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TRILHA SONORA: O SOM DO ESPETÁCULO

Objetivos ou subjetivos, os sons definem e criam climas,


situações e emoções

Zero Freitas*

Sempre que a gente resolve montar uma peça, tem uma hora que surge a
pergunta: e a música, como é que vai ser? Quem pode cuidar disso? E a
aparelhagem, quem arruma? Lá vem de novo a Isildinha com o três-em-um do
irmão dela... e o diretor e os atores e as atrizes e o pessoal todo que vai
participar grita em coro: Não! Desta vez não, socorro!!!

Esses aparelhos tipo três-em-um, quebram o maior galho, servem para quase
todo espetáculo. Mas o do irmão da Isildinha, nem pensar. Sempre é assim:
justo aquele som que é descolado em cima da hora ou o rádio está ótimo, mas
não funciona o cassette ou está tudo em curto ou come a fita ou está perfeito,
mas alguém, por engano, logo no primeiro ensaio o liga no 220, e ele vai
torrando devagarinho, devagarinho, pffff.

Enfim, é isso que a maioria lembra quando pensa em música para teatro e é
mesmo uma parte importante do assunto, mas vamos tratar primeiro do
principal: a própria música, ou melhor, tudo que seja som, ruído, comentário ou
interferência sonora numa peça de teatro.

Parte desses sons muitas vezes é definida no próprio texto, quando existe um,
parte é indicada pela direção durante os ensaios, parte pode até ser sugerida
por qualquer um envolvido no processo de criação do espetáculo.

E se tiver alguém por perto (o mais comum é ser o namorado de uma das
atrizes) que seja mais ou menos músico ou tenha um monte de discos ou ouça
walkman o dia inteiro, é fatal: vai ser convidado a fazer a parte musical da
peça. Assim não dá, pessoal! Não vai ser legal.

Diz a antes famosa voz da experiência, hoje triste e abatida morando debaixo
do viaduto, que músico (não deixa ele ouvir isso) d-e-t-e-s-t-a teatro. Nem lê o
texto, não acompanha ensaio, entrega a fita pronta sem maiores encucações e
se tiver algum erro o diretor e o elenco que se adaptem. Se ainda por cima for
operar o som ou tocar ao vivo no espetáculo, cuidado: às vezes ele falta,
porque pintou um lance pra tocar num barzinho ou numa festa.

Sim, há exceções! Não conheci nenhuma, mas ouvi dizer. Portanto, primeiro
ponto para se fazer trilha sonora é gostar de teatro. De preferência ser
apaixonado por ele. Pode não ser tudo, mas é básico. Para esses, então,
algumas dicas a seguir.

Muitos são os tipos de som que podem incidir numa história contada, seja em
teatro, cinema, TV rádio ou mesmo apenas alguém que conta uma - o contador
de história, aliás, é um artista muito especial. Em teatro, costuma haver uma
divisão assim: se parte do texto ou da história vai ser cantada, então trata-se
de um musical, caso contrário, não. É uma "verdade" cuja discussão tem
gerado muita discussão e não vamos abordá-la agora.

O fato é que, mesmo num musical, além das partes musicais propriamente
ditas, pode haver uma trilha incidental de sons, ruídos etc, o que é muito mais
percebido no cinema, onde esse trabalho é fundamental para envolver a platéia
nos climas propostos, mas também pode ser importante e até imprescindível (!)
num espetáculo teatral, mesmo sem nenhum ar de superprodução.

Existem dois tipos de sons: objetivo e subjetivo. O primeiro é todo som que
realmente ocorre durante as ações que transcorrem numa peça, como, por
exemplo, um tiro, uma sirene, barulhos de rua, uma música tocando numa
vitrola, uma notícia através de um
O som "objetivo" é o da
rádio. Não necessariamente a
ação. O "subjetivo", da
fonte sonora (vitrola, rádio) está
emoção.
em cena, ou, estando em cena,
não necessariamente funciona de verdade. Mas esses sons, musicais ou não,
são objetivos, existem de fato na ação, todos em cena ouvem esses sons (a
não ser que algum personagem seja surdo).

O som subjetivo, é aquele som que não existe de verdade, mas de várias
formas não concretas de outras faces de uma verdade mais ampliada. Por
exemplo: dois personagens se aproximam, se abraçam, se beijam
apaixonadamente, e uma música liiiinda se ouve o tempo todo, que vai
aumentando à medida em que eles vão ficando calados e cada vez mais
envolvidos.
Pois é, a música não está lá realmente, o que se ouve é o som que está
tocando nos corações dos dois e de toda a platéia. É uma convenção
estabelecida, à qual nos acostumamos porque nos acompanha desde que
nascemos. Manipular o uso dessa convenção é uma arte.

Você pode, durante o desenrolar da peça, ir definindo climas, situações,


personagens, histórias inteiras, com intervenções sonoras que, uma vez
definidas, quando reapresentadas mais à frente trazem de volta todo o clima,
toda a carga emocional de um personagem, conduzindo o espectador a ligar
este momento com o anterior, por exemplo, ajudando a "contar a história" de
maneira mais envolvente e visando manter a platéia mais atenta.

Um dos grandes mestres na utilização desse recurso foi Alfred Hitchcock, cine-
asta inglês. Citar cinema pode ser mais produtivo porque, afinal, com o vídeo,
existe acesso pra quem quiser conferir.

O Alfred, além de todo o avanço de linguagem que proporcionou à arte deste


século (a mais famosa manipulação através da música na História do Cinema
está em "Psicose"), chegou ao cúmulo de fazer um filme fantástico chamado
"Os Pássaros", em que toda a música que se ouve, provocando um suspense
ininterrupto, não passa de sons de pássaros os mais variados, combinados
entre si para provocar mil climas diferentes. Como a platéia se envolve
totalmente com a história, em geral nem chega a perceber, chegando mesmo a
achar a música linda. Mas são raros os que percebem, vendo várias vezes o
filme, que nem sons de pássaros se ouve na trilha, sendo tudo absolutamente
eletrônico, artificial. Não tem um único som de pássaro na fita toda. Um maluco
total!

Isso serve também pra ilustrar outro aspecto importantíssimo, quase que
voltando pro três-em-um do irmão da Isildinha. É possível se fazer uma grande
trilha sonora sem aparato técnico nenhum e até sem qualquer aparelho. Aliás,
alguns dos mais inesquecíveis espetáculos qo teatro tinham essa
característica. Basta a gente resgatar nossa infância, quando brincávamos de
avião com dois lápis em cruz riscando o espaço cósmico, ou de batida de
carrinhos (meninas têm milhões de outros exemplos), que vamos lembrar da
perfeição de sons que produzíamos nessas horas, provocando nosso
envolvimento total com a ação vivida ali.

Os sons de um espetáculo, objetivos e subjetivos, podem ser resolvidos com


criatividade através da participação de todos, inclusive com execução dos
mesmos pelo elenco ou por alguém específico, mostrado ao público ou não.

Podem ser usados sons reais (buzinas, campainhas) ou tudo inventado


mesmo, tornando mais estimulante tanto o processo de criação quanto o
momento em que a platéia recebe aquela informação e decifra de forma
deliciosa seu código.

Latas, folhas de zinco, água, utensílios domésticos, o próprio corpo, qualquer


fonte de som é válida se usada com criatividade, todos nós sendo
compositores em potencial, não se abrindo mão, quanqo possível, de se utilizar
também (sem exclusão) as fontes de som convencionais (gravador, CD, rádio,
vitrola etc).

Por último, saibam todos que o bom uso do silêncio é uma das maravilhas da
raça humana. Dois truques sobre ele: quando se quiser perturbar uma platéia,
faça-se um silêncio total. Mas quando se quiser dar uma sensação estranha de
silêncio, pode-se utilizar uns tipos de sons sutis, esquisitinhos (um vento, um
rio), que seria o tal som subjetivo que só existe no interior das pessoas.

E se não tiver jeito, e o namorado da atriz não sai de perto dela nunca, tudo
bem. Deixa ele ajudar a fazer a trilha, afinal é difícil achar pessoas a fim de
trabalhar. Mas vamos mostrar pra ele que teatro, meu Deus, como já disse um
personagem, é um troço lindo.

* Zero Freitas é diretor musical. Entre seus trabalhos no teatro


fez a direção musical de "Quarta Estação", "Gaivota",
"MaratSade", "As Bacantes", "Rastro Atrás" e "Avesso".

Extraído da Revista
TEATRO DA JUVENTUDE
Ano 2 – número ‘0 – Fevereiro de 1997

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