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2. Um cinema constituído por fluxos – No entanto são todas as cenas seguintes que revelam
ao espectador aquilo que mais importa a Argento: é a feroz perseguição noturna numa
garagem de ônibus pontuada pelos cuidados do diretor no corte/costura formal (montagem
brilhante, fotografia idem) e pela trilha jazz de Ennio Morricone; é a distância que separa a
primeira vítima da câmera de Vittorio Storaro, uma distância invadida por carros, prédios,
calçadas e ruas de uma Roma capturada com o nervosismo e zelo de quem está dirigindo o
primeiro filme; são as portas de vidro na galeria de arte que prendem o escritor Sam Dalmas ao
tentar socorrer amarchand Monica Ranieri, recém violentada e esfaqueada pelo maníaco de
chapéu largo e capa de couro escura; é o incrível zoom - dos mais belos que este limitado
recurso já ofereceu - que ilustra a alienação do protagonista ante a vastidão de uma grande
cidade enquanto procura sua namorada, desaparecida. Tendo como princípio um cinema de
imagens fortes e marcantes, são justamente os espaços, as estruturas que os compõem e o
fluxo de objetos por entre estes que Argento busca privilegiar, que formam o centro nervoso de
uma idéia que percorre toda sua obra: de que algo - atalhos, ligações, desdobramentos e
deformações - existe e circula por entre estas imagens. É esta a acepção que em grande parte
vem singularizando o percurso deste autor que há mais de 30 anos traça uma obra significativa
ao estabelecer um diálogo entre a iconografia do suspense whodunit e uma duradoura tradição
da arte italiana, a ópera, com a forte presença dos cinemas novos, de um cinema moderno que
teve notável expressão durante boa parte dos anos 60 e 70.
7. ... E mesmo com todos os horrores uma grande fé resiste; ao mundo o direito de ser
mundo – Até aqui já se discutiu sobre estética, formatos narrativos, Argento como um
pensador da forma, seu estilo, suas predileções temáticas e como todas estas características
formam um cinema ou uma idéia de cinema. Mas se chegamos a apenas uma conclusão, a de
que Argento possui um olhar peculiar e pensa muito bem os elementos que constroem esse
olhar, então de nada serviu tudo o que já emulamos até agora se não é feita uma pergunta
conseguinte: e como este cinema se relaciona com o mundo, como diante deste o autor
posiciona sua câmera? Apesar dos epílogos de A Mansão do Inferno, Tenebre e Síndrome
Mortal possuírem um certo pessimismo, o que permanece em outros filmes é a tentativa - ainda
que esta venha carregada de pequenas ambigüidades -, a vontade de restaurar o credo de que
há beleza no mundo, que existe algo a se esperar de positivo e que as coisas, boas ou más,
acabam seguindo seu caminho. Mesmo que existam piscinas de corpos putrefatos
(Phenomena) e crianças que cravam agulhas em lagartixas (Prelúdio Para Matar) existe
também uma praça em Turim, borboletas, a vastidão das paisagens suíças, a natureza, um
amigo bêbado, a beleza de uma estátua, os animais, conversas noturnas, uma chuva que
encarde e outra que purifica, corridas de táxi, a arquitetura italiana, os teatros de ópera; existe
enfim o mundo, esta partícula imutável que permanece mesmo durante o trânsito dos maiores
males. De Brancas-de-Neve (Susy em Suspiria, Jennifer em Phenomena e Betty em Terror na
Ópera) a homens da arte (Sam Dalmas em O Pássaro das Plumas de Cristal, o baterista
Roberto Tobias em Quatro Moscas no Veludo Cinza, Marcus Daly em Prelúdio Para Matar, o
escritor Peter Neal emTenebre e a seu modo o inspetor Moretti em Insônia), existem
pormenores nos personagens de Argento - o controle e a loucura, uma série de virtudes mas
também de problemas - que justificam uma valorização do humano, e é justamente na nota de
rodapé que Argento mostra a que veio: o que ganha eco ao final de O Gato de Nove
Caudas não são as lamúrias do assassino mas a voz da sobrinha do ex-jornalista Franco Arnò
berrando "Cookie, Cookie!", tornando claro que após um período de violência a ordem se
restitui; o que é refletido na poça de sangue em Prelúdio Para Matar não são os
ressentimentos da ex-atriz Martha, autora dos assassinatos, mas a expressão deprimida - pela
morte de seu amigo Carlo, por testemunhar o assassinato de inocentes, por ter acabado de
perder seu labor ao levar uma machadada no braço e por ter precisado matar o assassino a
quem buscava - de um Marcus que chega ao fim de uma jornada violenta e transtornada
apenas para perceber que o mundo à sua volta ainda é o mesmo e ainda assim não será mais
o mesmo; quem sai da Tanz Akademie ao final de Suspiria não são os devotos de Helena
Marcus mas uma Susy transformada, pronta para encarar novamente o mundo após a série de
incidentes ocorridos desde sua chegada à Alemanha; quem consegue firmar um reencontro
com a natureza ao final de Phenomena não é Frau Bruckner nem seu filho psicopata mas é a
mesma Jennifer que no início do filme não deixou que matassem uma abelha e que ao final se
reencontra com a chimpanzé Inga, o único resquício de sua amizade com o falecido professor
John McGregor; e é este mesmo reencontro com a natureza e com o mundo que figurará de
maneira definitiva em Terror na Ópera, no momento em que a jovem cantora Betty se joga no
gramado e diz que não se interessa mais pelas coisas que não sejam deste mundo, que só lhe
interessa as árvores, os animais, a grama, uma borboleta ou ajudar uma lagartixa presa sob
um graveto que talvez represente um acerto de contas comPrelúdio Para Matar e com a fúria,
com a angústia presente em outros filmes. Punição e redenção, pecado e renovação; Argento -
italiano e católico, filho da ópera, de Luchino Visconti e Sergio Leone mas também de Orson
Welles, Fritz Lang e Alfred Hitchcock - é dos poucos cineastas capazes de mostrarem que não
é necessária uma distinção entre crença no mundo e crença no cinema (Brian De Palma é
outro que vem em mente), que fazer cinema pode ser uma maneira de construir uma visão de
mundo. É a eterna busca pela forma que seja o seu próprio conteúdo que talvez melhor ilustre
o que nos interessa em Dario Argento.
Bruno Andrade