e procure
diferenciar os diversos conceitos trabalhados. Ao fim da unidade propomos,
nas considerações finais, uma revisão de termos formalistas e estruturalistas, de
modo que você não se confunda em meio a tantos termos vistos. É imprescindí-
vel que responda às questões da atividade de autoestudo, pois poderá consolidar
o conhecimento proposto nesta unidade.
Boa leitura!

FORMALISMO RUSSO

O FORMALISMO RUSSO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO

De modo que você, aluno(a), compreenda as bases de formação da crítica contem-


porânea que culminaram no desenvolvimento do Formalismo Russo – corrente
teórica de crítica literária –, é necessário primeiro fazermos um breve percurso
pelo histórico que alicerçou esse movimento. Alguns estudantes da Universidade
de Moscou fundaram, no inverno de 1914-1915, o Círculo Literário de Moscou,
cujo objetivo era o de promover estudos de poética e de linguística.
Em 1917, fundaram a OPOIAZ – Associação para o Estudo da Linguagem
Poética, grupo ligado intimamente ao Círculo Linguístico de Moscou. Essa nova
corrente literária, desde seus primórdios, se caracteriza por uma recusa categórica

Introdução
II

às interpretações extraliterárias do texto e até hoje é considerada importante veí-


culo de estudo da literatura por ser a primeira a alçar a crítica literária ao estatuto
de ciência, assim como já era feito com a linguística.
Em toda a Europa, no fim do século XIX e no início do século XX, a crí-
tica estava voltada ao estudo histórico do texto literário, ou seja, aquele em que
se privilegiam as escolas literárias em sua sucessão temporal. Além da perspec-
tiva histórica, predominavam estudos chamados impressionistas, publicados em
jornais e revistas, fundamentados não em um rigor metodológico e sim na sub-
jetividade do leitor, posto que o essencial era o prazer proporcionado pelo texto,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
filtrado pela sensibilidade daquele que o lê. Além do caráter “sensitivo” da crí-
tica literária na época, inúmeras mudanças sociais eram sentidas na Rússia no
início do século XX, o que contribuiu para a mudança de paradigma proposta
pelos formalistas: seu contexto de eclosão foi marcado pela Revolução Russa,
ligada diretamente à crise do regime czarista.
Essa revolução tinha por bases a formação de uma sociedade – utópica – livre
de classes sociais, com destaque para a abolição da propriedade privada e regu-
lada por um Estado Democrático, calcado em princípios como a razão e a ciência.
Neste sentido, o Formalismo Russo, em sua fase heroica – na qual afirmava seus
valores, ideias e propostas de modo combativo – coincide com o projeto de for-
mação de uma sociedade comunista, o que aconteceu concomitantemente com a
criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Porém, a ascensão
de Josef Stálin ao poder, em 1923, significou “a distorção e o dilaceramento de
boa parte das utopias proje-
tadas como ideais durante a
fase heróica” (FRANCO JR,
2003, p.94). A partir desta
data, portanto, os jovens
estudiosos que formaram
as bases do pensamento
formalista não se sentiram
confortáveis na Rússia de
Stálin e muitos chegaram a
abandonar o país.
Viktor Chklovsky e Roman Jakobson

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


56 - 57

Comumente, divide-se o movimento em duas épocas: a primeira, que engloba


os anos de 1917 a 1923, e a segunda, de 1923-25 até 1930. Na primeira fase, é pos-
sível notar um esforço em afirmar, de modo um tanto agressivo, as novas ideias
de abordagem científica da literatura em face de uma tradição acadêmica, con-
siderada resistente e conservadora. No tocante à segunda fase, observou-se um
período de separação entre os que privilegiavam a análise sociológica da litera-
tura e os formalistas, que se negavam e até mesmo se recusavam a seguir essa
base de investigação. Em 1930, essa cisão entre formalistas e analistas socioló-
gicos se tornou palpável, tendo alguns membros do formalismo abandonado o
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país em detrimento de suas crenças, tanto literárias quanto políticas, como já


citamos anteriormente.

PRINCÍPIOS E CONCEITOS TEÓRICOS FORMALISTAS

Analisando sua principal característica, o Formalismo Russo defende uma abor-


dagem imanente da literatura, ou seja, define seus princípios e seus instrumentos
teóricos de modo científico, limitando a estudar de modo objetivo a materiali-
dade do texto literário ao considerar a sociologia, a psicologia e outras formas
de análise secundárias ou até mesmo desnecessárias. O que vale para os forma-
listas, portanto, é o que o texto apresenta em si e não elementos que estão “fora
do texto”.
Os formalistas russos firmaram-se não pela aplicação de um modelo hermé-
tico de investigação ao texto literário, e sim como um conjunto de princípios no
modo em como se abordar o texto. Por este motivo, notam-se não proposições
de caráter dogmático, e sim nuances que permitem aos diferentes formalistas,
cada um à sua maneira, defender o que consideravam mais pertinente dentro do
mesmo movimento. Daí que, se lidos todos de uma só vez, os ensaios dos prin-
cipais teóricos formalistas por vezes apresentam características distintas entre
si, devido ao fato desses estudiosos não estarem lá muito preocupados em pos-
tular “verdades absolutas”, e sim abrir novo campo de trabalho e de investigação
no que concerne o texto literário.

Formalismo Russo
II

Nos itens a seguir, elencaremos sucintamente as características mais mar-


cantes desse movimento, em forma de síntese.

Princípio da Literariedade e do Procedimento em Arte


Para os jovens que fundaram o Formalismo Russo, nem a Filosofia, a Psicologia
ou a Sociologia poderiam ser utilizadas como pontapé inicial para a abordagem
do texto literário. O que importava era o priom, ou processo – ou também pro-
cedimento – princípio de organização da obra literária como produto estético,
segundo Boris Schnaiderman (1978).

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Para Roman Jakobson, “a poesia é linguagem em sua função estética”. Como
estudamos na primeira unidade, para os formalistas, o objeto do estudo literá-
rio é a literariedade (JAKOBSON apud SCHAIDERMAN, 1978: ix). É através
dela, segundo os formalistas, que o texto pode ser analisado.

Atenção!
Para os formalistas, a Literariedade seria um resultado da utilização de procedi-
mentos desautomatizados da linguagem, oposto à utilização de procedimentos,
tidos comuns, no uso da linguagem do dia a dia. Para eles, ao desautomatizar a
linguagem, o autor faz do texto, um texto, especial, diferente, portanto artístico e/
ou literário. Ou seja, para os formalistas, a literariedade está embutida no texto e
somente no texto, já que para eles, a linguagem literária é observada como uma
organização especial de palavras e estruturas. Diferente dos críticos pós-estrutu-
ralistas, que não observam o texto literário apenas como uma especial organiza-
ção de palavras e estruturas.

Conceito de Fábula e Trama


De acordo com os formalistas1, fábula é um conceito que exprime os aconte-
cimentos ou fatos contidos em uma narrativa, ordenados de modo lógico e
cronológico, nem sempre correspondendo ao modo como esses fatos foram
apresentados pelo leitor na narrativa. Em linhas gerais, a fábula corresponde à
síntese da história, composta pelos elementos essenciais que permitem a noção

1 O vocábulo fábula, na terminologia formalista, significa um conceito literário e não deve ser confundido
com o gênero narrativo no qual personagens, comumente animais, plantas ou objetos, são utilizados como
alegoria para a compreensão de algum ensinamento de fundo moral.

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


58 - 59

de introdução, desenvolvimento e conclusão, relacionados a partir de causali-


dade (causa e consequência). Segundo Tomachevski (1978, p.173),
Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos
são comunicados no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma
maneira pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem
cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da ma-
neira pela qual estão dispostos e introduzidos na obra.

Já a trama corresponde ao modo como a narrativa é contada e organizada, per-


mitindo ao leitor perceber de que modo foi construída a história, ou seja, sua
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“arquitetura” interior. Em linhas gerais, a fábula é o que se passou e a trama é


como o leitor toma conhecimento dos fatos.

Contos de fadas
Para exercitar de modo objetivo a diferença
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destes dois conceitos, faça mentalmente o


seguinte exercício: apresente primeiro a trama
do conto de fadas Chapeuzinho Vermelho e,
em seguida, apresente sua fábula.
Você deve ter percebido que, na primeira
síntese realizada, apenas contou o modo
como a história foi apresentada, deixando
para o final a informação sobre o que aconte-
ceu entre o Lobo e a garota. Esse processo de
criação de suspense, presente, sobretudo, nas
inúmeras perguntas que Chapeuzinho faz ao
Lobo Mau, pode ser observado quando ele,
o lobo, deitado na cama, se passa pela avó
da garota. A cada pergunta que se segue, o
suspense fica cada vez mais sensível e serve
para instaurar o conflito e a dúvida: será que
a garota vai ser ou não devorada pelo lobo? Claro que a maioria de nós sabe a
resposta, até porque esta é a história mais “batida” da literatura mundial, mas
se você a ler para uma criança pela primeira vez, certeza que a criança irá se

Formalismo Russo
II

surpreender com a história. É esta singularidade, presente na narrativa, que


caracteriza a trama: “A fábula opõe-se à trama que é constituída dos mesmos
acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a sequên-
cia de informações que se nos destinam” (TOMACHEVSKI, 1978, p. 173). Você
deve ter notado, portanto, que não se pode resumir a trama; ela é percebida pelo
leitor quando ele investiga e define as relações de articulação entre os diversos
elementos de composição da narrativa.
Na fábula, por sua vez, você deve ter sintetizado a história, possivelmente em
uma frase, que poderia ser esta: menina que levava doces para a avó doente desres-

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peita a mãe, entra na floresta e é quase devorada por um lobo mau. Simples assim!

Conceito de Intriga e de Motivo


A intriga, outro conceito formalista, está diretamente relacionada aos conceitos
de fábula e de trama, mas diz respeito ao “conflito de interesses que caracteriza a
luta dos personagens numa determinada narrativa” (FRANCO JR., 2003, p.36).
Conforme Tomachevski (1978, p.177), “o desenvolvimento da ação, o conjunto
de motivos que a caracterizam chama-se intriga [...]. O desenvolvimento da
intriga conduz ao desaparecimento do conflito ou à criação de novos conflitos”.
Segundo Franco Junior (2003), a intriga relaciona-se à noção de conflito dramá-
tico – desenvolvimento por meio das ações das personagens – que se articula, por
sua vez, à noção de motivo. Tomachevski define motivo como “unidade temática
mínima” e pode ser obtido quando, no processo de análise da obra, podemos decom-
pô-la em partes menores, caracterizadas por ser uma unidade temática específica.
A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da
obra. A obra inteira pode ser seu tema, ao mesmo tempo que cada
parte da obra. A decomposição da obra consiste em isolar suas partes
caracterizadas por uma unidade temática específica. Através desta de-
composição da obra em unidades temáticas, chegamos enfim às par-
tes indecompostas até às pequenas partículas do material temático: “a
noite caiu”; “Raskolnikov matou a velha”, “o herói morreu”, “uma carta
chegou”, etc. O tema desta parte indecomposta chama-se motivo. [...].
Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático da obra.
Nesta perspectiva, a fábula aparece como o conjunto dos motivos em
sua sucessão cronológica de causa e feito; a trama aparece como o con-
junto destes mesmos motivos, mas na sucessão em que surge dentro da
obra (TOMACHEVSKI, 1978, p. 174).

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


60 - 61

Conceito de Motivação
Agora que já vimos o que são motivos, sigamos pelo conceito de motivação.
Tomachevski define a motivação como “o sistema de procedimentos que justi-
fica a introdução dos motivos particulares e seus conjuntos” (TOMACHEVSKI,
1978, p.184). Além disso, o pensador russo diferencia a motivação em três
subtipos, a saber: motivação composicional, motivação realista e motiva-
ção estética.
A motivação composicional diz respeito ao uso dos motivos, de modo que,
ao lançar mão deles, o autor apenas utilize os motivos de que realmente precisa
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para compor a história. Ou seja, o caráter econômico e funcional dos motivos


é o mais importante. Podemos exemplificar essa motivação utilizando seria-
dos de investigação policial. Ao colocar numa cena de crime um pedaço de
tecido, esse pedaço de tecido deve ter uma função para o desenrolar da narra-
tiva; pode levar a uma pista sobre quem cometeu o crime, pode apontar para
uma evidência que leve ao criminoso. Ao colocar o tecido em cena, o narrador
deve “aproveitar” esse motivo, levando à construção do episódio. Tomachevski
afirma que “[...] nenhum acessório deve ficar inutilizado pela fábula. Tchekov
pensou na motivação composicional dizendo que, se no início da novela diz-se
que há um prego na parede, é justamente neste prego que o herói deve se enfor-
car” (TOMACHEVSKI, 1978, p. 184).
A motivação realista baseia-se, por sua vez, no quesito verossimilhança,
isto significa, para o leitor, que os fatos criados carregam a ilusão de serem reais
quando, na verdade, são ficcionais:
Para um leitor mais informado, a ilusão realista toma uma forma
de exigência de verossimilhança. Sabendo do caráter inventado da
obra, o leitor exige, entretanto, uma certa correspondência com a
realidade e vê o valor da obra nesta correspondência. Mesmo os
leitores conhecedores das leis de composição artística não podem
libertar-se psicologicamente desta ilusão. Neste sentido, cada moti-
vo deve ser introduzido como um provável motivo para a situação
dada. [...] Por outro lado, o material realista não representa em si
uma construção artística e, para que ele venha a sê-lo, é necessá-
rio aplicar-lhe leis específicas de construção artística que, do ponto
de vista da realidade, serão sempre convenções (TOMACHEVSKI,
1978, pp. 187-188).

Formalismo Russo
II

De acordo com o pensador russo, o fato da motivação realista se pautar pelo


princípio da verossimilhança não faz com que a literatura fantástica não possa
se desenvolver, uma vez que depende de convenções sociais, ou seja, se o meio
no qual se inserem essas narrativas admitir a existência real de bruxas ou cons-
truções similares, elas serão aceitas como verossímeis na obra.
Por fim, temos a motivação estética2, que exige a introdução de motivos que
obedeçam ao caráter estético da obra literária, de modo a se harmonizar com
ele. Segundo Tomachevski,
Cada motivo real deve ser introduzido por uma certa forma da cons-

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trução do relato e deve beneficiar-se de um esclarecimento particular.
A própria escolha dos temas realistas deve ser justificada esteticamente.
As discussões entre as antigas e novas escolas literárias surgem a partir
da motivação estética. A antiga corrente, tradicional, nega a existência
do caráter estético das novas formas literárias (TOMACHEVSKI, 1978,
pp. 190-191).

Caracterização de Personagens
Tomachevski (1978, p.193) classifica as personagens como suportes vivos para
diferentes motivos. Para o autor, caracterizar uma personagem é torná-la reco-
nhecível, de modo que isto facilite a compreensão leitora. Para tal, divide a
caracterização das personagens em dois grupos: a direta e a indireta. Vejamos
a diferença entre elas:
■■ A caracterização direta pode ser realizada por meio do autor/narrador,
por meio de outras personagens ou por meio de autodescrição.
■■ A caracterização indireta é realizada por meio das ações da personagem.

2 O vocábulo estética, de acordo com o Dicionário de termos Literários, de Massaud Moisés (2004), pode
ser definido como “algo suscetível de perceber-se pelos sentidos; sensação; percepção. Mas também pode
designar o conhecimento da beleza na Arte e na Natureza, a teoria ou Filosofia do Belo, entendendo-se
por Belo o conjunto de sensações experimentadas no contato com a obra de arte” (MOISÉS, 2004, p. 166).

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


62 - 63

Exemplificando, observemos os seguintes


trechos:
1. O professor é um homem de 32 anos,
tem cabelos pretos, curtos, mas com
um grande topete, usa cavanhaque e
é baixinho.
2. Maria pediu dinheiro empres-
tado ao amigo João, sabendo que o
colega acabara de receber o paga-
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mento, pois o vira saindo do RH.


João, no entanto, negou o empréstimo, dizendo não ter um tostão
furado na carteira.

No exemplo 1, o próprio narrador se encarrega de caracterizar o personagem


“professor”, utilizando para tal fim alguns adjetivos (baixinho), atributos pró-
prios (32 anos, cavanhaque), além de adjetivação que complementa o substantivo
‘cabelos’ (topete, curto, preto). Ao leitor, quase nada resta a fazer senão aceitar
essas características como atribuídas à personagem. No exemplo 2, diferente-
mente do que ocorre na caracterização de “o professor”, em momento algum
o narrador afirma algo sobre a “personalidade” de João e sim apenas mostra a
sequência de ações realizada pela personagem. Ao caracterizá-lo, poderíamos
dizer que João é pão-duro, avarento, mentiroso, uma vez que tinha o dinheiro,

Formalismo Russo
II

porém não o emprestou ao amigo. Temos, portanto, uma caracterização direta


no exemplo 1 e indireta no exemplo 2.

Abordagem da História Literária


Uma crítica contundente feita pelos formalistas russos era ao modo como a evo-
lução literária era entendida e tradicionalmente se configurava. Até então, as
escolas literárias eram encaradas como um simples movimento de sucessão cro-
nológica, de tal forma que o movimento anterior fosse negado pelo posterior,
numa cadeia de sucessões infinita. Os estudiosos russos não concebem a litera-

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tura por este viés e sim por um prisma dialético, partindo da premissa de que
as formas literárias de vanguarda dialogam com as formas anteriores, por vezes
repetindo elementos que já se configuravam em outros momentos. Eikhenbaum
(1978, pp. 32-33) afirma que
A história acadêmica da literatura se limitava de preferência ao es-
tudo biográfico e psicológico dos escritores isolados (que eram tão
só e certamente “os grandes”). Compreendia-se a evolução como a
ostentação passiva de uma herança que se transmitia de pai a filho,
enquanto a literatura como tal não existia: era substituída por um
material tomado emprestado da história dos movimentos sociais, da
biografia dos escritores etc. Deveríamos instruir as tradições acadê-
micas e nos desembaraçar das tendências da ciência jornalística. Para
os primeiros, seria necessário opor à idéia de evolução literária a da
literatura em si, fora das noções de progresso e de sucessão natural
dos movimentos literários, fora das noções de realismo e romantis-
mo, fora de toda matéria exterior à literatura que consideramos como
série específica de fenômenos. Para os segundos, deveríamos opor aos
fatos históricos concretos, a instabilidade e a variabilidade da forma,
a necessidade de levar em consideração as funções concretas deste ou
daquele procedimento, isto é, de contar com a diferença entre a obra
literária tomada como um certo fato histórico e sua livre interpreta-
ção do ponto de vista das exigências contemporâneas, dos gostos e
dos interesses literários.

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


64 - 65

PROBLEMAS DA ABORDAGEM FORMALISTA

A recusa formalista da abordagem extraliterária e de seus aspectos não linguís-


ticos privilegiou apenas o aspecto imanente do texto literário, desconsiderando
quaisquer outras abordagens que não levassem em consideração a materialidade
da obra. Sem desmerecer a importância do Formalismo Russo para a construção
da crítica literária moderna, devemos ressaltar, no entanto, que esses estudio-
sos ignoram por completo a recepção do texto, ou seja, o papel preponderante
que o leitor/receptor tem na construção de sentidos da obra, além de todos os
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elementos extratexto, como contexto histórico, a ideologia, as relações sociais


envolvidas na escrita etc. Sabemos, no entanto, que a leitura de uma obra “não é
construída com base exclusivamente nos elementos que constituem a materia-
lidade sígnica e estrutural do texto, seja ele literário ou não literário. A leitura
crítica é o resultado de uma interação entre texto e leitor” (FRANCO JR., 2003,
p.107), e acrescento: texto, leitor e todo o mundo exterior.

O ESTRUTURALISMO

Cabe ressaltarmos a você, aluno(a), que não existe uma única teoria estrutura-
lista e sim teorias estruturalistas. O que fizemos no presente livro foi compilar
as mais importantes delas e citar uma bibliografia de apoio para que você possa
se aprofundar no estudo de alguns métodos estruturais. Neste momento, você
deve estar se perguntado o motivo das teorias estruturalistas terem sido coloca-
das na mesma unidade do formalismo russo, e o motivo para tal é que a análise
da obra literária, por meio do escopo estrutural e do formal, acaba sendo bas-
tante parecida – e por que não – complementar.
Grosso modo, enquanto a forma para os formalistas está intrinsecamente rela-
cionada ao significado, para os estruturalistas, a estrutura é a condição primordial
para que o significado seja compreendido – ou seja – a estrutura contribui para
que o significado da obra literária apareça. De acordo com Bonnici (2003, p.110),

Problemas da Abordagem Formalista


II

©shutterstock
“o Estruturalismo é, portanto,
uma prática interpretativa
que procura certa ordem e
inteligibilidade nas inúmeras
possibilidades de padrões do
texto”, e continua informando
que um crítico estruturalista
procura “isolar os padrões significativos de signos a partir dos quais poderá chegar a
conclusões sobre o significado e a cultura que estão sendo transmitidos e pesquisados”.

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A LINGUÍSTICA E O ESTRUTURALISMO

Para que possamos compreender o Estruturalismo, devemos primeiro compre-


ender sua base linguística, que teve origem na obra do linguista suíço Ferdinand
de Saussure (você provavelmente já o estudou em Linguística I, lembra-se?).
Enquanto a linguística tradicional baseava-se nos estudos filológicos (história
das línguas naturais e processos de alterações linguísticas), calcados no princípio
diacrônico da linguagem, a abordagem de Saussure era a-histórica (lembrando
que o prefixo a, oriundo do grego, significa negação) e abstrata. Saussure pro-
curou demonstrar que há um princípio comum regendo todas as línguas e seu
entendimento é o que busca sua teoria.
No tocante aos princípios da linguística saussuriana, observamos os seguin-
tes fatores:
■■ A linguagem deve ser concebida como um sistema de significantes (note
que o linguista não utiliza o termo estrutura).
■■ Os significantes são arbitrários, uma vez que o significado não lhes con-
fere uma forma específica.
■■ Os significantes têm a atual forma, pois são diferentes de outros significantes.

Você deve se recordar da teoria saussuriana, certo? Caso a resposta tenha sido
negativa, recapitularemos: os significantes são as palavras, escritas ou faladas: flor,
mulher, pedra. No entanto, essas mesmas palavras são grafadas diferentemente

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


66 - 67

em outras línguas (flower, woman, rock, em língua inglesa; fiore, donna, pietra,
em língua italiana). Se o significado é o mesmo e o significante é distinto em lín-
guas distintas, percebemos, portanto, que a relação entre significado e significante
é arbitrária, ou seja, não motivada. Segundo Saussure, se não há relação entre
o significante e o significado, a origem do significante decorre de uma diferen-
ciação, ou seja, o sistema de linguagem está baseado na troca de letras criando
diferentes significantes, que por sua vez também criam diferentes significados.
Como exemplo, podemos citar a sequência mata, pata, nata, rata, gata, na qual
apenas o primeiro fonema é diferente, criando significados distintos.
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O princípio diferenciador não funciona apenas para distinguir as pala-


vras, mas, ao mesmo tempo, diferenciar os significados. Uma mudan-
ça, por menor que seja, no significante, produz novo significado. [...].
Talvez contrariamente àquilo que normalmente pensamos, o signifi-
cado não é um objeto no mundo real (referente) [...]. O significado é
uma categoria humana e um conceito. Todas as palavras, como amor,
país, criança, mão, referem-se a conceitos, indiretamente relacionados
ao mundo real. Os significados são o resultado de generalização e de
abstração (BONNICI, 2003, p. 11).

O sistema diferenciador, proposto por Saussure, trouxe uma nova abordagem no


modo como percebemos a linguagem; ao desmistificar o conceito de que as pala-
vras possuem um significado oculto, quando na verdade é arbitrário, Saussure
definitivamente colocou por terra a ilusão de que as palavras são motivadas.
©wikipedia

ESTRUTURALISMO LITERÁRIO

O estruturalismo literário foi desenvolvido a


partir dos estudos linguísticos de Ferdinand
de Saussure, estudado no tópico anterior, bem
como da análise antropológica de Claude
Lévi-Strauss, que tentou analisar a estrutura
subjacente de todas as narrativas baseando-se
no modelo binário e abandonando a noção
de indivíduo:

O Estruturalismo
II

O Estruturalismo nega que os indivíduos sejam autônomos: os mem-


bros de uma tribo primitiva não têm uma intenção subjetiva ou uma
função individual, mas a contribuição de cada um tem sentido apenas
no contexto geral do universo deles. O Estruturalismo é também a-his-
tórico, porque resume todas as culturas anteriores a um conjunto de
dados não-mutáveis, de número limitado. Diacronicamente, somen-
te existem variações do mesmo padrão básico de oposições binárias
(BONNICI, 2003, p. 112).

Lévi-Strauss, embasado no modelo de Saussure, postulou, na Antropologia, que


os diversos mitos encontrados nas culturas são variações de um único padrão
de narrativa, que o sentido dos mitos/rituais nas diversas culturas reside na dife-

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rença: “Por si só, cada item não possui nenhum sentido; adquire sentido a partir
do sistema de signos em que funciona, ou seja, a partir da diferença de outros
signos. O item cultural não tem nenhum sentido intrínseco; depende de todo o
sistema para possuir sentido” (BONNICI, 2003, p. 111).
A partir das contribuições de Saussure e de Lévi-Strauss, Roland Barthes, em
Mythologies, de 1957, e Claude Bremond, em La logique dês possibles narratifs e
Logique du récit, publicadas respectivamente em 1966 e 1973, tentaram encon-
trar uma gramática universal da narrativa.
A partir de suas contribuições para o Estruturalismo, criaram-se os mode-
los de Barthes e de Bremond.

MODELO DE BARTHES E DE BREMOND

Sugerindo possibilidades lógicas da narrativa, Bremond baseia-se em um modelo


padrão de três fases:
1. A virtualidade, também conhecida como a possibilidade de realização
de uma ação.
2. A realização, também identificada como a passagem ao ato.
3. O resultado, o melhoramento ou a degradação.
De acordo com Bonnici (2003, p.113),

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


68 - 69

A fase 1 é básica: a narrativa prepara um quadro que oferece uma pos-


sibilidade de ação. Em todas as narrativas, há a expectativa de que algo
vai acontecer. Na fase 2, podem haver elementos que levam (presença)
ou não levam (ausência) à ação. Se esta última ação acontece, a nar-
rativa pára; se a primeira opção é escolhida, há o desenvolvimento da
narrativa. Se há o desenvolvimento da narrativa, pode haver o melho-
ramento ou degradação. O novo estado servirá como um novo ponto
de partida, uma nova virtualidade, especialmente se uma degradação
aconteceu.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

MODELO DE TODOROV

Tzvetan Todorov (1973) utilizou as regras de análise sintática (parte da gramá-


tica que estuda as palavras enquanto elementos de uma frase e suas relações de
concordância, de subordinação e de ordem) para analisar a narrativa. Segundo
Todorov, a unidade mínima da narrativa é a proposição, que pode ser agente
(pessoa) ou predicado (ação). Na oração “Bentinho / conheceu Capitu sua vizi-
nha”, a primeira proposição refere-se ao agente e a segunda ao predicado, que
funciona de duas formas: como adjetivo (proposição estática) ou como verbo
(proposição dinâmica).
Segundo Bonnici (2003, p.116), Todorov descreve “dois níveis superio-
res de organização: a sequência e o texto. Um conjunto de proposições forma
uma sequência”. Para Todorov, esta sequência fundamental é composta de cinco
proposições: equilíbrio1, força1, desequilíbrio, força2, equilíbrio2. A reunião de
sequências é o que forma o texto que, por sua vez, é formado por sequências
organizadas por encaixamento, encadeamento e alternância.

Desequilíbrio

Força Força

Equilíbrio Equilíbrio
Fonte: o autor

Essa sequência de Todorov é observada na estrutura de Freytag (Freytag’s


pyramid), baseada na pirâmide de Aristóteles:

O Estruturalismo
II

Clímax

Ação em aclive Ação em declive

Apresentação Entanglement Denouement Desfecho

Fonte: o autor

Na imagem acima, o Entanglement seria o nó da trama, e o Denouement, o


momento onde o nó é desfeito, trazendo equilíbrio e encaminhando a estória
para o desfecho.

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NARRATOLOGIA

Gérard Genette, sobretudo em Discurso da narrativa (1972), postulou sobre a


teoria da narrativa a partir da teoria formalista entre fábula (eventos) e trama
(ou discurso). Genette divide a narrativa em três níveis:
1. A fábula, em francês histoire, ou seja, a ordem cronológica dos eventos.
2. O discurso, em francês récit, ou seja, os eventos e as ações como apre-
sentados no texto.
3. A narração, em francês narration, ou seja, o próprio ato de narrar.
Esses três níveis da narrativa são relacionados em outros três níveis: o tempo,
o modo e a voz:
1. Tempo: análise da ordem temporal e a disposição dos acontecimentos
na narrativa.
2. Modo: colocação em perspectiva da narrativa.
3. Voz: emprego de primeira e de terceira pessoa e a narrativa em primeiro
ou segundo grau.

No tocante à categoria ordem, relacionam-se as discordâncias entre a fábula e a


trama, que ficam assim divididas:
1. Analepse ou flashback: quando a narrativa vem depois da ordem cro-
nológica.

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


70 - 71

2. Sincronia: quando a narrativa ocorre ao mesmo tempo que a ordem


cronológica.
3. Prolepse: quando a narrativa acontece à frente da ordem cronológica.
Com relação à categoria duração, ou seja, a relação entre o tempo que um evento
durou na narrativa e o tempo que se realmente ocupou para narrá-lo, Genette
divide a narrativa em:
1. Resumo: quando o tempo de leitura é menor que o tempo cronológico
descrito.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2. Elipse: quando o tempo da narrativa vaga em cenas, comentários e des-


crições.

No que concerne à categoria frequência (relação entre o número de vezes em


que certo evento ocorre na narrativa e o número de vezes em que é realmente
narrado), Genette separa os eventos da seguinte maneira:
1. Narrativa singulativa: um único evento é narrado uma única vez.
2. Narrativa repetitiva: evento que ocorreu apenas uma vez e é repetida-
mente narrado.
3. Narrativa iterativa: evento que aconteceu várias vezes, mas é narrado
uma só vez.

A categoria modo pode ser subdividida em distância (recontar a fábula) e pers-


pectiva (representar a fábula – mimese). Para a categoria perspectiva, considera-se
que Genette foi um grande inovador, pois fez uma distinção binária entre o nar-
rador (quem narra?) e o focalizador (quem vê). Segundo Franco Junior (2003,
p.39), “o narrador é capaz de falar e ver e pode realizar as duas ações ao mesmo
tempo. Todavia, um narrador pode narrar o que uma outra pessoa está vendo
ou tem visto. Narrar e ver, a narração e a focalização, portanto, podem ser atri-
buídas ao mesmo agente ou agentes diferentes”.
Para distinguir as ações entre narrador e focalizador, Bonnici (2003) resu-
me-as da seguinte maneira:
1. Narração e focalização são atividades distintas.
2. Em narrativas em terceira pessoa, o centro de consciência é o focaliza-
dor e o narrador é terceira pessoa.

O Estruturalismo
II

3. A focalização e a narração são atividades distintas também em narrati-


vas em primeira pessoa de narração retrospectiva.
4. Quanto à focalização, não há diferença entre o centro de consciência em
terceira pessoa e a narração em primeira pessoa de narração retrospec-
tiva. O focalizador é uma personagem na narrativa; a única diferença é
a identidade do narrador.
5. Em certas ocasiões, a focalização e a narração podem coincidir.
De modo a facilitarmos sua compreensão sobre as diferentes categorias criadas
por Genette para a análise do narrador, propomos o seguinte esquema:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1. Narrador extradiegético: que está fora da narrativa – terceira pessoa.
2. Narrador intradiegético: que é também um personagem – primeira pessoa.
O narrador intradiegético e o narrador extradiegético podem contar
a própria ou a história de outrem. O narrador heterodiegético conta a
história de outra personagem (não a história dele próprio); o narrador
que conta a própria história ou, de algum modo, participa da narrativa,
é chamado homodiegético. O grau de participação de narradores ho-
modiegéticos (quer extradiegéticos quer intradiegéticos) pode variar
muito. Às vezes o narrador tem o papel principal e narra sua própria
narrativa (é um narrador autodiegético) (BONNICI, 2003, p. 118).

A focalização, para Genette, também é uma instância dividida em um sujeito –


o focalizador – e um objeto – o focalizado:
1. Focalizador: agente cuja percepção dirige a apresentação.
2. Focalizado: o objeto que o focalizador percebe.

Tipos de focalização, propostos na Narratologia:


1. Interna: ocorre dentro dos eventos representados, vistos por um focali-
zador-personagem.
2. Externa: agente intimamente perto do narrador (chamado narrador-
-focalizador).

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


72 - 73

Muitos críticos literários têm relutado em aplicar apenas o método formal


ou apenas o método estrutural. Uma vez que ambos levam em conta apenas
a materialidade textual, sem se preocupar com o contexto histórico e social
de produção, a análise oriunda destas correntes acaba por se tornar muito
reducionista, limitando as perspectivas literárias. Uma sugestão é combinar
o formalismo/estruturalismo a outras correntes de análise.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta unidade, expusemos as bases históricas e os conceitos norteadores


de duas das correntes de análise literária mais importantes para os Estudos
Literários: o Formalismo Russo e o Estruturalismo. De modo a facilitar sua
compreensão, propomos um resumo dos principais itens abordados ao longo
desta unidade.

SÍNTESE DO FORMALISMO RUSSO

O formalismo consolidou-se como um método literário de análise que valoriza


as produções de vanguarda – sobretudo as vanguardas europeias – considerando
o material de representação (a fábula) inferior à trama (construção formal do
texto), para tal, associam-se os procedimentos de composição do texto aos pro-
cedimentos estilísticos.
Há a centralização no âmbito formal do texto literário e a negação de uma
significação estética da obra, decorrente de alguma correlação possível entre a
experiência subjetiva do produtor/receptor do texto e a realidade referencial evo-
cada pela representação. Por último, há a negação da concepção de arte como
mimese (imitação) ou representação.

Considerações Finais
II

SÍNTESE DO ESTRUTURALISMO

■■ Abrangeu uma variedade de domínios que implicavam a necessidade de


conhecimento de etnologia, psicanálise, linguística, materialismo histó-
rico, sociologia, entre outros.
■■ Afirmou-se como uma nova linguagem, partindo de conceitos de linguís-
tica e centrando-se na noção de estrutura como sistema de relações formais;
■■ Identificou-se como antiempirismo e o anti-historicismo, correspondendo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a um movimento que fez da estrutura formal do texto o sentido exclusivo
da literatura para o crítico.
■■ Entendeu o homem como uma estrutura da linguagem – um formalismo
de ordem inconsciente domina os comportamentos humanos e se realiza
neles sem que eles saibam.
■■ Para Roland Barthes e Gérard Genette, uma narrativa é uma estrutura
funcional descritível, que jamais tem a função de representar algo, con-
forme propõe a teria da mimese.
■■ O conteúdo da narrativa faz parte de sua estrutura e a narrativa refere-
se a si mesma.
■■ Portanto, a estrutura das relações é mutável e as unidades individuais
são substituíveis.

De modo geral, o Estruturalismo possui atitudes marcantes de:


■■ Indiferença pelo indivíduo.
■■ Abordagem clínica dos “mistérios” da literatura.
■■ Incompatibilidade com o senso comum;
■■ Não relacionamento da obra com a realidade de que ela trata ou com as
condições que a tinham produzido, e nem com o leitor.
■■ Afastamento do objeto real e do sujeito humano.
■■ Anti-humanismo, rejeitando o mito de que o significado começa e ter-
mina na experiência do indivíduo.

ESTRUTURALISMO E O FORMALISMO RUSSO


74 - 75

■■ Não referência a um objeto real, nem à expressão de um sujeito individual.

No que concerne à obra literária, é notável no Estruturalismo que:


■■ O que resta na obra é um sistema de regras.
■■ O sujeito foi efetivamente “liquidado”.
■■ O novo sujeito é o próprio sistema.

■■ A “estrutura” antecede o significado.


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Considerações Finais
1. Defina, com suas palavras, o que é a análise imanente da literatura, preconizada
pelo Formalismo Russo.
2. Quais são as diferenças basilares entre o Formalismo e o Estruturalismo?
3. Diferencie, objetivamente, a fábula da trama.
76 - 77

MATERIAL COMPLEMENTAR

Teoria da Literatura – formalistas russos


Tomachevski, Eikhenbaum e Chklovski
Editora: Globo, 1978
Sinopse: Para saber mais sobre os formalistas, recomendamos a
leitura do livro Teoria da Literatura – formalistas russos. Nesta obra, você
encontrará os principais ensaios russos, traduzidos diretamente para
a língua portuguesa, que alicerçaram o movimento. Destacam-se os
capítulos A Teoria do ‘Método formal´, de Eikhenbaum, ‘A arte como
procedimento’, de Chklovski, e ‘Temática’, de Tomachevski.

Material Complementar
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

O GÊNERO NARRATIVO E

III
UNIDADE
SEUS OPERADORES

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer os principais operadores de análise do gênero narrativo.
■■ Conhecer os conceitos dos elementos constitutivos de uma narrativa,
tais como, enredo, personagens, tempo, espaço etc.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O Gênero Narrativo e seus Operadores
■■ Enredo
■■ Nó, Clímax e Desfecho
■■ Personagens
■■ Autor, Narrador e Foco Narrativo
■■ Tempo
■■ Espaço
80 - 81

INTRODUÇÃO

Nesta terceira unidade, veremos que a partir do formalismo e do estruturalismo,


iniciaram-se modelos de análise literária, que permitem observar os diferen-
tes níveis textuais, desde a sintaxe, coesão, dimensão do texto até sua estrutura.
Entretanto, o modelo mais usual de análise literária é focado nos principais ope-
radores do gênero narrativo, a saber: Enredo, Nó, Clímax, Desfecho, Personagens,
Autor, Narrador, Foco Narrativo, Tempo e Espaço.
Assim, iremos explorar esses conceitos-chave para o desenvolvimento de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma análise e interpretação do texto literário em prosa.


A seguir, os principais operadores de leitura, que quando necessário, apre-
sentarão suas variantes e subdivisões.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES

A narrativa, como explicamos a você na primeira unidade deste livro, é com-


posta por alguns elementos básicos, que chamamos elementos da narrativa.
Nesta seção, cada um desses elementos será estudado e conceituado, de modo
que, ao final desta unidade, você esteja apto(a) a realizar a análise narrativa
completa, sabendo diferenciar cada uma das partes que compõem o ato de
narrar. Basicamente, há cinco elementos da narrativa: enredo, personagens,
narrador, tempo e espaço.
Perceba que os elementos citados estão, intrinsecamente, relacionados ao
método estruturalista, visto que parte apenas do texto.
Você notará, entretanto, que expandiremos estes conceitos em várias subdi-
visões, de modo que possamos abranger o maior número possível de conceitos
aplicados pela crítica literária. Comecemos com o básico: o enredo.

Introdução
III

ENREDO

No inglês plot, também chamado de trama ou intriga. O enredo nada mais é do


que o conjunto de fatos narrados em uma história, que seguem uma determinada
estrutura, qual seja: equilíbrio inicial ou exposição; desenvolvimento ou com-
plicação; clímax e desfecho. Porém, é importante ressaltar, antes de vermos em
detalhes o que cabe em cada uma dessas partes, que as narrativas ditas tradicio-
nais respeitam a sequência destes elementos, mas quanto mais contemporâneos
são os autores, mais eles tendem a romper com os moldes clássicos e, por exem-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
plo, construir narrativas que comecem diretamente no desenvolvimento, ou que
não contenham clímax, ou em que o desfecho não seja claro.
■■ Partes do enredo:
Equilíbrio inicial ou exposição: corresponde à introdução do texto, em
que são apresentadas as personagens, o tempo, o espaço e as linhas bási-
cas da história que comporão o desenvolvimento. Serve para situar o
leitor acerca do que virá adiante.
Desenvolvimento ou complicação: a partir de um fato que romperá com
o equilíbrio inicial da trama, inicia-se o desenvolvimento, em que todos
os demais elementos da narrativa vão surgindo aos poucos, criando os
laços entre as personagens, apresentando os conflitos vividos por elas até
que estes cresçam em tensão e levem o leitor ao clímax da obra.
Clímax: ponto máximo de tensão do texto; é o momento em que o lei-
tor, já tendo acompanhado o desenrolar da trama, se pergunta como irá
terminar a história, qual será o desfecho dos personagens. Nas narrativas
tradicionais, todos os demais elementos são pensados para se conduzir
o leitor ao clímax, pois isso é o que garante o interesse dele na história.
Desfecho: é o final da narrativa, em que os fatos são resolvidos e, no caso
das narrativas tradicionais, o equilíbrio inicial é retomado. Embora no
Brasil haja um especial apreço por desfechos felizes, na prática, o desfe-
cho pode ser feliz, trágico, cômico, surpreendente e até aberto, o que é
muito comum em narrativas a partir de meados do século XX.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


82 - 83

Ainda dentro do enredo, é preciso considerar


uma última característica que, na verdade, é a
mais fundamental: a verossimilhança. Chama-
mos de verossimilhança a verdade interna do
texto, ou seja, aquilo que é narrado não precisa
ser verdadeiro, mas deve parecer verdadeiro,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

caso contrário, o enredo se tornará absurdo. Pen-


semos no seguinte: quando assistimos a um de-
senho animado como Scooby Doo, por exemplo,
todos aceitamos que as personagens conversem
com Scooby e que ele possa falar, isso porque
dentro do universo do desenho esse fato é apre- ©shutterstock

sentado de forma verossímil.


O mesmo ocorre quando assistimos a filmes de super-heróis, aceitamos que
eles matem muitas pessoas sem se ferir, que voem, que tenham visão de
raio-x, que sobrevivam embaixo da água, que se transformem em objetos
etc., mas isso só ocorre porque no universo da história ou eles não são to-
talmente humanos (são semideuses, vieram de outro planeta) ou passaram
por mutações (como é o caso do Homem-Aranha e dos mutantes da série
X-Men). Agora observe que em muitos filmes de ação, o enredo se torna ab-
surdo, isso porque um protagonista que é totalmente humano e sem super-
poderes realiza tarefas impossíveis a um humano, o que acontece na série
de filmes Rambo, protagonizada por Silvester Stalone: o personagem é um
soldado extremamente bem treinado, mas isso não faz com que ele de fato
seja capaz de enfrentar sozinho um exército com quase duzentos homens
atirando contra ele sem se ferir, e pior, ainda seja capaz de atirar nos homens
deste exército com uma metralhadora imensa em cada mão! Enfim, se não
podemos crer no que é narrado, então a história é inverossímil e, portanto,
o enredo fica prejudicado.
Um interessante artigo que aborda a questão é Os Signos e a Verossimilhança
no Livro Jogos Vorazes, de Marina Amâncio e Leandro de Paula, do Centro
Universitário do Estado do Pará.
Disponível em:<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resu-
mos/R8-0006-1.pdf>.

O Gênero Narrativo e seus Operadores


III

NÓ, CLÍMAX E DESFECHO

Nó: algum fato que interrompe o fluxo da situação inicial da narrativa de


modo a criar um obstáculo que deverá ser enfrentado. Sem o nó, não temos
conflito dramático; por meio do nó, percebemos que só existe uma história
a ser narrada porque a partir dele uma crise se instaurou. Assim, a narra-
tiva, agora desestabilizada, precisa voltar à sua situação de equilíbrio, o que
não significa o retorno à mesma situação inicial. Como exemplo, podemos
citar a história de Chapeuzinho Vermelho: nela, o nó acontece justamente no

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
momento em que a personagem principal, contrariando a mãe, segue por um
caminho alternativo no meio da floresta e, como consequência disto, acaba
encontrando o Lobo Mau. Caso Chapeuzinho tivesse seguido pelo caminho
indicado pela mãe, provavelmente não haveria conflito dramático, uma vez
que ela chegaria à casa da avó, deixaria os doces e retornaria para a casa da
mãe, possivelmente em segurança. Nos textos dramáticos, principalmente
nas Tragédias, o nó é fundamental, já que é a partir dele que nasce a hamar-
tia (o erro trágico).
Clímax: é o ponto em que o conflito dramático alcança seu auge, “momento
do tudo-ou-nada entre as forças contrárias que agem e se defrontam na nar-
rativa, engendrando e desenvolvendo a história” (FRANCO JR, 2003, p.43).
No clímax, instaura-se um momento de expectativa sobre o que vai acontecer
daquele ponto para frente, o que faz com que essa suspensão temporária dos
acontecimentos aumente ao máximo a tensão. Citando novamente o conto
de fadas Chapeuzinho Vermelho, o clímax da história acontece justamente no
momento em que Chapeuzinho questiona o Lobo Mau – travestido de vovó
e deitado na cama da velha senhora. A sequência de perguntas leva o leitor a
um momento de suspense máximo, apenas quebrado pela última resposta do
Lobo, negritada no texto transcrito a seguir:
- Vovó, que orelhas grandes você tem! - Chapeuzinho Vermelho disse para o lobo.
- É para melhor te escutar!
- E que pernas mais compridas você tem!
- É para poder correr melhor, netinha!
- E olhos grandes você tem!

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


84 - 85

- São para poder enxergar bem!


- Que braços mais compridos você tem!
- São para melhor te agarrar!
- E que dentes grandes você tem!
- SÃO PARA TE COMER!
Fonte: <http://contosfadas.blogspot.com.br/2007/07/chapeuzinho-vermelho.html>.
Acesso em: 7 ago. 2013.
Nem sempre o clímax está relacionado somente a um momento tenso da nar-
rativa. O clímax só é clímax quando o nível dramático assume o auge, e tal fato
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desencadeia todo o desenlace da trama. Em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock,


o clímax não é na cena do banheiro, mas na descoberta sobre a real identidade
da mãe de Norman Bates.
Desfecho: resolução do conflito dramático; momento em que uma das for-
ças sai vitoriosa. Geralmente, corresponde ao fim da narrativa. Em Chapeuzinho
Vermelho, o desfecho corresponde à figura do lenhador, que salva a garota das
garras do Lobo Mau.

PERSONAGENS

São os seres que viverão os fatos narrados no enredo e, quanto à sua participação
no enredo, podem ser classificados como protagonistas, antagonistas e secundá-
rios. Vejamos agora algumas especificidades de cada um deles:
Protagonistas: são os personagens principais, em torno dos quais gira o
enredo. Uma obra pode ter um ou mais protagonistas, dependendo de sua
extensão. Este protagonista pode comportar-se como herói, quando apresenta
características superiores às do grupo em que está inserido, tais como Peri, da
obra O Guarani, ou Ulisses, de A Odisseia, de Homero. Entretanto, o protagonista
também pode comportar-se como anti-herói, quando apresenta características
comuns ao seu grupo ou inferiores a ele, ou seja, ele está ocupando o posto de
herói sem realmente ter as características necessárias para isso. Alguns anti-heróis
são famosíssimos nas literaturas brasileira e universal, tais como: Leornardinho,

O Gênero Narrativo e seus Operadores


III

de Memórias de um Sargento de Milícias, Macunaíma, Dom Quixote ou Jean


Valjean, de Os Miseráveis.
Há também o conceito de herói-trágico, um personagem de tragédias que,
caracterizado com virtudes, acaba caindo em desgraça, culminando com o
final trágico. Édipo, Macbeth, Okonkwo (de Things Fall Apart) são exemplos de
heróis-trágicos.
Antagonista: é o personagem que se ©shutterstock

opõe ao protagonista, criando os problemas


que ajudarão no desenvolvimento do con-

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flito e dificultando a vida do protagonista.
Nas histórias mais clássicas, em que suas
características são bem marcadas, é conhe-
cido como vilão. É o caso do Major Vidigal
em Memórias de um Sargento de Milícias, do
policial Javert, em Os Miseráveis, mas tam-
bém é preciso lembrar que em várias obras,
a função de antagonista pode ser desempe-
nhada não por uma personagem humana,
como é o caso do mar na obra O velho e o
Mar, de Ernest Hemmingway, ou até por
outro elemento da narrativa, como é o caso
Moby Dick, a baleia, é antagonista do romance
do espaço, que figura como antagonista das homônimo, de Herman Melville.
personagens em Vidas Secas, de Graciliano
Ramos. Além disso, nem sempre o antagonista é vilão, como é o caso de Macduff
em Macbeth, ou o polêmico Shylock, de O Mercador de Veneza.
Secundários: ocupam o segundo plano da história e desempenham papéis
menores que dão suporte às ações dos personagens principais. Alguns, apesar
de aparecerem pouco durante a obra, acabam se tornando peças-chave para jus-
tificar ações e comportamentos dos protagonistas e antagonistas, esse é o caso,
por exemplo, de José Dias, em D. Casmurro.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


86 - 87

Quanto à caracterização, os personagens se dividem em:


Redondo: também conhecidos como personagens complexos, são o tipo mais
próximo aos seres humanos de verdade, já que possuem densidade psicoló-
gica, sofrem alterações de comportamento durante a trama, não são totalmente
bons ou maus, apresentam dilemas morais e, via de regra, são imprevisíveis.
Alguns foram eternizados, tais como: Capitu e Bentinho, de D. Casmurro;
Paulo Honório, de S. Bernardo; O Monstro, de Frankenstein; Otelo, da obra
de Shakespeare.
Plano: também conhecidos como personagens lineares, tendem a manter-se
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da mesma maneira durante todo o desenrolar da trama, ou seja, as caracterís-


ticas que lhes forem atribuídas no início da obra serão as que veremos durante
toda a narrativa. Têm baixa densidade psicológica e costumam ter caráter mais
marcado do que os personagens redondos.
Tipo: tipo é o personagem que possui um traço de caráter muito caracte-
rístico, seja ele moral, social, econômico, o que o identifica como participante
de um grupo, a ponto de que em muitas narrativas eles sequer têm nomes, são
conhecidos apenas pelos tipos que representam: o jornalista, o padeiro, o bar-
beiro, a vizinha, a beata, o atleta, o malandro, dentre outros.
Caricato: personagens caricatos ou estereotipados são os que possuem um
traço de personalidade tão marcante que sobressai às suas demais caracterís-
ticas, tornando-o, na maioria das vezes, ridículo ou cômico. Basicamente, os
personagens de comédias são assim construídos e facilmente reconhecíveis em
exemplos clássicos de telenovelas, como A viúva Porcina, de Roque Santeiro.
Há um grande contingente de personagens caricatos no romance O Cortiço, de
Aluísio de Azevedo. Personagens caricatos também são reflexos da sociedade
do tempo em que foram escritos, como Tia Anastácia, de O Sítio do Pica-Pau
Amarelo, a qual expõe toda a fragilidade do racismo das décadas de 20 a 40 ou
os personagens judeus, da literatura universal.

O Gênero Narrativo e seus Operadores


III

O antissemitismo significa todo ato em palavra ou ação que ofende o povo


semita, em especial o judeu. Este é um dos temas relevantes abordados, de for-
ma explícita ou implícita, na literatura inglesa da Renascença, fundamentado
em um preconceito aberto ao judaísmo e aos judeus. Como esse ódio é retra-
tado na literatura? O artigo A imagem do judeu na literatura britânica: Shylock,
Barrabás e Fagin analisou três obras que permitem o olhar sobre a imagem do
judeu, com a finalidade de verificar a presença de discriminação e do precon-
ceito, através de três personagens judeus: Barrabás, de O judeu de Malta (1590),

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de Christopher Marlowe; Shylock, de William Shakespeare, em O Mercador de
Veneza (1600), e, por fim, Fagin, em Oliver Twist (1838), de Charles Dickens.
Disponível em: <http://seer.fafiman.br/index.php/dialogosesaberes/article/
viewFile/166/108>.

AUTOR, NARRADOR E FOCO NARRATIVO


©shutterstock

É fundamental que se estabeleça clara diferença entre


estes três elementos ao se analisar uma narrativa:
■■ AUTOR: trata-se de um equívoco muito
comum a quem inicia o estudo da narra-
tiva confundir autor com narrador, quando
a obra é escrita em primeira pessoa. Assim,
é fundamental saber que o autor é a pessoa
real, de carne e osso, que escreveu a obra,
tudo o mais que está no interior do texto
analisado é ficcional; por isso, ainda que a
história esteja sendo contada em primeira
pessoa, a entidade que conta os fatos é o nar-
rador e não o autor. Há, entretanto, casos
em que o narrador é o alterego1 do autor,
um duplo-eu. Grande parte dos narradores dos contos de
Edgar Allan Poe é seu alter ego.

Alter ego ou alterego (do latim alter = outro egus = eu) pode ser entendido literalmente como outro eu,
1

outra personalidade de uma mesma pessoa. O narrador ou outro personagem pode ser o alterego do
autor, como Emília e Monteiro Lobato.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


88 - 89

■■ NARRADOR: é um elemento ficcional criado pelo autor para dar voz à


narrativa. Pode ser em primeira ou terceira pessoa e, dependendo da natu-
reza dele, ou seja, do foco que assumirá para contar a história, pode se
fazer mais ou menos presente, interferir ou não nos fatos narrados, par-
ticipar diretamente ou não dos fatos narrados e, até, ser o protagonista
dos fatos, assim constituem-se os focos narrativos.
■■ FOCO NARRATIVO: é, pois, a perspectiva pela qual o narrador resolve
contar a história: uma vez feita a escolha do narrador, em primeira ou em
terceira pessoa, há vários focos a se assumir, vejamos:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

■■ Focos Narrativos em Terceira Pessoa

Observador Onisciente Neutro: tipo mais comum de narrador, ele fica de fora
da história e se limita a contar os fatos, sem interferir neles, ou seja, não faz jul-
gamentos sobre os fatos narrados. Possui duas atribuições que lhe facilitam muito
contar a história: é onipresente (esteve em todos os locais onde a história ocor-
reu) e onisciente (sabe tudo o que os personagens pensaram e sentiram, pois pode
“ler” suas mentes), por isso, às vezes é conhecido como narrador-deus. Está pre-
sente em obras como Senhora, Quincas Borba, O Tempo e o Vento.
Observador Onisciente Intruso: possui as mesmas características bási-
cas do tipo anterior, mas interfere na história narrada, comentando os fatos e
fazendo julgamento sobre as ações das personagens. Aparece em romances como
Memórias de um Sargento de Milícias, Triste fim de Policarpo Quaresma.
Onisciente seletivo: é um tipo de foco em que há uma grande presença de
discurso indireto-livre, ou seja, os pensamentos saem diretamente da cabeça
da personagem, sem muitos filtros. É tipo comum, por exemplo, nas obras de
Clarice Lispector, tais como nos contos Amor, O búfalo, A imitação da rosa,
Laços de Família, da obra Laços de Família. Mais raramente essa onisciência
pode ser multisseletiva, ou seja, há vários narradores com essa característica
contando a mesma história, como é o caso dos personagens da obra Vidas Secas,
de Graciliano Ramos.
■■ Focos Narrativos em Primeira Pessoa

Narrador protagonista: narra em primeira pessoa do singular fatos vivencia-


dos por ele. Sua grande vantagem sobre os demais focos narrativos é o grau de

O Gênero Narrativo e seus Operadores


III

verossimilhança que atinge, já que ele presenciou os fatos narrados, o que con-
fere a eles credibilidade. Sua desvantagem é que ele não possui onisciência, ou
seja, ele sabe apenas o que as personagens fizeram, mas não o que pensaram, já
que não tem acesso a essa informação. Alguns narradores clássicos deste foco
são: Bentinho, de D. Casmurro; Paulo Silva, de Lucíola; Paulo Honório, de São
Bernardo; Werther, da obra homônima de Goethe, dentre tantos outros.
Narrador testemunha: não é o personagem principal da história, assim sendo,
assume a primeira pessoa para narrar uma história protagonizada por outro, mas
da qual ele teve participação. Seu ponto de vista é mais limitado. Alguns exem-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
plos famosos estão nas obras Memorial de Aires, de Machado de Assis e O nome
da Rosa, de Humberto Eco.

TEMPO

■■ TEMPO OBJETIVO (cronológico): refere-se à sucessão temporal dos acon-


tecimentos, podendo ser medido pela passagem de horas, dias, anos, datas
– marcação objetiva da passagem do tempo, seguindo a “ordem do relógio”.
■■ TEMPO SUBJETIVO (psicológico): trata do tempo de experiência subje-
tiva dos personagens; relaciona-se com o tempo vivencial delas, o modo
como experimentam as situações e emoções ao entrar em contato com
fatos, memórias etc.

Para exemplificar os dois tempos da narrativa, sugerimos um exercício bastante


simples: suponha que você acabou de chegar ao banco, no quinto dia útil do mês,
e coloca-se ao final de uma fila de modo a aguardar sua vez para ser atendido.
Objetivamente, passaram-se 25 minutos desde sua chegada. Subjetivamente,
porém, você tem a sensação de que está aguardando na fila por mais de uma hora.
Cenário dois: você vai a um churrasco com seus melhores amigos; lá, se diver-
tem, confraternizam, cantam juntos e comem bem. Quando menos se espera,
passaram-se cinco horas, mas você nem percebeu. O tempo nesta situação é pura-
mente psicológico, pois não está pautado na duração exata dos eventos e sim no
modo como você percebeu (ou não!) a passagem do tempo.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


90 - 91

ESPAÇO

O espaço corresponde ao caráter geográfico e arquitetônico de modo a identifi-


car o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. É uma referência material que
situa onde personagens, ações e situações são realizadas.
De modo a complementar nossos estudos sobre a teoria da narrativa, pro-
pomos também a diferenciação entre ambiente e ambientação:
■■ AMBIENTE: caracteriza determinada situação dramática em determi-
nado espaço. O ambiente é “o clima, a atmosfera que se estabelece entre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

as personagens em determinada situação dramática [...]. Um mesmo


espaço pode apresentar diversos ambientes” (FRANCO JR, 2003, p. 44).
■■ AMBIENTAÇÃO: compreende “a identificação do modo como o ambiente
é construído pelo narrador e, portanto, ela identifica também o trabalho
de escrita do autor do texto, as escolhas que ele faz para construir deste
ou daquele modo os ambientes” (FRANCO JR, 2003, p. 44).

A AMBIENTAÇÃO PODE SER DEFINIDA EM TRÊS TIPOS:

Ambientação franca: feita pelo discurso do narrador heterodiegético ou de um


narrador que não participa da narrativa/dos eventos narrados; este narrador
“explicita, compõe o ambiente que caracteriza um espaço e determinada situa-
ção dramática” (FRANCO JR, 2003, p.44).
Ambientação reflexa: produzida a partir da focalização de um ou mais perso-
nagens; ele(s) constrói(em) o ambiente onde se desenrola a ação. A ambientação,
portanto, é um reflexo do universo deste(s) personagem(ns).
Ambientação dissimulada e oblíqua: o ambiente é apenas sugerido a par-
tir das ações das personagens.

O Gênero Narrativo e seus Operadores


III

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta Unidade, estudamos os principais operadores de leitura do texto narrativo


que, a partir do formalismo e do estruturalismo, foram os operadores respon-
sáveis para o desenvolvimento de uma análise e interpretação do texto literário
em prosa. É conhecendo todos estes elementos, suas variantes e subdivisões que
o aluno de Letras terá a completa possibilidade de desenvolver análises estrutu-
rais e aprofundar os diferentes níveis textuais.
Todavia, o aprendizado acerca dos operadores da narrativa, necessita de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
prática e reflexão, e para tanto, exigem-se atividades constantes de análise tex-
tual. Logo, sugerimos uma atividade de autoestudo que te possibilitará explorar
o texto narrativo e seus principais elementos aqui estudados.

O GÊNERO NARRATIVO E SEUS OPERADORES


92 - 93

Leia o conto a seguir:

O Gato Preto (The Black Cat)

Edgar Allan Poe


Para a muito estranha embora muito familiar narrativa que es-
tou a escrever, não espero nem solicito crédito. Louco, em ver-
dade, seria eu para esperá-lo, num caso em que meus próprios
sentidos rejeitam seu próprio testemunho. Contudo, louco não
sou e com toda a certeza não estou sonhando. Mas amanhã
morrerei e hoje quero aliviar minha alma.
Meu imediato propósito é apresentar ao mundo, plena,
sucintamente e sem comentários, uma série de simples
acontecimentos domésticos. Pelas suas conseqüências,
estes acontecimentos, me aterrorizam, me torturaram e
me aniquilaram. Entretanto, não tentarei explicá-los. Para mim,
apenas se apresentam cheios de horror. Para muitos, parecerão
menos terríveis do que grotescos. Mais tarde, talvez, alguma
inteligência se encontre que reduza meu fantasma a um lugar
comum, alguma inteligência mais calma, mais lógica, menos ex-
citável do que a minha e que perceberá nas circunstâncias que pormenorizo com
terror apenas a vulgar sucessão de causas e efeitos, bastante naturais. Salientei-me
desde a infância, pela docilidade e humanidade de meu caráter. Minha ternura de
coração era mesmo tão notável que fazia de mim motivo de troça de meus com-
panheiros. Gostava de modo especial de animais e meus pais permitiam que eu
possuísse grande variedade de bichos favoritos. Gastava com eles a maior parte do
meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava comida e os acari-
ciava. Esta particularidade de caráter aumentou com o meu crescimento e, na idade
adulta, dela extraia uma de minhas principais fontes de prazer. Àqueles que tem
dedicado a afeição a um cão fiel e inteligente pouca dificuldade tenho em explicar
a natureza ou a intensidade da recompensa que daí deriva. Há qualquer coisa no
amor sem egoísmo e abnegado de um animal que atinge diretamente o coração
de quem tem tido freqüentes ocasiões de experimentar a amizade mesquinha e
a fidelidade frágil do simples Homem. Casei-me ainda moço e tive a felicidade de
encontrar em minha mulher um caráter adequado ao meu. Observando minhas
predileções pelos animais domésticos, não perdia ela a oportunidade de procurar
os das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão,
coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um belo animal, notavelmente
grande, todo preto e de uma sagacidade de espantar. Ao falar da inteligência dele,
mulher que no íntimo não tinha nem um pouco de superstição, fazia freqüentes
alusões à antiga crença popular que olhava todos os gatos pretos como feiticeiras
disfarçadas. Não que ela se mostrasse jamais séria preocupação a respeito desse
ponto, e eu só menciono isso final, pelo simples fato de, justamente agora, ter-me
vindo à lembrança. Plutão - assim se chamava o gato - era o meu preferido e com-
panheiro. Só eu lhe dava de comer e ele me acompanhava por toda a parte da casa,
por onde eu andasse. Era mesmo com dificuldade que eu conseguia impedi-lo de
acompanhar-me pelas ruas. Nossa amizade durou, desta maneira, muitos anos,
nos quais, meu temperamento geral e meu caráter - graças à diabólica esperança
- tinham sofrido (coro de confessá-lo) radical alteração para pior. Tornava-me dia a
dia mais taciturno, mais irritável, mais descuidoso dos sentimentos alheios. Permiti
me mesmo usar linguagem brutal para com minha mulher. Por fim, cheguei mes-
mo a usar de violência corporal. Meus bichos, sem dúvida, tiveram que sofrer essa
mudança de meu caráter. Não somente descuidei-me deles, como os maltratava.
Quanto a Plutão, porém, tinha para com ele, ainda, suficiente consideração que me
impedia de maltratá-lo, ao passo que não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos,
o macaco ou mesmo o cachorro, quando, por acaso ou por afeto, se atravessavam
em meu caminho. Meu mal, contudo, aumentava, pois que outro mal se pode com-
parar ao álcool? E, por fim, até mesmo Plutão, que estava agora ficando velho e, em
conseqüência, um tanto impertinente, até mesmo Plutão começou a experimentar
do meu mau temperamento.
Certa noite, de volta a casa, bastante embriagado, de uma das tascas dos subúrbios,
supus que o gato evitava minha presença. Agarrei-o, mas, nisto, amedrontado com
a minha violência ele me deu uma leve dentada na mão. Uma fúria diabólica apos-
sou-se instantaneamente de mim. Cheguei a desconhecer-me. Parecia que alma
original me havia abandonado de repente o corpo e uma maldade mais do que
satânica, saturada de álcool, fazia vibrar todas as fibras de meu corpo. Tirei do bolso
do colete um canivete, abri, agarrei o pobre animal pela garganta e, deliberadamen-
te, arranquei-lhe um dos olhos da órbita! Coro, abraso-me, estremeço ao narrar a
condenável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando, com o sono desfiz os fumos da
noite de orgia, experimentei uma sensação meio de horror, meio de remorso pelo
crime de que me tornara culpado. Mas era, quando muito, uma sensação fraca e
equívoca e a alma permanecia insensível. De novo mergulhei em excessos e logo
afoguei no vinho toda a lembrança do meu ato.
Enquanto isso o gato, pouco a pouco, foi sarando. A órbita do olho arrancado tinha,
é verdade, uma horrível aparência, mas ele parecia não sofrer mais nenhuma dor.
Andava pela casa como de costume, mas, como era de esperar, fugia com extre-
mo terror a minha aproximação. Restava-me ainda bastante de meu antigo cora-
ção, para que me magoasse, a princípio, aquela evidente aversão por parte de uma
criatura que tinha sido outrora tão amada por mim. Mas esse sentimento em breve
deu lugar à irritação. E então apareceu, como para minha queda final e irrevogável,
o espírito de perversidade. Desse espírito não cuida a filosofia. Entretanto, tenho
menos certeza da existência de minha alma do que de ser essa perversidade um dos
94 - 95

impulsos primitivos do coração humano, uma das indivisíveis faculdades primárias,


ou sentimentos, que dão direção ao caráter do homem. Quem não se achou cente-
nas de vezes a cometer um ato vil ou estúpido, sem outra razão senão a de saber
que não devia cometê-lo? Não temos nós uma perpétua inclinação apesar de nosso
melhor bom-senso, para violar o que é a lei, pelo simples fato de compreendermos
que ela é a Lei? O espírito de perversidade, repito, veio a causar, minha derrocada
final. Foi esse anelo insondável da alma, de torturar-se a si próprio, de violentar a sua
própria natureza, de praticar o mal que pelo mal, que me levou a continuar e, por
fim, a consumar a tortura que já havia infringido ao inofensivo animal.
Certa manhã, a sangue-frio, enrolei em seu pescoço e enforquei-o no ramo de uma
árvore, enforquei-o com as lágrimas jorrando-me dos olhos e com o mais amargo
remorso no coração. Enforquei-o porque sabia que ele me tinha amado e porque
sentia que ele não me tinha dado razão para ofendê-lo. Enforquei-o porque sabia
que, assim fazendo, estava cometendo um pecado, um pecado mortal, que iria pôr
em perigo a minha alma imortal, colocando-a - se tal coisa fosse possível - mesmo
fora do alcance da infinita misericórdia do mais misericordioso terrível Deus. Na noi-
te do dia no qual pratiquei essa crudelíssima façanha fui despertado do sono pelos
gritos de: “Fogo!” As cortinas de minha cama estavam em chamas. A casa inteira
ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu mesmo con-
seguimos escapar ao incêndio. A destruição foi completa. Toda a minha fortuna foi
tragada, e entreguei-me desde então ao desespero. Não tenho a fraqueza de buscar
estabelecer uma relação de causa e efeito entre o desastre e a atrocidade, mas estou
relatando um encadeamento de fatos e não desejo que nem mesmo um possível
elo seja negligenciado. Visitei os escombros no dia seguinte ao incêndio. Todas as
paredes tinham caído, exceto uma, e esta era de um aposento interno, não muito
grossa, que se situava mais ou menos no meio da casa e contra a qual permanecera
a cabeceira de minha cama. O estuque havia, em grande parte, resistido ali à ação
do fogo, fato que atribui a ter sido ele recentemente colocado. Em torno dessa pa-
rede reuniu-se compacta multidão e muitas pessoas pareciam estar examinando
certa parte especial dela, com uma atenção muito ávida e minuciosa. As palavras
“estranho, singular!” e expressões semelhantes excitaram minha curiosidade. Apro-
ximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura
de um gato gigantesco. A imagem fora reproduzida com uma nitidez verdadeira-
mente maravilhosa. Havia uma corda em redor do pescoço do animal.
Ao dar, a princípio, com essa aparição, pois não podia deixar de considerá-la senão
isso - meu espanto e meu terror foram extremos. Mas, afinal, a reflexão veio em meu
auxílio. O gato, lembrava-me, tinha sido enforcado num jardim, junto da casa. Ao
alarme de fogo, esse jardim se enchera imediatamente de povo e alguém deve ter
cortado a corda que prendia o animal à árvore e o lançara por uma janela aberta
dentro de meu quarto. Isto fora provavelmente feito com o propósito de desper-
tar-me. A queda de outras paredes tinha comprimido a vítima de minha crueldade
de encontro à massa do estuque, colocado de pouco, cuja cal, com as chamas e o
amoníaco do cadáver, traçara então a imagem tal como a vimos.
Embora assim prontamente procurasse satisfazer a minha razão, senão de todo a
minha consciência, a respeito do surpreendente fato que acabo de narrar, nem por
isso deixou ele de causar profunda impressão na minha imaginação. Durante me-
ses, eu não me pude libertar do fantasma do gato e, nesse período, voltava-me ao
espírito um vago sentimento que parecia remorso, mas não era. Cheguei a ponto de
lamentar a perda do animal e de procurar, entre as tascas ordinárias que eu agora
habitualmente freqüentava, outro bicho da mesma espécie e de aparência um tanto
semelhante com que substituí-lo.
Certa noite, sentado, meio embrutecido, num antro mais que infame, minha aten-
ção foi de súbito atraída para uma coisa preta que repousava em cima de um dos
imensos barris de genebra ou de rum que constituíam a principal mobília da sala.
Estivera a olhar fixamente para o alto daquele barril, durante alguns minutos, e o
que agora me causava surpresa era o fato de que não houvesse percebido mais
cedo a tal coisa ali situada.
Aproximei-me e toquei-a com a mão um gato preto, um gato bem grande, tão gran-
de como Plutão, e totalmente semelhante a ele, exceto em um ponto. Plutão não
tinha pêlos brancos em parte alguma do corpo, mas este gato tinha uma grande,
embora imprecisa, mancha branca cobrindo quase toda a região do peito.
Logo que o toquei, ele imediatamente se levantou, ronronou alto, esfregou-se con-
tra minha mão e pareceu satisfeito com o meu carinho. Era pois, aquela a criatura
mesma que eu procurava. Imediatamente, tentei comprá-lo ao taverneiro, mas este
disse que não lhe pertencia o animal, nada sabia a seu respeito e nunca o vira antes.
Continuei minhas carícias, e, quando me preparei para voltar para casa, o animal
deu mostras de querer acompanhar-me. Deixei que assim o fizesse, curvando-me,
às vezes, e dando-lhe palmadinhas, enquanto seguia. Ao chegar à casa, ele imedia-
tamente se familiarizou com ela e se tornou desde logo grande favorito de minha
mulher. De minha parte, depressa comecei a sentir despertar-se em mim antipatia
contra ele. Isto era, precisamente, o reverso do que eu tinha previsto, mas - não sei
como ou por quê - sua evidente amizade por mim antes me desgostava e abor-
recia. Lenta e gradativamente esses sentimentos de desgosto e aborrecimento se
transformaram na amargura do ódio. Evitava o animal; certa sensação de vergonha
e a lembrança de minha antiga crueldade impediam-me de maltratá-lo fisicamente.
Durante algumas semanas abstive-me de bater-lhe ou de usar contra ele de qual-
quer outra violência; mas gradualmente, bem gradualmente, passei a encará-lo com
indizível aversão e a esquivar-me, silenciosamente, à sua odiosa presença, como a
um hálito pestilento. O que aumentou sem dúvida meu ódio pelo animal foi a des-
coberta, na manhã seguinte à em que o trouxera para casa, de que como Plutão, fora
também privado de um de seus olhos. Essa circunstância, porém, só fez aumentar
o carinho de minha mulher por ele; ela, como já disse, possuía, em alto grau, aquela
humanidade de sentimento que fora outrora o traço distintivo e a fonte de muitos
96 - 97

dos meus mais simples e mais puros prazeres. Com a minha aversão àquele gato,
porém, sua predileção por mim parecia aumentar. Acompanhava meus passos com
uma pertinácia que o leitor dificilmente compreenderá. Em qualquer parte onde me
sentasse, enroscava-se ele debaixo de minha cadeira ou pulava sobre meus joelhos,
cobrindo-me com suas carícias repugnantes. Se me levantava para andar, metia-se
entre meus pés, quase a derrubar-me, ou cravando suas longas e agudas garras em
minha roupa, subia dessa maneira até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse
o desejo ardente de matá-lo com uma pancada, era impedido de fazê-lo, em parte
por me lembrar de meu crime anterior mas, principalmente - devo confessá-lo sem
demora -, por absoluto pavor do animal. Esse pavor não era exatamente um pavor
de mal físico e, contudo, não saberia como defini-lo de outra forma. Tenho quase
vergonha de confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso, tenho quase vergonha
de confessar que o terror e o horror que o animal me inspirava tinham sido aumenta-
dos por uma das mais simples quimeras que seria possível conceber. Minha mulher
chamara mais de uma vez minha atenção para a natureza da marca de pêlo branco
de que falei e que constituía a única diferença visível entre o animal estranho e o
que eu havia matado. O leitor há de recordar-se que esta mancha, embora grande,
fora a princípio de forma bem imprecisa. Mas por leves gradações, gradações quase
imperceptíveis e que, durante muito tempo, a razão forcejou para rejeitar como ima-
ginárias, tinha afinal assumido uma rigorosa precisão de contorno. Era agora a repro-
dução de um objeto que tremo em nomear e por isso, acima de tudo, eu detestava e
temia o monstro e ter-me-ia livrado dele, se o ousasse. Era agora, digo, a imagem de
uma coisa horrenda, de uma coisa apavorante. . . a imagem de uma forca!
Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte! E então eu
era em verdade um desgraçado, mais desgraçado que a própria desgraça humana. E
um bronco animal, cujo companheiro eu tinha com desprezo destruído, um bronco
animal preparava para mim - para mim, homem formado à imagem do Deus Altís-
simo - tanta angústia intolerável! Ai de mim! Nem de dia nem de noite era-me dado
mais gozar a bênção do repouso! Durante o dia, o bicho não me deixava um só mo-
mento e, de noite, eu despertava, a cada instante, de sonhos de indizível pavor, para
sentir o quente hálito daquela coisa no meu rosto e o seu enorme peso, encarnação
de pesadelo, que eu não tinha forças para repelir, oprimindo eternamente o meu co-
ração! Sob a pressão de tormentos tais como estes, os fracos restos de bondade que
haviam em mim sucumbiram. Meus únicos companheiros eram os maus pensamen-
tos, os mais negros e maléficos pensamentos. O mau-humor de meu temperamento
habitual aumentou, levando-me a odiar todas as coisas e toda a humanidade. Minha
resignada esposa, porém, era a mais constante e mais paciente vítima das súbitas,
freqüentes e indomáveis explosões de uma fúria a que eu agora me abandonava ce-
gamente. Certo dia ela me acompanhou, para alguma tarefa doméstica, até a adega
do velho prédio que nossa pobreza nos compelira a ter de habitar. O gato desceu os
degraus seguindo-me e quase me lançou ao chão, exasperando-me até a loucura.
Erguendo um machado e esquecendo na minha cólera o medo pueril que tinha até
ali sustido minha mão, descarreguei um golpe no animal, que teria, sem dúvida, sido
instantaneamente fatal se eu o houvesse assestado como desejava. Mas esse golpe
foi detido pela mão de minha mulher. Espicaçado por essa intervenção, com uma rai-
va mais do que demoníaca, arranquei meu braço de sua mão e enterrei o machado
no seu crânio. Ela caiu morta imediatamente, sem um gemido.
Executado tão horrendo crime, logo e com inteira decisão entreguei-me à tarefa de
ocultar o corpo. Sabia que não podia removê-lo da casa nem de dia nem de noite,
sem correr o risco de ser observado pelos vizinhos. Muitos projetos me atravessa-
vam a mente. Em dado momento pensei em cortar o cadáver em pedaços miúdos
e queimá-los. Em outro, resolvi cavar uma cova para ele no chão da adega. De novo,
deliberei lançá-lo no poço do pátio, metê-lo num caixote, como uma mercadoria,
com os cuidados usuais, e mandar um carregador retirá-lo da casa. Finalmente, deti-
ve-me no que considerei um expediente bem melhor que qualquer um destes. De-
cidi emparedá-lo na adega, como se diz que os monges da Idade média empareda-
vam suas vítimas. Para um objetivo semelhante estava a adega bem adaptada. Suas
paredes eram de construção descuidada e tinham sido ultimamente recobertas, por
completo, de um reboco grosseiro, cujo endurecimento a umidade da atmosfera
impedira. Além disso, em uma das paredes havia uma saliência causada por uma
falsa chaminé ou lareira que fora tapada para não se diferençar do resto da adega.
Não tive dúvidas de que poderia prontamente retirar os tijolos naquele ponto, in-
troduzir o cadáver e emparedar tudo como antes, de modo que olhar algum pudes-
se descobrir qualquer coisa suspeita. E não me enganei nesse cálculo. Por meio do
um gancho, desalojei facilmente os tijolos e, tendo cuidadosamente depositado o
corpo contra a parede interna, sustentei-o nessa posição, enquanto, com pequeno
trabalho, repus toda a parede no seu estado primitivo. Tendo procurado argamassa,
areia e fibra, com todas as precauções possíveis, preparei um estuque que não podia
ser distinguido do antigo e com ele, cuidadosamente, recobri o novo entijolamento.
Quando terminei, senti-me satisfeito por ver que tudo estava direito. A parede não
apresentava a menor aparência de ter sido modificada. Fiz a limpeza do chão, com o
mais minucioso cuidado. Olhei em torno com ar triunfal e disse a mim mesmo: “Aqui,
pelo menos pois, meu trabalho não foi em vão!” Tratei, em seguida, de procurar o
animal que fora causa de tamanha desgraça, pois resolvera afinal decididamente
matá-lo. Se tivesse podido encontrá-lo naquele instante, não poderia haver dúvida
a respeito de sua sorte. Mas parecia que o manhoso animal ficara alarmado com a
violência de minha cólera anterior e evitava arrostar a minha raiva do momento.
É impossível descrever ou imaginar a profunda e abençoada sensação de alívio que
a ausência da detestada criatura causava no meu íntimo. Não me apareceu durante
a noite. E assim, por uma noite pelo menos, desde que ele havia entrado pela casa,
dormi profunda e tranqüilamente. Sim, dormi, mesmo com o peso de uma morte na
alma. O segundo e o terceiro dia se passaram e, no entanto, o meu carrasco não apa-
receu. Mais uma vez respirei como um livre. Aterrorizado, o monstro abandonara a
casa para sempre! Não mais o veria! Minha ventura era suprema! Muito pouco me
98 - 99

perturbava a culpa de minha negra ação. Poucos interrogatórios foram feitos e tinham
sido prontamente respondidos. Dera-se mesmo uma busca, mas, sem dúvida, nada foi
encontrado. Considerava assegurada a minha futura felicidade. No quarto dia depois
do crime, chegou, bastante inesperadamente à casa um grupo de policiais, que pro-
cedeu de novo a investigação dos lugares. Confiando, porém, na impenetrabilidade
do meu esconderijo, não senti o menor incômodo. Os agentes ordenaram-me que os
acompanhasse em sua busca. Nenhum escaninho ou recanto deixaram inexplorado.
Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à adega. Nenhum músculo meu estre-
meceu. Meu coração batia calmamente, como o de quem dorme o sono da inocência.
Caminhava pela adega de ponta a ponta; cruzei os braços no peito e passeava tran-
qüilo para lá e para cá. Os policiais ficaram inteiramente satisfeitos e prepararam-se
para partir. O júbilo de coração era demasiado forte para ser contido. Ardia por dizer
ao menos uma palavra, a modo de triunfo, e para tornar indubitavelmente segura a
certeza neles de minha inculpabilidade. - Senhores - disse, por fim, quando o grupo
subia a escada - sinto-me encantado por ter desfeito suas suspeitas. Desejo a todos
saúde e um pouco mais de cortesia. A propósito, cavalheiros, esta é uma casa muito
bem construída. . . (no meu violento desejo de dizer alguma coisa com desembaraço,
eu mal sabia o que ia falando). Posso afirmar que é uma casa excelentemente bem
construída. Estas paredes... já vão indo, senhores?. . . estas paredes estão solidamente
edificadas. Por simples frenesi de bravata, bati pesadamente com uma bengala que
tinha na mão justamente naquela parte do entijolamento, por trás do qual estava o
cadáver da mulher de meu coração. Mas praza a Deus proteger-me e livrar-me das
garras do demônio! Apenas mergulhou no silêncio a repercussão de minhas panca-
das e logo respondeu-me uma voz do túmulo. Um gemido, a princípio velado e entre-
cortado como o soluçar de uma criança, que depois, rapidamente se avolumou, num
grito prolongado, alto e contínuo, extremamente anormal e inumano, um urro, um
guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, como só do Inferno se pode
erguer a um tempo, das gargantas dos danados na sua agonia, e dos demônios que
exultam na danação.
Loucura seria falar de meus próprios pensamentos. Desfalecendo, recuei até a pa-
rede oposta. Durante um minuto, o grupo que se achava na escada ficou imóvel,
no paroxismo do medo e do pavor. Logo depois, uma dúzia de braços robustos se
atarefava em desmantelar a parede. Ela caiu inteiriça. O cadáver, já grandemente
decomposto, e manchado de coágulos de sangue, erguia-se, ereto, aos olhos dos
espectadores. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada, o olho solitário
chispante, estava assentado o horrendo animal cuja astúcia me induzira ao crime e
cuja voz delatora me havia apontado ao carrasco.
Eu tinha emparedado o monstro no túmulo!
Fonte: Edição especial para distribuição gratuita pela Internet, através da Virtualbooks. Disponível
em:<http://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/vaniacarraro/files/2013/04/o_gato_preto-allan_poe.pdf>.
Responda:
1. De que tipo é o narrador do texto? Em que isso influencia a percepção do leitor
sobre a obra?
2. Quem são os personagens do conto? São redondos, planos, caricatos?
3. Há muitos símbolos no conto. Você pode citar alguns e explicar a relevância de-
les no enredo?
4. Qual é o nó, o clímax e o desfecho da narrativa? Cite excertos para fundamentar
sua resposta.
5. O conto possui um ambiente gótico, típico dos contos poeanos. Retire do texto
dez vocábulos que auxiliam a construção de um ambiente de terror e suspense.
6. A ambientação de O Gato Preto é reflexiva, a partir da mente doentia do prota-
gonista-narrador. Mas, em se tratando de espaço, onde acontecem a narrativa e
a narração, respectivamente?
100 - 101

MATERIAL COMPLEMENTAR

2 Cena clímax e desfecho de Psicose, de Alfred Hitchcock:


<http://www.youtube.com/watch?v=xWHYmNrAFlI>.
Não assista caso não tenha assistido ao filme, pois esta cena contém spoiler 2.

Spoiler tem origem no verbo spoil, que significa estragar, e é um termo de origem inglesa. Spoiler é quando
2

alguma fonte revela informações sobre o conteúdo de algum livro, ou filme, sem que a pessoa tenha visto. O
spoiler é uma espécie de estraga-prazeres, pois ele é aquele indivíduo que conta os finais, ou o que vai ocorrer
com determinado personagem em filmes, séries, livros, sem saber se a outra pessoa realmente quer saber.

Material Complementar
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

O GÊNERO LÍRICO E SEUS

IV
UNIDADE
OPERADORES

Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender as relações entre lirismo, poética e poesia.
■■ Observar e conhecer os operadores de leitura poética, como a rima
e o ritmo, o verso, a escansão, a métrica, bem como as principais
figuras de linguagem.
■■ Conhecer e reconhecer as principais formas poéticas.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O Lirismo
■■ O Verso
■■ A Escansão
■■ A métrica
■■ Ritmo e Rima
■■ Figuras de Linguagem
■■ Formas poéticas
104 - 105

INTRODUÇÃO

O poema é um todo. É a expressão de uma visão subjetiva do mundo conden-


sada em poucas palavras, em cujo arranjo forma um todo indivisível e vivo. É
um todo em que tudo é significativo, desde o fonema até o todo do texto, desde
o aspecto gráfico até o elemento mais abstrato ou ideal.
Para analisar bem, interpretar bem um poema, é necessário analisá-lo no
seu todo e em suas partes (estrofes etc.).
Desta forma, nesta unidade, iremos estudar o gênero lírico e seus principais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

operadores de leitura e análise: rima, verso, metro etc.


Além disso, como o poema é a expressão de uma intuição ou visão sub-
jetiva do mundo através de figuras de linguagem, há necessidade de conhecer
diversos tipos de figuras de linguagem que integram o poema, desde o aspecto
gráfico até seu aspecto de conteúdo de sentido ideológico, existencial ou sen-
timental. Insisto: como o poema é a expressão do eu lírico, da subjetividade,
pela palavra metaforizada (conotativa, polissêmica, atualizada, inovadora...), é
necessário conhecer cada uma das figuras de linguagem para poder identificá-
-las no compreender seu significado no poema, como linguagem expressiva de
um mundo transfigurado ou transcendente, ou como transfiguração do mundo
empírico pela linguagem.
Para tanto, iremos estudar as figuras de linguagem ou figuras poéticas con-
forme os níveis ou estratos da estrutura do poema, ou seja, nível gráfico, nível
fônico, nível lexical, nível sintático e nível semântico.

O LIRISMO

Você sabe o que é lirismo? Se não sabe, tenho que dizer que, provavelmente, já
o praticou.
Alguma vez, apaixonado(a), já exaltou seu sentimentos pessoais acerca
da(o) amada(o)? Sim? Então agora você já sabe o que é lirismo: A exaltação dos

Introdução
IV

sentimentos pessoais. O lirismo, como tema e estilo, remonta a épocas remotas,


e como tal, deu origem à arte do fazer poesia.
A poesia é uma forma de arte literária anterior à escrita, realizada a fim de
memorizar e ser transmitida oralmente. Esta estratégia mnemônica foi utilizada
pelas sociedades ágrafas, antes da chegada da “poesia” europeia, pelo menos em
sua forma estrutural.
A palavra poesia advém do termo grego poiesis, que significa criar, no sentido
de imaginar. Sua definição sempre teve controvérsias, e foi tema de debates de
grandes filósofos e pensadores da Antiguidade, como Platão, Aristóteles, Cícero,

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Dionísio de Halicarnasso, Petrônio, Lucano etc. De acordo com Massaud Moisés,
em seu livro A Criação Literária – Poesia (1984), estes pensadores, no geral, dis-
tinguiam a poesia (O gênero lírico) da prosa (O gênero narrativo), pelo fato da
primeira exprimir-se em verso.
Contudo, Moisés (2004) pontua que a diferença entra prosa e poesia não está
apenas nas posições das palavras, isto é, em estar em verso ou não, mas no foco,
já que “a poesia tem por objeto o ‘eu’, enquanto a prosa, o "não-eu".
[...] a poesia é a comunicação, a expressão do “eu”. Como a palavra é
signo literário por excelência, inferimos que a poesia é a expressão do
“eu” pela palavra. Para bem compreender o significado desse conceito,
importa salientar que dois verbos servem para exprimir a situação que o
poeta assume em face do mundo: ser e ver. Na perspectiva do primeiro,
o “eu” poético exerce ao mesmo tempo dupla função, a de espectador e
a de ator, isto é, simultaneamente sujeito e objeto (MOISES, 2004, p.85).

Desta forma, voltamos ao lirismo, que é a expressão desse “eu”.

“Não há ninguém, mesmo sem cultura, que não se torne poeta quando o
Amor toma conta dele” (Platão)

O lirismo, em Língua Portuguesa, teve sua primeira aparição na poesia trova-


doresca, com as cantigas de amor (nas quais o poeta exprimia uma forte admiração

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


106 - 107

e submissão em relação à mulher amada), as can-


tigas de amigo (similares às de amor, mas cujo
eu lírico é feminino), as cantigas de escár-
nio e maldizer, ambas satíricas. De poética
muito própria, esse lirismo medieval era
principalmente marcado pela metrifica-
ção e pelos agrupamentos estróficos,
diferentemente do que se veria,
por exemplo, durante o período
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seguinte, o Classicismo.
Desse modo, veremos na
sequência as estruturas que
marcam o gênero lírico em
suas mais diversas formas. ©shutterstock

O VERSO

Em latim, a palavra versus (que deu origem a verso) significava uma linha, um
sulco; assim convencionou-se chamar de verso a sequência de palavras, numa
determinada extensão, que organizam um poema, ou seja, a cada uma das linhas
de um poema chamamos verso.
Ocorre que a cada época distinta, os versos sofreram modificações em sua
estrutura e estilo, saindo de versos com quantidade fixa de sílabas (5 ou 7, na poesia
medieval; 10 na poesia clássica e assim por diante) para chegar aos versos de tama-
nhos e formatos distintos encontrados nas poesias moderna e contemporânea.
Ao conjunto de versos chamamos estrofe, elemento que pode variar de poema
para poema, ou seja, há poemas de estrofe única e poemas com várias estrofes.
Além disso, as estrofes também variam de tamanho: dois versos – dístico; três
versos – terceto; quatro versos – quarteto; cinco versos – quinteto; seis versos
– sexteto e assim por diante. Já em relação ao tamanho do verso utilizado pelo

O Verso
IV

poeta, chama-se metro, portanto quando se vai falar acerca do tipo de verso de
cada estilo literário, fala-se em métrica.

A ESCANSÃO

Para sabermos qual a métrica de um poema, é preciso fazer a escansão, isto é,

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contar o número de sílabas do verso. Nesse contexto, é importante lembrar que
a contagem de sílabas poéticas difere da contagem gramatical; isso porque gra-
maticalmente falando contamos todas as sílabas das palavras, mas na contagem
poética, contamos apenas até a sílaba tônica da última palavra do verso. Além
disso, nas sílabas poéticas, levamos em conta a pronúncia, o que pode fazer com
que sílabas gramaticalmente separadas possam ser tratadas como uma só sílaba,
já que sonoramente se pronunciam juntas; ou que sons que deveriam estar em
uma única sílaba sejam pronunciados separadamente. Vejamos os célebres ver-
sos de Camões:
“Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer”

Se fôssemos fazer uma contagem de sílabas gramaticais nesses versos, teríamos:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
“A/mor/ é/ fo/go/ que/ ar/de/ sem/ se/ ver;

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
É/ fe/ri/da/ que/ dói/ e/ não/ se/ sen/te;

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
É/ um/ con/ten/ta/men/to/ des/con/ten/te

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


108 - 109

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
É/ dor/ que/ de/sa/ti/na/ sem/ do/er”

Ou seja, 11 sílabas gramaticais nos três primeiros versos e 10 sílabas no último.


Já ao fazermos a contagem de sílabas poéticas, teremos:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1“A/mor/ é/ fo/go/ que ar*/de/ sem/ se/ ver;
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1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
2 É/ fe/ri/da/ que/ dói/ e/ não/ se/ sen/te;

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
3 É/ um/ con/ten/ta/men/to/ des/con/ten/te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
4 É/ dor/ que/ de/sa/ti/na/ sem/ do/er”

Veja, pois, que as sílabas “que” e “ar”, do verso um, que são gramaticalmente
separadas, são lidas juntas, contando assim como uma só sílaba poética [cha-
mamos isto de elisão].
Já nos versos 2 e 3, as sílabas destacadas são desprezadas na contagem métrica,
pois estão depois da sílaba tônica da palavra. Isso faz com que o poema, embora
tenha número diferente de sílabas gramaticais em cada verso, tenha neles o
mesmo número de sílabas poéticas: 10.

A Escansão
IV

ELISÃO, HIATO, SINERESE, DIERÉSE:


A Elisão é, em um sentido estrito, a supressão oral e gráfica de vogais átonas
na mesma sílaba métrica. No entanto, em um sentido amplo, pode também
ser chamada de sinalefa.
A Elisão acontece quando se fundem vogais, no encontro de dois vocábulos,
constituindo, assim, uma “sílaba sonora”. Exemplo:

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“De amor” = De a/mor
“Depois que a banda passou” = .../quea/...
Contudo, se a palavra termina por nasal e a seguinte começa por vogal,
pode acontecer a supressão da ressonância nasal para permitir a elisão. Este
artifício é chamado de Elipse. Exemplo:
“Co’a face na mão eu te vejo ao luar” - com a = co’a
“A virge’ a não quer deixar”
O hiato, isto é, dois sons vocálicos, estão em sílabas vizinhas, sendo duas
vogais que se repelam e permanecem independentes, também precisam
ser observadas na escansão, a fim de metrificar corretamente.
“Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta...” = .../é esta/...
Já a sinerese é a junção de vogais no interior de uma palavra, ou em outras
palavras, é a transformação de um hiato em ditongo:
“Um raio a fecundá-la...” – um/raí/oa/fé/cun/dá/la
“Em comer os hiatos!” – em/co/mer/os/hia/tos
Por fim, a dierése é, de uma forma simples, a transformação de um ditongo
num hiato.
“Saudade! gosto amargo de infelizes” = Sa/u/da/de.
Esses recursos visam o aumento ou diminuição do número de sílabas poé-
ticas. A escolha das palavras leva em consideração estes quatro elementos.

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


110 - 111

A MÉTRICA

Quanto aos metros, existe uma grande variedade. Normalmente, até 12 sílabas
poéticas (tipo mais raro) costuma-se contar como métrica fixa, a partir disso
considera-se versos livres, ou seja, não metrificados. Isso porque quando o
poeta usa um metro maior do que 12, via de regra, ele o faz em um texto em
que cada verso possui número de sílabas diferentes. Vejamos então os tipos
de metros:
Uma sílaba: tipo pouco comum, vê-se no poema a seguir, de Cassiano
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Ricardo. Observe que o autor usou a síntese dos versos como forma de reforçar
a ideia já expressa pelo título:
Serenata Sintética
Rua
Torta.

Lua
Morta.

Tua
Porta.

Duas sílabas: também constituem versos pouco usuais. Observe que o poema
concreto a seguir, de Augusto de Campos, tem dois versos monossílabos — o
primeiro e o último — os demais são dissílabos. Desse modo, o poeta consegue
fazer com que a forma do texto relacione-se com o sentido, o que era um pres-
suposto da poesia concreta, movimento estético ao qual pertenceu Augusto de
Campos e do qual ele foi fundador. Veja que a partir da palavra forma, que ele
toma como base, Campos constrói várias outras, derivadas da primeira, mas
garantindo que tudo, após “transformado”, volte à mesma forma.

A Métrica
IV

forma
reforma
disforma
transforma
conforma
informa
forma

Três sílabas: tipo de verso mais musical, ritmado, já que haverá mais de uma

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sílaba tônica no verso. Aliás, a partir daqui já se pode introduzir um novo con-
ceito, o Esquema Rítmico (E.R), que consiste em observar a alternância entre
sílabas fortes e fracas dentro dos versos. Nos trissílabos, o E.R é 3 (1-3), ou seja,
com ênfase na primeira e terceira sílabas. Observe isso no excerto do texto Trem
de Ferro, de Manuel Bandeira:

“Bota fogo
Na fornalha
que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Muita força”

Nesse poema, Bandeira usa uma métrica variada, mas toda ela foi trabalhada
com a intenção de que a sonoridade do poema evoque a sonoridade de um trem
em movimento, desde a partida mais lenta até o ponto em que ele está em velo-
cidade. Nesse momento aqui destacado, a métrica contribui para sentirmos que
o trem está começando a ganhar velocidade. É fácil perceber isso quando con-
trapomos este trecho ao primeiro, cujo metro é diferente, observe o início do
poema, até o ponto que destacamos anteriormente:

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


112 - 113

Trem de Ferro
1 Ca/fé/ com /pão
2 Café com pão
3 Café com pão
4 Virge Maria que foi isso maquinista?
5 Agora sim
6 Café com pão
7 Agora sim
8 Voa, fumaça
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9 Corre, cerca
10 Ai seu foguista
11 Bota fogo
12 Na fornalha
13 Que eu preciso
14 Muita força
15 Muita força
16 Muita força

Repare que os três primeiros versos dão a nítida sensação de ver o trem entrando
em movimento. O verso quatro, de metro maior, reproduz o apito do trem (o
que é conseguido também com o trabalho da repetição do som vocálico i). Veja
que o verso remete à ideia de que o trem está ganhando velocidade o que vai se
reforçando nos versos subsequentes.
Quatro sílabas: este tipo de verso possui vários esquemas rítmicos diferen-
tes, o que possibilita ao autor brincar com a sonoridade do texto, flexibilizando
as palavras que ele pretende evidenciar. Observe:

“Noites perdidas, E.R. 4(1-4)


não te lamento: E.R. 4(1-4)
embarco a vida E.R. 4(2-4)
no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento, E.R. 4(2-4)

A Métrica
IV

puro e sem nada,


- rosa encarnada,
intacta ao vento.”
(Cecília Meireles)

Cinco sílabas: também conhecidos como Redondilhas menores, fazem parte da


Medida Velha, assim chamada porque foi a utilizada durante o período medie-
val da literatura portuguesa. Vejamos um excerto do poema José, de Carlos
Drummond de Andrade:

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E a/go/ra/, Jo/sé?
A/ fes/ta a/ca/bou,
a/ luz/ a/pa/gou,
o/ po/vo/ su/miu,
a/ noi/te es/fri/ou,
e a/go/ra/, Jo/sé?
e a/go/ra/, vo/cê?

Como se pôde ver, esse metro é altamente musical, por isso foi tão amplamente
usado na época medieval e também por isso foi retomado por autores dos mais
variados períodos que pretendiam evocar a musicalidade em seus versos. Observe,
por exemplo, que no texto a seguir, de Gonçalves Dias, a cadência ditada pela
métrica evoca os tambores indígenas:

Canção do Tamoio (excerto)


(Natalícia)

I
Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


114 - 115

Que os fortes, os bravos


Só pode exaltar.

II
Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
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Tem certa uma presa,


Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

Seis sílabas: assim como os versos de cinco sílabas, esses também são extrema-
mente musicais. Desse modo, muitos foram os poetas que deles fizeram uso para
criar a sonoridade em seu texto. Manuel Bandeira, por exemplo, embora não fosse
um poeta que utilizasse sempre métricas regulares, utilizou esse tipo de verso
em seus poemas a fim de reforçar neles a musicalidade. Um dos clássicos textos
em que Bandeira faz este uso é o poema Debussy. Trata-se de um texto muito
singelo, quase ingênuo, em que se vê retratada uma criança que brinca com um
novelo de lã, enquanto adormece em uma cadeira de balanço. Para fazer, então,
com que o leitor sinta o ritmo da cadeira, Bandeira utilizou no poema majorita-
riamente versos de seis sílabas e, para completar a musicalidade, deu ao texto o

A Métrica
IV

nome de um dos maiores compositores eruditos do século XIX: Debussy.


Observe o poema:
Debussy

Pa/ra/ cá/, pa/ra/ lá... (ER 3-6)


Pa/ra/ cá/, pa/ra/ lá...
Um novelozinho de linha...
Pa/ra/ cá/, pa/ra/ lá...
Pa/ra/ cá/, pa/ra/ lá...

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Oscila no ar pela mão de uma criança...
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
- Psiu... -
Pa/ra/ cá/, pa/ra/ lá...
Para cá e...

Veja, portanto, que os versos de seis sílabas, com o ritmo marcando a terceira e
a sexta sílabas, contribuem muito para a musicalidade, que é completada, claro,
pelos diferentes metros utilizados.
Sete Sílabas: ao lado dos versos de cinco sílabas, estes versos completam a
chamada medida velha e não só foram largamente usados durante a Idade Média,
como também tiveram cabal importância na obra de muitos poetas românticos.
Além disso, a musicalidade que lhes é peculiar torna os versos de fácil memori-
zação, devido a isso, músicas e quadrinhas populares e folclóricas também são
marcadas pela utilização dos heptassílabos. Vejamos alguns casos:

Batatinha quando nasce


1 2 3 4 5 6 7
Ba/ta/ti/nha/quan/do/nas/ce
1 2 3 4 5 6 7
es/pa/lha/ra/mas/pe/lo/chão*
1 2 3 4 5 6 7
me/ni/ni/nha/quan/do/dor/me

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


116 - 117

1 2 3 4 5 6 7
põe/a/mão/no/co/ra/ção

* (veja que essa seria a forma correta do verso, mas a versão popular o transformou
em um verso de sete sílabas, assim todos dizem “Esparrama” em vez de “espalha
ramas”, afinal a última sílaba que conta, na contagem poética, é a última tônica)

A Banda – Chico Buarque


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1 2 3 4 5 6 7
Es/ta/va a/to/a/na/vi/da

1 2 3 4 5 6 7
O /meu/a/mor/me/cha/mou

1 2 3 4 5 6 7
Pra/ver/a/ban/da/pas/sar

1 2 3 4 5 6 7
Can/tan/do/coi/sas/de a/mor

Por fim, observe a cadência que Manuel Bandeira impôs ao seu texto ao escolher
as redondilhas maiores como métrica. Veja, inclusive, que o próprio poema usa
o conceito de redondilha, o que permite perceber que o poeta deliberadamente
escolheu essa métrica para reforçar a intenção trabalhada no texto:

Poemeto Erótico – Manuel Bandeira

Teu/ cor/po /cla/ro e /per/fei/to,


- Teu/ cor/po /de/ ma/ra/vi/lha
Que/ro/ po/ssuí-/-lo/ no/ lei/to
Es/trei/to /da/ RE/DON/DI/LHA...

A Métrica
IV

Oito sílabas: é um tipo de metro bem incomum, sobretudo, para se encontrar


textos totalmente nele metrificados. É comum, no entanto, em letras de músicas.
Nove sílabas: assim como os versos de 3, 5, 6 e 7 sílabas, estes também são
extremamente musicais. Sem sombra de dúvidas, um dos mais belos exemplos
da boa utilização dos eneassílabos está em Álvares de Azevedo, no Poema “Meu
Sonho”. Observe:
Meu sonho
EU

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Ca/va/lei/ro/ das/ ar/mas/ es/cu/ras,
On/de/ vais/ pe/las/ tre/vas/ im/pu/ras
Com/ a es/pa/da/ san/guen/ta/ na/ mão?
Por/que/ bri/lham/ teus/ o/lhos/ ar/den/tes
E/ ge/mi/dos/ nos /lá/bios/ fre/men/tes
Ver/tem/ fo/go/ do/ teu/ co/ra/ção?

Cavaleiro, quem és? o remorso?


Do corcel te debruças no dorso....
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Observe que a métrica escolhida por Álvares de Azevedo, enfatizando um ritmo


que privilegia a 3ª, a 6ª e a 9ª sílabas, nos permite sentir o trote do cavalo, como
se estivéssemos acompanhando o cavaleiro em sua jornada.
Dez sílabas: os versos decassílabos têm uma importância imensa no universo
poético, isso porque eles não só eram o metro por excelência das antigas epo-
peias, como também, ao serem retomados no Classicismo, estiveram presentes
nos maiores textos daquela época, como os de Camões. Além disso, tornaram-se
a métrica quase exclusiva dos sonetos (poemas de forma fixa construídos sempre
com duas estrofes de quatro versos – quartetos – e duas estrofes de três versos -
tercetos). Quanto ao esquema rítmico, os decassílabos dividem-se em dois tipos:

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


118 - 119

■■ Decassílabos heroicos: recebem este nome porque eram típicos da epo-


peias clássicas, que serviam para narrar os feitos de um herói. Têm as
sílabas tônicas mais importantes recaindo na 6ª e na 10ª sílabas poéticas,
como se vê no soneto a seguir, de Camões:

6 10
Se/te a/nos/ de/ pas/tor/ Ja/cob/ ser/vi/a
6 10
La/bão/, pai/ de/ Ra/quel/, ser/ra/na/ be/la;
6 10
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mas/ não/ ser/vi/a ao/ pai/, ser/vi/a a/ e/la,


6 10
e a/ e/la/ só/ por/ prê/mio /pre/ten/di/a.

Os dias na esperança de um só dia


passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que por enganos


lhe fora assi negada sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,


dizendo: – Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.

Pela escansão dos versos da primeira estrofe, pode-se ver que a métrica é real-
mente decassilábica e que as sílabas em que recai a tônica do esquema rítmico
reforçam palavras centrais para a ideia do texto. Veja que esse poema é uma relei-
tura da história bíblica de Jacó e Raquel, contada no Velho Testamento. Jacó era
primo de Labão e apaixonou-se por sua prima Raquel. Pediu, então, à Labão que
a desse a ele – Jacó – em casamento. Como Raquel era muito moça, Labão pro-
pôs que Jacó trabalhasse sete anos para ele como pastor, sem nada ganhar, para

A Métrica
IV

no fim desse período casar-se com Raquel. Passado o período, Jacó requereu a
noiva e o pai marcou o casamento. Eis que, após a noite de núpcias, ele percebeu
que havia se casado com Lia, a irmã mais velha, e não com Raquel. Ao reclamar
a Labão do engodo que sofrera, este disse a Jacó que não era costume dar a filha
mais nova em casamento antes da mais velha, mas que se ele servisse outros sete
anos, no final desse período receberia também Raquel e assim foi feito. Veja,
portanto, que Camões conferiu todo um lirismo a esse fato que, na realidade, a
história original não contém. Nesse sentido, a escolha do esquema rítmico, com-
binada, claro, com as escolhas vocabulares, contribui para esse lirismo do texto,

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exemplarmente reforçado pelo belíssimo último verso.
Decassílabo sáfico: recebe esse nome em homenagem a Safo, poetisa grega
do século VII a.C., que fez amplo uso deste tipo de verso. Eles consistem em
decassílabos cujas tônicas recaem na 4ª, na 8ª e na 10ª sílabas. Observe o excerto
a seguir, de um poema de Augusto dos Anjos:

A Ideia - Augusto dos Anjos

De on/de e/la/ vem?!/ De /que/ ma/té/ria/ bru/ta 10(4-8-10)


Vem/ es/sa/ luz /que/ so/bre as/ ne/bu/lo/sas*10(4-10)
Cai /de in/cóg/ni/tas/ crip/tas/ mis/te/rio/sas 10 (6-10)
Co/mo as/ es/ta/lac/ti/tes/ du/ma/ gru/ta?!10 (6-10)
Vem /da/ psi/co/ge/né/ti/ca e al/ta/ lu/ta10 (6-10)
Do/ fei/xe/ de/ mo/lé/cu/las/ ner/vo/sas, 10 (6-10)
Que, em /de/sin/te/gra/ções/ ma/ra/vi/lho/sas, 10 (6-10)
De/li/be/ra, e/ de/pois/, quer/ e e/xe/cu/ta! 10 (6-10)

Veja que nesse poema de Augusto dos Anjos, o poeta alterna os tipos de decas-
sílabos, fazendo com que o ritmo contribua para a tensão apresentada pelo tema
do texto. Observe que o primeiro verso é sáfico, valorizando as palavras “vem”,
“matéria”, “bruta”. O segundo verso é o chamado sáfico imperfeito, posto que a
oitava sílaba é átona, o que torna o verso ainda mais quebrado quanto ao ritmo.
Os demais são todos decassílabos heroicos, o que faz com que definitivamente
as alternâncias rítmicas imponham uma leitura que torna o poema sonoramente

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


120 - 121

perturbador, assim como as indagações que ele traz.


Onze sílabas: é também um tipo de métrica pouco comum, na qual o esquema
rítmico pode ser variado, o que dá ao poeta que o utiliza certa flexibilidade para
trabalhar a sonoridade do texto. Um dos clássicos exemplos em que esta métrica
aparece é o poema I - Juca Pirama, de Gonçalves Dias, que veremos a seguir:

juca-pirama [1] (fragmentos)


I
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
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No/ mei/o/ das/ ta/bas/ de a/me/nos/ ver/do/res


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Cer/ca/dos/ de/ tron/cos/ - co/ber/tos/ de/ flo/res,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Al/tei/am/-se os/ te/tos /d’al/ti/va/ na/ção;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
São/ mui/tos/ seus/ fi/lhos,/ nos/ â/ni/mos/ for/tes,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Te/mí/veis/ na/ gue/rra,/ que em/ den/sas/ co/or/tes[2]
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios[3] incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão[4] de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio.
O incenso aspiraram dos seus maracás:[5]
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos[6] lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
[1] Juca-pirama = o que há de morrer
[2] Coortes = batalhões

A Métrica
IV

[3] Prélios = ações


[4] Condão = dom
[5] Maracás = chocalhos
[6] Ignavo = inativo

Doze sílabas: tipo de métrica utilizada pelos poetas clássicos e muito depois
pelos parnasianos, também conhecido como verso alexandrino. Na maioria das
vezes, tem a 6ª sílaba acentuada acompanhada de uma cesura (pausa interna de
leitura). Veja o exemplo no poema de Olavo Bilac:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Inania verba
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Ah!/ quem/ há/ de ex/pri/mir,/ al/ma im/po/ten/te e es/cra/va,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
O /que a/ bo/ca/ não/ diz,/ o /que a/ mão/ não/ es/cre/ve?
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
- Ar/des,/ san/gras,/ pre/ga/da à/ tu/a /cruz,/ e, em/ bre/ve,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
O/lhas,/ des/fei/to em/ lo/do, o/ que/ te/ des/lum/bra/va...

RITMO E RIMA

As noções de métrica e esquema rítmico anteriormente verificadas, somadas ao


uso das figuras de linguagem (que veremos mais à frente) e ao trabalho com as
rimas, são o que constrói o chamado ritmo do poema. Assim, a escolha do autor
por um determinado metro (ou pelo uso de versos livres), a utilização das rimas
ou a ausência delas (construindo-se os chamados versos brancos) e a combina-
ção disso com figuras de efeito sonoro, como as aliterações, assonâncias, por
exemplo, fazem com que se possa ler o poema em uma determinada cadência, a

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


122 - 123

qual servirá de auxílio para o trabalho do tema escolhido pelo poeta. Falta-nos,
portanto, para completar as noções necessárias à percepção do ritmo, estudar
os tipos de rima, que veremos a seguir, e as figuras de linguagem mais impor-
tantes, a serem tratadas no próximo tópico. Vamos às rimas:

RIMAS TOANTES E CONSOANTES

Toante – assemelha-se na repetição apenas de sons vocálicos, presentes na vogal


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tônica da última palavra de cada verso:

Melancolia – Guilherme de Almeida


1 “Sobre um fruto cheiroso e bravo
2 todo pintado de vermelho vivo
3 uma lagarta verde dorme.
4 o silêncio quente do meio-dia
5 respira como o papo da ave. No ar alvo
6 a asa de uma cigarra risca um silvo
7 longo - brilhante - e some.
8 Melancolia.”

Veja que a vogal “a”, do verso 1, rima com a do verso 5; a vogal “i”, do versos 2,
rimas com os versos 4, 6 e 8; e a vogal “o”, do verso 3, rima com o verso 7.
Consoante – assemelha-se na repetição de todas as letras e sons das sílabas
finais dos versos, sendo por isso também chamada de rima perfeita:

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Observe que aqui, todo o final do verso 1 rima com o final do verso 4, enquanto
os finais dos versos 2 e 3 rimam entre si.

Ritmo e Rima
IV

RIMAS AGUDA, GRAVE E ESDRÚXULA

Aguda: rimas de palavras oxítonas; grave: rima de palavras paroxítonas; esd-


rúxula: rimas de palavras proparoxítonas. Observe o poema O mar, a escada e
o homem, de Augusto dos Anjos:

“Olha agora, mamífero inferior,


“À luz da epicurista ataraxia,
“O fracasso de tua geografia

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“E do teu escafandro esmiuçador!

“Ah! Jamais saberás ser superior,


“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o vastíssimo vapor.

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”


E a verticalidade da Escada íngreme:
“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,


Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!

Observe que os versos 1 e 4, 5 e 8 rimam entre si, utilizando palavras oxítonas,


portanto rimas agudas; os versos 2 e 3, 6 e 7 rimam entre si utilizando palavras
paroxítonas, logo rimas graves; já nos versos 9 e 10, para conseguir a sonori-
dade de uma esdrúxula, o poeta utilizou o verbo singrar combinado com um
pronome, para que a sonoridade “singre-me” se assemelhasse à da palavra pro-
paroxítona íngreme.

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


124 - 125

RIMAS RICAS E POBRES

Essa classificação pode ser feita com base em dois critérios:


Gramatical: são pobres as rimas de palavras que pertencem à mesma classe
gramatical e ricas as rimas das que pertencem a classes gramaticais diferentes.
Observe os versos de Gregório de Mattos:

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,


de vossa alta piedade me despido;
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porque quanto mais tenho delinquido,


vos tenho a perdoar mais empenhado.

Repare que, apesar de termos todos os verbos terminados em particípios, eles não
estão se comportando como formas verbais em todos eles. Pecado comporta-se
como verbo, mas empenhado comporta-se como advérbio; já despido e delinquido
comportam-se como verbos. Assim sendo, a rima dos versos 1 e 4 é considerada
rica, pelo critério gramatical, enquanto a dos versos 2 e 3 é considerada pobre.
Fônico: são ricas as rimas cujos termos começam a rimar antes da sílaba
tônica e pobres aquelas em que a rima começa a partir da sílaba tônica. De acordo
com esse critério, todas as rimas do poema anterior são pobres.
Rimas de acordo com suas combinações:
■■ Emparelhadas: ocorrem de duas em duas (AABB).
■■ Alternadas: ocorrem de forma alternada (ABAB).
■■ Interpoladas: ocorrem de forma oposta (ABBA).

Rompe o Poeta com a Primeira Impaciência Querendo Declarar-se e


Temendo Perder Por Ousado – Gregório de Mattos

Anjo no nome, Angélica na cara, A


Isso é ser flor, e Anjo juntamente, B
Ser Angélica flor, e Anjo florente, B
Em quem, se não em vós se uniformara? A

Ritmo e Rima
IV

Quem veria uma flor, que a não cortara A


De verde pé, de rama florescente? B
E quem um Anjo vira tão luzente, B
Que por seu Deus, o não idolatrara? A

Se como Anjo sois dos meus altares, C


Fôreis o meu custódio, e minha guarda, D
Livrara eu de diabólicos azares. C

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Mas vejo, que tão bela, e tão galharda, D
Posto que os Anjos nunca dão pesares, C
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. D

Observe no texto anterior que as rimas A são interpoladas; as rimas B, empare-


lhadas e as rimas C e D são alternadas. A qualquer outra forma de organização
chamamos de rimas misturadas.

FIGURAS DE LINGUAGEM

O trabalho de reconhecimento das figuras de linguagem é essencial para a boa


interpretação de um texto poético. Entretanto, não basta perceber que a figura
está no poema, é preciso relacioná-la com a intenção textual, para descobrir com
que propósito o autor utilizou aquela forma de expressão. A seguir, veremos as
figuras de linguagem mais comumente utilizadas.
■■ Inversão: consiste em inverter a ordem sintática. Houve um tempo em
que essa figura era dividida em três: hipérbato (inversão leve, facilmente
desfeita); anástrofe (inversão moderada) e sínquise (inversão complexa
dos termos). Contemporaneamente, porém, convencionou-se chamá-las
todas de inversão. Veja o exemplo do Hino Nacional:

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


126 - 127

“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas


De um povo heroico o brado retumbante”

Observe que a ordem sintática natural seria:

As margens plácidas do Ipiranga ouviram


O brado retumbante de um povo heroico

Normalmente as inversões têm por finalidade trabalhar a sonoridade do texto,


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permitindo que determinados termos rimem entre si, além disso, elas conferem
certa complexidade ao poema, algo bastante desejável em alguns estilos literá-
rios. Vejamos outros exemplos:

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
(Luís de Camões)
■■ Pleonasmo: repetição enfática, redundância aceitável:

“Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo” (Cazuza/Lobão).
“A mim me parece que sua opinião está equivocada”.
O uso destes pleonasmos é comum no cotidiano assim como na poesia, sem-
pre com a intenção de frisar uma ideia. Observe que há um tipo de pleonasmo não
aceito pela norma culta da língua, aquele a que chamamos de pleonasmo vicioso,
o qual consiste em fazer repetições óbvias, tais como: entrar para dentro, subir
para cima, elo de ligação, hemorragia de sangue. Esse tipo de pleonasmo deve ser
evitado, já o pleonasmo estilístico, apresentado anteriormente, tem grande valia.
■■ Polissíndeto: repetição enfática de um conectivo, normalmente o conec-
tivo [e], mas não exclusivamente ele:

“De tudo ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto” ( Vinícius de Morais)
Observe que a repetição do conectivo torna a leitura mais lenta, mais pausada,

Figuras de Linguagem
IV

o que no caso deste texto de Vinícius de Morais ajuda a intensificar a dimen-


são do amor.
■■ Assíndeto: ausência de conectivos na sequência de orações. Ao contrá-
rio do polissíndeto, serve para dar agilidade à leitura, criando um ritmo
mais frenético para os fatos, como se vê a seguir:

Poema Tirado de uma Notícia de Jornal


(Manuel Bandeira)
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
■■ Anáfora: repetição da mesma palavra ou expressão no início de cada
verso ou frase. Assim como todas as figuras de repetição, é amplamente
utilizada para frisar ideias e marcar ritmo:

“Eu não quero ver você cuspindo ódio


Eu não quero ver você fumando ópio, pra sarar a dor
Eu não quero ver você chorar veneno” (Zeca Baleiro)

■■ Aliteração: repetição de fonemas consonantais. Observe bem que esta


figura refere-se à fonema, portanto independe da letra que o represente,
o som é que tem de ser repetido:

“E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.” (João Cabral)

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


128 - 129

Neste trecho do poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Mello Neto, é pos-
sível observar que as aliterações reproduzem o som da velha máquina de costura,
aquela que tinha um pedal. Assim, a parte fonética do poema reforça o conte-
údo de que a manhã está sendo tecida.
■■ Assonância: repetição de fonemas vocálicos:

“Pra onde essa onda vai?


De onde essa onda vem?
Eu não sei o que ela me traz
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Mas o meu desejo é que me leve também” (Moska)


Repare como as assonâncias do som nasal /õ/ nos fazem ter a impressão de sen-
tir o movimento de vaivém da onda. A assonância trabalha bastante, também,
com aquilo que o poeta Verlaine chamou de teoria das correspondências. Isto é,
os sons correspondem a cores e sentimentos. Assim, vogais abertas com a, é, ó
sugerem sentimentos alegres e cores claras. Já as vogais fechadas ou nasais, como
ã, â, õ, ô, u associam-se a sentimentos tristes e cores escuras, por isso os poetas
simbolistas fizeram tanto uso deste expediente, como se vê no clássico poema
Antífona, de Cruz e Sousa, em que ele usa as assonâncias do “a” para reforçar a
ideia de brancura de que trata o poema:

Antífona
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,


De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,


Harmonias da Cor e do Perfume...

Figuras de Linguagem
IV

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,


Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
[...]
■■ Comparação: paralelo de sentidos em que o termo comparativo é explícito:

“Como um fantasma que se refugia


Na solidão da natureza morta
Por trás dos ermos túmulos um dia
Eu fui refugiar-me à tua porta” (Augusto dos Anjos)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
■■ Metáfora: comparação indireta, feita sem elementos de comparação. Nesse
caso a comparação se fortalece justamente porque um elemento se integra
ao outro. Veja como os versos em destaque no poema de Florbela Espanca,
que veremos a seguir, utilizam as metáforas para reforçar a importância
do ser amado na vida do eu lírico:

Fanatismo - Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida


Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...


Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”


Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


130 - 131

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:


“Ah!  Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..
■■ Metonímia: é figura que consiste na (trans)denominação de um objeto
por outro, substituindo o nome de um objeto por outro nome, por con-
tiguidade ou outra correção externa. Pode ser causa em lugar do efeito,
do continente em algum lugar do conteúdo, do instrumento em lugar do
agente, do símbolo em lugar da coisa significada, do elemento físico em
lugar de uma qualidade, do autor pela obra, possuidor pela coisa possuída,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do efeito pela causa, a coisa pela representação, o inventor pelo invento etc.

Leio muito Jorge Amado (Autor pela obra).


Viver do meu trabalho (Ação pelo produto).
Ele assumiu a coroa (Ação pelo produto - coroa: reinar).
Esse cara não tem coração (Concreto pelo abstrato – coração: sentimento).
Não dê ouvidos a essa conversa (Concreto pelo abstrato – ouvidos: atenção).
Comprei um Ford ontem (Marca pelo produto).
Bebi um copo d’água (Conteúdo pelo continente).

■■ Antítese: figura que cuida de opor palavras. Via de regra, é utilizada para
que a marcação dos opostos gere um estranhamento no texto e produza
um jogo de palavras como se pode ver nos exemplos a seguir:

“O mito é o nada que é tudo.” (Fernando Pessoa)

“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia; Depois da Luz se segue à noite
escura; Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas e ale-
grias”. (Gregório de Mattos)

■■ Paradoxo: é uma espécie de intensificação da antítese, em que não há


mais palavras opostas, mas sim utilização de ideias opostas:

Figuras de Linguagem
IV

“Só sei que nada sei” (Sócrates).

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente; ©shutterstock

É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;

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É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Camões)

■■ Hipérbole: é o exagero proposital, utilizado para superdimensionar uma


ideia:

“Rios te correrão dos olhos, se chorares!” (Olavo Bilac)


“Eu chorei litros”
“Estou morrendo de fome [sono, rir]!”

■■ Gradação: colocação lado a lado de ideias que crescem ou decrescem


em grau:

“A vós, lado patente, quero unir-me, 


A vós, cravos preciosos, quero atar-me, 
Para ficar unido, atado e firme.” (Gregório de Matos)

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


132 - 133

■■ Eufemismo: consiste no abrandamento de uma expressão, normalmente


a fim de evitar que pareça grosseira ou exagerada. Observe que no poema
Lembrança de Morrer, de Álvares de Azevedo, ele se utiliza amplamente
desta figura para menção aos elementos relativos à morte:

Lembrança de Morrer

1 Quando em meu peito rebentar-se a fibra,


2 Que o espírito enlaça à dor vivente,
3 Não derramem por mim nenhuma lágrima
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

4 Em pálpebra demente.
5 E nem desfolhem na matéria impura
6 A flor do vale que adormece ao vento:
7 Não quero que uma nota de alegria
8 Se cale por meu triste passamento.
9 Eu deixo a vida como deixa o tédio
10 Do deserto, o poento caminheiro,
11 ... Como as horas de um longo pesadelo
12 Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
13 Como o desterro de minh’alma errante,
14 Onde fogo insensato a consumia:
15 Só levo uma saudade... é desses tempos
16 Que amorosa ilusão embelecia.
[...]
37 Descansem o meu leito solitário
38 Na floresta dos homens esquecida,
39 À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
40 Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
[...]

Repare que os dois primeiros versos são um eufemismo para “quando eu mor-
rer”; o mesmo se dá com o verso 8; já nos versos 37 e 38 temos um eufemismo
para cemitério.

Figuras de Linguagem
IV

■■ Ironia: é quando se diz algo para significar o contrário. É sempre bom


lembrar que, na escrita, as ironias são sensivelmente mais difíceis de serem
percebidas, isso porque oralmente mudamos a entonação para caracterizar
as ironias; já no texto escrito, é preciso que o contexto aliado à percepção
do leitor o leve a concluir que se trata de uma ironia:

“... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis...” (Machado
de Assis)

“A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças.” (Monteiro

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Lobato)

■■ Sinestesia: junção dos sentidos para se expressar. Nesta figura, cruzam-se


olfato, tato, paladar, visão e audição para criar imagens poéticas:

“Sempre havia, ao amanhecer, uma cor estridente no horizonte” (Giuliano


Fratin).

Veja-se que cor corresponde à visão e estridente à audição.

■■ Prosopopeia: atribuição de características humanas a seres inanimados:

“O cipreste inclina-se em fina reverência e as margaridas estremecem,


sobressaltadas. (Cecília Meireles)

“As casas espiam os homens


Que correm atrás de mulheres” (Drummond)

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


134 - 135

FORMAS POÉTICAS

SONETO

A palavra Soneto advém do italiano sonetto, pequeno som. É um poema de forma


fixa, composto por catorze versos. Entretanto, pode ter uma estrutura de apre-
sentação variável, em relação à distribuição dos versos, sendo as TRÊS principais:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Soneto italiano (petrarquiano): É a estrutura mais comum. Apresenta duas


estrofes de quatro versos (quartetos) e duas de três versos (tercetos):

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
(Luís de Camões)

Soneto inglês (shakespeariano): três quartetos e um dístico (dois versos):

Formas Poéticas
IV

SONETO LXXXVIII

Quando me tratas mau e, desprezado,


Sinto que o meu valor vês com desdém,
Lutando contra mim, fico a teu lado
E, inda perjuro, provo que és um bem.

Conhecendo melhor meus próprios erros,


A te apoiar te ponho a par da história,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
De ocultas faltas, onde estou enfermo;
Então, ao me perder, tens toda a glória.

Mas lucro também tiro desse ofício:


Curvando sobre ti amor tamanho,
Mal que me faço me traz benefício,
Pois o que ganhas duas vezes ganho.

Assim é o meu amor e a ti o reporto:


Por ti todas as culpas eu suporto.

(William Shakespeare)

Soneto monostrófico: O mais raro. Apresenta uma única ©shutterstock

estrofe de 14 versos.

ELEGIA

Poema triste, de lamento, escrito essencialmente


para funerais, corresponde à finalidade das Missas de
Réquiem, na música erudita. Na Grécia Antiga, tam-
bém os epitáfios eram considerados elegias.

Vinícius de Morais

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


136 - 137

Acesse o link e aprecie a Elegia quase uma ode (1943), do poeta Vinícius
de Morais. Disponível em: <http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/po-
esia/poesias-avulsas/elegia-quase-uma-ode>.

ODE
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

É um tipo de poema lírico, fundamentalmente destinado ao canto e que foi ampla-


mente difundido na Grécia e Roma Antigas. Poetas de destaque como Catulo,
Horácio e Safo produziram odes. Na música e poesia de períodos posteriores, as
odes também estiveram presentes, sobretudo durante o Romantismo. Basta ver
que o movimento mais conhecido da 9ª Sinfonia de Beethoven (obra que inicia o
Romantismo na música) é justamente uma Ode do poeta Schiller: Ode à Alegria,
de Friedrich von Schiller, tal como se canta na nona sinfonia de  Beethoven

ÉCLOGA

É um pequeno poema pastoral, no qual se apresenta um diálogo entre um pas-


tor e outrem, evidenciando sempre o bucolismo. O grande poeta deste estilo foi
Virgílio (70 a.C. - 19 d.C.) que, posteriormente, influenciou toda a temática e o
estilo pastoralista do movimento Árcade, no século XVIII. Observe os sonetos
a seguir, de Cláudio Manuel da Costa:

III

Pastores, que levais ao monte o gado,


Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:

Formas Poéticas
IV

Eu ando (vós me vedes) tão pesado;


E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,


Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
CONSIDERAÇÃOS FINAIS

Nesta unidade, vimos que o poema é uma expressão de uma visão subjetiva do
mundo condensada em palavras, organizada em conteúdo e forma específicos.
Apesar de ser subjetiva, a poesia pode ser analisada de modo objetivo, com seus
operadores de leitura.
Estudamos os principais operadores de leitura e análise do gênero lírico:
rima, verso, metro etc., e todas suas subdivisões.
Além disso, vimos que as figuras de linguagem dão ao texto poético o lirismo
necessário para transformar o simples conjunto de palavras e sons em um texto
com linguagem expressiva de um mundo transfigurado ou transcendente. São
esses elementos que criam a transfiguração do mundo empírico pela linguagem.

O GÊNERO LÍRICO E SEUS OPERADORES


138 - 139

1. Com os seus conhecimentos e a leitura desta unidade, faça uma breve análise do
poema de Gregório de Mattos, chamado “Buscando a Cristo crucificado um peca-
dor, com verdadeiro arrependimento”. Pesquise sobre o autor, o período literário,
as rimas, a métrica, o uso de figuras de linguagem etc.
BUSCANDO A CRISTO CRUCIFICADO UM PECADOR, COM VERDADEIRO
ARREPENDIMENTO

01 A vós correndo vou, Braços Sagrados,


02 nessa Cruz sacrossanta descobertos;
03 que para receber-me estais abertos,
04 e por não castigar-me estais cravados.

05 A vós, Divinos olhos, eclipsados,


06 de tanto sangue e lágrimas cobertos,
07 pois para perdoar-me estais despertos,
08 e por não condenar-me estais fechados.

09 A vós, pregados Pés, por não deixar-me;


10 A vós, Sangue vertido para ungir-me;
11 A vós, Cabeça baixa por chamar-me;

12 A vós, Lado patente, quero unir-me;


13 A vós, Cravos preciosos, quero atar-me,
14 para ficar unido, atado, e firme.
MATERIAL COMPLEMENTAR

A Poética - Clássicos Edipro


Aristóteles
Editora: Edipro
O que nos restou da Poética de Aristóteles, ainda que na
esperança da recuperação da parte perdida no futuro, constitui
um preciosíssimo estudo de duas formas célebres da poesia – a
trágica e a épica – caracterizado pela clareza e o tratamento
sistemático e meticuloso do Estagirita. Como a Retórica, a Poética
dirige-se a um público muito mais amplo do que o dos tratados
acroamáticos de Aristóteles. Assim, não só aqueles que são
classificados atualmente por nós como estudantes e estudiosos de
filosofia e de poesia obtêm de sua leitura atenta um grande e indiscutível proveito, como também
os interessados na literatura em geral, na crítica literária, no teatro, no jornalismo e todos que se
ocupam da linguagem e da comunicação humanas. 

A nona sinfonia de Beethoven incorpora parte do poema An die Freude (“À Alegria”), uma
ode escrita por Friedrich Schiller, com o texto cantado por solistas e um coro em seu último
movimento. Foi o primeiro exemplo de um compositor importante que tenha se utilizado da voz
humana com o mesmo destaque que os instrumentos, numa sinfonia, criando assim uma obra de
grande alcance, que deu o tom para a forma sinfônica que viria a ser adotada pelos compositores
românticos.
<http://www.youtube.com/watch?v=4oCvh-x0qUo>.
Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso
Professora Me. Roberta Fresneda Villibor

V
UNIDADE
O PÓS-ESTRUTURALISMO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender o conceito de pós-estruturalismo.
■■ Relacionar o pós-estruturalismo com as ideias do estruturalismo, bem
como entender suas divergências.
■■ Conhecer as principais teorias literárias advindas com o
pós-estruturalismo.
■■ Estudar e compreender os estudos literários feministas, queer,
afro-brasileiro e pós-colonial.
■■ Entender a Estética da Recepção, como estudo que privilegia o leitor.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O pós-modernismo e pós-estruturalismo
■■ Teorias pós-estruturalistas
■■ Os estudos feministas
■■ Queer studies
■■ Literatura afro-brasileira
■■ O pós-colonialismo
■■ Estética da recepção
142 - 143

INTRODUÇÃO

Antes mesmo de abordar o tema desta unidade, é preciso relembrar que todos
os tópicos abordados nas unidades II e III constituem as bases da chamada aná-
lise estruturalista do texto, a qual perdurou por décadas. Para o estruturalismo,
a estrutura era o que importava na análise textual, não se levando em considera-
ção a interação entre leitor-obra. Desse modo, analisava-se a obra por ela mesma
em relação aos seus elementos de composição. Ainda hoje, os elementos estrutu-
rais continuam balizando as análises, mas não mais são vistos como o fim delas,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mas sim como um meio para alcançá-las.


Nesta última unidade, iremos estudar o pensamento pós-estruturalista que,
acima de um campo teórico, é um pensamento filosófico que, graças a pensado-
res e aos Estudos Culturais, permitiu desenvolver pensamentos e estratégias de
leitura para as literaturas.
Veremos que com o pensamento pós-estruturalista, as chamadas literaturas
de gênero, raça e classe passaram a ser alvo de análises, ganhando vozes dentro
e fora da academia.
Inicialmente, iremos abordar os estudos de gênero na literatura contem-
plando os estudos feministas, que têm a mulher como centro de investigação,
e o queer studies, que aborda a temática gay no texto e autoria literária. Depois
entraremos nas discussões étnico-raciais na literatura, focando-se, aqui, na lite-
ratura afro-brasileira. Em seguida, iremos abordar os estudos pós-coloniais,
teoria que analisa as consequências da colonização ainda hoje, e as marcas que
ela deixou no texto literário de impérios e ex-colônias. E, por fim, conhecere-
mos a Estética da Recepção, que vem contrariar as ideias estruturalistas de que
o leitor é um mero espectador.

O PÓS-MODERNISMO E PÓS-ESTRUTURALISMO

Quanto ao pós-estruturalismo, ele é muitas vezes confundido equivocadamente


com o pós-modernismo. Por isso, é preciso compreender que o pós-estruturalismo,

Introdução
V

diferentemente do pós-modernismo, não corresponde a uma época histórica, mas


sim a uma sistematização teórica. Ou seja, enquanto o pós-modernismo marca
um período de produção literária compreendido mais ou menos entre o fim da
década de 40 e o início dos anos 60, o pós-estruturalismo representa uma trans-
formação no estilo de análise textual. Acerca disso, afirma Peters (2000, p.10):
Devemos interpretar o pós-estruturalismo, pois, como uma resposta
especificamente filosófica ao status pretensamente científico do estru-
turalismo e à sua pretensão a se transformar em uma espécie de me-
gaparadigma para as ciências sociais. O pós-estruturalismo deve ser
visto como um movimento que, sob a inspiração de Friedrich Niet-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
zsche, Martin Heidegger e outros, buscou descentrar as “estruturas”, a
sistematicidade e a pretensão científica do estruturalismo, criticando a
metafísica que lhe estava subjacente e estendendo-o em uma série de
diferentes direções, preservando, ao mesmo tempo, os elementos cen-
trais da crítica que o estruturalismo fazia ao sujeito humanista.

A mentalidade pós-estruturalista rejeita sistematizações, estruturas rígidas e


inflexíveis visões. As verdades no pós-estruturalismo são variadas, já que os sig-
nificados não são pré-existentes porque é cultural e socialmente produzido, isto
é, há uma valorização das relações de poder nestes significados.
As contribuições de Michel Foucault, Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guatarri,
Júlia Kristeva, Stuart Hall, Jacques Lacan, entre outros, foram decisivas para os
Estudos Literários sob o viés do pós-estruturalismo, e sem estes pensadores,
seria impossível os estudos sobre intertextualidade, relações de poder, estudos
de identidade e gênero e alteridade na literatura.
Diferente do Estruturalismo, que nasceu atrelado, de certa forma, ao
Formalismo,
o pós-estruturalismo não pode ser simplesmente reduzido a um con-
junto de pressupostos compartilhados, a um método, a uma teoria ou
até mesmo a uma escola. É melhor referir-se a ele como um movimen-
to de pensamento - uma complexa rede de pensamento - que cor-
porifica diferentes formas de prática crítica. O pós-estruturalismo é,
decididamente, interdisciplinar, apresentando-se por meio de muitas e
diferentes correntes (PETERS, 2000, p.29).

Esta interdisciplinaridade trazida pelo pós-estruturalismo nos permite observar


a literatura sob vários vieses.

O PÓS-ESTRUTURALISMO
144 - 145

TEORIAS PÓS-ESTRUTURALISTAS

Com o pós-estruturalismo, surgiram as teorias pós-estruturais. Entretanto, a


inserção de novas versões sobre o estudo literário sobre a mulher, o negro, o
homossexual, os migrantes das nações subdesenvolvidas e uma nova construção
analítica sobre raça, religião, gênero, diáspora, castas, homofobia, antissemitismo,
refugiados, entre outras, só foi possível com o nascimento do departamento de
Estudos Culturais da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, na década
de 70.
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O CCCS (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos – Centre for


Contemporary Cultural Studies) foi por muitos considerado o mais importante
centro inglês, responsável pela solidificação dos Estudos Culturais. Este centro
de pesquisa iniciou os seus estudos sob um viés marxista, em que observava,
analisava e estudava a cultura produzida pela classe trabalhadora, em oposição
aos estudos vigentes e canônicos, sobre a cultura da classe burguesa (elitista). A
partir daí, iniciou-se um estudo sistemático e acadêmico, às vozes na/da litera-
tura, com o que têm a expressar, vozes essas silenciadas durante séculos.
A partir dos Estudos Culturais, a validação de um texto literário só pelo valor
estético foi ‘desvalorizada’, logo, o cânone literário foi sendo minado e os estudos
das culturas subalternas foram assumindo estratégias do ‘centro’ para as ‘mar-
gens’. Desta forma, não mais se privilegiou uma literatura irradiada dos Centros
de poder da sociedade, mas sim as literaturas que contemplem as fímbrias do
tecido social, surgindo dessa maneira estudos sobre as chamadas literaturas de
minoria: de mulheres, de negros, de presidiários, de habitantes da periferia,
entre outros. Procura-se tornar visível o que permanecera encoberto ao longo
de séculos de hegemonia.
Elencamos, para você conhecer algumas teorias pós-estruturalistas tra-
balhadas na literatura. Primeiramente, a de gênero, contemplando os estudos
feministas e os queer studies (gay). Depois, iremos focar no estudo étnico-ra-
cial, com a literatura afro-brasileira, em seguida, os estudos pós-coloniais e, por
fim, a estética da Recepção.

Teorias Pós-Estruturalistas
V

TEORIAS DE GÊNERO

OS ESTUDOS FEMINISTAS

Considerada uma discussão recente, a abordagem sobre uma literatura feminina


volta-se tanto para textos feitos por e para mulheres, quanto para a discussão de
como a mulher é vista nos textos, qual perfil feminino traçam os autores e como

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isso representa ideologias de época.
Iniciou-se graças aos Estudos Culturais a abordagem de análise literária com
os estudos feministas e, com isso, uma nova visão sobre a imagem das mulhe-
res nos clássicos como Lucíola e Senhora, por exemplo, de José de Alencar. Digo
nova, pois, até então, essas personagens eram construídas através das penas mas-
culinas, ou seja, autores homens, os únicos “aptos” a escreverem, de acordo com
o cânone.
O Cânone Ocidental sempre foi exclusivamente masculino, mas o que não
significa que mulheres não estivessem a escrever, usando às vezes pseudônimos
masculinos, como George Eliot, nada mais que Mary Ann Evans (1819-1880),
revela Karl (1995, p. 237).
Nos primórdios, essa discussão foi duramente criticada. A partir dos anos
80, porém, começam a surgir vários estudos nessa área, abordando as questões
do gênero na literatura. Contemporaneamente, boa parte das grandes univer-
sidades possui uma linha de pesquisa voltada para a questão do feminino na
literatura e muitos estudiosos sérios e célebres debruçam-se sobre este assunto.
Em seu artigo O sujeito do feminino e o pós-estruturalismo, Silvana Mariano
afirma:
As teorias de gênero, incluindo suas constantes revisões, contribuíram
para que os estudos feministas de crítica da modernidade revelassem
que, embora as categorias modernas e valores do Iluminismo - tais
como direitos, igualdade, liberdade, democracia - inicialmente, te-
nham instruído muitos dos movimentos feministas de emancipação,
o discurso humanista da teoria moderna, juntamente com suas noções
de Sujeito e Identidade intrinsecamente essencialistas, fundacionalistas

O PÓS-ESTRUTURALISMO
146 - 147

e universalistas, tendeu a apagar as especificidades (de gênero, de clas-


se, de raça, de etnia e de orientação sexual, etc.) dos diferentes sujeitos
que ocupavam outras fronteiras políticas que aquelas do homem bran-
co, heterossexual e detentor de propriedades (COSTA, 2000, p. 59).

Essas críticas colocavam em evidência o fato de que a noção de sujeito estava


marcada por particularidades que se pretendiam universais e, na medida em
que pretendiam universalizar as especificidades do homem branco, heterosse-
xual e detentor de propriedades, este sujeito tornava-se uma categoria normativa
e opressora, para usarmos a definição de Judith Butler, e tornava a mulher e
outros grupos oprimidos ausentes ou invisíveis, para usarmos a caracterização
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dada por Joan Scott.


Assim, para evitar essa “segregação”, investiu-se cada vez mais nesse estudo
das literaturas de gênero abordando-se não apenas textos produzidos por mulhe-
res, mas a visão do feminino passada pelos mais diferentes autores e gêneros,
havendo estudos que abordam estas em questões em romances, contos, poemas
e, até, na visão do feminino existente nos contos infantis.

©shutterstock

Dentre as teorias feministas abordadas na Literatura, temos a ginocrítica.


O Ginocriticismo é uma teoria feminista de inspiração anglo-americana que
defende que as mulheres têm um processo de leitura e escrita diferente do homem,
por força das diferenças biológicas e das formações culturais da categoria de gênero.
Trata-se de uma proposta de abordagem diferente da crítica feminista, porque não
prevê a revisão crítica da escrita literária realizada por homens, concentrando-se,
antes, numa escrita exclusivamente feminina, como revela Elaine Showalter em
Toward a Feminist Poetics (1979).
Na ginocrítica, se estuda:

Teorias de Gênero
V

■■ Mulheres que escrevem sobre mulheres.


■■ Nova imagem da mulher na literatura.
■■ Subversão ao patriarcalismo.
■■ Reescrita (como os contos de fadas de Angela Carter).
■■ Releitura (textos canônicos).

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QUEER STUDIES

Ainda dentro dos estudos de gênero, há uma discussão acadêmica em relação


à literatura gay, ou como muitos chamam, literatura homoerótica, que a princí-
pio abarcaria todos os gêneros literários que agregam um corpus literário com
conteúdos de temática gay e escrita por autores gays.
Estes estudos só foram possíveis a partir dos Estudos Culturais, e, con-
sequentemente, com o surgimento dos queer studies ou a teoria queer no
decênio de 1980, nos Estados Unidos, com o objetivo de analisar a dinâ-
mica da sexualidade e do desejo nas relações sociais, focando a hegemonia
como objeto de estudo e análise crítica, pois as estruturas sociais hegemôni-
cas criam sujeitos como normais e naturais e outros perversos ou patológicos
(MISKOLCI, 2009).
O sentido lexicográfico do termo queer pode ser traduzido por ‘estranho’,
‘esquisito’, constituindo assim uma forma pejorativa com que são designados os
homens e mulheres homossexuais. Entretanto, a expressão foi escolhida pelos
teóricos, pois caracteriza a intenção de ‘oposição’ à heteronormatividade, para
eles queer significa colocar-se contra a normalização da sexualidade (LOURO,
2001), isto é, se ser hétero é ser “no queer”, que sejamos queer.
Observa-se que essa temática homoerótica ganha mais espaço e mais força
no campo literário. Diversos escritores a trabalham em sua obra, como João
Gilberto Noll, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, por exemplo.

O PÓS-ESTRUTURALISMO
148 - 149

Na novela Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu, percebemos essa te-
mática homoerótica, podendo assim analisar o comportamento dos per-
sonagens, bem como sua construção. Desta forma, no artigo de Passeri e
Paradiso, “Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983),
de Caio Fernando Abreu”, os autores estudam a influência da ideologia da
sociedade real (machista e patriarcal) na vida e no comportamento dos per-
sonagens gays ficcionais.
Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/
view/1612/3143>.
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ESTUDOS ETNORRACIAIS

Seguindo a mesma linha de raciocínio das literaturas de gênero, surgem os estu-


dos destinados a verificar qual o papel das etnias no texto. Há estudos próprios
sobre grupos étnicos, como a literatura indígena, cigana e judaica, por exemplo.
Esta última, se desdobrando em temas como o estudo da literatura de holocausto
ou de investigação sobre o antissemitismo.
Para nosso livro, entretanto, iremos focar no papel do negro na Literatura
Brasileira; de que modo ele foi visto ao longo dos tempos? Há vozes negras escre-
vendo sobre seus anseios e dificuldades e sendo escutadas? Qual a recepção da
literatura afro-brasileira por parte do público? Estes são alguns dos questiona-
mentos levantados nos estudos voltados para as teorias etnorraciais. Assim, do
mesmo modo que no feminino se buscou saber qual o papel da mulher na lite-
ratura, aqui se busca saber qual o papel do negro nela.

A LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

As discussões sobre a questão da identidade têm apontado para o surgimento


de novos posicionamentos com relação aos conceitos de nacionalidade, etnia,
gênero etc. Estas discussões colaboram para o deslocamento dos discursos que
tomam como referência a identidade masculina, branca e ocidental. Neste con-
texto, podemos incluir o papel exercido pela literatura. Esta, enquanto espaço de
construção simbólica de sentidos, colabora para a formação de nosso imaginário

Estudos Etnorraciais
V

e, por conseguinte, para a constituição de identidades. A literatura afro-brasileira


marca um momento de questionamento e releitura das literaturas canônicas que
retrataram o negro de forma estigmatizada.

Você sabia que existem 117 autores negros no Brasil com livros lançados?
Você estudou sobre eles no Ensino Fundamental e Médio? Você sabia que

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Machado de Assis é mulato, e nunca negou sua etnia? Ao contrário, foi em-
branquecido nas fotos por exigência do mercado editorial no Brasil? Você
sabia que Cruz e Souza nunca foi apaixonado pela cor branca, como vários
críticos literários pontuaram por anos, ao contrário, a cor branca no imaginá-
rio africano é a cor da morte, do luto.
Você sabia que o primeiro romance abolicionista foi escrito por uma mulher
negra? Maria Firmina dos Reis, primeira descendente de escravos a publi-
cou, Úrsula (São Luiz - MA, 1859). Você sabia que a escritora Carolina Maria
de Jesus, negra, é também catadora de papel, e que estipulou uma regra
para produção de seus textos: não revisar a linguagem?
Provavelmente, a maioria de suas respostas forma o não, afinal, é fruto de
um academicismo canônico brancocêntrico. Desta forma, este tema merece
sua atenção e reflexão.

É justamente porque estes estigmas devem ser desconstruídos que falamos


de sua emergência. As releituras que a literatura afro-brasileira estabelece estão
atreladas aos movimentos que reclamam a legitimação de suas identidades e
questionam valores político-culturais totalizantes e racistas.
A literatura canônica retratou o negro apoiada em caracterizações estereo-
tipadas e suas várias descrições representaram (e ainda representam) a mulher
negra “ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou
corpo-objeto de prazer do macho senhor (...). Personagens negras como Rita
Baiana, Gabriela não são construídas como mulheres que geram descendên-
cia” (EVARISTO, 2003, p. 201). A mulher negra aparece sexualizada, perigosa,
exótica e distante das normas sociais determinadas. Estamos falando de descri-
ções que constroem estereótipos acerca da mulher negra na sociedade brasileira.

O PÓS-ESTRUTURALISMO
150 - 151

Machado de Assis Lima Barreto Cruz e Souza


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©veja.abril ©wikipedia ©wikipedia

Quando observamos a recorrência de personagens negros, verificamos


que estes são geralmente retratados como fazendo parte da lógica de uma
Descendência de Cam. Quem não se lembra dos versos de Manuel Bandeira
(1990), “Irene preta, Irene boa, Irene sempre de bom humor”? Ou da mulata
assanhada, que nunca é mulher diurna só noturna; nunca é espírito, só carne;
nunca é família ou trabalho, só prazer? (ALVES, 1956). E no que diz respeito
à religiosidade, elemento importante na construção da cultura brasileira,
observa-se que é relatado como inaceitável e possuidor de rituais demoní-
acos. A literatura afro-brasileira busca emancipar o negro destes estigmas,
utilizando outros referenciais temáticos e simbólicos. Vislumbramos em seus
textos “palavras ganhando outros sentidos quando recuperadas a partir de
um chão simbólico outro, mais precisamente aquele que se queria esquecido.
Palavras reavivadas, redefinidas chegando mesmo a ferir consciências ador-
mecidas” (NASCIMENTO, 2006, p.78). A literatura afro-brasileira se destaca
em meio à literatura brasileira, trabalhando no sentido de suprir o que tam-
bém faltava ser representado: o negro enquanto sujeito de sua escritura. Neste
sentido, ela está dentro da literatura brasileira, uma vez que se fala de Brasil e
estes autores pertencem a esta nacionalidade, e fora, ao reescrever a imagem
do negro mantida nas entrelinhas literárias.

Estudos Etnorraciais
V

O site LITERAFRO, da Universidade Federal de Minas Gerais, propõe um


resgate acadêmico da produção literária dos brasileiros afrodescendentes.
Desde o período colonial, ela se faz presente em praticamente todos os mo-
mentos relevantes de nossas letras, mas sem obter o mesmo reconhecimen-
to conferido às obras produzidas pela elite branca. Por exemplo: uma con-
sulta, por ligeira que seja, aos manuais de História da Literatura Brasileira,
evidencia a ausência de nomes importantes da literatura de autoria negra.
O portal LITERAFRO exibe um site para cada um dos 117 autores negros com

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produção literária no Brasil, com a seguinte configuração: informações bio-
gráficas, inclusive com fotos e ilustrações; dados bibliográficos; textos da
recepção crítica, tais como artigos e outros; indicação de locais e fontes de
pesquisa; antologia de textos interativa e em permanente atualização. O ob-
jetivo é recolocar os autores negros e suas produções na academia. 
Acesse: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/>.

O PÓS-COLONIALISMO

A crítica europeia começa a sentir o peso dos Estudos Culturais, refletindo em


análise sobre novas “ideias ocidentais” do que seria.
Logo, os estudos sobre os reflexos da colonização também passam a integrar
os Estudos Culturais, fazendo com que os estudos Pós-coloniais sejam estudados
por teóricos e historiadores de todas as esferas, não mais apenas como uma teoria
defensora do nacionalismo ou nativismo, mas uma teoria que revela as relações
binárias do “Primeiro” com o “Terceiro Mundo”1, colonizadores e colonizados, com
os catequizadores e catequizados, invasores e invadidos, não só desmembrando as
fronteiras culturais, como também as fronteiras ideológicas e intelectuais.
Os Estudos Pós-coloniais são um conjunto de teorias que analisa os efeitos
políticos, filosóficos, artísticos e literários deixados pelo colonialismo nos países
colonizados. Como teoria literária (ou abordagem crítica), lida com a literatura
produzida em países que outrora foram colônias de outros países, especialmente

1 Termos que não são mais usados na academia.

O PÓS-ESTRUTURALISMO
152 - 153

das potências coloniais europeias, como a Inglaterra, França, Portugal e Espanha;


em alguns contextos, inclui países ainda em situação colonial. Estes estudos tam-
bém lidam com a literatura escrita em países coloniais e por seus cidadãos, que
possuam integrantes das colônias como tema.
A teoria pós-colonial tornou-se parte dos recursos dos críticos nos anos 1970,
tece como grande obra fundamental o livro Orientalism, do palestino Edward
Said, que analisa a construção objetificante, exótica e estereotipada do Oriente
pelo Ocidente. Contudo, o pós-colonialismo tomaria corpo na década de 70 com
o avanço dos Estudos Culturais. Anos depois, em 1989, o termo é consolidado
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

com a publicação de The Empire writes back: theory and practice in post-colonial
literature, de Bill Ashcroft, Helen Tiffin e Gareth Griffiths, os papas da teoria, e
um ano depois com White Mythologies, de Robert Young (1990).
No mundo literário, o pós-colonialismo influenciou a análise do primeiro
romance africano em Língua Inglesa: The Palm-Wine Drinkard (1952), de Amós
Tutuola, e foi instrumento crítico reconhe-
cido mundialmente, depois do romance
pós-colonial Things Fall Apart (1958), de
Chinua Achebe. A literatura pós-colonial
observa e revela essa vida cultural no espaço
pós-colonial, através da narrativa produzida
pelas ex-colônias, chamados pelo imperia-
lismo de “degradados”, “selvagens”, “devassos”,
“diabólicos”, “preguiçosos” e “primitivos”, ana-
lisando porém, detalhadamente o seu tema
central: os encontros e desencontros entre
colonizadores e colonizados, seja no âmbito
linguístico, político ou religioso (como se tais
elementos pudessem ser tão díspares). Tal ati-
tude gera uma literatura de resistência, de revide
e contra-ataque, a qual tenta resgatar forças e ide-
ais perdidos no tempo, sufocados pela violência do
Outro/dominante, para que o povo subjugado possa
ter consciência de sua identidade e lutar contra uma xas
ute

O Pós-Colonialismo
V

ordem estabelecida pelos representantes da supremacia ocidental.


As narrativas da literatura pós-colonial estão construídas com base em con-
ceitos de resistência, revide, contra-argumentação, subversão, oposição, mímica,
civilidade dissimulada, entre outros, compreendendo assuntos referentes às
sociedades que sofreram com o infortúnio da colonização, enaltecendo tópicos,
como: os dilemas de desenvolver uma identidade nacional após as regras colo-
niais; os modos com os quais os escritores de países colonizados tentam articular
e, até mesmo, celebrar as suas identidades culturais; o conhecimento dos modos
pelos quais os colonizados serviram aos interesses dos colonizadores e como o

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
saber de pessoas subjugadas ao poder é produzido e é usado; a maneira na qual
a literatura é usada para justificar o colonialismo pela perpetuação de imagens
dos colonizados e suas cultura como inferiores. Esse tipo de texto analisa ainda
as experiências da supressão de uma cultura e da eliminação da identidade de
seus membros, manifestando-se em três patamares: 1) textos literários escritos
por representantes do poder colonial; 2) textos literários escritos por nativos
que receberam educação destes representantes nas cidades da Europa, e escritas
em línguas europeias, principalmente a língua inglesa, espanhola, portuguesa e
francesa (em pequena escala); e 3) textos literários com forte apelo crítico e sub-
versivo, visando uma ruptura com a literatura da metrópole, escritos por nativos
cujo objetivo principal é a formação de uma contra-literatura.
Os estudos pós-coloniais permitem um olhar crítico acerca:
■■ Da relação colonizado e colonizador (Iracema, de José de Alencar; Things
Fall Apart, de Chinua Achebe).
■■ Opressão cultural da colonização (A história do ventríloquo, de Pauline
Melville).
■■ Objetificação e Subjetificação (Is there nowhere else where we can meet?,
de Nadine Gordimer; A menor mulher do mundo, de Clarice Lispector).
■■ Demonização da religião nativa (Na Festa de S. Lourenço, de Anchieta; O
outro pé da sereia, de Mia Couto).
■■ Multiculturalismo (Remember Babylon, de David Malouf).
■■ Racismo fruto do colonialismo (Fruit of Lemon, de Andrea Levy).

O PÓS-ESTRUTURALISMO
154 - 155

■■ Patriarcalismo e colonialismo (Purple Hibiscus, de Chimamanda Adiche).


■■ Diáspora (deslocamento antigo e os efeitos da diáspora africana moderna)
(Small Island, de Andrea Levy; The Translator e Colored Lights, de Leila
Aboulela).
■■ Releitura: (Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; Heart of Darkness, de Joseph
Conrad, Os Lusíadas, de Camões).
■■ Reescrita: (Indigo, de Marina Warner; Foe, de J. M. Coetzee).
■■ Mímica (paródia).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

■■ Ampliação do cânone literário.


■■ Crioulização da língua europeia.
■■ Hibridismo.
■■ Questionamentos/denúncias.

Autores pós-coloniais são, geralmente, escritores de ex-colônias, por todo o


mundo, como Ahmadou Kourouma, Pepetela, Mia Couto, Paulina Chiziane,
Pauline Melville, Chinua Achebe, Wole Soyinka, Ben Okri, Chimanda Ngozi
Adiche, J. M. Coetzee, V. S. Naipul, Jamaica Kincaid, Arundahti Roy, Rudyard
Kipling, Salman Rushdie, Ngũgĩ wa Thiong’o, Nadine Gordimer, entre outros.

TEORIAS CRÍTICAS

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

A Estética da Recepção surgiu por volta dos anos 60 e teve como principal
difusor Hans Robert Jauss. Esta teoria literária representava uma tentativa de
revigorar o estudo da literatura, devolvendo-lhe o que anos de interpretações
estruturalistas lhe tiraram: a relação entre leitor e obra. Durante o longo perí-
odo de vigência das teorias formalistas e de correntes literárias afins, o leitor era

Teorias Críticas
V

considerado mero espectador, sendo a obra uma entidade autônoma capaz de


representar, por meio de elementos formais marcados, o estilo de seu autor, sua
época e os anseios referentes a ela.
O que a Estética da Recepção fez, pois, foi resgatar a importância do leitor
neste processo de decodificação da literatura, entendendo que uma obra depende
de sua recepção e completa-se nela, pois um texto só vive quando é lido, com-
preendido e internalizado pelo leitor. Afinal, não se tem arte sem um público
para quem ela se dirija.
Neste sentido, as teorias recepcionistas de Jauss acabam por se aproximar de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
outras três correntes literárias, quais sejam: a) Sociologia da Leitura: cujo obje-
tivo é “estudar o público enquanto fator ativo do processo literário, já que as
mudanças de gosto e de preferências interferem não apenas na circulação, e por-
tanto na fama, dos textos, mas também em sua produção” (ZILBERMAN, 1989,
p.17); b) O Estruturalismo Tcheco, o qual ao levar em conta o efeito de estranha-
mento gerado pela obra, considera-a como um elemento móvel capaz de manter
o estranhamento através de sua permanente renovação (ZILBERMAN, 1989,
p.20); c) Reader-Response Criticism, teoria que considera que “o significado da
obra depende totalmente dos sentidos que o leitor deposita nela. Também seu
caráter estético depende do destinatário: se este não o vivencia como obra de
arte e busca aí outro tipo de experiência, o texto perde sua qualidade artística”
(ZILBERMAN, 1989, p.26). Tais semelhanças nos permitem ver que Jauss não
era uma ilha isolada nesta mudança e sim um propositor de ideias que conver-
giam para a necessidade da época: reformular os estudos literários.
Para tanto, Jauss divide seu projeto de reformulação literária em sete teses,
sendo que “as quatro primeiras têm caráter de premissas, oferecendo as linhas
mestras da metodologia explicitada nas três últimas” (ZILBERMAN, 1989, p.33).
A primeira aponta para o fato de que a atualização da obra é o que garante a sua
existência e que esta depende do leitor; a segunda discute que a própria obra,
por meio de elementos que se encontram no interior de seu sistema literário,
evoca o horizonte de expectativas, permitindo que o leitor interaja com ele, acei-
tando-o ou questionando-o; a terceira diz respeito à distância estética entre o
sujeito e a obra e considera que, quanto mais a obra se distancia do horizonte de
expectativas do público, maior é a sua qualidade; a quarta promove a tentativa

O PÓS-ESTRUTURALISMO
156 - 157

de percepção do efeito estético provocado pela obra quando de seu lançamento,


o que permite fazer a recuperação histórica dela. As três últimas teses discutem
os aspectos sincrônicos e diacrônicos das obras, bem como examinam as rela-
ções da literatura com a sociedade.
Segundo Jauss e seus conceitos de fruição compreensiva e compreensão
fruidora, “só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia”
(ZILBERMAN, 1989, p.53). Assim sendo, o leitor iniciaria seu contato literário
a partir de textos que ele aprecia, quer seja pela forma, quer seja pela temática, e,
gradativamente, iria, como já dissemos, iniciando-se em categorias mais difíceis,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de modo que a recepção passasse a representar “um envolvimento intelectual, sen-


sorial e emotivo com a obra, [sendo que] o leitor tende a se identificar com essas
normas, transformadas, assim, em modelos de ação” (ZILBERMAN, 1989, p.50).
O método previa, então, que a obra escolhida para se ler partisse não de
uma imposição, mas da escolha do leitor, a qual seria feita a partir de seu hori-
zonte de expectativas. Desta forma, lentamente seria rompido este horizonte, de
modo que as obras mais elaboradas e difíceis fossem sendo lidas de forma mais
agradável, substituindo as que inicialmente faziam parte do universo do leitor.
Para muitos, o método recepcional aplicado ao ensino da literatura pode
parecer um pouco anárquico, devido à liberdade que confere aos estudantes.
Contudo, tal liberdade é limitada, pois uma vez detectada a temática que os
alunos desejam, cabe ao professor selecionar os textos a serem lidos e em que
progressão eles serão trabalhados. Isto inclusive pode ser feito respeitando-se a
sequência ditada por livros didáticos e apostilas, de modo que o estudo com base
nos movimentos literários seja mantido basicamente como está, bastando ape-
nas que, dentro de cada movimento literário, o professor permita que o aluno
selecione a temática a ser discutida e que os textos sejam escolhidos em forma
de progressão, ou seja, dos mais simples aos mais complexos. O grande segredo
deste método consiste, na verdade, no fato de que quem lê aquilo que quer, o faz
com prazer e, portanto, o conhecimento flui de maneira natural.
A fim de atingir seus objetivos, o método recepcional de Bordini e Aguiar
propõe que o texto seja trabalhado de acordo com as seguintes etapas:
a. motivação: momento em que são detectadas as expectativas do aluno e em
que o tema é escolhido. O professor propõe uma atividade, que de início

Teorias Críticas
V

deve ser dinâmica, e a partir dela, detecta as preferências dos alunos. A


cada novo início de trabalho, a motivação deve ser diferente e deve cres-
cer em nível de dificuldade.
b. atendimento: momento em que o horizonte de expectativas é atendido por
meio da leitura de obras cuja temática e o estilo foram escolhidos pelos alunos;
c. ruptura: etapa em que se dá o estudo mais aprofundado. Agora, portanto,
são inseridas as primeiras teorias e as obras lidas devem ter um maior
grau de dificuldade;
d. questionamento: etapa em que o aluno compara sua visão anterior às lei-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
turas à sua visão posterior; e, por fim,
e. ampliação do horizonte de expectativas: momento em que o aluno pode
compreender e passar a apreciar textos que até então não faziam parte de
suas preferências (AGUIAR, 1988, pp.89-91). Tais etapas se repetiriam ao
início de cada novo ciclo de estudos, respeitando sempre o aumento no
grau de dificuldade das atividades, distanciando-as assim do horizonte
de expectativas inicial e garantindo a sua ampliação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta última unidade, fizemos um estudo que versou em oposição ao pensa-


mento estruturalista e que, como fruto disto, recebeu o nome de pensamento
pós-estrutural. Nele, o pensamento de ver o texto como simplesmente um con-
junto de signos, formas e métodos não daria conta para analisar as chamadas
literaturas de gênero, raça e classe, passando a serem alvos de análises, além de
clamarem por vozes fora da materialidade textual.
Vimos nesta unidade, que o pós-estruturalismo, junto com o advento dos
Estudos Culturais, permitiu abordar os estudos de gênero na literatura, contem-
plando os estudos feministas, que têm a mulher como centro de investigação, o queer
studies, as discussões etnorraciais na literatura e os estudos pós-coloniais. E, por
fim, conhecemos a Estética da Recepção alemã, que vem contemplando o leitor não
com um mero espectador, mas como parte decisiva na significação final do texto.

O PÓS-ESTRUTURALISMO
158 - 159

1. Observe o poema a seguir:

Ferro
Primeiro o ferro marca
A violência nas costas
Depois o ferro alisa os cabelos
Na verdade o que se precisa
É jogar o ferro fora
É quebrar todos os elos
Dessa corrente
De desespero

(Cuti, em Batuque de Tocaia, 1982)


Quais abordagens literárias você usaria para analisar este poema de Cuti? Justifique
sua resposta e, a partir do método de análise (estrutural, pós-estrutural ou ambos),
analise o poema.
2. Relacione as teorias críticas com seus conceitos:
a. Teoria que analisa os efeitos políticos, filosóficos, artísticos e literários deixados
pelo colonialismo nos textos, que de alguma forma abordam o tema.
b. Suplemento da literatura brasileira, que estuda a imagem do negro, bem como
sua autoria, temas, a partir do ponto de vista afrodescendente.
c. Teoria que visa reconhecer as particularidades da escrita de autoria feminina,
bem como rever a imagem da mulher na literatura e na sociedade patriarcal e
falocêntrica, tirando a mulher enquanto autora, leitora ou personagem dos es-
tereótipos machistas.
d. Teoria crítica, nascida por volta da década de 60, por Hans Jauss, em que visa
resgatar a importância do leitor no processo de decodificação da literatura, en-
tendendo que uma obra depende de sua recepção.
e. Teoria que agrega um corpus literário com conteúdos de temática gay e escrita
por autores gays.
[ ] Estudos Literários pós-coloniais.
[ ] Estudos Literários queer.
[ ] Estudos Literários afro-brasileiros.
[ ] Estudos Literários feministas.
[ ] Estética da Recepção.
3. Em sua opinião, relate como o professor, no ensino da literatura, pode
aproveitar, positivamente, as concepções trazidas pelo pós-estrutura-
lismo?
160 - 161

MATERIAL COMPLEMENTAR

103 Contos de Fadas


Angela Carter´s Book of Fairy Tales
Angela Carter
Ano: 2007
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: A característica fantástica dos contos oriundos de diversas
culturas reescritos por Angela Carter aparece junto a outro aspecto
caro à sua literatura: o feminismo sutil que trata a narrativa como uma
ferramenta para ensejar mudanças de perspectivas não só estéticas, mas também morais. O
feminismo do século XX desmistificou o ideal histórico da mulher passiva que tem seu ápice
com as princesas adormecidas do romantismo do século XIX, como Branca de Neve. Angela
Carter – que morreu em 1992, aos 51 anos – inverte a lógica mostrando que é a vez de as moças
acordarem os rapazes.

Em seu artigo Literatura afro-brasileira: um conceito em construção, Eduardo de Assis Duarte,


professor da UFMG, propõe uma discussão sobre o que seria a literatura afro-brasileira, suas
características, seus precursores e modelos de texto.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Revista Estudos
de Literatura Brasileira Contemporânea, v.1, pp.11-24, 2008. Disponível em: <http://seer.bce.
unb.br/index.php/estudos/article/viewFile/2017/1590>.
Quando acrescentado ao texto do escritor negro brasileiro, o suplemento “afro” ganha densidade
crítica a partir da existência de um ponto de vista específico — o de ser negro.

Chimamanda Adichie - O perigo de uma história única - The danger of a single


story.
Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora pós-colonial nigeriana. Aos dezenove anos deixou
a Nigéria e se mudou para os Estados Unidos da América, onde estudou escrita criativa na
Universidade Johns Hopkins de Baltimore e mestrado de estudos africanos na Universidade Yale.
O seu primeiro grande sucesso foi Purple Hibiscus (Hibisco roxo), em 2003. Neste vídeo, a escritora,
em um discurso aos estudantes, pontua o perigo de uma história única e a necessidade de se
conhecer as ‘outras’ versões.
<http://www.youtube.com/watch?v=GxChpaaioVo>.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura


Thomas Bonnici
Editora: Maringá: Eduem
Ano: 2000
Sinopse: Segundo o autor, a obra coloca o estudante de Letras a
par da problemática dos Estudos Culturais e da disciplina Estudos
Pós-coloniais com análises de texto canônicos e de outros escritos por
autores oriundos das ex-colônias britânicas. 
162 - 163

CONCLUSÃO

Estimado(a) aluno(a),
Terminamos aqui o conteúdo de Estudos Literários!
Temos a certeza de que você, caro(a) estudante de Letras, percebeu a importância
da disciplina de Teoria da Literatura para sua formação, já que ela é a base para as
demais disciplinas de estudo literário.
Nossa discussão acerca de literatura foi apenas um pontapé inicial, e esperamos que
continue os estudos mais aprofundados sobre todo o conteúdo aqui trabalhado.
Agora, temos a certeza de que você já está preparada(o) para analisar uma obra
literária, e o mais importante, de maneira crítica!
Nas cinco unidades que compõem este livro, você encontrou um panorama sobre o
que se convencionou chamar de “teoria da literatura”.
Na Unidade I, discutimos sobre o cânone literário e os pressupostos ideológicos que
o cerca, levando-nos ao conhecimento do anticânone. Também focamos no estudo
da literariedade e reconhecemos os gêneros narrativo e dramático, bem como suas
subdivisões.
Na Unidade II, estudamos o Formalismo Russo e o Estruturalismo, correntes de estu-
do da literatura do século XX que procuraram sistematizar a análise literária.
Já na Unidade III, já com todo arcabouço teórico, você pôde conhecer os operadores
básicos da narrativa, tendo as ferramentas necessárias para a análise estrutural da
narrativa. Em consequência, você estudou a análise da poesia, na quarta Unidade, a
qual se discute o Lírico. Nesta unidade, você conheceu e aprendeu sobre os opera-
dores da poética, como verso, metro e métrica, além de definir algumas das formas
poéticas mais conhecidas.
Finalizando o livro, com a unidade V, você conheceu a crítica pós-estruturalista, ten-
do uma introdução sobre teorias literárias advindas deste pensamento, como o Fe-
minismo, o queer studies, a literatura afro-brasileira, o Pós-colonialismo e a Estética
da Recepção alemã.
Desta forma, esperamos que este livro tenha lhe trazido conteúdo teórico, e o mais
importante, conteúdo humanizador, já que a literatura forma mais que leitores, for-
ma seres humanos, no seu sentido estrito!
164 - 165

REFERÊNCIAS

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Brasileiro, 1997.
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Áti-
ca, 1989.
168 - 169

GABARITO

ATIVIDADES - UNIDADE I
1. Explique com suas próprias palavras a diferença entre cânone e anticânone.
Em linhas gerais, cânone é uma lista de obras selecionadas e autorizadas pela crítica
literária, que fazem parte do que se denomina “boa literatura”, ou aquilo que deve
ser lido/estudado/aprendido na escola. Essas obras comumente passam pelo crivo
de estudiosos da literatura (professores universitários), que estabelecem suas prefe-
rências a partir de uma série de estudos de ordem científica nos quais procuram es-
tabelecer parâmetros que atestem a qualidade literária dos textos. Já o anticânone,
como o próprio nome denuncia, são obras lidas, mas não autorizadas pela crítica e
que, mesmo assim, ou caem no gosto do público ou tentam combater a hegemonia
desses textos. Geralmente, fazem parte do anticânone autores considerados “me-
nores” pela crítica ou que exploram temáticas consideradas não universais, como
os conflitos étnicos, sociais, sexuais, de gênero etc. Esses trabalhos geralmente têm
uma proposta de inclusão daquilo que é diferente e inexplorado pela crítica. O an-
ticânone suscita debates interessantes, tais como: o regional não deve ser lido em
caráter universal? O local perde para o nacional? Quem estabeleceu estes critérios?
Ao quebrar tabus, essas obras nos fazem repensar nossa própria condição e o quan-
to somos frutos de um padrão cultural.
2. Complete a tabela abaixo, apontando as principais características de cada
um dos gêneros narrativos solicitados:

GÊNERO NARRATIVO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS


Narrativa longa, envolve número considerável de perso-
ROMANCE nagens, maior número de conflitos, tempo e espaço mais
dilatados.
Narrativa curta, cuja característica central é condensar
CONTO conflito, tempo e espaço com reduzido número de per-
sonagens.
Pode ser considerada um romance mais curto, com me-
NOVELA nor número de personagens, de conflitos e de espaços,
com ação no tempo mais veloz do que no romance.
Texto híbrido, curto, leve, de linguagem coloquial, que
aborda temas do cotidiano de modo a descrever cenas,
CRÔNICA
analisar situações, contar ou comentar algo visto no dia a
dia dos centros urbanos.
GABARITO

3. Complete a tabela abaixo, apontando as principais características de cada


um dos gêneros dramáticos solicitados:

GÊNERO DRAMÁTICO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS


Do grego tragoidía, trágos, bode, oide, canção, ode, canto de
bode. Segundo Aristóteles, é a imitação de ações de caráter
elevado, ações graves praticadas por indivíduos posiciona-
TRAGÉDIA dos no vértice da pirâmide social (aristocratas, reis, fidalgos).
Essas ações servem para provocar o efeito catártico, ou seja,
a purgação e purificação de sentimentos, servindo ao públi-
co como método pedagógico de aproximação.
De origem controversa, a comédia procura aproximar-
-se da vida real, expondo cenas que provocam o riso,
deflagrado pela ruptura com as regras em uso, daí serem
COMÉDIA comuns expressões relativas ao baixo corporal (fazendo
alusão a atitudes ligadas aos órgãos sexuais e/ou excre-
tores). A lógica humana é temporariamente subvertida, o
que gera o efeito cômico.
De modo sutil, a farsa se liga à comédia: ambas são textos
que provocam o riso, mas a farsa o atinge por meio do
FARSA
exagero do cômico, por meio de absurdos, incongruên-
cias, situações equivocadas, uso de caricaturas.

ATIVIDADES – UNIDADE II
1. Defina, com suas palavras, o que é a análise imanente da literatura, preconi-
zada pelo Formalismo Russo.
Resposta: A análise imanente da obra literária diz respeito à preocupação que os
formalistas têm com a forma e não com o contexto de produção da obra. Para essa
corrente literária, pouco importam noções como momento social, biografia do au-
tor, questões políticas e/ou econômicas. A obra tem valor calcado em si mesma,
independentemente do momento histórico em que foi criada.
2. Quais são as diferenças basilares entre o Formalismo e o Estruturalismo?
Resposta: Enquanto o Formalismo nasceu na Rússia no início do século XX e preco-
nizava a importância da forma em detrimento ao conteúdo, as teorias estruturalis-
tas são diversas e têm em comum o fato da estrutura conferir o significado da obra,
independentemente do sujeito que escreveu a obra.
3. Diferencie, objetivamente, a fábula da trama.
Resposta: A fábula diz respeito à cronologia da história, ou seja, os fatos se sucedem
em uma organização temporal; já a trama é o modo como o enredo é narrado, reve-
lando pouco a pouco sua arquitetura própria.
170 - 171

GABARITO

ATIVIDADES – UNIDADE III


Leia o conto O Gato Preto (The Black Cat), de Edgar Allan Poe. Responda:
1. De que tipo é o narrador do texto? Em que isso influencia a percepção do
leitor sobre a obra?
Resposta: Temos um narrador autodiegético, que além de protagonista, narra sua
própria narrativa: “Para a muito estranha embora muito familiar narrativa que estou
a escrever [...]”. Há influência de percepções sim, pois o leitor observa o texto como
uma confissão ou testemunho de um homem que vivenciou tudo.
2. Quem são os personagens do conto? São redondos, planos, caricatos?
Resposta: Narrador protagonista (redondo), mulher/esposa (plano), policiais (pla-
nos) e Plutão, o gato (plano).
3. Há muitos símbolos no conto. Você pode citar alguns e explicar a relevância
deles no enredo?
Resposta: Há vários símbolos, desde o próprio gato, a cor negra, o nome do gato
Pluto (Plutão), referência ao deus romano do submundo (Hades, para os gregos), a
forca como símbolo de culpa etc.
4. Qual é o nó, o clímax e o desfecho da narrativa. Cite excertos para funda-
mentar sua resposta.
Respostas: O nó acontece quando o narrador/protagonista mata o seu gato de es-
timação, pois é a partir daí que se desenrola a trama. O clímax e o desfecho estão
juntos, uma característica comum em contos. O ápice é a descoberta de que o gato
estava dentro da parede, junto com o cadáver da esposa.
5. O conto possui um ambiente gótico, típico dos contos poeanos. Retire do
texto dez vocábulos que auxiliam a construção de um ambiente de terror e
suspense.
Resposta: monstro, medo, pavor, crime, demônios, agonia, inferno, danação, cadá-
ver, inumano, grito, urro, túmulo, gemido, aterrorizado, cova, horrendo, crânio, ma-
léficos, vítima, desgraçado etc.
6. A ambientação de O Gato Preto é reflexiva, a partir da mente doentia do
protagonista-narrador. Mas, em se tratando de espaço, onde acontecem a
narrativa e a narração, respectivamente?
Resposta: A narração acontece em uma cadeia: “Mas amanhã morrerei e hoje quero
aliviar minha alma [...]” ... “Tenho quase vergonha de confessar - sim, mesmo nesta
cela de criminoso”.
A narrativa em uma casa: “Certa noite, de volta a casa [...]”.
GABARITO

ATIVIDADES – UNIDADE IV
1. Com os seus conhecimentos e a leitura desta unidade, faça uma breve análi-
se do poema de Gregório de Mattos, chamado “Buscando a Cristo crucificado
um pecador, com verdadeiro arrependimento”. Pesquise sobre o autor, o perí-
odo literário, as rimas, a métrica, o uso de figuras de linguagem etc.
Resposta: Apesar das análises serem livres e abertas, há pontos fixos que devem ser
abordados, como a métrica, rima, o uso de figuras de linguagem etc. Este poema de
Gregório de Matos (1623-1696) evidencia um dos ápices de sua obra poética, visto
que pertence à sua produção sacra a qual, muito mais do que as outras (lírica e sa-
tírica), consegue fundir com maestria o drama do homem barroco, que se encontra
dividido entre a razão e emoção e, sobretudo, entre o humano e o divino. Verifica-
remos, ao longo desta análise, que este conflito não se resolve no poema - como é
típico do movimento - uma vez que todo o texto conflui para um grande paradoxo:
é preciso estar preso para ficar livre, ideia que percebemos claramente no último
verso e que procuraremos elucidar ao longo desta apreciação.

Observando a forma do poema, constatamos que este soneto encontra-se rigo-


rosamente metrificado em decassílabos heroicos, fato que, nos quartetos, ajuda
a reforçar as antíteses, uma vez que a acentuação no 3 e 4 versos cai exatamente
nos verbos receber, o qual evoca a ideia de perdão, e castigar, que inspira o sentido
oposto. Nos versos 7 e 8, temos a mesma ocorrência, visto que o verbo perdoar rei-
tera receber e o verbo condenar reitera castigar.
A acentuação na 6ª e 10ª sílabas marca ainda o movimento do eu-lírico em busca do
perdão (assunto central do poema) como percebemos pelo verbo ir, que posto na
primeira pessoa do singular e no presente (vou), reforça a obstinação pelo perdão
revelada ao longo do texto. Deflagra também o mesmo sentido paradoxal que per-
correrá o poema, tendo em vista que coloca a tônica nos verbos abertos e cravados
(que se contradizem no contexto, posto que este indica prisão enquanto aquele
denota liberdade) assim como propõe o choque entre os vocábulos despertos e fe-
chados que marcam a mesma contradição.
O esquema rítmico dos quartetos está disposto da seguinte forma: ABBA, de modo
que as rimas A do primeiro quarteto (sagrados/cravados) fundem o sofrimento e o
lado divino de Cristo enquanto as rimas A do segundo quarteto (eclipsados/ fecha-
dos) evidenciam apenas a dor; já as rimas B (descobertos/abertos; cobertos/ des-
pertos) revelam a disposição de Cristo para olhar por sua “ovelha”, pois mesmo em
prantos Cristo consegue ver e cuidar de seu pecador.
Os oito primeiros versos do poema desempenham ainda outra função fundamental:
apresentam com cuidado e perseverança a bondade de Cristo, a fim de criar um
ambiente propício ao perdão, o qual será evocado mais firmemente nos tercetos.
172 - 173

GABARITO

II

Recurso típico da construção barroca, o poema é repleto de figuras de linguagem,


as quais têm a função básica de estabelecer o conflito entre pecado e perdão e de
levar o eu pecador a receber a possível graça de ser redimido.
Verificamos, por exemplo, que as metonímias servem para fazer uma fusão entre o
humano e o divino. Vejamos, assim, que Cristo nunca é mostrado inteiro, mas sem-
pre por meio de metonímias da parte pelo todo que reiteram as duas faces de Cristo:
humano e divino. Veja-se que Cristo é “braços sagrados”, “divinos olhos”, “cravos pre-
ciosos” e “lado patente”. Todo este reforço das metonímias faz com que se pense que
Cristo, sendo divino, tem a capacidade de perdoar e, sendo humano, compreende
perfeitamente a necessidade de perdão evocada pelo eu-lírico.
Observemos também que a anáfora de “a vós” cresce entre os versos 9 e 13, fazendo
que o ritmo da corrida até Cristo se torne mais intenso. Por fim, o poeta recorre a
uma figura conhecida como disseminação e recolho, que consiste em disseminar
as palavras “unir-me” e “atar-me” nos versos 12 e 13, depois recolhê-las no verso 14
criando uma chave de ouro que também é uma gradação, já que unido é menos do
que atado que é menos do que firme. Enfim, todo esse conjunto estrutural do texto
reforça o grande paradoxo sobre o qual ele foi composto e que abordamos no início
da análise: só é possível libertar-se dos pecados estando preso a Cristo.

ATIVIDADES – UNIDADE V
1. Observe o poema a seguir:
Quais abordagens literárias você usaria para analisar este poema de Cuti? Jus-
tifique sua resposta e, a partir do método de análise (estrutural, pós-estrutural
ou ambos), analise o poema.
Resposta: Neste poema, a identidade negra é colocada em evidência. Utilizando-
-se do signo ferro, o poeta explora os seus significados em momentos diferentes
na trajetória do negro. Antes o ferro do branco marcava o domínio pela força,
agora o mesmo ferro é usado para marcar um domínio estético exigido por uma
sociedade pautada em parâmetros brancos. A proposta do poeta é que todos se
livrem dos ferros e das correntes que os sufocam e os deixam sob uma condição de
subserviência aos padrões que são exigidos.
GABARITO

2. Relacione as teorias críticas com seus conceitos.


Respostas:
[ a ] Estudos Literários pós-coloniais.
[ e ] Estudos Literários queer.
[ b ] Estudos Literários afro-brasileiro.
[ c ] Estudos Literários feministas.
[ d ] Estética da Recepção.
3. Em sua opinião, relate como o professor, no ensino da literatura, pode apro-
veitar, positivamente, as concepções trazidas pelo pós-estruturalismo?
Resposta: pessoal do aluno.

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