Você está na página 1de 7

Dançando no escuro: panóptico e biopolítica no musical1

Dancer in the dark: panopticon and biopolitics in the musical


2
Nicholas Andueza (Mestre – PUC-Rio)

Resumo:
Em Dançando no Escuro (2000), Lars von Trier usa a função metalinguística típica dos
musicais para atacar esse mesmo gênero e, com ele, o próprio cinema, desnudando
aproximações de ambos (o gênero musical e o cinema) com dispositivos de controle,
especificamente controle dos corpos. O artigo analisa procedimentos de imagem que
concretizam formalmente esse desnudamento de uma biopolítica ao se distanciarem da
estética comumente vista nos musicais.

Palavras-chave:
Dançando no escuro, Lars von Trier, biopolítica, panóptico, musical.

Abstract:
In Dancer in the dark (2000), Lars von Trier uses the typical metalinguistic function of musicals
to attack this very genre and, with it, cinema itself, revealing similarities between those two
(musical genre and cinema) and control devices, specifically body control. The paper analyses
formal image procedures that materialize such revealing of a biopolitics by taking a distance
from the aesthetics commonly seen in the musicals.

Keywords:
Dancer in the dark, Lars von Trier, biopolitics, panopticon, musical.

Introdução

Dançando no escuro (2000), de Lars von Trier, traz procedimentos de imagem que

fazem ecoar embates históricos entre a imagem cinematográfica e o corpo humano. O filme é

um musical, mas um que não tem o tom otimista comumente atrelado ao gênero. Pelo

contrário, Dançando no escuro se apresenta como um anti-musical, usando a metalinguagem

para lançar críticas potentes tanto a esse gênero, como ao próprio cinema – principalmente por

meio da interação entre a imagem e o corpo da protagonista Selma. No percurso de análise,

pretendo focar em dois números musicais do filme de von Trier: “Cvalda” e “I’ve seen it all”.

Observo como fica evidenciada, tanto no conteúdo como na forma, uma relação biopolítica

entre imagem e corpo, relação que se conecta (por vezes explicitamente) a um funcionamento

intrínseco ao gênero musical e à imagem cinematográfica.

1
Trabalho apresentado no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão:
Sexualidade, corpo e política.
2
Mestre em Comunicação Social – Cinema pela PUC-Rio, é professor de cinema em cursos de curta
duração e também montador audiovisual. Email: nicholasandueza@gmail.com.
Selma e seus musicais

A protagonista do filme, Selma (interpretada por Björk), é uma imigrante pobre, em vias

de se tornar cega, que vai aos Estados Unidos para conseguir uma operação de vista para seu

filho. Gene tem a mesma deficiência visual que a mãe, uma complicação hereditária e

degenerativa que só poderia ser resolvida nos EUA. Por isso, Selma vai às últimas

consequências. Além das condições precárias de uma vida de trabalho na fábrica, ela é

roubada por Bill, um amigo que é policial, e essa traição de confiança se estende ao sistema

penal americano ao longo de um julgamento injusto e de uma condenação à morte. Ela troca a

própria vida pela operação do filho: entre pagar a própria defesa e a cirurgia de Gene, ela não

hesita – era esse o seu propósito fundamental.

A motivação da operação do filho para a migração da protagonista se mistura a um

encanto profundo que Selma tem com as promessas da América como terra das

oportunidades, encanto que toma forma no amor que a personagem cultiva pelos filmes

musicais americanos. Uma cinefilia tão intensa que é ao musical que ela recorre quando se vê

em situações estressantes ou deprimentes: ela devaneia e se imagina dançando e cantando

em grandes coreografias com outros personagens. Selma converte a alienação associada ao

tom otimista dos musicais em uma ferramenta vital para suportar as condições precárias de

vida e trabalho e se manter no caminho árduo de conquistar o dinheiro para a operação do filho

– uma reencenação do sonho americano às avessas, por evidenciar a falência desse sonho

(precariedade da vida de Selma) sem no entanto renunciá-lo estruturalmente (trabalhar para

conquistar a operação).

É nessa lógica do devaneio que começa o número “Cvalda”, em que a protagonista

tenta convencer sua amiga Kathy a sorrir e dançar. O cenário é a fábrica em que ambas

trabalham: Selma, exausta, começa a sonhar com a música e com a coreografia a partir de

ruídos ritmados, produzidos pelas máquinas e por seus operadores – sons que permanecem

presentes ao longo de todo o número. Repentinamente as cores ficam mais saturadas e a

montagem fica muito mais ativa, tanto pela quantidade de cortes, quanto pelo ritmo mais

marcado, que acompanha os movimentos musicais. Os ângulos ficam na maior parte fixos e,
em muitos casos, abertos e em contraplongée. Transmutação estética: antes do número

começar, assistíamos a uma câmera na mão próxima dos corpos, jump cuts, cores

dessaturadas e uma ausência de música – um estilo “documentário” que já não vemos

enquanto há música. A disparidade formal denota que adentramos um outro mundo.

Nesse mundo, Selma canta e dança sorridente, em sincronia com os outros operários.

A interação entre os corpos é natural e fluida, tudo e todos estão incluídos na diegese musical.

Não há problemas à vista. Por fim, a própria Kathy se convence a sorrir e dançar, como

desejava Selma. No entanto, apesar de uma transformação estética e de um outro regime de

interação dos corpos (coreográfico, musicado, fluido) é importante notar que não há um

afastamento completo do ambiente fabril: a fábrica continua a mesma (apenas filmada e

ocupada de modo diferente) e, em alguns enquadramentos, máquinas e objetos de trabalho

tomam o primeiro plano, deslocando e descentralizando a ação principal (Selma e sua dança).

Ou seja, o rompimento com o espaço-tempo não é completo, dado que há uma forte

reminiscência do cotidiano fabril, que continua não só presente, mas materialmente presente –

e relativamente inalterado. O rompimento soa dúbio, como a busca de Selma pelo (falido)

sonho americano.

A mesma estratégia audiovisual é posta em prática nos outros números musicais ao

longo do filme, entre eles, “I’ve seen it all”. Este último se passa na ponte de um trem. Jeff, um

homem apaixonado pela protagonista, que apesar de tímido está sempre tentando ajudá-la

com uma carona depois do trabalho, finalmente descobre que Selma é praticamente cega.

Frente a esse momento de tensão, a protagonista se lança em mais uma de suas músicas.

Talvez uma das músicas de maior peso cinematográfico e metafórico com relação ao cerne do

filme (o cinema, o sonho americano, a realidade injusta e a dialética entre visão e cegueira),

em “I’ve seen it all” Selma inverte o sinal da cegueira: o que há para ver?; já vi de tudo; por que

ver se na imaginação é melhor? Assim que a música começa vemos novamente as cores

saturadas, os ângulos múltiplos e fixos, a montagem rítmica, a música extradiegética, as

coreografias.

É certo que a protagonista se coloca em defensiva ante à realidade de sua cegueira,

que além de lhe ter custado o emprego e, por conta disso, ter ameaçado a operação do filho, é
acima de tudo a causa fundamental da cegueira desse filho. Mas seria leviano reduzir “I’ve

seen it all” a uma defensiva. O que ocorre é uma complexificação da cegueira, que a conecta à

espectatorialidade: não vejo mais, porque não preciso mais ver. A cegueira de Selma passa a

estar mais próxima daquela descrita por Saramago – a cegueira branca, provocada pelo

excesso de imagens. Nesse aspecto, a música atravessa uma série de visões que a

protagonista não tem mais como alcançar: a Muralha da China, o Peru, o homem com quem

ela irá se casar – clichês visuais, imagens exauridas pelo próprio excesso de imagens. São

imagens que, nos termos de Cezar Migliorin, “param de trabalhar”: ou quando elas possuem

uma hipertransparência e parecem dizer o todo em relação a um evento, ou quando elas não

se ligam mais com nada, quando são apenas “uma aparição que perdeu o evento”

(MIGLIORIN, 2010, p.23 e 24). Assim, a absoluta espectatorialidade, que já viu de tudo, vem

como irmã da cegueira, e não como seu contrário.

Os musicais panópticos

Para filmar os números musicais de Dançando no escuro (incluindo “Cvalda” e “I’ve

seen it all”), Lars von Trier desenvolveu uma técnica especial de filmar ao distribuir pelo cenário

uma grande quantidade de câmeras – por volta de cem (Wohl, 2016, p.172). Esse aparato

estabelecido por von Trier, enquanto um todo multi-olhos, reproduz uma lógica panóptica (ibid.,

p.176): uma ubiquidade da visão que tenta capturar o corpo de Selma, onde quer que ele

esteja, numa montagem ativa que sintetiza fragmentariamente esse excesso de pontos de

vista. Além de um multiperspectivismo, há também a própria natureza dos enquadramentos:

dada a recorrência de ângulos fixos, em plongée e abertos, a qualidade dessa imagética se

assemelha àquela feita por câmeras de vigilância. É interessante notar, portanto, a relação

dessa estética com um sinal de internalização do enredo (“agora estamos na mente de

Selma”). Victoria Wohl comenta essa intenção de Lars von Trier:

Essas múltiplas perspectivas nos colocam dentro da ação, que parece


se desdobrar à nossa volta, e também nos liberta dos limites físicos do
olho humano, criando uma qualidade onírica. A técnica foi concebida,
diz von Trier, para nos fazer sentir como se estivéssemos na cabeça da
personagem, assistindo às suas visões íntimas e internas” (ibid., p.172)
Ao mesmo tempo que a disparidade formal entre os momentos com e sem música

sinalizam um discernimento entre “realidade” e “imaginação”, é relevante apontar que esse

discernimento não é propriamente uma separação. Wohl (ibid., p.171) sinaliza que a estética

“documentária” de von Trier durante as partes “não musicais” do filme produz uma dialética

entre o objetivo e o subjetivo: de um lado, um estilo cinéma vérité que confere objetividade ao

que se filma, do outro, uma câmera sempre muito próxima, muito intimista, baseada no close

up, trazendo a subjetividade da protagonista. A autora também sugere uma qualidade háptica

que ganham os closes extensos de Selma, por conta da proximidade (ibid., p.180): tais planos

“transformam sua face em uma tela, uma superfície cinemática além da qual nós não podemos

ir” (idem). Além da cinefilia e da cegueira de Selma como recurso metalinguístico, o próprio

rosto da protagonista como filme dentro do filme.

E se há uma ponte entre objetivo e subjetivo nos momentos de “realidade”, ela também

existe nos momentos de “imaginação”. Basta relembrar a persistência da materialidade da

fábrica no devaneio de Selma em “Cvalda”: o espaço fabril continua presente e definidor dos

corpos (coreografias e ritmos são em parte baseadas nas ações dos operários – varrer chão,

pisar com botas de trabalho, operar máquinas, bater ferramentes). Mas podemos ir além disso

e notar a própria estrutura multiperspectivista criada para filmar as sequências musicais (em

“Cvalda”, “I’ve seen it all”, e outros tantos): a ubiquidade de visão resultante, que tenta

apreender todos os corpos em cena com ângulos que se assemelham aos de câmeras de

vigilância, é na verdade uma reencenação desse controle vigilante – porque as músicas

surgem no filme como sonhos e devaneios de Selma. Ela parece ter internalizado o panóptico,

e esse gesto, como descrito por Foucault (2013, p.191), faz parte do próprio funcionamento

panóptico: não apenas que os corpos sejam observados, mas que esses corpos se saibam

observados para regulam por si mesmos os seus gestos.

Dançarinas e operárias

Por dois momentos vemos Selma e sua amiga Kathy assistindo ao filme 42nd Street

(1933), dirigido por Lloyd Bacon e coreografado pelo paradigmático Busby Berkeley. Com

essas duas pequenas cenas se reforça uma metalinguagem já presente no discurso da


protagonista enquanto elogia os musicais americanos. Destaco o primeiro momento de

referência a 42nd Street, que traz uma cena contundente: no filme de Bacon e Berkeley, uma

das bailarinas se mostra tão exausta que desmaia durante ensaios coreográficos. A inserção

deste trecho sinaliza de modo bastante literal a problemática do corpo nos musicais. A exatidão

das performances é fundada numa estética de transparência que visa esconder o imensa

coerção corporal necessária para executar os números musicais, fazendo com que estes

pareçam o mais naturais possíveis. Um caso clássico dessa tensão entre corpo e musical é a

célebre cena de Cantando na chuva (1952) em que Gene Kelly executa o número que dá nome

ao filme num estúdio tomado pela chuva: neste dia, Kelly estava doente, com febre alta, e no

entanto teve que executar o número da forma mais natural possível.

Mas os musicais coreografados por Busby Berkeley diferem radicalmente daqueles

dançados e cantados por Gene Kelly: a estética de Berkeley é fundada nas tillergirls,

dançarinas de alta precisão com coreografias concebidas por John Tiller pouco antes do

aparecimento do cinematógrafo Lumière. Em 42nd street, não se trata do corpo de um único

dançarino, como em Cantando na chuva, mas sim de vários corpos que, quando

coreografados, perdem sua integridade ao serem assimilados num todo maior e massificado,

formado por linhas, ilusões de ótica e efeitos cinéticos – um todo que Siegfried Kracauer

chamou de “ornamento da massa” (Kracauer, 2009, p.92). Segundo o autor, a estrutura desse

ornamento reflete a estrutura de produção capitalista, cuja artificialidade tem a tendência de

destruir organismos naturais, como o corpo humano (ibid., p.94). Assim as tillergirls, bem como

as dançarinas de Berkeley, entram no esquema da linha de montagem, não se distanciando

tanto assim da vida tão menos glamourizada da proletária imigrante Selma. Como sugere

Kracauer: “na fábrica, as pernas das tillergirls correspondem às mãos [dos operários]” (ibid.,

95).

Assim, não é por acaso que o espaço da fábrica seja tão relevante para o filme de Lars

von Trier. A partir da fábrica em que Selma e Kathy trabalham, inclusive, acrescenta-se outra

referência cinematográfica elementar: a saída dos operários (feita repetidas vezes no filme de

von Trier), remetendo aos primeiros filmes dos irmãos Lumière – e aqui é possível citar

também o número “I’ve seen it all”, que se passa numa linha de trem. Harum Farocki já nos
mostrou em A saída dos operários da fábrica (1995) o quanto essa movimentação dos corpos

fabris se relacionam a uma biopolítica que se instala no cinema desde os primeiros filmes.

Nessa esteira, quando Thomas Y. Levin (2009, p.179) discute a relação entre vigilância e

cinema, ele aponta que se trata de uma relação “longa” e “complicada”:

Pode-se afirmar que a vigilância no trabalho desempenha papel


fundamental logo no nascimento dessa mídia [o cinema], já que La
sortie des usine Lumière (1895), de Louis Lumière,
independentemente do que possa ser além disso, é também o olhar
do patrão/proprietário a observar seus trabalhadores, enquanto eles
deixam a fábrica (idem).

Assim, quando Selma cita a sua paixão pelos musicais, quando analisa-os

formalmente ao dizer que na última música a câmera sempre sobe tanto que “atravessa o teto”,

quando os utiliza em favor de sua sobrevivência (para conseguir aguentar suas condições de

vida), o que fica posto não é somente a questão ideológica do american way of life e suas

falsas promessas, mas também a questão formal de uma imagética de coerção dos corpos –

imagética estruturada e portanto espelhada no próprio dispositivo que a possibilita, o cinema.

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41ª ed. Petrópoles, RJ:
Vozes, 2013.

LEVIN, Thomas Y. Retórica do índex temporal: narração vigilante e o cinema de “tempo real”.
In: MACIEL, Katia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009. p.175-192.

MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue, 2010.

WOHL, Victoria. Blind spots and double vision: national and individual fantasy in Dancer in the
dark. In: HONIG, Bonnie; MARSO, Lori J. (ed.). Politics, Theory, and Film: Critical Encounters
with Lars Von Trier. Oxford: Oxford Press University, 2016.

Você também pode gostar