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TREINAR A ESCUTA POR MEIO DE MAPAS SONOROS EM CURSOS DE CINEMA E

AUDIOVISUAL1

Marina Mapurunga de Miranda Ferreira


Universidade de São Paulo/
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
marinanimula@gmail.com

Resumo: Este trabalho propõe a criação de mapas sonoros em cursos de Cinema e


Audiovisual como uma estratégia de ensino para processos coletivos de criação sonora.
Apresentamos o processo criativo e os resultados do projeto Mapa Sonoro de Cachoeira
desenvolvido na disciplina Oficinas Orientadas I, do curso de Cinema & Audiovisual da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e pelo projeto de extensão
SONatório (Laboratório de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora). A realização do
Mapa Sonoro, nos primeiros semestres do curso de Cinema, além de ter sido um primeiro
contato dos estudantes com gravadores portáteis e com a gravação de campo,
possibilitou que eles, a maioria oriunda de outras cidades, se relacionassem com a cidade
de Cachoeira por meio da escuta. O mapa parte de captações de sons ambientes para
serem utilizadas nos filmes desenvolvidos no curso até captações de sons mais
particulares do cotidiano dos estudantes que envolvem seus afetos e pontos de escuta
em relação à cidade. O processo de criação do mapa proporcionou aos estudantes
descobrir lugares de escuta na cidade, interagindo com sua comunidade, reconhecendo o
valor de sua relação com o outro, refletindo sobre a história de seus percursos percorridos
e escutando a si mesmo.

Palavras-chave: mapa sonoro, escuta, ensino.

Introdução

Nos currículos de cursos de graduação de Cinema e Audiovisual no Brasil, as


práticas sonoras estudadas e trabalhadas, geralmente, estão focadas na captação de
som direto e na pós-produção de som para cinema. A captação de som direto se trata da
gravação do som em sincronia com as imagens no momento da filmagem. A equipe de
1 Trabalho apresentado no GT 09 – Arte Sonora do 3º Congresso Intersaberes em Arte, Museus e
Inclusão; III Encontro Regional da ANPAP Nordeste em 28 e 29 de Agosto de 2020.
som direto é liderada por uma ou um técnico de som direto, que monitora e grava as
vozes dos atores e atrizes, junto a(o) microfonista que manuseia o microfone sustentado
pelo boom2, buscando o melhor posicionamento para a captação. Geralmente se tem uma
ou um assistente de som que auxilia na montagem, desmontagem e organização dos
equipamentos no set de filmagem. Já a pós-produção de som compreende a edição,
mixagem e masterização da trilha sonora 3 de um filme. A equipe de pós-produção de som
é mais extensa que a equipe de produção (de som direto). Na pós-produção, os sons são
organizados na linha do tempo do filme, geralmente dividida em categorias (voz, efeitos,
ambiente e música), o som direto é tratado, sons adicionais são gravados e incluídos para
potencializar a narrativa audiovisual, todo conjunto sonoro é mixado e finalizado para os
formatos a serem distribuídos.
Estas práticas sonoras estudadas nos cursos de Cinema e Audiovisual estão mais
voltadas a uma produção imediata da cadeia produtiva do som no cinema e são
necessárias para que a/o estudante entenda como uma produção sonora para o
audiovisual funciona. Mas nessas práticas pouco se reflete e se discute sobre uma ação
essencial para nosso trabalho com o som: a escuta. Essas práticas da cadeia produtiva
cinematográfica, com o dia-a-dia, vão tornando nossa escuta automatizada, com o desejo
de alcançar, na captação de som direto, um som audível e sem interferências externas
das vozes dos atores, de tornar um som limpo e asséptico na edição de som e mixagem,
tirando os estalidos da fala, as salivações, as respirações ofegantes, o motor de um barco
que passa, o grito de um vizinho, evitando as “falhas” da voz, eliminando os sons graves
da cidade, entre vários outros mecanismos de assepsia sonora que se tornam
padronizados nestas práticas. Ao tornar nossa escuta automatizada, talvez já não mais
escutamos a fundo, mas superficialmente, selecionando nossas escolhas dentro de um
padrão do mercado.

Desautomatizando a escuta

Como evitar essa automatização da escuta? Exercitando-a? Tornando-a

2 “No Brasil, o termo boom é usado para indicar o dispositivo tubular leve, com extensão ajustável e que
suporta o microfone. O microfonista sustenta esse dispositivo com os braços, posicionando o microfone
para a captação do som. Nos Estados Unidos, o termo boom é usado para designar o suporte de
microfone, normalmente construído sobre rodas, com uma longa vara metálica, que carrega o microfone,
sustentada por um eixo central. Esse sistema é operado pelo boom operator por meio de manivelas; seu
emprego é muito comum em gravações de sitcom. Fishpole ou mic boompole é um termo usado para
designar o suporte de microfone leve, sustentado com os braços pelo boom operator.” (SOUZA, 2018, p.
128).
3 Tratamos aqui o termo “trilha sonora” como o conjunto de sons presente em um filme, como as vozes, os
ruídos e as músicas.
consciente? A prática de Deep Listening apresentada pela compositora Pauline Oliveros
(2005) pode ser um bom caminho para pensarmos sobre nossa escuta, sobre como os
sons se relacionam com nossa mente e corpo. A Deep Listening, em aula, é um conjunto
de exercícios extraídos de diversas fontes e peças compostas por Oliveros e outros
praticantes que incluem exercícios respiratórios, de energia, vocalização, escuta e sonho.
Oliveros (2005, p. xxiv) comenta que esta prática é uma forma de meditação em que a
atenção de quem a pratica é direcionada para a interação dos sons e silêncios.
Outras maneiras de exercitar a escuta são apresentadas pelo compositor Murray
Schafer em obras como O Ouvido Pensante (1991) e Educação Sonora (2009). Schafer
propõe uma limpeza de ouvidos que trata de um programa sistemático para “treinar os
ouvidos a escutarem de maneira mais discriminada os sons, em especial os do ambiente”
(SCHAFER, 2001, p. 365). Schafer já sofreu críticas de várias direções, inclusive da
literatura dos Estudos do Som, como de Jonathan Sterne e Marie Thompson, e da
Antropologia, como Stephen Helmreich e Tim Ingold, para citar alguns.
Sterne (2013) critica a visão de paisagem sonora de Schafer por carregar consigo o
desejo por uma estética de pureza que “parece inteiramente parte de uma conversa sobre
alta fidelidade e reprodução estereofônica de música de concerto nas décadas de 1950 e
1960” (2013, p. 190, trad. nossa). Sterne (2012, p. 91) elucida também que alguns autores
usam o termo soundscape (paisagem sonora), mas o conceituam de maneira diferente.
Como a historiadora Emily Ann Thompson 4 que utliza o conceito para organizar uma
história da acústica arquitetônica, mas não usa os métodos e epistemologias de Schafer.
Uma das críticas de Marie Thompson (2017, p. 100) a Schafer está em sua
caracterização de ruído. Thompson observa que a estrutura de ruído do autor, como
interferência, perturbação, baixa fidelidade ou falta de clareza, se confunde com a
poluição sonora no que se refere aos níveis prejudiciais e destrutivos do som ambiental.
Assim, praticamente todas as manifestações de ruído na paisagem sonora
contemporânea são consideradas um problema.
Por outro lado, no campo do audiovisual, Schafer tem sido utilizado
recorrentemente em artigos da área, seja para gerar uma reflexão sobre os ruídos que
cercam o homem contemporâneo urbano e a influência desse cerco na produção
cinematográfica atual ou para analisar o som de filmes a partir de seus conceitos. Em
alguns cursos de Cinema e Audiovisual no Brasil, também é possível encontrar as obras
de Schafer nas referências bibliográficas de disciplinas relacionadas a som, como nos
cursos da UFPel, USP e UEG. O trabalho de Schafer também é bastante difundido em
4 Para mais informações ler The Soundscape of Modernity: Architectural Acoustics and the Culture of
Listening in America, 1900–1933 (Emily Ann Thompson, 2004).
cursos de graduação de Licenciatura em Música. Acreditamos que a disseminação de seu
trabalho no Brasil ocorreu por várias de suas obras terem sido traduzidas para a língua
portuguesa e lançadas por editoras brasileiras.
Outra forma de treinar a escuta é por meio das soundwalks (caminhadas sonoras
ou passeios sonoros). Segundo a compositora Hildegard Westerkamp (2007, p.49, trad.
nossa), “uma soundwalk é qualquer excursão cujo objetivo principal é ouvir o meio
ambiente”. É priorizar nossos ouvidos e expô-los a todos os sons ao redor, não
importando onde estamos. Já o etnomusicólogo e antropólogo Steven Feld comenta que
em seus passeios sonoros o que se ouve “são compósitos, não só de altura e
profundidade ou de espaço e tempo da floresta, mas também de uma história de escuta –
minha história de escutar e ser ensinado a fazê-lo durante vinte e cinco anos em Bosavi.”
(FELD, 2014, p. 3). Feld chama de acustemologia o “modo aural de conhecer o lugar, de
dar ouvidos à escuta, de participar e absorver. Mesmo fisicamente parado, o corpo faz
movimento. E mesmo fisicamente fixos, os microfones captam movimento.” (FELD, 2014,
p.4). Feld (2015, p. 14-15) indica que a acustemologia vai contra a ideia de ecologia
acústica de Murray Schafer, porque não é um estudo do som como um indicador de como
os seres humanos vivem nos ambientes, mas sua abordagem se concentra em histórias
de escuta relacional, em métodos de escuta de histórias de escuta. A acustemologia
aborda “a experiência e a ação de escutar histórias, entendidas como relacionais e
contingentes, situadas e reflexivas” (FELD, 2015, p. 15, tradução nossa).
Escutar o meio também é nos escutar, entendermos a partir do fora, o que há
dentro. Escutar o exterior, para escutar a si mesmo. Assim como Jean-Luc Nancy
comenta que
Estar à escuta é estar ao mesmo tempo fora e dentro, é estar aberto
de fora e de dentro, de um ao outro, portanto, e de um no outro. A
escuta formaria assim a singularidade sensível que portaria, no modo
mais ostensivo, a condição sensível ou sensitiva (aisthética) como tal:
a partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e
contágio. (NANCY, 2014, p. 30)

Estas práticas sonoras realizadas por compositoras, compositores,


etnomusicólogos podem nos auxiliar no treinamento de uma escuta automatizada. A partir
da apresentação destas possibilidades de treinamento da escuta, propomos, para a(s)
pedagogia(s) do cinema a elaboração de mapas sonoros como uma prática sonora que
segue uma linha da experimentação e que objetivamos somá-las às práticas sonoras
tradicionais do cinema/audiovisual já citadas acima.
O caminho da experimentação sonora nos traz uma reflexão sobre a escuta e a
importância de treiná-la, no sentido de exercitá-la, para que possamos agregá-la aos
nossos processos de produção sonora no audiovisual.

Mapas Sonoros

Os mapas sonoros possuem registros sonoros de lugares específicos. Alguns


mapas possuem somente arquivos sonoros do ambiente 5, outros trazem relatos6, uns
podem mapear músicos e grupos musicais 7, logo, podem possuir também arquivos de
música.
Há diversos tipos de mapas sonoros e várias formas de fazê-los. Geralmente, os
websites de mapas sonoros são feitos em plataformas de mapeamento já existentes
como o OpenStreetMap (projeto de mapeamento colaborativo e livre) e o GoogleMaps,
outros possuem sua própria plataforma ou não possuem uma plataforma de mapeamento,
mas apenas um print do mapa com pinpoints nos locais em que os sons foram captados.
Os mapas sonoros frequentemente são colaborativos, como um dos mais
tradicionais, o da Radio Aporee 8, em que você pode enviar seu arquivo de áudio de
qualquer parte do globo terrestre. Há mapas em que não há arquivos pré-gravados, mas
que o áudio é transmitido em tempo real por meio de uma rede de microfones abertos,
como o Locustream do grupo de pesquisa Locus Sonus 9.
O mapa sonoro também pode servir de ferramenta pedagógica para que os
estudantes se aproximem dos equipamentos de gravação de áudio, caso façam parte de
um curso de Cinema, Comunicação, Música, por exemplo, e possam se relacionar com a
escuta de outra forma, mediada por um microfone, um gravador e fones de ouvido.

Mapa Sonoro de Cachoeira

Partiremos da elaboração do Mapa Sonoro de Cachoeira 10 para pensarmos como a


prática de criação de mapas sonoros pode vir a contribuir para a formação da/do
estudante de Cinema e Audiovisual.
O Mapa Sonoro de Cachoeira iniciou-se em 2014 na disciplina Oficinas Orientadas
de Audiovisual I, do curso de Cinema & Audiovisual no Centro de Artes, Humanidades e
Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). O CAHL é um

5 Ver: https://www.naturesoundmap.com/ . Acesso em: 01/08/2020.


6 Ver: https://cartografiadasmemorias.org/ . Acesso em: 01/08/2020.
7 Ver: https://musicmap.global. Acesso em: 01/08/2020.
8 Ver: https://aporee.org/maps/ . Acesso em: 01/08/2020.
9 Ver: https://locusonus.org/soundmap/051/ . Acesso em: 01/08/2020.
10 Ver: www.mapasonorodecachoeira.sonatorio.org . Acesso em: 01/08/2020.
centro localizado na cidade de Cachoeira e boa parte de seus discentes são oriundos de
outras cidades da Bahia e de outros Estados. Com isso, o mapa sonoro se torna também
um meio de conhecer a cidade, caminhando e buscando sons por ela. A cidade de
Cachoeira está localizada há 120km da capital, Salvador, fica às margens do Rio
Paraguaçu e tem uma média de 33.470 habitantes. Cachoeira é considerada monumento
nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é conhecida
pela preservação de sua cultura e história, pelo sincretismo religioso, pelas festas
tradicionais (Festa D'Ajuda e Festa da Boa Morte), por ser o berço do samba de roda e
também por ter sido a segunda capital do estado da Bahia.
A primeira disciplina inteiramente voltada a área do som que os alunos
acompanham é esta Oficina, situada no segundo semestre do currículo do curso de
Cinema & Audiovisual da UFRB. As demais disciplinas inteiramente voltadas ao som são
Sonorização I e Sonorização II que têm como conteúdo a linguagem do som no cinema, a
análise sonora de filmes, a captação de som direto, o planejamento e a pós-produção de
som para filmes. Antes de entrarem em contato com as práticas sonoras tradicionais, em
Oficinas Orientadas de Audiovisual I, os estudantes iniciam seus primeiros experimentos
sonoros com os gravadores de mão e têm o primeiro contato com a captação de áudio,
mas ainda sem o vínculo com a imagem em movimento.
Inicialmente, realizamos leituras sobre paisagem sonora e território sonoro,
discutimos e relacionamos os sons da cidade com os textos lidos. Fazemos listas de sons
em algumas caminhadas sonoras coletivas pela cidade. Em um segundo momento, os
estudantes são apresentados aos equipamentos básicos (gravadores, fones de ouvido e
microfones) e seus acessórios (cartões, baterias, cabos, suportes, windjammer). Explico a
diferença dos formatos de arquivo, as compressões e para que cada um serve.
Em um terceiro momento, nos dividimos em equipes entre os bairros e regiões de
Cachoeira: Morumbi, Rosarinho, Faceira, Tororó, Caquende, Pitanga, Curiachito, Centro,
Ponte, Orla (ver imagem 01) e zona rural. Antes de cada equipe se espalhar pela cidade,
nos reunimos em uma das praças de frente ao Rio Paraguaçu para testarmos os
gravadores. Ocorre ai as primeiras captações para o Mapa, gravando externamente à
Universidade. Depois voltamos para a sala de aula e conversamos sobre o que captamos,
como foi nossa escuta, quais as diferenças de nossa escuta habitual, sem a mediação de
equipamentos, e com os equipamentos. Levantamos também os problemas técnicos
ocorridos durante a captação e como poderiam ser solucionados. Os problemas em
campo geralmente são: o ruído intenso do vento incidindo no microfone, a bateria fraca,
as movimentações bruscas com o microfone ou com o gravador (com microfone interno) e
o ruído do manuseio do equipamento.

Imagem 01: Aragonez Oliveira e Luane dos Santos captando os sons da


orla de Cachoeira. Fonte: www.mapasonorodecachoeira.sonatorio.org

Há um boletim de som em que cada equipe leva consigo nas captações, com os
seguintes campos: local, horário, data, descrição do take, observações, longitude e
latitude (informações para serem inclusas no mapa), autor do áudio, equipamento
utilizado, formato do arquivo, tempo de gravação e sample rate. As informações do
formato, tempo e frame rate dos arquivos nos servem também para organizarmos que
arquivos podem ser utilizados nos filmes. A elaboração do Mapa Sonoro de Cachoeira
partiu também da ausência de sons locais que pudéssemos usar nos filmes feitos na
UFRB. Muitos estudantes acabavam por buscar sons ambientes de bibliotecas de áudio
estrangeiras. Estes ambientes sonoros não condizem com nosso ambiente. Por isso,
sentimos a necessidade de captar nossos próprios sons ambientes e compartilhá-los no
mapa para download para que todos e todas pudessem acessá-los. Decidimos também
que seria interessante captar sons da manhã, da tarde e da noite de um mesmo local,
tanto para termos estes arquivos em diferentes horários, quanto para analisarmos suas
diferenças.
Após a caminhada, a escuta e a busca por sons para o mapa, cada equipe ficou
incumbida de elaborar um relato sobre sua captação 11. Nestes textos, percebe-se que os
estudantes se colocavam à escuta, dando atenção, dando ouvidos aos sons que sempre
estavam ali, mas que não percebiam antes. O estudantes conseguiam alcançar uma

11 Textos disponíveis em: http://mapasonorodecachoeira.sonatorio.org/textos/


escuta próxima a uma meditação:

Cada um sentiu uma coisa diferente ao colocar os fones e se isolar


completamente do mundo, permitindo que apenas os sons
adentrassem e fizessem moradas em sua mente. Mas a sensação em
comum é de paz. É como se você se permitisse a conhecer aqueles
sons que você escuta constantemente, mas agora com muita
atenção. É um nível de conexão com as sonoridades difícil de
conseguir relatar (relato de Laiana Soares, Vinícius Neri, Alaine
Bitencourt e Lorena Santos em MAPA SONORO DE CACHOEIRA,
2020).

Nos relatos também podemos encontrar reflexões sobre si mesmo ao escutar os


sons da cidade:

Não importa se estamos na rua 25 de Junho – onde podemos ouvir


os sons musicais e das conversas de todos na rua onde estão os
barzinhos da cidade – ou no silencioso bairro do Curiachito, onde
moro, cada local na cidade possui suas singularidades. […] O som,
acima de tudo, diz muito sobre a personalidade de quem o ouve ou o
emite. Ouvir o que se fala ou se faz, permitir-se o silêncio para que
outras pessoas possam se expressar é algo belo e um exercício
importante para os ouvidos e a mente humanas (relato de Rafael
Beck em MAPA SONORO DE CACHOEIRA, 2020).

Os estudantes apontam também a importância de sair da Universidade para que


todos/todas possam registrar suas escutas. Mesmo em equipe, cada estudante deveria
entregar no mínimo dois áudios gravados por ele/ela mesmo/a. Assim, todos/todas
conseguiram experienciar a captação de sons em campo.

As saídas para captar os sons foram fundamentais para o contato


direto com os equipamentos, pois apesar de alguns integrantes da
equipe já terem outras experiências de captação de som, foi um
primeiro contato para outros (relato de Alexsandro dos Santos,
Aragonez Oliveira, Luane dos Santos, Thyago Nascimento e Thiago
Vinícius em MAPA SONORO DE CACHOEIRA, 2020).

Mesmo os estudantes oriundos de Cachoeira, perceberam características sonoras


da própria cidade que antes não percebiam:

Foi engraçado captar o áudio do Curiachito, por ser a rua em que vivi
e vivo, eu acreditava que seria meio chato captar e ouvir os sons pelo
fato de já ser algo do convívio levando a mesmice, mas aconteceu o
contrário, me surpreendia a cada captação. A noite era um dos
horários que eu achava ser o mais silencioso da rua, mas não, esse é
o horário em que mais passa carro, e pessoas conversando, sem
falar das televisões ligadas e crianças brincando pelas calçadas
(relato de Matheus Állan Maia em MAPA SONORO DE CACHOEIRA,
2020).

Não só os estudantes vão se relacionando com a própria escuta, de fora para dentro e de
dentro para fora, mas também vão conhecendo novos trajetos e tecendo uma rede de
afetos a partir da busca de novos sons. Um dos estudantes relata um ato de cuidado de
uma das mulheres que estava sentada na calçada, preocupada com ele, pois ali era um
lugar não muito seguro para estar com um equipamento.

Passei por um arco velho de concreto e imaginei as mais diversas


histórias sobre ele. Os sons mudavam, intensificavam-se, renovavam-
se. Passei por uma família que me cumprimentou, acenei a cabeça e
segui em frente. Uma mulher, entretanto, gritou: “Menino, volte”. Achei
que não era comigo e segui meu caminho. “Garoto”, disse ela
correndo atrás de mim, “aí não é lugar bom pra filmar a essa hora.
Volta logo.” Sem pestanejar, agradeci e segui os conselhos da moça.
Na rua seguinte, que subi depois de perguntar a mesma mulher se lá
era seguro, foi onde captei o segundo som do dia 25 de março.
Quando terminei a captação, a garotinha curiosa que me
acompanhou durante um bom tempo havia sumido. Levantei-me,
cumprimentei os moradores que me fitavam e deixei o local. Todos
foram simpáticos e pareciam curiosos e prontos para me ajudar e
respeitar meu trabalho se eu precisasse (relato de Rafael Beck em
MAPA SONORO DE CACHOEIRA, 2020).

Em um momento seguinte, cada equipe escolhia seus áudios, subíamos para a


internet e marcávamos na plataforma do OpenStreetMap. A cada nova turma íamos
incluindo novos sons no mapa. Inicialmente nosso objetivo era utilizar apenas arquivos
em formato .wav com sample rate de 48kHz para o uso nas camadas de sons ambientes
dos filmes, além do uso do áudio no mapa. Porém, as turmas foram aumentando e os
equipamentos foram se tornando mais escassos. Na última versão do mapa, já existem
sons gravados com smartphones. Mesmo assim, continuamos mantendo as informações
dos boletins de som, para nos ajudar com a organização dos arquivos e para os ouvintes
do mapa que quiserem baixar os áudios. Por exemplo, quem quiser baixar um áudio do
Mapa para incluir como som ambiente de seu filme, teria que baixar um áudio de, no
mínimo, 48 kHz.
Na primeira e segunda versão do mapa, incluimos pinpoints coloridos para definir
categorias de sons matutinos (cor amarela), taciturnos (cor laranja) e noturnos (cor azul)
(ver imagem 02).
Imagem 02: Primeira versão do mapa (2014.2). Disponível em:
http://umap.openstreetmap.fr/pt-br/map/mapa-sonoro-de-cachoeira_30033#15/-
12.6027/-38.9578 . Acesso em 02/07/2020.

Na terceira versão do mapa, com a terceira turma (2017.1), modificamos os ícones


dos pinpoints. Além das categorias demarcadas pelas cores amarela, laranja e azul:
manhã, tarde e noite, passamos a demarcar os sons de dentro e fora de casa, sinalizadas
pelos ícones de uma casa e de um pedestre (ver imagem 03). Com os sons de dentro de
casa, começamos a ter sons mais particulares, voltados ao cotidiano dos estudantes,
como afazeres domésticos, uma breve conversa em casa, experimentações com sons
dos objetos de casa, os gatos comendo ração, a chuva no telhado... O mapa foi ganhando
uma particularidade de adentrar as casas e alguns estudantes indicavam seus nomes nos
marcadores como: Casa de Elizângela Guimarães, Casa de Michel Santos, Casa da Lígia
Franco (ver imagem 03). Mas as descrições dos áudios iam se tornando menores. As
caminhadas sonoras também começaram a surgir no mapa, porém não eram marcadas
por um trajeto, mas com o marcador em seu início ou fim.
No final da disciplina, sentávamos todos e todas juntas e passeávamos sobre o
mapa no projetor ouvindo-o nos monitores de áudio, como se estivéssemos assistindo em
sala de aula a um filme-mapa sonoro, um filme interativo. No meio desse filme, alguém se
levantava e contava como foi captar aquele som, como que chegou naquele lugar,
naquele som. Ouvíamos as histórias dos percursos, das descobertas e das aventuras da
captação de sons pela cidade.
Imagem 03: Terceira versão do mapa (2017.1). Disponível em:
http://umap.openstreetmap.fr/pt-br/map/mapa-sonoro-de-cachoeira-vs3_155241#16/-12.6035/-38.9601.
Acesso em 02/07/2020.

Inicialmente, o website do mapa sonoro parecia ser nosso objetivo principal,


registrar os sons de Cachoeira. Mas durante sua elaboração percebemos que o mais
importante de sua feitura foi todo o processo de criação: as andanças sonoras, as
conversas sobre o que escutávamos, a escuta mediada pelos equipamentos, a relação
com a cidade e seus habitantes, a percepção de si mesmo por meio da escuta, estar à
escuta para as histórias das/dos colegas.
Atualmente, o Laboratório de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora –
SONatório12, projeto de extensão da UFRB, realiza a manutenção do Mapa Sonoro de
Cachoeira, reorganizando os arquivos em uma biblioteca digital sem fins lucrativos
(Archive.org) com as licenças Creative Commons que permite a distribuição gratuita
desses áudios. O SONatório também segue repensando atualizações do mapa para
novas propostas de envio de arquivos.

Considerações Finais

É possível observar propostas de estratégias pedagógicas de criação audiovisual


que buscam a experimentação, em projetos como o Inventar com a Diferença – Cinema,
Educação e Direitos Humanos (2014-2015), que reuniu estudantes e educadores de
vários estados brasileiros para criar audiovisual em cursos livres e escolas públicas de
ensino fundamental e médio. Nos Cadernos do Inventar (2016), que reúne uma série de
12 www.sonatorio.org
exercícios para a criação audiovisual, há uma proposta de exercício com sons, que visa
intensificar a escuta e a percepção e permite pensar a construção sonora no cinema. O
exercício se trata de buscar sons da comunidade com o gravador do celular ou mesmo
com uma câmera fotográfica, depois ouví-los e pedir que os colegas identifiquem os sons.
Após isso, os estudantes discutem sobre o que mudariam na cidade a partir de suas
escutas.
Cursos fora dos currículos de graduação em Cinema & Audiovisual parecem ter se
preocupado mais em desenvolver práticas sonoras experimentais em seus programas
principais, priorizando a escuta. Disciplinas que têm uma maior abertura no programa ou
projetos de extensões podem ser uma saída dentro da graduação para acolher tais
práticas. Localizamos alguns mapas sonoros desenvolvidos em cursos de graduação,
assim como o Mapa Sonoro de Cachoeira 13, como o Mapa Sonoro da FAAP14 coordenado
pela professora do curso de Cinema, Tide Borges, e a Cartografia Sonora de Londrina
realizada na UEL15 coordenado pela professora do departamento de Teatro e Música,
Fátima Carneiro dos Santos.
A partir de nossa experiência com o Mapa Sonoro de Cachoeira, acreditamos que a
elaboração de mapas sonoros, principalmente em cursos de Cinema & Audiovisual, é uma
estratégia metodológica que pode auxiliar os estudantes ao treino da escuta.
Paralelamente a elaboração do mapa, podem ser utilizadas práticas sonoras voltadas a
experimentação, como a caminhada, o passeio sonoro, a escuta guiada e até mesmo
práticas meditativas.

Referências

FELD, Steven; PALOMBINI, Carlos. Pensando na gravação de paisagens sonoras:


Steven Feld entrevistado por Carlos Palombini. ResearchGate.net , 2014, Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/267632065>. Acesso em: 02/jul/2020.

FELD, Steven. Acoustemology. In: David Novak e Matt Sakakeeny (orgs.). Keywords in
Sound, Duke University Press, 2015.

MAPA SONORO DE CACHOEIRA. Sobre as captações do Mapa Sonoro de Cachoeira.


Disponível em: <http://mapasonorodecachoeira.sonatorio.org/textos/>. Acesso em

13 www.mapasonorodecachoeira.sonatorio.org
14 http://www.faap.br/mapa-sonoro/
15 http://www.uel.br/projetos/cartografiasonora/
01/08/2020.

MIGLIORIN, Cezar [et al]. Cadernos do Inventar: cinema, educação e direitos humanos.
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NANCY, Jean-Luc. À escuta. Trad. Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Edições Chão de
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OLIVEROS, Pauline. Deep Listening, A Composer's Sound Practice. Lincoln: Deep


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SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo: uma exploração pioneira pela história


passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a
paisagem sonora. Trad. Marisa Fonterrada. - São Paulo: Editora UNESP, 2001.

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Trad. Marisa Fonterrada. - São Paulo: Editora Melhoramentos, 2009.

SCHAFER, R. Murray. O Ouvido Pensante. Trad. Marisa Fonterrada, Magda Silva, Maria
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