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SALVADOR
2018
SALVADOR
2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
AGRADECIMENTOS
Aos Professores José Roberto Severino e Guilherme Maia de Jesus, por aceitarem
contribuir participando da banca de defesa
À Professora Fernanda Martins, pelo cuidado e esmero nas contribuições feitas a este
trabalho na etapa de qualificação.
À minha família. Aos meus pais, Isabel e Fabio, primeiro pelo amor, depois pelo
imenso apoio e incentivo, e também por me ensinarem a beleza da vida ouvindo a música
Acabou Chorare. Aos meus irmãos, Felipe e Marco, que talvez sem saberem, colorem a
minha vida. Aos meus avós, Dona Arminda e Seu Garrido, Dona Nilda e Seu Ribeiro, que
tive a honra e a sorte de conviver, obrigado pelo amor, pelos carinhos e ensinamentos eternos.
À Caroline, a sereia que faz a realidade ser mais fantástica, agradeço pelo incentivo, ajuda e
inspiração, também pela paciência mas principalmente pelo amor.
RESUMO
O presente trabalho tem como ponto central o papel do som no cinema como criador de
sentido, através da representação de elementos sonoros de uma cultura. Para isso, esta
pesquisa realiza um estudo conceitual e histórico do cinema, do som no cinema e de suas
relações com os estudos da cultura, culminando na análise audiovisual, proposta pelo autor
Michel Chion, dos filmes Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João
Tikhomiroff). Duas obras cinematográficas que possuem temáticas semelhantes e trabalham,
em suas bandas sonoras, com os mesmos elementos sonoros pertencentes à cultura negra pós-
diaspórica da Bahia, exercendo, cada uma a sua maneira, papel fundamental na construção
fílmica destas duas obras. Dessa forma, este trabalho tem o objetivo de investigar as
contribuições do som nos filmes, através de uma análise das representações e transformações
desses elementos sonoros culturais, e de que maneira colaboram para entregar significado às
sequências fílmicas e aos longas-metragens como um todo. Para isso, esta dissertação se nutre
das teorias cinematográficas e dos estudos da cultura, refletindo sobre a linguagem
cinematográfica, realizando uma contextualização estético-histórica dos filmes, adentrando
nos estudos pós-coloniais e nos processos de identificação, e relacionando esses temas ao
cinema e aos filmes escolhidos. Por fim, esta pesquisa foca nas evoluções estéticas e
tecnológicas do som no cinema e suas influências na linguagem audiovisual cinematográfica,
para então realizar uma análise audiovisual de sequências representativas de pontos chave que
constituem estes dois filmes. Portanto, com essa pesquisa o autor visa contribuir para
aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas possibilidades de uso do som, em específico
de expressões culturais sonoras nos processos de identificação no cinema.
ABSTRACT
The present work focuses on the role of sound in cinema as a creator of meaning, through the
representation of the sound elements within a culture. For this, the research makes a
conceptual and historical study of cinema, sound in cinema and and its relations with the
culture studies, culminating in the audiovisual analysis, proposed by the author Michel Chion,
from the movies Barravento (1962, Glauber Rocha) and Besouro (2009, João Tikhomiroff).
Two cinematographic works that have similar themes and use, in their soundtracks, the same
sound elements pertaining to the post-diasporic black culture of Bahia, exercising, each one in
their own way, a fundamental role in the filmic construction of both movies. Therefore, this
paper aims to investigate the contributions of sound in films, through an analysis of the
representations and transformations of these cultural sound elements, and in what way they
collaborate to deliver meaning to a film sequences and feature films as a whole. For that, this
dissertation rely on cinematographic theories and culture studies, reflecting about
cinematographic language, bringing an aesthetic-historical contextualization of the films,
diving into the postcolonial studies and the processes of identification, and relating these
themes to the cinema and to the selected feature films. Finally, this research focuses on the
aesthetic and technological evolutions of sound in the cinema and its influences in the
cinematographic audiovisual language, to perform an audiovisual analysis of key points that
builds these two films. Therefore, with this research the author aims to contribute to deepen
the knowledge about the multiple possibilities of using sound, in specific of cultural sound
expressions in the processes of identification in cinema.
Keywords: Cinema; sound in cinema; culture studies; Barravento (1962); Besouro (2009)
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
I N T R O D U Ç Ã O
N e sse m u n d o c a m a rá
Mas não há mas não há
Mas não há quem me mande
E u só se i o b e d e c e r
S e m a n d a r , s e m a n d a r sã o b e n to g ra n d e
É d e a n g o la é d e a n g o la é d e a n g o la
D e a n g o la d e a n g o la d e a n g o la
M e u a v ô já fo i e s c ra v o
M a s v iv e u c o m v a le n tia
D e s c u m p r ia a o r d e m d a d a
A g ita v a a e sc ra v a ria
V e rg a lh ã o , c o rre n te , tro n c o
E ra q u a se to d o d ia
Q u a n to m a is e le a p a n h a v a
M e n o s e le o b e d e c ia
Q u a n d o e u e r a a in d a m e n in o
O m e u p a i m e d is s e u m d ia
A b a la n ç a d a ju stiç a
N u n c a p e sa o q u e d e v ia
N ã o m e c u rv o a le i d o s h o m e n s
A ra zã o é q u e m m e g u ia
N e m q u e se u a v o m a n d a sse
E u n ã o o b e d e c e ria
E sse m u n d o n ã o te m d o n o
E q u e m m e e n sin o u sa b ia
S e tiv e sse d o n o o m u n d o
N e le o d o n o m o ra ria
C o m o é m u n d o se m d o n o
N ã o a c e ito h ie ra rq u ia
E u n ã o m a n d o n e sse m u n d o
N e m n o m e u v a i te r c h e fia
11
INTRODUÇÃO
Durante alguns anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos da
capoeira. Depois, durante os anos em que já não estou diretamente ligado à capoeira, basta
escutar o berimbau, o pandeiro ou o atabaque, que minha atenção é reivindicada por esses
sons. É através dessas sonoridades que são ativadas lembranças; é através dessas sonoridades,
gravadas na mente, que posso viajar no tempo e no espaço; é através dessas sonoridades que
são invocados conhecimentos, sentimentos e sensações. Portanto foram essas sonoridades que
me conduziram até um pensamento sobre uma memória auditiva afetiva. Elementos sonoros
pertencentes a uma cultura e que, deste modo, formam parte do repertório cultural de uma
pessoa.
Durante os últimos anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos do
cinema. Entre os set’s de filmagem e a ilha de edição, foi crescendo a minha curiosidade e
encanto pelo som no cinema. A linguagem cinematográfica já era um tema que me chamava a
atenção por minha dedicação como montador, e o papel do som (integrante dessa linguagem
cinematográfica) como criador de sentido é o que tem movido o meu interesse como
pesquisador, montador e desenhista de som. Pois, contrariando a dominação da imagem nos
estudos de cinema, concordo com Guilherme Maia de Jesus e Wilson Gomes que preferem
afirmar que os filmes são herdeiros, não das representações pictóricas ou da evolução da
12
fotografia mas, das muitas formas de se contar histórias. ‘Um livro, um filme ou uma música
são elaborados por uma consciência com vistas a desencadear uma série de estados sensíveis e
intelectuais em uma outra consciência apreciadora. Como diz Gomes, “significar é sempre
significar para um interprete”.’ (JESUS, 2007, p. 103-104)
Na Era das telas, a intenção deste trabalho é destacar o que vem das caixas de som, dos
alto-falantes, dos amplificadores; sem, contudo, separar imagem e som, pois seguimos a ideia
sustentada por Michel Chion de que a combinação entre o que se vê e o que se escuta produz
algo inteiramente específico e novo, no qual o som interfere naquilo que se vê e o contrário
também é verdadeiro (a imagem interfere naquilo que se escuta), não fosse assim, uma análise
do som separado da imagem não englobaria o seu significado dentro do filme.
Dessa forma, com base no método de análise audiovisual, que “tem o objetivo de
perceber a lógica de um filme ou de uma sequência na sua utilização do som combinado com
a imagem” (CHION, 2011, p. 145), o presente trabalho realiza a análise dos filmes Barravento
(1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff). Filmes que foram
escolhidos, prioritariamente, por apresentarem semelhanças em suas temáticas, explorarem os
mesmos elementos culturais sonoros, e ainda, por utilizarem esses sons de formas distintas,
criando assim, duas abordagens sobre o tema e dois universos que se diferem nas suas
dimensões de real e de fantasia. Por outro lado, a escolha se deu também pelo caráter pós-
colonial dos filmes, pelo esforço em apresentar narrativas por vias diferentes das ensinadas
pelos (neo)colonizadores e escapar do discurso único.
Muitas análises são possíveis para os filmes, e neste trabalho optei por focar nas
potências dessas produções cinematográficas, pautando as contribuições criativas e artísticas
possíveis de se extrair de cada um desses filmes. Mesmo assim, este estudo não exclui as
possibilidades de análises e críticas pertinentes aos dois longas em questão, partindo
primordialmente do reconhecimento dos limites do lugar de fala dos diretores e das equipes
técnicas (a exceção de atrizes e atores), com nenhum (ou quase nenhum) negra ou negro
14
presente; portanto uma representação cinematográfica de uma temática negra sob o olhar de
uma equipe de realizadores brancos (que por mais informados e envolvidos que possam ser
com as questões do negro, não vivem na própria carne os problemas do racismo). Os mesmos
limites do lugar de fala que estou sujeito enquanto autor dessa dissertação, e que tendo
presente o fato de ter a pele branca estive atento e me dediquei a falar junto com os negros, e
em não assumir os seus lugares e consequentemente falar pelos negros.
Além disso, como dizia, as analises dos filmes podem seguir por muitos caminhos,
como pelo viés da crítica ao caráter paternalista da visão marxista de Glauber Rocha em
Barravento (1962) ou do interesse comercial do publicitário João Tikhomiroff com o filme
Besouro (2009). Entretanto, pela necessidade de fazer um recorte de pesquisa, seguiremos na
observação dos pontos que tributam em favor do cinema, do som no cinema e da temática
negra.
Com base nesse entendimento, esta pesquisa tem por objetivo investigar as
possibilidades e as contribuições do som dentro dos filmes, através de uma análise das
representações e transformações de sons culturais e a maneira como contribuem para entregar
significado às sequências e aos longas-metragens de forma geral. Um trabalho que busca
entender como os mesmos elementos sonoros culturais, em filmes de temáticas similares, são
empregados a ponto de adquirirem significados diferentes em cada filme; e ainda, como uma
memoria auditiva afetiva pertencente à uma cultura influencia no significado/sentido do filme.
Portanto, essa pesquisa visa aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas (e das novas)
possibilidades de uso do som, em específico pelas expressões culturais sonoras, nos processos
de identificação no cinema, através da análise dos filmes citados.
Intrínseco a isso, como comentado mais acima, a intervenção do som num filme
influencia o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia. De modo que a discussão
essencial do cinema entre o real e o reproduzido, que o acompanha historicamente desde o seu
nascimento e os surgimentos de estéticas e gêneros cinematográficos, se torna também
15
recorrente ao longo desse trabalho, assim como a sua transferência ao campo sonoro
cinematográfico ao se tratar das nuanças entre o naturalismo e o hiper-realismo sonoro.
Tema esse que inicia-se já no primeiro capítulo dessa dissertação, a começar pela ideia
de ilusão cinematográfica enquanto processo mental; acompanhada pelas reflexões, de um
lado dos teóricos formalistas que apontavam para o cinema como uma arte que faz o uso
estético da realidade, com liberdade para distorcê-la, e do outro lado, as teorias realistas
dizendo que o cinema está para mostrar o mundo tal como ele é. Nesse capítulo intitulado
Ilusões sonoro-visuais, introduz-se também o papel do som na linguagem audiovisual, a partir
das ideias de Michel Chion.
Este primeiro capítulo possui ainda dois subtópicos. No primeiro Escuta e cinema,
faz-se uma abordagem filosófica sobre a escuta e descreve-se os tipos de escuta, para então
relacioná-las com o cinema, chegando à ideia de montagem sonora – criadora de significados
oriundos da relação som e imagem, capaz de despertar sensações no espectador. Depois, em
Os mundos fílmicos, é defendida a ideia de que cada filme cria seu mundo particular, e que
para gerar esses mundos fílmicos os seus realizadores possuem um leque de convenções
cinematográficas que podem utilizar – convenções essas que quando combinadas (e repetidas
essas combinações em um grupo de filmes) são consideradas como gêneros cinematográficos;
nesta parte, observa-se como é utilizado o som em gêneros cinematográficos, algo que, junto
aos experimentos do cineasta e teórico Lev Kulechov, conduz à ideia de atmosfera sonora,
que define o “clima” de um mundo fílmico; além disso, analisa-se também os gêneros que
mais influenciaram os realizadores dos filmes escolhidos, Barravento (1962, Glauber Rocha)
e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff), completando com uma contextualização e análise
dos dois longas-metragens.
O terceiro capítulo, Atmosferas sonoras, está dividido em três subtópicos para poder
explorar as diversas reflexões e características das atmosferas sonoras cinematográficas, e
depois partir para uma análise das atmosferas dos dois filmes através de uma análise
audiovisual. Primeiro, em O sonoro no cinema, são aprofundados os aspectos da influência do
som no cinema e faz-se um acompanhamento das evoluções tecnológicas e as suas
possibilidades estéticas. Em seguida, em A Audiovisão, adentra-se nas ideias e no método
proposto por Michel Chion que, mesmo sem desassociar imagem e som, estabelece
procedimentos metodológicos para a observação das funções e propriedades do som em
filmes. No terceiro subtópico, Analise audiovisual, é aplicada a proposta de Chion para
analisar as sequências dos filmes escolhidas de acordo com os elementos chave que
constituem os mundos fílmicos de cada película e como as atmosferas sonoras se apresentam
em cada um desses pontos. Para isso este subtópico é divido de acordo com os pontos chave
dos filmes elencados, e no primeiro item, intitulado Do Neo ao Hiper-realismo, destaca-se
como as influências dos gêneros cinematográficos refletem nas intencionalidades dos autores,
e como os mesmos as transformam em recursos estéticos nos filmes e na construção da
atmosfera sonora de cada um dos filmes; no item seguinte, Religião, observa-se como os
filmes apresentam abordagens distintas sobre o misticismo e o papel da religião, e como isso é
expressado através dos sons nas cenas; no item Violência, trabalha-se com os significados e as
representações de violência em determinadas sequências e como os sons criam as suas
representações sonoras; e por último, mergulha-se em uma viagem pós-colonial pelas Trilhas
Sonoras, pois o canto das Sereias não cessa nunca, e Ulisses e Orfeu já sabem que “o único
antídoto para a melodia murmurada das Sereias parece ser produzir um som mais encantador
do que o delas. As outras opções são sofrer amarrado ao mastro ou resignar-se a não ouvi-las,
simplesmente (JESUS, 2007, p. 113).
“Ou seja, trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (…) que nos convida
a reaprender a ver e ouvir um filme” (VIEIRA JR., 2008-2011, p. 66).
17
C A P Í T U L O 1
VOYAGER
Nação Zumbi
voyager
o o u v id o e m o u tra d im e n sã o
v ia je i, m e lig u e i
fu i a li e v o lte i so b o sig n o d o so m
in v o c a n d o o s d e u se s a n c e stra is
d o s p e n sa m e n to s e sp ira is, m a io ra is
d a s a lm a s a n a ló g ic a s
à s a u ra s d ig ita is
o p e ra n d o n a s b re c h a s m u ltid im e n sio n a is
ta is q u a is a s zo n a s a u tô n o m a s
d a d iv is ã o q u e fa z o le v a n te d o s te m p o r a is
m a tr ix , p r e fix c o m b ic s
a sa b e d o ria n o m e u m ix
a o u v id o ria a te n ta n a p a re d e fa la n te
su s su r r a n d o d isso n a n te
p lu g u e -se , lig u e-s e e v á lo n g e
voyager
o o u v id o e m o u tra d im e n sã o
m a n ife s ta n d o e c o n ta m in a n d o
p e lo s fo n e s n u n c a s u rd o s
m ic r o fo n e s n u n c a m u d o s
a tra v é s d a s e n tid a d e s sa m p le a d a s
q u e d a n ç a m o a b su rd o
e n o s c a n te iro s d a g a lá x ia n e rv o sa
fa la n d o p ro o u v id o d o m u n d o
p lu g u e -se , lig u e-s e e v á lo n g e
18
1 . ILUSÕES SONORO-VISUAIS
No pano fixado na parede, feixes de luz desenham mulheres com vestidos de renda e
rodados, colares lhes enfeitam os pescoços e na cabeça, equilibram jarros de flores; num
piscar de olhos a luz muda, e agora vê-se um capoeirista que golpeia um guarda e voa de um
lado ao outro de uma cachoeira.
Uma ilusão1.
Uma tela que amplia ou diminui as dimensões dos objetos da natureza. Um ambiente
com tratamento acústico dificilmente encontrado no mundo em que vivemos. A imposição da
imobilidade das poltronas e a escuridão, exigem do ser humano, ali inserido, a disposição e o
empenho dos seus canais sensitivos da audição e da visão. Ainda assim (e justamente por
isso), os feixes de luz e os sons amplificados no cinema alcançaram a similaridade com a
dimensão do real, mais do que qualquer outra arte.
Uma relação entre o real e a realidade “re-produzida”, essa última composta por objetos
reais em movimento projetados no espaço da tela, que condicionou muitos cineastas e teóricos
do cinema a buscarem o aprimoramento dos elementos cinematográficos que remetessem o
espectador de cinema à ideia de que estaria tendo uma experiência do real. Dessa forma, esse
1
De acordo com o Dicionário Michaelis o termo ilusão refere-se às seguintes definições: “confusão entre o que
uma coisa aparenta ser e o que ela realmente é”; “engano dos sentidos ou da inteligência”; “ação de enganar e
iludir”.
19
flerte entre “real” e “reproduzido” irá acompanhar o cinema por toda a sua teoria e prática ao
longo da história.
O cinema clássico acolhe o som como um elemento que dará aos filmes um lastro
suplementar de realidade, “o advento do cinema sonoro, [...], constituiu um passo decisivo no
refinamento do sistema voltado para o ilusionismo e a identificação”. (XAVIER, 2005, p. 35)
As características do som agregam à imagem cinematográfica uma maior noção de
espacialidade, identificação de massa, peso, tipo de matéria que constitui o objeto da cena;
valores informativos e expressivos que enriquecem o representado na tela e que influenciam
na impressão imediata e na recordação que o espectador tem de uma sequência audiovisual.
Qualidades sonoras que foram definidas por Michel Chion como valor acrescentado pelo som
ao cinema (CHION, 2011).
Por mais que se tenha consciência de que algumas ações reais não produzem
determinados sons com tantos detalhes como nos filmes, essas representações sonoras ajudam
a dar ao espectador a dimensão, por exemplo, de quão forte foi um determinado golpe. E por
mais distante ou diferente da realidade que seja o conjunto audiovisual exibido, o espectador
com o seu desejo por dramaturgias e sua capacidade de fazer associações são fundamentais
para tornar a ilusão cinematográfica crível e envolvente (FLÔRES, 2013).
A partir disso, o som mostra o seu potencial de significação, para além de uma
redundância sonora do que está sendo mostrado na imagem. Segundo Tarkovski, com a
21
utilização do som no cinema “a vida registrada em fotogramas pode modificar sua cor, e, em
alguns casos, até mesmo sua essência” (TARKOVSKI, 1998, p. 190). Podemos, então,
concluir que o som modifica a percepção do espectador sobre a imagem visual. Em um
paralelo com o demonstrado pelo efeito Kulechov da montagem – a justaposição de imagens
modifica o sentido de cada imagem individualmente de acordo com a associação feita pela
montagem, ou seja, a imagem seguinte modifica a interpretação sobre a imagem anterior e o
que se tem é o significado do conjuntos de imagens justapostas – também som e imagem, uma
vez juntos significam algo diferente de quando separados.
Pela observação desse efeito, Michel Chion (2011) intitulou o seu livro de A
Audiovisão, referindo-se à atitude perceptiva do espectador cinematográfico, no sentido de
não ser possível, nessa combinação que caracteriza o audiovisual, separar as percepções
visual e auditiva, já que as duas se influenciam mutualmente. Afinal de contas nós não vemos
um filme, mas áudio-vemos ou escutamos-vemos um filme.
O autor Roland Barthes em seu livro Lo obvio y lo obtuso, inicia o capítulo intitulado El
acto de escuchar com a definição de que “ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar, uma
ação psicológica”2. (BARTHES, 1986, p. 243) Uma distinção que faz referência ao aparelho
auditivo (ou canal sensorial) e à atividade mental gerada a partir de estímulos sonoros.
Barthes ainda complementa que “escutar é se colocar a disposição de decodificar” 3
(BARTHES, 1986, p. 247).
2
“Oír es un fenómeno fisiológico; escuchar, una acción psicológica.” (tradução nossa) (grifo nosso).
3
“escuchar es ponerse en disposición de decodificar” (tradução nossa).
22
filósofo grego acrescenta que o próprio corpo físico permite ser surpreendido e abalado pelo
que se ouve muito mais do que pela visão ou tato. Não é possível evitar a escuta.
Por outro lado a audição é também o sentido mais logikós, segundo Plutarco. É por este,
mais do que por qualquer outro sentido, que se pode receber o lógos4. Chega a cravar que “o
único acesso da alma ao lógos é, pois, o ouvido” (FOUCAULT, 2006, p. 404). Essa
ambiguidade – logikós e pathetikós – acompanhará o tema em outros textos e períodos, se
fazendo presente também nos estudos sobre os tipos de escuta quando Roland Barthes,
dezenove séculos depois de Plutarco, os classificou em três categorias.
Em seus estudos sobre o som Chion também desenvolve definições sobre modos de
escuta. Nomeou de escuta causal a (mais próxima da noção de primeira escuta de Barthes)
que se ocupa de identificar a causa de um som. O tipo de escuta mais comum e mais
influenciável e enganador, pois o reconhecimento da natureza geradora de um índice sonoro
dificilmente se faz pelo fenômeno acústico isolado, mas principalmente, pelo contexto em que
esse som é produzido. No âmbito do cinema, o autor destaca que essa escuta causal é, com
frequência, manipulada através da síncrese, que faz o espectador acreditar, se iludir, de que o
4
logos no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Mas a partir de filósofos
gregos, como Heráclito, passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico
traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da
Ordem e da Beleza (https://pt.wikipedia.org/wiki/Logos).
5
“la oreja […] recibe el máximo de impresiones y las canaliza hacia un centro de vigilancia, selección y
decisión” (tradução nossa).
6
“escuchamos como leemos, es decir, de acuerdo con ciertos códigos.” (tradução nossa)
23
som emitido pelos alto-falantes tenha sido causado pelo objeto na tela que compõe a cena;
quer dizer, naquele determinado contexto (CHION, 2011).
Quanto à atividade auditiva que não se atêm ao caráter acústico do som, mas sim ao seu
significado (a segunda escuta de Barthes), recebeu de Michel Chion a designação de escuta
semântica. Refere-se à interpretação que fazemos dos sons. O autor observa que “a escuta
causal e a escuta semântica podem exercer-se paralela ou independentemente numa mesma
cadeia sonora” (CHION, 2011, p. 29), pois temos a capacidade de perceber simultaneamente
o que gera um som e o que o mesmo quer dizer (seu significado).
Além dessas duas, Barthes indica uma terceira escuta, desempenhada pela intervenção
do inconsciente. Como uma atividade própria de psicanalistas que fazem uso do traço
pathetikós da audição, Barthes segue os ensinamentos de Freud e sugere uma forma de
escutar que não se preocupe em saber se algo será absorvido ou não pelo lógos nessa
atividade. Dessa maneira, antes de que o sujeito que percebe um ruído possa fazer uma
interpretação do som pela razão, ele a faz inconscientemente por suas múltiplas sensações
(sinestesia); ou seja, entre o alerta sonoro e a compreensão do que aquilo possa significar,
estão as sensações despertadas pelo som em contato com a “memória inconsciente” do
sujeito. “Um modo de escutar pânico”7 (BARTHES, 1986, p. 255), tendo em conta que
alguns autores remetem a origem da palavra pânico ao Deus Pã: que perturba o espírito e
enlouquece os sentidos8.
A passividade auditiva, presente nessa terceira escuta, demonstra ser vantajoso que o
ouvido se deixe penetrar sem que a vontade intervenha, e assim, “recolha tudo o que do lógos
possa passar a seu alcance” (FOUCAULT, 2006, p. 405), como já afirmara o filósofo Sêneca.
Mesmo que não se preste atenção, que não se compreenda uma emissão sonora, alguma coisa
sempre permanece; o sujeito queira ou não, “há sempre um certo trabalho do lógos na alma”
(FOUCAULT, 2006, p. 405). E tratando das qualidades do traço pathetikós, Plutarco cita a
música, a lisonja das palavras e os efeitos da retórica, para afirmar que não há só a vontade de
interpretar uma informação sonora, mas também o objetivo de atingir o âmbito do sensível,
sendo a audição “evidentemente mais capaz do que qualquer outro sentido de enfeitiçar a
alma” (FOUCAULT, 2006, p. 403).
7
“un modo de escuchar pánico” (tradução nossa) (grifo nosso)
8
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1993.
9
“la escucha se abre a todas las formas de la polisemia” (tradução nossa)
24
Epicteto, outro filósofo visitado por Foucault, lembra que se para falar é preciso uma
tékhne, enquanto que para escutar, se requer uma empeiría (experiência, habilidade
adquirida), que se desenvolva uma familiaridade com as exigências da escuta. E para que seja
mais lógica do que patética, é necessária uma postura ativa de escuta, que tem a dupla função
de possibilitar a máxima escuta pela tentativa de eliminar as interferências externas e permitir
que a alma esteja calma para acolher a informação sem perturbação. “Daí a necessidade de
uma atitude, uma atitude física muito precisa e tão imóvel quanto possível”. (FOUCAULT,
2006, p. 412) Uma atitude muito similar à do espectador no cinema, já que imobilidade e
silêncio são exigências do ambiente cinematográfico para a melhor experiência fílmica. A
bordo desse mesmo barco que Ulisses e Epicteto, Chion grita aos tripulantes:
Outra vez então, nos deparamos com a ilusão, com a escuta pânico que confunde os
nossos sentidos e nos manipula a perceber algo novo, particular, impossível de ser apreendido
sem o efeito desse ilusionismo. Efeito esse, que advém da consciência das imperfeições
realísticas e da própria irrealidade do cinema. Principalmente os cineastas adeptos das teorias
formalistas, se utilizam dessas limitações, conduzindo e organizando a visão do espectador
pelo enquadramento dado à uma imagem, por exemplo.
Entretanto, e ao mesmo tempo, os teóricos realistas aparecem como uma contra corrente
e uma crítica ao formalismo, argumentando que esses se interessam basicamente pela forma
25
De forma sucinta, Bazin, entendia que a realidade bruta era a essência do cinema, mas
que a matéria-prima não era a própria realidade, mas o seu molde marcado na película (e na
tela), e que esses desenhos são compreensíveis pois são os mesmos que temos marcados em
nossas memórias. Enquanto para os formalistas, o que constitui a arte do cinema é a
transformação da realidade em abstração. Todos condenaram o apelo “cru” à realidade. O
cinema se torna arte quando o ser humano molda inteligentemente o material cinemático, e
transforma o real (ANDREW, 2002).
Já nas teorias mais contemporâneas, o francês Jean Mitry tenta fazer uma síntese das
ideias realista e formalistas. Afirma que esses desenhos que nos fazem lembrar objetos, o que
seriam imagens puras, possuem um sentido; e que uma sequência de imagens tem um
significado representacional que o cinema constrói, referindo-se ao processo de montagem
que interfere diretamente na ordem natural dos acontecimentos (ANDREW, 2002).
intelecto. Um processo de criação de sentido que se inicia com a intencionalidade das relações
criadas pelo diretor de cinema, e se completa nas relações percebidas e desenvolvidas pelo
espectador. O teórico formalista Belá Balázs contribui para esse pensamento quando fala de
um fluxo de significado que se mantem em paralelo ao fluxo de imagens, “mantendo-as juntas
para a criação de um mundo humano e motivado” (ANDREW, 2002, p. 157).
com seus planos, seus desejos, seus significados, que faz com que esses
análogos da natureza se submetam à própria necessidade insaciável de
significar. Um novo mundo é criado pelo cineasta com a ajuda e
cumplicidade do mundo real dos sentidos. Nenhuma outra arte fez isso
(ANDREW, 2002, p. 158).
Na virada das décadas de 1920 para 1930, quando o sincronismo entre som e imagem se
tornou possível; os teóricos e cineastas soviéticos, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov,
27
A forma mais comum de relacionar o áudio ao visual é pelo som diegético, o que quer
dizer qualquer som que emana da história relatada (diegesis), conectado diretamente com o
narrado pelas imagens, mesmo quando a causa sonora não está visível na cena, como os
ruídos de ambiente, mas que compõem o enredo. Uma outra opção disponível ao montador e
ao diretor de um filme é a utilização do som não diegético, que não se incorpora ao espaço-
tempo da narrativa, não pertencente àquele mundo apresentado pela imagem; fácil identificá-
los quando se percebe que os personagens da cena não escutam esses sons. Uma música pode
ser não diegética quando, em uma sequência fílmica, não se pode identificar o seu mecanismo
de origem; mas será diegética se na cena aparece uma vitrola com um disco a girar (FLÔRES,
2013).
10
Estilo de montagem usado por Godard em Acossado, que corta de um plano para o mesmo plano dando uma
sensação de salto temporal-espacial.
11
Voz que não está presente no quadro ou na cena, pode se apresentar de várias formas, como o pensamento de
uma personagem, uma voz não identificada que cumprindo o papel de narrador etc.
28
“Não há limite para o que um signo pode significar” (LANGER, 1989, p. 69).
Com essa ideia de montagem sonora voltamos à capacidade ilusionista do cinema, pois
também a noção de fidelidade do som no cinema está associada às noções de representação e
reprodução. Chion considera que quando um som é reconhecido pelo espectador, o mesmo
não se preocupa em saber se este é o mesmo som que seria emitido no mesmo tipo de situação
ou de causa na natureza. O importante é que o som represente (traduza, exprima) as sensações
associadas a essa causa. Portanto “não existe qualquer razão para que as relações audiovisuais
assim transpostas pareçam as mesmas que no real, e nomeadamente que os sons originais
reproduzam sons verdadeiros” (CHION, 2011, p. 79). (grifo nosso)
12
Sons produzidos a partir de variados matérias, gravados em estúdios por profissionais que simulam
sonoramente o que é projetado.
29
para criar as sensações desejadas. Uma música ou elemento sonoro culturalmente deslocado
do seu cenário, pode não surtir o efeito desejado pelo realizador.
Para entender o mundo criado em cada filme é preciso analisar a sua composição
cósmica. A análise fílmica é uma atividade de destacar materiais que não se percebem
isoladamente em experiência fílmica descompromissada. O analista observa de modo ativo,
consciente da ilusão audiovisual, e examina técnica, estética e simbolicamente o filme. E “se
considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas”
levando em consideração o contexto histórico em que cada um desses mundos foi gerado
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 23).
A imagem em movimento foi uma grande invenção, mas desde o século XVII imagens
projetadas por um foco de luz eram acompanhadas por vozes e efeitos sonoros. A partir de
1894, quando os irmãos Lumière na França e Thomas Edison nos Estados Unidos
desenvolvem aparatos de gravação e reprodução de imagem em movimento, até 1905 (alguns
estudiosos apontam 1904, outros 1906), durante a fase chamada de cinema de atrações, a
maioria dos filmes eram compostos por apenas um plano: os produtores se dedicavam a filmar
planos individuais, os rolos com cada plano eram vendidos separadamente, e o exibidor
controlava a ordem (e também a velocidade) em que os planos seriam projetados. Durante os
seus primeiros vinte anos de existência, “por estar misturado a outras formas de cultura, como
o teatro, a lanterna mágica, o vaudeville e as atrações de feira, o cinema se encontraria num
estágio preliminar de linguagem” (COSTA, Flávia, 2006, p. 22).
“André Malraux [...], aponta o corte dentro da cena como o ato inaugural da arte
cinematográfica” (XAVIER, 2005, p. 29).
“Depois de outubro, não veio a bonança. Entre 1917 e 1920, as ainda não consolidadas
repúblicas socialistas soviéticas mergulhavam numa dura guerra civil. No olho do furacão, os
futuros protagonistas do cinema, [...] começavam suas carreiras nas fileiras do Exército
Vermelho” (SARAIVA, 2006, p. 109). Lev Kulechov e Dziga Vertov eram colegas de
trabalho na produção de noticiários cinematográficos para os fronts de batalha e os trens de
propaganda. Sergei Eisenstein largou os estudos de engenharia para organizar espetáculos
teatrais para os soldados.
É nesse tipo de pensamento que nos apoiamos para explorar a ideia de mundo fílmico,
de que cada filme constrói um mundo particular. Pois se é possível a construção de um espaço
e um corpo cinematográfico, podemos concordar que o conjunto de recursos da linguagem
cinematográfica opera para transportar o espectador a um mundo fílmico, no qual se
desenrolará um enredo com esses corpos cinematográficos habitando e se relacionando nesse
espaço fílmico. Um mundo concebido num cosmos cinematográfico, com regras e limitações
próprias do cinema, mas que é atravessado pelo (e atravessa o) mundo real; mundo que faz do
mundo real (ou dos desenhos que o mundo real nos deixa, como vimos antes) a sua matéria
prima; onde é preciso que uma atmosfera determine o “clima” de cada um desses mundos, em
que nos atrevemos a dizer que essa camada de ozônio é constituída por vibrações acústicas,
ou seja, onde a atmosfera é sonora.
De tal modo que imagem e som, podem então, serem considerados como elementos
integrantes de mesmo nível na linguagem cinematográfica, e torna-se limitada a proposta de
um cinema formado por imagem e mais alguns acessórios. Pois “construir um espaço-tempo
através da combinação de imagens define um tipo de trabalho, enquanto que construí-lo
através de imagens e sons é algo qualitativamente diferente” (XAVIER, 2005, p. 37). A
33
Sem que se alcance um veredicto, Kulechov aponta que uma montagem é justa quando
relaciona imagens e sons conseguindo transmitir a essência do fenômeno a ser reproduzido,
mas destaca que por trás de cada montagem sempre haverá uma intensão de classe; portanto
para o autor prevalecem os critérios ideológicos sobre os técnicos, de ritmo e continuidade. E
34
em uma Hollywood abalada pela crise de 1929, mas sob o espírito do New Deal e da
esperança no triunfo do capitalismo, surge o herói americano: forte, competitivo e trabalhador
enérgico, características que o conduzem sempre à vitória, condicionando a plateia a pensar
que caso empenhe, na vida real, a mesma energia do herói do cinema, conseguirá adquirir
fortuna, se tornar proprietário de uma casa e ser feliz no casamento (ROCHA, 2006;
XAVIER, 2005).
Importante pontuar que, assim como o ser humano e por ser uma criação humana, os
gêneros não são estáticos e estão sempre sujeitos à constantes mutações e hibridizações. As
convenções de um gênero podem se modificar/atualizar ao longos dos períodos históricos, e
um filme pode ser híbrido e apresentar elementos de mais de um gênero.
Os realizadores audiovisuais têm nos gêneros um quadro de referencias que lhes permitem
pautar as suas escolhas, seja pela adoção das práticas convencionadas, seja pela subversão dos
códigos partilhados. “É no equilíbrio entre o domínio das convenções e a ruptura das mesmas
que um criador se pode evidenciar como um autor” (NOGUEIRA, 2010, p. 7).
As convenções do western são tão marcantes para o cinema que um tipo de plano
cinematográfico surgiu por conta desse gênero. Entre os planos aberto e médio, um plano que
enquadra o ator delimitando o teto do quadro logo acima da cabeça e cortando na altura do
joelho foi denominado de “plano americano”, e assim pudemos ver num mesmo plano a
expressão facial do personagem e a pistola, talvez seu maior símbolo iconográfico.
“O western é o sangue básico do americano, sua cultura popular, sua formação étnica,
religiosa no que ele possui de indevassável” (ROCHA, 2006, p. 116). Ao final de cada filme,
o herói prendia ou matava o bandido e beijava a mocinha, até que veio a segunda guerra
mundial. E junto com o mito do herói estadunidense infalível, que acerta todos os tiros e
nunca é baleado, os aliados venciam a guerra e a Europa ficava arrasada.
vigor. Mas à margem dessa produção tradicional, uma série de realizações colocaram nas
telas, filmes que começam com um padre sendo fuzilado por soldados nazistas em plena luz
do dia na cidade aberta de Roma13; que corta para um plano geral da rua e, um pai com seu
filho caminham apressadamente, vivendo o drama da falta de emprego em meio ao dilema
entre a fome familiar e o de se tornar um ladrão de bicicleta.14 O herói desse cinema italiano
não é infalível, ele tem mais dúvidas que certezas; esse é um cinema de pessoas de verdade,
os seus cotidianos e fundamentalmente as suas relações com o ambiente, seu habitat.
De Santis, diretor italiano, em 1943 dizia: “Nós acreditamos, hoje mais do que nunca,
que o termo documentário tenha de ser despojado de seu comum atributo científico para
[alcançar] um significado poético mais alto, onde os termos de conteúdo sejam homem e
natureza”. (apud FABRIS, 2006, p. 208-209) Outro diretor italiano, Rossellini, defendia um
método de apropriação do real que se pautasse, não apenas em “olhar em volta”, mas
principalmente no “como olhar”. E Zavattini formulou, então, estratégias para esse “como
olhar”: (1) pendimento, ato de ficar perseguindo alguém; (2) buco nel muro, buraco na parede;
(3) poetica del coinquilino, poética do vizinho. Afirmavam, com isso, que era preciso sair às
ruas para conhecer o próximo, o próprio, a sua gente (FABRIS, 2006).
“Não sei quanto o cinema italiano do pós-guerra mudou a nossa maneira de ver o
mundo, mas com certeza mudou nossa visão do cinema” (FELLINI apud FABRIS 2006, p.
217).
Fellini enquanto diretor de cinema não se ateve apenas às convenções desse gênero em
suas realizações, mas ressalta a importância e influência do neorrealismo para o cinema
13
ROMA, Cidade aberta. Roberto Rossellini, 1945
14
LADRÕES de bicicleta. Vittorio De Sica, 1948
37
Feita a pergunta, o próprio cineasta e autor Glauber Rocha responde: “a arte brasileira
precisa se nacionalizar através de sua expressão” (ROCHA, 2003, p. 125).
“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original,
15
Para saber mais sobre a Nouvelle Vague cf. capítulo de Alfredo Manevy (MASCARELLO, 2006)
38
nada nos é estrangeiro, pois tudo o é” (GOMES, 1996, p. 90). Enquanto país formado em
decorrência do processo de colonização, a construção da expressão brasileira tem na base a
dialética entre o ser a cópia do outro, do colonizador, dos países do primeiro mundo; e a
negação em assumir-se colonizado, de um país subdesenvolvido (GOMES, 1996).
Filmes estrangeiros, que remetem a mundos, histórias e culturas diferentes das vividas
pela plateia costumeiramente, podem ter o efeito de distração, de um envolvimento superficial
do espectador, de escapismo à sua realidade mundana. Entretanto, filmes nacionais, se
tratarem de temas próximos, possuem intrinsecamente uma provocação ao espectador
nacional que assiste aos filmes. O conjunto de elemento ali expostos na tela representam o
próprio espectador e aspectos que o rodeiam: objetos que lhe são familiar, comportamentos
em situações cotidianas, o seu idioma particular, suas memórias e mitos originários. “Essa
interpretação, consciente ou inconscientemente, ele não pode deixar de aceitar ou rejeitar.
Esse compromisso diante de um filme nacional, do espectador com a própria realidade, é uma
situação à qual não se pode furtar” (BERNARDET, 2007, p. 32).
“Depois de Cinco vezes favela, filme desigual mas revelador, produzido em 1962,
tornou-se o Cinema Novo o responsável por quase todos os filmes nacionais importantes”
(GOMES, 1996, p. 82).
39
Glauber Rocha faz questão de concordar com Jean-Claude Bernardet quando esse
define Barravento como filme experimental – um filme assumido por Glauber com 21 anos
em 1959 com as gravações já iniciadas (antes sob direção de Luiz Paulino dos Santos) e que
teve de reescrever o roteiro durante as filmagens; uma estreia na realização de longas-
metragens com a ousadia de mesclar atores e não-atores, quase todos negros (fato até o
lançamento de Rio 40 graus nada comum no cinema brasileiro). Um filme que, para
Bernardet, sendo experimental revelou-se fundamental para o cinema brasileiro,
principalmente por ser socialmente experimental (ROCHA, 2003).
Pois “o cinema novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade”
40
O cinema, de modo geral, é uma questão de escolha; o cineasta escolhe o que irá ser
gravado na película. Quando decide abrir câmera e microfone sobre os centros urbanos ou as
vilas de pescadores “a escolha é imposta e, mesmo que a matéria original seja neutra, na
montagem se faz discurso contra a matéria: pode ser impreciso, difuso, bárbaro, irracional.
Mas é uma recusa tendenciosa” (ROCHA, 2004, p. 104). Então quando se fala que o cinema
novo é uma questão de verdade, se faz referência à uma verdade sem a inocência da
imparcialidade, mas à uma verdade com intencionalidade. Rocha sinaliza que o cinema é
verdade desde que se filmou a saída dos operários, mas que a conceituação de verdade parte
de uma visão crítica da realidade, sem muitos artifícios como a maquiagem e o tripé, mas com
a câmera na mão, baixo custo de produção e o desejo de mostrar o “verdadeiro” rosto e gesto
humano (ROCHA, 2003).
A fome, como nos aponta Glauber, não é apenas “um sintoma alarmante: é o nervo da
própria sociedade” (ROCHA, 2004, p. 64) da qual se origina essa “eztetyka”; esse cinema que
não só mostra os famintos como transforma a carência (tanto da realidade brasileira como dos
recursos do cinema brasileiro subdesenvolvido) em convenções de linguagem. “A carência
deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que
informa a sua estrutura e do qual extrai a força de expressão” (XAVIER, 2007, p. 13).
O que para o resto do mundo pode parecer “um estranho surrealismo tropical. Para o
brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e,
sobretudo, não sabe de onde vem esta fome” (ROCHA, 2004, p. 66). Pois é nesta fome e neste
16
Título do curta-metragem de Leon Hirszman, de 1964, que ponta câmera e microfone para a maioria da
população brasileira que é composta por analfabetos.
41
“não saber” de onde vem a fome que o filme Barravento (Glauber Rocha, 1962) se insere – a
fome numa vila de pescadores.
Por detrás de um Farol surge um homem vestido com paletó e chapéu branco,
diferente dos puxadores de rede que usam bermuda e chapéu de palha. É Firmino, que retorna
à vila de pescadores, vindo de um bom período vivendo na cidade e sobrevivendo de
descarregar navios escondido da polícia. Firmino é recebido com desconfiança por parte dos
seus conterrâneos mas ele se oferece para pagar a cachaça e logo o samba de roda começa
regado a muitas rizadas e umbigadas.
Vai noite vem sol, na puxada seguinte a rede sai do mar rasgada e sem peixe para
dividir. O capataz do Patrão diz que quer os peixes de qualquer jeito, e que se não tiver
mandará tomar de volta a rede alugada. O Mestre argumenta sem sucesso; seu discípulo Aruã,
o melhor pescador da vila e protegido de Yemanjá, parte alterado em direção ao capataz mas
é contido pelo Mestre, a quem deve obediência. De todo modo, Aruã não concorda com a
posição do Patrão: “quem puxa a rede somos nós, quando o peixe não vem ficamos sem
comer; o homem não pensa nisso, ele come todo dia; e aqui fica um xaréu para cada cem”
(fala de Aruã em Barravento, 1962).
A situação da fome está posta. E como colocado por Glauber antes, a fome é o nervo
dessa sociedade.
“Eu filmei Barravento (grifo nosso) num estado de crise, abandonava as ideias da
adolescência. [...] Nessa época eu era surrealista, futurista, dadaísta e marxista ao mesmo
tempo” (ROCHA, 2004, p. 112). A ideologia marxista da época trazia a questão da
exploração do trabalho de uma classe oprimida por uma classe dominante e também
colocavam as religiões como fator alienante de populações exploradas. No filme de Glauber
Rocha essas ideias são defendidas por Firmino que não se conforma com o imobilismo diante
da fome e da situação exploratória exposta pela divisão dos pescados, e aponta o candomblé
como responsável por essa passividade.
Firmino é Glauber.
O cineasta baiano expõem essas ideias no filme e também em carta a Paulo Emílio
Sales Gomes quando escreve: “estes candomblés, embora possuam valor cultural estimável,
adormecem uma raça de fantásticas possibilidades” (ROCHA, 1997, p. 125) e completa
afirmando que, mesmo apaixonado pelos costumes populares, não aceita “que o povo negro
sacrifique uma perspectiva em função de uma alegoria mística”17 (ROCHA, 1997, p. 126).
17
É importante destacar que um pensamento/ideologia de um momento/movimento histórico também está
sujeito à modificações. E essa ideia de religião como fator alienante de uma sociedade se transformou, assim
como o próprio posicionamento de Glauber Rocha sobre essa questão. O que se pode verificar em textos e filmes
posteriores de Rocha.
43
A religião é então um outro ponto chave do filme – talvez não a religião em si, mas a
fé religiosa como solução para os problemas mundanos. E é com o objetivo de desconstruir os
mitos tradicionais religiosos que Firmino irá atuar para tentar fazer com que aquela população
se rebele contra a situação socioeconômica da fome em que vivem. Firmino se lança contra o
mito que envolve Aruã como protegido de Yemanjá. Seu objetivo é mostrar que esse
misticismo é falso e, assim, contradizer a religião e desqualificar o Mestre da posição de líder,
para que a passividade diante da injusta divisão dos peixes não continue sendo seguida pelos
pescadores, para que então se estabeleça uma nova forma de viver que não resulte na fome.
Laroyê!
Exu é [...] o mais astuto dos orixás.
Ele aproveita-se de suas qualidades para provocar mal-entendidos e
discussões entre as pessoas ou para preparar-lhes armadilhas. [...]
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje!
Se zanga-se, ele sapateia uma pedra na floresta, e esta pedra põe-se a
sangrar!
(VERGER, 1997, p. 11).
revolucionário.
Firmino – Cota, no fundo meu coração presta e muito. Ando com você
porque o seu jeito é de quem não se abaixa; Aruã também não quer se
abaixar mas o Mestre domina [...]; foi por isso que eu cortei a rede, a
barriga precisa doer mesmo, que quando tiver uma ferida bem grande,
então todo mundo grita de vez. Pra mim, princesa Isabel é ilusão.
(fala extraída de Barravento, 1962).
Cota não entende seu amado e prevê uma desgraça por conta da rede cortada; Firmino
incompreendido, cantarola uns versos do sambista baiano Batatinha: “meu sofrimento
ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer”.
Quando o Patrão envia seus capangas para levar a rede de pesca embora, Aruã defende
que os pescadores não deixem a rede ser levada, mas o Mestre decide que não há nada a se
fazer, pois a lei favorece ao Patrão. Firmino convoca os pescadores para resolverem esse
problema por si próprios e botar aqueles capangas para correr. Mas a decisão do Mestre já
estava tomada, a incitação de Firmino contrariada quase acaba em briga entre os pescadores,
que no fim das contas ficam sem a rede para pescar.
Aruã representa o futuro. Quando estiver pronto ocupará a posição de líder no lugar do
Mestre; este por outro lado, é quem representa a manutenção da situação atual, elemento
conservador, portanto um contraponto à Firmino que propõe a mudança, a revolução.
De acordo com a religião do candomblé, Aruã por ser protegido de Yemanjá, deve
guardar a sua virgindade para uma filha dessa Orixá, mas numa armadilha típica de Exu,
Firmino convence Cota (filha de outro Orixá e não da Rainha do Mar), a seduzir Aruã. Pelo
seu instinto humano, o pescador não resiste à sensualidade de Cota e junto com a virgindade,
Aruã perde também o seu encanto sobre-humano. Por obra divina ou da natureza o tempo
muda: os ventos se agitam, a chuva cai, o mar fica revolto. Chegou o Barravento.
Dois pescadores haviam se lançado ao mar, um volta morto por afogamento e o outro
45
nem volta. Aos gritos, Firmino revela para toda a comunidade, ainda sob o impacto das
mortes, que Aruã havia se deitado com Cota, que ele era homem de carne e osso. Os ânimos
então se esquentam: o herói-de-carne-e-osso e o anti-herói-revolucionário travam um caloroso
duelo de capoeira, e como num filme do neorrealismo italiano, o protagonista é vencido.
Entretanto, agora que já não estava mais envolto ao misticismo religioso, Aruã estaria apto
(pela visão ideológica de Firmino-Glauber) para assumir a posição de líder e promover a
mudança necessária para retirar a comunidade pesqueira da situação de fome.
Dos negros escravizados que fugiram pros quilombos em Ganga Zumba (Carlos
Diegues, 1964), aos seus descendentes, os pescadores de Buraquinho – que seguem em
condições de escravidão tendo sua força de trabalho explorada pela geração subsequente aos
senhores escravagistas –, o cinema novo demonstra uma vontade, uma intencionalidade, de
reconstruir a história brasileira a partir das histórias dos vencidos. “Ambos os filmes
valorizam a história dos negros, e a riqueza de sua cultura é pela primeira vez abertamente
enfocada no cinema brasileiro”, ambos os filmes convocam o espectador a “refletir sobre a
permanência da injustiça e da falta de liberdade que determina a trajetória dos
afrodescendentes brasileiros” (CARVALHO, 2006, p. 292 e 293).
“Não há quem, neste mundo de hoje dominado pela técnica, não tenha sido
influenciado pelo cinema. Mesmo que nunca tenha ido ao cinema em toda
vida, o homem recebe influências do cinema: as culturas mais nacionais não
resistiram a uma certa forma de comportamento, a uma certa noção de
beleza, a um certo moralismo e, sobretudo, ao estímulo fantástico que o
cinema faz à imaginação. Os reflexos se fazem a curto e longo prazo e a
sedimentação de uma cultura cinematográfica é fato profundo na vida
contemporânea. Não se pode porém falar de cinema sem se falar em cinema
americano. [...] essa influência do cinema é pois uma influência do cinema
americano, como forma mais agressiva e difundida da cultura americana
sobre o mundo. [...] Monstro produtor de ilusões (ROCHA, 2004, p. 127-
128).
Alguns autores observam essas adaptações formais não enquanto algo que não
“funcione” para a narrativa cinematográfica, mas como algo que “funciona” numa mudança
da natureza dessa própria narrativa. Algo que pela espetacularidade se torna memorável
(MASCARELLO, 2006). Pois como já tratado anteriormente, em dados momentos do
movimento histórico, os gêneros cinematográficos sofrem atualizações; podem ter as suas
convenções desafiadas ou refeitas; e alguns filmes podem beber de várias fontes estilísticas.
Com fronteiras geográficas que se dissolvem nesse mundo globalizado, temos alguns
westerns-spaghetti declaradamente influenciados pelo cinema do japonês Akira Kurozawa, e
podemos também olhar para os filmes de artes marciais como um correspondente oriental dos
filmes de capa e espada (NOGUEIRA, 2010).
O cinema chinês, por exemplo, contou com a presença de antigos instrutores de kung
fu nas equipes de realização de alguns filmes, e alcançaram uma crescente visibilidade na
19
Da concepção de que um estilo se estabelece como um conjunto de técnicas que por sua repetição tornam-se
reconhecíveis/identificáveis. Já o excesso, pode-se dizer que é causado por técnicas que ultrapassam os requisitos
específicos da narrativa (MASCARELLO, 2006).
48
temos acesso aos novos cinemas, aos inúmeros ciclos de cinematecas, às TV’s por assinatura,
à difusão do vídeo e do DVD, à chancela dos festivais internacionais” (FRANÇA, 2006, p.
396), incluindo as infinidades de obras audiovisuais espalhadas pela internet e o modelo de
distribuição “sob demanda”.
Um panorama das relações de poder global que é preciso se ter em conta se vamos
falar em hibridização, pois “como um termo descritivo amplo, o termo ‘hibridismo’ não
distingue as diversas modalidades de hibridismo: imposição colonial, assimilação forçada,
cooptação política, mímica cultural e assim por diante” (SHOHAT e STAM apud ARAÚJO,
2013, p. 119). Entretanto, reconhecendo-se as relações de poder estruturantes do cinema
globalizado, é possível reconhecer também como resultado da globalização uma maior
propagação de narrativas particulares de culturas menos poderosas geopoliticamente falando,
mas com ricas expressividades culturais e cinematográficas.
World cinema é um termo transpassado por uma série de definições: a começar pela
sua analogia aos termos world music e seu equivalente na literatura, que fazem alusão às
produções de fora do eixo EUA-Europa Ocidental; passando também pela ideia de um cinema
que busca “mapear, definir e, finalmente, proteger a cultura audiovisual do mundo, tornando-a
um polo de resistência contra a percepção de hegemonia cultural da cultura ocidental, de
forma mais geral, e de Hollywood em particular” (COOKE, 2013, p. 14); e chegando ao
conceito que tem recebido variadas denominações nos estudos do cinema, como cinema com
sotaque, intercultural e urderground por exemplo, “apenas alguns dos termos usados por
vários autores para justificar a urgência crescente de conceitualização da produção cultural
que leva em consideração o intercambio global dos interessados, sejam eles grandes ou
pequenos, dominantes ou fracos” (COOKE, 2013, p. 14).
O termo World Cinema pode ser empregado também para filmes que em suas tramas
tratam de histórias desse mundo em globalização, em que populações estão em movimento e
o carácter econômico-social define esse fluxo enquanto turistas ou trabalhadores imigrantes.
Esses são filmes que ressaltam “a interdependência da comunidade global e o potencial de
natureza híbrida, ‘conectada’ de formação de identidade que é costumeiramente inerente a tal
mobilidade” (COOKE, 2013, p. 17).
20
Termo derivado da classificação cinema transnacional (FRANÇA, 2006).
51
Besouro (2009) foi idealizado e realizado pela produtora paulista Mixer, especializada
em produções audiovisuais para publicidade e que com este filme inaugurou a realização de
longas-metragens. Sob o comando do publicitário João Daniel Tikhomiroff que, já tendo feito
o curta-metragem Missa do Galo (1974) e recebido muitos prêmios por suas publicidades,
igualmente estreia na direção de um longa, no qual também assina o roteiro. A equipe
multifacetada tem o equatoriano Enrique Chediak na direção de fotografia; o coreógrafo
chinês Huen Chiu Ku (conhecido por seus trabalhos em O Tigre e o Dragão e Kill Bill) como
coordenador das cenas de ação; o brasileiro Gustavo Giani na montagem do filme; e a
distribuição a cargo da Buena Vista Internacional, do grupo Disney.
As aulas de capoeira que Mestre Alípio dava às crianças costumavam ser na floresta, e
entre um martelo (golpe de capoeira) e uma cocorinha (defesa de capoeira) as conversas sobre
a vida sempre apareciam e Mestre Alípio também passava seus ensinamentos. Na primeira
cena do filme, o menino Manuel expõe seus questionamentos ao Mestre:
Manuel – Eu não posso porque eu sou menino; eu não posso porque eu sou
pobre; eu não posso porque eu sou preto.
Mestre Alípio – Menino, um dia você vai ser homem; pobre quem sabe,
amanhã você pode ser rico; agora preto meu filho, é pra vida inteira; preto
com muito orgulho de sua cor e não deixar ninguém fazer pouco de você.
(Besouro, 2009).
O menino escuta atento quando de repente passa um inseto que lhe chama atenção,
Mestre Alípio então emenda:
Mestre Alípio – Ninguém dá conta que esse cascudo voa. É pesado e tem as
assas fininhas... Até a ciência jura que esse besouro não voa, mas... olha que
maravilha.
(Besouro, 2009).
Um rock’n roll, com direito a guitarra distorcida e uma percussão grave. Em português
uma voz canta (como nos versos de uma música de capoeira) “Besouro, cordão de ouro”, e
entram na tela os créditos iniciais que prenunciam a trama do herói que está por começar.
Como num filme de ação em que o enredo costuma seguir um arco narrativo bastante
54
É dia de feira na cidade, negras e negros vendem o que colheram, Mestre Alípio
caminha por entre as barracas e cumprimenta as pessoas. Em um beco, uma roda de capoeira,
negras e negros lançam pernas e braços em movimentos plásticos e harmônicos. Besouro é o
melhor na capoeira, recebe aplausos e sorrisos. Besouro, que devia estar protegendo o Mestre,
encaixa uma rasteira e se exibe na roda. Outro capoeirista chega: Mestre Alípio não está em
casa. O berimbau para de tocar. Tiros! Em um bar da cidade o corpo de Mestre Alípio no
chão. Besouro chega, desarma e golpeia o assassino. O Mestre ferido é levado para a antiga
senzala pelo seu discípulo.
Chamado à aventura: acontece algo que incita o herói abandonar ou mudar o seu
mundo comum.
O personagem principal se sente culpado pelo acontecido ao seu mestre, que antes de
morrer tenta tranquilizá-lo e o aponta como novo líder: “isso tinha que acontecer... eu escolhi
você para continuar o que eu comecei”.22 Os ventos se agitam, as folhas se balançam e sons
transcendentais de atabaques e berimbaus dão um tom sobrenatural à cena, sinalizando um
momento de mudança. A partir daí o enredo passa a construir o herói no personagem, até o
momento em que o homem de carne-e-osso passe a se entender enquanto Besouro, o herói.
Desde a sua hesitação e isolamento pelo sentimento de culpa e a responsabilidade em
assumir-se líder que o leva ao transe, com uma sequencia que apresenta imagens de Orixás
em rios e grutas, um sapo e uma aparição de Mestre Alípio; para então ter segurança e iniciar
a jornada do herói, a partir do seu retorno à cidade que resulta num confronto com Exu (um
ser humano interpretando o Orixá com maquiagem e vestuário) por não prestar o seu respeito
e reverência à esse Orixá.
Lembremos da fábula do pássaro que Exu matou ontem com a pedra que atirou hoje e
então sabemos: Besouro perdeu o combate e se ajoelhou perante o Orixá – aquele que faz bem
a quem lhe faz bem. Exu, satisfeito com a reverência, desaparece; Besouro, ainda ajoelhado, é
cercado pelos capangas do Senhor do Engenho, mas num pulo espetacular derruba três
homens e foge em disparada numa agitada perseguição (na qual já vemos o herói a realizar
21
Seguimos a estrutura apresentado por Christopher Vogler, em seu livro A jornada do escritor, de 1992
(SCHEIBEL, 2008)
22
Fala extraída do filme Besouro (2009)
55
saltos impossíveis aos que o perseguem) mas que ao final da sequência, termina encurralado
em uma cachoeira onde hesita por um instante mas se lança no ar, de uma altura que poucos
seres humanos sobreviveriam.
Provação suprema: aparentemente sem saída, o herói confronta o perigo e, após quase
morrer, renasce mais forte.
Besouro, muito debilitado depois da forte queda e de descer rio abaixo, passa por mais
uma experiência onírica, com Orixás que se materializam na tela e o ajudam na sua
reabilitação. Em seguida é encontrado por uma mãe de santo que lhe cuida e realiza um rito
do candomblé para que Ogum feche o corpo do herói, assim estará protegido. Besouro recebe
o seu “cordão de ouro” benzido pela mãe de santo e, com o corpo e o espírito curados pelos
conhecimentos e crenças do candomblé, se levanta e sai da casa decidido. Primeiro plano do
herói e a música tema volta com o rock.
Besouro é Ogum.
Ogum Yêêê!
Ogum era o mais velho e mais combativo dos filhos de Odudua, o
conquistador e rei de Ifé.
Por isso, tornou-se o regente do reino quando Odudua, momentaneamente,
perdeu a visão.
[...] Ogum teve muitas aventuras galantes.
Ogum, o valente guerreiro, o homem louco dos músculos de aço!
(VERGER, 1997, p. 14).
Besouro e Dinorá jogando capoeira juntos mostra que além de luta capoeira é dança e afeto.
Quero-quero vê como os corpos do protagonista e de sua amada se movem e se desejam na
ginga da capoeira. Enciumado e ainda responsabilizando Besouro pela morte de Mestre
Alípio, Quero-quero e Besouro travam a batalha mais difícil para o herói. O antagonista
derrotado se aproxima do Coronel e, imaginando poder receber um melhor tratamento (menos
racista), conta o segredo místico do candomblé que protege Besouro e revela a única arma que
pode penetrar o corpo fechado do herói: faca de ticum.
Combate final. Tensão e rock’n roll. Depois de abater uma série de capangas com
voos, pontapés e cortes rápidos na montagem, o herói investe uma confiante corrida em
direção ao seu principal vilão. Besouro voa por cima do Coronel e seu cavalo, golpeia o vilão
mas é ferido com a arma de ticum e morre. Sobrevive o seu legado, de resistência e luta pela
melhoria da situação dos negros, no nascimento do seu filho com Dinorá, e o filme termina
com o menino encarando o Coronel no estilo “a luta continua”.
O herói morre mas sua mensagem resiste. Uma mensagem de cunho subversivo e
revolucionário, contrária ao racismo e à submissão em situações de desigualdade, e em favor
da valorização do negro e de sua cultura. Um ponto comum que se observa tanto em Besouro
(2009) como também em Barravento (1962), mesmo sendo filmes que têm abordagens e
intencionalidades diferentes: como por exemplo no fato de Besouro ser um herói
construído/apoiado pelos elementos do candomblé, e por isso, capaz de realizar feitos
fantásticos, enquanto que no outro filme, Firmino é um anti-herói que atua para desconstruir o
poder da religião sobre a população da vila de pescadores. De todo modo, na essência, os dois
personagens visam o benefício das suas comunidades oprimidas no intento de dar-lhes
confiança e força para lutar contra as situações desiguais, racistas e exploratórias.
Universo do qual podem surgir mundos fílmicos distintos, criados por seus
realizadores audiovisuais, se utilizando de elementos (ou desenhos) do mundo real como
matéria prima, e que é formulado de acordo com as experiências de vida em determinado
57
C A P Í T U L O 2
2 . CINEMAS E CULTURAS
O homem enquanto animal significador (que atribui valor) e o cinema enquanto meio
de representação: a partir dessas concepções iremos abordar as questões de cultura, identidade
e diferença nos filmes Barravento (1962) de Glauber Rocha e Besouro (2009) de João Daniel
Tikhomiroff, pois entendemos que “é por meio da representação, assim compreendida, que a
identidade e a diferença adquirem sentido” (SILVA, 2000, p. 91).
identidade fixa, mas que então, as identidades são múltiplas e fluidas para se adequarem às
situações que nos deparamos – filho, cidadão, profissional, espectador etc. (HALL, 2000).
Este embate entre sujeição e subjetividade é o conflito essencial dos enredos dos dois
filmes que analisamos neste trabalho. Logo na primeira sequência de Besouro, o protagonista,
ainda um menino, questiona as posições-de-sujeito às quais se vê submetido: “eu não posso
porque eu sou menino; eu não posso porque eu sou pobre; eu não posso porque eu sou preto” .
Uma confrontação que se mostra como elemento perturbador nos filmes, que visa questionar
as hierarquias estabelecidas entre classe oprimida e classe opressora; em Barravento esse
elemento subversivo está materializado no personagem de Firmino, considerado um anti-herói
por suas atitudes e seus discursos aos pescadores, que agita esse conflito entre sujeição e
subjetividade:
Firmino – vocês arrastam rede todo dia sabe pra quê? Pra meter dinheiro na
barriga de branco; eles estão tudo rico nas suas costas; a minha que ninguém
explora mais, agora só trabalho por minha conta e não tenho hora marcada,
corro risco mas sou livre como um xaréu no mar.
(Barravento, 1962).
Sendo assim, o poder de atribuir valores para definir diferença e identidade não pode
ser separado das relações de poder. Com isso, os processos de diferenciação estão pautados
nas práticas de inclusão e exclusão, na demarcação de fronteiras/limites e na hierarquização
(SILVA, 2000). Esta ideia pode ser observada na sequência em que os pescados estão sendo
61
repartidos, ainda no início de Barravento, quando o Patrão (dono da rede de pesca) fica com a
grande maioria dos peixes e ainda reclama por mais, mostrando a hierarquia desigual desta
relação; e também, quando o Mestre (líder da colônia de pescadores) cogita conseguir uma
rede nova de pesca e o funcionário do Patrão o exclui desta decisão, demarcando a sua
posição-de-sujeito na relação existente entre eles:
Mestre – Está tudo separado: quatrocentos pro patrão, quatro pra mim e mais
cinco para dividir com os homens da rede.
Funcionário do Patrão – Deveria ter mais! A freguesia é grande e o preço do
peixe anda muito bom.
[...]
Mestre – Estou até com vontade de ir até a cidade buscar rede nova pra nós.
Funcionário do Patrão – Rede nova!? Vocês são bestas, vocês são muito
engraçados. Se nós lhe damos uma rede nova, qual vai ser o lucro desse ano?
(Barravento, 1962).
em sua frase que também poderia ser dita pelo personagem de Firmino: “apaixonado que sou
pelos costumes populares, não aceito, contudo, que o povo negro sacrifique uma perspectiva
em função de uma alegoria mística” (ROCHA, 1997, p. 126). De outra forma, João
Tikhomiroff constrói um herói ao longo do seu filme para desconcertar os mitos sociais e
raciais que regem os discursos hegemônicos: “Trata-se de um filme sobre as lendas que
cercam a época em que Besouro viveu [...]. É um filme de fantasia”.23
No ano em que o Brasil aboliu a escravidão, em 1888, o país tinha uma economia
essencialmente agrária, e os proprietários de terras possuíam o monopólio do poder político,
social e econômico, restando aos negros libertos a submissão e a deferência. Essa hierarquia,
em que a classificação social estava relacionada com a cor da pele, se desenvolveu como parte
do panorama colonial escravista desde a chegada dos colonizadores a essas terras; Entretanto,
mesmo após o 13 de maio, sem a escravidão para se apoiar, essa estratificação se manteve
(SKIDMORE, 2012).
23
João Daniel Tikhomiroff em Entrevista ao Jornal do Brasil republicada no site, com data de 30/10/2009:
https://www.geledes.org.br/cinema-besouro-estreia-sexta-feira/ Acesso em: 13 de setembro de 2017
63
e cinco anos após a Lei Áurea), o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt definiu
a forma como a política brasileira lidava com a questão étnica social: “No Brasil [...] o ideal
principal é o desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro”
(ROOSEVELT apud SKIDMORE, 2012, p. 116).
O racismo é estrutural.
“Ninguém dá conta que esse cascudo voa, é pesado e tem as asas fininhas. Até a
ciência jura que esse besouro não voa. Mas... olha que maravilha”24. O inseto sai voando e
derruba o argumento dominante que limita, desqualifica e oprime as pessoas de pele negra: é
o ensinamento passado ao então pequeno aprendiz pelo seu mestre de capoeira, que é também
a principal voz da região em favor dos direitos da população negra; uma figura de subversão e
resistência na trama do filme e recorrente na história do Brasil.
No outro longa metragem, Glauber Rocha coloca em cheque os mitos de uma religião
que na sua visão imobilizam as pessoas perante uma situação de desigualdade social
resultante desse processo histórico étnico social brasileiro. Mitos que advém de fantasias, que
não precisam ter coerência, fruto do onírico em que o comportamento de coisas e criaturas
seguem leis não-empíricas, mas que possuem “outra significação além da literal” (LANGER,
1989, p. 176). O objetivo de Glauber era mostrar o que se esconde por trás da estrutura de
beleza e exotismo da mitologia afro-brasileira: um povo faminto e ainda escravizado mesmo
após abolição. Ideia expressa já nos letreiros inicias de Barravento:
24
fala extraída do filme Besouro (2009).
64
Os dois filmes aqui analisados só foram possíveis, em suas temáticas e em sua forma,
por conta da experiência da colonização e, por consequência, da tensão com o poder imperial,
enfatizando as diferenças entre colonizadores e colonizados (OMAR, 2007). Não fosse isso,
seria um cinema integralmente europeu, em sua estética e tema, feito nas Américas.
Ser pós-colonial significa ter uma atitude de assimilação e agressividade, como propõe
Silviano Santiago (2000), de aprendizagem seguido de reação. Assumir uma postura de falsa
obediência, pois está clara a impossibilidade das terras colonizadas evitarem a invasão
estrangeira (tanto antes como hoje), assim como não é possível voltar a sua condição de
“paraíso”. O menino Manoel rejeita o seu nome português quando entra para a capoeira;
apesar de ser adepto do candomblé, ele não retorna às suas raízes africanas para encontrar o
seu novo nome, recorre ao simbolismo da explicação de seu Mestre na sequência inicial do
filme (o voo do inseto de asas finas e corpo pesado) que está diretamente associada à sua
posição-de-sujeito nesse entre-lugar em que se encontra, e em um ato de insubordinação ao
discurso dominante assumi o nome de Besouro, mostrando que nem a ciência nem os que
fazem a ciência irão determinar o que ele pode ou não fazer, a exemplo de voar. A mesma
assimilação e agressividade que Firmino tenta transmitir aos pescadores em um trecho de
Barravento:
Firmino – Trabalha cambada de besta, preto veio pra essa terra pra sofrer,
trabalha muito e não come nada, menos eu que sou independente, já larguei
esse negócio de religião, candomblé não resolve nada, nada não, precisamos
é lutar, resistir.
(Barravento, 1962).
cidade grande de volta para a vila de pescadores, e termina com Aruã (principal pescador da
vila e seguidor do candomblé), convencido pelas ideias pós-colonialistas trazidas pelo “navio”
Firmino, deixando a vila rumo à cidade e tornando-se também um “marujo” entre mundos:
“Firmino é ruim, mas tem razão, ninguém liga pra preto e pobre, nós temos que resolver a
nossa vida e a de todo mundo. Agora eu tenho coragem”26, diz Aruã na parte final do filme.
Stuart Hall, outro autor jamaicano que se destaca por suas contribuições nos Estudos
Culturais, também trata de pós-colonialismo a partir do seu conceito de Tradução que
descreve a formação da identidade de pessoas deslocadas da sua terra natal, que retêm fortes
vínculos com seus lugares de origem mas sem a ilusão de retorno ao passado. “Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente as suas identidades” (HALL, 2006, p. 88);
são o fruto de várias histórias e culturas interconectadas.
Em toda parte, estão emergindo identidades que não são fixas, mas que estão
suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos,
ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produtos desses
complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns
num mundo globalizado (HALL, 2006, p. 88).
estabelecer limites aos invasores: ao contrário de expansão, o grito representa uma forma de
contração. E esse jogo de significados a partir do mesmo significante – “a tradução do
significante avança um novo significado” (SANTIAGO, 2000, p. 22) – nos permite
estabelecer uma analogia entre as intencionalidades de cada um dos filme e os seus sons, que
exprimem significados diferentes: se por um lado os toques do candomblé no longa Besouro
significam a liberdade, do outro lado, no mundo fílmico de Barravento esses sons remontam a
ideia de alienação e imobilidade.
Definido por Edgar Morin “como representação de uma representação viva, o cinema
convida-nos a refletir sobre o imaginário da realidade e a realidade do imaginário”. (apud
AUMONT et al, 2012, p. 236) Se o mesmo autor apelidou o cinematógrafo de “máquina de
produzir imaginário”, Rudolf Arnheim completa que assistir a um filme se trata de um
fenômeno mental, que envolve os campos da percepção, da associação e da memória.
“Vemos, de certo modo, mais do que os nossos próprios olhos nos mostram” (AUMONT et
al, 2012, p. 226). Portanto um filme só existe por conta da articulação, no intelecto, dos
elementos que são oferecidos ao espectador de cinema durante a projeção.
cinema como um processo mental, possibilitado pela arte da atenção – um registro organizado
que dá sentido ao que parece real; pela arte da memória e da imaginação – que permite o
entendimento da compressão ou dilatação do tempo fílmico, da noção de ritmo, da montagem
em si; e pela arte das emoções – “fase suprema da psicologia, [...] que corresponde ao grau de
complexidade das emoções humanas” (AUMONT et al, 2012, p. 225).
A começar pela psicanálise, Freud intitula como identificação primária, a mais remota
forma de laço afetivo com um objeto; dessa forma, é compreensível que o primeiro laço de
afeto de um ser humano se estabeleça com os seus pais, ou quem o cria. O “pai da
psicanálise” também explica que o primeiro período da vida de um indivíduo é marcado pela
incapacidade de estabelecer uma diferenciação entre o Eu e o Outro (AUMONT et al, 2012).
Confusão essa, que encontrará sua solução na “fase do espelho”, teorizada por Lacan,
na qual o bebê, estando no colo da mãe (ou do pai) e de frente para o espelho, se vê pela
primeira vez e compreende que aquela figura que está no colo da sua mãe, é ele (o Eu); ou
seja, por já ter visto a mãe e nunca ter visto a ele próprio, até encarar um espelho, passa a
entender que ele é o sujeito da visão e que é um ser diferente de sua mãe. Se inaugura, assim,
uma relação dual entre o eu e o outro, que se dá pela tomada de consciência da noção de
diferença (que também já foi tratada no presente trabalho pela sua importância para a
constituição das identidades) (AUMONT et al, 2012).
69
Depois de ter assistido a um filme (ou lido a um livro), é comum que se produza uma
lembrança do que foi visto e que essa recordação seja bastante monolítica e regulada por uma
tipologia, normalmente: o bom, o mau, o herói, a vítima. Então, ao recordar o filme, tende-se
a acreditar que uma identificação se deu por simpatia a um determinado personagem, mas
Sigmund Freud pensa de outra maneira. Ele defende que a simpatia só nasce a partir da
identificação; afirmativa que se sustenta pela ideia de identificação parcial, trazida pelo
mesmo autor, na qual o indivíduo pode se apegar a apenas um dos traços do objeto com o
qual se depara. Dessa maneira, um único traço, uma só característica, pode produzir
identificação entre pessoas que não compartem de simpatia uma pela outra (AUMONT et al,
2012).
A identificação parcial pode ser observada em Firmino (de Barravento, 1962), que é
um personagem antipático que importuna os outros pescadores questionando seus modos de
71
vida e suas crenças. As suas provocações chegam até a atitude extrema de cortar a única rede
de pesca que é o instrumento de trabalho e de sustento da vila de pescadores. Entretanto,
Firmino tenta explicar o que fez a Cota: “Foi por isso que eu cortei a corda, a barriga precisa
doer mesmo, quanto tiver uma ferida bem grande, então, todo mundo grita de vez”, o que
marca a sua militância pela autonomia e liberdade da população da aldeia, e contra a fome.
Nesse caso, o espectador pode não simpatizar com o ato de Firmino em cortar a rede, mas se
identifica parcialmente pela ideia de não ter pessoas em situação de fome. Este anti-herói,
sabendo que seus atos podem ser mal compreendidos, outro traço que permite a identificação
parcial com os espectadores, termina a discussão com Cota cantarolando a incompreensão tão
habitual aos humanos: “meu sofrimento ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer”.
Ainda de acordo com esse exemplo de Barravento (1962) podemos concluir que mais
que um efeito da relação psicológica do espectador com os personagens, a identificação é um
efeito da estrutura, de uma “situação” – um fragmento de narrativa em que se estabelece uma
rede estruturada de relações. Pois se “a identificação não leva em consideração a psicologia;
ela é uma operação estrutural pura: sou aquele que tem o mesmo lugar que eu” (BARTHES
apud AUMONT et al, 2012, p. 269), então podemos dizer que a identificação no cinema está
associada às posições-de-sujeito que o espectador ocupa nas diversas situações da vida real
enquanto sujeito social. Portanto, a identificação é uma questão de lugar, um efeito de posição
estrutural (na vida e no cinema); e a cada nova situação que se apresenta, os lugares a serem
ocupados são redistribuídos.
“Nesse jogo de lugares, nessa rede de relações instaurada a cada nova situação, é
possível dizer, para parafrasear Jacques Lacan, que o espectador está em seu lugar, não
importa onde” (AUMONT et al, 2012, p. 271). Com isso, pode-se concluir que a identificação
no cinema tem caráter fluido (processo sempre em construção, como a identidade definida por
Hall), reversível (ocupa lugares a depender da situação, como propõe Barthes e Lacan) e
ambivalente (como na fase de Édipo, apresentada por Freud).
E é a combinação desses pontos de vista que permite traçar lugares e redes de relações
para conduzir o espectador nos processos de identificação ao longo do filme. A esse trabalho
de encadeamento dos pontos de vista e dos acontecimentos diegéticos dá-se o nome de
enunciação. É pelo modo como se enuncia a narrativa, que o filme vai controlar as
informações que são colocadas à disposição de quem assiste; que antecipa ou esconde alguns
elementos que compõem uma situação, que vai regular o jogo “entre o saber do espectador e o
suposto saber do personagem e induzir desse modo, permanentemente, a identificação do
espectador com as figuras e as situações da diegese” (AUMONT et al, 2012, p. 281).
C A P Í T U L O 3
ALEGRIA DA CIDADE
(Lazzo Matumbi)
3 . ATMOSFERAS SONORAS
Mas, como já sabemos, não só para o naturalismo está o som no cinema. E quando há
alguma discrepância entre o que se vê na imagem da tela e o som que naturalmente deveria
escutar, a imaginação humana entra em cena para tentar estabelecer uma relação entre o que
se viu e o que se ouviu. Conforme tratamos anteriormente André Bazin se refere às imagens
como desenhos, moldes de objetos presentes no mundo real, e que quando alguém se depara
com uma imagem, a reconhece porque o desenho lhe faz lembrar o objeto real; no mesmo
sentido a estudiosa de recepção fílmica, Véronique Campan, também aborda a ideia de som
como vestígio, ou seja, algo que na reprodução faz lembrar (ou remete à) algo que já foi
76
experimentado na mundo real, que mesmo incompleto ou imperfeito irá ativar a memória na
realização da escuta causal e semântica para que se possa identificar e interpretar o som
escutado, e assim criar uma “imagem sonora”. Se ouvimos um gotejar e pensamos em água é
porque temos a experiência de um tipo de som associado à essa consistência plástica, material
e até tátil própria da água; da mesma forma um líquido mais espesso, de sangue ou leite por
exemplo, faz um som diferente do que o da água quando goteja. Reconhecemos, ou achamos
que reconhecemos, a fonte de um som porque há certas formas e certos aspectos sonoros que
estão memorizados. Podemos então dizer que fazemos o reconhecimento dos sons, “por
motivos interiores ao som e, simultaneamente, por motivos exteriores” (CHION, 2008, p.
161; FLÔRES, 2013).
Virgínia Flôres esclarece a diferença entre representações mentais e visuais, uma vez
que a “imagem sonora” criada mentalmente, com a ajuda da memória auditiva (rastros
sonoros), remete ao objeto real em sua ausência; o som, portanto, sugere algo que não está ali.
Por outro lado a “imagem visual” entrega uma presença mais explicita, por assim dizer, e com
isso não sugere, mostra. A autora valoriza os usos do som “como uma representação,
destacando as potências do não visível, potência de algo que não existe naquele momento
como objeto visual direto, não está presente, mas que é memória” (FLÔRES, 2013, p. 47). E o
que optamos por chamar de memória auditiva afetiva, é constantemente requerida dentro da
dinâmica de uma sequência audiovisual para a criação de expectativas (tensão), sempre
seguida de uma confirmação ou surpresa dessas expectativas, “porque nunca nos cansamos de
77
Um dos principais filmes estudados pela sua forma de empregar os sons na narrativa
fílmica, M, O vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang (1931) escolheu uma música para ser
assobiada pelo assassino da trama; uma melodia que fora do filme possuí um caráter
inofensivo, dentro da narrativa audiovisual se tornou uma melodia aterrorizante,
principalmente quando o assassino não estava em quadro e o assobio sugeria a sua presença –
nesse caso, o som como sugestão de algo perigoso, ameaçador (FLÔRES, 2013).
Depois do lançamento em 1927 de O cantor de Jazz que teve a voz em sincronia com
a imagem em algumas partes do filme, Luzes de Nova York é lançada pela Paramount em
janeiro de 1929 como o primeiro filme falado do inicio ao fim, e já em setembro do mesmo
ano essa produtora americana já havia feito a transição para o cinema falado e todas as suas
produções continham diálogos.
Contudo este fato aproximou o cinema de uma estética do teatro falado, que foi alvo
de muitas críticas, principalmente por parte dos formalistas.
Enquanto isso o surgimento e a invasão da televisão nas casas das pessoas gerou um
crise importante para a principal indústria cinematográfica, nos idos de 1950. As televisões
passaram a oferecer uma experiência audiovisual muito parecida à proporcionada por
Hollywood, e a necessidade de se diferenciar fez surgir o Cinemascope (e suas variantes),
79
uma tela maior em seu tamanho e com uma maior horizontalidade, além da imagem colorida,
contrastando assim com a imagem quadrada e monocromática das televisões. No que diz
respeito ao som, apenas uma maior potência de volume e uma mais ampla resposta em
frequência, que as caixas de som do cinema possuíam em relação às da televisão, parecia
pouco para essa competição e o que verdadeiramente modificou a forma de trabalhar com o
som no cinema foi a possibilidade de utilizar mais de um canal de áudio. O sistema de
multipista, com 4 pistas, foi lançado nessa época do cinemascope mas só veio a se firmar no
mercado cinematográfico na década de 1970 (PACE, 2008).
27
O modelo estabelecido Dolby Stereo possui quarto canais, no entanto o efeito de escuta estéreo pode ser
alcançado com dois canais de emissão de sons (esquerdo e direito).
80
Mais possibilidades estéticas e narrativas a serem pensadas, mais canais de som para
serem trabalhados, o que consiste em uma demanda maior de trabalho que resulta na
consolidação da função de editor de som durante os anos 1960 e 1970 na Europa e EUA; no
Brasil, essa categoria profissional se estrutura na década de 1980 quando surge um grupo de
editoras de som formado por nomes como Dominique Paris e Virgínia Flôres. Antes disso o
som era trabalhado pelo montador(a) (ou assistente de montagem) (COSTA, Fernando, 2006).
A existência formal de editores de som nas equipes de realização do cinema brasileiro é um
fato importante para produzir um cinema com um maior detalhamento no trabalho dos
elementos sonoros, justamente na mesma época que o sistema de multicanais Dolby Stereo
desembarcava no Brasil, o que ocorreu em 1983 (FLÔRES, 2008).
Quase dez anos mais tarde, em 1992, é lançado um sistema de gravação e reprodução
de áudio digital. Dentre as vantagens resultantes da transição da edição em moviola para a
edição digital, o autor Fernando Morais da Costa destaca como as mais proveitosas o aumento
do número de pistas de áudio – pois o que no início da era dos multipistas eram quatro canais
agora passam a ser dezenas de canais –, assim como a forma de visualização digital dessas
pistas. A abertura e visualização em simultâneo de todas as pista no programa de edição de
som digital permite compreender melhor a montagem vertical dos sons proposta pelos
formalistas soviéticos. Um filme se desenvolve em um desenrolar horizontal da relação
imagem-tempo, e também som-tempo, no que diz respeito ao o que ocorre antes e o que
ocorre depois; a isso soma-se uma progressão vertical dos sons que ocorrem ao mesmo
tempo, ou em conjunto, melhor dito (COSTA, Fernando, 2006). Uma linha vertical que
carrega a ideia de composição, que, nas palavras de Eisenstein, tem o aspecto de uma partitura
orquestral “interligando todos os elementos da orquestra dentro de uma unidade de tempo
determinada” (EISENSTEIN, 2002b, p. 54), e que está fundamentalmente entrelaçada com a
linha horizontal, que por sua vez leva consigo a ideia de justaposição.
O som digital também abriu caminho para a gravação e reprodução do modelo 5.1 de
áudio. Além do três canais frontais (esquerda-centro-direita) já existentes, são agregados mais
dois canais posicionados no lado oposto à tela (atrás do espectador) nas laterais esquerda e
direita. Cinco canais ao total e esse “.1” que foi como o canal surround passou a ser
representado. Inovação que ampliou a sensação de imersão no mundo fílmico uma vez que os
dispositivos emissores de som estão envolvendo, rodeando, cercando o espectador de cinema
(COSTA, Fernando, 2006).
Podemos associar o olho humano à uma lente grande angular que consegue enxergar
um pouco menos que 180º do que está a sua frente, enquanto o ouvido, por sua vez, é capaz
de escutar 360º, portanto o aumento do número de canais e de caixas de som distribuídas ao
redor do espectador permite ainda mais uma aproximação do cinema com as sensações
humanas vividas no mundo real. Ao mesmo tempo, alguns autores observam que o sistema
5.1 também possibilitou situações que seriam impossíveis de se experimentar na vida real,
pois passou a ser possível posicionar o espectador no centro da ação fílmica, pois se na
experiência auditiva de um concerto, não se pode sentar no meio da orquestra para que alguns
instrumentos toquem à frente, outros ao lado e outros atrás, na experiência do cinema isso sim
é possível (FLÔRES, 2008).
em Madame Satã o pesquisador musical trabalhou junto ao técnico de som direto, ao editor de
som, ao mixador e ao diretor musical para construir uma rebuscada atmosfera sonora da Lapa
carioca da década de 1930 (COSTA, Fernando, 2006).
Para o ato da fala, o filósofo Epicteto apontava como necessária uma tékhne, e ao
longo de seus pouco mais de cem anos de história, o cinema foi aprimorando a sua tékhne do
“falar” audiovisualmente assim como os espectadores foram adquirindo a empeiria
(habilidade conquistada) que o ato de escutar requer, culminando na aparição da figura do
“desenhista de som” (sound designer): um profissional que deve “conduzir a intermediação
entre os componentes sonoros do produto audiovisual e o espectador”28 (PACE, 2008, p. 53).
28
“conducir la intermediación entre los componentes sonoros del producto audiovisual y el espectador”
(tradução nossa)
83
“O espectador vem sendo acostumado a achar que sons produzidos para serem
exagerados correspondem aos sons naturais” (COSTA, Fernando, 2006, p. 216). Ações que
geram sons que seriam quase imperceptíveis no mundo real, são percebidas no mundo fílmico.
Está aberto o caminho para o hiper-realismo sonoro no cinema, definido pelas palavras de
Fernando Morais da Costa como “o exagero da percepção travestido de plausível” (COSTA,
Fernando, 2006, p. 217). A busca por uma fidelidade ao som real atravessada pelo desejo de
impactar significativamente o espectador.
“Daqui em diante a realidade lhe será sempre inferior” (ECO apud CAPPELLER,
2008, p. 67).
Uma opção estética bastante requisitada pelo cinema fantástico de ficção científica e
terror: “de West-world, de Michael Crichton (1971) a Matrix, dos irmãos Wachowsky (1998),
passamos do pavor provocado pelo falso - pela cópia artificial da realidade - à impossibilidade
total de diferenciação entre uma e outra” (CAPPELLER, 2008, p. 69).
Trata-se de uma arte sonora transgressora que desestabilizou as fronteiras entre o real
e o abstrato. Trata-se de ampliar o pensamento sobre o som no cinema como material artístico
a ser trabalhado para possibilitar distintas formas de associações que nutrem um cinema do
pensamento, das emoções, das sensações (FLÔRES, 2013). Apesar de comumente não
diferenciarmos o termo “sentir” ao se fazer referencia à sentimentos e sensações – dizemos
que sentimos saudade, assim como sentimos calor e sentimos que estamos caindo – o autor e
pesquisador Guilherme Maia de Jesus esclarece que, mesmo havendo uma interação mutua
entre estímulos sensoriais e sentimentais, o despertar de sentimentos nem sempre respondem
à estímulos sensoriais, mas se estabelecem por respostas cognitivas. “Assim, os sentimentos
de ódio e de indignação podem decorrer exclusivamente de informações, e o sentimento de
desespero tanto pode ser provocado por uma informação quanto pela sensação de afogamento,
por exemplo”. Portanto fica mais fácil perceber a diferença quando se relaciona as sensações
às respostas e impressões orgânicas do corpo humano, enquanto os sentimentos estão
relacionados com a “dimensão semântica das afeições, dos afetos, das emoções, das paixões,
dos estados de ânimo, ou seja, das delicias e dos tormentos derivados da nossa capacidade de
sentir amor, compaixão, ódio, [...] frustração, pesar ou mágoa, entre tantas outras coisas”
(JESUS, 2007, p. 109).
Uma abordagem do som no cinema não apenas com uma arte figurativa preocupada
com a verossimilhança, mas também como som que difere da informação visual, que convoca
o espectador a remexer a sua memória e que, com sua subjetividade, dá sentido a um som
exagerado e/ou irreconhecível. A busca agora é pelo sensitivo. Pois mais importante do que
saber o que o espectador viu e ouviu durante um filme, é saber o que ele sentiu.
Concluímos com isso, que se é possível verificar que os mundos produzidos por cada
filme têm estilos mais realista ou mais fantásticos através da estética fotográfica ou da edição
de um filme, “o uso do som também tem estilo, e suas escolhas podem ajudar na criação de
uma estética para um filme ou na análise de uma determinada estética de um filme. [...] dentro
do sistema criado em cada representação fílmica” (FLÔRES, 2013, p. 128).
3.2 . A AUDIOVISÃO
lembrando a ideia de Münsterberg de que um filme não existe na película e tampouco na tela,
mas apenas na capacidade humana de processar mentalmente as informações audiovisuais.
Aquilo que Virgínia Florês chama de “tecido sonoro de um filme”, e que temos
chamado de atmosfera sonora, é o resultado de uma maneira particular de como um cineasta,
um desenhista de som e toda uma equipe, pensam e sentem o mundo que está sendo criado, a
partir de escolhas técnico-estéticas que melhor possam representá-lo. Na projeção, durante a
imersão no mundo fílmico, essa atmosfera sonora é sentida pelo espectador através de suas
escutas que, mesmo sem se dar conta (caráter pathetikós da escuta), realiza a analise e a
identificação dos elementos que compõem essa atmosfera (FLÔRES, 2013).
Uma interação mutua entre som e imagem, que teve particular contribuição do
sincronismo, possibilitando a criação de diversas combinações entre imagem e som pois,
sendo projetados em simultâneo, o espectador se encarrega de associar o que ouviu ao que
viu, e vice-versa; o espectador pensa então que o grito sai da boca do personagem e não da
caixa de som, por exemplo. O fenômeno da síncrese, termo empregado por Chion, é o
momento em que imagem e som se juntam, se fundem na cabeça do espectador, que percebe o
que há de sincrônico entre os sinais auditivos e visuais emitidos ao mesmo tempo por
aparelhos de reprodução diferentes. E se a síncrese é de suma importância para a
88
compreensão de uma cena fílmica, a separação entre imagem e som, própria da mecânica
cinematográfica, é o que possibilita a criatividade e a riqueza dos procedimentos manipulação
desses dois, criando os mais variados resultados estéticos nessa relação audiovisual (CHION,
2011; FLÔRES, 2013).
A autora Virgínia Florês também endossa essa ideia do som como matéria moldável,
que pode evocar uma imensa diversidade de significados, um “poderoso alimento da
memória, que influencia diretamente a percepção de cada indivíduo” (FLÔRES, 2013, p. 83).
E complementa esse pensamento abordando o caráter diverso e subjetivo que podem alcançar
as interpretações particulares surgidas a partir da apreciação de uma obra cinematográfica;
afirma ela, que a recepção audiovisual de um filme “é vivência, habita o plano do
pensamento, do imaginário, participa de uma subjetividade, portanto, da percepção de cada
um” (FLÔRES, 2013, p. 82).
Veronique Campan fala dos processos interpretativos do som e nos remete aos
processos de identificação do espectador no cinema que abordamos no capítulo 2.2 através
das ideias do autor Jacques Aumont. O som implica processos de interpretação que envolvem
questões subjetivas do espectador e outras particulares ao som, e ao som dentro da cena e da
narrativa fílmica como um todo. Portanto, de acordo com esses autores, cada espectador
ocupará a sua posição-de-sujeito de acordo com a situação fílmica apresentada e suas
experiências pessoais, e cada espectador interpretará cada som de acordo com a situação
fílmica em que este som está colocado e com as suas experiências pessoais.
Dito isso e com este conjunto de ideias sobre a mesa, partiremos então para uma
análise dos filmes selecionados por este trabalho. Seguindo os pensamentos de Chion (2011),
de que som e imagem devem ser analisados em sua estrutura relacional, perguntaremos quais
os valores que o som acrescenta a esses dois filmes, quais as características de suas
atmosferas sonoras. E nessa observação ativa de cada um dos mundos fílmicos optamos por
utilizar o método proposto por esse mesmo autor francês, que sugere um modelo de “análise
audiovisual”.
simbolicamente o filme. “Analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história.
E, se considerarmos o cinema com arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas”
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 23); atividade essa que de alguma forma foi realizada
na contextualização dos mundos fílmicos de Barravento (Glauber Rocha, 1962) e Besouro
(João Tikhomiroff, 2009) durante o item 1.2 deste trabalho.
Alinhado com a proposta da análise fílmica, Michel Chion sugere, no entanto, uma
atenção e um aprofundamento analítico maior sobre as possíveis dimensões que o som pode
acrescentar à imagem. O autor dedica um capítulo ao método que chamou de “análise
audiovisual”, explicando que essa “tem o objetivo de perceber a lógica de um filme ou de
uma sequência na sua utilização do som combinado com a imagem” e complementa – antes
de passar à descrição dos procedimentos metodológicos particulares de uma análise
audiovisual – que não se trata de uma análise de entidades, como “o plano”, “a imagem”, “o
movimento”, mas de efeitos (CHION, 2011, p. 145). Outra vez, mais do que se perguntar o
que viu e o que ouviu, o analista se questiona o que sentiu.
Sobre como proceder em uma análise audiovisual, Chion sugere que uma mesma
sequência fílmica seja assistida repetidas vezes, mas de modos distintos: “observando-a ora
com som e imagem juntos, ora mascarando a imagem ora cortando o som”. Um esforço em
separar imagem e som para poder perceber “o som tal como é, e não como é transformado e
mascarado pela imagem; e de ver a imagem tal como é, e não como é recriada pelo som”.
Essas múltiplas apreciações foram intituladas como “método das máscaras” pelo autor
(CHION, 2011, p. 146).
entre a “imagem sonora” e a “imagem visual”, o que serve de suporte para entender o papel
figurativo e narrativo de cada uma dessas “imagens” na sequência em análise. E para isso,
aplicando o método das máscaras, perguntar “o que vejo daquilo que ouço” e “o que ouço
daquilo que vejo” (CHION, 2011, p. 150); e como isso contribui narrativamente para o filme.
Os dois filmes em análise são compostos por uma série de escolhas estéticas
cinematográficas, elencadas na contextualização dos seus mundos fílmicos (capítulo 1.2), que
nos permite observar importantes influências do neorrealismo italiano no longa-metragem
Barravento (Glauber Rocha, 1962) e do cinema fantástico hollywoodiano em Besouro (João
93
Tikhomiroff, 2009). Um Glauber 29 , que sem abandonar sua admiração pelo formalista
Eisenstein, revelou ter realizado Barravento sob o impacto da estética neorrealista e sua
possibilidade de adaptação à eztetyka da fome brasileira. Um Tikhomiroff30 com o estilo
audiovisual da publicidade na bagagem, junto com a vontade de contar a história de um negro
brasileiro subalternizado que, pela estética do estilhaço típica dos blockbusters, será
transformado em super-herói. Características essas que ficam explicitas já nas sequências de
abertura de cada uma das obras fílmicas.
Os letreiros iniciais explicam que Barravento (1962) foi gravado numa aldeia de
pescadores em uma praia na Bahia, que “os personagens apresentados neste filme não tem
relação com pessoas vivas ou mortas e isto será apenas mera coincidência”, mas que “os fatos
contudo existem”; e nas últimas linhas agradecem e dedicam o filme aos pescadores (o que
também acontece em A Terra Treme, 1948, do neorrealista italiano Visconti). Após esse
texto, vemos então as três primeiras imagens do filme em justaposição: o céu, o mar e um
homem tocando atabaque em um ambiente fechado por paredes de palha. Nos últimos
segundos em que os letreiros estão na tela, o primeiro som que se escuta é a voz de uma
mulher cantando em idioma de origem africano acompanhada por um chocalho de metal,
pouco depois, sob a canção que continua, o barulho do mar é escutado por uns segundo até
que entra um atabaque de acompanhamento para a canção. Pela aplicação do método de
máscaras, percebemos que a música é o elemento dominante na banda sonora nesta sequência;
é o que costura as imagens justapostas, operando como trilha sonora não diegética durante a
exibição das imagens do céu e do mar, mas que passa a ser diegética quando a imagem do
homem tocando atabaque entra simultaneamente ao som do toque do atabaque que
acompanha a cantora. Um ponto de sincronização em que “imagem sonora” e “imagem
visual” coincidem, e que permite uma análise narrativa a partir da assimilação de que aquela é
a música que tocam e cantam as pessoas que vivem naquele lugar onde se passará a história
que acaba de começar; e ainda, de acordo com as informações previamente fornecidas nos
letreiros iniciais, e recorrendo a um repertório cultural, podemos identificar que se trata de
uma música religiosa do candomblé, do qual, portanto, os pescadores dali são adeptos.
29
Por um entendimento de cinema enquanto atividade construtiva coletiva, quando me refiro neste capítulo a
Glauber Rocha e a João Tikhomiroff (diretores dos filmes em análise), estarei incluindo também à equipe de
realizadores que participaram dos filmes.
30
Por um entendimento de cinema enquanto atividade construtiva coletiva, quando me refiro neste capítulo a
Glauber Rocha e a João Tikhomiroff (diretores dos filmes em análise), estarei incluindo também à equipe de
realizadores que participaram dos filmes.
94
Depois das gravuras do artista baiano Calazans Neto que acompanham os créditos dos
realizadores do filme, o plano aberto de uma praia nos mostra um grupo de pessoas puxando
uma rede do mar; corte na imagem e vamos para uma outra parte da praia em que um homem
caminha solitário com seu remo e chapéu de palha; outra mudança na imagem, e pelas pedras
um homem com seu paletó branco salta para a areia e se aproxima da câmera. Antagonistas. A
música divide a atenção do espectador com o som do mar mas continua sendo dominante.
Para o Mestre com o remo na mão, uma canção praieira de melodia leve e voz grave; para
Firmino de paletó branco, toda a malicia e o gingado de uma música de capoeira. Uma
associação entre imagens e sons que já dá dicas sobre a personalidade desses dois
personagens.
Corte seco na imagem, corte seco no som, e se escuta outra música cantada e
acompanhada por um atabaque, o som do mar está mais alto. A câmera agora está mais
próxima aos puxadores de rede. Um homem toca atabaque na beira do mar; homens e
meninos puxam a rede na mesma cadência dos toques do atabaque, seus pés marcam o ritmo e
seus troncos dançam enquanto fazem força para puxar a rede. Nesse momento a música, que
na apresentação dos antagonistas era utilizada como elemento não diegético, volta a ser usada
como trilha diegética pelos movimentos sincrônicos do atabaque e dos corpos dos puxadores
de rede entregando mais realismo à cena, e mostrando o quão trabalhoso é conseguir o peixe
que é o sustento daquela vila de pescadores.
maior parte das vezes não há referência na imagem de onde afinal vem a música, sem que o
espectador preocupe-se com isso. Esta talvez seja a maior vitória da construção naturalista do
som no cinema”, fazendo alusão à música não diegética, que não pertence nem ao quadro e
nem ao fora-de-quadro da cena em questão – o que a distancia do caráter naturalista, mas que
como convenção utilizada desde o princípio no cinema, é aceita pelo espectador. “Afinal,
todos os outros elementos sonoros, vozes, ruídos, estão diretamente ligados ao que se vê”
(COSTA, Fernando, 2008a, p. 16).
“Preto meu filho, é pra vida inteira; preto com muito orgulho de sua cor e não deixar
ninguém fazer pouco de você”. Um inseto distrai o garoto que caminha até o arbusto, o mestre
não hesita e emenda: “Ninguém dá conta que esse cascudo voa. É pesado e tem as assas
fininhas. Até a ciência jura que esse besouro não voa, mas... olha que maravilha...”31. Até aqui
os sons dessa sequência tem aspectos naturalistas, cada passo do menino sobre as folhas das
árvores caídas no chão soam neste mundo fílmico como soariam se ocorressem no mundo
real, mas... escuta que maravilha... Quando Mestre Alípio provoca o voo do besouro e, além
de bater as suas asas velozes, do qual já conhecemos a sua respectiva “imagem sonora”, é
adicionado também um U.S.O. – do inglês Unidentified Sound Object32 – (FLÔRES, 2013).
Um Objeto Sonoro não Identificado, cujas fontes que originam o som não podem ser
interpretadas pela escuta semântica; um signo indeterminado, ou aberto, que convoca a
31
Falas extraídas do filme Besouro (2009)
32
Objeto Sonoro não Identificado (tradução nossa)
96
atenção e a curiosidade do espectador; sons que beiram o abstrato mas que despertam
sensações. O que se escuta é uma espécie de chocalho ao qual lhe é aplicado um efeito de
reverberação, que acompanha o besouro em seu voo pela floresta, e quando perdemos contato
visual com o inseto, ouvimos um som metálico em crescente ao qual vão se incluindo
trêmulos de sonoridades mais graves junto ao som das asas que aumentam e diminuem de
volume. Um compósito de objetos sonoros não identificados, que aproveitando-se do caráter
sugestivo do som, não mostra mas dá a ideia de que há algo de mágico, algo de fantástico
nessa história que se inicia.
3.3.2 . RELIGIÃO
Depois de estar a beira da morte, Besouro passa por um transe onírico no qual recebe a
benção dos Orixás do candomblé, e desperta na casa de sua mãe de santo. “Sonhei com o
Mestre” diz ele ainda zonzo. “Ele falava de uma missão... de Ogum...”; Besouro se senta e a
mãe de santo se aproxima, mostra-lhe um colar de metal e diz ao rapaz: “esta é a sua proteção,
foi dormido aos pés de Ogum” passa-lhe o colar pela cabeça e sentencia: “seu corpo está
fechado”. Besouro sai da casa e caminha decidido.
Não idênticos aos da abertura do filme, mas com as mesmas características sonoras do
que se parece a um arrastar metálico rápido com reverberação, junto com um aparente soprar
do vento com suas frequências modificadas, valorizando as mais baixas para soem os graves
dos autofalantes e se tenha a sensação de tremor nas caixas de som e no corpo do espectador.
Se na abertura assistimos à transformação do menino em homem, agora presenciamos a sua
transformação em herói. Uma utilização estrutural dos objetos sonoros não identificados no
que diz respeito a momentos chave da narrativa.
Na cena central dentro da casa da mãe de santo, os únicos sons além do diálogo entre
os personagens, são os ruídos de uma floresta que acompanham a cena em segundo plano, e
indicam o ambiente onde a casa da mãe de santo está localizada. No entanto, quando Besouro
cita a Ogum, um toque de atabaque se inicia em baixo volume, mas vai se tornando cada vez
mais perceptível no decorrer do ritual em que a mãe de santo fecha o corpo de Besouro,
evocando os poderes e a proteção dos Orixás. Na parte essencialmente sonora dessa cena, o
toque dos atabaques são os elementos que estabelecem contato com o espiritualismo do
candomblé, são os únicos sons não diegéticos da cena, os outros sons dessa atmosfera sonora
são representações naturalistas do que acontece em quadro e o som ambiente de floresta fora
de quadro. Os atabaques do candomblé são um chamamento ao sagrado. E quando o homem
se entende como herói protegido por Ogum, os atabaques são substituídos pelo som mais
denso das alfaias (tambores de maracatu), aos que se somam as cordas de uma guitarra, e o
mesmo rock da abertura do filme incentiva agora Besouro a realizar sua missão.
Michel Chion, em seu livro A Audiovisão (2011), explica modos de utilização do que
chamou de sons “acusmáticos” em uma obra fílmica – termo que emprega fazendo referência
à escuta acusmática teorizada por Pierre Schaffer como “o que ouvimos sem ver a causa
originária do som” (CHION, 2011, p. 61), enquanto que ao seu contrário, quando se escuta e
se vê a causa do som, intitulou-se escuta visualizada. Chion discorre sobre duas formas de
utilizar sons que não podemos ver na tela. O diretor do filme, junto com o montador e o
desenhista de som podem optar por primeiro provocar uma escuta visualizada e depois a
acusmática, de modo que será através da audição que se irá recuperar na memória a causa
originária daquele som. Uma outra opção é aplicar a escuta acusmática primeiro e só em um
momento estratégico da trama revelar na imagem a causa daquele som, conservando um
segredo com a intenção de gerar tensão, expectativa. Chion recorda que o som acusmático
pode funcionar como um “processo dramatúrgico análogo a uma entrada em cena” (CHION,
2011, p. 61).
99
O herói tem o corpo fechado, é um capoeirista ágil e pode ate voar. A lenda sobre
Besouro corre pelas bocas e ouvidos da cidade. Os capangas do coronel também escutam. Em
uma cena de perseguição típica dos filmes de herói e aventura do cinema hollywoodiano, os
capangas do coronel caçam Besouro no meio de um bananal. Acredita-se que o capoeirista
tem o poder de se transformar em bananeira e por isso os homens golpeiam as árvores com
seus facões. Besouro se esconde e aplica uma armadilha à um dos capangas que acaba morto
pelas balas da própria Casa Grande. O chefe dos capangas se enfurece por seu funcionário se
deixar enganar. O bando de perseguidores se divide. O chefe fica sozinho. Nesse momento o
som acusmático das asas do inseto junto a objetos sonoros não identificados entram em cena.
O chefe dos capangas gira a cabeça para outra direção, convocado pelo som (estéreo), e se
depara com o vulto de um homem que voa por cima das bananeiras. Sons acusmáticos e
USOs utilizados na concretização do processo de construção do mito do herói, quando seus
oponentes e o espectador podem presenciar alguns de seus poderes e proezas de super-herói.
Trocamos de mundo fílmico e, em Barravento (1962), nos deparamos com uma cena
romântica na praia em que Firmino e Cota se beijam. A câmera se aproxima devagar do casal
e o rapaz se levanta incomodado, entretanto, a moça move os lábios como quem diz palavras
tranquilizadoras, e então voltam a beijar-se apaixonadamente. Essa leitura é feita a partir do
mascaramento do som do filme, portanto uma análise apenas das imagens dessa sequência.
Invertendo essas máscaras e apenas apreciando o som, percebemos um dueto de atabaque e
agogô, ao qual em determinado momento são agregados outros instrumentos (os atabaques
rum, rumpi e lé, e outro agogô) em ritmo acelerado e com seus volumes superiores à música
até então executada pelo dueto. Uma música própria dos terreiros de candomblé que
funcionam como trilha sonora dessa cena romântica, interrompida com corte seco (sem o
desaparecimento gradual da música habitual do cinema clássico) para que se escute o beijo
apaixonado. Mas assistindo às bandas visual e sonora em simultâneo, percebemos que o que
100
deixa Firmino inquieto e o faz levantar dos braços do seu par amoroso é o som da música do
terreiro, quando essa muda de volume e de ritmo; e ainda mais importante nessa apreciação da
imagem e som juntos, é que nos damos conta que Firmino mexe seus lábios mas não
escutamos a sua voz e nem o que ele fala quando levanta enraivecido.
Este ponto de sincronismo gera uma compreensão semântica da trama do filme. Nesse
momento os sons sagrados do candomblé abafam os sons do discurso de Firmino. O mesmo
acontece na sequência seguinte quando a voz de Firmino é suprimida dentro do terreiro de
candomblé, e em sua conversa com a mãe de santo só se escuta a voz da mulher, que se nega
a realizar o trabalho espiritualista que Firmino solicitava, e por fim o expulsa do terreiro.
Firmino não tem voz nem vez dentro do terreiro.
Firmino é Glauber.
É noite, e no terreiro de candomblé tem festa. Os três atabaques (rum, rumpi e lé)
estão presentes visualmente e auditivamente; o agogô só se escuta e vemos as filhas de santo
dançando. Enquanto isso, na praia, Cota vai onde Aruã está sentado e sozinho olhando o mar;
101
ela se despe e se dirige à água. A música mística do candomblé se escuta na praia, e o que
seria uma trilha sonora não diegética, nos é revelada como música que se escuta fora de
quadro por conta da montagem paralela dessa sequência, que entra no terreiro onde acontece a
festa religiosa e volta à cena da praia permitindo o entendimento de que são eventos que
ocorrem ao mesmo tempo neste mundo fílmico.
Cota está nua, dança com as ondas do mar e lança um olhar sedutor para a areia. Aruã
fecha os olhos na tentativa de resistir à tentação da qual está proibido pelas responsabilidades
que o candomblé lhe atribui. Uma sereia dançando na beira do mar, ao som de músicas
sagradas de matriz africana, numa praia da Bahia e o nosso Ulisses não está atado ao mastro
de seu barco. Enfeitiçado pela sereia, enganado por Exu, Aruã perde assim o seu encanto e a
sua proteção da Rainha das águas, Yemanjá. Em paralelo a isso, no terreiro de candomblé, as
imagens nos mostram o ritual de iniciação de um Iaô; rito esse que significa um renascimento,
a feitura do santo, a assunção de uma posição-de-sujeito sagrada no candomblé.
3.3.3 . VIOLÊNCIA
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados
e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não
será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do
tecnicólor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma
cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
[...] essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não
diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta
violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um
amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e
transformação (ROCHA, 2004, p. 66).
* * *
102
Firmino: – Cota, no fundo meu coração presta e muito. Ando com você
porque seu jeito é de quem não se abaixa. Aruã também não quer se abaixar
mas o Mestre domina. Nessa situação vive o povo. Meu pessoal lá da cidade
sabe que as coisas vão melhorar. Foi por isso que eu cortei a rede, a
barriga precisa doer mesmo, e quando tiver uma ferida bem grande então
todo mundo grita de vez. Pra mim, Princesa Isabel é ilusão!
(Barravento, Glauber Rocha, 1962)
Por não ter voz nem vez, Firmino, um anti-herói um tanto antipático por conta de suas
sabotagens e armadilhas, convence Cota a seduzir Aruã, provocando com isso a
desconstrução do mito do herói salvador que prevalecia naquela aldeia. Aruã não é mais um
protegido de Yemanjá. O nosso Ulisses perdeu seu poderes sobrenaturais. Mas na manhã
seguinte...
Os sons de ventos são escutados um pouco por encima do barulho do mar, os ventos
vão ganhando velocidade. Um trovão. Em seguida outro trovão de volume ainda mais alto, e
continuam mais trovões em diversas intensidades. “Seu Vicente está no mar!”. Aruã e um
outro pescador, Chico, saem de jangada para resgatar Seu Vicente da tempestade que se
aproxima. Cota olha por detrás de um coqueiro e se desespera.
Chegou o Barravento.
Ventos mais fortes, os trovões são constantes, o mar também soa agitado e violento.
Cota sai correndo pelo coqueiral muito abalada, a câmera corre e balança acompanhando a
personagem. A câmera rodopia vertiginosamente e vemos Cota rolando de uma duna de areia
até a água. Cota afunda, desaparece, e começa a chover. As palhas dos coqueiros balançam, o
103
mar está cheio de ondas, a chuva fica mais forte. Um corte seco no som e silêncio completo.
Visualmente, Aruã rema em um mar tranquilo voltando para a praia depois do Barravento.
“Chico morreu!” grita ele; Seu Vicente também. Todos os pescadores lamentam as mortes.
Firmino aparece para concluir o processo de desmistificação de Aruã gritando para que todos
saibam: “O culpado foi Aruã que renegou o santo! [...] Ele é homem igual os outros. [...] O
Mestre também é culpado. [...] É preciso acabar com isso!”33.
Por outro lado, no filme Besouro, que sim utiliza o hiper-realismo sonoro, entendemos
que o tema da violência pode ser abordado no longa-metragem por sequências que encenam
as facetas mais extremas da repressão contra os negros e sua cultura no Brasil daquela época
(paralelismos com as estruturas repressivas contemporâneas continuam possíveis).
33
fala extraída do filme Barravento (1962)
104
aumento progressivo do seu volume e introdução aos poucos dos instrumentos musicais que
compõem a música. Em ritmo lento, escutamos primeiro os atabaques, e logo são
acompanhados por berimbaus. “Mestre Alípio meu lamento, rezas, forças de união; ensinou
ter orgulho, não temer a nada não. A grandeza de uma raça, a capoeira nos une, e liberta o
coração” canta uma voz arrastada. Se nota então o acréscimo de um instrumento que não é
comumente tocado nas rodas de capoeira, um tambor bastante grave de marcação, o que
parece ser uma alfaia (tambor de maracatu), e que mesmo sem se apresentar visualmente na
roda, pelas características do seu som (e através de uma memória subjetiva), remetem aos
toques de tambor que acompanham as marchas de guerreiros que antecedem os combates
entre grupos inimigos de diversas culturas do planeta durante toda a história da humanidade.
Os ruídos de cena também são escutados: os pés arrastando na areia, vocalizações que
acompanham os movimentos do jogo da capoeira, assim como os sons ambientes das tochas
com fogo que iluminam a roda e os ruídos das cigarras e de outros insetos noturnos que
acrescentam naturalismo à cena; mas acima de tudo, o que é dominante na banda sonora desta
sequência em análise é a música diegética da roda de capoeira.
Noca (capanga) – Acabou essa presepada! Aqui nessas terras está proibido
lutar!
Chico (capoeirista) – Tu nem parece que é uma pessoa letrada, Noca de
Antônia. Isso aqui é luta? Capoeira é dança.
[...]
Noca (capanga) – É dança é!? Então está proibido dançar!
(Besouro, João Tikhomiroff, 2009).
105
Noca dá a ordem para que os outros capangas usem da violência e da força para
dispersar os capoeiristas, todos negros. Violência também expressada através do hiper-
realismo sonoro, que volta a ser a opção estética para essa sequência. Tiros são disparados, os
gritos de desespero são muitos, a cavalaria relincha, galopa, e os golpes dos socos e pontapés
possuem um volume maior do que se fossem escutados no mundo real. Características
pertencentes a um estilo de cinema que se utiliza de uma estética do estilhaço (que já pode ser
percebida durante a evolução histórica do Western e que tem grande protagonismo no cinema
de Hollywood pós 1970) na qual são amplificadas as dimensões sonoras dos tiroteios e
explosões.
Alguns negros capoeiristas conseguem fugir mas Chico é capturado. Segurado por
dois capangas, escuta ofensas racistas proferidas por Noca. E como expressão da repressão e
violência de uma sociedade contra a população negra e sua cultura, Noca golpeia com uma
espingarda a perna de Chico que termina com uma fratura exposta. Os ruídos dos golpes são
escutados em primeiro plano, e na última investida de Noca contra a perna de Chico, junto ao
som do impacto da espingarda no corpo, mais do que escutar, sentimos a violência através do
som de osso sendo quebrado. Um dos muitos tipos de violência racista representada em
imagem e som hiper-realista para provocar mais sensações no espectador. Dimensões
sensíveis acrescentadas pelos som aos filmes, tanto da ordem da materialidade, peso e textura
dos objetos que estão em cena, mas também através de sensações ativadas por uma memória e
um repertório cultural de uma sociedade brasileira e baiana racista, que dá uma outra
dimensão à sensação de violência para além da materialidade.
avanços tecnológicos nas gravações de som direto, é comum que esses sons capturados do
mundo real sejam tratados na pós-produção, quando também outros sons são agregados à
banda sonora do filme. Diz o autor que a realidade é uma coisa e que a sua transposição para
uma plataforma de reprodução de imagem e som gera uma outra coisa; ele ainda chama
atenção para os códigos criados pelas artes, que foram determinados mais por uma
preocupação de representação do que de veracidade, o que veio a influenciar a nossa
referência de som real no cinema (CHION, 2011). Portanto os sons no cinema não precisam
exercer uma fidelidade acústica estrita com os sons da realidade, e o espectador julgará a
credibilidade dos sons fílmicos recorrendo aos rastros acústicos (desenhos) deixados pelos
sons reais na sua memória. Um ilusionismo que permitiu o surgimento do hiper-realismo
sonoro no cinema. Uma forma de trabalhar o som que, mesmo modificando as características
dos sons reais em uma operação que ultrapassa a realidade e amplia o caráter sugestivo e
sinestésico do som no cinema, consegue acrescentar também um valor de naturalismo e de
credibilidade à um mundo fílmico.
[...] não cessa nunca o Canto das Sereias. [...] a única maneira de impedir
que uma música produza, de alguma forma, estados de ânimo em um
apreciador parece ser não ouvi-la.
[...] Ulisses relata o desespero e o sofrimento vividos enquanto estava preso
ao mastro. Orfeu, no episódio do encontro da expedição dos Argonautas com
as Sereias, põe-se a cantar de tal forma que consegue superar o fascínio dos
murmúrios femininos fatais. [...] O único antídoto para a melodia
murmurada das Sereias parece ser produzir um som mais encantador do que
o delas. As outras opções são sofrer amarrado ao mastro ou resignar-se a não
ouvi-las, simplesmente (JESUS, 2007, p. 110 e 113).
um shaman, um mágico, mas acima de tudo um músico excepcional, que canta e toca lira de
tal maneira que pode alterar o curso da natureza” (JESUS, 2007, p. 112).
O jamaicano Paul Gilroy aponta para o fato de pessoas de diferentes lugares e culturas
da África terem sido deslocadas forçadamente para a América. O autor defende que nesse
contexto a música colocou-se como meio vital para o entendimento entre esses negros, que se
depararam com uma polifonia linguística de idiomas africanos em terras americanas.
Múltiplas formas de se comunicar e de se expressar culturalmente que encontram na música
um importante poder de significação. Pelas palavras de Glissant aclara-se que “não é nada
novo declarar que para nós a música, o gesto e a dança são formas de comunicação, com a
mesma importância que o dom do discurso” (GILROY, 2001, p. 162). E tocando nesse
mesmo ritmo, o músico brasileiro Naná Vasconcelos, destacava a boca e o corpo como os
primeiros e melhores instrumentos musicais, o que reafirma como a musicalidade corpórea
está fortemente presente no processo de construção da identidade e da linguagem negra da
diáspora (VASCONCELOS, 2014). As negras e negros que eram forçosamente trazidos para
a América, subalternizados, escravizados, despidos de qualquer condição humana, não
permitiram que lhes desnudassem de sua memória ancestral; memória essa que resiste no
corpo e se expressa através da música, da dança e do canto (NASCIMENTO, 2014). Os
toques dos atabaques, tantas vezes alvo de repressão ao longo da história, resistiram
(resistem) e continuam ainda hoje, segundo Gilroy, a animar os “desejos básicos – serem
livres e serem eles mesmos revelados nesta conjunção única de corpo e música da
contracultura” (GILROY, 2001, p. 164).
A música, talvez mais do que a voz, seja o elemento sonoro mais comentado
do conjunto de análises sobre os filmes das décadas de 1960 e 1970, que, por
si só é o período mais comentado dentro da história do cinema brasileiro. O
uso da música popular, ou, em alguns casos, mesmo da música erudita feita
no Brasil, é entendido como uma ferramenta importante para o
funcionamento do projeto de levar a cultura e o povo brasileiro para o centro
da tela (COSTA, Fernando, 2006, p. 187).
Derivado das revoluções produzidas no cinema nos anos 1960, o autor Fernando
Morais da Costa dialoga com Guilherme Maia de Jesus quando observam um fato – que nota-
se nos filmes do diretor Rogério Sganzerla, e que se tornou comum no chamado Cinema
Marginal – em que a figura do compositor da trilha sonora é suprimida e o próprio diretor
assina como diretor musical, se utilizando de músicas já existentes (e não compostas
109
especialmente para o filme) e que fazem parte das suas referências culturais. Guilherme Maia
lembra que Sganzerla utiliza como trilha desde as músicas de Beethoven à Luís Gonzaga e
que ainda “há espaço para O Guarani de Carlos Gomes, para O Barbeiro de Sevilha de
Rossini, postos democraticamente no mesmo barco que Dolores Duran, Ernesto Lecuona,
Elvis Presley” (COSTA, Fernando, 2006, p. 185). Nesse momento histórico percebemos uma
mistura de influências musicais na qual se colocam lado a lado arranjos eruditos de culturas
tidas como hegemônicas e composições de culturas ditas subdesenvolvidas; expressões
culturais de colonizadores e colonizados que convivem democraticamente, segundo Fernando
Morais da Costa e Guilherme Maia de Jesus, na trilha sonora de Sganzerla; um feito que
podemos associar ao aspecto transcultural do cinema contemporâneo, que tratamos
anteriormente neste trabalho.
Uma informação colhida nos Extras (making of) do filme Besouro (João Tikhomiroff,
2009) nos notifica que o diretor deste filme também influenciou a concepção da trilha sonora
com as suas referencias musicais. Antes é importante destacar que a produção de Besouro
incluiu a contratação de uma equipe responsável pelo som do filme como um todo (da sua
atmosfera sonora) ainda na fase do roteiro, comungando com a ideia de trabalhar com um
desenhista ou diretor de som que participa em todas as fases de desenvolvimento do filme
(nos créditos do longa aparece como direção musical assinada por Rica Amabis). Voltando
aos Extras, o diretor musical confessa que na primeira reunião com a equipe do filme, o
diretor João Tikhomiroff pediu que a trilha sonora de seu filme tivesse a participação dos
artistas Gilberto Gil, Naná Vasconcelos e da banda Nação Zumbi; intencionalidade, desejo,
pedido do diretor que foi atendido pela equipe responsável pela trilha sonora do filme.
satisfatório afirmar o que muitos dizem fora das definições acadêmicas: se trata de “um Orixá
vivo”. Gil é um ser iluminado fruto da mistura entre o guerreiro Ogum, Orixá das tecnologias
e comunicação, e a velha senhora Nanã, Orixá avó desde sempre, que aqui podemos associar
à ancestralidade.
Em sua tese de doutorado, Fernando Morais da Costa aponta outro diretor de cinema
brasileiro, Jorge Furtado, que também defende a integração de influências culturais
internacionais como a música pop e o rock, argumentando que “gostar de música pop
internacional não significa estar alienado das questões nacionais”. Costa recorre ao conceito
de hibridização de Nestor Canclini que, alinhado com a ideia de tradução de Hall, explica que
a penetração e a assimilação da cultura internacional, principalmente EUA e Europa, pelo
terceiro mundo “não deve significar subserviência total à cultura imperialista. A hibridização
decorrente desse processo demonstra exatamente as várias formas de troca inerentes a ele”
(COSTA, Fernando, 2006, p. 233). Em oposição a uma ideia de dominação direta, o que há é
uma troca entre culturas que permite inclusive que culturas historicamente oprimidas e
invisibilizadas possam sair fortalecidas dessa interação com culturas imperialistas.
No mundo do Atlântico negro, a música é a essência “da distinção cultural que esta
população capturava e adaptava a suas novas circunstâncias. Ela utilizava as tradições
separadas mas convergentes do mundo atlântico negro, se não para criar a si mesma de novo
como conglomerado de comunidades negras” (GILROY, 2001, p. 173). Além das músicas do
candomblé, o ritmo musical surgido na Jamaica, o reggae, é um bom exemplo do processo de
assimilação e adaptação das comunidades negras distribuídas pelos territórios do Atlântico
negro. Primeiramente, o reggae em si já é hibridização do rhythm and blues, rocksteady e ska;
depois podemos observar, como o fez Gilroy, que a disseminação deste ritmo caribenho pelo
mundo negro também promoveu uma ressignificação dele mesmo quando em contextos locais
particulares.
estabelecesse como discurso. Nascido em uma favela de uma ex-colônia escravista, esse ritmo
incorpora na sua percussão, nas suas cordas e nas suas letras, o grito contra as injustiças
étnicos-sociais, e junto com isso ergue a bandeira do pan-africanismo. Para Gilroy, a captura e
adaptação do reggae por outras comunidades foi possibilitada “por um fundo comum de
experiências urbanas, pelo efeito de formas similares – mas de modo algum idênticas – de
segregação racial, bem como pela memória da escravidão, um legado de africanismos e um
estoque de experiências religiosas definidas por ambos” (GILROY, 2001, p. 175).
A trilha sonora de Besouro (2009) também vem do mangue. A forma como as músicas
são empregadas na trilha do filme obedecem à influência do cinema clássico, se utilizando de
um padrão canonizado pelo compositor Max Steiner em King Kong (1932), quando já se
optava por uma melodia romântica para as cenas de beijo e um tema mais empolgante em tons
maiores para as cenas de ação (COSTA, Fernando, 2008a). Em Besouro (2009) sentimos o
rock’n roll e o grave das alfaias nas cenas de luta e perseguições, e também notamos a
sonoridade romântica dos instrumentos de corda na cena em que Besouro e Dinorá dançam
capoeira demonstrando o sentimento amoroso existente entre o dois. Mas, observando o
conteúdo da trilha para além da sua forma de utilização convencional, a música produzida
para a trilha investe na hibridização entre os sons de elementos da cultura local, como a foice,
a pá e o facão, e os ritmos transculturais pós-coloniais da guitarra e dos beats eletrônicos,
seguindo na mesma linha que o movimento manguebeat.
Da Lama ao Caos35, do coco ao dub, do sampler ao baião; passeando por Rios Pontes
e Overdrives 36 , passando pela teoria do caos, conflitos étnicos e cyber espaço. A
35
título do primeiro álbum da banda.
113
36
título de uma música da banda.
37
trecho de uma música da banda.
38
trecho de uma música da banda.
114
C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
MONÓLOGO AO PÉ DO OUVIDO
Chico Science & Nação Zumbi
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A monocultura não deve nos limitar. Busquemos a potência nas misturas, nas múltiplas
influências que abrem a múltiplas possibilidades artísticas, culturais e de pensamentos.
Acredito que este trabalho tenha versado sobre essas potências criativas e essas infinidades de
possibilidades. Versamos sobre a linha tênue entre o real e a fantasia, e percebendo que a
intencionalidade e a manipulação tornam inacessível a imparcialidade na reprodução da
realidade por meio cinematográfico, ficamos então com a definição de Pudovkin de que “a
arte será realista mais pelo significado produzido do que pela naturalidade de seus meios”
(apud XAVIER, 2005, p. 55). Nos libertamos da fidelidade estrita ao naturalismo nas formas
de gravar, montar e pós-produzir um filme abrindo para possibilidades artísticas, não
necessariamente como uma traição à realidade, mas por torções que vão permitindo a
evolução da linguagem cinematográfica.
pelo cinema realizado por negros do Atlântico negro e de outras partes do planeta. Como já
dito, escapemos da monocultura, do discurso único, e que mais humanos possam contar suas
histórias e mais humanos possam escutar essas histórias.
“O canto surge pela necessidade de alimentar e fortalecer o sonho de cada ser humano.”
(BOCCIA, 2009, p. 77).
Por essas razões, ao longo do trabalho fizemos revisões históricas, passando pelas
inovações tecnológicas. Nos centramos na construção histórica da linguagem do cinema e
vimos alguns gêneros cinematográficos, como foram se modificando e se adaptando às novas
possibilidades estéticas derivadas dos avanços tecnológicos ao longo do tempo. Junto a isso,
destinamos grande atenção a como o som participa dessa evolução da linguagem
117
cinematográfica desde o seu nascimento até os dias de hoje; abordamos o surgimento do som
sincrônico, a montagem sonora, o som direto, a gravação e reprodução stereo, o sistema
multicanais, a inovação do som digital e suas possibilidades para a montagem, o surgimento
das funções de editor de som, e posteriormente do diretor de som ou desenhista de som,
concluindo com as características do hiper-realismo sonoro.
Por conta do recorte escolhido para a realização deste trabalho, acredito que
permanecem alguns temas vinculados à essa pesquisa que poderiam ser estendidos. Uma
abordagem mais profunda sobre o hiper-realismo sonoro é um desses temas; seria interessante
uma análise técnico-estética de sequências de filmes que se utilizem do hiper-realismo
sonoro, acompanhada das implicações desses sons e efeitos sonoros na percepção do
espectador, já que estamos tratando de um som que ultrapassa a realidade e que portanto, em
alguns casos, o espectador não possui um registro desse som na sua memória, com isso então
poderia ser feita uma análise, com base na psicoacústica, sobre a escuta paniqué. O que
poderia englobar também um estudo sobre as modificações estéticas para a linguagem
cinematográfica derivada dos aprimoramentos tecnológicos dos sistemas de reprodução
sonora envolvente, como o Dolby Atmos e seu sem-número de caixas de som distribuídas na
sala de cinema.
do Centro Afro Carioca de Cinema. Os filmes produzidos pelos indígenas, como os do projeto
Vídeo nas Aldeias, e outros que buscam dar voz à essas comunidades e culturas tão pouco
escutadas, e as vezes invisibilizadas ou desprestigiadas, e aprender com a sua forma de contar
histórias audiovisuais, e com os seus simbolismos e valores.
E por último, uma mergulho mais profundo nos estudos sobre o afro-futurismo e suas
repercussões na música, no cinema e no som no cinema. Um estudo que aponte para os frutos
artísticos-culturais gerados nesse nosso mundo dos hibridismos. Pensar em uma produção
cinematográfica feita por mangue-boys e mangue-girls, comprometidos com a realidade
mundana mas também com as possibilidades estéticas audiovisuais; um cinema em
movimento e sem fronteiras; um cinema multiplicador de histórias variadas, atravessado e
influenciado por uma diversidade de culturas. Um cinema transcultural e, sobretudo, sonoro.
119
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