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Resumo:
Em Dançando no Escuro (2000), Lars von Trier usa a função metalinguística típica dos
musicais para atacar esse mesmo gênero e, com ele, o próprio cinema, desnudando
aproximações de ambos (o gênero musical e o cinema) com dispositivos de controle,
especificamente controle dos corpos. O artigo analisa procedimentos de imagem que
concretizam formalmente esse desnudamento de uma biopolítica ao se distanciarem da
estética comumente vista nos musicais.
Palavras-chave:
Dançando no escuro, Lars von Trier, biopolítica, panóptico, musical.
Abstract:
In Dancer in the dark (2000), Lars von Trier uses the typical metalinguistic function of musicals
to attack this very genre and, with it, cinema itself, revealing similarities between those two
(musical genre and cinema) and control devices, specifically body control. The paper analyses
formal image procedures that materialize such revealing of a biopolitics by taking a distance
from the aesthetics commonly seen in the musicals.
Keywords:
Dancer in the dark, Lars von Trier, biopolitics, panopticon, musical.
Introdução
Dançando no escuro (2000), de Lars von Trier, traz procedimentos de imagem que
fazem ecoar embates históricos entre a imagem cinematográfica e o corpo humano. O filme é
um musical, mas um que não tem o tom otimista comumente atrelado ao gênero. Pelo
para lançar críticas potentes tanto a esse gênero, como ao próprio cinema – principalmente por
pretendo focar em dois números musicais do filme de von Trier: “Cvalda” e “I’ve seen it all”.
Observo como fica evidenciada, tanto no conteúdo como na forma, uma relação biopolítica
entre imagem e corpo, relação que se conecta (por vezes explicitamente) a um funcionamento
1
Trabalho apresentado no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão:
Sexualidade, corpo e política.
2
Mestre em Comunicação Social – Cinema pela PUC-Rio, é professor de cinema em cursos de curta
duração e também montador audiovisual. Email: nicholasandueza@gmail.com.
Selma e seus musicais
A protagonista do filme, Selma (interpretada por Björk), é uma imigrante pobre, em vias
de se tornar cega, que vai aos Estados Unidos para conseguir uma operação de vista para seu
filho. Gene tem a mesma deficiência visual que a mãe, uma complicação hereditária e
degenerativa que só poderia ser resolvida nos EUA. Por isso, Selma vai às últimas
consequências. Além das condições precárias de uma vida de trabalho na fábrica, ela é
roubada por Bill, um amigo que é policial, e essa traição de confiança se estende ao sistema
penal americano ao longo de um julgamento injusto e de uma condenação à morte. Ela troca a
própria vida pela operação do filho: entre pagar a própria defesa e a cirurgia de Gene, ela não
encanto profundo que Selma tem com as promessas da América como terra das
oportunidades, encanto que toma forma no amor que a personagem cultiva pelos filmes
musicais americanos. Uma cinefilia tão intensa que é ao musical que ela recorre quando se vê
tom otimista dos musicais em uma ferramenta vital para suportar as condições precárias de
vida e trabalho e se manter no caminho árduo de conquistar o dinheiro para a operação do filho
– uma reencenação do sonho americano às avessas, por evidenciar a falência desse sonho
conquistar a operação).
tenta convencer sua amiga Kathy a sorrir e dançar. O cenário é a fábrica em que ambas
trabalham: Selma, exausta, começa a sonhar com a música e com a coreografia a partir de
ruídos ritmados, produzidos pelas máquinas e por seus operadores – sons que permanecem
montagem fica muito mais ativa, tanto pela quantidade de cortes, quanto pelo ritmo mais
marcado, que acompanha os movimentos musicais. Os ângulos ficam na maior parte fixos e,
em muitos casos, abertos e em contraplongée. Transmutação estética: antes do número
começar, assistíamos a uma câmera na mão próxima dos corpos, jump cuts, cores
Nesse mundo, Selma canta e dança sorridente, em sincronia com os outros operários.
A interação entre os corpos é natural e fluida, tudo e todos estão incluídos na diegese musical.
Não há problemas à vista. Por fim, a própria Kathy se convence a sorrir e dançar, como
interação dos corpos (coreográfico, musicado, fluido) é importante notar que não há um
tomam o primeiro plano, deslocando e descentralizando a ação principal (Selma e sua dança).
Ou seja, o rompimento com o espaço-tempo não é completo, dado que há uma forte
reminiscência do cotidiano fabril, que continua não só presente, mas materialmente presente –
e relativamente inalterado. O rompimento soa dúbio, como a busca de Selma pelo (falido)
sonho americano.
longo do filme, entre eles, “I’ve seen it all”. Este último se passa na ponte de um trem. Jeff, um
homem apaixonado pela protagonista, que apesar de tímido está sempre tentando ajudá-la
com uma carona depois do trabalho, finalmente descobre que Selma é praticamente cega.
Frente a esse momento de tensão, a protagonista se lança em mais uma de suas músicas.
Talvez uma das músicas de maior peso cinematográfico e metafórico com relação ao cerne do
filme (o cinema, o sonho americano, a realidade injusta e a dialética entre visão e cegueira),
em “I’ve seen it all” Selma inverte o sinal da cegueira: o que há para ver?; já vi de tudo; por que
ver se na imaginação é melhor? Assim que a música começa vemos novamente as cores
coreografias.
que além de lhe ter custado o emprego e, por conta disso, ter ameaçado a operação do filho, é
acima de tudo a causa fundamental da cegueira desse filho. Mas seria leviano reduzir “I’ve
seen it all” a uma defensiva. O que ocorre é uma complexificação da cegueira, que a conecta à
espectatorialidade: não vejo mais, porque não preciso mais ver. A cegueira de Selma passa a
estar mais próxima daquela descrita por Saramago – a cegueira branca, provocada pelo
excesso de imagens. Nesse aspecto, a música atravessa uma série de visões que a
protagonista não tem mais como alcançar: a Muralha da China, o Peru, o homem com quem
ela irá se casar – clichês visuais, imagens exauridas pelo próprio excesso de imagens. São
imagens que, nos termos de Cezar Migliorin, “param de trabalhar”: ou quando elas possuem
uma hipertransparência e parecem dizer o todo em relação a um evento, ou quando elas não
se ligam mais com nada, quando são apenas “uma aparição que perdeu o evento”
(MIGLIORIN, 2010, p.23 e 24). Assim, a absoluta espectatorialidade, que já viu de tudo, vem
Os musicais panópticos
seen it all”), Lars von Trier desenvolveu uma técnica especial de filmar ao distribuir pelo cenário
uma grande quantidade de câmeras – por volta de cem (Wohl, 2016, p.172). Esse aparato
estabelecido por von Trier, enquanto um todo multi-olhos, reproduz uma lógica panóptica (ibid.,
p.176): uma ubiquidade da visão que tenta capturar o corpo de Selma, onde quer que ele
esteja, numa montagem ativa que sintetiza fragmentariamente esse excesso de pontos de
assemelha àquela feita por câmeras de vigilância. É interessante notar, portanto, a relação
discernimento não é propriamente uma separação. Wohl (ibid., p.171) sinaliza que a estética
“documentária” de von Trier durante as partes “não musicais” do filme produz uma dialética
entre o objetivo e o subjetivo: de um lado, um estilo cinéma vérité que confere objetividade ao
que se filma, do outro, uma câmera sempre muito próxima, muito intimista, baseada no close
up, trazendo a subjetividade da protagonista. A autora também sugere uma qualidade háptica
que ganham os closes extensos de Selma, por conta da proximidade (ibid., p.180): tais planos
“transformam sua face em uma tela, uma superfície cinemática além da qual nós não podemos
ir” (idem). Além da cinefilia e da cegueira de Selma como recurso metalinguístico, o próprio
E se há uma ponte entre objetivo e subjetivo nos momentos de “realidade”, ela também
fábrica no devaneio de Selma em “Cvalda”: o espaço fabril continua presente e definidor dos
corpos (coreografias e ritmos são em parte baseadas nas ações dos operários – varrer chão,
pisar com botas de trabalho, operar máquinas, bater ferramentes). Mas podemos ir além disso
e notar a própria estrutura multiperspectivista criada para filmar as sequências musicais (em
“Cvalda”, “I’ve seen it all”, e outros tantos): a ubiquidade de visão resultante, que tenta
apreender todos os corpos em cena com ângulos que se assemelham aos de câmeras de
surgem no filme como sonhos e devaneios de Selma. Ela parece ter internalizado o panóptico,
e esse gesto, como descrito por Foucault (2013, p.191), faz parte do próprio funcionamento
panóptico: não apenas que os corpos sejam observados, mas que esses corpos se saibam
Dançarinas e operárias
Por dois momentos vemos Selma e sua amiga Kathy assistindo ao filme 42nd Street
(1933), dirigido por Lloyd Bacon e coreografado pelo paradigmático Busby Berkeley. Com
referência a 42nd Street, que traz uma cena contundente: no filme de Bacon e Berkeley, uma
das bailarinas se mostra tão exausta que desmaia durante ensaios coreográficos. A inserção
deste trecho sinaliza de modo bastante literal a problemática do corpo nos musicais. A exatidão
das performances é fundada numa estética de transparência que visa esconder o imensa
coerção corporal necessária para executar os números musicais, fazendo com que estes
pareçam o mais naturais possíveis. Um caso clássico dessa tensão entre corpo e musical é a
célebre cena de Cantando na chuva (1952) em que Gene Kelly executa o número que dá nome
ao filme num estúdio tomado pela chuva: neste dia, Kelly estava doente, com febre alta, e no
dançados e cantados por Gene Kelly: a estética de Berkeley é fundada nas tillergirls,
dançarinas de alta precisão com coreografias concebidas por John Tiller pouco antes do
dançarino, como em Cantando na chuva, mas sim de vários corpos que, quando
coreografados, perdem sua integridade ao serem assimilados num todo maior e massificado,
formado por linhas, ilusões de ótica e efeitos cinéticos – um todo que Siegfried Kracauer
chamou de “ornamento da massa” (Kracauer, 2009, p.92). Segundo o autor, a estrutura desse
destruir organismos naturais, como o corpo humano (ibid., p.94). Assim as tillergirls, bem como
tanto assim da vida tão menos glamourizada da proletária imigrante Selma. Como sugere
Kracauer: “na fábrica, as pernas das tillergirls correspondem às mãos [dos operários]” (ibid.,
95).
Assim, não é por acaso que o espaço da fábrica seja tão relevante para o filme de Lars
von Trier. A partir da fábrica em que Selma e Kathy trabalham, inclusive, acrescenta-se outra
referência cinematográfica elementar: a saída dos operários (feita repetidas vezes no filme de
von Trier), remetendo aos primeiros filmes dos irmãos Lumière – e aqui é possível citar
também o número “I’ve seen it all”, que se passa numa linha de trem. Harum Farocki já nos
mostrou em A saída dos operários da fábrica (1995) o quanto essa movimentação dos corpos
fabris se relacionam a uma biopolítica que se instala no cinema desde os primeiros filmes.
Nessa esteira, quando Thomas Y. Levin (2009, p.179) discute a relação entre vigilância e
Assim, quando Selma cita a sua paixão pelos musicais, quando analisa-os
formalmente ao dizer que na última música a câmera sempre sobe tanto que “atravessa o teto”,
quando os utiliza em favor de sua sobrevivência (para conseguir aguentar suas condições de
vida), o que fica posto não é somente a questão ideológica do american way of life e suas
falsas promessas, mas também a questão formal de uma imagética de coerção dos corpos –
Referências
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41ª ed. Petrópoles, RJ:
Vozes, 2013.
LEVIN, Thomas Y. Retórica do índex temporal: narração vigilante e o cinema de “tempo real”.
In: MACIEL, Katia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009. p.175-192.
MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue, 2010.
WOHL, Victoria. Blind spots and double vision: national and individual fantasy in Dancer in the
dark. In: HONIG, Bonnie; MARSO, Lori J. (ed.). Politics, Theory, and Film: Critical Encounters
with Lars Von Trier. Oxford: Oxford Press University, 2016.