Você está na página 1de 123

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR


MILTON SANTOS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CULTURA E SOCIEDADE

ÁLVARO LIMA RIBEIRO NETO

ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA:


ELEMENTOS SONOROS CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O
HIPER-REALISMO NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E
BESOURO (2009, JOÃO TIKHOMIROFF)

SALVADOR
2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR
MILTON SANTOS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CULTURA E SOCIEDADE

ÁLVARO LIMA RIBEIRO NETO

ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA:


ELEMENTOS SONOROS CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O
HIPER-REALISMO NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E
BESOURO (2009, JOÃO TIKHOMIROFF)

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de


Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos
como parte dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Leonardo V. Boccia

SALVADOR
2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Lima Ribeiro Neto, Álvaro


ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA: ELEMENTOS SONOROS
CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O HIPER-REALISMO
NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E BESOURO
(2009, JOÃO TIKHOMIROFF) / Álvaro Lima Ribeiro Neto. -
- Salvador, 2018.
122 f.

Orientador: Leonardo Vincenzo Boccia.


Dissertação (Mestrado - Programa Multidisciplinar
de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade) --
Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton
Santos, 2018.

1. Cinema. 2. Som no cinema. 3. Estudos de


cultura. 4. Barravento (1962). 5. Besouro (2009). I.
Vincenzo Boccia, Leonardo. II. Título.

À capoeira, que me deu régua e ritmo.


AGRADECIMENTOS

Ao Professor Leonardo Boccia, pelo respeito, apoio e colaboração enquanto orientador


neste trabalho.

À CAPES, pela concessão da bolsa de mestrado.

Aos Professores José Roberto Severino e Guilherme Maia de Jesus, por aceitarem
contribuir participando da banca de defesa

À Professora Fernanda Martins, pelo cuidado e esmero nas contribuições feitas a este
trabalho na etapa de qualificação.

À minha família. Aos meus pais, Isabel e Fabio, primeiro pelo amor, depois pelo
imenso apoio e incentivo, e também por me ensinarem a beleza da vida ouvindo a música
Acabou Chorare. Aos meus irmãos, Felipe e Marco, que talvez sem saberem, colorem a
minha vida. Aos meus avós, Dona Arminda e Seu Garrido, Dona Nilda e Seu Ribeiro, que
tive a honra e a sorte de conviver, obrigado pelo amor, pelos carinhos e ensinamentos eternos.
À Caroline, a sereia que faz a realidade ser mais fantástica, agradeço pelo incentivo, ajuda e
inspiração, também pela paciência mas principalmente pelo amor.

Aos amigos-irmãos, Pedro, Victor, Bruno e Rafael, por termos compartilhados as


dúvidas, os erros e os acertos, por termos aprendidos juntos, por termos rido e chorado juntos,
sempre juntos.

Pessoas importantes que contribuíram muito para a realização deste trabalho.


RESUMO

O presente trabalho tem como ponto central o papel do som no cinema como criador de
sentido, através da representação de elementos sonoros de uma cultura. Para isso, esta
pesquisa realiza um estudo conceitual e histórico do cinema, do som no cinema e de suas
relações com os estudos da cultura, culminando na análise audiovisual, proposta pelo autor
Michel Chion, dos filmes Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João
Tikhomiroff). Duas obras cinematográficas que possuem temáticas semelhantes e trabalham,
em suas bandas sonoras, com os mesmos elementos sonoros pertencentes à cultura negra pós-
diaspórica da Bahia, exercendo, cada uma a sua maneira, papel fundamental na construção
fílmica destas duas obras. Dessa forma, este trabalho tem o objetivo de investigar as
contribuições do som nos filmes, através de uma análise das representações e transformações
desses elementos sonoros culturais, e de que maneira colaboram para entregar significado às
sequências fílmicas e aos longas-metragens como um todo. Para isso, esta dissertação se nutre
das teorias cinematográficas e dos estudos da cultura, refletindo sobre a linguagem
cinematográfica, realizando uma contextualização estético-histórica dos filmes, adentrando
nos estudos pós-coloniais e nos processos de identificação, e relacionando esses temas ao
cinema e aos filmes escolhidos. Por fim, esta pesquisa foca nas evoluções estéticas e
tecnológicas do som no cinema e suas influências na linguagem audiovisual cinematográfica,
para então realizar uma análise audiovisual de sequências representativas de pontos chave que
constituem estes dois filmes. Portanto, com essa pesquisa o autor visa contribuir para
aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas possibilidades de uso do som, em específico
de expressões culturais sonoras nos processos de identificação no cinema.

Palavras-chave: Cinema; som no cinema; estudos de cultura; Barravento (1962); Besouro


(2009)

ABSTRACT

The present work focuses on the role of sound in cinema as a creator of meaning, through the
representation of the sound elements within a culture. For this, the research makes a
conceptual and historical study of cinema, sound in cinema and and its relations with the
culture studies, culminating in the audiovisual analysis, proposed by the author Michel Chion,
from the movies Barravento (1962, Glauber Rocha) and Besouro (2009, João Tikhomiroff).
Two cinematographic works that have similar themes and use, in their soundtracks, the same
sound elements pertaining to the post-diasporic black culture of Bahia, exercising, each one in
their own way, a fundamental role in the filmic construction of both movies. Therefore, this
paper aims to investigate the contributions of sound in films, through an analysis of the
representations and transformations of these cultural sound elements, and in what way they
collaborate to deliver meaning to a film sequences and feature films as a whole. For that, this
dissertation rely on cinematographic theories and culture studies, reflecting about
cinematographic language, bringing an aesthetic-historical contextualization of the films,
diving into the postcolonial studies and the processes of identification, and relating these
themes to the cinema and to the selected feature films. Finally, this research focuses on the
aesthetic and technological evolutions of sound in the cinema and its influences in the
cinematographic audiovisual language, to perform an audiovisual analysis of key points that
builds these two films. Therefore, with this research the author aims to contribute to deepen
the knowledge about the multiple possibilities of using sound, in specific of cultural sound
expressions in the processes of identification in cinema.

Keywords: Cinema; sound in cinema; culture studies; Barravento (1962); Besouro (2009)

LISTA DE FIGURAS

Fotograma 1 Pescadores como parte do cenário – Barravento (1962) ................................... 72

Fotograma 2 Aruã como figura central da ação – Barravento (1962) .................................... 72

Fotograma 3 Capoeiristas como parte do cenário – Besouro (2009) ..................................... 72

Fotograma 4 Besouro como figura central da ação – Besouro (2009) ................................... 72


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10

1 . ILUSÕES SONORO-VISUAIS ..................................................................................... 17


1.1 . ESCUTA E CINEMA ........................................................................................ 21
1.2 . OS MUNDOS FÍLMICOS ................................................................................. 29
1.2.1 . O MUNDO DE BARRAVENTO ..................................................... 39
1.2.1 . O MUNDO DE BESOURO .............................................................. 46

2 . CINEMAS E CULTURAS .............................................................................................. 58


2.1 . BARRAVENTO E BESOURO: diferença, identidade e pós-colonialismo ....... 59
2.2 . IDENTIFICAÇÃO NO CINEMA ...................................................................... 67

3 . ATMOSFERAS SONORAS ........................................................................................... 74


3.1 . O SONORO NO CINEMA ................................................................................ 75
3.2 . A AUDIOVISÃO ............................................................................................... 86
3.3 . ANALISE AUDIOVISUAL .............................................................................. 90
3.3.1 . DO NEO AO HIPER-REALISMO ................................................. 92
3.3.2 . RELIGIÃO ....................................................................................... 97
3.3.3 . VIOLÊNCIA .................................................................................... 101
3.3.4 . TRILHAS SONORAS ..................................................................... 106

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 119


10

I N T R O D U Ç Ã O

TOQUE DE SÃO BENTO GRANDE DE


ANGOLA
P a u lo C é sa r P in h e ir o

N e sse m u n d o c a m a rá
Mas não há mas não há
Mas não há quem me mande
E u só se i o b e d e c e r
S e m a n d a r , s e m a n d a r sã o b e n to g ra n d e
É d e a n g o la é d e a n g o la é d e a n g o la
D e a n g o la d e a n g o la d e a n g o la

M e u a v ô já fo i e s c ra v o
M a s v iv e u c o m v a le n tia
D e s c u m p r ia a o r d e m d a d a
A g ita v a a e sc ra v a ria
V e rg a lh ã o , c o rre n te , tro n c o
E ra q u a se to d o d ia
Q u a n to m a is e le a p a n h a v a
M e n o s e le o b e d e c ia

Q u a n d o e u e r a a in d a m e n in o
O m e u p a i m e d is s e u m d ia
A b a la n ç a d a ju stiç a
N u n c a p e sa o q u e d e v ia
N ã o m e c u rv o a le i d o s h o m e n s
A ra zã o é q u e m m e g u ia
N e m q u e se u a v o m a n d a sse
E u n ã o o b e d e c e ria

E sse m u n d o n ã o te m d o n o
E q u e m m e e n sin o u sa b ia
S e tiv e sse d o n o o m u n d o
N e le o d o n o m o ra ria
C o m o é m u n d o se m d o n o
N ã o a c e ito h ie ra rq u ia
E u n ã o m a n d o n e sse m u n d o
N e m n o m e u v a i te r c h e fia
11

INTRODUÇÃO

Reavaliar qual foi o papel do som na história do cinema,


para lhe conferir a sua verdadeira importância, não é
pura preocupação de crítico ou de historiador, diz
também respeito ao futuro do cinema: este evoluirá
melhor e será mais vivo se souber retirar melhores
consequências daquilo que já se passou.
Michel Chion (A Audiovisão. 2011, p. 113)

Algumas pessoas se aproximam e nos organizamos em círculo. O berimbau começa a


ser tocado e uma letra começa a ser cantada, os demais ouvem atentos ao instrumento e
tentam aprender a canção. Quando a música muda, o pandeiro, posicionado ao lado do
berimbau, inicia o seu toque; também é escutado, do outro lado, o som do atabaque; e as
pessoas, no círculo, participam ritmando com palmas e respondendo à canção em coro. Uma a
uma, as duplas vão se revezando no centro da roda e, não apenas o jogo da capoeira, mas
principalmente o seu rito, vai sendo gravado na minha memória.

Durante alguns anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos da
capoeira. Depois, durante os anos em que já não estou diretamente ligado à capoeira, basta
escutar o berimbau, o pandeiro ou o atabaque, que minha atenção é reivindicada por esses
sons. É através dessas sonoridades que são ativadas lembranças; é através dessas sonoridades,
gravadas na mente, que posso viajar no tempo e no espaço; é através dessas sonoridades que
são invocados conhecimentos, sentimentos e sensações. Portanto foram essas sonoridades que
me conduziram até um pensamento sobre uma memória auditiva afetiva. Elementos sonoros
pertencentes a uma cultura e que, deste modo, formam parte do repertório cultural de uma
pessoa.

Durante os últimos anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos do
cinema. Entre os set’s de filmagem e a ilha de edição, foi crescendo a minha curiosidade e
encanto pelo som no cinema. A linguagem cinematográfica já era um tema que me chamava a
atenção por minha dedicação como montador, e o papel do som (integrante dessa linguagem
cinematográfica) como criador de sentido é o que tem movido o meu interesse como
pesquisador, montador e desenhista de som. Pois, contrariando a dominação da imagem nos
estudos de cinema, concordo com Guilherme Maia de Jesus e Wilson Gomes que preferem
afirmar que os filmes são herdeiros, não das representações pictóricas ou da evolução da
12

fotografia mas, das muitas formas de se contar histórias. ‘Um livro, um filme ou uma música
são elaborados por uma consciência com vistas a desencadear uma série de estados sensíveis e
intelectuais em uma outra consciência apreciadora. Como diz Gomes, “significar é sempre
significar para um interprete”.’ (JESUS, 2007, p. 103-104)

No cinema, o interprete é o espectador, que contando com as suas experiências e seu


repertório cultural, interpreta os estímulos audiovisuais e participa na construção de um
significado para o filme. Nesse cenário, o som se posiciona como elemento efetivo na
concretização do conceito e na entrega de sentido ao filme. Segundo Andrei Tarkovski
(1998), é através do som que o diretor do filme pode enfatizar determinado elemento visual e
conduzir as emoções do espectador. Além disso, é também a intervenção do som, compondo a
trama fílmica, que influencia o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia.

Na Era das telas, a intenção deste trabalho é destacar o que vem das caixas de som, dos
alto-falantes, dos amplificadores; sem, contudo, separar imagem e som, pois seguimos a ideia
sustentada por Michel Chion de que a combinação entre o que se vê e o que se escuta produz
algo inteiramente específico e novo, no qual o som interfere naquilo que se vê e o contrário
também é verdadeiro (a imagem interfere naquilo que se escuta), não fosse assim, uma análise
do som separado da imagem não englobaria o seu significado dentro do filme.

Por uma questão de lógica, toda teoria de cinema deveria abordar o


problema do som do filme. Em geral, isto poucas vezes tem sido o caso.
Muito ao contrário, um número surpreendente de teóricos chega alegremente
a conclusões acerca da natureza do filme com base apenas nas propriedades
aparentes da imagem em movimento. Se isto fosse apenas uma questão de
omissão, o problema seria rapidamente corrigido. A rigor, os teóricos se
descuidam do som e o fazem conscientemente, propondo o que consideram
fortes argumentos a favor de uma noção de cinema baseada na imagem. De
fato, alguns destes argumentos atingiram o nível de truísmos, suposições não
interrogadas nas quais todo o campo é fundamentado. (ALTMAN apud
JESUS, 2007, p. 55)

Sob a compreensão do cinema como representação, um recorte mediado do mundo,


concorda-se que o cinema se utiliza de códigos, convenções, mitos e ideologias de uma
cultura para criar universos particulares e contar as suas histórias. Considerando que a
percepção dos simbolismos que o som carrega consigo não se dá de forma automática e que
os significados se estabelecem frente a determinações contextuais (CHION, 2011) – para cada
contexto cultural há significâncias particulares – faz-se necessário incorporar os estudos de
culturas e dos processos de identificação, e também, a relação do cinema com estes temas, até
porque, a possibilidade de experimentação da cultura no cinema se dá, também através do
13

campo sonoro, sendo os elementos sonoros culturais intencionalmente organizados pelo


realizador e, posteriormente, interpretados pelo espectador.

Tanto a criação de uma representação da realidade, como a sua interpretação e análise,


requerem um juízo de valor. Primeiro na concepção dessa representação, o artista avalia o
conjunto da obra e sentencia que a mesma está pronta para ser apresentada ao seu público, e
depois na compreensão, a partir da interpretação, do espectador. O autor Luigi Pareyson
sugere que, mesmo se tratando de coisas diferentes, o juízo de gosto e o juízo de valor operam
conjuntamente para que se chegue às conclusões, tanto do artista como do espectador, de que
a obra cumpre com certos requisitos, que permitem ao artista (e ao espectador) dar por
aprovada e concluída. O autor ainda ressalta que o gosto:

sendo a própria espiritualidade de uma pessoa, ou de um período histórico,


traduzida numa espera de arte, um modo de ser, viver, pensar, sentir,
resolvido num concreto ideal estético, um sistema de idéias, pensamentos,
convicções, crenças, aspirações, atitudes, tornado sistema de afinidades
eletivas em campo artístico, não pode, de modo algum, ser excluído do
processo de leitura e de crítica uma vez que despojar-se desta bagagem
espiritual e cultural seria como privar-se da própria personalidade.
(PAREYSON, 2001, p. 242 e 243)

Dessa forma, com base no método de análise audiovisual, que “tem o objetivo de
perceber a lógica de um filme ou de uma sequência na sua utilização do som combinado com
a imagem” (CHION, 2011, p. 145), o presente trabalho realiza a análise dos filmes Barravento
(1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff). Filmes que foram
escolhidos, prioritariamente, por apresentarem semelhanças em suas temáticas, explorarem os
mesmos elementos culturais sonoros, e ainda, por utilizarem esses sons de formas distintas,
criando assim, duas abordagens sobre o tema e dois universos que se diferem nas suas
dimensões de real e de fantasia. Por outro lado, a escolha se deu também pelo caráter pós-
colonial dos filmes, pelo esforço em apresentar narrativas por vias diferentes das ensinadas
pelos (neo)colonizadores e escapar do discurso único.

Muitas análises são possíveis para os filmes, e neste trabalho optei por focar nas
potências dessas produções cinematográficas, pautando as contribuições criativas e artísticas
possíveis de se extrair de cada um desses filmes. Mesmo assim, este estudo não exclui as
possibilidades de análises e críticas pertinentes aos dois longas em questão, partindo
primordialmente do reconhecimento dos limites do lugar de fala dos diretores e das equipes
técnicas (a exceção de atrizes e atores), com nenhum (ou quase nenhum) negra ou negro
14

presente; portanto uma representação cinematográfica de uma temática negra sob o olhar de
uma equipe de realizadores brancos (que por mais informados e envolvidos que possam ser
com as questões do negro, não vivem na própria carne os problemas do racismo). Os mesmos
limites do lugar de fala que estou sujeito enquanto autor dessa dissertação, e que tendo
presente o fato de ter a pele branca estive atento e me dediquei a falar junto com os negros, e
em não assumir os seus lugares e consequentemente falar pelos negros.

Nesse mundo contemporâneo em que o racismo estrutural segue sendo determinante,


abordar a temática negra é algo imperativo; e se foi importante o Cinema Novo colocar a
temática e o próprio negro na tela, é ainda mais importante, como reivindica o atual Cinema
Negro, que os negros possam ocupar cada vez mais os espaços que permitem ter uma câmera
na mão e uma ideia na cabeça (além de ter a caneta e o papel para fazer o roteiro, o microfone
para gravar o som, plataformas de edição etc.).

Além disso, como dizia, as analises dos filmes podem seguir por muitos caminhos,
como pelo viés da crítica ao caráter paternalista da visão marxista de Glauber Rocha em
Barravento (1962) ou do interesse comercial do publicitário João Tikhomiroff com o filme
Besouro (2009). Entretanto, pela necessidade de fazer um recorte de pesquisa, seguiremos na
observação dos pontos que tributam em favor do cinema, do som no cinema e da temática
negra.

Com base nesse entendimento, esta pesquisa tem por objetivo investigar as
possibilidades e as contribuições do som dentro dos filmes, através de uma análise das
representações e transformações de sons culturais e a maneira como contribuem para entregar
significado às sequências e aos longas-metragens de forma geral. Um trabalho que busca
entender como os mesmos elementos sonoros culturais, em filmes de temáticas similares, são
empregados a ponto de adquirirem significados diferentes em cada filme; e ainda, como uma
memoria auditiva afetiva pertencente à uma cultura influencia no significado/sentido do filme.
Portanto, essa pesquisa visa aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas (e das novas)
possibilidades de uso do som, em específico pelas expressões culturais sonoras, nos processos
de identificação no cinema, através da análise dos filmes citados.

Intrínseco a isso, como comentado mais acima, a intervenção do som num filme
influencia o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia. De modo que a discussão
essencial do cinema entre o real e o reproduzido, que o acompanha historicamente desde o seu
nascimento e os surgimentos de estéticas e gêneros cinematográficos, se torna também
15

recorrente ao longo desse trabalho, assim como a sua transferência ao campo sonoro
cinematográfico ao se tratar das nuanças entre o naturalismo e o hiper-realismo sonoro.

Tema esse que inicia-se já no primeiro capítulo dessa dissertação, a começar pela ideia
de ilusão cinematográfica enquanto processo mental; acompanhada pelas reflexões, de um
lado dos teóricos formalistas que apontavam para o cinema como uma arte que faz o uso
estético da realidade, com liberdade para distorcê-la, e do outro lado, as teorias realistas
dizendo que o cinema está para mostrar o mundo tal como ele é. Nesse capítulo intitulado
Ilusões sonoro-visuais, introduz-se também o papel do som na linguagem audiovisual, a partir
das ideias de Michel Chion.

Este primeiro capítulo possui ainda dois subtópicos. No primeiro Escuta e cinema,
faz-se uma abordagem filosófica sobre a escuta e descreve-se os tipos de escuta, para então
relacioná-las com o cinema, chegando à ideia de montagem sonora – criadora de significados
oriundos da relação som e imagem, capaz de despertar sensações no espectador. Depois, em
Os mundos fílmicos, é defendida a ideia de que cada filme cria seu mundo particular, e que
para gerar esses mundos fílmicos os seus realizadores possuem um leque de convenções
cinematográficas que podem utilizar – convenções essas que quando combinadas (e repetidas
essas combinações em um grupo de filmes) são consideradas como gêneros cinematográficos;
nesta parte, observa-se como é utilizado o som em gêneros cinematográficos, algo que, junto
aos experimentos do cineasta e teórico Lev Kulechov, conduz à ideia de atmosfera sonora,
que define o “clima” de um mundo fílmico; além disso, analisa-se também os gêneros que
mais influenciaram os realizadores dos filmes escolhidos, Barravento (1962, Glauber Rocha)
e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff), completando com uma contextualização e análise
dos dois longas-metragens.

No segundo capítulo Cinemas e culturas, dividido também em dois subtópicos, há


uma aproximação dos estudos da cultura às teorias cinematográficas e aos filmes em si. Em
primeiro lugar, aborda-se os dois filmes através das ideias de diferença, identidade e pós-
colonialismo, uma forma crítica de contestação e desconstrução (ou reconstrução) das
ideologias e normas imperialistas que nasceu da interação entre colonizadores e colonizados,
complementando-se com os pensamentos de Paul Gilroy sobre os sujeitos pós-coloniais e as
posições-de-sujeito a ocupar nesse não-lugar que denominou Atlântico Negro. E em tempos
de identidades fluidas, o segundo subtópico deste capítulo, trata dos processos de
identificação, fazendo um paralelo entre os processos de formação do sujeito na sociedade
16

(para os estudos culturais e com o apoio da psicanálise) e os processos de identificação do


espectador no cinema.

O terceiro capítulo, Atmosferas sonoras, está dividido em três subtópicos para poder
explorar as diversas reflexões e características das atmosferas sonoras cinematográficas, e
depois partir para uma análise das atmosferas dos dois filmes através de uma análise
audiovisual. Primeiro, em O sonoro no cinema, são aprofundados os aspectos da influência do
som no cinema e faz-se um acompanhamento das evoluções tecnológicas e as suas
possibilidades estéticas. Em seguida, em A Audiovisão, adentra-se nas ideias e no método
proposto por Michel Chion que, mesmo sem desassociar imagem e som, estabelece
procedimentos metodológicos para a observação das funções e propriedades do som em
filmes. No terceiro subtópico, Analise audiovisual, é aplicada a proposta de Chion para
analisar as sequências dos filmes escolhidas de acordo com os elementos chave que
constituem os mundos fílmicos de cada película e como as atmosferas sonoras se apresentam
em cada um desses pontos. Para isso este subtópico é divido de acordo com os pontos chave
dos filmes elencados, e no primeiro item, intitulado Do Neo ao Hiper-realismo, destaca-se
como as influências dos gêneros cinematográficos refletem nas intencionalidades dos autores,
e como os mesmos as transformam em recursos estéticos nos filmes e na construção da
atmosfera sonora de cada um dos filmes; no item seguinte, Religião, observa-se como os
filmes apresentam abordagens distintas sobre o misticismo e o papel da religião, e como isso é
expressado através dos sons nas cenas; no item Violência, trabalha-se com os significados e as
representações de violência em determinadas sequências e como os sons criam as suas
representações sonoras; e por último, mergulha-se em uma viagem pós-colonial pelas Trilhas
Sonoras, pois o canto das Sereias não cessa nunca, e Ulisses e Orfeu já sabem que “o único
antídoto para a melodia murmurada das Sereias parece ser produzir um som mais encantador
do que o delas. As outras opções são sofrer amarrado ao mastro ou resignar-se a não ouvi-las,
simplesmente (JESUS, 2007, p. 113).

“Ou seja, trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (…) que nos convida
a reaprender a ver e ouvir um filme” (VIEIRA JR., 2008-2011, p. 66).
17

C A P Í T U L O 1

VOYAGER
Nação Zumbi

voyager
o o u v id o e m o u tra d im e n sã o

v ia je i, m e lig u e i
fu i a li e v o lte i so b o sig n o d o so m
in v o c a n d o o s d e u se s a n c e stra is
d o s p e n sa m e n to s e sp ira is, m a io ra is
d a s a lm a s a n a ló g ic a s
à s a u ra s d ig ita is
o p e ra n d o n a s b re c h a s m u ltid im e n sio n a is
ta is q u a is a s zo n a s a u tô n o m a s
d a d iv is ã o q u e fa z o le v a n te d o s te m p o r a is
m a tr ix , p r e fix c o m b ic s
a sa b e d o ria n o m e u m ix
a o u v id o ria a te n ta n a p a re d e fa la n te
su s su r r a n d o d isso n a n te
p lu g u e -se , lig u e-s e e v á lo n g e

voyager
o o u v id o e m o u tra d im e n sã o

m a n ife s ta n d o e c o n ta m in a n d o
p e lo s fo n e s n u n c a s u rd o s
m ic r o fo n e s n u n c a m u d o s
a tra v é s d a s e n tid a d e s sa m p le a d a s
q u e d a n ç a m o a b su rd o
e n o s c a n te iro s d a g a lá x ia n e rv o sa
fa la n d o p ro o u v id o d o m u n d o
p lu g u e -se , lig u e-s e e v á lo n g e
18

1 . ILUSÕES SONORO-VISUAIS

Longe de termos um esquema linear que vai da


“impressão de realidade” à fé do espectador, o que
temos é um processo mais complexo: uma interação
entre o ilusionismo construído e as disposições do
espectador, “ligado” aos acontecimentos e dominado
pelo grau de credibilidade específica que marca a
chamada “participação afetiva”.
Ismail Xavier (O discurso cinematográfico, 2005, p. 34)

Um jato de luz invade a escuridão.

No pano fixado na parede, feixes de luz desenham mulheres com vestidos de renda e
rodados, colares lhes enfeitam os pescoços e na cabeça, equilibram jarros de flores; num
piscar de olhos a luz muda, e agora vê-se um capoeirista que golpeia um guarda e voa de um
lado ao outro de uma cachoeira.

Assistir a um filme em uma sala de cinema é mesmo uma experiência de imersão em


um outro mundo. Assim como nas outras artes, abre-se um parênteses nas vidas particulares
para um mergulho em outras realidades. Uma suspensão temporária, uma transposição para
distintas histórias; uma viagem a outros mundos com outras atmosferas.

Uma ilusão1.

Uma tela que amplia ou diminui as dimensões dos objetos da natureza. Um ambiente
com tratamento acústico dificilmente encontrado no mundo em que vivemos. A imposição da
imobilidade das poltronas e a escuridão, exigem do ser humano, ali inserido, a disposição e o
empenho dos seus canais sensitivos da audição e da visão. Ainda assim (e justamente por
isso), os feixes de luz e os sons amplificados no cinema alcançaram a similaridade com a
dimensão do real, mais do que qualquer outra arte.

Uma relação entre o real e a realidade “re-produzida”, essa última composta por objetos
reais em movimento projetados no espaço da tela, que condicionou muitos cineastas e teóricos
do cinema a buscarem o aprimoramento dos elementos cinematográficos que remetessem o
espectador de cinema à ideia de que estaria tendo uma experiência do real. Dessa forma, esse


1
De acordo com o Dicionário Michaelis o termo ilusão refere-se às seguintes definições: “confusão entre o que
uma coisa aparenta ser e o que ela realmente é”; “engano dos sentidos ou da inteligência”; “ação de enganar e
iludir”.
19

flerte entre “real” e “reproduzido” irá acompanhar o cinema por toda a sua teoria e prática ao
longo da história.

As primeiras teorias de cinema surgem focadas nessa relação. De um lado os teóricos


formalistas, com as contribuições de Rudolf Arnheim (entre outros) que entende a arte
cinematográfica como “um produto da tensão entre a representação e a distorção” baseada,
“não no uso estético de algo do mundo, mas no uso estético de algo que nos dá o mundo”
(ANDREW, 2002, p. 38); do outro lado, as teorias realistas que dizem que “o cinema existe
para nos fazer ver o mundo tal como ele é, para nos permitir descobrir sua textura visual e
para fazer com que entendamos o lugar nele ocupado pelo homem”. (ANDREW, 2002, p. 92)
Mas na prática, o espectador de cinema se depara com uma redução sensorial do real quando
transposto para um equipamento bidimensional e recortado, a tela. Redução essa que é
admitida pelo espectador, assim como outras convenções, porque este participa da construção
do filme durante a sua projeção, completando as suas imperfeições e fazendo as conexões
necessárias para a compreensão da narrativa fílmica – razão pela qual um filme consegue
atingir uma dimensão imaginária regida pela percepção das relações entre sons e imagens
(CHION, 2011).

A recepção de um filme é muito diferente do estudo ou da teoria sobre a sua


construção. A recepção se dá num fluxo, num contínuum temporal que nada
tem de palpável, impossível de ser apreendido como um objeto real. É
vivência, habita o plano do pensamento, do imaginário, participa de uma
subjetividade, portanto, da percepção de cada um (FLÔRES, 2013, p. 82).

Hugo Münsterberg, um dos primeiros teóricos de cinema, já classificava o cinema como


um processo mental pois “o filme não existe nem na película nem na tela, mas somente no
espírito que lhe proporciona sua realidade”. Ao assistir uma imagem em movimento, o
espectador realmente imagina ver o que ela mostra, mas um objeto na tela é apenas luz
projetada, o objeto não está ali materializado. Um ilusionismo proporcionado pela capacidade
humana de perceber, memorizar e fazer associações, permitindo compreender, por exemplo,
que um objeto que diminui de tamanho na tela está se afastando de nós (ANDREW, 2002).

Consentimos em sermos iludidos e adoramos estar sob o efeito da ilusão.

Aceitamos as práticas estéticas do cinema narrativo clássico (o mais difundido dos


estilos cinematográficos) que busca de toda forma esconder o processo de construção fílmica
do seu espectador. Certos recursos cinematográficos, como a montagem invisível, a narrativa
linear, o plano e contra-plano, que, ao serem repetidos se tornaram convenções tanto para os
20

realizadores como para os espectadores. A impressão de continuum temporal (incrementada


por estas convenções cinematográficas) é fundamental para que o indivíduo imerja na ilusão
criada pela narrativa, dando a ideia de que ele participa de uma realidade e não de uma
representação (FLORÊS, 2013).

O cinema clássico acolhe o som como um elemento que dará aos filmes um lastro
suplementar de realidade, “o advento do cinema sonoro, [...], constituiu um passo decisivo no
refinamento do sistema voltado para o ilusionismo e a identificação”. (XAVIER, 2005, p. 35)
As características do som agregam à imagem cinematográfica uma maior noção de
espacialidade, identificação de massa, peso, tipo de matéria que constitui o objeto da cena;
valores informativos e expressivos que enriquecem o representado na tela e que influenciam
na impressão imediata e na recordação que o espectador tem de uma sequência audiovisual.
Qualidades sonoras que foram definidas por Michel Chion como valor acrescentado pelo som
ao cinema (CHION, 2011).

É mais potência à capacidade ilusória do cinema.

Por mais que se tenha consciência de que algumas ações reais não produzem
determinados sons com tantos detalhes como nos filmes, essas representações sonoras ajudam
a dar ao espectador a dimensão, por exemplo, de quão forte foi um determinado golpe. E por
mais distante ou diferente da realidade que seja o conjunto audiovisual exibido, o espectador
com o seu desejo por dramaturgias e sua capacidade de fazer associações são fundamentais
para tornar a ilusão cinematográfica crível e envolvente (FLÔRES, 2013).

No momento em que se tornou possível a sincronização de som e imagem (ou o


fenômeno da síncrese, termo usado por Chion para designar o ponto de fusão entre um
fenômeno visual e um fenômeno sonoro) abriram-se as portas do cinema sonoro ao
simbolismo; graças à síncrese podem se formar as configurações audiovisuais mais finas e
mais espantosas. “Retratar lábios em movimento na tela nos convence de que o individuo
assim retratado – e não o alto-falante – pronunciou as palavras que ouvimos.” (ALTMAN
apud FLÔRES, 2013, p. 30) Dessa forma, não existe a necessidade de se utilizar a voz dos
lábios filmados, há infinitas possibilidades de síncrese para que esses lábios adquiram
sentido, seja por uma voz fina ou uma voz grave, ou até mesmo por um elemento sonoro que
não faça referência à uma voz humana.

A partir disso, o som mostra o seu potencial de significação, para além de uma
redundância sonora do que está sendo mostrado na imagem. Segundo Tarkovski, com a
21

utilização do som no cinema “a vida registrada em fotogramas pode modificar sua cor, e, em
alguns casos, até mesmo sua essência” (TARKOVSKI, 1998, p. 190). Podemos, então,
concluir que o som modifica a percepção do espectador sobre a imagem visual. Em um
paralelo com o demonstrado pelo efeito Kulechov da montagem – a justaposição de imagens
modifica o sentido de cada imagem individualmente de acordo com a associação feita pela
montagem, ou seja, a imagem seguinte modifica a interpretação sobre a imagem anterior e o
que se tem é o significado do conjuntos de imagens justapostas – também som e imagem, uma
vez juntos significam algo diferente de quando separados.

Pela observação desse efeito, Michel Chion (2011) intitulou o seu livro de A
Audiovisão, referindo-se à atitude perceptiva do espectador cinematográfico, no sentido de
não ser possível, nessa combinação que caracteriza o audiovisual, separar as percepções
visual e auditiva, já que as duas se influenciam mutualmente. Afinal de contas nós não vemos
um filme, mas áudio-vemos ou escutamos-vemos um filme.

1.1 . ESCUTAS E CINEMA

O autor Roland Barthes em seu livro Lo obvio y lo obtuso, inicia o capítulo intitulado El
acto de escuchar com a definição de que “ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar, uma
ação psicológica”2. (BARTHES, 1986, p. 243) Uma distinção que faz referência ao aparelho
auditivo (ou canal sensorial) e à atividade mental gerada a partir de estímulos sonoros.
Barthes ainda complementa que “escutar é se colocar a disposição de decodificar” 3
(BARTHES, 1986, p. 247).

Em A Hermenêutica do Sujeito, Foucault nos apresenta filósofos dos Séculos I e II em


seus estudos sobre a escuta. Para Plutarco, a ambiguidade é uma característica fundamental da
audição, que ele classifica como o mais pathetikós e o mais logikós dos sentidos humanos.
Onde se lê pathetikós podemos ler passivo, pois Foucault segue a sua aula do dia 3 de março
de 1982 explicando que na audição “a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior
e expostas a todos os acontecimentos que dele advém e que podem surpreendê-la. Plutarco
assim explica: não se pode não ouvir o que se passa ao redor” (FOUCAULT, 2006, p. 403). O


2
“Oír es un fenómeno fisiológico; escuchar, una acción psicológica.” (tradução nossa) (grifo nosso).
3
“escuchar es ponerse en disposición de decodificar” (tradução nossa).
22

filósofo grego acrescenta que o próprio corpo físico permite ser surpreendido e abalado pelo
que se ouve muito mais do que pela visão ou tato. Não é possível evitar a escuta.

Por outro lado a audição é também o sentido mais logikós, segundo Plutarco. É por este,
mais do que por qualquer outro sentido, que se pode receber o lógos4. Chega a cravar que “o
único acesso da alma ao lógos é, pois, o ouvido” (FOUCAULT, 2006, p. 404). Essa
ambiguidade – logikós e pathetikós – acompanhará o tema em outros textos e períodos, se
fazendo presente também nos estudos sobre os tipos de escuta quando Roland Barthes,
dezenove séculos depois de Plutarco, os classificou em três categorias.

A primeira escuta é a que acomete a humanos e a animais, trata-se de um alerta, da


percepção de índices sonoros. Um ruído que desperta a atenção do animal para algo que se
movimentou à determinada distância dele, um tipo de escuta própria das atividades de caça e
fuga. O aparelho auditivo “recebe o máximo de impressões e as canaliza até um centro de
vigilância, seleção e decisão”5 (BARTHES, 1986, p. 246).

Na segunda escuta o ser humano se distingue do animal por passar a decifrar os


estímulos sonoros recebidos através dos órgãos da audição. Se trata de compreender os signos
sonoros – “escutamos como lemos, é dizer, de acordo com certo códigos”6. (BARTHES,
1986, p. 246) Para explicar a essência deste segundo tipo de escuta, o autor recorre à
capacidade humana de ritmar golpes, o que é anterior à escrita e às figuras rupestres. É graças
à produção intencional de um ritmo que “a escuta deixa de ser pura vigilância e se converte
em criação” (BARTHES, 1986, p. 246).

Em seus estudos sobre o som Chion também desenvolve definições sobre modos de
escuta. Nomeou de escuta causal a (mais próxima da noção de primeira escuta de Barthes)
que se ocupa de identificar a causa de um som. O tipo de escuta mais comum e mais
influenciável e enganador, pois o reconhecimento da natureza geradora de um índice sonoro
dificilmente se faz pelo fenômeno acústico isolado, mas principalmente, pelo contexto em que
esse som é produzido. No âmbito do cinema, o autor destaca que essa escuta causal é, com
frequência, manipulada através da síncrese, que faz o espectador acreditar, se iludir, de que o


4
logos no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Mas a partir de filósofos
gregos, como Heráclito, passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico
traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da
Ordem e da Beleza (https://pt.wikipedia.org/wiki/Logos).
5
“la oreja […] recibe el máximo de impresiones y las canaliza hacia un centro de vigilancia, selección y
decisión” (tradução nossa).
6
“escuchamos como leemos, es decir, de acuerdo con ciertos códigos.” (tradução nossa)
23

som emitido pelos alto-falantes tenha sido causado pelo objeto na tela que compõe a cena;
quer dizer, naquele determinado contexto (CHION, 2011).

Quanto à atividade auditiva que não se atêm ao caráter acústico do som, mas sim ao seu
significado (a segunda escuta de Barthes), recebeu de Michel Chion a designação de escuta
semântica. Refere-se à interpretação que fazemos dos sons. O autor observa que “a escuta
causal e a escuta semântica podem exercer-se paralela ou independentemente numa mesma
cadeia sonora” (CHION, 2011, p. 29), pois temos a capacidade de perceber simultaneamente
o que gera um som e o que o mesmo quer dizer (seu significado).

Além dessas duas, Barthes indica uma terceira escuta, desempenhada pela intervenção
do inconsciente. Como uma atividade própria de psicanalistas que fazem uso do traço
pathetikós da audição, Barthes segue os ensinamentos de Freud e sugere uma forma de
escutar que não se preocupe em saber se algo será absorvido ou não pelo lógos nessa
atividade. Dessa maneira, antes de que o sujeito que percebe um ruído possa fazer uma
interpretação do som pela razão, ele a faz inconscientemente por suas múltiplas sensações
(sinestesia); ou seja, entre o alerta sonoro e a compreensão do que aquilo possa significar,
estão as sensações despertadas pelo som em contato com a “memória inconsciente” do
sujeito. “Um modo de escutar pânico”7 (BARTHES, 1986, p. 255), tendo em conta que
alguns autores remetem a origem da palavra pânico ao Deus Pã: que perturba o espírito e
enlouquece os sentidos8.

“A escuta se abre a todas as formas de polissemia”9 (BARTHES, 1986, 255).

A passividade auditiva, presente nessa terceira escuta, demonstra ser vantajoso que o
ouvido se deixe penetrar sem que a vontade intervenha, e assim, “recolha tudo o que do lógos
possa passar a seu alcance” (FOUCAULT, 2006, p. 405), como já afirmara o filósofo Sêneca.
Mesmo que não se preste atenção, que não se compreenda uma emissão sonora, alguma coisa
sempre permanece; o sujeito queira ou não, “há sempre um certo trabalho do lógos na alma”
(FOUCAULT, 2006, p. 405). E tratando das qualidades do traço pathetikós, Plutarco cita a
música, a lisonja das palavras e os efeitos da retórica, para afirmar que não há só a vontade de
interpretar uma informação sonora, mas também o objetivo de atingir o âmbito do sensível,
sendo a audição “evidentemente mais capaz do que qualquer outro sentido de enfeitiçar a
alma” (FOUCAULT, 2006, p. 403).

7
“un modo de escuchar pánico” (tradução nossa) (grifo nosso)
8
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1993.
9
“la escucha se abre a todas las formas de la polisemia” (tradução nossa)
24

Em todos estes textos a respeito da passividade da audição, a referência a


Ulisses, certamente, é uma regra: Ulisses que chegou a vencer todos os
sentidos, a dominar inteiramente a si mesmo, a recusar todos os prazeres que
se podiam apresentar. Porém, quando costeia a região em que encontrará as
Sereias – nada, nem sua coragem, nem seu domínio de si, nem sua
sophrosyne, nem sua phrónesis, podia impedi-lo de ser vítima delas,
enfeitiçado por seus cantos e por sua música. Ele é obrigado a tapar as
orelhas dos marinheiros e fazer-se atar ao mastro, tanto sabe que seu ouvir,
sua escuta é o mais pathetikós de todos os seus sentidos (FOUCAULT,
2006, p. 403).

Epicteto, outro filósofo visitado por Foucault, lembra que se para falar é preciso uma
tékhne, enquanto que para escutar, se requer uma empeiría (experiência, habilidade
adquirida), que se desenvolva uma familiaridade com as exigências da escuta. E para que seja
mais lógica do que patética, é necessária uma postura ativa de escuta, que tem a dupla função
de possibilitar a máxima escuta pela tentativa de eliminar as interferências externas e permitir
que a alma esteja calma para acolher a informação sem perturbação. “Daí a necessidade de
uma atitude, uma atitude física muito precisa e tão imóvel quanto possível”. (FOUCAULT,
2006, p. 412) Uma atitude muito similar à do espectador no cinema, já que imobilidade e
silêncio são exigências do ambiente cinematográfico para a melhor experiência fílmica. A
bordo desse mesmo barco que Ulisses e Epicteto, Chion grita aos tripulantes:

As consequências, para o cinema, são que o som é, mais do que a imagem,


um meio insidioso de manipulação afetiva e semântica. Quer o som nos
trabalhe fisiologicamente (ruídos da respiração); quer, pelo valor
acrescentado, interprete o sentido da imagem e nos faça ver aquilo que sem
ele não veríamos, ou que veríamos de outra forma (CHION, 2011, p. 32).

Outra vez então, nos deparamos com a ilusão, com a escuta pânico que confunde os
nossos sentidos e nos manipula a perceber algo novo, particular, impossível de ser apreendido
sem o efeito desse ilusionismo. Efeito esse, que advém da consciência das imperfeições
realísticas e da própria irrealidade do cinema. Principalmente os cineastas adeptos das teorias
formalistas, se utilizam dessas limitações, conduzindo e organizando a visão do espectador
pelo enquadramento dado à uma imagem, por exemplo.

“Para cada limitação da percepção natural há um ganho de percepção estética potencial”


(ANDREW, 2002, p. 38).

Entretanto, e ao mesmo tempo, os teóricos realistas aparecem como uma contra corrente
e uma crítica ao formalismo, argumentando que esses se interessam basicamente pela forma
25

artística enquanto os realistas baseiam sua estética material na prioridade do conteúdo de um


mundo visível espontâneo, de ocorrências acidentais. De acordo com o teórico Siegfried
Kracauer, a função básica do veículo cinema seria “o registro e a revelação do mundo visível
ao nosso redor” (ANDREW, 2002, p. 95).

Enquanto realista, Kracauer desenvolveu as noções de realismo e realismo registrado,


vindo a considerar que os cineastas mostram as suas visões sobre a realidade, e então, passa a
defender “um realismo humano, não de fato, mas de intenção”. (ANDREW, 2002, p. 98) Um
dos mais importantes teóricos cinematográficos, André Bazin, se apoia na noção da psicologia
de um realismo que “tem a ver, não com a acuidade da reprodução, mas com a crença do
espectador na origem da reprodução” (ANDREW, 2002, p. 116). Descartava, assim, a pureza
do real cinemático em relação à realidade de fato, mesmo afirmando que a mente do
espectador está disposta a eliminar as diferenças entre o real e o reproduzido, e acreditar que o
reproduzido é real. Isso é possível porque no cinema não há o objeto em si mas o seu
“desenho” real e verificável, como um molde do objeto original. “Somos atingidos
psicologicamente por tais desenhos porque eles foram, na realidade, deixados pelo objeto que
nos fazem lembrar” (ANDREW, 2002, p. 117).

De forma sucinta, Bazin, entendia que a realidade bruta era a essência do cinema, mas
que a matéria-prima não era a própria realidade, mas o seu molde marcado na película (e na
tela), e que esses desenhos são compreensíveis pois são os mesmos que temos marcados em
nossas memórias. Enquanto para os formalistas, o que constitui a arte do cinema é a
transformação da realidade em abstração. Todos condenaram o apelo “cru” à realidade. O
cinema se torna arte quando o ser humano molda inteligentemente o material cinemático, e
transforma o real (ANDREW, 2002).

Já nas teorias mais contemporâneas, o francês Jean Mitry tenta fazer uma síntese das
ideias realista e formalistas. Afirma que esses desenhos que nos fazem lembrar objetos, o que
seriam imagens puras, possuem um sentido; e que uma sequência de imagens tem um
significado representacional que o cinema constrói, referindo-se ao processo de montagem
que interfere diretamente na ordem natural dos acontecimentos (ANDREW, 2002).

Uma diferença crucial da imagem cinematográfica em relação à do mundo real, é que a


primeira pode ser trabalhada e ordenada a partir do desejo e intenção do cineasta. E se o
cineasta organiza e relaciona as imagens de acordo com a sua vontade, do outro lado, o
espectador se esforça em entender porque determinada imagem vem depois de uma primeira,
empregando à sequência de imagens algum significado, a partir das relações feitas no seu
26

intelecto. Um processo de criação de sentido que se inicia com a intencionalidade das relações
criadas pelo diretor de cinema, e se completa nas relações percebidas e desenvolvidas pelo
espectador. O teórico formalista Belá Balázs contribui para esse pensamento quando fala de
um fluxo de significado que se mantem em paralelo ao fluxo de imagens, “mantendo-as juntas
para a criação de um mundo humano e motivado” (ANDREW, 2002, p. 157).

Se considerarmos que a inteligência humana é fruto de impressão, memória e


associação, o que permite que o cérebro sintetize e modifique as vivências humanas “através
da interpolação de símbolos nas lacunas e confusões da experiência direta” (LANGER, 1989,
p. 40); concordaremos com a filósofa Susanne Langer e com o autor de A História Natural da
Mente, em que a atividade essencial do pensamento humano é a simbolização. E nesse
sentido, Mitry entende que em realizações cinematográficas, num primeiro nível, o da
percepção, a realidade não pode ser ignorada; e que no segundo nível, o da significação,
composto pela sequência de imagens, é o homem:

com seus planos, seus desejos, seus significados, que faz com que esses
análogos da natureza se submetam à própria necessidade insaciável de
significar. Um novo mundo é criado pelo cineasta com a ajuda e
cumplicidade do mundo real dos sentidos. Nenhuma outra arte fez isso
(ANDREW, 2002, p. 158).

Nesses novos mundos do simbólico, criados em laboratório (na ilha de montagem e


edição) por cineastas, os sons são os encarregados de gerar as atmosferas para esses mundos.
Elementos sonoros que propiciam o ambiente particular de cada filme e influenciam o
espectador na sua impressão de realidade ou fantasia. Pois “a verdade é que esta arte realista
só progrediu por torções ao seu próprio principio e por golpes de irrealismo” (CHION, 2011,
p. 48). Truques (técnicas) que se realizam na montagem, onde está, segundo o teórico e
cineasta formalista Eisenstein, “o poder criativo do cinema, o meio através do qual as
‘células’ isoladas se tornam um conjunto cinemático vivo” (ANDREW, 2002, p. 53).

Enquanto Hollywood dava boas-vindas aos desenvolvimentos técnicos por


causa do realismo adicional que proporcionavam aos espectador, Eisenstein
procurava subverter o realismo natural do som, da cor e da fotografia
tridimensional através da fragmentação ou ‘neutralização’ desses elementos,
permitindo-lhes funcionar justapostos em contraponto com os outros
elementos do filme (ANDREW, 2002, p. 55).

Na virada das décadas de 1920 para 1930, quando o sincronismo entre som e imagem se
tornou possível; os teóricos e cineastas soviéticos, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov,
27

escreveram a “Declaração sobre o cinema sonoro”. Criticavam o caráter naturalista da


utilização do som no cinema e propunham o uso polifônico do áudio em relação ao visual. O
som deveria ser tratado como elemento de montagem cinematográfica, que introduz novos
meios de expressão, não sendo apenas uma confirmação da imagem (EISENSTEIN, 2002a).
Algo reforçado pelas ideias de Balázs quando defende que o cinema deve reconhecer o
barulho, o ruído, como um de seus elementos; que os detalhes sonoros possam ser isolados do
plano visual e organizados de forma objetiva na montagem, e dessa forma, o filme sonoro
poderá se erguer como uma nova arte.

Trata-se, desde o nascimento do cinema sonoro sincronizado, de uma infinidade de


novos recursos, a partir de então, à disposição da montagem – múltiplas possibilidades
estruturais e estéticas de se utilizar o som nos filmes.

A forma mais comum de relacionar o áudio ao visual é pelo som diegético, o que quer
dizer qualquer som que emana da história relatada (diegesis), conectado diretamente com o
narrado pelas imagens, mesmo quando a causa sonora não está visível na cena, como os
ruídos de ambiente, mas que compõem o enredo. Uma outra opção disponível ao montador e
ao diretor de um filme é a utilização do som não diegético, que não se incorpora ao espaço-
tempo da narrativa, não pertencente àquele mundo apresentado pela imagem; fácil identificá-
los quando se percebe que os personagens da cena não escutam esses sons. Uma música pode
ser não diegética quando, em uma sequência fílmica, não se pode identificar o seu mecanismo
de origem; mas será diegética se na cena aparece uma vitrola com um disco a girar (FLÔRES,
2013).

Recursos de montagem/edição que manipulam o sentido, o significado de uma cena,


auxiliando na construção da trama. Sons não diegéticos que podem ser empregados como
possibilidade de novos modelos de cinema que não apenas a linguagem da narrativa clássica,
como no cinema moderno surgido na década de 60 com filmes de Godard por exemplo, que
com seus jump cuts10 e vozes off11, faz parte de um estilo cinematográfico que se coloca em
contra a narrativa linear e a continuidade da montagem invisível. Por outro lado, sons
diegéticos podem ser usados de modo criativo em um filme narrativo clássico para


10
Estilo de montagem usado por Godard em Acossado, que corta de um plano para o mesmo plano dando uma
sensação de salto temporal-espacial.
11
Voz que não está presente no quadro ou na cena, pode se apresentar de várias formas, como o pensamento de
uma personagem, uma voz não identificada que cumprindo o papel de narrador etc.
28

alcançarem um sentido metafórico do som. Os estúdios de foley12 e a edição digital de som


escancaram as possibilidades qualitativas da banda sonora em entregar um aspecto plástico
singular à imagem (FLÔRES, 2013).

“Não há limite para o que um signo pode significar” (LANGER, 1989, p. 69).

Com essa ideia de montagem sonora voltamos à capacidade ilusionista do cinema, pois
também a noção de fidelidade do som no cinema está associada às noções de representação e
reprodução. Chion considera que quando um som é reconhecido pelo espectador, o mesmo
não se preocupa em saber se este é o mesmo som que seria emitido no mesmo tipo de situação
ou de causa na natureza. O importante é que o som represente (traduza, exprima) as sensações
associadas a essa causa. Portanto “não existe qualquer razão para que as relações audiovisuais
assim transpostas pareçam as mesmas que no real, e nomeadamente que os sons originais
reproduzam sons verdadeiros” (CHION, 2011, p. 79). (grifo nosso)

O autor desenvolve esse pensamento afirmando que a questão da representação sonora


está associada à tradução de uma ordem sensorial para outra. Da ordem do tato para a
audição, por exemplo. No caso de cenas que mostram algum objeto caindo, os sons exprimem
as dimensões de peso e potência, que despertam sensações de violência e dor. E considerando
os sentidos como canais, vias de passagem, Chion introduz o conceito de trans-sensorialidade
no qual sensações artisticamente organizadas são transmitidas por um único canal sensorial e
despertam outros sentidos ao mesmo tempo. Um fenômeno rítmico, por exemplo, que nos
chega via olho ou ouvido atinge uma área cerebral associada à motricidade, onde o ritmo é
decodificado e pode ser traduzido em movimento (dança). Chion explica que a visão fornece
algumas informações que são exclusivamente visuais, como a cor por exemplo; e que o som
também tem suas particularidades sensoriais apenas auditivas, como o timbre e o volume.
Mas a trans-sensorialidade considera que essas são dimensões minoritárias, que o que há de
fato entre os sentidos, é uma troca recíproca. Se trata de admitir ouvir com os olhos e ver com
os ouvidos (CHION, 2011).

No entanto, a percepção sensível e complexa provocada pela junção entre imagem e


som não é automática; é sim, suscetível a ser influenciada, reforçada e orientada pelos hábitos
culturais de quem assiste/escuta. De acordo com Chion, a animação temporal da imagem pelo
som não é um fenômeno puramente físico, os códigos culturais são importantes influentes


12
Sons produzidos a partir de variados matérias, gravados em estúdios por profissionais que simulam
sonoramente o que é projetado.
29

para criar as sensações desejadas. Uma música ou elemento sonoro culturalmente deslocado
do seu cenário, pode não surtir o efeito desejado pelo realizador.

Uma participação efetiva das referências culturais de cada pessoa no momento da


concepção, e depois, na percepção/interpretação do filme; o que levou Balázs a considerar
que as criações fílmicas “não são fotografias da realidade, mas a humanização da natureza, a
partir do momento em que as próprias paisagens que escolhemos como pano de fundo para
nossos dramas são produtos dos nossos padrões culturais” (ANDREW, 2002, p. 82).

Padrões culturais e históricos dos envolvidos na relação sonora-visual do cinema, que


são importantes pilares na construção de mundos fílmicos. Confecção simbólica que se inicia
a partir das intenções de seus produtores, e concretiza-se na interpretação de cada espectador:
uma viagem particular e subjetiva a partir da imersão nesses mundos fílmicos.

1.2 . OS MUNDOS FÍLMICOS

Via Lactea. Planeta Terra.

No século do cinema seres humanos que tiveram a possibilidade de se entregar ao


ilusionismo audiovisual, puderam viajar pelo universo, visitar o passado e o futuro, puderam
sonhar, sofrer e sorrir, puderam descobrir o outro e também enxergar a si próprios.

Para entender o mundo criado em cada filme é preciso analisar a sua composição
cósmica. A análise fílmica é uma atividade de destacar materiais que não se percebem
isoladamente em experiência fílmica descompromissada. O analista observa de modo ativo,
consciente da ilusão audiovisual, e examina técnica, estética e simbolicamente o filme. E “se
considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas”
levando em consideração o contexto histórico em que cada um desses mundos foi gerado
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 23).

Imagem em movimento. Mundo em movimento.

Períodos históricos são períodos de transição; nas palavras do filósofo Lukács,


“contraditória unidade de crise e renovação, de destruição e renascimento; uma nova ordem
social e um novo tipo de homem surgem no bojo de um processo unificado embora
contraditório” (apud XAVIER, 2005, p. 60). Um novo sujeito que na sua ação de representar
30

o mundo artisticamente revela a sua “consciência de mundo” e o que há de essencial no


momento/movimento histórico da obra fílmica.

Um trem chegando à estação. Os operários saindo da fábrica.

A imagem em movimento foi uma grande invenção, mas desde o século XVII imagens
projetadas por um foco de luz eram acompanhadas por vozes e efeitos sonoros. A partir de
1894, quando os irmãos Lumière na França e Thomas Edison nos Estados Unidos
desenvolvem aparatos de gravação e reprodução de imagem em movimento, até 1905 (alguns
estudiosos apontam 1904, outros 1906), durante a fase chamada de cinema de atrações, a
maioria dos filmes eram compostos por apenas um plano: os produtores se dedicavam a filmar
planos individuais, os rolos com cada plano eram vendidos separadamente, e o exibidor
controlava a ordem (e também a velocidade) em que os planos seriam projetados. Durante os
seus primeiros vinte anos de existência, “por estar misturado a outras formas de cultura, como
o teatro, a lanterna mágica, o vaudeville e as atrações de feira, o cinema se encontraria num
estágio preliminar de linguagem” (COSTA, Flávia, 2006, p. 22).

As “costuras” entre planos começam a ser experimentadas na fase que se conhece


como período de transição, entre 1905 e 1915. Quebra-cabeças narrativos que intentam
construir histórias autoexplicativas que dispensem a figura do “apresentador” da lanterna
mágica. Com isso os filmes passam a ter uma maior duração e o cinema passa, de um sistema
colaborativo de produção, a se organizar de forma mais industrial com divisão de trabalho,
definindo as especificidades das várias funções que envolviam a produção e exibição dos
filmes. Em decorrência dessa organização, as formas de como costurar os planos, enquanto
novas estruturas narrativas, que primeiramente podiam deixar os espectadores ainda confusos,
passam a ser repetidas seguidamente nas produções fílmicas desse período de transição e vão
se tornando convenções de uma linguagem exclusivamente cinematográfica. Esse é o
momento (mundo em movimento) em que há um desenvolvimento de técnicas de filmagem,
iluminação, encenação e montagem (COSTA, Flávia, 2006).

“André Malraux [...], aponta o corte dentro da cena como o ato inaugural da arte
cinematográfica” (XAVIER, 2005, p. 29).

Nos Estados Unidos da América, David W. Griffith desenvolveu uma montagem


pautada em paralelismos, implantando uma forma narrativa que evoluiria até a montagem
invisível do cinema clássico. Além de alternar entre diferentes linhas de ação, o que pode
criar suspense e emoção, o estadunidense também usou a montagem paralela para conseguir
31

diferenciações dramáticas, desenvolver psicologicamente os personagens e sugerir


julgamentos morais. Através de contrastes marcados entre bons e maus, exploradores e
oprimidos etc., a montagem manipula as linhas narrativas relacionando-as com as motivações
dos personagens, e assim, invoca o espectador a tirar conclusões morais sobre a trama e os
personagens (COSTA, Flávia, 2006).

Georges Méliès levava o público à viagens oníricas na França e os estúdios franceses


ampliavam as possibilidades de rotas de viagens por filmes dramáticos, históricos e comédias
para além das películas de truques mágicos. Mas com sua moralidade polarizada e pela defesa
da ordem social, o melodrama foi o tipo de filme que mais dominou a cena do começo do
século XX (COSTA, Flávia, 2006).

“Depois de outubro, não veio a bonança. Entre 1917 e 1920, as ainda não consolidadas
repúblicas socialistas soviéticas mergulhavam numa dura guerra civil. No olho do furacão, os
futuros protagonistas do cinema, [...] começavam suas carreiras nas fileiras do Exército
Vermelho” (SARAIVA, 2006, p. 109). Lev Kulechov e Dziga Vertov eram colegas de
trabalho na produção de noticiários cinematográficos para os fronts de batalha e os trens de
propaganda. Sergei Eisenstein largou os estudos de engenharia para organizar espetáculos
teatrais para os soldados.

Kulechov era um empirista. De suas experiências já conhecemos o principio da


justaposição: da relação e influência mútua entre planos combinados que resulta no
significado de um conjunto. Mais ainda, o soviético desenvolveu as ideias de “geografia
criativa” e de “corpo cinematográfico”. Seguindo os princípios de continuidade do cinema
norte americano – regra do eixo, campo e contra-campo, continuidade (sentido) do
movimento –, planos são filmados com atores em locações diferentes e, quando montados na
ilha de edição, alcançam a abstração do espaço real compondo então um espaço fílmico, uma
“geografia criativa”. Ou seja: lugares diferentes, filmados em momentos distintos, que pela
justaposição desses planos e seu significado de conjunto adquire a concepção de um novo
espaço, exclusivamente cinematográfico. Algo parecido é demonstrado na sua outra
experiência, na qual foi possível esculpir, durante a montagem, um “corpo cinematográfico”
composto por planos de diferentes mulheres reais (SARAIVA, 2006). E para sedimentar essas
ideias podemos retornar à ideia defendida por Münsterberg quando afirma que o filme em si
não existe nem na película nem na tela de projeção, o filme só existe na mente de quem o
assiste; então tratam-se de experimentações e descobertas que contribuem para o ilusionismo
audiovisual.
32

É nesse tipo de pensamento que nos apoiamos para explorar a ideia de mundo fílmico,
de que cada filme constrói um mundo particular. Pois se é possível a construção de um espaço
e um corpo cinematográfico, podemos concordar que o conjunto de recursos da linguagem
cinematográfica opera para transportar o espectador a um mundo fílmico, no qual se
desenrolará um enredo com esses corpos cinematográficos habitando e se relacionando nesse
espaço fílmico. Um mundo concebido num cosmos cinematográfico, com regras e limitações
próprias do cinema, mas que é atravessado pelo (e atravessa o) mundo real; mundo que faz do
mundo real (ou dos desenhos que o mundo real nos deixa, como vimos antes) a sua matéria
prima; onde é preciso que uma atmosfera determine o “clima” de cada um desses mundos, em
que nos atrevemos a dizer que essa camada de ozônio é constituída por vibrações acústicas,
ou seja, onde a atmosfera é sonora.

Com muita polêmica e contraditório, na virada da década de 1930, o surgimento do


cinema sonoro foi um passo importante para refinar o sistema de ilusionismo do cinema e
tornar esses mundos ainda mais críveis. Agora, não só vemos pelos múltiplos planos bem
construídos pela fotografia, como também escutamos a “entonação” que exprime a emoção da
voz, os ruídos que entregam corporeidade à imagem (na relação causa-efeito sonoro) e as
peças musicais, que então puderam ser completamente controladas pelos realizadores
(COSTA, Fernando, 2006; XAVIER, 2005).

O estabelecimento efetivo de uma relação espaço-tempo propriamente áudio-visual.

Para a construção de um ambiente “natural” característico da decupagem do cinema


clássico, a dimensão sonora é uma substancial contribuição. O som ampliou os limites do
quadro filmado (ações fora de quadro, vozes em off...), possibilitou uma melhor percepção da
dimensão de distância dentro do plano; auxiliou na coesão da continuidade das ações no
mesmo espaço fílmico (principalmente quando filmados em lugares diferentes): a manutenção
dos ruídos de um ambiente entre um plano e outro indica que a ação continua naquele mesmo
lugar e no mesmo momento continuo; e por outro lado, o som contribui também para deixar
claro, por descontinuidade, quando ocorre uma mudança de um local (espaço) para outro e de
um momento (tempo) para outro (CHION, 2011).

De tal modo que imagem e som, podem então, serem considerados como elementos
integrantes de mesmo nível na linguagem cinematográfica, e torna-se limitada a proposta de
um cinema formado por imagem e mais alguns acessórios. Pois “construir um espaço-tempo
através da combinação de imagens define um tipo de trabalho, enquanto que construí-lo
através de imagens e sons é algo qualitativamente diferente” (XAVIER, 2005, p. 37). A
33

dimensão sonora abre um novo leque de recursos e possibilidades para a realização de um


filme.

Nos primórdios do cinema sonoro, os desenhos animados, por exemplo, foram de


grande contribuição para o estabelecimento de uma relação sonora cinematográfica. As
animações empregaram um novo uso: aplicando os sons emitidos (e harmonicamente
compostos) por instrumentos sinfônicos em sincronismo com os movimentos e
acontecimentos internos do quadro cinematográfico. Com isso, os passos, os golpes e os
escorregões dos seres desenhados e animados passaram a fazer ruído – um ruído que não
correspondia acusticamente aos sons do mundo real, mas que serviam de expressão sonora
nesses mundos dos desenhos animados nos quais as relações com o mundo real não precisam
ser estritamente correspondentes.

“Artistas com diferentes visões de mundo percebem a realidade que os cerca


diferentemente; eles veem os acontecimentos de modo diferente, os discutem de modo
diferente, os mostram, os imaginam e os ligam uns aos outros diferentemente” (KULECHOV
apud XAVIER, 2005, p. 51). Pela ótica de Béla Balázs cada filme é uma expressão viva por
intencionalidades; de um lado o diretor, que guia intencionalmente o olhar do espectador, do
outro lado, a plateia, que intenta encontrar um sentido à sequência de planos e sons
apresentados a ela – “mesmo diante de um aglomerado de fenômenos acidentais, a nossa
consciência tende a procurar um significado” (XAVIER, 2005, p. 54) –, e no meio de tudo, a
montagem, que se encarrega, ou seja, tem a intensão de direcionar essa busca do público pelo
significado.

A intenção de Kulechov, seguidor dos princípios da narrativa clássica, fica diluída na


sua preferência pela montagem rápida e de desenrolar continuo da ação, pois a
intervenção/manipulação da sua montagem visa ser imperceptível. Já seu companheiro
soviético Eisenstein, desenvolveu um outro estilo de montagem, que intervém
propositalmente no relato dos fatos, sem se preocupar com a integridade da ação representada,
mas sim preocupado com a integridade de um raciocínio, de uma emoção; formas de encadear
ideias que veio a classificar de montagens tonal e intelectual, nas quais se utiliza de metáforas
e elementos simbólicos (XAVIER, 2005).

Sem que se alcance um veredicto, Kulechov aponta que uma montagem é justa quando
relaciona imagens e sons conseguindo transmitir a essência do fenômeno a ser reproduzido,
mas destaca que por trás de cada montagem sempre haverá uma intensão de classe; portanto
para o autor prevalecem os critérios ideológicos sobre os técnicos, de ritmo e continuidade. E
34

em uma Hollywood abalada pela crise de 1929, mas sob o espírito do New Deal e da
esperança no triunfo do capitalismo, surge o herói americano: forte, competitivo e trabalhador
enérgico, características que o conduzem sempre à vitória, condicionando a plateia a pensar
que caso empenhe, na vida real, a mesma energia do herói do cinema, conseguirá adquirir
fortuna, se tornar proprietário de uma casa e ser feliz no casamento (ROCHA, 2006;
XAVIER, 2005).

No fim das contas, temos a afirmação de Béla Balázs de que existe um


antropomorfismo intrínseco no ato de representar, na tentativa de conceber uma realidade à
medida do homem. O interessante aqui é que essa “medida humana” não é para nada
definitiva ou única, está sempre em movimento junto com o mundo, e interage com a
realidade objetiva acumulando e desenvolvendo formas de representação. “Dependendo de
condições de tempo e lugar, o trabalho artístico, subjetivo, está inserido em uma determinada
cultura, que define certos recursos, certa sensibilidade e certas formas particulares de
representação” (XAVIER, 2005, p. 56).

De acordo com as condições de tempo, lugar e cultura, surgem obras artísticas


audiovisuais que, por afinidades e semelhanças entre elas, podem ser classificadas em
categorias que ficaram conhecidas como “gêneros cinematográficos”. O modo como um
conjunto de filmes elegem a temática abordada, os personagens a serem retratados, as
situações encenadas, os elementos iconográficos usados, assim como os princípios estilísticos
e os propósitos semânticos, permitem-nos classificar dois ou mais filmes como pertencentes a
um mesmo gênero ou a gêneros distintos. Portanto durante o movimento histórico, quando
movimentos artísticos geram um conjunto de obras fílmicas e se utilizam de princípios
cinematográficos que se assemelham, surge então um gênero cinematográfico formado pelas
convenções estilísticas e temáticas forjadas naquele momento/movimento histórico/artístico.
E se fizermos aqui uma montagem paralela com o cinema de intencionalidade de Balázs,
poderemos dizer que cada gênero expressa a intensão de seus realizadores dentro de um
determinado tempo histórico (NOGUEIRA, 2010).

Importante pontuar que, assim como o ser humano e por ser uma criação humana, os
gêneros não são estáticos e estão sempre sujeitos à constantes mutações e hibridizações. As
convenções de um gênero podem se modificar/atualizar ao longos dos períodos históricos, e
um filme pode ser híbrido e apresentar elementos de mais de um gênero.

Estudar os gêneros cinematográficos permite compreender melhor a lógica das ideias


e o processo criativo de cada filme pertencente à (ou inspirado em) um determinado gênero.
35

Os realizadores audiovisuais têm nos gêneros um quadro de referencias que lhes permitem
pautar as suas escolhas, seja pela adoção das práticas convencionadas, seja pela subversão dos
códigos partilhados. “É no equilíbrio entre o domínio das convenções e a ruptura das mesmas
que um criador se pode evidenciar como um autor” (NOGUEIRA, 2010, p. 7).

John Ford é um dos principais diretores de obras cinematográficas do gênero que


muito se destacou e se espalhou pelo mundo. O Western é a “conquista” do oeste (que se
poderia escrever “invasão”), a ampliação das fronteiras (de alguns e a diminuição das
fronteiras de outros) e a instalação da ordem civilizada (feita com violência e pólvora) sobre a
ordem “selvagem” dos povos dali originários. Bebendo no mesmo bar, o único na cidade
desértica, em que servem os contrastes de Griffith, o western define claramente de um lado o
xerife, com bons modos e ótima mira garantindo a ordem para que a ferrovia, os bancos e o
progresso alcancem aquelas terras tão longínquas, enquanto os indígenas com suas
“selvagerias” e os fora-da-lei se encarregavam de todas as práticas vinculadas ao mau (fora da
ordem vigente) (NOGUEIRA, 2010).

As convenções do western são tão marcantes para o cinema que um tipo de plano
cinematográfico surgiu por conta desse gênero. Entre os planos aberto e médio, um plano que
enquadra o ator delimitando o teto do quadro logo acima da cabeça e cortando na altura do
joelho foi denominado de “plano americano”, e assim pudemos ver num mesmo plano a
expressão facial do personagem e a pistola, talvez seu maior símbolo iconográfico.

O surgimento desse gênero ocorre no mesmo período histórico que o aparecimento do


cinema sonoro, e após a hesitação inicial ao som, os diretores de western mesmo se utilizando
pouco dos diálogos, perceberam o impacto que alguns sons, identificados como pertencentes à
essa cultura local da época, proporcionavam sobre os espectadores e exploraram os elementos
sonoros do estouro da manada, dos tiros e explosões, e das canções folk típicas do país
(VUGMAN, 2006).

“O western é o sangue básico do americano, sua cultura popular, sua formação étnica,
religiosa no que ele possui de indevassável” (ROCHA, 2006, p. 116). Ao final de cada filme,
o herói prendia ou matava o bandido e beijava a mocinha, até que veio a segunda guerra
mundial. E junto com o mito do herói estadunidense infalível, que acerta todos os tiros e
nunca é baleado, os aliados venciam a guerra e a Europa ficava arrasada.

Na Itália, o cinema mostrava os noticiários de guerra e filmes que, feitos em estúdios,


propunham um representação de país pela ótica (intencionalidade) do regime fascista em
36

vigor. Mas à margem dessa produção tradicional, uma série de realizações colocaram nas
telas, filmes que começam com um padre sendo fuzilado por soldados nazistas em plena luz
do dia na cidade aberta de Roma13; que corta para um plano geral da rua e, um pai com seu
filho caminham apressadamente, vivendo o drama da falta de emprego em meio ao dilema
entre a fome familiar e o de se tornar um ladrão de bicicleta.14 O herói desse cinema italiano
não é infalível, ele tem mais dúvidas que certezas; esse é um cinema de pessoas de verdade,
os seus cotidianos e fundamentalmente as suas relações com o ambiente, seu habitat.

De Santis, diretor italiano, em 1943 dizia: “Nós acreditamos, hoje mais do que nunca,
que o termo documentário tenha de ser despojado de seu comum atributo científico para
[alcançar] um significado poético mais alto, onde os termos de conteúdo sejam homem e
natureza”. (apud FABRIS, 2006, p. 208-209) Outro diretor italiano, Rossellini, defendia um
método de apropriação do real que se pautasse, não apenas em “olhar em volta”, mas
principalmente no “como olhar”. E Zavattini formulou, então, estratégias para esse “como
olhar”: (1) pendimento, ato de ficar perseguindo alguém; (2) buco nel muro, buraco na parede;
(3) poetica del coinquilino, poética do vizinho. Afirmavam, com isso, que era preciso sair às
ruas para conhecer o próximo, o próprio, a sua gente (FABRIS, 2006).

Os diretores do neorrealismo italiano promoveram o uso cenográfico da paisagem


natural, e incorporaram o homem nessa composição cinematográfica do real. A fotografia
com iluminação natural e planos abertos apresentam a paisagem inserida na narrativa como
função dramática e não apenas como um registro. O som também foi usado para mostrar
particularidades sonoras presentes na sonoridade do idioma dos pescadores sicilianos em A
terra treme (Luchino Visconti, 1948), o que inclusive atribuiu mais naturalidade à atuação de
não-atores, ou atores-de-si-mesmos, que conseguem se expressar melhor no seu idioma
tradicional. E quando uma destas projeções acabava, o cinema havia servido como lente de
aumento para os mesmos dramas vividos pelos atores-de-si-mesmos (e espectadores) fora do
mundo fílmico.

“Não sei quanto o cinema italiano do pós-guerra mudou a nossa maneira de ver o
mundo, mas com certeza mudou nossa visão do cinema” (FELLINI apud FABRIS 2006, p.
217).

Fellini enquanto diretor de cinema não se ateve apenas às convenções desse gênero em
suas realizações, mas ressalta a importância e influência do neorrealismo para o cinema

13
ROMA, Cidade aberta. Roberto Rossellini, 1945
14
LADRÕES de bicicleta. Vittorio De Sica, 1948
37

mundial. Pois, com sua vocação transgressora de convenções cinematográficas, o


neorrealismo seria uma espécie de prelúdio dos novos gêneros surgidos nos anos 1960, que se
caracterizam por rupturas ao modelo hollywoodiano (FABRIS, 2006). E é imprescindível
destacar o movimento da Nouvelle Vague15 na França, marcado por aplicar a descontinuidade
em seus filmes, revelando ao espectador a operação cinematográfica tão escondida pela
montagem invisível da narrativa clássica.

Façamos agora um movimento de panorâmica com a câmera e o microfone para outra


parte do planeta.

Na parte subdesenvolvida do mundo, “o Brasil era fundamentalmente um país


exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. As decisões,
principalmente políticas e econômicas, mas também culturais, de um país exportador de
matérias-primas, são obrigatoriamente reflexas” (BERNARDET, 2007, p. 31-32). E assim era
com o cinema, que nos anos 1950 viveu a tentativa da implementação de um modelo
industrial (inspirado em Hollywood) com a Companhia Vera Cruz em São Paulo, e a
Atlântida no Rio de Janeiro; empreendimentos que produziram uma certa quantidade de
filmes, mas que em 1954 já se anunciava a sua derrocada (GOMES, 1996).

Fora desse modelo industrial de cinema e influenciados pelas ideias socialistas,


difundidas num mundo dividido entre URSS e EUA, cineastas brasileiros começaram a
conduzir as suas produções à filmes que representavam a vida popular brasileira, e Rio 40
graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) é uma das grandes obras do cinema brasileiro que se
utilizou das convenções aprendidas com o neorrealismo italiano. O que fez a cabeça de jovens
apaixonados pela sétima arte e pela cultura brasileira. E uma dessas cabeças foi a de Glauber
Rocha.

Em 1957-58, eu, Miguel Borges, Carlos Diégues, Davis E. Neves, Mário


Carneiro, Paulo Saraceni, Leon Hiszman, Marcos Farias e Joaquim Pedro de
Andrade (todos mal saídos da casa dos vinte) nos reuníamos em bares de
Copacabana e do Catete para discutir os problemas do cinema brasileiro.
Havia uma revolução no teatro, o concretismo agitava a literatura e as artes
plásticas, em arquitetura a cidade de Brasília evidenciava que a inteligência
do país não encalhara. E o cinema? (ROCHA, 2004, p. 50)

Feita a pergunta, o próprio cineasta e autor Glauber Rocha responde: “a arte brasileira
precisa se nacionalizar através de sua expressão” (ROCHA, 2003, p. 125).

“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original,

15
Para saber mais sobre a Nouvelle Vague cf. capítulo de Alfredo Manevy (MASCARELLO, 2006)
38

nada nos é estrangeiro, pois tudo o é” (GOMES, 1996, p. 90). Enquanto país formado em
decorrência do processo de colonização, a construção da expressão brasileira tem na base a
dialética entre o ser a cópia do outro, do colonizador, dos países do primeiro mundo; e a
negação em assumir-se colonizado, de um país subdesenvolvido (GOMES, 1996).

Filmes estrangeiros, que remetem a mundos, histórias e culturas diferentes das vividas
pela plateia costumeiramente, podem ter o efeito de distração, de um envolvimento superficial
do espectador, de escapismo à sua realidade mundana. Entretanto, filmes nacionais, se
tratarem de temas próximos, possuem intrinsecamente uma provocação ao espectador
nacional que assiste aos filmes. O conjunto de elemento ali expostos na tela representam o
próprio espectador e aspectos que o rodeiam: objetos que lhe são familiar, comportamentos
em situações cotidianas, o seu idioma particular, suas memórias e mitos originários. “Essa
interpretação, consciente ou inconscientemente, ele não pode deixar de aceitar ou rejeitar.
Esse compromisso diante de um filme nacional, do espectador com a própria realidade, é uma
situação à qual não se pode furtar” (BERNARDET, 2007, p. 32).

Para esses cineastas brasileiros da época, chegar, cinematograficamente, à uma


expressão nacional significava superar o nível da imitação das técnicas audiovisuais
praticadas pelos países desenvolvidos. Esses cineastas defendem que essas técnicas
consagradas só são úteis quando é possível “instrumentalizá-las”, (dis)torce-las, imprimindo
ao filme um caráter original. (ROCHA, 2004) Um modo de pensar o cinema que nos remete
às propostas neorrealistas de refletir sobre “o que filmar” junto ao “como filmar”.

Nesse momento/movimento histórico/artístico brasileiro, esses jovens cineastas


afirmam que querem fazer filmes comprometidos com os problemas do seu tempo, filmes que
que possam ajudar a construir um patrimônio cultural e que sirva, não de reflexo mas, de
reflexão sobre o Brasil. Declaram fazer um novo cinema porque o brasileiro e a problemática
do Brasil é nova, e sendo novo, os filmes resultam diferentes dos filmes europeus e
estadunidenses. “Para nós a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento
de conhecimento, a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso ambicioso discurso
sobre a realidade humana e social do Brasil! Isto é quase um manifesto” (ROCHA, 2004, p.
52). Vemos então, sob forma de manifesto, a formação do Cinema Novo brasileiro enquanto
movimento cinematográfico.

“Depois de Cinco vezes favela, filme desigual mas revelador, produzido em 1962,
tornou-se o Cinema Novo o responsável por quase todos os filmes nacionais importantes”
(GOMES, 1996, p. 82).
39

Cinco curtas-metragens (Um Favelado, de Marcos Farias; Zé da Cachorra, de Miguel


Borges; Escola de Samba Alegria de Viver, de Carlos Diégues; Couro de Gato, de Joaquim
Pedro de Andrade; Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman) pautados nas relações entre
favelas e cidades, e nas histórias de pessoas que vivem nas favelas do Rio de Janeiro. Na
Bahia também crescia a cena cinematográfica com as iniciativas de Alexandre Robatto Filho,
tendo realizado por exemplo Vadiação de 1954, entre outros curtas-metragens; e também com
as atividades do Clube de Cinema da Bahia, dirigido por Walter da Silveira e frequentado por
muitos dos diretores e críticos baianos. Um conjunto de fatores e pessoas que viriam dar
frutos como Redenção (Roberto Pires, 1959) o primeiro longa-metragem baiano, Bahia de
Todos os Santos (Trigueirinho Neto, 1960), A Grande Feira (Roberto Pires, 1961) e
Barravento (1962), o primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, que já tinha realizado dois
curtas, Cruz na praça (1958) e Pátio (1959).

Nós éramos eisensteinianos e não admitíamos que se pudesse fazer um filme


a não ser com montagem curta, primeiros planos etc... Rio, 40 graus foi
influenciado pelo neo-realismo. Gostamos muito do filme de Nelson porque
era de fato o primeiro filme brasileiro, mas fazíamos ressalvas porque não
era um filme eisensteiniano. [...]
Pátio é um filme feito de metamorfoses, de símbolos, de montagem
dialética. Barravento foi feito num outro espírito, mais direto, mais
verdadeiro, cheguei a registrar a música negra ao vivo. É um filme mais
perto da realidade porque já tínhamos visto nessa época Roma, cidade aberta
e Paisà e a descoberta de Rossellini através desses dois filmes era uma
espécie de antieisensteinismo. Em Barravento, sente-se então essa
influência, mas existem resíduos eisensteinianos, e primeiros planos no
estilo Que Viva México! (ROCHA, 2004, p.112).

1.2.1 . O MUNDO DE BARRAVENTO

Glauber Rocha faz questão de concordar com Jean-Claude Bernardet quando esse
define Barravento como filme experimental – um filme assumido por Glauber com 21 anos
em 1959 com as gravações já iniciadas (antes sob direção de Luiz Paulino dos Santos) e que
teve de reescrever o roteiro durante as filmagens; uma estreia na realização de longas-
metragens com a ousadia de mesclar atores e não-atores, quase todos negros (fato até o
lançamento de Rio 40 graus nada comum no cinema brasileiro). Um filme que, para
Bernardet, sendo experimental revelou-se fundamental para o cinema brasileiro,
principalmente por ser socialmente experimental (ROCHA, 2003).

Pois “o cinema novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade”
40

(SARACENI apud ROCHA, 2004, p. 50).

O cinema, de modo geral, é uma questão de escolha; o cineasta escolhe o que irá ser
gravado na película. Quando decide abrir câmera e microfone sobre os centros urbanos ou as
vilas de pescadores “a escolha é imposta e, mesmo que a matéria original seja neutra, na
montagem se faz discurso contra a matéria: pode ser impreciso, difuso, bárbaro, irracional.
Mas é uma recusa tendenciosa” (ROCHA, 2004, p. 104). Então quando se fala que o cinema
novo é uma questão de verdade, se faz referência à uma verdade sem a inocência da
imparcialidade, mas à uma verdade com intencionalidade. Rocha sinaliza que o cinema é
verdade desde que se filmou a saída dos operários, mas que a conceituação de verdade parte
de uma visão crítica da realidade, sem muitos artifícios como a maquiagem e o tripé, mas com
a câmera na mão, baixo custo de produção e o desejo de mostrar o “verdadeiro” rosto e gesto
humano (ROCHA, 2003).

Mas as verdades brasileiras de um país subdesenvolvido, desigual econômico, racial e


socialmente, em que a maioria absoluta16 é formada por analfabetos, não correspondem
esteticamente aos filmes realizados nos países desenvolvidos; as verdades reveladas nos
rostos de um povo pobre que engana a fome com farinha, fizeram nascer uma nova estética, a
“eztetyka da fome” (termo e grafia utilizada por Glauber Rocha).

Da fome. A estética. A preposição “da”, ao contrário da preposição “sobre”,


marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto do qual se fala.
Ela se instala na própria forma do dizer, na própria textura das obras.
Abordar o cinema novo do início dos anos 60 é trabalhar essa metáfora que
permite nomear um estilo de fazer cinema (XAVIER, 2007, p. 13).

A fome, como nos aponta Glauber, não é apenas “um sintoma alarmante: é o nervo da
própria sociedade” (ROCHA, 2004, p. 64) da qual se origina essa “eztetyka”; esse cinema que
não só mostra os famintos como transforma a carência (tanto da realidade brasileira como dos
recursos do cinema brasileiro subdesenvolvido) em convenções de linguagem. “A carência
deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que
informa a sua estrutura e do qual extrai a força de expressão” (XAVIER, 2007, p. 13).

O que para o resto do mundo pode parecer “um estranho surrealismo tropical. Para o
brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e,
sobretudo, não sabe de onde vem esta fome” (ROCHA, 2004, p. 66). Pois é nesta fome e neste


16
Título do curta-metragem de Leon Hirszman, de 1964, que ponta câmera e microfone para a maioria da
população brasileira que é composta por analfabetos.
41

“não saber” de onde vem a fome que o filme Barravento (Glauber Rocha, 1962) se insere – a
fome numa vila de pescadores.

No litoral da Bahia vivem os negros pescadores de ‘xaréu’, cujos


antepassados vieram escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos
Deuses africanos e todo êste povo é dominado por um misticismo trágico e
fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a exploração com a
passividade característica daquêles que esperam o reino divino.
“Yemanjá” e a rainha das águas, “a velha mãe de Irecê”, senhora
do mar que ama, guarda e castiga os pescadores. “Barravento” é o
momento de violência, quando as coisas da terra e mar se transformam,
quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças.
Todos os personagens apresentados nêste filme não tem relação com
pessoas vivas ou mortas e isto será apenas mera coincidência. Os fatos
contudo existem.
“Barravento” foi realizado numa aldeia de pescadores na praia de
“Buraquinho”, alguns quilômetros depois de Itapoan, Bahia. Os produtores
agradecem à Prefeitura Municipal de Salvador, ao Govêrno do Estado da
Bahia, aos proprietários de Buraquinho e a todos âqueles que tornaram
possível as filmagens. Principalmente aos pescadores, a quem êste filme é
dedicado.
(letreiro de abertura do filme Barravento, 1962).

A tela se ilumina e vemos o céu, depois o mar e em seguida um homem tocando um


atabaque; escutamos uma música cantada em idioma de matriz africana saudando a Yemanjá.
As cartelas dos créditos iniciais do filme são acompanhadas por gravuras do artista baiano
Calasans Neto que destacam ícones rotineiros de pescadores como peixes e arpões, símbolos
da religião do candomblé como o espelho de Yemanjá, e instrumentos da cultura musical dos
negros do litoral da Bahia como o berimbáu. A música passa a ser uma de capoeira, cantada
em português com algumas palavras de origem indígena – paranauê do idioma tupi –, há uma
transição brusca de música e agora um coro de pescadores entoam seus cânticos. As imagens
então mostram uma grande fila de puxadores de rede que cantam e mexem seus corpos em
sincronia com o ritmo de um atabaque tocado à beira do mar; aos poucos, a rede vai
repousando na areia e o pescado vai sendo recolhido.

Por detrás de um Farol surge um homem vestido com paletó e chapéu branco,
diferente dos puxadores de rede que usam bermuda e chapéu de palha. É Firmino, que retorna
à vila de pescadores, vindo de um bom período vivendo na cidade e sobrevivendo de
descarregar navios escondido da polícia. Firmino é recebido com desconfiança por parte dos
seus conterrâneos mas ele se oferece para pagar a cachaça e logo o samba de roda começa
regado a muitas rizadas e umbigadas.

O vilarejo onde vivem os homens e as mulheres que sobrevivem da pesca é regido


42

religiosamente pelo candomblé e economicamente pelo Mestre, líder da comunidade


pesqueira que negocia os peixes com o Patrão da capital. A rede que os pescadores utilizam
está velha, e pior, é alugada – pertence ao mesmo Patrão com quem se negociam os pescados.
O Mestre divide os pescados da última puxada de rede: “quatrocentos pro Patrão, quatro pra
mim e mais cinco para dividir com os homens da rede” (fala do Mestre em Barravento, 1962).

Vai noite vem sol, na puxada seguinte a rede sai do mar rasgada e sem peixe para
dividir. O capataz do Patrão diz que quer os peixes de qualquer jeito, e que se não tiver
mandará tomar de volta a rede alugada. O Mestre argumenta sem sucesso; seu discípulo Aruã,
o melhor pescador da vila e protegido de Yemanjá, parte alterado em direção ao capataz mas
é contido pelo Mestre, a quem deve obediência. De todo modo, Aruã não concorda com a
posição do Patrão: “quem puxa a rede somos nós, quando o peixe não vem ficamos sem
comer; o homem não pensa nisso, ele come todo dia; e aqui fica um xaréu para cada cem”
(fala de Aruã em Barravento, 1962).

A situação da fome está posta. E como colocado por Glauber antes, a fome é o nervo
dessa sociedade.

“Eu filmei Barravento (grifo nosso) num estado de crise, abandonava as ideias da
adolescência. [...] Nessa época eu era surrealista, futurista, dadaísta e marxista ao mesmo
tempo” (ROCHA, 2004, p. 112). A ideologia marxista da época trazia a questão da
exploração do trabalho de uma classe oprimida por uma classe dominante e também
colocavam as religiões como fator alienante de populações exploradas. No filme de Glauber
Rocha essas ideias são defendidas por Firmino que não se conforma com o imobilismo diante
da fome e da situação exploratória exposta pela divisão dos pescados, e aponta o candomblé
como responsável por essa passividade.

Firmino é Glauber.

O cineasta baiano expõem essas ideias no filme e também em carta a Paulo Emílio
Sales Gomes quando escreve: “estes candomblés, embora possuam valor cultural estimável,
adormecem uma raça de fantásticas possibilidades” (ROCHA, 1997, p. 125) e completa
afirmando que, mesmo apaixonado pelos costumes populares, não aceita “que o povo negro
sacrifique uma perspectiva em função de uma alegoria mística”17 (ROCHA, 1997, p. 126).


17
É importante destacar que um pensamento/ideologia de um momento/movimento histórico também está
sujeito à modificações. E essa ideia de religião como fator alienante de uma sociedade se transformou, assim
como o próprio posicionamento de Glauber Rocha sobre essa questão. O que se pode verificar em textos e filmes
posteriores de Rocha.
43

A religião é então um outro ponto chave do filme – talvez não a religião em si, mas a
fé religiosa como solução para os problemas mundanos. E é com o objetivo de desconstruir os
mitos tradicionais religiosos que Firmino irá atuar para tentar fazer com que aquela população
se rebele contra a situação socioeconômica da fome em que vivem. Firmino se lança contra o
mito que envolve Aruã como protegido de Yemanjá. Seu objetivo é mostrar que esse
misticismo é falso e, assim, contradizer a religião e desqualificar o Mestre da posição de líder,
para que a passividade diante da injusta divisão dos peixes não continue sendo seguida pelos
pescadores, para que então se estabeleça uma nova forma de viver que não resulte na fome.

Entretanto, a ambiguidade humana de Firmino, nascido e criado nessa vila de


costumes religiosos, também o faz recorrer à procedimentos místicos do próprio candomblé,
na tentativa dessacralizar a figura do protegido de Yemanjá: Firmino prepara um despacho18
pedindo pela morte por afogamento de Aruã, para acabar com a crença na sua proteção pela
rainha das águas. Este recurso ao sobrenatural não dá certo. Aruã sobrevive e Firmino,
indignado, diz que levantará o Barravento nem que seja a “ponta de faca”. A partir de então
esse personagem irá empreender uma série de sabotagens para alcançar o seu objetivo de
desmistificar os preceitos da religião e retirar a população de pescadores e pescadoras da
alienação.

“Firmino é um autêntico Exu” (XAVIER, 2007, p. 46).

Laroyê!
Exu é [...] o mais astuto dos orixás.
Ele aproveita-se de suas qualidades para provocar mal-entendidos e
discussões entre as pessoas ou para preparar-lhes armadilhas. [...]
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje!
Se zanga-se, ele sapateia uma pedra na floresta, e esta pedra põe-se a
sangrar!
(VERGER, 1997, p. 11).

Barravento no candomblé é um termo designado ao momento em que se inicia a


incorporação do(a) orixá na(o) filha(o) de santo – o primeiro contato do encantado com a
matéria. Barravento na natureza faz referência à um momento de agitação violenta dos ventos
e do mar. Barravento no meio social é uma mudança significativa na estrutura social. “A
passagem de Firmino por Buraquinho constitui o núcleo da estória; é seu principal elemento
motor” (XAVIER, 2007, p. 46). Firmino é o responsável pelo Barravento e para isso se utiliza
de métodos de moral duvidosa; podemos dizer então que estamos perante um anti-herói

18
Trabalho feito para algum orixá que é organizado com os elementos (comidas e adornos) específicos da
preferencia do orixá ao qual é destinado esta oferenda, ou este despacho.
44

revolucionário.

Os pescadores da vila se juntam em mutirão para costurar os buracos na rede de pesca.


Um momento depois, longe dos olhos esperançosos pela próxima pescaria com a rede
remendada, Firmino corta a rede com a navalha mas é flagrado por Cota, seu par amoroso, e
se explica:

Firmino – Cota, no fundo meu coração presta e muito. Ando com você
porque o seu jeito é de quem não se abaixa; Aruã também não quer se
abaixar mas o Mestre domina [...]; foi por isso que eu cortei a rede, a
barriga precisa doer mesmo, que quando tiver uma ferida bem grande,
então todo mundo grita de vez. Pra mim, princesa Isabel é ilusão.
(fala extraída de Barravento, 1962).

Cota não entende seu amado e prevê uma desgraça por conta da rede cortada; Firmino
incompreendido, cantarola uns versos do sambista baiano Batatinha: “meu sofrimento
ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer”.

Rede furada, xaréu no mar e fome na areia.

Quando o Patrão envia seus capangas para levar a rede de pesca embora, Aruã defende
que os pescadores não deixem a rede ser levada, mas o Mestre decide que não há nada a se
fazer, pois a lei favorece ao Patrão. Firmino convoca os pescadores para resolverem esse
problema por si próprios e botar aqueles capangas para correr. Mas a decisão do Mestre já
estava tomada, a incitação de Firmino contrariada quase acaba em briga entre os pescadores,
que no fim das contas ficam sem a rede para pescar.

Aruã representa o futuro. Quando estiver pronto ocupará a posição de líder no lugar do
Mestre; este por outro lado, é quem representa a manutenção da situação atual, elemento
conservador, portanto um contraponto à Firmino que propõe a mudança, a revolução.

Firmino, então, investe contra Aruã.

De acordo com a religião do candomblé, Aruã por ser protegido de Yemanjá, deve
guardar a sua virgindade para uma filha dessa Orixá, mas numa armadilha típica de Exu,
Firmino convence Cota (filha de outro Orixá e não da Rainha do Mar), a seduzir Aruã. Pelo
seu instinto humano, o pescador não resiste à sensualidade de Cota e junto com a virgindade,
Aruã perde também o seu encanto sobre-humano. Por obra divina ou da natureza o tempo
muda: os ventos se agitam, a chuva cai, o mar fica revolto. Chegou o Barravento.

Dois pescadores haviam se lançado ao mar, um volta morto por afogamento e o outro
45

nem volta. Aos gritos, Firmino revela para toda a comunidade, ainda sob o impacto das
mortes, que Aruã havia se deitado com Cota, que ele era homem de carne e osso. Os ânimos
então se esquentam: o herói-de-carne-e-osso e o anti-herói-revolucionário travam um caloroso
duelo de capoeira, e como num filme do neorrealismo italiano, o protagonista é vencido.
Entretanto, agora que já não estava mais envolto ao misticismo religioso, Aruã estaria apto
(pela visão ideológica de Firmino-Glauber) para assumir a posição de líder e promover a
mudança necessária para retirar a comunidade pesqueira da situação de fome.

“A estética da fome faz da fraqueza a sua força” (XAVIER, 2007, p. 13).

De Aruanda a Vidas Secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou,


discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens roubando para comer,
personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,
personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias,
escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o cinema novo com o
miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos
interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não
suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do cinema
novo opõe-se à tendência do digestivo, [...]: filmes de gente rica, em casas
bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos,
sem mensagem, de objetivos puramente industriais (ROCHA, 2004, p. 65).

Dos negros escravizados que fugiram pros quilombos em Ganga Zumba (Carlos
Diegues, 1964), aos seus descendentes, os pescadores de Buraquinho – que seguem em
condições de escravidão tendo sua força de trabalho explorada pela geração subsequente aos
senhores escravagistas –, o cinema novo demonstra uma vontade, uma intencionalidade, de
reconstruir a história brasileira a partir das histórias dos vencidos. “Ambos os filmes
valorizam a história dos negros, e a riqueza de sua cultura é pela primeira vez abertamente
enfocada no cinema brasileiro”, ambos os filmes convocam o espectador a “refletir sobre a
permanência da injustiça e da falta de liberdade que determina a trajetória dos
afrodescendentes brasileiros” (CARVALHO, 2006, p. 292 e 293).

“A cultura popular não é o que se chama de folclore, mas a linguagem popular de


permanente rebelião histórica” (ROCHA, 2004, p. 251).

O movimento de olhar o passado, para os cinemanovistas, funciona como instrumento


para um pensamento sobre o presente. Um conjunto de produções que se pautam em três
blocos temáticos sobre a vida num Brasil ainda fundamentalmente rural: “a escravidão, o
misticismo religioso e a violência predominante na região Nordeste. Mais tarde, os cineastas
realizam filmes nos quais discutem acontecimentos políticos ocorridos no Brasil, bem como a
46

transformação dos grandes centros urbanos com a modernização do país” (CARVALHO,


2006, p. 292) – também nessas produções que vieram em seguida, passam a ser mais
presentes as influências da Nouvelle Vague francesa.

“O Verbo é ideológico e hoje não existem mais fronteiras geográficas” (ROCHA,


2004, p. 109).

“Não há quem, neste mundo de hoje dominado pela técnica, não tenha sido
influenciado pelo cinema. Mesmo que nunca tenha ido ao cinema em toda
vida, o homem recebe influências do cinema: as culturas mais nacionais não
resistiram a uma certa forma de comportamento, a uma certa noção de
beleza, a um certo moralismo e, sobretudo, ao estímulo fantástico que o
cinema faz à imaginação. Os reflexos se fazem a curto e longo prazo e a
sedimentação de uma cultura cinematográfica é fato profundo na vida
contemporânea. Não se pode porém falar de cinema sem se falar em cinema
americano. [...] essa influência do cinema é pois uma influência do cinema
americano, como forma mais agressiva e difundida da cultura americana
sobre o mundo. [...] Monstro produtor de ilusões (ROCHA, 2004, p. 127-
128).

1.2.2 . O MUNDO DE BESOURO

Então façamos agora um giro ao norte. Durante a década de 1970, Hollywood


presenciou o surgimento de longas-metragens de produções extravagantes, a começar pelos
filmes de catástrofes, como O destino de Poseidon (Ronald Neame, 1972) e Terremoto (Mark
Robson, 1974) que renderam boa bilheteria. Hollywood viveu nessa época uma pressão, ainda
maior, do econômico sobre o estético e as realizações cinematográficas passaram a incluir
investimentos em publicidade e merchandising que se equiparavam com os da própria
produção de um filme. Uma modificação no movimento/momento histórico/artístico que
levaram alguns autores a classificá-lo como um cinema hollywoodiano pós-clássico, o que
pode ser um subgênero cinematográfico no qual estruturas externas ao cinema (enquanto arte
audiovisual), ou seja, o mercado econômico, provoca interferências no modo de fazer cinema.
Mais especificamente nos chamados filmes blockbusters, os planejamentos de marketing,
distribuição e exibição determinaram mudanças na forma narrativa, no uso do estilo e das
novas tecnologias no cinema (MASCARELLO, 2006; NOGUEIRA, 2010).

Apesar de conservar características narrativas do cinema clássico, como os


personagens bem definidos e a linearidade dos acontecimentos pautada em causa e efeito, os
blockbusters apostam basicamente em três atributos estéticos: superficialidade, fragmentação
47

em módulos narrativos e espetacularização. Uma narrativa marcada por um excesso de


estilização19 “que promove um desequilíbrio no balanço estilo versus narrativa em favor do
primeiro – daí o enfraquecimento da última” (MASCARELLO, 2006, p. 350). Nota-se, por
conta disso, o aparecimento de sinopses com uma ou duas linhas.

Muito influenciada pela estética do universo publicitário que converte objetos ou


ocasiões banais em fatos espetaculares, esses filmes induzem o espectador à uma
contemplação da imagem pela imagem, o que gera uma diminuição da preocupação com o
desenvolvimento da história e com o aprofundamento psicológico dos personagens. Então,
principalmente a partir dos lançamentos de Tubarão (Spielberg, 1975) e Guerra nas estrelas
(Lucas, 1977) há uma tendência por produções cinematográficas mais exageradas, viscerais e
velozes, e também dependentes dos efeitos especiais. Especialmente em filmes sobrenaturais
e de ficção cientifica há um desafio particular no que diz respeito à construção sonora desses
filmes – como representar sonoramente algo que não existe no mundo real e que portanto, não
sabemos como soa? Esses sons tiveram que ser inventados, construídos em laboratórios, para
que se exprimisse uma sensação no espectador, na qual o mesmo pudesse perceber a nova
relação de causa e efeito sonoro criada por esses sons-inventados quando relacionados com a
imagem mostrada na tela – Guerra nas Estrelas (Lucas, 1977) e E.T. o extraterrestre
(Spielberg, 1982) são exemplo desse tipo de relação (FLÔRES, 2013).

Alguns autores observam essas adaptações formais não enquanto algo que não
“funcione” para a narrativa cinematográfica, mas como algo que “funciona” numa mudança
da natureza dessa própria narrativa. Algo que pela espetacularidade se torna memorável
(MASCARELLO, 2006). Pois como já tratado anteriormente, em dados momentos do
movimento histórico, os gêneros cinematográficos sofrem atualizações; podem ter as suas
convenções desafiadas ou refeitas; e alguns filmes podem beber de várias fontes estilísticas.
Com fronteiras geográficas que se dissolvem nesse mundo globalizado, temos alguns
westerns-spaghetti declaradamente influenciados pelo cinema do japonês Akira Kurozawa, e
podemos também olhar para os filmes de artes marciais como um correspondente oriental dos
filmes de capa e espada (NOGUEIRA, 2010).

O cinema chinês, por exemplo, contou com a presença de antigos instrutores de kung
fu nas equipes de realização de alguns filmes, e alcançaram uma crescente visibilidade na


19
Da concepção de que um estilo se estabelece como um conjunto de técnicas que por sua repetição tornam-se
reconhecíveis/identificáveis. Já o excesso, pode-se dizer que é causado por técnicas que ultrapassam os requisitos
específicos da narrativa (MASCARELLO, 2006).
48

década de 1990 se utilizando de efeitos especiais e montagem rápida em cenas de coreografias


frenéticas e câmeras lentas que adornam violentas histórias de vingança (FRANÇA, 2006).
Filmes que também tem muita influência das películas de ação: que recorrem aos contrastes
entre vilão e herói típicos do western; a utilização da música que pontua emocionalmente o
tom da situação e marca o ritmo das cenas de perseguições; a fotografia de múltiplos
enquadramentos que fornece material para uma montagem com muitos planos das batalhas
grandiosas; e sons potentes que ampliam as dimensões das exuberantes explosões.

Uma estética do estilhaço, da explosão, do salpico e da tangente: os


estilhaços que rodeiam o personagem nos tiroteios mais desvairados; a
explosão que arrasa cidades, edifícios ou mesmo planetas; os salpicos de
sangue que se tornaram um dos elementos gráficos fundamentais da
representação da violência; as tangentes das balas que, milagrosamente,
nunca atingem o protagonista, solitário e invulnerável (NOGUEIRA, 2010,
p. 19).

Filmes esses que muitas vezes recorrem ainda à elementos cinematográficos de um


outro subgênero, conhecido por filmes-fantásticos ou de fantasia, no intuito de incrementar a
espetacularidade. Sob o ponto de vista do cinema clássico, em que um dos fatores que
assegura a inteligibilidade da narrativa é a verossimilhança da imagem fílmica com a imagem
real, os filmes-fantásticos operam no sentido contrario às premissas realistas e às leis naturais,
como a gravidade por exemplo. Nesses filmes as relações de causa e efeito são reconstruídas,
como na alusão feita aos sons-inventados. Dessa forma, também se faz necessário formular
explicações à essas novas causalidades, “daí que se compreenda a forma como a magia e a
religião surgem constantemente como motivo e como contexto destas narrativas (de modo
equivalente, a tecnologia e a ciência hão de cumprir papéis semelhantes para a ficção
científica)” (NOGUEIRA, 2010, p. 27).

familiaridades temáticas, estilísticas, narrativas e dramáticas com outros


géneros: do filme de guerra ao filme de aventuras (que, de algum modo, se
pode considerar um seu precedente remoto), do filme-catástrofe ao épico, do
gangster-movie ao peplum, dos filmes de capa e espada às artes marciais,
dos super-heróis ao policial, são muitas as características que estes géneros
partilham entre si (NOGUEIRA, 2010, p. 19).

Finalmente, filmes que são compostos artisticamente por convenções estilísticas e


técnicas de mais de um movimento/gênero cinematográfico. Obras audiovisuais atravessadas
por diferentes culturas audiovisuais que se expressam desde alusões pontuais à determinações
estruturais adquiridas pelo contato com outras culturas. Afinal o cinema, ou, os cinemas são
feitos por pessoas, e nós “não só vivemos cercados por uma multiplicidade de imagens, como
49

temos acesso aos novos cinemas, aos inúmeros ciclos de cinematecas, às TV’s por assinatura,
à difusão do vídeo e do DVD, à chancela dos festivais internacionais” (FRANÇA, 2006, p.
396), incluindo as infinidades de obras audiovisuais espalhadas pela internet e o modelo de
distribuição “sob demanda”.

No entanto, essa leitura da história do cinema não leva em conta o esforço


que Hollywood, com diversos governos dos EUA, fez para conquistar o
domínio global nas áreas de distribuição e exibição. É Hollywood que, em
grande parte, controla quais filmes o público tem a oportunidade de ver onde
quer que esteja. Com a maioria das telas de cinema em grandes partes do
mundo exibindo o produto de Hollywood, é com esses filmes que os
espectadores estão familiarizados (COOKE, 2013, p. 24).

Portanto há de se atentar para os esforços políticos e econômicos dos EUA em função


de um domínio mundial no que diz respeito à distribuição e exibição das produções
hollywoodianas. O autor Paul Cooke denuncia o lobby feito pelos estadunidenses no Acordo
de Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) e também na Organização Mundial do Comércio,
com a intenção de possibilitar uma participação ainda maior do cinema (e portanto da
ideologia e ponto de vista) dos EUA em partes do mundo que tentam proteger a produção e a
distribuição do seu cinema local (COOKE, 2013). Ou seja, a imposição de uma cultura sobre
outras por determinações políticas e objetivos econômicos: uma colonização, um
neocolonialismo.

Um panorama das relações de poder global que é preciso se ter em conta se vamos
falar em hibridização, pois “como um termo descritivo amplo, o termo ‘hibridismo’ não
distingue as diversas modalidades de hibridismo: imposição colonial, assimilação forçada,
cooptação política, mímica cultural e assim por diante” (SHOHAT e STAM apud ARAÚJO,
2013, p. 119). Entretanto, reconhecendo-se as relações de poder estruturantes do cinema
globalizado, é possível reconhecer também como resultado da globalização uma maior
propagação de narrativas particulares de culturas menos poderosas geopoliticamente falando,
mas com ricas expressividades culturais e cinematográficas.

Fala-se em cinema periférico e também em terceiro cinema para referir-se a filmes


que representam a linguagem da parte mundo historicamente colonizada e subdesenvolvida, e
faz-se então referencia à uma geografia específica. Entretanto, “como sugere o indiano Homi
Bhabha, qualquer cultura já é uma formação hibrida, uma mistura, e totalidade nacional é
apenas um recorte imposto que se abate sobre ela” (FRANÇA, 2006, p. 397). Portanto a partir
50

dessa ideia de hibridismo e de fronteiras dissolvidas falaremos de um (usaremos o termo)


cinema transcultural.20

Um cinema que parte da ideia de interação entre culturas, compreendendo que o


recorte geográfico de nações abriga uma diversidade cultural múltipla. Um fazer
cinematográfico que não se constitui enquanto movimento organizado, mas que assume as
influências de outras culturas mescladas às próprias culturas dos que realizam o filme
(VIEIRA JR, 2008-2011). Um cinema produzido em diversas partes do mundo com
elementos de diversas outras partes do mundo, portanto um cinema mais difícil de se localizar
geograficamente: o que nos leva a recorrer ao termo cinema mundial ou world cinema.

World cinema é um termo transpassado por uma série de definições: a começar pela
sua analogia aos termos world music e seu equivalente na literatura, que fazem alusão às
produções de fora do eixo EUA-Europa Ocidental; passando também pela ideia de um cinema
que busca “mapear, definir e, finalmente, proteger a cultura audiovisual do mundo, tornando-a
um polo de resistência contra a percepção de hegemonia cultural da cultura ocidental, de
forma mais geral, e de Hollywood em particular” (COOKE, 2013, p. 14); e chegando ao
conceito que tem recebido variadas denominações nos estudos do cinema, como cinema com
sotaque, intercultural e urderground por exemplo, “apenas alguns dos termos usados por
vários autores para justificar a urgência crescente de conceitualização da produção cultural
que leva em consideração o intercambio global dos interessados, sejam eles grandes ou
pequenos, dominantes ou fracos” (COOKE, 2013, p. 14).

O termo World Cinema pode ser empregado também para filmes que em suas tramas
tratam de histórias desse mundo em globalização, em que populações estão em movimento e
o carácter econômico-social define esse fluxo enquanto turistas ou trabalhadores imigrantes.
Esses são filmes que ressaltam “a interdependência da comunidade global e o potencial de
natureza híbrida, ‘conectada’ de formação de identidade que é costumeiramente inerente a tal
mobilidade” (COOKE, 2013, p. 17).

O cinema transnacional, enquanto prática transcultural e transfronteriça,


decreta de um lado a obsolescência da ideologia das identidades nacionais
fixas, bem como promove um debate sobre os “modos de identificação
emocional” e sua mise em scène nos filmes. A transnacionalidade no campo
cinematográfico refere-se simultaneamente aos efeitos da globalização
(dominação do mercado mundial do cinema por Hollywood), às respostas
dos cinemas não-hegemônicos e às respostas dos cineastas originários dos
países ex-colonizadores ou ex-colonizados (BAMBA, 2011, p. 173-174).


20
Termo derivado da classificação cinema transnacional (FRANÇA, 2006).
51

Deste modo, reconhecendo as assimetrias globais de cunho econômico, social e


político, mas também o importante papel do cinema como possibilidade de expressão dos
oprimidos por essa lógica global, encaramos o termo world cinema para além de uma
oposição binária entre cinema hollywoodiano e cinema não-hollywoodiano. Seguiremos então
com uma proposta de abordagem mais inclusiva, sugerida pela autora Lúcia Nagib,

que define o termo “cinema mundial” como um fenômeno policêntrico com


picos de criação em diferentes locais e períodos. Uma vez que as noções de
unicentrismo, primazias e elementos diacrônicos são eliminadas, tudo pode
ser incluído na cartografia do cinema mundial em pé de igualdade, até
mesmo Hollywood, que, em vez de uma ameaça, torna-se mais um cinema
entre os outros (COOKE, 2013, p. 18).

Se por um lado a globalização permitiu a consolidação de Hollywood como maior


influente cultural internacional, por outro lado a interconectividade e o transito de
informações e pessoas possibilitou um olhar transcultural (atravessado por diversas culturas)
que sugere uma compreensão mais recíproca do relacionamento entre culturas
cinematográficas, “evidenciado de várias formas em termos de política cinematográfica, da
crescente troca fronteiriça de excelência e experiência técnicas e talentos, bem como do apoio
crescente aos projetos que estimulam as indústrias cinematográficas nacionais a interagirem”
(COOKE, 2013, p. 16). Portanto, sob a perspectiva de que o cinema globalizado pode nutrir a
predominância de uma cultura sobre a outra, mas se afastando da ideia de que isso leve ao
aniquilamento das outras culturas e a homogeneização do que viria a ser uma cultura mundial,
podemos afirmar que a globalização também contribui para a diversidade cultural, que –
através de redes de comunicação e interação global (notícias, críticas e downloads na internet;
vídeos sob demanda; interatividade nas mídias sociais; e também festivais de cinema) –
permite que comunidades, independente do seu tamanho ou papel geopolítico global,
mostrem ao mundo especificidades da sua cultura e a forma como interage com outras
culturas por meio de obras audiovisuais (COOKE, 2013).

Ao se considerar todas as culturas cinematográficas como formadoras do chamado


world cinema, o que se busca é analisar essa interligação entre esses cinemas sem deixar de
lado a compreensão das dinâmicas de poder que definem o funcionamento da produção,
exibição e distribuição cinematográficas nesse mundo globalizado (e neocolonizado). Ou seja,
um cinema que assume as influencias das culturas dominantes e das culturas oprimidas, que é
uma expressão híbrida fruto dessa inevitável globalização – um cinema que é transcultural
52

tanto na esfera do fazer fílmico (convenções audiovisuais dos gêneros cinematográficos)


como das culturas do mundo real das quais se utilizam como matéria prima para os filmes
(reproduções intencionadas do mundo real).

O cineasta brasileiro está atento ao que se passa no Brasil e no mundo, na


sociedade e no cinema. Não é possível isolar a arte e muito menos o cinema:
o cineasta é um homem que se mobiliza diariamente, dos corredores
bancários aos labirintos dos laboratórios, do mundo sofisticado dos atores ao
mundo violento dos exibidores, dos apartamentos de luxo aos pontos mais
distantes da selva – e por isto, se tem um mínimo de sensibilidade, será
penetrado por uma realidade tão complexa que põe constantemente em
dúvida o mundo em que vive (ROCHA, 2004, p. 138).

Nesse contexto se insere o filme Besouro, do diretor João Tikhomiroff (2009). A


diversidade de influências pode ser notada desde as nacionalidades da equipe de realizadores
do filme, junto à escolha de contar a história de um capoeirista negro baiano, e em
transformá-lo em um super-herói se utilizando de recursos cinematográficos típicos de uma
produção blockbuster. Um conjunto de elementos que mostram uma transculturalidade
intencionada em torno deste longa-metragem.

Besouro (2009) foi idealizado e realizado pela produtora paulista Mixer, especializada
em produções audiovisuais para publicidade e que com este filme inaugurou a realização de
longas-metragens. Sob o comando do publicitário João Daniel Tikhomiroff que, já tendo feito
o curta-metragem Missa do Galo (1974) e recebido muitos prêmios por suas publicidades,
igualmente estreia na direção de um longa, no qual também assina o roteiro. A equipe
multifacetada tem o equatoriano Enrique Chediak na direção de fotografia; o coreógrafo
chinês Huen Chiu Ku (conhecido por seus trabalhos em O Tigre e o Dragão e Kill Bill) como
coordenador das cenas de ação; o brasileiro Gustavo Giani na montagem do filme; e a
distribuição a cargo da Buena Vista Internacional, do grupo Disney.

Um longa-metragem que transita por entre os gêneros cinematográficos de ação,


aventura e fantasia. Um filme com intencionalidade de revisitar e recontar a história do Brasil,
modificando a lógica da narrativa clássica de Hollywood que abarca os valores morais
civilizatórios da classe dominante que conquista (invade) o oeste, pois em Besouro esses
valores são rejeitados e o herói se emprenha em destruí-lo. A história de um capoeirista do
Recôncavo da Bahia que sempre foi cantada nas rodas de capoeira, exaltando os seus feitos de
homem muito ágil e veloz, de golpes e saltos incríveis, e que em muitos das versos afirmavam
que Besouro podia voar.
53

Recôncavo baiano, 1924.


A escravidão no Brasil foi abolida há menos de 40 anos e os negros
continuam a ser tratados como escravos.
O Candomblé é reprimido e a Capoeira é proibida por lei.
Os negros começam a se organizar para terem seus direitos respeitados.
No Recôncavo quem lidera os negros é Mestre Alípio.
Por causa de sua luta, Mestre Alípio é jurado de morte e passa a ser
protegido pelos capoeiristas e por seu principal discípulo, Besouro.
(letreiros iniciais do filme Besouro, 2009).

As aulas de capoeira que Mestre Alípio dava às crianças costumavam ser na floresta, e
entre um martelo (golpe de capoeira) e uma cocorinha (defesa de capoeira) as conversas sobre
a vida sempre apareciam e Mestre Alípio também passava seus ensinamentos. Na primeira
cena do filme, o menino Manuel expõe seus questionamentos ao Mestre:

Manuel – Eu não posso porque eu sou menino; eu não posso porque eu sou
pobre; eu não posso porque eu sou preto.
Mestre Alípio – Menino, um dia você vai ser homem; pobre quem sabe,
amanhã você pode ser rico; agora preto meu filho, é pra vida inteira; preto
com muito orgulho de sua cor e não deixar ninguém fazer pouco de você.
(Besouro, 2009).

O menino escuta atento quando de repente passa um inseto que lhe chama atenção,
Mestre Alípio então emenda:

Mestre Alípio – Ninguém dá conta que esse cascudo voa. É pesado e tem as
assas fininhas... Até a ciência jura que esse besouro não voa, mas... olha que
maravilha.
(Besouro, 2009).

Um sopro e o inseto levanta voo perante os olhos do menino e do mestre, a câmera


assume a perspectiva subjetiva do besouro e “voa” da floresta para a feira da cidade, passando
pelas pessoas e alimentos que ali estão. Atrás de um muro de pedra, o voador pousa numa
folha de bananeira e a voz de Mestre Alípio nos confessa em off:

Mestre Alípio – Quando seus olhos de menino brilharam em ver aquele


cascudo, preto que nem você mas que podia voar [...], você deixou de ser
Manoel pra virar Besouro.
(Besouro, 2009).

Um rock’n roll, com direito a guitarra distorcida e uma percussão grave. Em português
uma voz canta (como nos versos de uma música de capoeira) “Besouro, cordão de ouro”, e
entram na tela os créditos iniciais que prenunciam a trama do herói que está por começar.
Como num filme de ação em que o enredo costuma seguir um arco narrativo bastante
54

definido, Besouro (2009) se apoia na estrutura básica da “jornada do herói” bastante


recorrente no cinema hollywoodiano21, então vamos à ela.

Mundo comum: vida normal do herói, seu cotidiano.

É dia de feira na cidade, negras e negros vendem o que colheram, Mestre Alípio
caminha por entre as barracas e cumprimenta as pessoas. Em um beco, uma roda de capoeira,
negras e negros lançam pernas e braços em movimentos plásticos e harmônicos. Besouro é o
melhor na capoeira, recebe aplausos e sorrisos. Besouro, que devia estar protegendo o Mestre,
encaixa uma rasteira e se exibe na roda. Outro capoeirista chega: Mestre Alípio não está em
casa. O berimbau para de tocar. Tiros! Em um bar da cidade o corpo de Mestre Alípio no
chão. Besouro chega, desarma e golpeia o assassino. O Mestre ferido é levado para a antiga
senzala pelo seu discípulo.

Chamado à aventura: acontece algo que incita o herói abandonar ou mudar o seu
mundo comum.

O personagem principal se sente culpado pelo acontecido ao seu mestre, que antes de
morrer tenta tranquilizá-lo e o aponta como novo líder: “isso tinha que acontecer... eu escolhi
você para continuar o que eu comecei”.22 Os ventos se agitam, as folhas se balançam e sons
transcendentais de atabaques e berimbaus dão um tom sobrenatural à cena, sinalizando um
momento de mudança. A partir daí o enredo passa a construir o herói no personagem, até o
momento em que o homem de carne-e-osso passe a se entender enquanto Besouro, o herói.
Desde a sua hesitação e isolamento pelo sentimento de culpa e a responsabilidade em
assumir-se líder que o leva ao transe, com uma sequencia que apresenta imagens de Orixás
em rios e grutas, um sapo e uma aparição de Mestre Alípio; para então ter segurança e iniciar
a jornada do herói, a partir do seu retorno à cidade que resulta num confronto com Exu (um
ser humano interpretando o Orixá com maquiagem e vestuário) por não prestar o seu respeito
e reverência à esse Orixá.

Lembremos da fábula do pássaro que Exu matou ontem com a pedra que atirou hoje e
então sabemos: Besouro perdeu o combate e se ajoelhou perante o Orixá – aquele que faz bem
a quem lhe faz bem. Exu, satisfeito com a reverência, desaparece; Besouro, ainda ajoelhado, é
cercado pelos capangas do Senhor do Engenho, mas num pulo espetacular derruba três
homens e foge em disparada numa agitada perseguição (na qual já vemos o herói a realizar

21
Seguimos a estrutura apresentado por Christopher Vogler, em seu livro A jornada do escritor, de 1992
(SCHEIBEL, 2008)
22
Fala extraída do filme Besouro (2009)
55

saltos impossíveis aos que o perseguem) mas que ao final da sequência, termina encurralado
em uma cachoeira onde hesita por um instante mas se lança no ar, de uma altura que poucos
seres humanos sobreviveriam.

Provação suprema: aparentemente sem saída, o herói confronta o perigo e, após quase
morrer, renasce mais forte.

Besouro, muito debilitado depois da forte queda e de descer rio abaixo, passa por mais
uma experiência onírica, com Orixás que se materializam na tela e o ajudam na sua
reabilitação. Em seguida é encontrado por uma mãe de santo que lhe cuida e realiza um rito
do candomblé para que Ogum feche o corpo do herói, assim estará protegido. Besouro recebe
o seu “cordão de ouro” benzido pela mãe de santo e, com o corpo e o espírito curados pelos
conhecimentos e crenças do candomblé, se levanta e sai da casa decidido. Primeiro plano do
herói e a música tema volta com o rock.

Besouro é Ogum.

Ogum Yêêê!
Ogum era o mais velho e mais combativo dos filhos de Odudua, o
conquistador e rei de Ifé.
Por isso, tornou-se o regente do reino quando Odudua, momentaneamente,
perdeu a visão.
[...] Ogum teve muitas aventuras galantes.
Ogum, o valente guerreiro, o homem louco dos músculos de aço!
(VERGER, 1997, p. 14).

O guerreiro passa então a empreender uma série de sabotagens ao sistema da produção


de cana de açúcar da fazenda do Coronel, seu maior rival. Coloca fogo na plantação de cana e
danifica o maquinário da fazenda; o que ocasiona outras perseguições vertiginosas que
contribuem ainda mais para confirmação do mito em construção. Até mesmo o braço direito
do Coronel admite o misticismo em torno do herói e, em meio ao estranhamento racista de
como um negro era capaz de tanto, concluí sobre a dificuldade em capturá-lo.

Noca – É que não vai ser fácil não, coronel.


Coronel – E por quê?
Noca – Por que ele voa.
(Besouro, 2009).

Um outro antagonista da história é Quero-quero, amigo de infância de Besouro. Os


dois acabam por compartilhar o sentimento de amor pela mesma mulher, Dinorá, que também
cresceu junto com eles dois e que, até certo momento do filme, namorava com Quero-quero.
Música suave: momento romântico, quando o herói é mais doce e menos violento. A cena de
56

Besouro e Dinorá jogando capoeira juntos mostra que além de luta capoeira é dança e afeto.
Quero-quero vê como os corpos do protagonista e de sua amada se movem e se desejam na
ginga da capoeira. Enciumado e ainda responsabilizando Besouro pela morte de Mestre
Alípio, Quero-quero e Besouro travam a batalha mais difícil para o herói. O antagonista
derrotado se aproxima do Coronel e, imaginando poder receber um melhor tratamento (menos
racista), conta o segredo místico do candomblé que protege Besouro e revela a única arma que
pode penetrar o corpo fechado do herói: faca de ticum.

Combate final. Tensão e rock’n roll. Depois de abater uma série de capangas com
voos, pontapés e cortes rápidos na montagem, o herói investe uma confiante corrida em
direção ao seu principal vilão. Besouro voa por cima do Coronel e seu cavalo, golpeia o vilão
mas é ferido com a arma de ticum e morre. Sobrevive o seu legado, de resistência e luta pela
melhoria da situação dos negros, no nascimento do seu filho com Dinorá, e o filme termina
com o menino encarando o Coronel no estilo “a luta continua”.

O herói morre mas sua mensagem resiste. Uma mensagem de cunho subversivo e
revolucionário, contrária ao racismo e à submissão em situações de desigualdade, e em favor
da valorização do negro e de sua cultura. Um ponto comum que se observa tanto em Besouro
(2009) como também em Barravento (1962), mesmo sendo filmes que têm abordagens e
intencionalidades diferentes: como por exemplo no fato de Besouro ser um herói
construído/apoiado pelos elementos do candomblé, e por isso, capaz de realizar feitos
fantásticos, enquanto que no outro filme, Firmino é um anti-herói que atua para desconstruir o
poder da religião sobre a população da vila de pescadores. De todo modo, na essência, os dois
personagens visam o benefício das suas comunidades oprimidas no intento de dar-lhes
confiança e força para lutar contra as situações desiguais, racistas e exploratórias.

Convergências ou similaridades, que mesmo acompanhadas de discrepâncias, colocam


os dois filmes como pertencentes ao mesmo universo das questões sociais, econômicas e
culturais do negro brasileiro-baiano: deslocado de suas localidades de origem na África,
escravizado, violentado, assassinado e nunca tratado da mesma forma que os outros
brasileiros de cor de pele mais branca. Temas e questões que em seguida aprofundaremos,
através de uma observação baseada em estudos da cultura e pós-coloniais, com o objetivo de
compreender melhor esse universo de onde nascem estes filmes.

Universo do qual podem surgir mundos fílmicos distintos, criados por seus
realizadores audiovisuais, se utilizando de elementos (ou desenhos) do mundo real como
matéria prima, e que é formulado de acordo com as experiências de vida em determinado
57

momento/movimento histórico/artístico dos seus produtores. Obras em que as abordagens e as


opções particulares desses escultores sonoros-visuais de um espaço-tempo específico,
constroem geografias cinematográficas onde essas tramas se passam, corpos fílmicos que
habitam e atuam nesses mundos, e atmosferas sonoras que determinam o clima dessas
histórias.

Mundos fílmicos construídos por instancias imaginárias e culturais, nos quais se


reinterpreta o mundo real dando forma audiovisual às simbolizações dos cineastas a partir das
suas percepções de mundo, ao mesmo tempo em que invocam ativamente saberes, memórias
e afetos dos espectadores – dos sujeitos que assistem, ou melhor dito, escutam-veem os
filmes.
58

C A P Í T U L O 2

Chuck Berry Fields Forever


Doces Bárbaros (Gilberto Gil)

Trazidos d'África pra Américas de Norte e Sul


Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca, valsa do Danúbio Azul
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o
rhythm'n'blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock and roll

Rock é o nosso tempo, baby, rock and roll é isso


Chuck Berry fields forever
Os quatro cavaleiros do após-calipso, o após-calipso
Rock and roll, capítulo um, versículo vinte
Sículo vinte, século vinte e um
Versículo vinte, sículo vinte, século vinte e um.
59

2 . CINEMAS E CULTURAS

Que lugar o migrante ou o exilado ocupa na sociedade


de acolhida? Quais as suas relações com o país de
origem? Como ele participa da construção da nação e
das “comunidades imaginadas”? Sendo assim, os
conceitos de diáspora, de exílio, de etnicidade que
complexificam o processo da construção e da
“imaginação da nação”, bem como reproblematizam a
questão da definição das identidades, das
subjetividades, das experiências comunitárias na era
da globalização, do fluxo contínuo de populações, do
rápido acesso às novas tecnologias.
Mohamed Bamba (Do cinema com sotaque e
transnacional à recepção transcultural e diaspórica dos
filmes. 2011, p. 168)

2.1 . BARRAVENTO E BESOURO: diferença, identidade e pós-colonialismo

O homem enquanto animal significador (que atribui valor) e o cinema enquanto meio
de representação: a partir dessas concepções iremos abordar as questões de cultura, identidade
e diferença nos filmes Barravento (1962) de Glauber Rocha e Besouro (2009) de João Daniel
Tikhomiroff, pois entendemos que “é por meio da representação, assim compreendida, que a
identidade e a diferença adquirem sentido” (SILVA, 2000, p. 91).

É assim no cinema e é assim na vida em sociedade.

A constituição da identidade, segundo Derrida, está sempre fundamentada no ato de


excluir e de estabelecer violentas hierarquias baseadas na redução do diferente e na
valorização da identidade de quem produz o discurso dominante (HALL, 2000). Esta entrega
de sentido se dá por meio de um sistema de representação que está profundamente ligado a
relações de poder, precisamente porque “quem tem o poder de representar tem o poder de
definir e determinar a identidade” (SILVA, 2000, p. 91). Se, no cinema, são definidos os
papeis que cada ator deve representar, na sociedade são determinadas posições-de-sujeito a
serem ocupadas, nos seus mais variados ambientes e situações, que colocam em choque as
subjetividades de cada indivíduo e a sua sujeição em assumir a posição determinada pelos
sistemas de representação dominantes. O que nos permite afirmar que não temos uma
60

identidade fixa, mas que então, as identidades são múltiplas e fluidas para se adequarem às
situações que nos deparamos – filho, cidadão, profissional, espectador etc. (HALL, 2000).

Este embate entre sujeição e subjetividade é o conflito essencial dos enredos dos dois
filmes que analisamos neste trabalho. Logo na primeira sequência de Besouro, o protagonista,
ainda um menino, questiona as posições-de-sujeito às quais se vê submetido: “eu não posso
porque eu sou menino; eu não posso porque eu sou pobre; eu não posso porque eu sou preto” .
Uma confrontação que se mostra como elemento perturbador nos filmes, que visa questionar
as hierarquias estabelecidas entre classe oprimida e classe opressora; em Barravento esse
elemento subversivo está materializado no personagem de Firmino, considerado um anti-herói
por suas atitudes e seus discursos aos pescadores, que agita esse conflito entre sujeição e
subjetividade:

Firmino – vocês arrastam rede todo dia sabe pra quê? Pra meter dinheiro na
barriga de branco; eles estão tudo rico nas suas costas; a minha que ninguém
explora mais, agora só trabalho por minha conta e não tenho hora marcada,
corro risco mas sou livre como um xaréu no mar.
(Barravento, 1962).

O autor de A produção social da identidade e da diferença, Tomaz Tadeu da Silva,


propõe o entendimento da identidade pela ótica de um ato ou processo de diferenciação, que
tem na origem o reconhecimento (ou estabelecimento) da existência do diferente para que
haja a necessidade de afirmação da identidade.

Nesse processo de diferenciação, a simbolização tem papel fundamental, pois se


levarmos em consideração apenas o aspecto gráfico do signos que constituem um idioma por
exemplo, não haverá valor e sentido nenhum neles. Os signos substitutos, expressão usada por
Susanne Langer, tomam o lugar de coisas que, por convenção, percebemos ou podemos
imaginar a partir da combinação de lembranças que temos (LANGER, 1989). Para possuir
significado, o signo gráfico precisa se diferenciar, através de atribuições de valor, de outro
signo gráfico; caso contrário os signos gráficos “opressor” e “oprimido” não seriam
percebidos pelos seus significados e se diferenciariam apenas pelas suas formas gráficas em si
(SILVA, 2000).

Sendo assim, o poder de atribuir valores para definir diferença e identidade não pode
ser separado das relações de poder. Com isso, os processos de diferenciação estão pautados
nas práticas de inclusão e exclusão, na demarcação de fronteiras/limites e na hierarquização
(SILVA, 2000). Esta ideia pode ser observada na sequência em que os pescados estão sendo
61

repartidos, ainda no início de Barravento, quando o Patrão (dono da rede de pesca) fica com a
grande maioria dos peixes e ainda reclama por mais, mostrando a hierarquia desigual desta
relação; e também, quando o Mestre (líder da colônia de pescadores) cogita conseguir uma
rede nova de pesca e o funcionário do Patrão o exclui desta decisão, demarcando a sua
posição-de-sujeito na relação existente entre eles:

Mestre – Está tudo separado: quatrocentos pro patrão, quatro pra mim e mais
cinco para dividir com os homens da rede.
Funcionário do Patrão – Deveria ter mais! A freguesia é grande e o preço do
peixe anda muito bom.
[...]
Mestre – Estou até com vontade de ir até a cidade buscar rede nova pra nós.
Funcionário do Patrão – Rede nova!? Vocês são bestas, vocês são muito
engraçados. Se nós lhe damos uma rede nova, qual vai ser o lucro desse ano?
(Barravento, 1962).

A relação de interdependência entre diferença e identidade, e o entendimento da


constituição da identidade como ato de poder, ficam ainda mais evidentes quando Stuart Hall
evoca Lacau para argumentar que a afirmação de uma identidade se dá por meio da repressão
daquilo que a ameaça (HALL, 2000). Se é verdade que toda identidade necessita do diferente
para se afirmar, também é correto dizer que “a identidade hegemônica é permanentemente
assombrada pelo seu Outro” (SILVA, 2000, p.84). Algo que pode-se perceber na constante
repressão e depreciação da cultura e do povo negro, enquanto que o assombro pela ameaça do
Outro fica ilustrado no diálogo entre o Coronel e seu capanga sobre o intrigante capoeirista
Besouro:

Coronel – Acho bom você resolver isso logo, Noca!


Capanga – Não vai ser fácil não coronel!
Coronel – E por que?
Capanga – Porque ele voa.
[...]
Coronel – Aquele nêgo é ruim. Você corte o mal pela raiz.
(Besouro, 2009).

Mas se por um lado existem práticas que auxiliam o estabelecimento e a fixação da


identidade, há também processos que tendem a desestabilizá-la. Os dois filmes analisados
apresentam tentativas de subverter o discurso hegemônico se utilizando de um dos principais
símbolos que garante a estabilidade das identidades culturais. O mito, “quer acreditado
literalmente quer não, é aceito com seriedade religiosa, seja como fato histórico seja como
verdade ‘mística’” (LANGER, 1989, p. 179). Por um lado, Glauber Rocha utiliza um anti-
herói para desconstruir os mitos religiosos para conseguir melhorias sociais, o que se resume
62

em sua frase que também poderia ser dita pelo personagem de Firmino: “apaixonado que sou
pelos costumes populares, não aceito, contudo, que o povo negro sacrifique uma perspectiva
em função de uma alegoria mística” (ROCHA, 1997, p. 126). De outra forma, João
Tikhomiroff constrói um herói ao longo do seu filme para desconcertar os mitos sociais e
raciais que regem os discursos hegemônicos: “Trata-se de um filme sobre as lendas que
cercam a época em que Besouro viveu [...]. É um filme de fantasia”.23

No ano em que o Brasil aboliu a escravidão, em 1888, o país tinha uma economia
essencialmente agrária, e os proprietários de terras possuíam o monopólio do poder político,
social e econômico, restando aos negros libertos a submissão e a deferência. Essa hierarquia,
em que a classificação social estava relacionada com a cor da pele, se desenvolveu como parte
do panorama colonial escravista desde a chegada dos colonizadores a essas terras; Entretanto,
mesmo após o 13 de maio, sem a escravidão para se apoiar, essa estratificação se manteve
(SKIDMORE, 2012).

Assinada a abolição, os negros tomaram alguns rumos. Alguns foram viver da


agricultura de subsistência onde quer que pudessem encontrar uma terra para se instalar,
alguns continuaram trabalhando para os seus antigos “donos” e outros migraram para a zona
urbana, ainda pouco desenvolvida e mal preparada para receber esse fluxo de trabalhadores, o
que resultou em desemprego e no aparecimento de algumas quadrilhas urbanas que utilizavam
a capoeira como recurso (SKIDMORE, 2012).

O movimento abolicionista brasileiro pouco (ou nada) se preocupou com a inclusão


social dos ex-escravizados; a intenção era baratear ainda mais a mão-de-obra – já que não
havia regulação das relações de trabalho – e através da imigração, “branquear” o país e
prepará-lo para a industrialização. Joaquim Nabuco, autor de O abolicionismo (1883) afirma
que a escravidão atrapalhava o desenvolvimento do Brasil nos moldes do capitalismo liberal
pois “retarda a aparição de indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso
natural, afasta as máquinas” (NABUCO apud SKIDMORE, 2012, p. 57). Embora os
brasileiros não se declarassem (e não se declarem hoje) preconceituosos, casos de
discriminação contra negros e mulatos foram divulgados em jornais, e a própria Marinha tinha
a reputação de só recrutar brancos, pois o governo tentaria mostrar um Brasil branco para os
países do exterior, principalmente na Europa e EUA. Em visita ao país latino, em 1914 (vinte


23
João Daniel Tikhomiroff em Entrevista ao Jornal do Brasil republicada no site, com data de 30/10/2009:
https://www.geledes.org.br/cinema-besouro-estreia-sexta-feira/ Acesso em: 13 de setembro de 2017
63

e cinco anos após a Lei Áurea), o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt definiu
a forma como a política brasileira lidava com a questão étnica social: “No Brasil [...] o ideal
principal é o desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro”
(ROOSEVELT apud SKIDMORE, 2012, p. 116).

O racismo é estrutural.

Mitos racistas, ditos teorias, se proliferaram durante o século XIX. A exemplo da


escola etnológica-biológica, que divulgava uma teoria conhecida como “poligenia”,
admitindo que haviam diferentes espécies de seres humanos. Utilizavam-se de medidas físicas
(de crâneo e etc) associadas à antropologia física para conferir base científica aos
preconceitos sobre o comportamento social dos “não brancos”, ao mesmo tempo que usavam
testes de QI para “provar” a inferioridade mental desta espécie (SKIDMORE, 2012).

“Ninguém dá conta que esse cascudo voa, é pesado e tem as asas fininhas. Até a
ciência jura que esse besouro não voa. Mas... olha que maravilha”24. O inseto sai voando e
derruba o argumento dominante que limita, desqualifica e oprime as pessoas de pele negra: é
o ensinamento passado ao então pequeno aprendiz pelo seu mestre de capoeira, que é também
a principal voz da região em favor dos direitos da população negra; uma figura de subversão e
resistência na trama do filme e recorrente na história do Brasil.

No outro longa metragem, Glauber Rocha coloca em cheque os mitos de uma religião
que na sua visão imobilizam as pessoas perante uma situação de desigualdade social
resultante desse processo histórico étnico social brasileiro. Mitos que advém de fantasias, que
não precisam ter coerência, fruto do onírico em que o comportamento de coisas e criaturas
seguem leis não-empíricas, mas que possuem “outra significação além da literal” (LANGER,
1989, p. 176). O objetivo de Glauber era mostrar o que se esconde por trás da estrutura de
beleza e exotismo da mitologia afro-brasileira: um povo faminto e ainda escravizado mesmo
após abolição. Ideia expressa já nos letreiros inicias de Barravento:

No litoral da Bahia vivem os negros pescadores de “xaréu”, cujos


antepassados vieram escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos
Deuses africanos e todos este povo é dominado por um misticismo trágico e
fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a exploração com passividade
característica daqueles que esperam o reino do divino.
(Barravento, 1962).


24
fala extraída do filme Besouro (2009).
64

Os dois longas, Barravento e Besouro, atropelam as regras e as hierarquias definidas


pelo discurso normativo dominante (até hoje vigente) e têm como protagonistas personagens
negros. Besouro como um filme influenciado pelo cinema de Hollywood, com todos os seus
efeitos especiais e arco dramático, constrói um super-herói negro; e Barravento, por sua vez,
nasce junto a (e fruto de) uma vontade por cinema nacional independente e anti-imperialista
no seu padrão de qualidade técnica e de conteúdo, que se opõe a filmes de gente rica, branca,
que andam em automóveis de luxo e busca uma “verdade brasileira” colocando “o povo, seus
problemas, suas dificuldades cotidianas no centro da tela [...] de forma cinematograficamente
adequada à exposição da situação local” (COSTA, Fernando, 2006, p. 170). Subversões que
podem ser consideradas como contracultura e que podemos observar pelo prisma dos Estudos
Pós-Coloniais.

As grandes navegações e as colonizações se caracterizam como fator determinante,


não apenas na descoberta (invasão, apropriação) de novos mundos mas, no surgimento de
novas relações entre mundos. Da primeira interação entre colonizadores e colonizados nasceu
uma forma crítica de contestação e desconstrução (ou reconstrução) das ideologias e normas
imperialistas que foram trazidas pela colonização europeia. É nesse contexto de crítica às
teorias europeias que surge a teoria pós-colonial, da necessidade de se pensar por vias
diferentes das ensinadas aos colonizados pelos seus colonizadores (OMAR, 2007).

A América Latina institui o seu lugar no mapa graças ao seu movimento de


desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e
imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo. Sem essa
contribuição o produto seria mera cópia (SANTIAGO, 2000, p. 16).

Os dois filmes aqui analisados só foram possíveis, em suas temáticas e em sua forma,
por conta da experiência da colonização e, por consequência, da tensão com o poder imperial,
enfatizando as diferenças entre colonizadores e colonizados (OMAR, 2007). Não fosse isso,
seria um cinema integralmente europeu, em sua estética e tema, feito nas Américas.

Os sujeitos pós-coloniais são indivíduos que buscam se identificar e se posicionar


nessa nova sociedade resultante das influências do colonizador, dos povos autóctones e dos
povos deslocados de seu lugar de origem. São sujeitos que assumem uma dupla consciência
relacionando ambiguamente os valores ancestrais e os trazidos pelos colonizadores; sujeitos
que ao ocupar esse espaço “entre”, irrompem um ato provocador e de insubordinação política
(GILROY, 2001).
65

Esse sujeito de dupla consciência é Firmino, de Barravento: seus antepassados vieram


da África, ele migrou para a “cidade grande” em busca de riqueza e “progresso” onde entrou
em contato direto com ideais ocidentais. Quando retorna para a vila de pescadores, ocupa esse
entre-lugar, traz ideias revolucionárias (de classe e etnia) e de crítica aos obstáculos impostos
pela religião, ao mesmo tempo em que não abandona completamente a crença na mitologia de
seus ancestrais chegando a fazer um “despacho”. Mas quando questionado sobre a
possibilidade de ele se integrar à vida de pescador como os outros da vila, assinala em sua fala
as variadas influencias desse não-lugar dos negros dispersos, que o autor jamaicano pós-
colonial Paul Gilroy denominou de Atlântico Negro: “Eu pescador!? Isso é vida de índio. Isso
aqui não é África, é Brasil”25.

Ser pós-colonial significa ter uma atitude de assimilação e agressividade, como propõe
Silviano Santiago (2000), de aprendizagem seguido de reação. Assumir uma postura de falsa
obediência, pois está clara a impossibilidade das terras colonizadas evitarem a invasão
estrangeira (tanto antes como hoje), assim como não é possível voltar a sua condição de
“paraíso”. O menino Manoel rejeita o seu nome português quando entra para a capoeira;
apesar de ser adepto do candomblé, ele não retorna às suas raízes africanas para encontrar o
seu novo nome, recorre ao simbolismo da explicação de seu Mestre na sequência inicial do
filme (o voo do inseto de asas finas e corpo pesado) que está diretamente associada à sua
posição-de-sujeito nesse entre-lugar em que se encontra, e em um ato de insubordinação ao
discurso dominante assumi o nome de Besouro, mostrando que nem a ciência nem os que
fazem a ciência irão determinar o que ele pode ou não fazer, a exemplo de voar. A mesma
assimilação e agressividade que Firmino tenta transmitir aos pescadores em um trecho de
Barravento:

Firmino – Trabalha cambada de besta, preto veio pra essa terra pra sofrer,
trabalha muito e não come nada, menos eu que sou independente, já larguei
esse negócio de religião, candomblé não resolve nada, nada não, precisamos
é lutar, resistir.
(Barravento, 1962).

O personagem de Firmino também representa a metáfora do navio (na época das


colonizações), feita por Gilroy (2001). Um sistema microcultural e micropolítico que conecta
os povos e suas culturas no espaço do Atlântico Negro (América – África – Europa). O
protagonista de Barravento é uma espécie de viajante que promove essas trocas culturais,
elemento móvel que interliga os lugares fixos. A película começa com Firmino vindo da

25
fala extraída do filme Barravento (1962).
66

cidade grande de volta para a vila de pescadores, e termina com Aruã (principal pescador da
vila e seguidor do candomblé), convencido pelas ideias pós-colonialistas trazidas pelo “navio”
Firmino, deixando a vila rumo à cidade e tornando-se também um “marujo” entre mundos:
“Firmino é ruim, mas tem razão, ninguém liga pra preto e pobre, nós temos que resolver a
nossa vida e a de todo mundo. Agora eu tenho coragem”26, diz Aruã na parte final do filme.

Stuart Hall, outro autor jamaicano que se destaca por suas contribuições nos Estudos
Culturais, também trata de pós-colonialismo a partir do seu conceito de Tradução que
descreve a formação da identidade de pessoas deslocadas da sua terra natal, que retêm fortes
vínculos com seus lugares de origem mas sem a ilusão de retorno ao passado. “Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente as suas identidades” (HALL, 2006, p. 88);
são o fruto de várias histórias e culturas interconectadas.

Diante da onda da globalização, aliada ao imperialismo cultural (parte do


neocolonialismo), muito teóricos preveem a possibilidade de um sufocamento das expressões
culturais mais tradicionais, e também o seu contrario, quando, reagindo à esta globalização
homogeneizante, essas manifestações tradicionais iriam buscar a pureza anterior, na raiz. A
Tradução definida por Hall, é uma terceira opção frente à globalização.

Em toda parte, estão emergindo identidades que não são fixas, mas que estão
suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos,
ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produtos desses
complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns
num mundo globalizado (HALL, 2006, p. 88).

Podemos observar esse “cruzamentos e misturas culturais” na banda sonora do filme


Besouro (2009). Um atmosfera sonora é criada a partir da fusão dos sons ancestrais dos
atabaques com instrumentos que passaram a existir por conta do desenvolvimento tecnológico
e que se espalharam pelo mundo, como a guitarra e seu pedais de distorção dos sons. E
retomando a colocação de Chion (2011) – trazida anteriormente – quando afirma que o
contexto cultural influencia na percepção audiovisual do espectador/ouvinte, Santiago (2000)
expõe a diferença de significados que um mesmo som pode adquirir a depender do contexto
cultural do qual o receptor faz parte. O autor pós-colonial recorre a um poema de Rimbaud no
qual fala sobre o grito dos “peles-vermelhas”, que para os europeus significa um desejo de
expansão dos indígenas, no entanto, entre os nativos aquele som exprime a vontade de

26
fala extraída do filme Barravento (1962).
67

estabelecer limites aos invasores: ao contrário de expansão, o grito representa uma forma de
contração. E esse jogo de significados a partir do mesmo significante – “a tradução do
significante avança um novo significado” (SANTIAGO, 2000, p. 22) – nos permite
estabelecer uma analogia entre as intencionalidades de cada um dos filme e os seus sons, que
exprimem significados diferentes: se por um lado os toques do candomblé no longa Besouro
significam a liberdade, do outro lado, no mundo fílmico de Barravento esses sons remontam a
ideia de alienação e imobilidade.

Pelo estabelecimento de uma relação entre o passado e o presente, o pós-colonialismo


engloba na sua análise os efeitos contemporâneos desse fenômeno que alterou as relações
globais e as culturas (OMAR, 2007). O colonialismo gerou uma nova sociedade: a da
mestiçagem, da dupla consciência, das múltiplas identificações. O que já mostra que sua
principal característica é a desconstrução da noção de unidade trazida pelos colonizadores –
“um só Deus, um só Rei, uma só língua, uma só verdade” (SANTIAGO, 2000, p. 14) –
através de uma mistura complexa entre as culturas europeias, as deslocadas e as autóctones.

Sendo assim, nessa sociedade de diversas influências e múltiplas verdades possíveis,


“as identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas
discursivas constroem para nós” (HALL, 2000, p. 112). Com isso podemos dizer que o
cinema, enquanto meio de representação, portanto prática discursiva, produz pontos de apego
temporário para os seus espectadores; gerando assim processos de identificação.

2.2 . IDENTIFICAÇÃO NO CINEMA

Definido por Edgar Morin “como representação de uma representação viva, o cinema
convida-nos a refletir sobre o imaginário da realidade e a realidade do imaginário”. (apud
AUMONT et al, 2012, p. 236) Se o mesmo autor apelidou o cinematógrafo de “máquina de
produzir imaginário”, Rudolf Arnheim completa que assistir a um filme se trata de um
fenômeno mental, que envolve os campos da percepção, da associação e da memória.
“Vemos, de certo modo, mais do que os nossos próprios olhos nos mostram” (AUMONT et
al, 2012, p. 226). Portanto um filme só existe por conta da articulação, no intelecto, dos
elementos que são oferecidos ao espectador de cinema durante a projeção.

Ao retomar os primeiros teóricos que exploraram a ilusão cinematográfica, Jacques


Aumont e seus colaboradores (2012) lembram que Munsterberg desenvolve a concepção do
68

cinema como um processo mental, possibilitado pela arte da atenção – um registro organizado
que dá sentido ao que parece real; pela arte da memória e da imaginação – que permite o
entendimento da compressão ou dilatação do tempo fílmico, da noção de ritmo, da montagem
em si; e pela arte das emoções – “fase suprema da psicologia, [...] que corresponde ao grau de
complexidade das emoções humanas” (AUMONT et al, 2012, p. 225).

O cinema, então, se desenvolve da simples ilusão de fotogramas em movimento


passando à sua capacidade de influenciar o espectador e induzir emoções. O que também fica
comprovado pelo consagrado efeito Kulechov, no qual a imagem de um homem olhando para
algo que está fora do quadro, quando seguida pela imagem de um prato de comida, induz o
espectador a crer que o homem sente fome, mas se a imagem seguinte à do homem que olha,
é a de um caixão, levará o espectador a pensar que o homem se sente triste.

Para tentar entender como ocorrem os processos de identificação dos espectadores


com os filmes, Aumont (2012) reúne alguns teóricos no capítulo O filme e seu espectador, do
seu livro A estética do filme, para traçar um paralelo analítico entre o processo de formação
do sujeito na sociedade e o do espectador audiovisual, se utilizando das identificações que se
estabelecem no âmbito cultural e do cinema. O autor faz questão de frisar que “ocupar-nos-
emos da relação do espectador com o filme como experiência individual, psicológica, estética,
em suma, subjetiva” (AUMONT et al, 2012, p. 224).

A começar pela psicanálise, Freud intitula como identificação primária, a mais remota
forma de laço afetivo com um objeto; dessa forma, é compreensível que o primeiro laço de
afeto de um ser humano se estabeleça com os seus pais, ou quem o cria. O “pai da
psicanálise” também explica que o primeiro período da vida de um indivíduo é marcado pela
incapacidade de estabelecer uma diferenciação entre o Eu e o Outro (AUMONT et al, 2012).

Confusão essa, que encontrará sua solução na “fase do espelho”, teorizada por Lacan,
na qual o bebê, estando no colo da mãe (ou do pai) e de frente para o espelho, se vê pela
primeira vez e compreende que aquela figura que está no colo da sua mãe, é ele (o Eu); ou
seja, por já ter visto a mãe e nunca ter visto a ele próprio, até encarar um espelho, passa a
entender que ele é o sujeito da visão e que é um ser diferente de sua mãe. Se inaugura, assim,
uma relação dual entre o eu e o outro, que se dá pela tomada de consciência da noção de
diferença (que também já foi tratada no presente trabalho pela sua importância para a
constituição das identidades) (AUMONT et al, 2012).
69

Estes aspectos levaram Jean-Louis Baudry a estabelecer duas analogias entre a


situação da “criança no espelho” e o espectador no cinema. Relaciona, primeiro, a tela de
projeção com o espelho por ambas serem superfícies limitadas/recortadas, que permitem
isolar o objeto, ali contido, do resto do mundo. Há, no entanto, uma distinção entre o espelho
e a projeção, pois a tela não reflete o espectador, como pontua Christian Metz, mas ainda
assim, se mantém na tela o reconhecimento da diferença através da identificação do outro
(AUMONT et al, 2012). Em seguida, Baudry também aponta a situação de imobilidade
motora junto a maturidade da visão do espectador, que preso à poltrona do cinema, é
bombardeado audiovisualmente, da mesma forma que acontece com a criança durante a sua
fase do espelho. Com a ponderação que o espectador é um sujeito constituído, e a criança é
um sujeito em formação.

Na experiência fílmica, Christian Metz propõe o termo “identificação cinematográfica


primária” à capacidade do espectador se identificar com o sujeito da visão, se referindo ao
“olho da câmera”. Por mais que seja sabido que há uma mediação da imagem vista – que
alguém a tenha gravado previamente –, quem assiste, identifica e aceita ocupar aquele lugar
determinado por quem filmou aquelas imagens. Este é um lugar privilegiado, único, e
metafísico da visão, onde nem é preciso mover a cabeça para enxergar toda a extensão de uma
paisagem por conta do movimento de câmera, por exemplo. E embora a imagem do corpo do
sujeito-espectador esteja ausente da tela (diferente do caso do espelho), o mesmo está presente
como sujeito transcendental da visão, já que sem o olhar do espectador não há filme – se não
há quem assista, não há razão para se projetar uma história na tela (AUMONT et al, 2012).

Passada a fase de identificações primárias, caracterizada por uma relação meramente


dual (eu e o outro), passa-se ao que a psicanálise nomeia de “identificações secundárias” que
serão as responsáveis por instaurar a subjetividade do indivíduo. Etapa associada à “fase do
Édipo”, na qual Freud destaca a ambivalência nas identificações do filho, que (em um
exemplo heterossexual) deseja libidinosamente “ter” a mãe, enquanto do outro lado existe a
figura do pai, que representa a lei e determina o que o menino pode e não pode fazer,
impondo inclusive que certas coisas só podem ser feitas por adultos. Entretanto, ao perceber
que o pai é quem alcança e realiza os desejos amorosos com a mãe, o filho se divide entre os
sentimentos de ciúme e admiração, pois também passa a se identificar com o pai por desejar
“ser” o mesmo, na intenção de poder usufruir das prerrogativas amorosas estabelecidas pelo
casal (AUMONT et al, 2012).
70

E assim já vão se estabelecendo as posições-de-sujeito que os indivíduos tem de


ocupar na sociedade. Pois é nessa fase que começam a se estabelecer os limites, as atribuições
de valores, as hierarquias, as significações, que são típicas de quem detém o poder de definir
o diferente e a identidade; nesse caso o pai e/ou a mãe.

Vale aqui, recordar a ideia de identificação primária de Freud, como um laço


sentimental que se dá no imaginário humano, e associá-la ao pensamento de Stuart Hall sobre
as identidades como pontos de apego temporários às posições-de-sujeito. Sendo assim,
chegamos à conclusão do autor jamaicano de que o processo de identificação nunca se
completa, está sempre em construção, pois sempre haverá laços afetivos para se estabelecer e
posições a se ocupar no mundo social.

Uma dessas posições é a de espectador de cinema que, considerando-o um sujeito


consciente, por vontade própria dedica o seu tempo à ir ao cinema e se entregar ao
ilusionismo audiovisual. Georges Bataille defende que – umas mais e outras menos, mas –
todas as pessoas ficam atidas à narrativas (seja oral, escrita ou audiovisual); o ser humano
demonstra um desejo fundamental de entrar em uma narrativa. O autor chega a dizer que
nesse desejo de mergulhar em histórias, talvez esteja escondida uma vontade de conhecer, de
se identificar e de estabelecer laços sentimentais que seriam inimagináveis e inacessíveis no
mundo real específico de cada espectador. Por isso, essa identificação diegética é considerada
como uma pesquisa da verdade do desejo do espectador, pois mesmo estando ausente da tela,
algo na narrativa lhe diz respeito, e na articulação edipiana entre o desejo da imaginação e os
limites da vida real, o espectador busca as múltiplas verdades da vida (AUMONT et al, 2012).

Depois de ter assistido a um filme (ou lido a um livro), é comum que se produza uma
lembrança do que foi visto e que essa recordação seja bastante monolítica e regulada por uma
tipologia, normalmente: o bom, o mau, o herói, a vítima. Então, ao recordar o filme, tende-se
a acreditar que uma identificação se deu por simpatia a um determinado personagem, mas
Sigmund Freud pensa de outra maneira. Ele defende que a simpatia só nasce a partir da
identificação; afirmativa que se sustenta pela ideia de identificação parcial, trazida pelo
mesmo autor, na qual o indivíduo pode se apegar a apenas um dos traços do objeto com o
qual se depara. Dessa maneira, um único traço, uma só característica, pode produzir
identificação entre pessoas que não compartem de simpatia uma pela outra (AUMONT et al,
2012).

A identificação parcial pode ser observada em Firmino (de Barravento, 1962), que é
um personagem antipático que importuna os outros pescadores questionando seus modos de
71

vida e suas crenças. As suas provocações chegam até a atitude extrema de cortar a única rede
de pesca que é o instrumento de trabalho e de sustento da vila de pescadores. Entretanto,
Firmino tenta explicar o que fez a Cota: “Foi por isso que eu cortei a corda, a barriga precisa
doer mesmo, quanto tiver uma ferida bem grande, então, todo mundo grita de vez”, o que
marca a sua militância pela autonomia e liberdade da população da aldeia, e contra a fome.
Nesse caso, o espectador pode não simpatizar com o ato de Firmino em cortar a rede, mas se
identifica parcialmente pela ideia de não ter pessoas em situação de fome. Este anti-herói,
sabendo que seus atos podem ser mal compreendidos, outro traço que permite a identificação
parcial com os espectadores, termina a discussão com Cota cantarolando a incompreensão tão
habitual aos humanos: “meu sofrimento ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer”.

Mas se não é a simpatia que desencadeia a identificação, e sim o inverso; o que


dispara o processo de identificação nos espectadores?

Ainda de acordo com esse exemplo de Barravento (1962) podemos concluir que mais
que um efeito da relação psicológica do espectador com os personagens, a identificação é um
efeito da estrutura, de uma “situação” – um fragmento de narrativa em que se estabelece uma
rede estruturada de relações. Pois se “a identificação não leva em consideração a psicologia;
ela é uma operação estrutural pura: sou aquele que tem o mesmo lugar que eu” (BARTHES
apud AUMONT et al, 2012, p. 269), então podemos dizer que a identificação no cinema está
associada às posições-de-sujeito que o espectador ocupa nas diversas situações da vida real
enquanto sujeito social. Portanto, a identificação é uma questão de lugar, um efeito de posição
estrutural (na vida e no cinema); e a cada nova situação que se apresenta, os lugares a serem
ocupados são redistribuídos.

“Nesse jogo de lugares, nessa rede de relações instaurada a cada nova situação, é
possível dizer, para parafrasear Jacques Lacan, que o espectador está em seu lugar, não
importa onde” (AUMONT et al, 2012, p. 271). Com isso, pode-se concluir que a identificação
no cinema tem caráter fluido (processo sempre em construção, como a identidade definida por
Hall), reversível (ocupa lugares a depender da situação, como propõe Barthes e Lacan) e
ambivalente (como na fase de Édipo, apresentada por Freud).

Essas características do processo de identificação no cinema podem ser


exemplificadas na sequência da luta de capoeira entre Firmino e Aruã, no longa metragem de
Glauber Rocha. Jacques Aumont (et al, 2012) explica que em uma cena de agressão é comum
que quem assiste se identifique com o agressor pelo seu traço sádico, e com o agredido pelo
sentimento de angústia e solidariedade. Na análise do confronto final entre o anti-herói-
72

libertário e o herói-ainda-alienado, primeiro devemos lembrar que ao longo do filme fica


explícita a situação de exploração e passividade, o que impele a defesa da autonomia daquele
povo pelo antipático Firmino, e leva o espectador a se identificar com ele. Mas, de maneira
ambivalente, a cena também permite que aconteça a identificação com Aruã, que vai se
mostrando convencido pelas ideias do seu oponente – “Peixe se pesca é com rede, é com
tarrafa. Peixe se pesca é no mar, não é com reza não”. Sendo Aruã o detentor da confiança
dos outros pescadores, é o único que tem a capacidade de levar o pensamento de Firmino à
todos da aldeia, e enfim, provocar uma transformação naquela comunidade. Esta ideia é
reforçada por Firmino, que mesmo tendo vencido a luta, diz ao derrotado que vai deixá-lo
vivo para salvar o povo e grita aos outros pescadores que é a Aruã que eles devem seguir.

Para construir essas situações ao longo enredo do filme, o realizador cinematográfico


lança mão de múltiplos pontos de vista para poder criar conjuntos de conteúdos e destacar
determinados aspectos da história que está contando. A cada plano de uma sequência fílmica
temos um novo ponto de vista, e um personagem, por exemplo, pode ser apresentado apenas
como parte de um cenário, ou como figura central da ação.

Fotograma 1: Pescadores como parte Fotograma 2: Aruã como figura


do cenário - Barravento (1962) central da ação - Barravento (1962)

Fotograma 3: Capoeiristas como parte Fotograma 4: Besouro como figura


do cenário - Besouro (2009) central da ação - Besouro (2009)
73

Cada um desses pontos de vista [...] inscreve necessariamente, entre as


diferentes figuras da cena, uma certa hierarquia; confere-lhes mais ou menos
importância na relação intersubjetiva; privilegia o ponto de vista de certos
personagens; sublinha algumas linhas de tensão e divisão (AUMONT et al,
2012, p. 273).

E é a combinação desses pontos de vista que permite traçar lugares e redes de relações
para conduzir o espectador nos processos de identificação ao longo do filme. A esse trabalho
de encadeamento dos pontos de vista e dos acontecimentos diegéticos dá-se o nome de
enunciação. É pelo modo como se enuncia a narrativa, que o filme vai controlar as
informações que são colocadas à disposição de quem assiste; que antecipa ou esconde alguns
elementos que compõem uma situação, que vai regular o jogo “entre o saber do espectador e o
suposto saber do personagem e induzir desse modo, permanentemente, a identificação do
espectador com as figuras e as situações da diegese” (AUMONT et al, 2012, p. 281).

Uma estruturação, plano a plano, para engendrar o processo de identificação do


espectador com as situações fílmicas. Uma intervenção no curso natural dos acontecimentos
para apreender a atenção do espectador e gerar sensações como as de tensão e surpresa, por
exemplo (AUMONT et al, 2012). Trabalho este realizado na sala de montagem, na ilha de
edição, onde os planos filmados e os sons gravados são organizados para dar sentido ao filme.
O que reforça a importância da montagem no cinema e no processo de identificação do
espectador com o filme, no qual os sons vão auxiliar a compor esses pontos de vista e também
farão parte desse grupo de informações que são distribuídas estrategicamente na enunciação
da trama fílmica.
74

C A P Í T U L O 3

ALEGRIA DA CIDADE
(Lazzo Matumbi)

A minha pele de ébano é


A minha alma nua
Espalhando a luz do sol
Espelhando a luz da lua

Tem a plumagem da noite, e a liberdade da rua


Minha pele é linguagem, e a leitura é toda sua

Será que você não viu, não entendeu o meu toque


No coração da América eu sou o jazz, sou o rock

Eu sou parte de você, mesmo que você me negue


Na beleza do afoxé ou no balanço no reggae

Eu sou o sol da Jamaica, sou a cor da Bahia


Eu sou você, sou você, sou você... e você não sabia

Liberdade Curuzu, Harlem, Palmares, Soweto


Nosso céu é todo blue e o mundo é um grande gueto

Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade


somos nós a alegria da cidade
Apesar de tanto não, tanta marginalidade
somos nós a alegria da cidade
75

3 . ATMOSFERAS SONORAS

3.1 . O SONORO NO CINEMA

Somos capazes de suportar a incessante troca de


planos de imagem na tela provavelmente porque elas se
assemelham aos pequenos cortes que fazemos quando
piscamos, fechando e abrindo muito rapidamente os
olhos. Mas a menor ruptura na trilha sonora nos salta
aos ouvidos, nos desarranja na fruição do filme.
Virgínia Flôres (Além dos limites do quadro: o som a
partir do cinema moderno. 2013, p. 60)

A continuidade temporal e espacial mostraram ser premissas chaves à narrativa


clássica do cinema no seu objetivo de envolver o espectador em uma história ficcional; no seu
empenho em fazer com que o espectador perceba o relato audiovisual não como algo
inventado, construído pelo cinema, mas como se fosse uma realidade assistida,
experimentada, vivida durante a projeção de um filme. Nesse contexto o som se tornou
elemento de suma importância para marcar a continuidade, ou a diferença, entre uma cena e
outra em relação ao local em que se desenvolve o enredo e ao momento em que os
acontecimentos ocorrem. Como tem sido dito, o aporte central desse tipo de narrativa
cinematográfica é buscar no naturalismo de sua representação de mundo a ilusão de realidade,
à qual o som contribui por acionar mais um sentido humano, além do visual, que é bastante
requerido no mundo real, a escuta, que reforça a impressão de realismo da projeção ao
espectador, “fechando a ideia de que ele está participando de uma vida, de uma realidade e
não de uma representação” (FLÔRES, 2013, p. 18).

Mas, como já sabemos, não só para o naturalismo está o som no cinema. E quando há
alguma discrepância entre o que se vê na imagem da tela e o som que naturalmente deveria
escutar, a imaginação humana entra em cena para tentar estabelecer uma relação entre o que
se viu e o que se ouviu. Conforme tratamos anteriormente André Bazin se refere às imagens
como desenhos, moldes de objetos presentes no mundo real, e que quando alguém se depara
com uma imagem, a reconhece porque o desenho lhe faz lembrar o objeto real; no mesmo
sentido a estudiosa de recepção fílmica, Véronique Campan, também aborda a ideia de som
como vestígio, ou seja, algo que na reprodução faz lembrar (ou remete à) algo que já foi
76

experimentado na mundo real, que mesmo incompleto ou imperfeito irá ativar a memória na
realização da escuta causal e semântica para que se possa identificar e interpretar o som
escutado, e assim criar uma “imagem sonora”. Se ouvimos um gotejar e pensamos em água é
porque temos a experiência de um tipo de som associado à essa consistência plástica, material
e até tátil própria da água; da mesma forma um líquido mais espesso, de sangue ou leite por
exemplo, faz um som diferente do que o da água quando goteja. Reconhecemos, ou achamos
que reconhecemos, a fonte de um som porque há certas formas e certos aspectos sonoros que
estão memorizados. Podemos então dizer que fazemos o reconhecimento dos sons, “por
motivos interiores ao som e, simultaneamente, por motivos exteriores” (CHION, 2008, p.
161; FLÔRES, 2013).

Dentre os motivos exteriores que levam ao reconhecimento dos sons, incluem-se as


influências culturais, os sons pertencentes à determinadas culturas e que ficam marcados na
memória das pessoas. Elementos sonoros que constroem uma memória coletiva,
representativa e afetiva; símbolos sonoros que “podem ser os timbres de instrumentos
específicos: trompete, tambor, trompa, pratos, guitarra, entre outros, que remetem para
lembranças [...] de extrema efetividade sobre a imaginação e a sensibilidade coletiva”
(BOCCIA, 2010, p. 90).

No caso de uma “imagem sonora” não encontrar o seu reconhecimento ou


identificação com uma “imagem visual”, a subjetividade e sensibilidade humana entregam à
essa imagem, que se criará na mente, um sentido mais além do material plástico, um sentido
espiritual, sentimental. “É uma imagem que toma por objeto relações, atos simbólicos,
sentimentos intelectuais” (DELEUZE, 1985, p. 244); a experiência sonora de uma música que
instiga emoções seria um exemplo desse tipo de “imagem mental”.

Virgínia Flôres esclarece a diferença entre representações mentais e visuais, uma vez
que a “imagem sonora” criada mentalmente, com a ajuda da memória auditiva (rastros
sonoros), remete ao objeto real em sua ausência; o som, portanto, sugere algo que não está ali.
Por outro lado a “imagem visual” entrega uma presença mais explicita, por assim dizer, e com
isso não sugere, mostra. A autora valoriza os usos do som “como uma representação,
destacando as potências do não visível, potência de algo que não existe naquele momento
como objeto visual direto, não está presente, mas que é memória” (FLÔRES, 2013, p. 47). E o
que optamos por chamar de memória auditiva afetiva, é constantemente requerida dentro da
dinâmica de uma sequência audiovisual para a criação de expectativas (tensão), sempre
seguida de uma confirmação ou surpresa dessas expectativas, “porque nunca nos cansamos de
77

antecipar e de surpreender a antecipação – é o próprio movimento de desejo” (CHION, 2008,


p. 50).

Um dos principais filmes estudados pela sua forma de empregar os sons na narrativa
fílmica, M, O vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang (1931) escolheu uma música para ser
assobiada pelo assassino da trama; uma melodia que fora do filme possuí um caráter
inofensivo, dentro da narrativa audiovisual se tornou uma melodia aterrorizante,
principalmente quando o assassino não estava em quadro e o assobio sugeria a sua presença –
nesse caso, o som como sugestão de algo perigoso, ameaçador (FLÔRES, 2013).

A associação entre o assassino M. e o assobio da melodia só acontece pela


possibilidade que o cinema desenvolveu de sincronizar os sons com as imagens, gerando a
impressão de que os sons emitidos pelas caixas de som pertencem ao mesmo mundo que está
desenhado por luzes na tela de projeção, o que se explica pela simultaneidade das duas
ocorrências no mesmo tempo e espaço. Definição que é ampliada por Flôres quando diz que
“o sistema conhecido como sincronismo no cinema é, sobretudo, uma questão de
verossimilhança, de convicção, que o espectador aprova por razões de hábitos adquiridos com
a cultura do audiovisual e por convenções criadas a partir da própria vivência cotidiana”
(FLÔRES, 2013, p. 39).

Um sincronismo que entregou ao cinema mais possibilidades de expressões estéticas:


a começar pela autonomia que passou a ter o realizador do filme em escolher as músicas para
cada momento da história; a partir dai a continuidade (ou descontinuidade) espaço-temporal
também passou a ser melhor controlada; aumentou a sensação de materialidade dos objetos
em cena através de características sonoras que remetem às sensações de peso e textura por
exemplo; incrementou a noção de espacialidade, principalmente em relação à profundidade
frontal (sendo que o objeto que está mais perto da câmera soa mais alto que o objeto que está
mais distante em relação à câmera), mas também abrindo a possibilidade do som direcionar o
olhar dentro de uma cena (se há uma janela de vidro no canto esquerdo da tela e se escuta um
barulho de vidro se estilhaçando, o olhar será direcionado para o canto esquerdo da tela), e
ainda aumentou o espaço geográfico da cena com a utilização de sons fora de quadro, o que
criou novas relações tanto na interpretação do atores em quadro, como também na montagem.
Mas a novidade aportada pelo sincronismo que mais recebeu atenção foram os diálogos, que
comparado aos outros sons era o que mais poderia dar vida (personalidade, estado de ânimo,
entonação) às “imagens visuais” dos personagens humanos (CHION, 2008; FLÔRES, 2013).
78

Depois do lançamento em 1927 de O cantor de Jazz que teve a voz em sincronia com
a imagem em algumas partes do filme, Luzes de Nova York é lançada pela Paramount em
janeiro de 1929 como o primeiro filme falado do inicio ao fim, e já em setembro do mesmo
ano essa produtora americana já havia feito a transição para o cinema falado e todas as suas
produções continham diálogos.

“A voz tornava-se o elemento sonoro principal na narrativa” (COSTA, Fernando,


2008b, p. 13).

Contudo este fato aproximou o cinema de uma estética do teatro falado, que foi alvo
de muitas críticas, principalmente por parte dos formalistas.

Eisenstein e seus parceiros, é bem verdade, não glorificam a pureza e a


autonomia artística das imagens. Ao contrario, enxergam limites e
imperfeições no cinema mudo. O som chegava, admitiam os teóricos e
realizadores soviéticos, para resolver impasses que pareciam insuperáveis,
como a necessidade do uso de intertítulos e o emprego de primeiros planos
explicativos que, segundo eles, prejudicavam a composição da montagem e
retardavam o seu ritmo. O som chegava para resolver problemas narrativos,
mas ameaçava o alcance universal do esperanto de imagens criado pelo
cinema. O som era bem-vindo, mas o seu uso naturalista impediria o
aperfeiçoamento do cinema como arte (JESUS, 2007, p. 59).

Entretanto, vibrando em diferentes frequências que os formalistas soviéticos, o cinema


clássico hegemônico dedicou a maior parte do seu desenvolvimento tecnológico em favor da
captação e reprodução de vozes humanas, deixando de lado os ruídos, que por conta da baixa
qualidade dos equipamentos (principalmente em alcance e resposta de frequências sonoras)
era difícil distinguir o som de uma chuva e o de aplausos. Os avanços tecnológicos na área de
áudio fizeram surgir gravadores mais leves e portáteis que possibilitaram a captação do som
direto, gravado durante as filmagens, o que trouxe mais possibilidades ao realizadores mas
que por conta de algumas dificuldades que acompanham a captação do som direto, como a de
se isolar sons específicos do ambiente de gravação, ainda hoje, a maior parte dos sons que
compõe um filme são produzidos (pós-produzidos e sincronizados) após a etapa de captação e
incluídos na etapa de montagem e finalização do filme (COSTA, Fernando, 2006; FLÔRES,
2013).

Enquanto isso o surgimento e a invasão da televisão nas casas das pessoas gerou um
crise importante para a principal indústria cinematográfica, nos idos de 1950. As televisões
passaram a oferecer uma experiência audiovisual muito parecida à proporcionada por
Hollywood, e a necessidade de se diferenciar fez surgir o Cinemascope (e suas variantes),
79

uma tela maior em seu tamanho e com uma maior horizontalidade, além da imagem colorida,
contrastando assim com a imagem quadrada e monocromática das televisões. No que diz
respeito ao som, apenas uma maior potência de volume e uma mais ampla resposta em
frequência, que as caixas de som do cinema possuíam em relação às da televisão, parecia
pouco para essa competição e o que verdadeiramente modificou a forma de trabalhar com o
som no cinema foi a possibilidade de utilizar mais de um canal de áudio. O sistema de
multipista, com 4 pistas, foi lançado nessa época do cinemascope mas só veio a se firmar no
mercado cinematográfico na década de 1970 (PACE, 2008).

Os multicanais trouxeram maior liberdade às restrições que as técnicas do


som mono impunham, além de proporcionarem maior flexibilidade à
mixagem, não tendo que acomodar todos os elementos auditivos em um
único canal. Além disso, o som pode passar de um canal a outro, fornecendo
movimento espacial não somente de aproximação ou de afastamento, coisa
que basta variar a intensidade dos sons, mas, também, de reespacialização
deste em relação aos personagens, e vice-versa (FLÔRES, 2008, p. 61).

O som estéreo nasce em decorrência do som multicanal. A partir do modelo Dolby


Stereo27 composto por três canais frontais, um posicionado na esquerda em relação à tela,
outro na direita e um central, e um canal envolvente (surround) com maior capacidade de
emitir os sons graves. Sistema esse que se tornou padrão na maioria das salas de cinema pois
também ajudava o caráter naturalista da reprodução cinematográfica, localizando melhor a
espacialidade da emissão do sons em telas tão grandes, diferente do som central mono (de
único canal) da televisão (PACE, 2008).

A forma de se construir uma sequencia cinematográfica foi modificada.

Métodos de gravação, reprodução e montagem se desenvolveram por conta das


novidades estéticas advindas do som multipista-estéreo. Como já comentamos, a
espacialidade dos acontecimentos em quadro, para além da relação perto-longe da
profundidade frontal, já presente no som sincrônico, o estéreo alarga o espaço horizontal do
quadro, localizando a origem do som e podendo acompanha-lo em seu movimento pela tela
durante a cena. Dessa forma também amplia as possibilidades estético-narrativas do uso do
som fora de quadro. Além disso, com o sistema multipista, os sons de ambientes (naturais
e/ou urbanos), juntos com os chamados ruídos passaram a frequentar mais o cinema.


27
O modelo estabelecido Dolby Stereo possui quarto canais, no entanto o efeito de escuta estéreo pode ser
alcançado com dois canais de emissão de sons (esquerdo e direito).
80

Como o cinema não é apenas um mostrador de sons e imagens, mas gera


também sensações rítmicas, dinâmicas, temporais, tácteis e cinéticas, que
usam indiferentemente os canais sonoro e visual, cada revolução técnica no
cinema conduz a um aumento da sensorialidade: sendo renovadas as
sensações de matéria, velocidade, movimento, espaço [...] (CHION, 2008, p.
120).

Mais possibilidades estéticas e narrativas a serem pensadas, mais canais de som para
serem trabalhados, o que consiste em uma demanda maior de trabalho que resulta na
consolidação da função de editor de som durante os anos 1960 e 1970 na Europa e EUA; no
Brasil, essa categoria profissional se estrutura na década de 1980 quando surge um grupo de
editoras de som formado por nomes como Dominique Paris e Virgínia Flôres. Antes disso o
som era trabalhado pelo montador(a) (ou assistente de montagem) (COSTA, Fernando, 2006).
A existência formal de editores de som nas equipes de realização do cinema brasileiro é um
fato importante para produzir um cinema com um maior detalhamento no trabalho dos
elementos sonoros, justamente na mesma época que o sistema de multicanais Dolby Stereo
desembarcava no Brasil, o que ocorreu em 1983 (FLÔRES, 2008).

Quase dez anos mais tarde, em 1992, é lançado um sistema de gravação e reprodução
de áudio digital. Dentre as vantagens resultantes da transição da edição em moviola para a
edição digital, o autor Fernando Morais da Costa destaca como as mais proveitosas o aumento
do número de pistas de áudio – pois o que no início da era dos multipistas eram quatro canais
agora passam a ser dezenas de canais –, assim como a forma de visualização digital dessas
pistas. A abertura e visualização em simultâneo de todas as pista no programa de edição de
som digital permite compreender melhor a montagem vertical dos sons proposta pelos
formalistas soviéticos. Um filme se desenvolve em um desenrolar horizontal da relação
imagem-tempo, e também som-tempo, no que diz respeito ao o que ocorre antes e o que
ocorre depois; a isso soma-se uma progressão vertical dos sons que ocorrem ao mesmo
tempo, ou em conjunto, melhor dito (COSTA, Fernando, 2006). Uma linha vertical que
carrega a ideia de composição, que, nas palavras de Eisenstein, tem o aspecto de uma partitura
orquestral “interligando todos os elementos da orquestra dentro de uma unidade de tempo
determinada” (EISENSTEIN, 2002b, p. 54), e que está fundamentalmente entrelaçada com a
linha horizontal, que por sua vez leva consigo a ideia de justaposição.

O professor norte-americano Rick Altman lembrava, em 1992, a importância


de ampliarem-se as discussões sobre som naquele momento inicial da
digitalização do cinema. O som estava assumindo a dianteira no processo de
inovação tecnológica, como já ocorrera na década de 1970 com o Dolby e o
81

inicio da história dos sistemas de reprodução multicanais; na passagem para


a gravação analógica portátil na virada da década de 1950 para 1960; na
própria passagem para o sonoro no fim da década de 1920, pontos de
mudança todos esses de importância inquestionável para o desenvolvimento
da indústria cinematográfica (COSTA, Fernando, 2006, p. 209).

O som digital também abriu caminho para a gravação e reprodução do modelo 5.1 de
áudio. Além do três canais frontais (esquerda-centro-direita) já existentes, são agregados mais
dois canais posicionados no lado oposto à tela (atrás do espectador) nas laterais esquerda e
direita. Cinco canais ao total e esse “.1” que foi como o canal surround passou a ser
representado. Inovação que ampliou a sensação de imersão no mundo fílmico uma vez que os
dispositivos emissores de som estão envolvendo, rodeando, cercando o espectador de cinema
(COSTA, Fernando, 2006).

Podemos associar o olho humano à uma lente grande angular que consegue enxergar
um pouco menos que 180º do que está a sua frente, enquanto o ouvido, por sua vez, é capaz
de escutar 360º, portanto o aumento do número de canais e de caixas de som distribuídas ao
redor do espectador permite ainda mais uma aproximação do cinema com as sensações
humanas vividas no mundo real. Ao mesmo tempo, alguns autores observam que o sistema
5.1 também possibilitou situações que seriam impossíveis de se experimentar na vida real,
pois passou a ser possível posicionar o espectador no centro da ação fílmica, pois se na
experiência auditiva de um concerto, não se pode sentar no meio da orquestra para que alguns
instrumentos toquem à frente, outros ao lado e outros atrás, na experiência do cinema isso sim
é possível (FLÔRES, 2008).

Um processo de evolução tecnológica “onde o domínio da técnica pelos que trabalham


diretamente com o áudio, tivesse favorecido o desenvolvimento do trabalho criativo e apurado
o gosto pela escolha das formas sonoras no audiovisual” (FLÔRES, 2008, p. 57). Um
processo que fez o trabalho do som no cinema ser encarado como algo que requer
conhecimentos específicos, pois para ter um bom som no filme se requer um bom técnico de
captação de som que saiba as melhores formas para se gravar áudio, e, além da técnica, é
preciso também capacidade criativa para que se possa construir um trabalho estético de som
que vá de encontro com o objetivo, a intencionalidade, os anseios, do(a) diretor(a).

Em sua tese de doutorado, Fernando Morais da Costa comenta as produções Cinemas,


aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005) e Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) pela
inclusão da figura dos pesquisadores musicais nas equipes desses filmes; o autor explica que
82

em Madame Satã o pesquisador musical trabalhou junto ao técnico de som direto, ao editor de
som, ao mixador e ao diretor musical para construir uma rebuscada atmosfera sonora da Lapa
carioca da década de 1930 (COSTA, Fernando, 2006).

Para o ato da fala, o filósofo Epicteto apontava como necessária uma tékhne, e ao
longo de seus pouco mais de cem anos de história, o cinema foi aprimorando a sua tékhne do
“falar” audiovisualmente assim como os espectadores foram adquirindo a empeiria
(habilidade conquistada) que o ato de escutar requer, culminando na aparição da figura do
“desenhista de som” (sound designer): um profissional que deve “conduzir a intermediação
entre os componentes sonoros do produto audiovisual e o espectador”28 (PACE, 2008, p. 53).

O papel do desenhista de som é justamente coordenar todo o processo de


concepção, captação e finalização sonora. Haveria, assim, na equipe alguém
responsável pelo som do filme em todos os seus momentos, em oposição à
pulverização habitual. Explica-se: demanda-se do fotógrafo, para fazer uma
analogia com os modos de produção da imagem, que ele esteja presente nas
reuniões iniciais, quando se discute a decupagem, os enquadramentos, as
lentes, o mapa de luz; durante a filmagem, evidentemente; na ponta final do
processo, quando da marcação de luz nos laboratórios de revelação, a fim de
garantir que o filme esteja exposto de acordo com os padrões previamente
definidos. Quanto aos caminhos do som, é comum que não haja pessoa
encarregada de verificar o processo inteiro. É desejável que o técnico de
som, ou mesmo o editor, esteja presente no início para acrescentar às
discussões da decupagem as necessidades do som, prever posicionamento
dos microfones e demais estratégias de captação, visitar as locações, e, tanto
quanto discutir a parte técnica, desenvolver o conceito sonoro do filme
(COSTA, Fernando, 2006, p. 245).

Um conceito de atmosfera sonora que começa a ser construído já na leitura do roteiro


pensando o som para o filme, pois além de servir para planejar questões técnicas de áudio
(equipamentos mais adequados, estratégias de captação etc.), esse pensamento prévio sobre o
som é também importante para decidir questões de produção, como os tipos dos matérias de
cena que serão utilizados durante as gravações. Definir na fase de pré-produção qual a
atmosfera sonora do filme ajuda a responder, por exemplo, se a cadeira a ser arrastada pela
personagem na cena será de madeira ou de metal, ou interferir na escolha de um tipo de tecido
menos ou mais ruidoso para o vestuário. Depois disso, o desenhista de som adaptará o
conceito de atmosfera sonora a todas as etapas da realização audiovisual; ele acompanhará as
gravações, a montagem e a finalização (pós-produção) de áudio.


28
“conducir la intermediación entre los componentes sonoros del producto audiovisual y el espectador”
(tradução nossa)
83

O comprometimento habitual das pessoas que estarão envolvidas com o som


muitas vezes se dá apenas nos períodos determinados da filmagem, da
edição, da mixagem. O técnico de som está, é evidente, presente durante as
filmagens, mas não mais. O editor de som não conhece o filme até este
chegar às suas mãos, depois da edição de imagem fechada. A criação sonora,
se não foi debatida desde o início, acontece na ilha de edição. A inserção do
desenhista de som traria à equipe uma pessoa capaz de executar um
planejamento técnico e estético claro desde o início. Esta discussão, porém,
não é simples. A criação de uma nova hierarquia entre os departamentos de
som não é consensual entre produtores, diretores, técnicos de som, editores.
De qualquer forma, tem havido tal penetração na produção brasileira recente
(COSTA, Fernando, 2006, p. 245).

Avanços tecnológicos, novidades estéticas, profissionalização da área que permitiram


que os ruídos fossem mais e melhor trabalhados. A abertura de múltiplas pistas de áudio e a
evolução técnica de microfones e caixas de som, mais eficientes para captar e reproduzir sons
que não apenas a voz humana, fizeram com que os ruídos fossem alçados a um novo estatuto
pelo cinema. A nível de esclarecimento, chamamos ruídos a todos os sons à exceção da
música e das vozes dos personagens. Michel Chion explica que o modo de se utilizar os
ruídos com a intenção de reforçar o naturalismo da imagem tem sido cada vez mais complexo.
Para que tudo pareça devidamente sonorizado na cena, os sons são exagerados – não apenas
em relação aos seus volumes mas também em suas texturas.

O som real parece ser insuficiente para a essência naturalista do cinema.

“O espectador vem sendo acostumado a achar que sons produzidos para serem
exagerados correspondem aos sons naturais” (COSTA, Fernando, 2006, p. 216). Ações que
geram sons que seriam quase imperceptíveis no mundo real, são percebidas no mundo fílmico.
Está aberto o caminho para o hiper-realismo sonoro no cinema, definido pelas palavras de
Fernando Morais da Costa como “o exagero da percepção travestido de plausível” (COSTA,
Fernando, 2006, p. 217). A busca por uma fidelidade ao som real atravessada pelo desejo de
impactar significativamente o espectador.

Em texto intitulado Raios e trovões: hiper-realismo e sound design no cinema


contemporâneo, Ivan Cappeller descreve a cena de uma árvore em meio a uma tempestade: “o
som ambiente de chuva que nos envolve parece sugerir uma sensação quase tátil de umidade”;
na imagem um galho em primeiro plano e “uma singela gota de água se abate sobre a folha –
acompanhada de um fortíssimo barulho de trovão. O efeito é desorientador”. Comentário esse
que nos faz recordar a terceira escuta de Barthes, a escuta pânico, que ocorre entre o alerta
sonoro e a interpretação do som emitido, que enlouquece os sentidos e desperta sentimentos.
84

Seguindo com a análise da cena, o autor acrescenta que “a hiperamplificação perceptiva do


objeto (neste caso: da folha, da gota, e da colisão de uma sobre a outra) confere-lhe, sem
prejuízo de seu caráter ilusório, um realismo de acuidade quase alucinatória” (CAPPELLER,
2008, p. 65). Se fundamentalmente o som no cinema confirmava a imagem por sua
verossimilhança com o real (pelas escutas causal e semântica), o mesmo parece agora querer
despertar sensações no espectador acionando o seu inconsciente através da escuta pânico.

O hiper-realismo sonoro admite a utilização de um outro tipo de som nos filmes; os


objetos sonoros não identificáveis, como o próprio termo já explicita, não correspondem à
uma relação de causa-consequência sonora conhecida, ou que possa ser reconhecida. Como
no caso abordado no começo deste capítulo em que uma imagem sonora não encontra o seu
respectivo par como imagem visual, instiga-se a curiosidade do espectador, deixando que a
subjetividade de cada pessoa complete ou estabeleça um sentido ao objeto sonoro não
identificável dentro de uma cena (FLÔRES, 2008).

Cavalcanti (1985), para quem o poder da imagem está na capacidade de


afirmação literal das coisas mostradas, constrói um pensamento sobre as
potências do som como sugestão, diverso daquele da imagem visual. Essa
fundamental diferença entre ver e ouvir é, para ele, responsável pelo caráter
sugestivo e emocional que os sons são capazes de oferecer ao espectador.
Especialmente quando se trata de sons não identificáveis com imagens
visualizadas na tela. Nesse caso, ele valoriza a qualidade que os ruídos têm
de serem indeterminados, de não sugerirem somente o que os originou
(FLÔRES, 2013, p. 47).

“Esses sons indeterminados falam diretamente às emoções”, recorrendo à memória


auditiva afetiva, concorda Virgínia Flôres com Alberto Cavalcanti, o qual ainda que o caráter
de sugestão do som é um artifício tão poderoso que o cinema não pode se limitar a ser um
meio unicamente expressivo de afirmação, e indica que para se alcançar fins poéticos e
dramáticos em filmes a exploração desses sons indeterminados são de grande contribuição
(além de suscitar emoções, colabora também motivando tesões através da criação de
expectativas, das quais falamos anteriormente neste capítulo) (FLÔRES, 2013, p. 47).

Parece então apropriado lembrar a afirmação de Chion, abordada no primeiro capítulo


deste trabalho, de que o cinema enquanto arte realista tem progredido por torções ao seu
caráter naturalista e por golpes de irrealismo, ilusórios. E é nesse movimento essencial de
busca pelo realismo, que o cinema recebe impulsos de características não realistas, chegando
a um hiper-realismo em que a reprodução se tornou “mais fiel à realidade do que a própria
realidade” (CAPPELLER, 2008, p. 66). É pelo caráter de invisibilidade do processo fílmico,
85

típico do ilusionismo audiovisual (e do cinema narrativo clássico) que essas novidades de


manipulação expressiva dos elementos sonoros potencializaram o “seu caráter mimético e
fantástico o mais abertamente possível - pois o espectador deve se convencer de que a
imitação atingiu o próprio auge”, não apenas de se equiparar à realidade mas de ultrapassá-la,
se tornando uma imitação/representação hiper-realista (CAPPELLER, 2008, p. 67).

“Daqui em diante a realidade lhe será sempre inferior” (ECO apud CAPPELLER,
2008, p. 67).

Uma opção estética bastante requisitada pelo cinema fantástico de ficção científica e
terror: “de West-world, de Michael Crichton (1971) a Matrix, dos irmãos Wachowsky (1998),
passamos do pavor provocado pelo falso - pela cópia artificial da realidade - à impossibilidade
total de diferenciação entre uma e outra” (CAPPELLER, 2008, p. 69).

Trata-se de uma arte sonora transgressora que desestabilizou as fronteiras entre o real
e o abstrato. Trata-se de ampliar o pensamento sobre o som no cinema como material artístico
a ser trabalhado para possibilitar distintas formas de associações que nutrem um cinema do
pensamento, das emoções, das sensações (FLÔRES, 2013). Apesar de comumente não
diferenciarmos o termo “sentir” ao se fazer referencia à sentimentos e sensações – dizemos
que sentimos saudade, assim como sentimos calor e sentimos que estamos caindo – o autor e
pesquisador Guilherme Maia de Jesus esclarece que, mesmo havendo uma interação mutua
entre estímulos sensoriais e sentimentais, o despertar de sentimentos nem sempre respondem
à estímulos sensoriais, mas se estabelecem por respostas cognitivas. “Assim, os sentimentos
de ódio e de indignação podem decorrer exclusivamente de informações, e o sentimento de
desespero tanto pode ser provocado por uma informação quanto pela sensação de afogamento,
por exemplo”. Portanto fica mais fácil perceber a diferença quando se relaciona as sensações
às respostas e impressões orgânicas do corpo humano, enquanto os sentimentos estão
relacionados com a “dimensão semântica das afeições, dos afetos, das emoções, das paixões,
dos estados de ânimo, ou seja, das delicias e dos tormentos derivados da nossa capacidade de
sentir amor, compaixão, ódio, [...] frustração, pesar ou mágoa, entre tantas outras coisas”
(JESUS, 2007, p. 109).

As evoluções tecnológicas na área do som, como sempre, tiveram


importantes influências na estética cinematográfica, pois abriram novas
possibilidades de usos e experimentações nesse campo. Com as mutações
sofridas pelas técnicas de gravação e reprodução de áudios analógicos para
digitais, o espetáculo cinematográfico passou, em grande parte, de um desejo
de representação naturalista-realista para uma estética hiper-realista, ou seja,
o representado tornou-se mais real do que o próprio real, mais detalhado e
86

mais perfeito do que o real. Ao empregarem sons com intensidades


desmedidas, ou deslocadas espacialmente da imagem visual, os cineastas
certamente estão buscando conseguir uma maior sinestesia, uma vivência
mais extrema dos sentidos no espectador, provocada pelo realce sonoro que
não afeta somente nossa audição, mas todo nosso corpo, que sofre com essa
supervalorização dos sons, provocando um contato físico mesmo, corporal,
como se fôssemos sacudidos pelos sons (FLÔRES, 2013, p. 122).

Uma abordagem do som no cinema não apenas com uma arte figurativa preocupada
com a verossimilhança, mas também como som que difere da informação visual, que convoca
o espectador a remexer a sua memória e que, com sua subjetividade, dá sentido a um som
exagerado e/ou irreconhecível. A busca agora é pelo sensitivo. Pois mais importante do que
saber o que o espectador viu e ouviu durante um filme, é saber o que ele sentiu.

Concluímos com isso, que se é possível verificar que os mundos produzidos por cada
filme têm estilos mais realista ou mais fantásticos através da estética fotográfica ou da edição
de um filme, “o uso do som também tem estilo, e suas escolhas podem ajudar na criação de
uma estética para um filme ou na análise de uma determinada estética de um filme. [...] dentro
do sistema criado em cada representação fílmica” (FLÔRES, 2013, p. 128).

3.2 . A AUDIOVISÃO

No audiovisual, a captação de sons e imagens são feitas em separado por suportes


(aparatos de gravação) diferentes e em alguns casos até em momentos diferentes; na
montagem, os trabalhos de edição das imagens e dos áudios, mesmo estando interligados,
acontecem em separado; e na exibição de um filme também, enquanto as imagens são
exibidas pelo projetor que ilumina a tela, os áudios são reproduzidos pelas caixas de som
espalhadas pela sala de cinema. Carregadas de características particulares, imagem e som são
as matérias-primas do audiovisual, como o próprio nome já contempla.

Durante a realização de um filme (incluindo a pós-produção), imagem e som são


trabalhados para “figurar como materiais de reprodução”; e durante a projeção de um filme
esses materiais de reprodução passam a ser “materiais de interação com o imaginário do
espectador”, de modo que a forma como esses materiais são articulados é que formarão as
características específicas da obra audiovisual, de um mundo fílmico (FLÔRES, 2013, p. 9);
87

lembrando a ideia de Münsterberg de que um filme não existe na película e tampouco na tela,
mas apenas na capacidade humana de processar mentalmente as informações audiovisuais.

Aquilo que Virgínia Florês chama de “tecido sonoro de um filme”, e que temos
chamado de atmosfera sonora, é o resultado de uma maneira particular de como um cineasta,
um desenhista de som e toda uma equipe, pensam e sentem o mundo que está sendo criado, a
partir de escolhas técnico-estéticas que melhor possam representá-lo. Na projeção, durante a
imersão no mundo fílmico, essa atmosfera sonora é sentida pelo espectador através de suas
escutas que, mesmo sem se dar conta (caráter pathetikós da escuta), realiza a analise e a
identificação dos elementos que compõem essa atmosfera (FLÔRES, 2013).

O reconhecimento da relação de interdependência entre os termos metafóricos mundo


fílmico e atmosfera sonora – um mundo só pode ser habitável contendo uma atmosfera e que
para que haja uma atmosfera é preciso que esta pertença a algum mundo –, facilita a
compreensão de que a percepção sonora de um filme será influenciada pela imagens, assim
como aquilo que escutamos modifica a forma como vemos. Portanto sons e imagens terão
sempre uma relação, seja de concordância ou de confrontação, em que o visual e o sonoro
firmam o que Michel Chion classificou de contrato audiovisual. Mesmo sabendo que são
elementos de características diferentes e que ocupam suportes em separado, no cinema é
impossível a dissociação entre imagem e som – não parece ser a toa que se utilize uma
palavra única originária da junção de duas palavras diferentes: áudio-visual –; para o autor
francês, a parte sonora e a parte visual se relacionam de maneira direta, indireta ou criando
relações e sentidos inexistentes em uma apreciação de cada um desses dois elementos em
separado. “O sentido que nasce desse novo arranjo instaurado entre elementos estranhos
(imagem visual e imagem sonora) não é de redução ou mesmo de absorção de um elemento
pelo outro, [...] mas de alteração recíproca” (CHION, 2011; FLÔRES, 2013, p. 112; JESUS,
2007).

Uma interação mutua entre som e imagem, que teve particular contribuição do
sincronismo, possibilitando a criação de diversas combinações entre imagem e som pois,
sendo projetados em simultâneo, o espectador se encarrega de associar o que ouviu ao que
viu, e vice-versa; o espectador pensa então que o grito sai da boca do personagem e não da
caixa de som, por exemplo. O fenômeno da síncrese, termo empregado por Chion, é o
momento em que imagem e som se juntam, se fundem na cabeça do espectador, que percebe o
que há de sincrônico entre os sinais auditivos e visuais emitidos ao mesmo tempo por
aparelhos de reprodução diferentes. E se a síncrese é de suma importância para a
88

compreensão de uma cena fílmica, a separação entre imagem e som, própria da mecânica
cinematográfica, é o que possibilita a criatividade e a riqueza dos procedimentos manipulação
desses dois, criando os mais variados resultados estéticos nessa relação audiovisual (CHION,
2011; FLÔRES, 2013).

Vale retomar aqui o conceito de tran-sensorialidade, definido por Chion e abordado


no primeiro capítulo deste trabalho, para compreender que essa relação entre som e imagem
não se limita apenas aos sentidos da audição e da visão, indo mais além e se tratando de
influências mutuas entre os cinco sentidos. Está claro que algumas características e
informações são exclusivamente auditivas e outras unicamente visuais (timbre – cor),
entretanto Chion leva em consideração as informações que os sentidos humanos
compartilham, trocam entre si, uma tradução de um sentido à outro – por exemplo, os ruídos
de passos em um gramado: sensação de ordem auditiva que é traduzida pelo sentido do tato,
permitindo ter a sensação do tipo de terreno no qual se está caminhando. O autor então
conclui que “quando sensações cinéticas artisticamente organizadas são transmitidas por um
único canal sensorial, podem traduzir através desse único canal os outros sentidos ao mesmo
tempo” (CHION, 2011, p. 109).

Confirma-se então o caráter sinestésico do cinema.

Segundo Guilherme Maia de Jesus, um filme é um compósito, formado por estímulos


provenientes de conhecimentos de diversas áreas como as “técnicas narrativas, vozes
enunciativas, roteiro, encenação, iluminação, fotografia, enquadramentos, movimentos de
câmera, montagem, música, vozes, ruídos etc.”; componentes esses que uma vez relacionados
são percebidos como objeto unificado pelo espectador. (JESUS, 2007, p. 133) No que diz
respeito à parte sonora, por seu lado, esta contribui com certas informações para a construção
do filme como um todo, o que foi definido por Chion como o valor acrescentado pelo som ao
filme. Um acréscimo que pode ter caráter expressivo, narrativo, dramático, sensorial ou
semântico; que enriquece a imagem com qualidades não visuais, produzindo assim um
sentido novo, de objeto unificado, que pode não ser percebido pelo sentido da visão ou da
audição isoladamente, mas sim através da trans-sensorialidade e por conta do contrato
audiovisual que nos permitem falar em uma “audiovisão” (CHION, 2011; FLÔRES, 2013).

É fácil compreender a proposição de Chion, observando que, se a uma cena


de um casal que se beija suavemente é sincronizada uma música suave, em
tonalidade maior, o “audioespectador” tende a perceber uma situação de
encantamento amoroso. Se a música for lenta, em tonalidade menor, a cena
tenderá a ser percebida como um momento triste que pode significar “o
último beijo”, por exemplo. No caso da aplicação à cena de uma música com
89

um altíssimo grau de dissonâncias, a sensação dos conflitos entre as


frequências do tecido musical induzirá a plateia a experimentar uma
impressão de que o casal, ou um dos dois, está em perigo. Já a audição de
uma bossa nova pode sugerir, pela via do acionamento do repertório cultural,
que os personagens são brasileiros ou que a história se passa no Rio de
Janeiro, por exemplo (JESUS, 2007, p. 130).

O tema das convenções e signos culturais sonoros que influenciam a percepção de um


filme tem sido tratado de forma recorrente ao longo deste trabalho, quando introduzimos no
primeiro capítulo as considerações de Chion explicando que a percepção de uma “audiovisão"
não é um fenômeno puramente físico mas também com base num repertório cultural; quando
trouxemos o exemplo pós-colonial da interpretação dos gritos dos “peles-vermelhas” no qual,
enquanto para um grupo estes gritos significavam expansão, para o outro grupo, significavam
contração; e agora quando acrescentamos o caráter afetivo da memória auditiva, onde
aspectos pessoais e culturais estão juntos, conectados e se influenciando, quando um estimulo
sonoro acessa a memória (consciente ou inconsciente) podendo despertar alegria ou tristeza a
depender do repertório cultural (uma bossa nova pode acionar a nostalgia de um belo romance
de verão vivido no Rio de Janeiro, ou um lamento por um conturbado romance de verão que
não deu certo no Rio de Janeiro – continuando o exemplo de Guilherme Maia de Jesus).

Não é preciso investigar muito para concluir que o papel dominante da


música de O iluminado de Kubrick é a produção da expectativa e do medo
no espectador. Já́ se pensarmos na associação do “Danúbio Azul” de Johann
Strauss em 2001 Uma odisseia no espaço, do mesmo diretor, fica claro que
aqui o analista tem que descer a camadas muito mais profundas do filme
para descobrir o veio de sentido, e, ainda assim, corre o risco de voltar à
superfície de mãos abanando ou com um punhado de hipóteses e nenhuma
certeza (JESUS, 2007, p. 133-134).

A autora Virgínia Florês também endossa essa ideia do som como matéria moldável,
que pode evocar uma imensa diversidade de significados, um “poderoso alimento da
memória, que influencia diretamente a percepção de cada indivíduo” (FLÔRES, 2013, p. 83).
E complementa esse pensamento abordando o caráter diverso e subjetivo que podem alcançar
as interpretações particulares surgidas a partir da apreciação de uma obra cinematográfica;
afirma ela, que a recepção audiovisual de um filme “é vivência, habita o plano do
pensamento, do imaginário, participa de uma subjetividade, portanto, da percepção de cada
um” (FLÔRES, 2013, p. 82).

Cada som é o resultado de processos interpretativos variados e complexos,


largamente dependente do contexto no qual a ou as ocorrências acústicas
90

correspondentes se fazem entender, da aptidão do auditor em analisar esse


contexto e da intenção de escuta que o anima. [...] O sonoro não é, portanto,
constituído somente de elementos audíveis, mas se enriquece de todos os
parâmetros acústicos virtuais que um espectador está pronto para deduzir a
partir de uma situação diegética dada (CAMPAN apud FLÔRES, 2013, p.
84).

Veronique Campan fala dos processos interpretativos do som e nos remete aos
processos de identificação do espectador no cinema que abordamos no capítulo 2.2 através
das ideias do autor Jacques Aumont. O som implica processos de interpretação que envolvem
questões subjetivas do espectador e outras particulares ao som, e ao som dentro da cena e da
narrativa fílmica como um todo. Portanto, de acordo com esses autores, cada espectador
ocupará a sua posição-de-sujeito de acordo com a situação fílmica apresentada e suas
experiências pessoais, e cada espectador interpretará cada som de acordo com a situação
fílmica em que este som está colocado e com as suas experiências pessoais.

Dito isso e com este conjunto de ideias sobre a mesa, partiremos então para uma
análise dos filmes selecionados por este trabalho. Seguindo os pensamentos de Chion (2011),
de que som e imagem devem ser analisados em sua estrutura relacional, perguntaremos quais
os valores que o som acrescenta a esses dois filmes, quais as características de suas
atmosferas sonoras. E nessa observação ativa de cada um dos mundos fílmicos optamos por
utilizar o método proposto por esse mesmo autor francês, que sugere um modelo de “análise
audiovisual”.

3.3 . ANÁLISE AUDIOVISUAL

Que vejo? Que ouço? São perguntas sérias, e


formulá-las é um exercício de renovação e de
liberdade da nossa relação com o mundo.
Michel Chion (A Audiovisão, 2011, p. 145)

Geralmente, nos estudos de cinema, estamos acostumados a nos encontrar com o


método de análise fílmica, que consiste em decompor os elementos constitutivos do filme em
questão. Uma atividade de destacar materiais que não se percebem isoladamente em uma
experiência fílmica descompromissada, “pois se é tomado pela totalidade” (VANOYE;
GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 15). O analista observa de modo ativo e examina técnica, estética e
91

simbolicamente o filme. “Analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história.
E, se considerarmos o cinema com arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas”
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 23); atividade essa que de alguma forma foi realizada
na contextualização dos mundos fílmicos de Barravento (Glauber Rocha, 1962) e Besouro
(João Tikhomiroff, 2009) durante o item 1.2 deste trabalho.

Alinhado com a proposta da análise fílmica, Michel Chion sugere, no entanto, uma
atenção e um aprofundamento analítico maior sobre as possíveis dimensões que o som pode
acrescentar à imagem. O autor dedica um capítulo ao método que chamou de “análise
audiovisual”, explicando que essa “tem o objetivo de perceber a lógica de um filme ou de
uma sequência na sua utilização do som combinado com a imagem” e complementa – antes
de passar à descrição dos procedimentos metodológicos particulares de uma análise
audiovisual – que não se trata de uma análise de entidades, como “o plano”, “a imagem”, “o
movimento”, mas de efeitos (CHION, 2011, p. 145). Outra vez, mais do que se perguntar o
que viu e o que ouviu, o analista se questiona o que sentiu.

Sobre como proceder em uma análise audiovisual, Chion sugere que uma mesma
sequência fílmica seja assistida repetidas vezes, mas de modos distintos: “observando-a ora
com som e imagem juntos, ora mascarando a imagem ora cortando o som”. Um esforço em
separar imagem e som para poder perceber “o som tal como é, e não como é transformado e
mascarado pela imagem; e de ver a imagem tal como é, e não como é recriada pelo som”.
Essas múltiplas apreciações foram intituladas como “método das máscaras” pelo autor
(CHION, 2011, p. 146).

O que temos chamado de atmosferas sonoras, são construídas tecnicamente na parte


específica que diz respeito ao som, a banda sonora, que usualmente é dividida em três
subgrupos: diálogos, ruídos e música. Um analista audiovisual deve examinar como essas três
categorias da banda sonora se comportam e se relacionam entre si e com o filme; e além
disso, identificar, se há e qual é, o subgrupo mais destacado, o dominante, na apreciação de
uma sequência fílmica. Também é considerado importante por Chion, a observação de pontos
chave de síncrese, com o objetivo de perceber os efeitos que podem emanar do sincronismo
entre som e imagem em uma cena específica (CHION, 2011).

Ao se analisar audiovisualmente uma sequência de um filme “é interessante comparar


o som e a imagem numa mesma questão de representação, nas suas formas respectivas de se
situarem relativamente a um mesmo critério, que pode ser aplicado tanto a um como à outra”
(CHION, 2011, p. 148). Nesse caso o autor se refere a uma concordância ou discrepância
92

entre a “imagem sonora” e a “imagem visual”, o que serve de suporte para entender o papel
figurativo e narrativo de cada uma dessas “imagens” na sequência em análise. E para isso,
aplicando o método das máscaras, perguntar “o que vejo daquilo que ouço” e “o que ouço
daquilo que vejo” (CHION, 2011, p. 150); e como isso contribui narrativamente para o filme.

A partir da contextualização e análise fílmica dos longas-metragens selecionados por


este trabalho, traçamos um recorte de temas que consideramos como pilares dos mundos
fílmicos de Barravento (Glauber Rocha, 1962) e Besouro (João Tikhomiroff, 2009) e,
portanto, também de suas respectivas atmosferas sonoras: as influências do cinema
neorrealista e do cinema fantástico presentes nos filmes; as representações religiosas nas
tramas; o que significa a violência e como é utilizada em cada um dos longas; e um mergulho
pelas trilhas sonoras dos filmes. Para ilustrar esses temas, algumas sequências dos filmes
foram escolhidas e terão as suas atmosferas sonoras analisadas de acordo com os
procedimentos propostos por Chion para uma análise audiovisual.

3.3.1 . DO NEO AO HIPER-REALISMO

Abrimos este trabalho abordando os pensamentos de teóricos realistas e formalistas no


que diz respeito à relação entre a realidade e o cinema (o real e o reproduzido). De um lado a
defesa de se usar a realidade como matéria-prima para criar uma reprodução naturalista do
mundo, enquanto que do outro lado, os formalistas pregavam a liberdade criativa, uma vez
que a reprodução do real tal como ele é se mostra impossível (por razões já tratadas como as
limitações do cinema, as mediações e intencionalidades de seus realizadores). Dentro deste
tema, abordamos também o fato de o som ter ampliado as possibilidades de combinações na
linguagem cinematográfica: os realistas ganharam mais uma ferramenta de captura do real,
dos sons do mundo real, e os formalistas adquiriram mais um elemento para uma construção
estética audiovisual.

Os dois filmes em análise são compostos por uma série de escolhas estéticas
cinematográficas, elencadas na contextualização dos seus mundos fílmicos (capítulo 1.2), que
nos permite observar importantes influências do neorrealismo italiano no longa-metragem
Barravento (Glauber Rocha, 1962) e do cinema fantástico hollywoodiano em Besouro (João
93

Tikhomiroff, 2009). Um Glauber 29 , que sem abandonar sua admiração pelo formalista
Eisenstein, revelou ter realizado Barravento sob o impacto da estética neorrealista e sua
possibilidade de adaptação à eztetyka da fome brasileira. Um Tikhomiroff30 com o estilo
audiovisual da publicidade na bagagem, junto com a vontade de contar a história de um negro
brasileiro subalternizado que, pela estética do estilhaço típica dos blockbusters, será
transformado em super-herói. Características essas que ficam explicitas já nas sequências de
abertura de cada uma das obras fílmicas.

Os letreiros iniciais explicam que Barravento (1962) foi gravado numa aldeia de
pescadores em uma praia na Bahia, que “os personagens apresentados neste filme não tem
relação com pessoas vivas ou mortas e isto será apenas mera coincidência”, mas que “os fatos
contudo existem”; e nas últimas linhas agradecem e dedicam o filme aos pescadores (o que
também acontece em A Terra Treme, 1948, do neorrealista italiano Visconti). Após esse
texto, vemos então as três primeiras imagens do filme em justaposição: o céu, o mar e um
homem tocando atabaque em um ambiente fechado por paredes de palha. Nos últimos
segundos em que os letreiros estão na tela, o primeiro som que se escuta é a voz de uma
mulher cantando em idioma de origem africano acompanhada por um chocalho de metal,
pouco depois, sob a canção que continua, o barulho do mar é escutado por uns segundo até
que entra um atabaque de acompanhamento para a canção. Pela aplicação do método de
máscaras, percebemos que a música é o elemento dominante na banda sonora nesta sequência;
é o que costura as imagens justapostas, operando como trilha sonora não diegética durante a
exibição das imagens do céu e do mar, mas que passa a ser diegética quando a imagem do
homem tocando atabaque entra simultaneamente ao som do toque do atabaque que
acompanha a cantora. Um ponto de sincronização em que “imagem sonora” e “imagem
visual” coincidem, e que permite uma análise narrativa a partir da assimilação de que aquela é
a música que tocam e cantam as pessoas que vivem naquele lugar onde se passará a história
que acaba de começar; e ainda, de acordo com as informações previamente fornecidas nos
letreiros iniciais, e recorrendo a um repertório cultural, podemos identificar que se trata de
uma música religiosa do candomblé, do qual, portanto, os pescadores dali são adeptos.


29
Por um entendimento de cinema enquanto atividade construtiva coletiva, quando me refiro neste capítulo a
Glauber Rocha e a João Tikhomiroff (diretores dos filmes em análise), estarei incluindo também à equipe de
realizadores que participaram dos filmes.
30
Por um entendimento de cinema enquanto atividade construtiva coletiva, quando me refiro neste capítulo a
Glauber Rocha e a João Tikhomiroff (diretores dos filmes em análise), estarei incluindo também à equipe de
realizadores que participaram dos filmes.
94

A música segue enquanto aparecem os créditos dos realizadores do longa. De repente


um corte seco na canção e começa outra música, também do candomblé. O corte sonoro
corresponde imageticamente à aparição do nome do filme na tela: Barravento – que os
letreiros nos haviam antecipado significar um momento de mudanças, assim como na
mudança súbita da música que anuncia o título do longa-metragem. Outros corte bruscos se
seguem na escuta do filme, agora a música é de capoeira, em outro momento uma canto
autóctone, de pescadores, em que uma pessoa canta e um coro responde, e a esse cântico
também se soma o ruído do mar.

Depois das gravuras do artista baiano Calazans Neto que acompanham os créditos dos
realizadores do filme, o plano aberto de uma praia nos mostra um grupo de pessoas puxando
uma rede do mar; corte na imagem e vamos para uma outra parte da praia em que um homem
caminha solitário com seu remo e chapéu de palha; outra mudança na imagem, e pelas pedras
um homem com seu paletó branco salta para a areia e se aproxima da câmera. Antagonistas. A
música divide a atenção do espectador com o som do mar mas continua sendo dominante.
Para o Mestre com o remo na mão, uma canção praieira de melodia leve e voz grave; para
Firmino de paletó branco, toda a malicia e o gingado de uma música de capoeira. Uma
associação entre imagens e sons que já dá dicas sobre a personalidade desses dois
personagens.

Corte seco na imagem, corte seco no som, e se escuta outra música cantada e
acompanhada por um atabaque, o som do mar está mais alto. A câmera agora está mais
próxima aos puxadores de rede. Um homem toca atabaque na beira do mar; homens e
meninos puxam a rede na mesma cadência dos toques do atabaque, seus pés marcam o ritmo e
seus troncos dançam enquanto fazem força para puxar a rede. Nesse momento a música, que
na apresentação dos antagonistas era utilizada como elemento não diegético, volta a ser usada
como trilha diegética pelos movimentos sincrônicos do atabaque e dos corpos dos puxadores
de rede entregando mais realismo à cena, e mostrando o quão trabalhoso é conseguir o peixe
que é o sustento daquela vila de pescadores.

Em texto sobre as funções do som no cinema, Fernando Morais da Costa recorre ao


autor Robert Stam para apontar que as convenções do realismo dramático nos acostumaram a
que toda imagem deve ser acompanhada pelos sons naturais que seriam gerados numa mesma
situação na vida real; dessa forma, o som, juntamente com a imagem, amplia o poder
mimético do cinema. Especificamente sobre a música, Costa faz referência ao trabalho da
autora Claudia Gorbman para constatar que a música “seria ainda invisível na tela, ou seja, na
95

maior parte das vezes não há referência na imagem de onde afinal vem a música, sem que o
espectador preocupe-se com isso. Esta talvez seja a maior vitória da construção naturalista do
som no cinema”, fazendo alusão à música não diegética, que não pertence nem ao quadro e
nem ao fora-de-quadro da cena em questão – o que a distancia do caráter naturalista, mas que
como convenção utilizada desde o princípio no cinema, é aceita pelo espectador. “Afinal,
todos os outros elementos sonoros, vozes, ruídos, estão diretamente ligados ao que se vê”
(COSTA, Fernando, 2008a, p. 16).

No outro filme em análise, durante a apresentação dos produtores e patrocinadores de


Besouro (2009) já começamos a escutar os sons de uma floresta que suavemente vai
crescendo de volume, com destaque para os ruídos dos insetos e em especial ao som particular
de um inseto, que pela trans-sensorialidade deduzimos que bate suas asas com uma grande
velocidade. Essas asas velozes puderam ser descoladas dos outros sons que compõem esse
ambiente e trabalhadas por separado em um canal de áudio particular por conta das
possibilidades do sistema sonoro de multicanais (do qual a equipe de Barravento, 1962, não
pôde usufruir porque esse sistema ainda não existia), e também em razão disso, este inseto de
asas rápidas se desloca, repetidas vezes, de um lado para o outro explorando a espacialidade
do som estéreo. Quando a tela escura se ilumina e confirma que se trata de uma floresta, o
diálogo entre o menino Manuel e Mestre Alípio começa e os ruídos do ambiente vão para
segundo plano.

Mestre Alípio ensina que Manuel deve ter orgulho de si próprio:

“Preto meu filho, é pra vida inteira; preto com muito orgulho de sua cor e não deixar
ninguém fazer pouco de você”. Um inseto distrai o garoto que caminha até o arbusto, o mestre
não hesita e emenda: “Ninguém dá conta que esse cascudo voa. É pesado e tem as assas
fininhas. Até a ciência jura que esse besouro não voa, mas... olha que maravilha...”31. Até aqui
os sons dessa sequência tem aspectos naturalistas, cada passo do menino sobre as folhas das
árvores caídas no chão soam neste mundo fílmico como soariam se ocorressem no mundo
real, mas... escuta que maravilha... Quando Mestre Alípio provoca o voo do besouro e, além
de bater as suas asas velozes, do qual já conhecemos a sua respectiva “imagem sonora”, é
adicionado também um U.S.O. – do inglês Unidentified Sound Object32 – (FLÔRES, 2013).
Um Objeto Sonoro não Identificado, cujas fontes que originam o som não podem ser
interpretadas pela escuta semântica; um signo indeterminado, ou aberto, que convoca a


31
Falas extraídas do filme Besouro (2009)
32
Objeto Sonoro não Identificado (tradução nossa)
96

atenção e a curiosidade do espectador; sons que beiram o abstrato mas que despertam
sensações. O que se escuta é uma espécie de chocalho ao qual lhe é aplicado um efeito de
reverberação, que acompanha o besouro em seu voo pela floresta, e quando perdemos contato
visual com o inseto, ouvimos um som metálico em crescente ao qual vão se incluindo
trêmulos de sonoridades mais graves junto ao som das asas que aumentam e diminuem de
volume. Um compósito de objetos sonoros não identificados, que aproveitando-se do caráter
sugestivo do som, não mostra mas dá a ideia de que há algo de mágico, algo de fantástico
nessa história que se inicia.

No início dessa sequência, em que os pontos de sincronia entre os movimentos


internos à imagem têm a sua correspondência com os sons provocados, atesta-se o caráter
crível da cena. Deste modo, podemos dizer que chegamos até esse ponto do filme em sintonia
com uma representação naturalista do som, mas a partir do momento em que o besouro voa na
frente dos dois personagens, passamos do realismo para o hiper-realismo sonoro.

A câmera se torna subjetiva e assume o ponto de vista do inseto, e num “piscar” do


voador já não estamos mais na floresta, passamos por cima de um telhado e sobrevoamos a
feira da cidade. Dendê, aipim, jarros de barro, e uma mulher que balança a mão na frente da
câmera espantando o besouro-câmera que a incomoda. Por detrás de um muro, um bananal; a
câmera subjetiva voa por entre as árvores e seus frutos; quando se aproxima de uma folha de
bananeira visualizamos a sombra do besouro como se fosse pousar ali, mas rapidamente o
contorno do inseto se transforma na silhueta de um homem, que por uma transição imagética
sem corte nos leva para fora do bananal; um movimento de câmera deixa a sombra e enquadra
em primeiro plano o herói. Corte seco, título do filme e letreiros iniciais.

Os objetos sonoros não identificados, esses trêmulos com reverberação, permeiam


todo o sobrevoo do inseto; são esses os ruídos que dominam a sequência. Muitos outros sons
também contribuem na construção dessa atmosfera sonora hiper-realista mas não tem o
mesmo destaque que os U.S.O. - galinhas cacarejam, um cavalo relincha, um bode ou uma
cabra, as vozes humanas presentes na feira, e claro, o som das asas velozes do besouro.
Quando a voz off de Mestre Alípio entra, os sons que persistem são os dos objetos sonoros
não identificados e as asas do besouro, entretanto, começa-se a escutar uma corda de guitarra
com distorção que vai subindo de volume. Desmascarando a imagem, a chegada no bananal
coincide com a chegada da guitarra e quando a voz off anuncia que Manuel a partir de agora é
Besouro – um segundo de silêncio – e estoura o rock’n roll que a guitarra prenunciava.
97

Analisando narrativamente o que se vê e o que se escuta na abertura desse longa-


metragem, percebemos que o filme nos contará a história de um sujeito subjugado que será
capaz de realizar feitos que desafiam a ciência, a natureza, o discurso hegemônico imposto;
assim como na explicação inicial do Mestre sobre o besouro – de corpo pesado e asas
pequenas, mas que podia voar contrariando as teorias científicas.

Em obras cinematográficas do subgênero filmes-fantásticos, conforme vimos


anteriormente neste trabalho, uma característica marcante é o desafio das leis da natureza,
como a lei da gravidade por exemplo, o que normalmente carrega uma justificativa de cunho
científico/tecnológico (bastante requerida em filmes de ficção científica) ou religioso com o
objetivo de tornarem os atos fantásticos mais críveis ao espectador. Em Besouro (2009), esse
desafio às premissas naturalistas acontece primeiro pela escuta dos objetos sonoros não
identificados, com os quais se abrem as possibilidades estéticas desse filme-fantástico a ponto
de permitir que se assuma a visão subjetiva de um inseto, e até mesmo que se voe; algo que
em seguida, no transcorrer da trama do filme (e deste trabalho), se justificará pela via da
religião.

3.3.2 . RELIGIÃO

Depois de estar a beira da morte, Besouro passa por um transe onírico no qual recebe a
benção dos Orixás do candomblé, e desperta na casa de sua mãe de santo. “Sonhei com o
Mestre” diz ele ainda zonzo. “Ele falava de uma missão... de Ogum...”; Besouro se senta e a
mãe de santo se aproxima, mostra-lhe um colar de metal e diz ao rapaz: “esta é a sua proteção,
foi dormido aos pés de Ogum” passa-lhe o colar pela cabeça e sentencia: “seu corpo está
fechado”. Besouro sai da casa e caminha decidido.

Durante o desenrolar dessa cena, enquanto Besouro e a mãe de santo conversavam


dentro de sua casa, uma série de outras imagens são inseridas como lapsos de lembranças que
Besouro estava tendo por conta do sonho delirante que acabara de ter. Uma arma sendo
engatilhada por uma mão branca. Volta pra casa onde estão os dois personagens. Ele mesmo,
Besouro correndo sobre um rio. Segue a cena na casa. Besouro deitado numa pedra e um
Orixá refletido na água. Essas inserções imagéticas que não pertenciam ao ambiente da cena
central são sempre acompanhadas por objetos sonoros não identificados.
98

Não idênticos aos da abertura do filme, mas com as mesmas características sonoras do
que se parece a um arrastar metálico rápido com reverberação, junto com um aparente soprar
do vento com suas frequências modificadas, valorizando as mais baixas para soem os graves
dos autofalantes e se tenha a sensação de tremor nas caixas de som e no corpo do espectador.
Se na abertura assistimos à transformação do menino em homem, agora presenciamos a sua
transformação em herói. Uma utilização estrutural dos objetos sonoros não identificados no
que diz respeito a momentos chave da narrativa.

Na cena central dentro da casa da mãe de santo, os únicos sons além do diálogo entre
os personagens, são os ruídos de uma floresta que acompanham a cena em segundo plano, e
indicam o ambiente onde a casa da mãe de santo está localizada. No entanto, quando Besouro
cita a Ogum, um toque de atabaque se inicia em baixo volume, mas vai se tornando cada vez
mais perceptível no decorrer do ritual em que a mãe de santo fecha o corpo de Besouro,
evocando os poderes e a proteção dos Orixás. Na parte essencialmente sonora dessa cena, o
toque dos atabaques são os elementos que estabelecem contato com o espiritualismo do
candomblé, são os únicos sons não diegéticos da cena, os outros sons dessa atmosfera sonora
são representações naturalistas do que acontece em quadro e o som ambiente de floresta fora
de quadro. Os atabaques do candomblé são um chamamento ao sagrado. E quando o homem
se entende como herói protegido por Ogum, os atabaques são substituídos pelo som mais
denso das alfaias (tambores de maracatu), aos que se somam as cordas de uma guitarra, e o
mesmo rock da abertura do filme incentiva agora Besouro a realizar sua missão.

Michel Chion, em seu livro A Audiovisão (2011), explica modos de utilização do que
chamou de sons “acusmáticos” em uma obra fílmica – termo que emprega fazendo referência
à escuta acusmática teorizada por Pierre Schaffer como “o que ouvimos sem ver a causa
originária do som” (CHION, 2011, p. 61), enquanto que ao seu contrário, quando se escuta e
se vê a causa do som, intitulou-se escuta visualizada. Chion discorre sobre duas formas de
utilizar sons que não podemos ver na tela. O diretor do filme, junto com o montador e o
desenhista de som podem optar por primeiro provocar uma escuta visualizada e depois a
acusmática, de modo que será através da audição que se irá recuperar na memória a causa
originária daquele som. Uma outra opção é aplicar a escuta acusmática primeiro e só em um
momento estratégico da trama revelar na imagem a causa daquele som, conservando um
segredo com a intenção de gerar tensão, expectativa. Chion recorda que o som acusmático
pode funcionar como um “processo dramatúrgico análogo a uma entrada em cena” (CHION,
2011, p. 61).
99

Importante diferenciar os objetos sonoros não identificados dos sons acusmáticos. No


caso desses últimos, em algum momento vamos conhecer o que causa aquele som, e por outro
lado, não parece fazer parte dos objetivos dos USOs que sejam reconhecidas as causas que
originam esses sons e assim passem a ser identificados, mas justamente o contrário, a
finalidade dos sons não identificados parece ser abrir à múltiplas identificações (associações,
interpretações) a partir de signos sonoros abertos. Os sons das asas velozes do besouro na
abertura do filme é um bom exemplo de escuta visualizada que no futuro será utilizada como
acusmática sugerindo a entrada em cena de Besouro.

O herói tem o corpo fechado, é um capoeirista ágil e pode ate voar. A lenda sobre
Besouro corre pelas bocas e ouvidos da cidade. Os capangas do coronel também escutam. Em
uma cena de perseguição típica dos filmes de herói e aventura do cinema hollywoodiano, os
capangas do coronel caçam Besouro no meio de um bananal. Acredita-se que o capoeirista
tem o poder de se transformar em bananeira e por isso os homens golpeiam as árvores com
seus facões. Besouro se esconde e aplica uma armadilha à um dos capangas que acaba morto
pelas balas da própria Casa Grande. O chefe dos capangas se enfurece por seu funcionário se
deixar enganar. O bando de perseguidores se divide. O chefe fica sozinho. Nesse momento o
som acusmático das asas do inseto junto a objetos sonoros não identificados entram em cena.
O chefe dos capangas gira a cabeça para outra direção, convocado pelo som (estéreo), e se
depara com o vulto de um homem que voa por cima das bananeiras. Sons acusmáticos e
USOs utilizados na concretização do processo de construção do mito do herói, quando seus
oponentes e o espectador podem presenciar alguns de seus poderes e proezas de super-herói.

Trocamos de mundo fílmico e, em Barravento (1962), nos deparamos com uma cena
romântica na praia em que Firmino e Cota se beijam. A câmera se aproxima devagar do casal
e o rapaz se levanta incomodado, entretanto, a moça move os lábios como quem diz palavras
tranquilizadoras, e então voltam a beijar-se apaixonadamente. Essa leitura é feita a partir do
mascaramento do som do filme, portanto uma análise apenas das imagens dessa sequência.
Invertendo essas máscaras e apenas apreciando o som, percebemos um dueto de atabaque e
agogô, ao qual em determinado momento são agregados outros instrumentos (os atabaques
rum, rumpi e lé, e outro agogô) em ritmo acelerado e com seus volumes superiores à música
até então executada pelo dueto. Uma música própria dos terreiros de candomblé que
funcionam como trilha sonora dessa cena romântica, interrompida com corte seco (sem o
desaparecimento gradual da música habitual do cinema clássico) para que se escute o beijo
apaixonado. Mas assistindo às bandas visual e sonora em simultâneo, percebemos que o que
100

deixa Firmino inquieto e o faz levantar dos braços do seu par amoroso é o som da música do
terreiro, quando essa muda de volume e de ritmo; e ainda mais importante nessa apreciação da
imagem e som juntos, é que nos damos conta que Firmino mexe seus lábios mas não
escutamos a sua voz e nem o que ele fala quando levanta enraivecido.

Este ponto de sincronismo gera uma compreensão semântica da trama do filme. Nesse
momento os sons sagrados do candomblé abafam os sons do discurso de Firmino. O mesmo
acontece na sequência seguinte quando a voz de Firmino é suprimida dentro do terreiro de
candomblé, e em sua conversa com a mãe de santo só se escuta a voz da mulher, que se nega
a realizar o trabalho espiritualista que Firmino solicitava, e por fim o expulsa do terreiro.
Firmino não tem voz nem vez dentro do terreiro.

Firmino é Glauber.

Na cena romântica do casal, a “imagem sonora” produz um significado, a “imagem


visual” suscita outro significado, e quando sincronizadas lançam um novo significado, assim
como no surgimento de um significado do continuum pela justaposição, demonstrado por
Kulechov, mas nesse caso, um novo sentido se origina da composição imagem-som na linha
vertical da montagem. A opção por fazer ouvir a música do candomblé e de não se escutar o
que diz os lábios em movimento de Firmino permite uma interpretação, dentro do tecido
narrativo do filme, de que naquela vila de pescadores o resultado da confrontação entre o
misticismo religioso e o discurso racionalista de Firmino-Glauber é sentenciado pela parte
sonora do filme. Um recurso estético de exclusão da voz de Firmino que acrescenta um valor
semântico à cena que não se poderia alcançar apenas com as imagens do casal na praia, que
apenas representam uma cena romântica com dois personagens, sem acudir ao caráter de
prevalência da religião sobre o racionalismo marxista que o autor, através do personagem,
propõe.

Estes confrontos entre razão e religião ocorrem em muitos momentos da trama, e


Firmino se empenha durante todo o filme em desconstruir os mitos do candomblé. Reza a
lenda que Aruã é filho de Iemanjá, e por isso não pode se deitar com outra mulher. Firmino é
Exu e, como é característico desse Orixá, monta uma armadilha para Aruã convencendo Cota
a seduzi-lo.

É noite, e no terreiro de candomblé tem festa. Os três atabaques (rum, rumpi e lé)
estão presentes visualmente e auditivamente; o agogô só se escuta e vemos as filhas de santo
dançando. Enquanto isso, na praia, Cota vai onde Aruã está sentado e sozinho olhando o mar;
101

ela se despe e se dirige à água. A música mística do candomblé se escuta na praia, e o que
seria uma trilha sonora não diegética, nos é revelada como música que se escuta fora de
quadro por conta da montagem paralela dessa sequência, que entra no terreiro onde acontece a
festa religiosa e volta à cena da praia permitindo o entendimento de que são eventos que
ocorrem ao mesmo tempo neste mundo fílmico.

Cota está nua, dança com as ondas do mar e lança um olhar sedutor para a areia. Aruã
fecha os olhos na tentativa de resistir à tentação da qual está proibido pelas responsabilidades
que o candomblé lhe atribui. Uma sereia dançando na beira do mar, ao som de músicas
sagradas de matriz africana, numa praia da Bahia e o nosso Ulisses não está atado ao mastro
de seu barco. Enfeitiçado pela sereia, enganado por Exu, Aruã perde assim o seu encanto e a
sua proteção da Rainha das águas, Yemanjá. Em paralelo a isso, no terreiro de candomblé, as
imagens nos mostram o ritual de iniciação de um Iaô; rito esse que significa um renascimento,
a feitura do santo, a assunção de uma posição-de-sujeito sagrada no candomblé.

Mesmo contendo diferenças ritualísticas, a iniciação de um Iaô se aproxima


comparativamente ao que acontece com Besouro, no longa de João Tikhomiroff, quando
recebe a proteção de Ogum; esse momento representa a confirmação de Besouro como ser
místico pertencente à uma religião. Enquanto que Glauber Rocha escolhe contrapor o rito de
iniciação com o momento em que o herói do seu filme está sendo desmistificado na praia, por
desobedecer os preceitos religiosos, perdendo assim a sua proteção sobrenatural.

3.3.3 . VIOLÊNCIA

Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados
e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não
será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do
tecnicólor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma
cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
[...] essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não
diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta
violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um
amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e
transformação (ROCHA, 2004, p. 66).

* * *
102

Firmino: – Cota, no fundo meu coração presta e muito. Ando com você
porque seu jeito é de quem não se abaixa. Aruã também não quer se abaixar
mas o Mestre domina. Nessa situação vive o povo. Meu pessoal lá da cidade
sabe que as coisas vão melhorar. Foi por isso que eu cortei a rede, a
barriga precisa doer mesmo, e quando tiver uma ferida bem grande então
todo mundo grita de vez. Pra mim, Princesa Isabel é ilusão!
(Barravento, Glauber Rocha, 1962)

“Meu sofrimento ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer” versos do


sambista baiano Batatinha, cantarolados por Firmino, rimando o verbo ver com sofrer para
falar da invisibilidade dessas pessoas famintas. Fora do mundo fílmico, o compositor e cantor
baiano segue a letra da música Diplomacia: “luto por um pouco de conforto, tenho o corpo
quase morto, não acerto nem pensar, mesmo com tanta agonia, ainda posso cantar, ainda
posso cantar [...]”. Dentro do mundo fílmico de Barravento, Firmino ainda tenta cantar, ou
gritar, quando os senhores donos da rede de pesca vêm levá-la embora. Firmino incita os
pescadores a impedir que tal coisa ocorra; eles ficariam sem rede para pescar e a pesca sem
rede é muito mais perigosa. Firmino invoca a atitude violenta da qual Glauber fala na
Eztetyka da fome (ROCHA, 2004), mas a ideia é contrariada pelo Mestre e seguida pelos
pescadores. Ali Firmino não tem voz, ali mandam o Mestre e a religião.

Por não ter voz nem vez, Firmino, um anti-herói um tanto antipático por conta de suas
sabotagens e armadilhas, convence Cota a seduzir Aruã, provocando com isso a
desconstrução do mito do herói salvador que prevalecia naquela aldeia. Aruã não é mais um
protegido de Yemanjá. O nosso Ulisses perdeu seu poderes sobrenaturais. Mas na manhã
seguinte...

Os sons de ventos são escutados um pouco por encima do barulho do mar, os ventos
vão ganhando velocidade. Um trovão. Em seguida outro trovão de volume ainda mais alto, e
continuam mais trovões em diversas intensidades. “Seu Vicente está no mar!”. Aruã e um
outro pescador, Chico, saem de jangada para resgatar Seu Vicente da tempestade que se
aproxima. Cota olha por detrás de um coqueiro e se desespera.

Chegou o Barravento.

Ventos mais fortes, os trovões são constantes, o mar também soa agitado e violento.
Cota sai correndo pelo coqueiral muito abalada, a câmera corre e balança acompanhando a
personagem. A câmera rodopia vertiginosamente e vemos Cota rolando de uma duna de areia
até a água. Cota afunda, desaparece, e começa a chover. As palhas dos coqueiros balançam, o
103

mar está cheio de ondas, a chuva fica mais forte. Um corte seco no som e silêncio completo.
Visualmente, Aruã rema em um mar tranquilo voltando para a praia depois do Barravento.
“Chico morreu!” grita ele; Seu Vicente também. Todos os pescadores lamentam as mortes.
Firmino aparece para concluir o processo de desmistificação de Aruã gritando para que todos
saibam: “O culpado foi Aruã que renegou o santo! [...] Ele é homem igual os outros. [...] O
Mestre também é culpado. [...] É preciso acabar com isso!”33.

Os letreiros iniciais informam que “‘Barravento’ é um momento de violência, quando


as coisa de terra e mar se transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem
súbitas mudanças”. O Barravento é o que Firmino-Glauber invoca como atitude violenta para
mudar as estruturas e sair da situação de fome, mesmo que essa atitude possa vir, como consta
na mitologia do candomblé, da força e da fúria de Yemanjá, “senhora do mar que ama, guarda
e castiga os pescadores”, que por perder seu Aruã, enviou o Barravento.

Nessa sequência do filme a violência se imprime visualmente pela câmera balançada


que corre com Cota, junto à própria violência das imagens em movimento do mar e dos
ventos nos coqueiros, enquanto que na parte sonora observamos uma intencionalidade em
adicionar muito volume aos áudios dos eventos naturais em questão. Ventos, trovões, mar e
chuva competem em alta potência pelo primeiro plano sonoro. Ainda não consideraríamos
como uma estética hiper-realista, mas demonstra-se nessa sequência um desejo de amplificar
os sons para gerar mais sensações, o que está na essência do hiper-realismo sonoro. Além
disso, também é possível dizer que o valor acrescentado à essa sequência, pelo conjunto
desses sons amplificados, é da ordem da materialidade da violência dos acontecimentos da
natureza por conta das características sonoras que exprimem as dimensões de peso,
intensidade, e tipo de material, podendo assim despertar as sensações de potência dos ventos e
das ondas do mar, por exemplo.

Por outro lado, no filme Besouro, que sim utiliza o hiper-realismo sonoro, entendemos
que o tema da violência pode ser abordado no longa-metragem por sequências que encenam
as facetas mais extremas da repressão contra os negros e sua cultura no Brasil daquela época
(paralelismos com as estruturas repressivas contemporâneas continuam possíveis).

Após o assassinato de Mestre Alípio, os capoeiristas realizaram uma roda fúnebre. O


discípulo, mas ainda não herói, Besouro não participa do ato, apenas observa de longe e vai
embora. A música tocada na roda de capoeira é inserida na cena de modo suave, com um


33
fala extraída do filme Barravento (1962)
104

aumento progressivo do seu volume e introdução aos poucos dos instrumentos musicais que
compõem a música. Em ritmo lento, escutamos primeiro os atabaques, e logo são
acompanhados por berimbaus. “Mestre Alípio meu lamento, rezas, forças de união; ensinou
ter orgulho, não temer a nada não. A grandeza de uma raça, a capoeira nos une, e liberta o
coração” canta uma voz arrastada. Se nota então o acréscimo de um instrumento que não é
comumente tocado nas rodas de capoeira, um tambor bastante grave de marcação, o que
parece ser uma alfaia (tambor de maracatu), e que mesmo sem se apresentar visualmente na
roda, pelas características do seu som (e através de uma memória subjetiva), remetem aos
toques de tambor que acompanham as marchas de guerreiros que antecedem os combates
entre grupos inimigos de diversas culturas do planeta durante toda a história da humanidade.
Os ruídos de cena também são escutados: os pés arrastando na areia, vocalizações que
acompanham os movimentos do jogo da capoeira, assim como os sons ambientes das tochas
com fogo que iluminam a roda e os ruídos das cigarras e de outros insetos noturnos que
acrescentam naturalismo à cena; mas acima de tudo, o que é dominante na banda sonora desta
sequência em análise é a música diegética da roda de capoeira.

Com diferente volume e afinação, um berimbau introduz uma outra música de


capoeira, dessa vez mais acelerada e acompanhada também pelas palmas dos que participam
da roda. No centro, o jogo da capoeira também acelera os seus movimentos; vemos uma
nuvem de poeira levantar do chão quando uma perna dispara uma armada de costas (golpe de
capoeira); a montagem também acelera seu ritmo e passa a cortar mais rápido de um plano
para outro, imprimindo ainda mais a sensação de velocidade da ação em cena. O relinchar de
um cavalo perturba os ouvidos de quem assiste à cena; até então não havia nenhum cavalo
visível perto da roda de capoeira. Também ouvimos o tilintar de esporas metálicas, e para
completar, o som de tiros; agora sim as imagens nos mostram homens chegando a galope no
local da roda. Esses áudios são introduzidos com um volume maior que os já pertencentes à
sequência e terminam rapidamente silenciando os instrumentos musicais da capoeira. Do alto
dos seus cavalos, os capangas do dono da fazenda de engenho de cana, disparam para o alto e
cercam os capoeiristas.

Noca (capanga) – Acabou essa presepada! Aqui nessas terras está proibido
lutar!
Chico (capoeirista) – Tu nem parece que é uma pessoa letrada, Noca de
Antônia. Isso aqui é luta? Capoeira é dança.
[...]
Noca (capanga) – É dança é!? Então está proibido dançar!
(Besouro, João Tikhomiroff, 2009).
105

Noca dá a ordem para que os outros capangas usem da violência e da força para
dispersar os capoeiristas, todos negros. Violência também expressada através do hiper-
realismo sonoro, que volta a ser a opção estética para essa sequência. Tiros são disparados, os
gritos de desespero são muitos, a cavalaria relincha, galopa, e os golpes dos socos e pontapés
possuem um volume maior do que se fossem escutados no mundo real. Características
pertencentes a um estilo de cinema que se utiliza de uma estética do estilhaço (que já pode ser
percebida durante a evolução histórica do Western e que tem grande protagonismo no cinema
de Hollywood pós 1970) na qual são amplificadas as dimensões sonoras dos tiroteios e
explosões.

Alguns negros capoeiristas conseguem fugir mas Chico é capturado. Segurado por
dois capangas, escuta ofensas racistas proferidas por Noca. E como expressão da repressão e
violência de uma sociedade contra a população negra e sua cultura, Noca golpeia com uma
espingarda a perna de Chico que termina com uma fratura exposta. Os ruídos dos golpes são
escutados em primeiro plano, e na última investida de Noca contra a perna de Chico, junto ao
som do impacto da espingarda no corpo, mais do que escutar, sentimos a violência através do
som de osso sendo quebrado. Um dos muitos tipos de violência racista representada em
imagem e som hiper-realista para provocar mais sensações no espectador. Dimensões
sensíveis acrescentadas pelos som aos filmes, tanto da ordem da materialidade, peso e textura
dos objetos que estão em cena, mas também através de sensações ativadas por uma memória e
um repertório cultural de uma sociedade brasileira e baiana racista, que dá uma outra
dimensão à sensação de violência para além da materialidade.

Um repertório cultural que influencia na percepção da violência dessa sequência e


portanto no processo de identificação do espectador no filme, de acordo com as ideias trazidas
no capítulo 2.2, no qual perante uma situação – uma sequência fílmica –, posições-de-sujeito
são estabelecidas e o espectador irá ocupar as suas posições de acordo com um processo de
identificação ambivalente, que acontece por conta das identificações parciais que se
estabelecem com os personagens distribuídos na estrutura da sequência-situação em questão.
Processo de identificação do espectador no filme que voltará a ocorrer sempre e quando novas
situações se enunciem, novas posições-de-sujeito se apresentem, e então o repertório de
vivências particulares do espectador (sua memória afetiva) serão decisivas para a
interpretação das situações e a assunção das posições-de-sujeito.

E pela observação do uso do hiper-realismo nessa sequência, vale retomar também a


Chion no seu capítulo intitulado “O real e o reproduzido”, quando explica que mesmo com os
106

avanços tecnológicos nas gravações de som direto, é comum que esses sons capturados do
mundo real sejam tratados na pós-produção, quando também outros sons são agregados à
banda sonora do filme. Diz o autor que a realidade é uma coisa e que a sua transposição para
uma plataforma de reprodução de imagem e som gera uma outra coisa; ele ainda chama
atenção para os códigos criados pelas artes, que foram determinados mais por uma
preocupação de representação do que de veracidade, o que veio a influenciar a nossa
referência de som real no cinema (CHION, 2011). Portanto os sons no cinema não precisam
exercer uma fidelidade acústica estrita com os sons da realidade, e o espectador julgará a
credibilidade dos sons fílmicos recorrendo aos rastros acústicos (desenhos) deixados pelos
sons reais na sua memória. Um ilusionismo que permitiu o surgimento do hiper-realismo
sonoro no cinema. Uma forma de trabalhar o som que, mesmo modificando as características
dos sons reais em uma operação que ultrapassa a realidade e amplia o caráter sugestivo e
sinestésico do som no cinema, consegue acrescentar também um valor de naturalismo e de
credibilidade à um mundo fílmico.

3.3.4 . TRILHAS SONORAS

[...] não cessa nunca o Canto das Sereias. [...] a única maneira de impedir
que uma música produza, de alguma forma, estados de ânimo em um
apreciador parece ser não ouvi-la.
[...] Ulisses relata o desespero e o sofrimento vividos enquanto estava preso
ao mastro. Orfeu, no episódio do encontro da expedição dos Argonautas com
as Sereias, põe-se a cantar de tal forma que consegue superar o fascínio dos
murmúrios femininos fatais. [...] O único antídoto para a melodia
murmurada das Sereias parece ser produzir um som mais encantador do que
o delas. As outras opções são sofrer amarrado ao mastro ou resignar-se a não
ouvi-las, simplesmente (JESUS, 2007, p. 110 e 113).

O professor da faculdade de comunicação da UFBA e também musicólogo, Guilherme


Maia de Jesus, em sua tese de doutorado lembra que as mitologias costumam atribuir à
música um poder mágico. Para os gregos a música tem origem divina e seus primeiro
intérpretes são deuses e semideuses. Lendas afirmam que melodias bem executadas têm o
poder de “curar doenças, purificar o corpo e o espírito e operar milagres no reino da
Natureza” (JOSUÉ, 16, 14-23 apud JESUS, 2007, p. 111). O mito de Orfeu, que atribui ao
músico talentoso a capacidade de interferir nas leis da natureza, seria então uma tentativa de
responder a um questionamento humano sobre os efeitos causados pela música – “Orfeu é
107

um shaman, um mágico, mas acima de tudo um músico excepcional, que canta e toca lira de
tal maneira que pode alterar o curso da natureza” (JESUS, 2007, p. 112).

Na mitologia do candomblé, são chamados de Alabês os músicos que tocam os


atabaques. Os Alabês fazem a conexão com o sagrado, através da sua música estabelecem a
comunicação com o mundo invisível das divindades (NASCIMENTO, 2014). E para essa
religião de matriz africana, os elementos da natureza e a dimensão do sagrado estão
intimamente ligados; portanto, podemos dizer que, assim como Orfeu, os Alabês possuem na
sua musicalidade o poder mágico de transformar a natureza.

O jamaicano Paul Gilroy aponta para o fato de pessoas de diferentes lugares e culturas
da África terem sido deslocadas forçadamente para a América. O autor defende que nesse
contexto a música colocou-se como meio vital para o entendimento entre esses negros, que se
depararam com uma polifonia linguística de idiomas africanos em terras americanas.
Múltiplas formas de se comunicar e de se expressar culturalmente que encontram na música
um importante poder de significação. Pelas palavras de Glissant aclara-se que “não é nada
novo declarar que para nós a música, o gesto e a dança são formas de comunicação, com a
mesma importância que o dom do discurso” (GILROY, 2001, p. 162). E tocando nesse
mesmo ritmo, o músico brasileiro Naná Vasconcelos, destacava a boca e o corpo como os
primeiros e melhores instrumentos musicais, o que reafirma como a musicalidade corpórea
está fortemente presente no processo de construção da identidade e da linguagem negra da
diáspora (VASCONCELOS, 2014). As negras e negros que eram forçosamente trazidos para
a América, subalternizados, escravizados, despidos de qualquer condição humana, não
permitiram que lhes desnudassem de sua memória ancestral; memória essa que resiste no
corpo e se expressa através da música, da dança e do canto (NASCIMENTO, 2014). Os
toques dos atabaques, tantas vezes alvo de repressão ao longo da história, resistiram
(resistem) e continuam ainda hoje, segundo Gilroy, a animar os “desejos básicos – serem
livres e serem eles mesmos revelados nesta conjunção única de corpo e música da
contracultura” (GILROY, 2001, p. 164).

Glauber Rocha também compunha para o fortalecimento de uma contracultura.


Decidiu que para contar cinematograficamente uma história pós-colonial não seguiria os
padrões estéticos e formais impostos pelas culturas hegemônicas. Além dos já comentados
cortes e introduções abruptas de músicas na trilha sonora de Barravento (1962), que
contrariam as transições suaves do cinema clássico, Glauber gravou diretamente aos Alabês
do candomblé executando suas músicas, e essas foram utilizadas em sua forma original, sem
108

modificações na pós-produção, com a intenção de compor uma trilha sonora inteiramente


formada por músicas de matriz africana e produzidas pelos negros do Brasil. Até então no
cinema brasileiro não se observava habitualmente o uso de músicas que fugissem às
características orquestrais eruditas tão consolidadas no cinema mundial ocidental. É verdade
que o movimento de introdução da música popular brasileira no cinema tem início na década
de 1950, principalmente pelas obras do diretor Nelson Pereira do Santos (responsável pela
montagem de Barravento) que se caracterizam por uma adaptação erudita de músicas da
cultura popular, a exemplo do samba do artista Zé Kéti que foi arranjado pelo músico
Radamés Gnatalli em Rio 40 graus (Nelson Pereira, 1955). Uma interação entre maestros de
origem italiana e músicos populares que foi diminuindo com o Cinema Novo, em favor desses
últimos – uma valorização das culturas locais, pós-coloniais, terceiro-mundistas que contribui
para o distanciamento do caráter de cópia da cultura colonizadora (COSTA, Fernando, 2006).

A música, talvez mais do que a voz, seja o elemento sonoro mais comentado
do conjunto de análises sobre os filmes das décadas de 1960 e 1970, que, por
si só é o período mais comentado dentro da história do cinema brasileiro. O
uso da música popular, ou, em alguns casos, mesmo da música erudita feita
no Brasil, é entendido como uma ferramenta importante para o
funcionamento do projeto de levar a cultura e o povo brasileiro para o centro
da tela (COSTA, Fernando, 2006, p. 187).

Esse movimento de diversificação cultural da trilha sonora dos filmes, iniciado na


década de 1950 e intensificado a partir dos anos 1960, acompanham o ideal cinema-novista (e
também neorrealista) de fazer os sotaques falados pelo Brasil serem escutados também no
cinema. Diferentes modos de falar que questionam, pelo viés pós-colonial, a unicidade de um
único sotaque cinematograficamente aceito que reinou durante a primeira metade do século
no Brasil. A forma de se expressar da maioria da população brasileira foi e continua sendo
rejeitada e/ou ridicularizada/desprestigiada pelos sistemas dominantes, assim como as
expressões musicais dos negros foram e seguem sendo reprimidas/desprestigiadas, mas que
pela intencionalidade e coragem do Cinema Novo passaram a ocupar, mais do que antes (mas
ainda não o suficiente), as telas e os alto-falantes dos cinemas (COSTA, Fernando, 2006).

Derivado das revoluções produzidas no cinema nos anos 1960, o autor Fernando
Morais da Costa dialoga com Guilherme Maia de Jesus quando observam um fato – que nota-
se nos filmes do diretor Rogério Sganzerla, e que se tornou comum no chamado Cinema
Marginal – em que a figura do compositor da trilha sonora é suprimida e o próprio diretor
assina como diretor musical, se utilizando de músicas já existentes (e não compostas
109

especialmente para o filme) e que fazem parte das suas referências culturais. Guilherme Maia
lembra que Sganzerla utiliza como trilha desde as músicas de Beethoven à Luís Gonzaga e
que ainda “há espaço para O Guarani de Carlos Gomes, para O Barbeiro de Sevilha de
Rossini, postos democraticamente no mesmo barco que Dolores Duran, Ernesto Lecuona,
Elvis Presley” (COSTA, Fernando, 2006, p. 185). Nesse momento histórico percebemos uma
mistura de influências musicais na qual se colocam lado a lado arranjos eruditos de culturas
tidas como hegemônicas e composições de culturas ditas subdesenvolvidas; expressões
culturais de colonizadores e colonizados que convivem democraticamente, segundo Fernando
Morais da Costa e Guilherme Maia de Jesus, na trilha sonora de Sganzerla; um feito que
podemos associar ao aspecto transcultural do cinema contemporâneo, que tratamos
anteriormente neste trabalho.

Uma informação colhida nos Extras (making of) do filme Besouro (João Tikhomiroff,
2009) nos notifica que o diretor deste filme também influenciou a concepção da trilha sonora
com as suas referencias musicais. Antes é importante destacar que a produção de Besouro
incluiu a contratação de uma equipe responsável pelo som do filme como um todo (da sua
atmosfera sonora) ainda na fase do roteiro, comungando com a ideia de trabalhar com um
desenhista ou diretor de som que participa em todas as fases de desenvolvimento do filme
(nos créditos do longa aparece como direção musical assinada por Rica Amabis). Voltando
aos Extras, o diretor musical confessa que na primeira reunião com a equipe do filme, o
diretor João Tikhomiroff pediu que a trilha sonora de seu filme tivesse a participação dos
artistas Gilberto Gil, Naná Vasconcelos e da banda Nação Zumbi; intencionalidade, desejo,
pedido do diretor que foi atendido pela equipe responsável pela trilha sonora do filme.

Assim como na leitura que fizemos da intencionalidade transcultural de Besouro – em


um intercâmbio de diferentes culturas tanto na escolha da estética cinematográfica como na
composição multicultural da equipe do filme – esses músicos escolhidos para participar da
trilha sonora também pautaram as suas criações artístico-musicais nessas interações culturais
pós-coloniais, relacionando tradição e contemporaneidade. Naná Vasconcelos revelou que o
seu trabalho com o berimbau e com a percussão, sua música de forma geral, foi influenciado
de maneira importante pelo estilo de um guitarrista negro americano, “o que Jimi Hendrix
fazia com a guitarra, me mostrou que os instrumentos não tem limitações”
(VASCONCELOS, 2014, p. 37). A liberdade e as distorções de Jimi Hendrix também se
escutam nas músicas da Nação Zumbi, que mistura o rock’n roll com o maracatu e o hip hop
com o samba. E sobre Gilberto Gil, qualquer definição seria insuficiente, mas nos parece
110

satisfatório afirmar o que muitos dizem fora das definições acadêmicas: se trata de “um Orixá
vivo”. Gil é um ser iluminado fruto da mistura entre o guerreiro Ogum, Orixá das tecnologias
e comunicação, e a velha senhora Nanã, Orixá avó desde sempre, que aqui podemos associar
à ancestralidade.

Em sua tese de doutorado, Fernando Morais da Costa aponta outro diretor de cinema
brasileiro, Jorge Furtado, que também defende a integração de influências culturais
internacionais como a música pop e o rock, argumentando que “gostar de música pop
internacional não significa estar alienado das questões nacionais”. Costa recorre ao conceito
de hibridização de Nestor Canclini que, alinhado com a ideia de tradução de Hall, explica que
a penetração e a assimilação da cultura internacional, principalmente EUA e Europa, pelo
terceiro mundo “não deve significar subserviência total à cultura imperialista. A hibridização
decorrente desse processo demonstra exatamente as várias formas de troca inerentes a ele”
(COSTA, Fernando, 2006, p. 233). Em oposição a uma ideia de dominação direta, o que há é
uma troca entre culturas que permite inclusive que culturas historicamente oprimidas e
invisibilizadas possam sair fortalecidas dessa interação com culturas imperialistas.

as estruturas transnacionais que trouxeram a existência o mundo do


Atlântico negro também se desenvolveram e agora articulam suas múltiplas
formas em um sistema de comunicações globais constituído por fluxos. Este
deslocamento fundamental da cultura negra é particularmente importante na
história recente da música negra que, produzida a partir da escravidão racial
que possibilitou a moderna civilização ocidental, agora domina suas culturas
populares (GILROY, 2001, p. 170).

No mundo do Atlântico negro, a música é a essência “da distinção cultural que esta
população capturava e adaptava a suas novas circunstâncias. Ela utilizava as tradições
separadas mas convergentes do mundo atlântico negro, se não para criar a si mesma de novo
como conglomerado de comunidades negras” (GILROY, 2001, p. 173). Além das músicas do
candomblé, o ritmo musical surgido na Jamaica, o reggae, é um bom exemplo do processo de
assimilação e adaptação das comunidades negras distribuídas pelos territórios do Atlântico
negro. Primeiramente, o reggae em si já é hibridização do rhythm and blues, rocksteady e ska;
depois podemos observar, como o fez Gilroy, que a disseminação deste ritmo caribenho pelo
mundo negro também promoveu uma ressignificação dele mesmo quando em contextos locais
particulares.

Como vimos neste mesmo capítulo, para as comunidades negras da diáspora a


musicalidade tem valor de discurso, e portanto seria inevitável que o reggae também se
111

estabelecesse como discurso. Nascido em uma favela de uma ex-colônia escravista, esse ritmo
incorpora na sua percussão, nas suas cordas e nas suas letras, o grito contra as injustiças
étnicos-sociais, e junto com isso ergue a bandeira do pan-africanismo. Para Gilroy, a captura e
adaptação do reggae por outras comunidades foi possibilitada “por um fundo comum de
experiências urbanas, pelo efeito de formas similares – mas de modo algum idênticas – de
segregação racial, bem como pela memória da escravidão, um legado de africanismos e um
estoque de experiências religiosas definidas por ambos” (GILROY, 2001, p. 175).

Para o professor e músico Leonardo Boccia, “a música inclui conteúdos e traços


complexos de uma cultura difíceis de serem expressos pela língua falada e/ou escrita.”
Mesmo assim, Boccia defende que a música de uma cultura preserva ideários, sentimentos e
sabedorias “dos ancestrais daquela cultura, e marca profundamente o gosto, a gestualidade e a
percepção sensível [...] dos indivíduos daquela cultura.” (BOCCIA, 2009, p. 75 e 76).

Na Bahia, enquanto comunidade do Atlântico negro, o reggae foi assimilado e


integrado a um ritmo musical negro local, o que fez surgir um novo ritmo hibrido na década
de 1980, o samba-reggae. Mistura de ritmos que compartilham, em suas musicalidades e
letras, de discursos semelhantes. O samba-reggae é incorporado pelos grupos de música
negros, principalmente por grupos carnavalescos que antes tocavam samba e já se
empenhavam em valorizar as culturas e as belezas negras; ao mesmo tempo que faziam
releituras da história da África tão pouco estudadas nas escolas brasileiras (e muito antes de o
Ministério da Educação brasileiro tornar obrigatório o ensino dessa matéria). A mistura do
reggae com o samba se apresenta como uma modernização/atualização 34 do discurso já
existente no samba (e também no candomblé de onde se origina o samba); uma aproximação
entre discursos pós-coloniais que, segundo Gilroy, se explica porque “a linguagem
inevitavelmente política da cidadania, justiça racial e igualdade foi um dos diversos discursos
que contribuíram para essa transferência de formas culturais e políticas e de estruturas de
sentimento” (GILROY, 2001, p. 175).

“Assim como Kingston, Salvador é um pedaço da África” (MOTA, 2017).

Assim como Salvador, Recife também é uma cidade pós-colonial pan-africana. E


contando com a participação dos pernambucanos Naná Vasconcelos e Nação Zumbi na trilha
sonora do filme Besouro, não poderíamos deixar de falar do movimento manguebeat. Uma
década depois do surgimento do samba-reggae, no inicio dos anos 1990, uma convergência de

34
essa ideia de modernização/atualização não implica que com isso o samba e o candomblé passem a ser
entendidos como ultrapassados.
112

influencias culturais gerou um movimento artístico nascido nos manguezais, um dos


ecossistemas de maior biodiversidade do mundo; a partir de uma antena parabólica enfiada na
lama, conectou-se os sinais internacionais com as frequências emitidas pelos homens-
caranguejos habitantes da manguetown. No mangue, o encontro de Francisco França, mais
conhecido como Chico Science, com um grupo de maracatu e samba-reggae foi decisivo para
a composição da banda que se tornou o principal expoente do movimento manguebeat; Chico
Science & Nação Zumbi revolucionaram a música do Recife e do Brasil, misturando o hip-
hop cantado por Chico, com os toques do candomblé do percussionista Toca Ogan, junto com
os graves das três alfaias oriundas do grupo de maracatu Daruê Malungo, em harmonia
perfeita com a bateria original que incorpora efeitos digitais de Pupilo (também integrante da
equipe de som de Besouro), e ainda com o peso do contrabaixo de Dengue e a guitarra
envenenada de Lucio Maia, também sob grande influência de Jimi Hendrix.

Em carta, o antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna, define:

A Nação Zumbi deve ser pensada como um coletivo de ideias artísticas,


guerrilhas culturais e intervenções políticas (entre muitas outras atividades),
do qual a banda musical é apenas sua (inter)face mais visível e
aparentemente amigável. O Mangue está na origem de tudo. O Mangue
como gerador de uma antropofagia cultural (VIANNA, 2008).

A trilha sonora de Besouro (2009) também vem do mangue. A forma como as músicas
são empregadas na trilha do filme obedecem à influência do cinema clássico, se utilizando de
um padrão canonizado pelo compositor Max Steiner em King Kong (1932), quando já se
optava por uma melodia romântica para as cenas de beijo e um tema mais empolgante em tons
maiores para as cenas de ação (COSTA, Fernando, 2008a). Em Besouro (2009) sentimos o
rock’n roll e o grave das alfaias nas cenas de luta e perseguições, e também notamos a
sonoridade romântica dos instrumentos de corda na cena em que Besouro e Dinorá dançam
capoeira demonstrando o sentimento amoroso existente entre o dois. Mas, observando o
conteúdo da trilha para além da sua forma de utilização convencional, a música produzida
para a trilha investe na hibridização entre os sons de elementos da cultura local, como a foice,
a pá e o facão, e os ritmos transculturais pós-coloniais da guitarra e dos beats eletrônicos,
seguindo na mesma linha que o movimento manguebeat.

Da Lama ao Caos35, do coco ao dub, do sampler ao baião; passeando por Rios Pontes
e Overdrives 36 , passando pela teoria do caos, conflitos étnicos e cyber espaço. A

35
título do primeiro álbum da banda.
113

representação do “maracatu psicodélico, capoeira da pesada, bumba meu rádio, berimbau


elétrico”37, instigado por “multicoloridos cérebros” que “sintonizam, emitem, longe”38. Uma
Afrociberdelia (título do segundo álbum da banda) bastante alinhada com um pensamento de
afro-futurismo; um movimento ativo de olhar para trás (como no Cinema Novo) para pensar o
presente e projetar o futuro. Um afro-futurismo que segundo Gilroy também está em Jimi
Hendrix, na “oposição criativa em seu trabalho entre a reverência óbvia pelas tradições
baseadas no blues e uma espiritualidade agressivamente high-tech e futurista”. Ou seja,
culturas atravessadas por outras culturas, do tradicional ao contemporâneo, da raiz ao high-
tech, de colonizador a colonizado e vice versa, um certificado de que “a ideia purista de fluxo
de mão única da cultura africana do Oriente para o Ocidente foi imediatamente revelada como
absurda” (GILROY, 2001, p. 195-199).


36
título de uma música da banda.
37
trecho de uma música da banda.
38
trecho de uma música da banda.
114

C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

MONÓLOGO AO PÉ DO OUVIDO
Chico Science & Nação Zumbi

Modernizar o passado é uma evolução musical


Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos.
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
o orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da
humanidade [...]
115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] as estruturas transnacionais que trouxeram à


existência o mundo do Atlântico negro também se
desenvolveram e agora articulam suas múltiplas formas
em um sistema de comunicações globais constituído por
fluxos. Este deslocamento fundamental da cultura negra
é particularmente importante na história recente da
música negra que, produzida a partir da escravidão
racial que possibilitou a moderna civilização ocidental,
agora domina suas culturas populares.
Paul Gilroy (O Atlântico negro. 2001, p. 170)

A monocultura não deve nos limitar. Busquemos a potência nas misturas, nas múltiplas
influências que abrem a múltiplas possibilidades artísticas, culturais e de pensamentos.
Acredito que este trabalho tenha versado sobre essas potências criativas e essas infinidades de
possibilidades. Versamos sobre a linha tênue entre o real e a fantasia, e percebendo que a
intencionalidade e a manipulação tornam inacessível a imparcialidade na reprodução da
realidade por meio cinematográfico, ficamos então com a definição de Pudovkin de que “a
arte será realista mais pelo significado produzido do que pela naturalidade de seus meios”
(apud XAVIER, 2005, p. 55). Nos libertamos da fidelidade estrita ao naturalismo nas formas
de gravar, montar e pós-produzir um filme abrindo para possibilidades artísticas, não
necessariamente como uma traição à realidade, mas por torções que vão permitindo a
evolução da linguagem cinematográfica.

Nesse nosso mundo globalizado e intercomunicado é importante reconhecer as


desigualdades e as relações de poder geopolítico-culturais, mas encontrar a potência criativa
na combinação de conhecimentos culturais dos mais diversos é fundamental. O retorno as
“origens”, às culturas “puras”, sem contato com outras culturas são inviáveis, então tomemos
o exemplo do manguezal, que pela troca de matéria orgânica das águas doces e salgadas
fazem do mangue um dos ecossistemas mais produtivos do mundo.

A mistura gera efervescência, e por isso acreditamos na produtividade resultante dos


hibridismos. Todas as vozes e narrativas merecem ser ouvidas e as produções
cinematográficas de regiões geopolíticas menos fortalecidas devem ser incentivadas.
Acreditamos em um cinema transcultural, atravessado pelas culturas, mas não apenas
influenciado pelas culturas hegemônicas; que sejamos também influenciados por filmes
produzidos por indígenas das diversas regiões do Brasil e do mundo, que sejamos marcados
116

pelo cinema realizado por negros do Atlântico negro e de outras partes do planeta. Como já
dito, escapemos da monocultura, do discurso único, e que mais humanos possam contar suas
histórias e mais humanos possam escutar essas histórias.

“O canto surge pela necessidade de alimentar e fortalecer o sonho de cada ser humano.”
(BOCCIA, 2009, p. 77).

Neste estudo que agora concluímos, trabalhamos os avanços tecnológicos tanto em


relação às suas modificações estéticas no cinema, como também a interação entre o
tecnológico e a tradição – tema que ficou ainda mais evidente na análise sobre a trilha sonora
dos filmes no item 3.3.4. No entanto, para entrar nesse tópico gostaríamos de retomar algumas
ideias. Pensando no cinema como processo mental, pois é na cabeça do espectador onde o
filme se materializa e passa a fazer sentido pela capacidade humana de perceber, memorizar e
fazer associações; também é na mente humana que estão as marcas que as imagens e os sons
que experimentamos na vida real, e que quando recordados despertam sentimentos e
sensações. Quando falamos em um elemento sonoro de uma cultura, estamos fazendo
referencia a um som que faz parte de uma tradição cultural e compõe a memória auditiva
afetiva das pessoas que fazem parte daquela cultura; e uma das perguntas que nos fizemos ao
longo da pesquisa abordava as modificações ou atualizações que essas tradições estavam
submetidas ao longo da história, e um fator determinante para essas transformações são as
evoluções tecnológicas. O pós-colonial Gilroy nos ajudou a entender que a essência das
expressões culturais tradicionais se preservam dentro das novas variações dessas expressões
culturais sonoras, no caso dos sons das culturas do Atlântico negro, esses compartem e
reivindicam os “desejos básicos – serem livres e serem eles mesmos revelados nesta
conjunção única de corpo e música da contracultura” (GILROY, 2001, p. 164) –; ou seja, a
memoria auditiva afetiva será estimulada mesmo que o som (que faz o espectador recordar)
esteja (dis)torcido, em uma nova roupagem, e colorido por outras influências sonoro-culturais.
Inclusive, o samba-reggae não deixa de ser samba e de evocar os sentimentos relacionados à
essa expressão cultural sonora, e sobretudo, ainda agrega os valores do reggae ao samba
originando um novo significado, próprio do samba-reggae.

Por essas razões, ao longo do trabalho fizemos revisões históricas, passando pelas
inovações tecnológicas. Nos centramos na construção histórica da linguagem do cinema e
vimos alguns gêneros cinematográficos, como foram se modificando e se adaptando às novas
possibilidades estéticas derivadas dos avanços tecnológicos ao longo do tempo. Junto a isso,
destinamos grande atenção a como o som participa dessa evolução da linguagem
117

cinematográfica desde o seu nascimento até os dias de hoje; abordamos o surgimento do som
sincrônico, a montagem sonora, o som direto, a gravação e reprodução stereo, o sistema
multicanais, a inovação do som digital e suas possibilidades para a montagem, o surgimento
das funções de editor de som, e posteriormente do diretor de som ou desenhista de som,
concluindo com as características do hiper-realismo sonoro.

Vimos a profissionalização do cinema e as especializações das áreas (direção, produção,


fotografia, montagem, distribuição) e percebemos um atraso na compreensão do som como
elemento essencial na criação de sentido no cinema, traduzida na prática à (ainda) falta de
reconhecimento da necessidade de um profissional com conhecimentos específicos de som
para cinema (assim como a função de diretor de fotografia requer conhecimentos específicos
de fotografia para cinema), e que apenas nos últimos anos, a partir do fim dos 1970, mas mais
precisamente nos 1990, notamos a presença nas equipes de realizadores cinematográficos
desse profissional responsável pelo som em todas as etapas da realização dos filmes,
pensando o som do filme desde o roteiro e pré-produção, passando pela gravação dos sons
diretos e em estúdios, e também acompanhando a montagem e a pós-produção de som.
Reconhecer a importância deste profissional é reconhecer que o cinema é uma arte
audiovisual, com uma rica variedade de significados que surgem quando combinamos o áudio
e o visual.

Por conta do recorte escolhido para a realização deste trabalho, acredito que
permanecem alguns temas vinculados à essa pesquisa que poderiam ser estendidos. Uma
abordagem mais profunda sobre o hiper-realismo sonoro é um desses temas; seria interessante
uma análise técnico-estética de sequências de filmes que se utilizem do hiper-realismo
sonoro, acompanhada das implicações desses sons e efeitos sonoros na percepção do
espectador, já que estamos tratando de um som que ultrapassa a realidade e que portanto, em
alguns casos, o espectador não possui um registro desse som na sua memória, com isso então
poderia ser feita uma análise, com base na psicoacústica, sobre a escuta paniqué. O que
poderia englobar também um estudo sobre as modificações estéticas para a linguagem
cinematográfica derivada dos aprimoramentos tecnológicos dos sistemas de reprodução
sonora envolvente, como o Dolby Atmos e seu sem-número de caixas de som distribuídas na
sala de cinema.

Seria importante também avançar as discussões sobre as narrativas pós-coloniais e


analisar filmes produzidos por negros, com negros entre os atores e na equipe de realização,
como também as formas de organização de um cinema negro, como por exemplo o trabalho
118

do Centro Afro Carioca de Cinema. Os filmes produzidos pelos indígenas, como os do projeto
Vídeo nas Aldeias, e outros que buscam dar voz à essas comunidades e culturas tão pouco
escutadas, e as vezes invisibilizadas ou desprestigiadas, e aprender com a sua forma de contar
histórias audiovisuais, e com os seus simbolismos e valores.

[...] O que se quer pensar é um cinema de resistência que passa pela


necessidade de reinventar as fronteiras, construir novas relações e insistir na
miscigenação e na diversidade como forma de produção da realidade por vir.
São filmes que incorporam na sua narrativa uma gama de outras vozes e
imagens, que se perguntam o que é um sujeito hoje, senão aquele que se
forma nos entrelugares, nas fronteiras e na mistura. Um cinema de terras e
fronteiras aposta na necessidade de repensar as culturas como misturas e não
como territórios simbólicos cristalizados, estanques, imemorais (FRANÇA,
2006, p. 397).

E por último, uma mergulho mais profundo nos estudos sobre o afro-futurismo e suas
repercussões na música, no cinema e no som no cinema. Um estudo que aponte para os frutos
artísticos-culturais gerados nesse nosso mundo dos hibridismos. Pensar em uma produção
cinematográfica feita por mangue-boys e mangue-girls, comprometidos com a realidade
mundana mas também com as possibilidades estéticas audiovisuais; um cinema em
movimento e sem fronteiras; um cinema multiplicador de histórias variadas, atravessado e
influenciado por uma diversidade de culturas. Um cinema transcultural e, sobretudo, sonoro.
119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADES, E.; BRAGANÇA, G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (ORGs.). O som no cinema.
Caixa cultural. Salvador. 2008.

ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

ARAÚJO, Mauro Luciano Souza de. Sob um exotismo cinematográfico: contradições


herdadas em chave atual. In: DENNISON, Stephanie (org). World Cinema: as cartografias
do cinema mundial. Socine. Campinas – SP: Papirus, 2013.

AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus Editora, 2012

BAMBA, Mahomed. Do “cinema com sotaque” e transnacional à recepção transcultural


e diaspórica dos filmes. Palíndromo Processos Artísticos Contemporâneos, nº 5, 2011.

BARTHES, Roland. Lo obvio y lo obtuso. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1986

BENTES, Ivana (org). Glauber Rocha: cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro


de 1958 a 1966. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

BOCCIA, Leonardo. A ilusão da realidade: estratégias audiovisuais e culturas da escuta. In:


BOCCIA, Leonardo (org). ECUS Cadernos de pesquisa nº 1 – Interdisciplinaridades e
cultura. Salvador: UFBA. 2009.

BOCCIA, Leonardo. Chaves audíveis. In: BOCCIA, Leonardo; COIMBRA DE SÁ, Natália
(orgs.). ECUS Cadernos de pesquisa nº 2 – Pulsações audiovisuais. Salvador: UFBA. 2010

CAPPELLER, Ivan. Raios e trovões: hiper-realismo e sound design no cinema


contemporâneo. In: ADES, E.; BRAGANÇA, G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (orgs.). O
som no cinema. Caixa cultural. Salvador. 2008.

CARVALHO, Maria do Socorro. Cinema Novo brasileiro. In: MASCARELLO, Fernando


(org). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

CHION, Michel. A Audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Edição Texto & Grafia,
2011

COOKE, Paul. A importância de um “s”: O Leeds centre for world cinemas,


transnacionalismo, policentrismo e o desafio de Hollywood. In: DENNISON, Stephanie (org).
World Cinema: as cartografias do cinema mundial. Socine. Campinas – SP: Papirus, 2013.

COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro: revisão de uma importância
indeferida. Tese (Doutorado) – Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense. Rio
de Janeiro, 2006.
120

COSTA, Fernando Morais da. As funções do som no cinema clássico. In: ADES, E.;
BRAGANÇA, G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (orgs.). O som no cinema. Caixa cultural.
Salvador. 2008a.

COSTA, Fernando Morais da. Cinema mudo e passagem para o sonoro. In: ADES, E.;
BRAGANÇA, G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (orgs.). O som no cinema. Caixa cultural.
Salvador. 2008b.

COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro Cinema. In: MASCARELLO, Fernando (org). História
do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Trad. José Marcos Macedo. Folha de São Paulo,
Caderno Mais!, 27 de junho de 1999.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Tradução: Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002a.

EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Tradução: Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002b.

FABRIS, Mariarosaria. Neo-realismo italiano. In: MASCARELLO, Fernando (org). História


do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes: São Paulo, 2006

FLÔRES, Virginia Osorio. A escuta fílmica: uma atitude estética. Dissertação (Mestrado) –
Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2006.

FLÔRES, Virginia. O som no cinema brasileiro contemporâneo. In: ADES, E.; BRAGANÇA,
G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (orgs.). O som no cinema. Caixa cultural. Salvador-BA.
2008.

FLÔRES, Virginia Osorio. Além dos limites do quadro: o som a partir do cinema moderno.
Tese (Doutorado em Artes) – Programa de Pós-graduação em Multimeios, Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 2013

FRANÇA, Andréa. Cinema de terras e fronteiras. In: MASCARELLO, Fernando (org).


História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

FRESSATO, Soleni Bicouto; NÓVOA, Jorge. Barravento: dicotomias da cultura popular


religiosa afrodescendente no cinema de Glauber. Revista Porto. Natal: UFRN, 2011, p. 70-79.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34,
2001.

GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e
terra 2ª Edição. 1996.
121

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,


2006.

HALL, Stuart. Quem precisa de Identidade? In: Silva, T. T. (org.) Identidade e Diferença: a
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2000, p. 103-133.

JESUS, Guilherme Maia de. Elementos para uma poética da música do cinema:
ferramentas conceituais e metodológicas aplicadas na análise da música dos filmes Ajuste
final e O homem que não estava lá. Tese (Doutorado) – Comunicação e Cultura
Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, 2007.

LANGER, Suzanne. Filosofia em nova chave. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus,


2006.

MASCARELLO, Fernando. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: MASCARELLO,


Fernando (org). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

MOTA, Fabrício. Identidades negras na música reggae da Bahia. In: Conversando com sua
história – Centro de Memória da Bahia – Fundação Pedro Calmon. Espaço Xisto Bahia
24/10/2017. Disponível em: https://www.facebook.com/cmb.fpc/videos/1718852241468000/

NASCIMENTO, Manuela. A música negra no Brasil. In VASCONCELOS, Naná.


Africadeus: o repercutir da música negra. Harmonipan. 2014. Disponível em:
www.africadeus.com

NOGUEIRA, Luís. Gêneros Cinematográficos. Livros LabCom, Covilhã, 2010.

OMAR, Sidi Mohamed. Los estúdios post-coloniales: una introducción crítica. Castelló de la
Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, 2007.

PACE, Arnaldo. Sound design en el cine: un largo camino hacia… In: ADES, E.;
BRAGANÇA, G.; CARDOSO, J.; BOUILLET, R. (orgs.). O som no cinema. Caixa cultural.
Salvador. 2008.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001

ROCHA, Glauber. Carta a Paulo Emílio. In: BENTES, Ivana (org). Glauber Rocha: cartas
ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify. 2006.

SÁ, Simone Pereira de; COSTA, Fernando Morais da (orgs). Som + Imagem. Rio de Janeiro,
7Letras, 2012.
122

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura dos trópicos: ensaio sobre a dependência cultural.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do


cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

SCHEIBEL, Marcio Luiz. Um diálogo entre o cinema hollywoodiano e as histórias em


quadrinhos americanas de super-heróis. Dissertação (Mestrado) – Ciência da Linguagem,
Universidade Federal do Sul de Santa Catarina – Unisul, 2008.

SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T.T.
(org). Identidade e Diferença. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉLÉ, Anne. Ensaio sobre análise fílmica. Campinas, SP.
Papirus, 1994.

VASCONCELOS, Naná. Africadeus: o repercutir da música negra. Harmonipan Studio.


2014. Disponível em: www.africadeus.com.

VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio 4ª Ed. 1997.

VIANNA, Hermano. Eu só quero fazer parte dessa Nação. Acesso em: 03/03/2018.
Disponível em: https://www.facebook.com/nacaozumbi/posts/1198018566920537 ou
http://dicionariompb.com.br/nacao-zumbi/critica. 2008.

VIEIRA JR, Erly. Sobre a dimensão transcultural do realismo sensório no cinema mundial
contemporâneo. In BRANDÃO, Alessandra; CORSEUIL, Anelise; LIRA, Ramayana (orgs).
Cinema, Globalização, Transculturalidade. [S.l.]: Editora Unisul – SOCINE, [entre 2008 e
2011]. {http://www.socine.org/wp-content/uploads/2015/09/cinemaglobalizacao.pdf}

VUGMAN, Fernando Simão. Western. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do


cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª Edição –


São Paulo, Paz e terra, 2005.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify,
2007.

Você também pode gostar