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A grande orquestra
da natureza
Descobrindo as origens da música
no mundo selvagem
Tradução:
Ivan Weisz Kuck
Nota: Palavras destacadas em negrito indicam áudio disponível para audi
ção no endereço bit.ly/orquestranatureza
. O som é meu mestre
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18 A grande orquestra da natureza
Foi por um feliz acaso que me vi envolvido com os sons naturais. Co-
mecei minha carreira musical como guitarrista de estúdio, gravando de
tudo um pouco em Boston e Nova York. Até que, em meados dos anos
960, quando os músicos começavam a descobrir os sintetizadores, mudei-
me para a Califórnia para assistir a aulas de música eletrônica no Mills
College, onde conheci Paul Beaver, músico de estúdio de Los Angeles e
organista de concerto que fizera carreira criando efeitos sonoros estranhos
para longas-metragens como O monstro da lagoa negra e A guerra dos mundos.
Em seu ofício, Paul tirava sons assombrosos de suas ferramentas, sin-
tetizadores rudimentares como o Ondes Martenot e o Hammond No-
vachord, além do teremim, que emitia uma voz de soprano lúgubre e
oscilante. Usava também invenções próprias, entre as quais um teclado
sintetizador arquetípico de duas oitavas, que gerava efeitos agudos de fic-
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Porém, eu ainda não tinha noção de até que ponto o mundo natural era
preenchido por uma espantosa tagarelice. Como alguém poderia saber?
Muitos de nós não conhecem a diferença entre a mera audição e a escuta.
Ouvir passivamente é uma coisa, ser capaz de escutar ativamente, com
plenitude e envolvimento, é outra.
Meus ouvidos ouviam os sons com indiferença, mas não eram treina-
dos para distinguir as diversas nuances dos ambientes naturais intocados.
Eu sempre usara meus ouvidos como filtros – para eliminar os ruídos – e
não como portais para a entrada de um grande volume de informações.
Um bom sistema de microfones me permite diferenciar entre o que escutar
e no que reparar. Pelos fones, percebo os elementos da tessitura sonora com
tal clareza de detalhes que ainda me surpreendo com quanto eu estava per-
dendo. Um par de microfones estereofônicos transforma o espaço acústico.
Quando aumento o volume um pouco acima do que sou capaz de ouvir
sem o auxílio de algum aparelho, tenho a impressão de estar em “outro
mundo”, algo que deve ser parecido com o que os astrônomos sentem
diante de imagens da explosão de supernovas nos confins do Universo
captadas pelo telescópio Hubble.
Dorothea Lange, a repórter fotográfica da era da Grande Depressão,
dizia que a câmera é uma ferramenta que ensina a enxergar sem câmera.
Bem, o gravador é uma ferramenta que ensina a escutar sem gravador. No
instante em que ouvi pela primeira vez o coral de um alvorecer de prima-
vera, finalmente dotando o cenário visual de uma trilha sonora adequada
e amplificada pelos fones, percebi que, com a audição desfocada, minha
experiência do mundo real perdia um de seus aspectos mais admiráveis.
O som amplificado me dotou de um meio para decifrar a linguagem da
natureza de uma maneira da qual meus ouvidos “aculturados” pela prática
musical não seriam capazes sozinhos. Quando estava lá sentado gravando,
eu muitas vezes sentia uma ânsia súbita de me juntar à performance. E
naquele dia, ao deixar a floresta, fui tomado por um sentimento de incom-
pletude. Era uma combinação de segredos importantes que permanecem
não ditos ou não ouvidos e uma sensação de haver encontrado um cami-
nho de descobertas que se aproximava muito de uma revelação divina.
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Sem a água, a vida como a conhecemos não existiria. Não é nada fácil
captar e reproduzir a sonoridade desse líquido, origem dos sons mais an-
tigos. Seu borbulhar, murmurejar, marulhar, rugir e bater periódicos e
multirrítmicos servem de pano de fundo para os temas musicais humanos
desde que as primeiras músicas foram cantadas e as primeiras palavras
pronunciadas.
Foi preciso percorrer todo o curso da história da música até que um
compositor produzisse uma composição orquestral capaz de dar uma
ideia do que é o mar – Debussy chegou perto com La mer, executada pela
primeira vez em 905. Sua obra, porém, ainda dependia de evocações vi
suais e associações verbais para funcionar minimamente. Eis um exercício
interessante: toque trechos da peça para alguém que nunca a tenha ou-
vido e não conheça seu título. Pergunte o que ele acha que o compositor
pretendeu transmitir. Quando fiz essa experiência, no final dos anos 990
– tocando os seis minutos do segundo movimento (“Jeux de vagues”) para
uma turma de sétima série –, as respostas variaram de “viagem espacial”,
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“música para um filme sobre o campo”, “uma cena sobre uma família ou
dinossauros” e “filme de faroeste” a “uma chatice”. Nenhum dos estudan-
tes acertou que a música representava uma impressão do mar, nem mesmo
que tinha a ver com água.
À primeira vista, a gravação dos sons aquáticos parece simples: instale
um microfone à beira do oceano e aperte o botão de “gravar”. Contudo,
por mais que tentasse, minhas primeiras tentativas pareciam não dar
muito certo. Somos tão visuais que a maioria de nós, quando não enxer-
ga muito mal, tende a escutar aquilo para que está olhando. Quando vol-
tamos o olhar para os vagalhões que rebentam longe da costa, nossos ou-
vidos e cérebro costumam filtrar tudo o que não é o ribombar longínquo,
que transmite a impressão de distância e de uma incrível força. Quando
contemplamos as ondas mais próximas, que quebram na beira da praia,
ouvimos o estalo das pequenas bolhas rebentando na areia aos nossos pés,
enquanto o rumor das vagas distantes desaparece ao longe.
Os microfones, porém, não têm olhos nem cérebro. Eles captam tudo
o que está dentro do alcance para o qual foram projetados, sem nenhum
filtro. Assim, acabei descobrindo que, para representar o som do litoral,
era preciso gravar diversas amostras de diferentes distâncias: a algumas
centenas de metros das margens, a meio caminho entre as dunas cober-
tas de grama e a água, e bem na beira do mar. Depois, volto para casa e
uso um programa de edição sonora para combinar todas as amostras em
volumes variados, de modo que meu áudio reproduza melhor a mágica
das ondas. Mas, em sua forma mais elementar, o que é exatamente isso
que estou gravando? O que é o som?
É difícil dar uma descrição desse fenômeno que vá além de suas pro-
priedades físicas – frequência, amplitude, timbre e duração. Apesar disso,
o som desempenha um papel fundamental na maneira como as sociedades
se expressam e é o fundamento da voz coletiva do mundo natural, da
música e de todo tipo de ruído acústico.
Seus elementos básicos não podem ser abarcados por nossa linguagem,
e para a maioria de nós o som sempre foi um enigma. Quando lhe pediram
que o descrevesse, o compositor, naturalista e filósofo R. Murray Schafer
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danos auditivos. A exposição contínua a esse som causa a falha das células
ciliadas da cóclea, o que pode provocar surdez. Para alguns de nós, porém,
níveis bem mais baixos são suficientes para provocar dor e danos. No meu
caso, por exemplo, sons que ultrapassem os 90dBA já começam a causar
desconforto, ou mesmo dor. Acontece que sou extremamente sensível aos
sons, em especial aos mais altos.
Alguns animais, como os golfinhos, são capazes de emitir sons tão
intensos que, se fossem produzidos no ar, equivaleriam ao disparo de
uma arma de grosso calibre a poucos centímetros de nossa cabeça. Mas,
guardadas as devidas proporções, um dos organismos mais barulhentos
do reino animal é, por mais estranho que possa parecer, o camarão-pistola,
que não chega a quatro centímetros. Muitos mergulhadores já ouviram
esse som, pois o crustáceo é encontrado na maior parte das costas oceâ
nicas, em recifes e estuários. É um barulho parecido com os estalos de
um rádio malsintonizado e permeia todo o espaço submarino, um sinal
produzido pelas longas pinças do animal. Debaixo d’água, pode exceder
os 200dB – um nível de pressão sonora equivalente a cerca de 65dB no ar.
Considerando que uma variação de 6dB corresponde a uma multiplicação
ou divisão por dois da intensidade de um som, podemos comparar o cama-
rão-pistola a uma orquestra sinfônica, que pode chegar a picos de mais ou
menos 0dBA. Na verdade, esse bichinho tão humilde e sem sofisticação
não é superado nem mesmo pelo Grateful Dead, grupo de rock em cujos
shows já foram registradas intensidades superiores a 30dB. Engulam essa,
roqueiros: o camarãozinho é quase cinco vezes mais barulhento – e isso
sem nenhuma aparelhagem sonora!
O som humano mais alto que já medi foi um grito de mulher. A voz
dela chegava a 7dBA quando medida a uma distância de três metros – vo-
lume um pouco maior do que a média dos shows de rock mais barulhentos.
Mas, com a exceção de uma erupção vulcânica como a de Cracatoa, ou de
um trovão dos mais fortes, não há muitos outros sons naturais gerados no
ar que sejam capazes de causar dano auditivo.
A quarta das principais características do som, o envelope acústico,
determina sua forma e textura ao longo do tempo, do momento em que
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Embora presentes em todo e qualquer sinal acústico – seja ele gerado por
animais, homens, instrumentos musicais ou máquinas –, os elementos do
som constituem apenas uma parte do que constitui a sonoridade coletiva
de determinada localidade. A palavra soundscape [paisagem sonora] apa-
receu na língua inglesa em fins do século XX e se refere à totalidade dos
sons que chegam a nossos ouvidos em determinado momento. A criação
do termo é atribuída a R. Murray Schafer, entusiasta e estudioso da so-
noridade de diversos hábitats. Schafer buscava maneiras de enquadrar a
experiência auditiva em novos contextos não visuais. Ao mesmo tempo,
sua meta era nos incentivar a prestar mais atenção na tessitura sonora dos
ambientes, onde quer que vivêssemos.