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Ao assistir ao filme “O Arco e a Lira”, nos deparamos logo na primeira cena com uma
imagem que nos faz questionar a realidade – uma imagem não identificada de algo que
parece um macaco se movendo no topo de uma vara, contra um céu rosáceo, cruzado
pela aparição de um homem iluminado de azul, lançando sua flecha. Tudo isso ao som
de um canto que, ao se juntar aos outros elementos descritos, transmite a sensação de
um sonho. São muitos os momentos do filme que nos deslocam da nossa percepção do
real, ao mesmo tempo que nos posiciona ao lado da personagem principal, na floresta
e no seu mundo subjetivo.
A segunda cena começa com um frame da floresta, e passa o foco para nossa
personagem coletando materiais da vegetação para confeccionar um instrumento. O
processo de confecção é intercalado por imagens da floresta, sempre evidenciando
seus sons, detalhes e ritmos próprios, pautados pela paisagem sonora. Quando o
instrumento fica pronto, observamos a protagonista molhar com saliva seus novos arco
e lira, para então produzir a música que dá o tom narrativo do filme. A inserção do
espectador nesse cenário é tão forte, que é quase possível sentir o fio do instrumento
dentro da boca, com os ruídos dos pássaros e das árvores ao fundo.
Percebemos que o filme nos possibilita uma análise “frame to frame”, que nos transporta
do real ao imaginário, unindo sensações, sentimentos, sons e musicalidade. Tal
musicalidade dá sentido à narrativa e à posição da protagonista em seu ambiente
espacial e social. Assim, esta estabelece uma comunicação simbólica com o espectador
e com seu par por meio de sua performance. Segundo Tiago de Oliveira Pinto, “A
etnografia da performance musical marca a passagem de uma análise das estruturas
sonoras à análise do processo musical e suas especifidades. Abre mão do enfoque
sobre a música enquanto “produto” para adotar um conceito mais abrangente, em que
a música atua como “processo” de significado social, capaz de gerar estruturas que vão
além dos seus aspectos meramente sonoros”. Podemos entender essa concepção de
etnografia musical ao perceber como a paisagem sonora do ambiente, a música tocada
e a música cantada, e as imagens mostradas nos fazem compreender e sentir junto com
a protagonista. Presenciamos uma cultura que é sonora, em oposição à cultura
imagética ocidental.
O projeto fílmico aqui, se consolida como uma importante ferramenta de tradução. Por
meio dele foi possível uma comunicação acerca da experiência do sensível, em que é
possível perceber a subjetividade da personagem, e da pessoa que produziu o filme na
construção da narrativa, formando um encontro subjetivo. (VILELA, 2017). Segundo
Vilela, em seu texto “Quando a roda de samba acontece: o audiovisual como tradução
da experiência na performance musical participativa”, uma boa tradução não precisa
ser, necessariamente, literal: a capacidade metafórica e sinestésica de abraçar a
subjetivação faz possível que a experiência do outro seja vivida, e tornada própria. E é
essa a sensação passada pelo filme.
O filme apresenta elementos que nos remetem à ficção, mas com uma verossimilhança
que nos faz questionar a realidade, e a dimensão do sensível e do inteligível. O cinema,
como a arte do duplo (BARBOSA, CUNHA, HIKIJI, NOVAES, 2009), possibilita uma
alteridade que se transforma ao passo que nós mesmos nos transformamos no outro.
Assim, nossos sentidos, emoções e afetos são ativados, e passamos a enxergar com,
e como, o outro – no sonho de uma tocadora de lira.
Bibliografia:
OLIVEIRA PINTO, Tiago de. “Som e música: questões de uma antropologia sonora”. In
Revista de Antropologia. São Paulo, USP, v. 44, n.1, 2001.
http://www.scielo.br/pdf/ra/v44n1/5345.pdf
VILLELA, Alice & ROMERO, Hidalgo. "Quando a roda acontece: o audiovisual como
tradução da experiência na performance musical participativa". In: ANAIS do SIPA -
Seminário Imagem, Pesquisa e Antropologia. Unicamp, 10 a 12 de abril de 2018.
Disponível em: https://www.sipa.ifch.unicamp.br/pf-sipa/anais_ii_sipa.pdf