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Montagem, minha despreocupação1

Jean-Luc Godard

... Na montagem, dá-se um jeito: verdadeira para James Cruze, Griffith, Stroheim, essa máxima já
quase não se aplicava mais a Murnau, a Chaplin e tornar-se-ia irremediavelmente falsa em relação a
todo o cinema falado. Porquê? Porque num filme como Outubro (e, mais ainda, Que Viva México),
a montagem é, antes de mais nada, a palavra-chave da mise en scène. Não se separa uma da outra
sem riscos. É como querer separar o ritmo da melodia. Elena, da mesma forma que Mr Arkadin são,
ambos, modelos de montagem porque cada um, a seu modo, é um modelo de mise en scène... Na
montagem, dá-se um jeito: axioma típico de produtor, portanto. No máximo, o que a montagem
correta de um filme desprovido de interesse pode produzir é a impressão de que ele foi dirigido. A
montagem restituirá ao registro da matéria viva aquela graça efêmera que o esnobe e o amador
negligenciam, ou, então, transformará o acaso em destino. Haveria elogio maior à montagem do que
quando o público leigo a confunde com a decupagem?

Se a direção é um olhar, a montagem é um batimento do coração. Prever é uma característica das


duas: mas o que uma procura prever no espaço, a outra o faz no tempo. Suponhamos que você
perceba na rua uma jovem que lhe atrai. Você hesita em segui-la. Um quarto de segundo. Como
mostrar essa hesitação? À questão “Como me aproximar dela?”, é a mise en scène que responde.
Mas para responder a essa outra questão – “Será que vou amá-la?” – é preciso dar a devida
importância ao quarto de segundo durante o qual essas duas perguntas nascem. E aí, então, talvez
não seja mais a mise en scène propriamente dita que irá expressar com a devida exatidão e
evidência a duração de uma ideia ou sua súbita emergência no curso de uma narrativa, mas a
montagem. Quando? Sem querer jogar com as palavras, cada vez que a situação o exigir; cada vez
que, no interior de um plano, um choque produzido precise tomar a forma de um arabesco; cada vez
que, de uma cena à outra, a continuidade profunda do filme venha impor, com a mudança de plano,
a superposição da descrição do caráter de um personagem e da própria trama. Esse exemplo mostra

1
Tradução do original, “Montage, mon beau souci”, por Anita Leandro, Márcia Bastos de Sá e Tiago Donato. Revista
Devires (à espera de publicação)

O artigo de Godard foi publicado no número 65 da revista Cahiers du cinema, de dezembro de 1956, num dossiê
intitulado “A propósito da montagem”, composto por mais dois outros artigos: “Degradação de uma arte: a montagem”,
de Henri Colpi, e o famoso “Montagem proibida”, de André Bazin. Em “Montagem, minha despreocupação”, Godard
retoma uma polêmica sutil que estabeleceu com seu mestre André Bazin, iniciada com o artigo “Défense et ilustration
du décupage classique”, publicado no número 15 da Cahiers. Ali, Godard já questionava as teses sobre o realismo
defendidas por Bazin em “Evolução da linguagem cinematográfica”, artigo publicado no primeiro número daquela
revista (A. L.).
o quanto falar de mise en scène já é (e ainda é), automaticamente, falar de montagem. Quando os
efeitos de montagem parecerão mais eficazes do que os efeitos de mise en scène, a beleza dessa
última será, então, reforçada e o imprevisto desvendará os segredos de seu charme por meio de uma
operação análoga àquela que, em matemática, consiste em colocar uma incógnita em evidência.
Quem cede à atração da montagem cede também à tentação do plano de curta duração. Como?
Fazendo do olhar a mola mestra do jogo. O raccord no olhar é quase a definição da montagem, sua
ambição suprema e, ao mesmo tempo, sua submissão à mise en scène. É, na verdade, extrair a alma
que está por baixo do espírito, a paixão que está por trás da intriga, fazer o coração prevalecer sobre
a inteligência, destruindo a noção de espaço em benefício da noção de tempo. A famosa sequência
dos címbalos na nova versão de O homem que sabia demais é a melhor prova disso. Saber quanto
tempo uma cena pode durar já é montagem, da mesma forma que cuidar das junções dos planos
ainda é um problema de filmagem. É verdade que um filme muito bem dirigido dá a impressão de
ser uma simples colagem de planos, sem cortes. Mas um filme muito bem montado dá a impressão
de ter suprimido qualquer direção. Do ponto de vista cinematográfico, a batalha de Alexandre
Nevski não é inferior ao que acontece em O Navegador. Em suma, dar a impressão da duração por
meio do movimento, a impressão do close por meio de um plano de conjunto, seria um dos
objetivos da mise en scène; o oposto, um dos objetivos da montagem. Improvisamos e inventamos
diante da moviola, da mesma forma que no set de filmagem. Cortar um movimento de câmera em
quatro pode ser mais eficaz do que mantê-lo como foi filmado. Uma troca de olhares, para retomar
o exemplo anterior, só pode ser traduzida com força suficiente, se necessário, por meio de um efeito
de montagem preciso.
Quando, em Um caso tenebroso, de Balzac, Peyrade e Corentin forçam a porta do salão Saint-
Cygne, eles lançam um olhar em direção a Laurence: “Você vai ver, minha jovem.” – “Vocês não
saberão de nada.” A moça altiva e os espiões de Fouché reconheceram, numa só olhadela, seu
inimigo mortal. Um simples contra-plano, pela sua própria sobriedade, traduzirá com mais força
essa terrível troca de olhares do que qualquer travelling ou panorâmica premeditada. O que é
preciso saber é quanto tempo durará a luta e em que espaço ela vai se desenrolar. A montagem,
consequentemente, ao mesmo tempo em que nega a mise en scène, a anuncia e a prepara; elas são
interdependentes. Dirigir é maquinar, e de uma maquinação dir-se-á que ela é bem ou mal montada.

Por isso, dizer que um diretor deve supervisionar de perto a montagem de seu filme equivale a dizer
que o montador também deve trocar o cheiro de cola e de película pelo calor dos projetores.
Perambulando pelo set, ele verá, exatamente, em que reside o interesse de uma cena, quais são seus
momentos fortes e fracos, o que incita a mudar de plano. Aí, então, ao cortar, ele não cederá
unicamente à tentação do raccord no movimento, abecedário da montagem, mas à estrita condição
de nunca fazê-lo de maneira por demais mecânica, como faz, por exemplo, Marguerite Renoir, que
dá sempre a impressão de cortar uma cena quando ela está prestes a tornar-se interessante.
Concluindo, os primeiros passos do cineasta são os de montador.

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