Você está na página 1de 14

DESIGN SONORO E DIMENSÃO ACÚSTICA DA CENA NA

PEÇA ESTOPIM1
Ernesto Valença
Doutor em Artes, DEART/UFOP
RESUMO
O artigo tem como foco o projeto de design sonoro para a peça Estopim, do grupo Teatro
do Tumulto, formado por alunos e professores do curso de teatro da UFOP (Ouro
Preto/MG) e que pesquisa as relações entre tecnologia e política na cena teatral. Tendo
como referência o conceito de dimensão acústica da cena, descreve as etapas de
criação sonora e os elementos musicais do espetáculo, elaborados como forma de
integração dos planos presenciais e audiovisuais mobilizados na encenação. Aborda
tanto as referências teóricas que balizaram a proposta sonora quanto os aspectos
práticos de sua execução.

Palavras-chave: Sonoplastia; Dimensão acústica da cena; Teatro e tecnologia.

1 Apresentado inicialmente como exposição oral no II Seminário de Design Cênico: elementos


visuais e sonoros da cena, organizado pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR), em Curitiba, Paraná, em junho de 2017. Naquela ocasião, o espetáculo se encontrava
em fase final de montagem e seu nome ainda era Os fuzis de Tereza. A presente versão é uma
atualização da apresentação oral original, revisada especialmente para a edição do livro Ciência
Brasileira: Múltiplos Olhares, desta vez, já com o nome que o espetáculo adotou ao final:
Estopim.
INTRODUÇÃO: O LUGAR ONDE AS COISAS SOAM!

A intenção deste texto é discutir alguns aspectos da concepção sonora da peça


Estopim, montada pelo grupo Teatro do Tumulto2, apresentando o design sonoro
desenvolvido para o espetáculo e que teve por base o conceito de Dimensão
Acústica da Cena. No entanto, gostaria de iniciar rememorando uma pequena
lembrança de infância, ligada ao teatro, e que tem a ver com minha opção
pessoal por trabalhar com os aspectos sonoros de um espetáculo teatral. Creio
não haver melhor oportunidade para citar essa lembrança se não em um texto
sobre a dimensão acústica da cena teatral.

Não tenho absoluta certeza do ano, mas certamente eram os anos de 1980 e eu
tinha em torno dos 8 ou 9 anos de idade, quando minha mãe me levou para
assistir teatro pela primeira vez na vida. A peça chamava-se O menino do dedo
verde e a história girava em torno de um garoto, o menino do título, que
transformava tudo o que tocava em planta. Em certa cena da peça, havia um
enorme canhão no centro do palco (ao menos, era enorme para mim naquela
época) e, no momento em que o menino do dedo verde tocou esse canhão, ele
imediatamente explodiu, soltando uma espantosa quantidade de pétalas de
flores pela sua boca, o que certamente denotava um resquício da luta contra a
ditadura militar que tinha marcado várias produções teatrais das décadas
anteriores.

A explosão foi tão forte, e certamente amplificada pela aparelhagem de som do


teatro, que todos nós nos assustamos e sentimos a vibração do som nas
cadeiras. Na minha cabeça de criança, e desde então, o teatro passou a ser para
mim aquele lugar onde as coisas soam! Um lugar mágico, onde os objetos
tinham essa capacidade incrível de produzir sonoridades fora do comum.

2 Estopim, peça criada pelo Teatro do Tumulto, estreou em 11 novembro de 2017, no


Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (DEART/UFOP). Teve
diversas apresentações, incluindo participação na 9ª Edição do Americana Mostra, em São
Paulo, festival de teatro promovido pelo Fábrica das Artes e com apoio da Secretaria Municipal
de Cultura e Turismo. Ficha técnica do espetáculo – Elenco: Isabela Freiria; Sheiquellann
Sheronn; Glaucia Venâncio; Agnaldo Pires. Direção: Jotapê Antunes. Direção Musical: Ernesto
Valença; Luis Castro. Direção Audiovisual: Paola Giovana; Pedro Gaban; Bárbara Polzer.
Produção: Fraciele Vieira; Victor Pitombeira. Fotografias: Suttane Hoffmann.
Quando fui fazer meu curso de artes cênicas, mais de uma década depois,
jamais fui capaz de compreender quem fazia teatro sem dar atenção à essa
dimensão tão especial que é a da experimentação sonora. Um ensinamento que
nós já deveríamos ter aprendido desde a época de Stanislavski e de seu
tratamento minucioso do som.

Talvez por isso eu tenha me impressionado tanto pelo conceito de Dimensão


Acústica da Cena, quando tomei contato com ele muito tempo depois, já durante
meu mestrado.

ORIGEM DA DIMENSÃO ACÚSTICA DA CENA

Dimensão Acústica da Cena é um conceito desenvolvido pela pesquisadora


Silvia Davini, atriz argentina, ex-professora da UNB, falecida prematuramente
em 2011. Sua concepção sonora do espetáculo foi divulgada através de artigos
e textos publicados em revistas acadêmicas da área teatral no Brasil, bem como
por meio de um livro de sua autoria, Cartografías de la voz en el teatro
contemporáneo, que é a publicação argentina de sua tese de doutorado. Davini
também disseminou esse conceito em suas aulas e pesquisas na UNB, deixando
alguns continuadores do trabalho que, de outro modo, desenvolvem o conceito
em novas e diferentes direções, com destaque para César Lignelli, atualmente
professor da UNB e que foi aluno de Davini desde a graduação até o mestrado.

Embora não seja um especialista nesse conceito, já que nunca fui aluno de Silvia
Davini nem trabalhei diretamente com qualquer pessoa que tivesse maior
contato com ela, acredito que meu trabalho se insere exatamente nesse campo,
talvez de modo intuitivo.

O QUE É A DIMENSÃO ACÚSTICA DA CENA

O conceito de Dimensão Acústica da Cena é relativamente simples, mas com


conotações e implicações bastante amplas para a encenação. Ela se constitui,
basicamente, pelo entendimento de que as esferas sonoras da palavra, da
música, do desenho acústico do ambiente e de sons produzidos aleatoriamente
na cena, acidentais ou programados, constituem, em conjunto, uma ampla rede
de relações. Na definição de Silvia Davini:

Numa superfície de 360º constituída em diversos planos fixos e


móveis, as esferas da voz e da palavra, do desenho acústico e da
música em performance estabelecem um complexo de relações
que reconhecemos como a dimensão acústica da cena. Nesse
contexto, o corpo em performance torna-se o “palco” primeiro; lugar
de intersecção entre as dimensões visual e acústica da cena
(DAVINI, 2006, p. 309).

O conceito, portanto, indica o imperativo de tratar a esfera sonora do espetáculo


teatral de maneira integral, completa, como uma totalidade, mas não
necessariamente unificada, já que é possível conceber planos sonoros que se
contradigam, se problematizem mutuamente. O que se propõe, com a ideia de
uma dimensão acústica da cena, é simplesmente o tratamento concentrado,
atencioso, à esfera acústica, de modo a que os diversos aspectos sonoros não
sejam deixados ao acaso, mas sejam planejados.

Apesar de simples, o conceito coloca em foco aspectos geralmente


negligenciados por encenadores. É verdade que se dá bastante atenção à voz
no teatro, inclusive nas escolas e centros de formação, mas em geral de modo
pouco articulado com os conhecimentos mais avançados do campo da acústica,
da tecnologia sonora e da música eletroacústica contemporânea.

Uma comparação reveladora, mencionada por César Lignelli em sua dissertação


de mestrado (LIGNELLI, 2007): a dimensão acústica ocupa um lugar
inegavelmente central na produção cinematográfica, lugar definidor. Stanley
Kubrick, Paul Tomas Anderson e Lars Von Trier, para ficar apenas em alguns
nomes mais conhecidos, concebem a imagem de modo indissociável ao som,
tirando deles o máximo de capacidades nos níveis discursivo, imersivo ou
sensorial. Observando o panorama cinematográfico atual, torna-se evidente o
cuidado dispensado às questões acústicas, exemplificado em especial no
investimento tecnológico, tanto na produção ou geração do som (na gravação do
som direto, na criação de sons complementares e incidentais em estúdio, na
criação de trilhas sonoras específicas para cada obra, etc.) quanto na sua
reprodução eletrônica (com salas de exibição cada vez mais bem construídas e
equipadas em termos acústicos). O cuidado com o som no cinema evidencia e
denuncia o ínfimo espaço que se tem dado a esse mesmo parâmetro no teatro.
Conforme Davini:

Frequentemente, as equipes técnico-administrativas dos teatros


não recebem bem a notícia de que algum equipamento de som
precisa ser colocado em um lugar diferente daquele que ocupa
habitualmente, algo que nunca sucederia em relação às demandas
de um iluminador ou de um cenógrafo (DAVINI, 2007, p. 165.
Tradução livre do autor)

Os teatros simplesmente não estão preparados para, ou dispostos a, mudanças


de posicionamento das caixas acústicas como estão em relação à iluminação,
por exemplo. Também não é usual que diretores teatrais conduzam seu trabalho
auditivamente, mas muitos deles têm ideias e concepções, às vezes bastante
complexas, sobre como deve ser o cenário e a luz de seus espetáculos. Em
geral, no teatro, se explora com certa perfeição as tecnologias cenográficas e de
iluminação, mas de maneira muito limitada as de som.

Então, do mesmo modo como hoje se compreende a necessidade de um projeto


espacial, cenográfico, e de iluminação específicos para cada montagem (mesmo
que sejam espaços encontrados na cidade e beneficiando-se conscientemente
da luz do sol), a ideia de uma dimensão acústica da cena entende que cada
montagem é um fenômeno acústico próprio, que cada encenação propõe
questões específicas para o som, que cada obra teatral performada pode ser
amparada por um projeto acústico ou sonoro específico, abarcando os aspectos
da palavra falada, da música de cena, dos dispositivos sonoros tecnológicos e
da propagação de sons incidentais realizados pelos próprios atuadores.

Imbuídos dessa certeza, organizamos o projeto sonoro da encenação Estopim,


do grupo Teatro do Tumulto, que passo a apresentar agora.

TEATRO DO TUMULTO

O Teatro do Tumulto é um grupo composto por alunos e professores do curso


de teatro da UFOP. Surgiu em 2014 da vontade de dar resposta às
manifestações que estavam proliferando naquela época, marcadas por um viés
reacionário, retrógrado, fascista, e que desembocaram no golpe de Estado de
2016. O núcleo realizou uma primeira encenação, anterior a Estopim, chamada
Primeiro como tragédia, depois como farsa... O Teatro do Tumulto nasceu,
portanto, declaradamente como um núcleo de teatro político. Costumamos dizer
que nossa pesquisa é sobre os aspectos políticos do uso de tecnologias
audiovisuais na cena contemporânea.

Imagem 1

Autoria da foto: Suttane Hoffmann. Espetáculo: Estopim

A PEÇA

A segunda encenação do grupo foi justamente Estopim, uma adaptação da peça


Os fuzis da senhora Carrar, de Bertold Brecht, reconfigurada para a situação da
Guerra dos Balaios em seus momentos finais, na cidade de Matinha, interior do
Maranhão, na passagem da década de 1830 para a de 1840. A história era
basicamente a mesma da de Brecht: Tereza é uma dona de casa convencida da
necessidade de manter sua família unida, ou o que restou de sua família – uma
filha e um filho –, durante uma guerra. Certo dia, chega na casa de Tereza seu
irmão, Trovoada, um balaio, interessado em pegar uns fuzis que lá estão
guardados para serem usados na frente de batalha. A diferença da peça de
Brecht fica por conta do fato de que, no mesmo momento, chega na casa de
Tereza também uma quilombola, líder de um quilombo de perto, chamada Dita,
que também quer pegar as armas para defender o mocambo e que, portanto, vai
entrar em conflito com o balaio. A intenção da peça, obviamente, foi discutir
porque a esquerda brasileira tem tantas dificuldades em se unir, mesmo em
momentos tão graves do país.

Imagem 2

Autoria da foto: Suttane Hoffmann. Espetáculo: Estopim

A ENCENAÇÃO

A proposta do grupo não é a de uma encenação necessariamente realista, ou


mesmo brechtiana, mas algo mais performativo, pós-dramático, usando
elementos de cena atuais, contemporâneos. Em especial, o centro da
encenação está na ideia de “cinema ao vivo”, um tipo de encenação que vem
crescendo muito ultimamente e conta com nomes de peso como a brasileira
Christiane Jatahy e a britânica Kate Mitchel.

Assim, buscamos desenvolver uma espécie de dispositivo audiovisual em cena,


contando com três câmeras espalhadas pelo espaço, duas delas manipuladas
ao vivo por operadores, ligadas a um switcher de edição, através do qual as
imagens eram editadas/montadas em tempo real e projetadas simultaneamente
à ação presencial dos atores em um telão de fundo. Assim, os espectadores
podiam assistir, ao mesmo tempo, à encenação presencial dos atores e ao
resultado filmado, videografado, no telão, como um filme.

A organização da encenação esteve a cargo de uma equipe (ou núcleo ou


instância de direção), composta por dois alunos e por mim, que fui o professor
proponente oficial do projeto junto à universidade: a direção de atuação ficou
com um dos alunos; a direção cinematográfica ficou a cargo de outra aluna, que
na época já tinha uma primeira formação em cinema; e a direção sonora ficou a
meu cargo, contando com a ajuda de mais um aluno, músico. Todas as decisões
sobre a condução do espetáculo foram tomadas por todo o grupo, mas em
especial por essa instância de direção.

A PROPOSTA SONORA

A proposta sonora da encenação levou em conta o fato de que se tratava


também de uma obra audiovisual e foi composta por três planos:

- plano da palavra (que é um tratamento especial que demos à forma como os


atores falavam em cena, de modo a que a voz se conectasse com os outros
planos sonoros, mas esse elemento não será abordado neste artigo);

- plano do entorno acústico;

- plano acústico interno-concreto;

- plano musical.
PLANO DO ENTORNO ACÚSTICO

Foi um plano totalmente pré-gravado, mas que sofria intervenções em tempo


real, através de processamento por computador, visando acompanhar a
dinâmica e ritmo de cada dia de apresentação. Foi composto de um sistema
quadrifônico, com as caixas espalhadas nos quatro cantos do espaço,
envolvendo os espectadores. Cada caixa emitia sons diferentes uns dos outros,
embora muitos desses sons transitassem de uma caixa para outra. A intenção
era fazer com que o som literalmente circulasse pelo espaço.

Nesse plano, os sons gravados foram todos referenciais: sons colhidos do


ambiente sonoro da cidade de Matinha, baixada maranhense, bem como da
região rural do município, onde se desenrola a ação. Referiam-se a sons que
interferem na cena desde fora do espaço imediato da ação; sons que traduziam
o espaço ampliado da cena, da atmosfera agreste em volta da casa de Tereza.

Apesar de serem sons referenciais, em alguns momentos eles tinham um


tratamento que os transformavam em algo um tanto mais “surreal”. Por exemplo,
havia o som de um carro de boi que circulava nas quatro caixas
sequencialmente, de modo a dar a impressão de que ele estava rodando em
volta do espaço. Esse som era processado gradativamente, de modo a ficar
bastante distorcido em determinado momento da encenação. Assim, a intenção
era fazer com que esse plano do entorno se transformasse aos poucos e
progressivamente num ambiente imersivo, com uma atmosfera sensorial,
perdendo um pouco das características de signo sonoro que apresentava no
início do espetáculo.

PLANO ACÚSTICO INTERNO-CONCRETO

Designamos este plano de acústico interno-concreto por abranger o tratamento


sonoro dado aos elementos do espaço interno, o espaço da casa de Tereza onde
se desenrolava a trama, por oposição ao entorno acústico, que designava os
sons que interferem desde a parte externa da casa. Também por voltar-se à
sonorização de elementos concretos da cena; objetos cuja projeção de som foi
aproveitada criativamente.

Nesse plano, pequenos microfones foram instalados proximamente a alguns


objetos de cena, de modo a dar maior densidade sonora a eles. Por exemplo,
havia uma cafeteira no cenário, que fervia em determinada cena e tinha certa
importância na trama da peça. O som da água fervendo foi captado e amplificado
pelo dispositivo sonoro. A finalidade era promover um efeito próximo ao do zoom
no cinema, mas no plano sonoro, dando atenção a um evento ou objeto em
momentos específicos e promovendo igualmente uma conexão com a dimensão
cinematográfica da proposta de encenação.

Do mesmo modo, dois microfones instalados em pedestais foram colocados


sobre a cena, captando as palavras proferidas pelos atores. Com isso, alguns
trechos da dramaturgia foram amplificados, chamando a atenção para
passagens estratégicas da trama.

Não houve a menor intencionalidade de esconder os microfones da visão do


público presente ou da captação das imagens, tanto os instalados em objetos
quanto os dirigidos para uso dos atores. Ao contrário, a ideia era a de expor os
mecanismos de geração sonora, integrando-os ao plano da encenação de modo
evidente e revelando-os como parte do dispositivo audiovisual que ocupava o
centro da montagem.

PLANO MUSICAL

O plano musical foi concebido a partir de algumas estruturas e princípios. Do


mesmo modo como ocorria no plano acústico interno, a mesa de operação de
som e os músicos ficavam ao lado da mesa de edição das imagens, às vistas do
público, e a maneira como a música era gerada neste plano podia ser vista por
todos os presentes.

Do ponto de vista da estrutura, nos baseamos num parâmetro que denominamos


de “construções e restos”. Em determinadas ocasiões, em especial quando da
entrada de cada personagem e em momentos de salto temporal, eram
executadas espécies de vinhetas completas, parcialmente gravadas e
parcialmente tocadas ao vivo. Chamamos essas vinhetas de “construções”, que
configuravam minúsculas peças musicais completas, de cerca de 15 segundos,
contando com começo, desenvolvimento e coda bem definidos.

Essas vinhetas, quando acabavam, deixavam rastros de sons no ambiente –


notas musicais e ruídos timbrísticos dos instrumentos – que permaneciam
soando por meio do uso de pedais de delay, ora se integrando, ora se
contrapondo ao plano do entorno acústico. Esses sons que sobravam de cada
vinheta, nós os chamamos de “restos”.

Do ponto de vista da escolha musical, nos baseamos na ideia de leitmotiv, criado


por Richard Wagner. No nosso caso, cada personagem tinha um referencial em
um tipo de instrumento musical escolhido do universo cultural do Maranhão.

Teresa tinha como referencial o som das Caixeiras do Maranhão, manifestação


muito rica da cultura popular da região e da qual só participam mulheres. Trata-
se de uma simbologia que pretendia designar a autonomia e independência da
personagem. Assim, a encenação abria com uma música baseada na estrutura
de composição típica das caixeiras que, quando finalizada, deixava restos de
sons da caixa que elas batem no ambiente, soando repetitivamente nas caixas
acústicas espalhadas pelo espaço, fazendo uma marcação temporal que
acompanhava toda a primeira cena.

O balaio Trovoada tinha como referência o Bumba Meu Boi maranhense,


manifestação popular que goza de prestígio e reconhecimento internacional.
Desse modo, quando ele entrava em cena, era executada uma pequena vinheta
– basicamente, uma decomposição rítmica do Sotaque da Ilha, um dos estilos
musicais do boi maranhense – e que deixava no ambiente sonoro um som de
Tambor Onça, que é um dos instrumentos usados no batalhão dos bois do
Maranhão. Esse resto sonoro do Tambor Onça acompanhava toda a segunda
cena do espetáculo, como uma espécie de cama sonora para a voz dos atores.
Aqui, havia uma analogia remota ao fato de os blocos de instrumentistas
musicais, que são a parte percussiva integrante do Bumba Meu Boi maranhense,
serem chamados de “batalhões”; uma referência militar ao fato do balaio ser um
guerreiro, um lutador da liberdade da população mais pobre do país.
Finalmente, a quilombola Dita tinha como referência a Capoeira, que tem uma
presença marcante na região (há registros da presença da capoeira no
Maranhão desde pelo menos 1820), como de resto em todo o país. A Capoeira
oferecia a dimensão de força e resistência da personagem, indicando também
um tipo diverso de lutadora das frações populares brasileiras, diferente do modo
de luta do balaio Trovoada. Do mesmo modo como nos dois exemplos
anteriores, quando a personagem Dita entrava em cena soava outra pequena
vinheta, que deixava sons no ambiente, acompanhando toda a terceira cena. No
caso particular dessa vinheta, vale a pena mencionar a construção de um
instrumento específico, combinando quatro berimbaus afinados em escala,
tocados por um único instrumentista e que estabeleciam a melodia da vinheta.

As caixas, o pandeirão de boi e os berimbaus eram tocados ao vivo. Havia ainda


a intervenção de um violão, um baixo e um teclado, também ao vivo. Esse som
ao vivo, inclusive dos instrumentos percussivos, era também captado por
microfones e passava por processamento eletrônico-digital por meio de vários
pedais de efeito, acionados durante as execuções.

Imagem 3

Autoria da foto: Suttane Hoffmann. Espetáculo: Estopim


CONCLUSÃO

As tecnologias sonoras contemporâneas ao nosso dispor são de uma variedade


impressionante. Integradas ao processo criativo do teatro desde os primeiros
momentos – e não apenas como complemento final de uma montagem, como é
o costumeiro –, potencializam largamente as realizações teatrais em seu
espectro sonoro, transformando o palco em um verdadeiro laboratório acústico.
Tal laboratório apresenta vantagens inclusive sobre âmbitos mais
eminentemente sonoros, como os shows musicais, pois agregam aspectos
performáticos, corporais e visuais que ampliam as possibilidades da
experimentação com o som. O teatro é, portanto, um espaço cujas experiências
acústicas e eletroacústicas podem influenciar o campo propriamente sonoro,
propondo aplicações inusitadas às aparelhagens que nem sempre são
percebidas no âmbito musical.

Tais aparelhagens sonoras, à disposição dos artistas e projetistas de som do


teatro atual, são, todas elas, como bem se sabe, manejadas por meio de teclas
e botões, ainda que estejam arranjados em forma de uma tela sensível. Efeitos
e processamentos digitais e eletrônicos cujas possibilidades se encontram à
serviço de nossos dedos. E é através desse mundo manejado por dedos
sensíveis, que tocam e deslizam teclas e botões, que o teatro prossegue sendo
aquele lugar em que as coisas soam!
REFERÊNCIAS

DAVINI, S. A. O lado épico da cena ou a ética da palavra. Anais do IV


Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio
de Janeiro: Sete Letras, 2006, p. 308-310.
DAVINI, S. A. Cartografías de la voz en el teatro contemporáneo. Buenos
Aires/Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2007.
LIGNELLI, C. A produção de sentido a partir da Dimensão Acústica da Cena.
Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/PPGA, 2007.

Você também pode gostar