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Universidade Federal de São Carlos

Centro de Educação e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som

Luiz Fernando Coutinho de Oliveira

O Som das Fontainhas: uma análise da banda sonora de três filmes de


Pedro Costa

São Carlos
Julho/2020
Luiz Fernando Coutinho de Oliveira

O Som das Fontainhas: uma análise da banda sonora de três filmes de


Pedro Costa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal
de São Carlos, para obtenção de título de mestre. Linha
Narrativa Audiovisual.
Orientadora: Profª. Drª. Suzana Reck Miranda.

São Carlos
Julho/2020
À memória do hawksiano Carlos Melo Ferreira
Agradecimentos

Agradeço primeiramente a minha mãe, Celia Franco Coutinho, que me ensinou a nunca deixar
de sonhar. É ela a verdadeira responsável por esta dissertação.

Agradeço a Rafaela Marques, por sempre me apontar os diferentes caminhos da vida e trilhá-
los ao meu lado.

Agradeço minha orientadora, Suzana Reck Miranda, que sempre acreditou em meu trabalho e
o incentivou com os melhores conselhos.

Agradeço a meu pai, Reinaldo Ayer, em cujo sangue corre a mesma cinefilia.

Agradeço a Pedro Costa, José Oliveira, Rui Cidra, Luís Miguel Oliveira, Olivier Blanc,
Nelson Araújo e João Coimbra, pelas conversas e ensinamentos.

Agradeço a César Guimarães e Cristian Borges, pela leitura atenta da dissertação e pelas
sugestões e críticas na banca de defesa.

Agradeço a Margarida Adamatti, Flavia Cesarino Costa e Daniel Ribeiro Duarte, cujos
apontamentos na banca de qualificação se demonstraram indispensáveis.

Agradeço a Paulo Martins Filho, Vitor Pedrassi, Vinicius Joaquim, Lucas Stefanuto, Christian
Savi e Bruno Ferreira, que de longa data têm sido fundamentais. Também a Ana e Fred, por
tão gentilmente me receberem no Porto.

Agradeço aos docentes e ao secretariado do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som


(PPGIS), bem como aos discentes com quem pude trocar ideias e experiências.

Agradeço a todos os funcionários da Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema, do Arquivo


Nacional da Imagem em Movimento (ANIM) e da Biblioteca Comunitária da UFSCar.

Agradeço a Carlos Melo Ferreira, um homem bom que me concedeu a honra de sua
orientação durante meu estágio em Portugal. Dedico esta dissertação à sua memória.

Por fim, agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a
CAPES, pelas bolsas concedidas (processos nº 2018/02221-8 e nº 2019/03634-7) e pelo
aporte financeiro que possibilitou a existência desta pesquisa.
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de
responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES.
“E então um grande silêncio cai sobre os trinta quilômetros
quadrados da ilha. Ou vem das coisas, do interior das coisas: um
silêncio extremamente doce, um equilíbrio supremo. A ilha adquire
uma grave e grandiosa imobilidade. E a luz entra e sai pelas coisas
como se elas fossem esponjas. As mãos ficam muito nuas. É dos olhos
que primeiro desaparece o sono. E da boca. De cada parte do corpo,
lentamente, de todas as partes, até que as pessoas se abram
totalmente. Numa ressureição”.

Herberto Helder, In: Photomaton & Vox.


Resumo

Esta pesquisa analisa o som fílmico de três obras do cineasta português Pedro Costa,
nomeadamente Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006), os
quais compõem o que se convencionou chamar de “trilogia das Fontainhas”. Estes filmes, que
descrevem uma trajetória singular do diretor em sua relação com o bairro das Fontainhas, na
Região Metropolitana de Lisboa, são estudados a partir de uma investigação sobre as
significações de seus desenhos sonoros. Com o objetivo de demonstrar a importância
específica da banda sonora no cinema de Pedro Costa, esta compreendida aqui como
constituída pelos diálogos, ruídos e músicas e pelas relações destes com as imagens,
analisamos: a) as diferentes impressões de silêncio que os filmes produzem, uma vez que
estas impressões são percebidas como produtos de determinadas equações entre som e
imagem; b) os diferentes sons acusmáticos que nos filmes são constituídos, especialmente
seus efeitos nas imagens e vice-versa; e c) as diferentes vozes que nos filmes se manifestam,
estendendo a análise aos diálogos, aos monólogos e às canções. O estudo da banda sonora dos
três filmes nos permite constatar não apenas que o som fílmico é um elemento imprescindível
para o estilo cinematográfico de Pedro Costa, mas também que a concepção e a utilização
criativa dos sons estão intimamente relacionadas ao método de produção que o cineasta
descobre e depura de filme a filme.

Palavras-chave: som no cinema; Pedro Costa; Fontainhas.


Abstract

This research analyzes the film sound of three works from Portuguese filmmaker Pedro Costa,
namely Bones (1997), In Vanda’s Room (2000) and Colossal Youth (2006), which together
compose what is commonly referred to as “Fontainhas’ Trilogy”. These films, which describe
the filmmaker’s peculiar trajectory in relation to the neighborhood of Fontainhas, in the
Metropolitan Region of Lisbon, are all studied based on an investigation of their sound
design’s significations. In order to demonstrate the specific importance of the soundtrack in
the cinema of Pedro Costa, soundtrack here understood as constituted by dialogues, noises
and music and their relationships with the images, we analyze: a) the different impressions of
silence that the films produce, since these impressions are perceived as products of certain
sound and image dispositions; b) the different acousmatic sounds constituted within the films,
especially their effects on the images and vice-versa; and c) the different voices that manifest
themselves in the films, extending the analysis to dialogues, monologues and songs. The
study of the three films and their soundtracks allows us to conclude that not only film sound is
an essential element to Pedro Costa’s cinematographic style, but also that the conception and
creative use of sounds are closely related to the production method which the filmmaker
discovers and matures from film to film.

Key-words: film sound; Pedro Costa; Fontainhas.


Lista de figuras

Capítulo I – Os silêncios
Figuras 1, 2 e 3 – Silêncios mais brandos nos filmes da trilogia das Fontainhas.....................25
Figura 4 – Christine Gordon como zumbi em A Morta-Viva (1943).......................................30
Figuras 5 e 6 – A enfermeira Eduarda Gomes (esq.) e o Pai (dir.), exaustos e silenciosos......30
Figuras 7 e 8 – Clotilde e Tina na festa nas Fontainhas (esq.) e Clotilde Montron acudindo a
irmã debilitada (dir.).................................................................................................................31
Figuras 9, 10 e 11: A silenciosa Zita Duarte em espaços do bairro..........................................33
Figura 12 – O segredo anunciado pelo gesto de Maura............................................................34
Figura 13 – Ventura em seu apartamento demasiado branco na Boba.....................................36
Figuras 14 e 15 – A cumplicidade silenciosa das irmãs Clotilde e Tina..................................38
Figura 16 – A fechadura do apartamento da enfermeira...........................................................39
Figuras 17 e 18 – Os planos finais de Ossos (esq.) e Rua da Vergonha (1956) (dir.)..............42
Figuras 19 e 20 – Os travellings em Ossos (esq.) e Casa de Lava (dir.)..................................44
Figuras 21 e 22 – Planos esvaziados em No Quarto da Vanda................................................47
Figuras 23, 24 e 25 – “Pillow-shots” em Ozu: Pai e Filha (1949) (esq.), Flor de Equinócio
(1958) (cent.) e Bom Dia (1959) (dir.)......................................................................................48
Figura 26 – Imagem “descentralizada” em No Quarto da Vanda............................................50
Figuras 27 e 28 – Naturezas-mortas em No Quarto da Vanda (esq.) e Juventude em Marcha
(dir.)...........................................................................................................................................51
Figura 29 – Paulo “Muletas” e Russo injetam droga à luz de vela...........................................53
Figuras 30, 31, 32 e 33 – Quadros dentro de quadros em Ossos..............................................55
Figura 34 – A enfermeira Eduarda Gomes visita Tina nas Fontainhas....................................57
Figuras 35, 36, 37 e 38 – Ventura deambula pelo silencioso Museu Calouste Gulbenkian.....59

Capítulo II – Os sons acusmáticos


Figuras 1 e 2 – O corpo humano recortado em O Dinheiro (Robert Bresson, 1983) e as
personagens de costas para a câmera em Da Nuvem à Resistência..........................................64
Figura 3 – Zita Duarte (esq.) e Vanda Duarte (dir.) se drogam no quarto exíguo nas
Fontainhas.................................................................................................................................66
Figura 4 – O bairro das Fontainhas é demolido pela ação de uma retroescavadeira................68
Figuras 5 e 6 – A montagem de No Quarto da Vanda intercala momentos de sociabilização
(esq.) e imagens da destruição do bairro (dir.)..........................................................................69
Figuras 7 e 8 – A escuta atenta dos sons acusmáticos da Revolução (esq.) e a reclusão na
barraca ancestral........................................................................................................................73
Figura 9 – Vanda durante a jornada de venda de legumes........................................................75
Figuras 10 e 11 – Homens observam a ação das máquinas (esq.) e o plano final com a ruína de
uma casa....................................................................................................................................78
Figuras 12 e 13 – Maura (esq.) observa algo fora de quadro até sua irmã Clotilde fechar a
porta entreaberta (dir.)...............................................................................................................80
Figura 14 – Uma criança brinca com a bicicleta enquanto uma senhora a observa..................81
Figuras 15 e 16 – Ventura com a filha no plano final de Juventude em Marcha (esq.) e Zita
com seu irmão pequeno em No Quarto da Vanda (dir.)...........................................................83
Figura 17 – Xana (esq.) e Ventura (dir.) observam o funeral de Zita......................................85
Figura 18 – Vanda faz uma pausa na venda de legumes..........................................................89
Figuras 19, 20 e 21 – Uma mão na escuridão do bairro (esq.), Lena Duarte na cozinha de sua
casa (cent.) e o padrasto de Vanda na sala (dir.).......................................................................94
Figura 22 – Vanda, em seu quarto, escuta as palavras acusmáticas de Nhurro........................97
Capítulo III – As vozes
Figuras 1 e 2 – Clotilde e Maura no ônibus (esq.) e Maura no hospital (dir.)........................102
Figura 3 – Paulo “Muletas” (esq.) conversa com Russo (dir.) sob a luz de velas..................107
Figura 4 – Nhurro conversa com Vanda no quarto penumbrado desta...................................109
Figuras 5 e 6 – Alternância entre o quarto de Vanda (espaço “feminino”) (esq.) e a casa de
Nhurro (espaço “masculino”) (dir.)........................................................................................111
Figura 7 – Nhurro volta a falar da mãe em Juventude em Marcha.........................................114
Figura 8 – Lento (esq.) e Ventura (dir.) no apartamento incendiado na Boba........................120
Figuras 9 e 10 – Henry Fonda recorda a guerra em No Rufar dos Tambores (esq.) e Ventura
recorda sua chegada em Portugal em Juventude em Marcha (dir.)........................................122
Figura 11 – Os pijamas listrados de Ventura..........................................................................126
Figuras 12 e 13 – Ventura (esq.) espera pela resposta de Bete (dir.)......................................130
Figura 14 – Ventura (esq.) pousa sua mão sobre a mãe de Lento (dir.) para poder escutar a
canção......................................................................................................................................132
Figuras 15, 16 e 17 – Ventura e Bete conversam sobre o passado.........................................140
Sumário
Introdução................................................................................................................................08

1. Breve introdução ao cinema de Pedro Costa.............................................................08


2. O som das Fontainhas...............................................................................................17

Capítulo I – Os silêncios.........................................................................................................23

1. Ossos e a recusa da voz.............................................................................................25


2. A personagem muda..................................................................................................32
3. O que nos dizem os silêncios?...................................................................................35
4. O espectador silenciado............................................................................................40
5. Sentimentos inauditos...............................................................................................43
6. Os silêncios do vazio.................................................................................................46
7. Das relações entre silêncio e pintura.........................................................................53

Capítulo II – Os sons acusmáticos.........................................................................................62

1. Da destruição à resistência........................................................................................66
2. A odisseia das crianças..............................................................................................78
3. As sonoridades do bairro..........................................................................................83
4. Construções sonoras..................................................................................................91

Capítulo III – As vozes............................................................................................................99

1. As palavras faladas..................................................................................................101
2. As palavras cantadas...............................................................................................128

Considerações finais..............................................................................................................143

Referências.............................................................................................................................150
Entrevistas e mesas-redondas com Pedro Costa.........................................................153
Entrevistas realizadas e incluídas como apêndice.......................................................154
Filmografia de Pedro Costa, em ordem cronológica...................................................154
Filmes citados na dissertação, em ordem alfabética...................................................155

Apêndices...............................................................................................................................156

A. Primeira entrevista com Pedro Costa.....................................................................157


B. Segunda entrevista com Pedro Costa......................................................................185
C. Entrevista com José Oliveira.................................................................................201
D. Entrevista com Rui Cidra.......................................................................................208
Introdução

1. Breve introdução ao cinema de Pedro Costa

O cineasta português Pedro Costa é uma figura incontornável no cinema contemporâneo.


Festivais ao redor do mundo lhe reservam louros, os críticos lhe oferecem textos dos mais
diversos, a academia não mede esforços em estudar e sistematizar sua obra, galerias de arte
passaram a incluir seus trabalhos no âmbito de suas exposições e cineastas surgidos nos
últimos anos começam a tê-lo como referência para suas produções. Neste sentido, parece
irônico que no início desta dissertação nos disponhamos a introduzir o cinema deste cineasta
tão laureado e de tal maneira reconhecível nas esferas mais variadas do conhecimento e da
cultura. Evidentemente, esta situação não passa de uma aparência, visto que mesmo no
contexto cinematográfico, em especial no segmento da cinefilia, sua obra ainda carece de
conhecimento por uma maioria.

Ainda jovem, em Lisboa, Pedro Costa cresceu no contexto da Revolução dos Cravos. Leu
poesia, militou pelo anarquismo, fez parte de uma banda punk. Quando descobriu o cinema,
interessou-se, sobretudo, por Jean-Marie Straub, Yasujiro Ozu, John Ford. Os filmes, de certa
forma, harmonizavam com Sex Pistols, The Clash, Wire, e também Rimbaud e Pessoa. Após
ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, começou a ter aulas com o
cineasta António Reis, figura central em sua formação como homem de cinema em Portugal,
e paralelamente frequentou as sessões programadas pelo crítico João Bénard da Costa. Foi
assistente de cineastas célebres do cinema português, nomeadamente João César Monteiro,
Paulo Rocha, Jorge Silva Melo e João Botelho. Alguns anos mais tarde, Pedro Costa se juntou
a colegas da Escola para fundar a Trópico Filmes, produtora responsável tanto pela realização
de Uma Rapariga no Verão (Vitor Gonçalves, 1986) quanto de Nuvem (Ana Luísa
Guimarães, 1991).

Pedro Costa é um cineasta que conserva uma filmografia íntegra em seus preceitos e
realizações. Não obstante a persistência de determinados temas entre seus filmes, a
homogeneidade de sua obra é afirmada pela maneira como cada filme parece contestar,
prolongar ou sugerir caminhos ainda não explorados pelo filme anterior – caminhos velados
ou prestes a germinar, narrativas disponíveis ou métodos a se apurar, isto é, perspectivas de
trabalho sempre disponíveis ao tipo de fabricação artística que simultaneamente conjura essas
possibilidades e delas retira sua força. Assim, No Quarto da Vanda representa uma guinada
de seu método de produção em relação ao longa-metragem anterior, Ossos, que, por sua vez,
9

já propunha novas diretrizes ao trabalho realizado em Casa de Lava, o qual também foi uma
resposta à realização de O Sangue. Com este último, Pedro Costa inicia sua carreira em longa-
metragem no cinema.

O filme, que teve sua estreia no Festival de Veneza de 1990, é uma ficção filmada em preto-e-
branco sobre dois irmãos que confrontam seus destinos após o mais velho cometer parricídio.
Tanto o jovem Vicente (Pedro Hestnes) quanto o pequeno Nino (Nuno Ferreira) sofrem ainda
as agruras de um tio que os quer separar, interpretado pelo reconhecível Luís Miguel Cintra, e
a pressão de dois tipos gângster que lhes cobram por uma dívida antiga de seu pai. A eles
junta-se Clara (Inês de Medeiros), uma adolescente cujo caso amoroso com Vicente nos faz
pensar no romance juvenil de Amarga Esperança (Nicholas Ray, 1948), com o qual o filme
de Pedro Costa guarda algumas outras semelhanças. A cinefilia, aliás, surge como palavra de
ordem neste filme inaugural, que cruza diferentes referências da história do cinema. As
brumas do rio Tejo, fotografadas com primor por Martin Schäfer (o fotógrafo de muitos
filmes de Wim Wenders), remetem a Murnau e tragam as personagens ao fundo de seus
trágicos desencantos. Algo de inominável e misterioso habita as imagens dessa obra
originária; algo escondido algures entre o claro e o escuro que desenham essas personagens
nem totalmente vivas e nem completamente mortas.

Em Casa de Lava (1994), o filme seguinte, também oscila entre a vida e a morte o imigrante
cabo-verdiano Leão (Isaach de Bankolé), personagem que é deportado de volta ao seu país de
origem após sofrer um acidente enquanto trabalhava na construção civil em Lisboa. Em coma,
ele recebe os cuidados de Mariana (interpretada pela mesma Inês de Medeiros), enfermeira
portuguesa que é enviada junto a ele. Filmado quase inteiramente no arquipélago africano,
este segundo longa-metragem de Pedro Costa representa o encontro primordial entre o
cineasta e a cultura e o povo cabo-verdianos; encontro de tal forma fundamental que a maioria
de seus filmes seguintes passa a lidar direta ou indiretamente com estes pontos cardiais: à
exceção dos documentários que realizou, toda sua obra posterior é construída em torno de
presenças cabo-verdianas.

Mariana, chegada a Cabo Verde descida dos céus por um helicóptero, busca se adaptar à terra
estranha qual a personagem de Ingrid Bergman em Stromboli (Roberto Rossellini, 1950) ou
mais precisamente como a enfermeira que protagoniza A Morta-Viva (Jacques Tourneur,
1943), vagando pela extensão dessa ilha misteriosa e tentando acessar seus segredos
inauditos. Neste filme de perambulação, a linha narrativa é sujeita aos deslocamentos de
10

Mariana no espaço do arquipélago e às situações cotidianas de seus habitantes. São estas


perambulações pelos recônditos do território estrangeiro e o encontro com os cabo-verdianos
que ali residem que fornecem ao filme um ligeiro tom documental, uma disposição de
abertura ao “real” que começa a penetrar as instâncias do drama. A influência do espaço e dos
cabo-verdianos é determinante em Casa de Lava, com o projeto original tendo de ser
constantemente reformulado e ajustado às histórias e experiências daquele povoado. Este
processo de adaptação às contingências materiais da produção, que Pedro Costa começou a
adotar como método para os filmes seguintes, resulta em certas disposições estéticas que não
constavam no filme anterior: as cores quentes substituem o preto-e-branco e os sons
ambientes prevalecem sobre as músicas extradiegéticas e os efeitos sonoros fabricados em
estúdio.

Finalizada a produção, Pedro Costa retornou a Portugal trazendo consigo lembranças enviadas
pelos cabo-verdianos aos parentes imigrantes que moravam na Região Metropolitana de
Lisboa. Ele descobre, assim, o bairro das Fontainhas, que será seu estúdio de filmagem nos
anos vindouros. Antes situado no Município da Amadora, distrito lisboeta, o bairro foi
povoado e construído de forma espontânea tanto pelos pobres e ciganos que desciam do norte
de Portugal quanto pelos imigrantes de ex-colônias portuguesas na África, todos em busca de
melhores condições de vida e de trabalho. Estigmatizado pela violência urbana que continha
em seu interior1, o bairro formou, com as vizinhanças de Portas de Benfica, 6 de Maio e
Estrela d’África, uma rede de habitats informais que modificou intensamente a malha urbana
da Amadora na segunda metade do século XX. Entre cafés e tragos e convites para almoços e
celebrações, Pedro Costa se aproximou dos habitantes das Fontainhas e neles vislumbrou a
possibilidade para um novo filme. Fascinado com as histórias, as sonoridades e a arquitetura
daquele espaço, com seus corredores sinuosos e escadas íngremes, o cineasta buscou realizar
um filme que conjurasse em imagens e sons a experiência proporcionada pelo bairro.

Ossos (1997), portanto, é o primeiro longa-metragem entre os três que integram aquilo que
chamaremos de “Trilogia das Fontainhas”, composta ainda por No Quarto da Vanda (2000) e
Juventude em Marcha (2006). Estes três filmes, como será detalhado, serão o objeto de estudo
da presente dissertação. A narrativa de Ossos é centrada sobre os eventos que se sucedem a

1
“Durante muito tempo, foi um bairro muito conhecido, não só por ser habitado quase exclusivamente por cabo-
verdianos, como pelas notícias dos jornais que atribuíam a estes estranhos moradores o mau ambiente da zona.
Encostado às Portas de Benfica, este bairro representava a face terrível da cidade, pois concentrava gangs de
marginais responsáveis pela insegurança urbana” (ANTUNES, 2002, p. 196-197).
11

um parto: a mãe, Tina (Mariya Lipkina), mantém tendências suicidas após o nascimento do
bebê, tentando em duas ocasiões tirar a própria vida com gás de cozinha – na primeira em
presença do próprio filho recém-nascido. É o Pai (interpretado pelo ator não profissional
Nuno Vaz, cujo personagem não possui nome e por esta razão lhe referimos com letra
maiúscula) quem resgata a criança e impede o suicídio da mãe. Desempregado e faminto, ele
busca formas de cuidar do filho. Clotilde (Vanda Duarte), irmã de Tina, mantém um caso
amoroso com o Pai e gostaria de ser, ela mesma, a mãe do bebê. Há ainda outras personagens
que cruzam a narrativa rarefeita do filme, em especial cinco femininas: a enfermeira Eduarda
Gomes (Isabel Ruth, atriz reconhecida por seus trabalhos com Paulo Rocha), que se aproxima
do trio protagonista através de um primeiro contato com o Pai no hospital; Maura, a irmã mais
nova de Tina e Clotilde; a prostituta interpretada por Inês de Medeiros, para quem o Pai
termina por vender a criança indesejada; e duas figuras enigmáticas, interpretadas por Zita
Duarte e Clotilde Montron, cujos nomes nunca são revelados e cujas funções narrativas
inspiram inúmeras interpretações. Um pai, uma criança e “sete mulheres”, como no filme de
John Ford.

Como o filme precedente, Ossos organiza seus artifícios estéticos em função da produção de
uma sensação proveniente do espaço – antes o arquipélago africano, aqui o bairro. Não é de
todo descabida a hipótese de que, neste filme em especial, o bairro surge como personagem
principal. Em sua empreitada, Pedro Costa constrói exemplarmente uma atmosfera das
Fontainhas, isto é, uma ideia que toma corpo através da fotografia à luz natural de Emmanuel
Machuel (fotógrafo do último filme de Robert Bresson), da arquitetura sui generis do bairro,
da encenação mortificada, da presença abundante de vozes no extracampo, do trabalho com
atrizes e atores não profissionais que habitavam o bairro, entre outros: artifícios que
poderemos analisar mais detidamente no decorrer da dissertação. Henri Maïkoff, técnico de
som de alguns filmes de Manoel de Oliveira, foi o responsável pela captação de som direto. A
edição sonora, por sua vez, ficou a cargo de Jean Dubreuil, enquanto a mixagem foi realizada
por Gérard Rousseau. Os três, aliás, cumpriram as respectivas funções em Casa de Lava.

O segundo filme da trilogia das Fontainhas, No Quarto da Vanda, representa um ponto de


inflexão na filmografia de Pedro Costa. Após as filmagens de Ossos, a atriz não profissional
Vanda Duarte, habitante das Fontainhas, teria questionado o cineasta sobre seu método de
trabalho. Seriam imprescindíveis os refletores, os cabos, os carros, as câmeras 35 mm, as
ordens do dia, as parafernálias técnicas e, com elas, as inúmeras pessoas envolvidas no
12

processo de produção?2 A resposta para a questão de Vanda se dá na maneira com que Pedro
Costa produz o próximo filme: dispensando a equipe, assume ele mesmo o posto de fotógrafo
através da substituição da câmera de película por uma Panasonic DVX100 – na qual liga um
microfone Schoeps para a captação de som direto – e se dispõe a gravar pacientemente o
cotidiano de certas figuras das Fontainhas, acumulando mais de uma centena de horas de
material bruto. Assim, a câmera digital permitiu ao cineasta se mover em espaços reduzidos,
como os quartos e corredores exíguos do bairro, e trabalhar com o tempo e a liberdade
requeridos para a ideia de cinema que começava a despontar como método.

Com No Quarto da Vanda, Pedro Costa continuou a mostrar a miséria e o abandono de seres
humanos marginalizados. Por outro lado, dá início ao seu projeto de reconstituição de um
“estúdio hollywoodiano” singular, influenciado também pela “Factory” de Andy Warhol,
lançando-se à criação de uma obra que é construída solidariamente, em comunidade, com a
colaboração de pessoas igualmente inventivas que lhe são próximas3. Vanda Duarte e sua
irmã Zita, também atriz no filme anterior, são “despidas” do manto ficcional que as cobria em
Ossos e passam a representar como Edie Sedgwick e Nico nos filmes de Warhol, estruturando
as cenas e os planos que as abrigam. Conversas, andanças nos corredores labirínticos do
bairro, injeções e tragos de heroína, brincadeiras de crianças ao lado de fogueiras para
esquentar panela, silhuetas que surgem e desaparecem na escuridão das casas ou do bairro,
trabalhos rotineiros, festas, entre outros, são eventos registrados por uma câmera sempre
disponível e um microfone atento. O quarto de Vanda atua como centro em volta do qual
outras forças do bairro se distribuem, entre elas tratores, escavadeiras e britadeiras que
demoliram o bairro durante o processo de gravação do filme. O sentimento de angústia
suscitado pelo retrato da miserabilidade é substancialmente potencializado pelos ruídos
estridentes que as máquinas produzem4.

2
“Pedro Costa contou numa entrevista que, quando terminou a rodagem de Ossos e se deixou cair numa cadeira
extenuado, Vanda veio ter com ele e perguntou-lhe se o cinema tinha que ser sempre assim, tão difícil, com tanta
gente, tanto bulício, tanta maquinaria. Histórias? As histórias dela, e as histórias de tantas e tantos como ela,
davam dezenas de filmes” (BÉRNARD DA COSTA, 2009, p. 24).
3
Pedro Costa (2014, p. 78): “Estou a tentar que aquilo seja a minha Hollywood. Vocês podem rir, mas estas
pessoas são as minhas super-estrelas”.
4
A demolição do bairro das Fontainhas, que possibilitou a construção de uma estrada que hoje circunda a cidade
de Lisboa (Circular Regional Interior de Lisboa), “fazia parte de uma iniciativa do Estado com o objetivo de
realocar cerca 130.00 pessoas em moradias regulamentadas. O aumento das taxas de imigração na década
anterior levou ao crescimento de assentamentos informais nos arredores de Lisboa, cujos residentes não foram
numerados por relatórios oficiais de censo. Em 1993, o Instituto Nacional de Habitação lançou um esforço para
remover essas áreas pobres através de um plano chamado Programa Especial de Realocação (PER)” (WHITE-
NOCKLEBY, 2018, s/p, tradução nossa). No original: “(…) was part of a state initiative aiming to relocate
around 130,000 people into regulated housing. Rising immigration rates in the previous decade had led to the
13

Mas há também Nhurro (ou Pango, Yuran, Chumbito...), negro cabo-verdiano que procura
formas de sobreviver em sua casa cimentada; Russo, o colega toxicodependente que trabalha
em um botequim; Paulo “Muletas”, o manco que reveza a dose de heroína com caminhadas
pelas Fontainhas; Pedro, o vendedor de flores roubadas de cemitério; Lena, a mãe de Vanda,
que mora com seu marido e as duas filhas; entre outros. A forte impressão documentária
transmitida pelo filme, dada principalmente pelo tom quotidiano do registro, não se sustenta
inteiramente, visto que Pedro Costa reencenou extensivamente as situações dramáticas. A
montagem de Dominique Auvray e Patrícia Saramago, em conjunção com o trabalho sonoro,
costura cenas e espaços distintos e estrutura o universo expansivo do bairro. O som, por sua
vez, é um recurso fundamental na organização espacial das Fontainhas, e sua edição foi
novamente encarregada a Jean Dubreuil, acompanhado então por Waldir Xavier, parceiro de
Karim Aïnouz e editor de som, entre outros, de Central do Brasil (Walter Salles, 1998).

Após a demolição do bairro, os antigos moradores foram realojados no complexo habitacional


do bairro Casal da Boba, não coincidentemente no espaço onde se situava a antiga lixeira
municipal. O processo de adaptação às novas casas é representado em Juventude em Marcha,
o terceiro e último filme da trilogia. Vanda, que se tornou mãe, habita seu novo quarto em um
desses apartamentos demasiadamente brancos, assépticos e profiláticos. Também Nhurro e
Paulo “Muletas” retornam no decorrer do filme, o primeiro trabalhando no Porto e o segundo
vendendo brinquedos nas escolas para sobreviver. O protagonista do filme, no entanto, é um
senhor idoso, negro, de terno esfarrapado, que migrou de Cabo Verde para Lisboa nos anos
1970 para trabalhar na construção civil. Seu nome é Ventura, homem que aponta para a sina
de todos os outros cabo-verdianos que, como ele, buscaram nas terras portuguesas uma
oportunidade de vida melhor. Muito cedo, Ventura acidentou-se trabalhando como pedreiro e
se aposentou. Desabrigado desde o início do filme, expulso de sua própria casa pela “esposa”
cabo-verdiana Clotilde, seu corpo perambula pelo espaço remanescente das Fontainhas e
pelos pátios desertificados da Boba, onde visita suas Bete e Vanda, respectivamente, a quem
trata como “filhas”. São estes encontros, afinal, que estruturam o filme.

Ventura transita também pelo espaço de uma barraca escura que compartilha com seu outro
“filho” chamado Lento. Trata-se, supostamente, de uma barraca primordial onde o

growth of informal settlements on the outskirts of Lisbon, whose residents were largely uncounted by official
census reports. In 1993, the National Housing Institute launched an effort to remove these slum areas through a
plan called ‘Special Program of Relocation’ (PER)”.
14

protagonista “revive” seus primeiros anos em Lisboa5. Ainda que situadas no contexto
histórico da Revolução dos Cravos, cujos sons distantes chegam à barraca e amedrontam tanto
Ventura quanto Lento, as cenas neste espaço não são representadas como flashbacks – o mais
velho, por exemplo, nunca deixa de ser interpretado por ele mesmo. Este senhor esguio, de
estatura imponente, constantemente gravado em ângulos contra-plongée, parece não conhecer
amarras espaço-temporais, podendo deslocar-se horizontalmente no presente, saltando de
Lisboa ao Porto, quanto verticalmente em direção ao passado. Entre carteados, conversas e
deambulações, Juventude em Marcha condensa tempos imprecisos, e Ventura, como figura da
História, por ela transita livremente, constituindo ele mesmo o eixo sobre o qual ela pode ser
contada. Por fim, de seus lábios ouvimos constantemente as palavras de uma carta de amor
que seria destinada a uma mulher amada que ficou em Cabo Verde.

A captação de som direto de Juventude em Marcha foi realizada por Olivier Blanc, com quem
Pedro Costa voltaria a trabalhar em filmes seguintes. Em seu currículo, constam ainda filmes
com Rita Azevedo Gomes, Paulo Rocha e João Salaviza. A montagem de som ficou a cargo
de Nuno Carvalho, que já trabalhou com Manuel Mozos e, mais recentemente, com João
Pedro Rodrigues. A mixagem, finalmente, foi feita por Jean-Pierre Laforce, nome de extensão
internacional que coleciona parcerias com Michael Haneke, Bertrand Bonello e Jean-Marie
Straub. O trabalho sonoro cuidadoso que as três partes concebem salta aos ouvidos e torna o
desenho de som um ponto nodal da construção fílmica, especialmente pela caracterização
criativa dos diferentes espaços e tempos e pela qualidade com que as vozes do filme são
captadas e tratadas.

Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha são, portanto, os filmes que integram o
corpus desta pesquisa. É imperioso, no entanto, ir além deles nesta introdução sobre o
cineasta. Entre No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha, Pedro Costa realizou um
episódio para a série Cinéastes de notre temps sobre o casal de cineastas Jean-Marie Straub e
Danièle Huillet. O longa-metragem que deste episódio nasceu, Onde jaz o teu sorriso?
(2001), registra o trabalho de montagem do filme Gente da Sicília (1999). O que antes era o
quarto de Vanda passa a ser a salinha onde Straub e Huillet se enclausuram para operar os
cortes de seu filme. Confinados ambos em um espaço escuro, envolto em penumbra e

5
Pedro Costa (2014, p. 66): “[Juventude em Marcha] foi um filme ambicioso porque o projeto era (...) voltar ao
princípio do bairro onde eles viveram e tentar inventar uma espécie de memória, uma memória do princípio,
quase do primeiro homem, da primeira barraca, da primeira casa, e ao mesmo tempo, ou em paralelo, ter o
presente, o bairro social onde eles vivem hoje, onde foram alojados, onde se sentem muito mal”.
15

sonorizado pelo rebobinar dos rolos de filmes, eles meditam, discutem e trabalham à luz do
projetor. Pedro Costa se instala no canto desta sala e observa de forma igualmente paciente a
rotina de trabalho do casal, entrevendo discussões variadas entre o carrancudo Straub e a
intrépida Huillet. Abordagem semelhante o cineasta realiza em Ne Change Rien (2009), outro
documentário, este em preto-e-branco, em que se retrata diferentes etapas do processo musical
da atriz e cantora francesa Jeanne Balibar. Em ambos os filmes, o trabalho artístico torna-se
objeto de cautelosa observação, e a dimensão material implicada nos processos criativos de
montagem cinematográfica ou produção musical torna-se o centro dramático.

Da sucessão dos encontros com Ventura, e depois com os cabo-verdianos Alfredo Mendes e
José Alberto Silveira, surgiram três curtas-metragens que trabalham com um material de base
comum: Tarrafal (2007), A Caça ao Coelho com Pau (2007) e O Nosso Homem (2010) são
filmes que repetem inúmeros planos, remontando-os em diferentes possibilidades
organizatórias. São curtas que nos mostram, cada qual à sua forma, figuras que resistem aos
apartamentos inóspitos e brancos da Boba a insistem em sobreviver em barracos exíguos nos
arredores do novo bairro. O primeiro, talvez o mais conhecido, produzido para constar na
coletânea de curtas-metragens O Estado do Mundo (2007), refere-se à Colônia Penal do
Tarrafal, um campo de concentração na ilha de Santiago para onde Salazar deportava seus
dissidentes políticos. Um paralelo é tecido entre este espaço e o bosque onde agora habitam os
cabo-verdianos destituídos de seu próprio lar no antigo bairro. Ao final, um plano-detalhe
revela-nos uma carta de deportação endereçada a José Alberto Silveira, que será exilado para
seu território de origem: fincada com um canivete prata sobre um poste de madeira, a carta é
como o papel arquetípico que, de acordo com o diálogo inicial entre José e sua mãe, anuncia a
chegada inevitável da morte.

Em Cavalo Dinheiro (2014), Ventura encontra-se adoentado e internado em um hospital que


mais se assemelha a uma câmara de morte. Perguntamo-nos se este espaço hospitalar não é
uma projeção de seu estado mental: seu corpo transita entre temporalidades inexatas, espaços
que não sabemos pertencer à memória ou ao mundo físico, ruínas de um passado na
construção civil, figuras cabo-verdianas suspensas em um espaço-tempo indefinido da
História recente de Portugal, entre outros. O mergulho expressionista em direção às
profundezas da mente perturbada de Ventura encontra os imigrantes que, expulsos de suas
casas, derivam sobre terras de indefinição permanente. A Revolução dos Cravos retorna como
ponto fantasma histórico na medida em que sua implosão em Lisboa contrasta com o medo
16

que acometia os habitantes das Fontainhas na época das movimentações revolucionárias, entre
os quais amedrontava-se o próprio Ventura. Presença reluzente entre as sombras demarcadas
que consomem o filme é Vitalina Varela, a imigrante cabo-verdiana que sonha em retornar ao
território de origem após desembarcar em Portugal para enterrar o marido.

Mais recentemente, Pedro Costa dedicou a Vitalina um filme homônimo, em que sua
trajetória em Portugal é encenada. Seus pés descalços e molhados desembarcam do avião no
aeroporto de Lisboa, a casa de seu ex-marido na periferia passa a lhe pertencer – junto com os
fantasmas que ela abriga –, a comunidade cabo-verdiana ao seu redor lhe ajuda a reparar o
telhado danificado e as reminiscências de um passado longínquo em Cabo Verde lhe retornam
em sonhos. As sombras consomem este filme escuro em que a luz só se entrevê com a
superação do luto. Personagem inusitado que se junta a Vitalina é o “pároco de aldeia”
interpretado por Ventura, para quem a inexorável perda da fé acompanha a paulatina perda da
razão. Talvez o filme mais linear de Pedro Costa, Vitalina Varela é aquele em que a noite
brilha com mais intensidade. No breu incandescente das sombras reconhecemos dois pontos
cintilantes: são os olhos desta mulher cuja presença monumental o cineasta persegue com
ternura e admiração.

Carlos Melo Ferreira, estudioso da obra de Pedro Costa, vislumbra nela “uma poética do
plano fixo e longo com profundidade de campo e uma poética dos mais desfavorecidos, dos
pobres e dos exilados tomados em comunidade”6. Os filmes não convocam apenas uma
poética, mas igualmente uma política que não se dissocia da estética. Poética dos
marginalizados que o encontro entre estes e o cineasta proporciona; política decorrente das
questões materiais e representacionais da arte que lhes lança um olhar. Sejam portugueses
pobres nas periferias de Lisboa ou cabo-verdianos imigrantes desterritorializados, os homens
e mulheres de seus filmes são presenças que resistem à morte que lhes quer impor a
sociedade. A obra de Pedro Costa pode ser comparada, como constantemente ocorre, com
cineastas do passado (John Ford, Robert Bresson, Kenji Mizoguchi) e com cineastas
contemporâneos (Apichatpong Weerasethakul, José Luís Guerín, Jia Zhangke), mas o lugar
que a história do cinema lhe reserva é singular. Que este lugar tenha sido forjado por um
homem que nunca deixou de questionar a si e os princípios de seu trabalho é um dado a ser
reafirmado.

6
FERREIRA, 2018, p. 67.
17

2. O som das Fontainhas

A pluralidade de abordagens e proposições analíticas sobre o cinema de Pedro Costa,


dispostas de forma sistemática em diferentes tipos de escritos, sejam eles acadêmicos ou não,
é um fator que pesa sobre qualquer pesquisa sobre o cineasta. Quem busca analisar seus
filmes acaba por se situar em uma desafiadora via de mão dupla: por um lado, este pluralidade
extremamente profícua, verificável na grande quantidade de textos sobre o diretor, auxilia o
pesquisador em seu ofício investigativo; por outro, recai sobre seus ombros uma pergunta
inaudita: em que medida pode este pesquisador oferecer algo de inédito ou de interesse a essa
vasta rede de análises e de reflexões? Ao mesmo tempo, devemos constatar que essa
pluralidade pode ser justificada pela própria configuração da obra de Pedro Costa, de tal
forma rica e expressiva que caminhos diversos de interpretação se tornam uma consequência
lógica de sua análise.

No interior desses caminhos, e buscando compreender as linhas de força que compõem a


filmografia de Pedro Costa, esses estudiosos acessam algumas portas: hibridismo entre ficção
e documentário, estilo autoral, possibilidades representacionais a partir do advento de
tecnologias digitais, ritmos cinematográficos internos próprios ao que se cunhou “slow
cinema”, representação de figuras marginalizadas, estudos de comunidade no cinema, etc.
Uma ausência, no entanto, logo se constata quando nos colocamos em dia com a leitura dessa
extensa bibliografia. Ainda que sensíveis e interessantes em suas análises, os textos carecem
de discussões mais aprofundadas sobre a relevância do som no projeto estético e político do
cineasta. Questão de recorte, evidentemente. Não se pode incorrer ao erro de assumir que o
som é um tópico simplesmente ignorado, pois muitos autores lhe dedicam algumas palavras e
atentam à sua construção cuidadosa e significativa. O que questionamos, no caso, é a
profundidade empregada, nestes textos, sobre o assunto: enquanto as imagens e seus
corolários continuam a ser o centro analítico em volta do qual orbitam diferentes abordagens,
o som se mantém um artifício que, apesar de constatado engenhoso, não merece mais do que
um ou dois parágrafos.

A descrição não faz jus, é claro, aos autores e autoras cujos textos demonstram, senão
preocupação em desvelar especificamente a complexidade sonora dos filmes do cineasta, pelo
menos a intenção de analisá-los naquilo que eles organizam em termos de som e imagem em
situação de igualdade. No entanto, é de conhecimento que na maioria das vezes as exceções
comprovam a regra, e a ausência significativa do trabalho sonoro nas reflexões sobre Pedro
18

Costa continua a se impor como um problema. Se a banda sonora, em seu cinema, adquire
portentosa significação, à maneira de seus contemporâneos Jia Zhangke, Lisandro Alonso ou
Lucrecia Martel, por que tão pouco lhe é dedicado nas análises?

A intenção desta dissertação é precisamente descortinar a importância da construção sonora


em três filmes de Pedro Costa, nomeadamente aqueles que compõem a “trilogia das
Fontainhas”: Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha. Compreende-se o som
cinematográfico, aqui, como dado de matizes dos ruídos, dos diálogos e das músicas, bem
como suas combinações variáveis aptas a produzir, entre outros, sensações de silêncio. Em
linhas gerais, busca-se responder a seguinte questão: dada a vastidão de textos que
pesquisadores, críticos e estudiosos dedicam ao cinema de Pedro Costa, de que forma uma
análise da banda sonora ilumina pontos ainda inexplorados de seus filmes? Não pretendemos
esgotar o assunto, que é inesgotável, e muito menos negar os textos referidos: buscamos,
antes, dialogar com outros autores e estabelecer, junto a eles, renovadas possibilidades de
análise.

Nosso recorte de filmes é deduzido da importância que as Fontainhas adquirem na trilogia.


Ossos, como dito, representa o primeiro contato entre o cineasta e o bairro, de onde emerge
uma obra que se mantém sintonizada, de certa forma, com determinados preceitos da
realização cinematográfica canônica: existência de um roteiro prévio, seguimento rigoroso das
etapas de produção, mobilização de grande arsenal técnico e material humano, entre outros.
No Quarto da Vanda, diferentemente, responde ao filme precedente, rejeitando sua estrutura
de produção, e aposta suas fichas na observação paciente das dinâmicas internas do bairro 7.
Juventude em Marcha, enfim, envereda-se pelas ruínas das Fontainhas, após a destruição
retratada no filme anterior, e nos espaços destinados aos antigos habitantes, equilibrando-se
entre a ficção e o documentário em conjuntura excepcional. Nos três filmes, o bairro não só é
peça fundamental como também engendra aspectos sonoros instigantes e indispensáveis à
construção fílmica. Curiosamente, poderíamos nomear o recorte de “trilogia da Vanda”, pois
Vanda Duarte é atriz dos três filmes que intendemos analisar.

É verdade que a carência de estudos sobre som no cinema é um problema mais amplo. Os
esforços teóricos, por exemplo, de autores como Rick Altman e Michel Chion, nos anos 1980,
responderam a um estado de coisas no campo da teoria em que as disciplinas da imagem
7
É importante frisar, novamente, que este olhar observador não implica na ideia de que os corpos em frente à
câmera são captados em sua espontaneidade. Pedro Costa é um cineasta cujo método de trabalho prevê grande
quantidade de ensaios e de repetições por parte de seus atores e atrizes.
19

prevaleceram (como ainda prevalecem) sobre aquelas do som. Quer a justificativa para esta
situação seja certa cultura “oculacentrista”, quer seja a propensão, por parte da teoria, em
creditar ao som no cinema o posto de complemento da imagem, pouco é de revelo neste
momento. A bibliografia sobre som no cinema pode ser escassa em relação aos textos
dedicados à imagem, mas a quantidade de textos que problematizam as razões desta escassez,
no interior mesmo desta bibliografia, é saliente.

Uma atitude por vezes radical atravessa os escritos sobre som no cinema, sendo ela
plenamente justificável por um foco concentrado que é descrito por Altman como uma
“atenção em uma área negligenciada”8. Se a teoria do cinema sempre foi orientada à imagem,
é preciso que ao som seja conferida igual importância, através de seu reconhecimento
enquanto instrumento igualmente expressivo de linguagem. Para isto, a atenção de
pesquisadores por vezes recai unicamente sobre o som, em ordem de singularizá-lo e
demonstrá-lo imprescindível: é o que espelha análises em que dificilmente verificamos um
confronto tête-à-tête, dialético, entre as propriedades da imagem e as atribuições do som.
Musicólogos interessados pela disciplina da música no cinema, por exemplo, podem
desvencilhar-se da imagem cinematográfica e restringir suas investigações à análise das
partituras musicais. Mesmo em tom de manifesto, Altman não ignora o fato de que o som, ele
mesmo, integra uma “experiência cinematográfica” em que o sonoro não é único.

Mesmo décadas após a publicação do número 60 da Yale French Studies, esta que é
considerada a primeira coletânea de textos unicamente sobre som no cinema, muitos dos
escritos sobre o tópico mantém seu caráter de advocacia em favor do som. Inúmeras
publicações vislumbram a investigação do som cinematográfico naquilo que ele conserva de
fundamental na construção fílmica, em dissecações cujas intenções não necessariamente
contemplam essa “experiência cinematográfica”, mas antes a parcela sonora que lhe é própria.
Se considerarmos que a negligência para com o som permanece, ainda que em menor medida,
no interior dos estudos cinematográficos atuais, este cenário não é de todo injustificável. Por
outro lado, a afirmação de uma especificidade do som é perigosa. Uma metodologia que prevê
a análise individual de uma banda sonora, afirmando sua singularidade (e, por conseguinte,
sua suposta relevância) pode resultar na justificativa de uma especificidade da imagem – traço
questionado exatamente pelos estetas teóricos do som no cinema.

8
ALTMAN, 1980, p. 3, tradução nossa. “(...) attention on a neglected área”.
20

As lutas teóricas travadas em defesa do som e da imagem tiveram por consequência natural a
consolidação de um tipo de binarismo, em que o som revela-se ou acessório à imagem (e vice-
versa) ou portador de uma expressão e significação própria, independente do elemento visual.
Não seriam as relações entre som e imagem de ordem mais complexa e fluida, abrigando
trocas, reciprocidades, diálogos e influências mútuas? Ignorar que o som é uma parcela de
uma construção estética mais ampla, em que o diálogo relaciona-se com o enquadramento, o
ruído desliza sobre uma escolha montagem, o silêncio ensurdece um painel de luzes, ou a
música interpenetra o espaço cênico, é limitar, em certo sentido, a abrangência de uma
experiência cinematográfica. Entretanto, um estudo integral desta experiência, logo o
constatamos, é impossível: como abarcar traços econômicos, historiográficos, culturais,
estéticos, sociais, éticos e filosóficos que animam isto que compreendemos por cinema?
Nunca prescindimos, em suma, de um recorte analítico.

O som cinematográfico, por uma questão técnica – e, diriam alguns, antológica –, é alocado
em uma tela e, por consequência, em uma imagem, mesmo que esta não seja preenchida por
outra coisa além de uma cor opaca. Esta situação nos direciona a uma discussão teórica
travada por Michel Chion e Rick Altman. O elemento sonoro, para Chion, trava uma relação
vertical para com os elementos narrativos visuais, de forma que “os sons de um filme,
tomados separadamente da imagem, não formam uma entidade internamente coerente em pé
de igualdade com a trilha da imagem”9. Por esta razão, o teórico francês constata
polemicamente que “não há trilha sonora”. O próprio termo é questionado por Chion, para
quem “trilha sonora” é um conceito puramente técnico, sem significado autônomo, cuja
definição responde apenas ao conjunto de sons de um filme.

Altman, por sua vez, na companhia de McGraw Jones e Sonia Tatroe, avalia que o som
fílmico, ao contrário, é uma unidade homogênea e complexa que mantém relações internas, o
que implica no debate sobre processos analítico-metodológicos. Para o trio de autores, o
problema central é a análise individual de cada segmento da trilha sonora de um filme, análise
esta que prevê, por exemplo, o estudo do diálogo ou da música enquanto entidades
segmentadas. Segundo eles, “o som fílmico – tomado não como três ou mais componentes
separados, mas como uma única unidade complexa – não pode ser compreendido sem a

9
CHION, 1994, p. 40, tradução nossa. “(...) the sounds of a film, taken separately from the image, do not form
an internally coherent entity on equal footing with the image track”.
21

análise das relações entre os componentes da trilha sonora”10. Tanto a música, neste caso, não
deveria ser analisada do ponto de vista de sua partitura e em detrimento da imagem, como
também o diálogo não poderia ser estudado apenas por sua qualidade linguística.

Em resposta a este estado analítico que individualiza os setores sonoros, os autores cunham o
termo “mise-en-bande”, herdeiro do conceito de mise en scène, em que se trabalha com a
noção de “colocar na trilha sonora”. Se a análise da mise en scène antevê, essencialmente, as
relações entre os componentes da imagem11, “a análise da mise-en-bande se concentra na
interação entre os vários componentes constituindo a trilha sonora” (idem). São investigadas,
assim, as relações existentes entre música, diálogos e efeitos sonoros, atentando-se às
condições de mixagem como volume e reverberação. As relações internas do som, em nosso
caso, devem manter contato com as relações internas da imagem, estabelecendo novas
relações em gestos combinatórios infinitos. Rick Altman tem razão na defesa por uma análise
conjunta dos diálogos, das músicas e dos ruídos, mas talvez o desafio seja descobrir métodos
analíticos em que o conjunto a ser considerado é este do som em consonância com aquele da
imagem. Para Noel Burch, “a essência da dicotomia entre som e imagem não reside na
oposição, mas na identidade”12, o que nos direciona a uma pergunta que pode ser formulada
nos seguintes termos: se há mise en scène e se há “mise-en-bande”, qual a relação
fundamental entre elas na significação fílmica? Quais unidades estéticas singulares se
manifestam do contato entre essas duas esferas?

Os que se aventurarem na leitura do presente trabalho notarão que o conceito “mise-en-


bande” não retornará às discussões empreendidas. Isto porque ele representa antes uma ideia
norteadora do que uma ferramenta analítica. Ainda que o termo não reapareça explicitamente,
ele está imiscuído na metodologia empregada. Segmentamos a dissertação em três capítulos
que tratam de “modelos sonoros” supostamente distintos, estruturando cada um em torno de
um filme medular: no primeiro, discutimos as possíveis sensações de silêncio que são
construídas no interior dos três filmes, centrando nossa análise em Ossos. No segundo,
refletimos sobre os sons acusmáticos e suas significações diversas através de uma

10
ALTMAN; JONES; TRATOE, 2000, p. 340, tradução nossa. “(...) film sound – taken as a single complex unit
rather than as three or more separate components – cannot be understood without analyzing relationships among
soundtrack components”.
11
É a perspectiva analítica, por exemplo, de David Bordwell (2008, p. 36): “Os defensores da estética da mise-
en-scène raramente distinguem seus vários aspectos, o que farei a seguir. Para mim, o essencial sentido técnico
do termo denota cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dos atores dentro do quadro. Alguns
críticos incluiriam o movimento de câmera como um elemento da mise-en-scène, mas prefiro deixá-lo como uma
variável independente”. Logo se constata que o som, para o autor, não faz parte da mise en scène.
12
BURCH, 2015, p. 117.
22

investigação que, apesar de tangencial a todos os filmes, é focada em No Quarto da Vanda.


No terceiro e último capítulo, analisamos as vozes que povoam estes filmes, detendo mais
profundamente nosso estudo sobre Juventude em Marcha. Se a “mise-en-bande” constitui
uma noção orientadora, é porque cada capítulo prevê uma análise da conjugação interna dos
elementos sonoros: como seremos capazes de constatar, os silêncios são produtos de uma
equação sonora; os sons acusmáticos são constituídos por toda gama de aspectos da banda
sonora (vozes, ruídos e músicas); e as vozes não se restringem ao diálogo, podendo mesmo
habitar o reino da canção musical.

Em muitos momentos, os leitores também constatarão que certas problemáticas se repetem em


diferentes capítulos, porque um mesmo som pode nos guiar em diferentes significações. A
transversalidade surge como um fator incontornável de nossa análise: se a questão é investigar
os silêncios, por exemplo, talvez as vozes provenientes do fora de quadro, que chamamos de
vozes acusmáticas, sejam substância fundante de sua constituição. De forma semelhante, se
quisermos proceder a uma análise destas vozes, é preciso considerar o fundo de silêncio que
contorna sua materialidade. Dito isto, que não se subentenda que os sons serão os únicos
componentes estéticos a serem estudados. Como antecipado procuramos sempre conjugar
estas relações sonoras com as relações internas da imagem, descobrindo composições
complexas. Não podemos refletir sobre os silêncios, por exemplo, se não considerarmos os
artifícios imagéticos que auxiliam na concepção de sua sensação, como também não é
interessante que meditemos sobre as vozes se não considerarmos a superfície de imagem
sobre a qual elas deslizam. Igualmente, uma análise de sons acusmáticos sem a consciência do
quadro nos parece despropositada.

Em outras palavras, como podemos notar a solidão angustiante de determinadas personagens


se não escutamos os silêncios que as envolvem? Como podemos ver os planos de Vanda
Duarte em seu quarto exíguo nas Fontainhas se não escutamos os ruídos das máquinas que lhe
chegam aos ouvidos? Como podemos assumir que sabemos quem é Ventura se não damos
atenção às palavras doces que sua voz distanciada pronuncia? Jean-Marie Straub e Danièle
Huillet queriam que os espectadores de seus filmes os assistissem com os ouvidos e os
escutassem com os olhos, o que é outra forma de explicar nossa intenção com a análise dos
filmes de Pedro Costa.
Capítulo I – Os silêncios

“A morte está sobre você”


Clotilde Montron para Tina
O silêncio no cinema, como na vida, pode assumir formas diversas. Sendo múltiplo, talvez
seja preferível pensar em silêncios. Em nosso cotidiano, quando nos sentamos em uma sala de
espera cujo ambiente é ligeiramente musicado, ou quando lemos um livro no espaço de uma
biblioteca, ou quando despertamos em uma área rural e isolada coberta predominantemente de
sons de pássaros, experimentamos sensações distintas de silêncio, ainda que esta palavra seja
capaz de percorrer a extensão dessas experiências e agrupá-las em seu interior. Inexiste ao ser
humano apto a ouvir o direito ao silêncio total: basta nos lembrarmos da experiência de John
Cage na câmara à prova de sons da Universidade de Harvard – quando dentro do recinto, o
músico estadunidense ouviu um som agudo e outro grave; o primeiro resultante de seu
sistema nervoso e o segundo consequência do sangue circulante em suas veias. Em uma
mixagem de cinema, pode-se sempre silenciar por completo a banda sonora, baixando seu
volume ao nível zero; entretanto, os silêncios cinematográficos constantemente despontam
como produtos de uma equação sonora, em que diferentes sons, presentes ou ausentes,
combinam-se e decorrem em sensações de silêncio. Em um filme verborrágico como No
Quarto da Vanda, em que conversas diárias consomem grande parte da encenação, somos
confrontados por vezes com corpos e faces retraídos na escuridão, quietos e abandonados a si
próprios. Estes momentos de solitude surgem como sequências “silenciosas” a despeito dos
ruídos ambientes que nestas cenas (e neste filme como um todo) são muitos.

Michel Chion, que caracterizava o silêncio no cinema como “produto de um contraste” 1,


encarava-o como a forma negativa de algo que se acabou de ouvir. Imaginemos, neste caso,
uma personagem inserida em um ambiente de festa, preenchido por música e por uma
algazarra de vozes. Se a sequência seguinte nos transporta ao quarto desta personagem, no dia
seguinte, em um cenário em que pássaros cantam e mal se escuta som de tráfego,
experimentamos uma sensação de silêncio específica. A definição de Chion contempla a
compreensão do silêncio não como vazio ou ausência de sons, mas antes como a “forma
negativa” de um som escutado ou imaginado anteriormente. Na mesma linha argumentativa
de Chion, Paul Théberge compreende os silêncios cinematográficos como construções
relativas, na medida em que são consequência de um “jogo de ausências e presenças entre os

1
CHION, 1994, p. 57. “(...) the product of a contrast”.
24

diferentes componentes da trilha sonora”2. Neste sentido, os silêncios se constroem através de


inúmeras possibilidades combinatórias envolvendo diálogos, música e efeitos sonoros, e a
ausência de um determinado elemento sonoro torna-se tão significativa quanto sua presença.

Segundo Théberge, é possível traçar três modos de silêncios relacionais. O primeiro deles,
“silêncios diegéticos”3, é resultado da união entre o silêncio absoluto que acomete os
elementos da encenação – como se do universo diegético não se emitisse qualquer ruído
apesar dos movimentos descritos nas cenas – e as músicas ou sons não-diegéticos que
encobrem as imagens. O segundo silêncio relacional é constituído da quebra de uma estrutura
musical: quando a música é interrompida ou suspensa momentaneamente, de forma abrupta
ou sutil, notamos que sua ausência é tão potente tanto quanto sua presença. Estamos diante,
no caso, de “silêncios musicais”4. Por fim, outra possibilidade de construção de silêncios no
cinema seria através da ausência de voz, a qual reporta, segundo o autor, aos “silêncios de
diálogo”5. Aquilo que importa reter destes modos relacionais de silêncio não passa tanto pela
aplicabilidade dos conceitos, mas antes por compreender o método analítico que os
condicionou, ou seja, a visualização da banda sonora como um todo em que diferentes
recursos sonoros se interpenetram e dialogam entre si, produzindo deste choque dialético os
silêncios figurativos que se opõem ao silêncio literal da ausência absoluta de sons. Sendo
corolários de uma dada conjugação de elementos sonoros, os silêncios são evocados em
situações que não abdicam por completo de outras sonoridades.

A grande dificuldade de uma análise dos silêncios no cinema passa por seu estatuto de
sensação. Novamente em No Quarto da Vanda, por exemplo, encontramos uma sequência
cujo silêncio é construído em consonância com uma interpretação da canção Memory, de
Andrew Lloyd Weber. Emitida de uma pequena televisão de tubo no canto da sala de Vanda,
e de forma soberana já que as personagens calam momentaneamente, a música é outro
elemento de contraste frente aos numerosos monólogos e diálogos que compõem a obra,
produzindo impressão de silêncio. Em Juventude em Marcha, por sua vez, o silêncio
estarrecedor do bairro Casal da Boba é sempre pontuado por vozes tanto distantes quanto
reverberadas, e só compreendemos este espaço como silencioso quando o cotejamos com os
ruídos estrondosos que participam ativamente da aquarela sonora do restante do filme, por

2
THÉBERGE, 2008, p. 64, tradução nossa. “(...) a play of absences and presences between the different
components of the soundtrack”.
3
Ibidem, p. 57. “diegetic silences”.
4
Ibidem, p. 58. “musical silences”.
5
Ibidem, p. 59. “dialogue silences”.
25

exemplo, aquela que acompanha as imagens de Ventura à espera de Paulo, um de seus


“filhos”, na saída do trabalho.

Os filmes sobre os quais nos debruçamos não se alinham aos silêncios “absolutos”, em que a
mixagem renuncia a qualquer emissão sonora. As vozes abundantes que habitam o fora de
campo em Ossos, os tratores barulhentos que violentam o bairro das Fontainhas em No
Quarto da Vanda e os ruídos que ocasionalmente impossibilitam que Ventura recite
plenamente sua carta em Juventude em Marcha não são sons que impossibilitam os silêncios,
pelo contrário: eles são justamente aquilo que os torna possíveis, visto que o silêncio “nunca
deixa de implicar seu oposto e depender de sua presença”6. Se há nesses filmes silêncios mais
“amenos”, eles pertencem a espaços e contextos específicos: no primeiro, o apartamento da
enfermeira, longe das Fontainhas e talvez por isto menos ruidoso; no segundo, a madrugada
calma do bairro, em que os tratores e as vozes descansam e apenas os cães latem; no terceiro,
o jardim bucólico da Fundação Gulbenkian, onde Ventura relembra seu passado como
pedreiro rodeado pelo som de pássaros e de tráfego distante. O objetivo deste capítulo é
investigar, nos três filmes que compõem a trilogia, as diferentes manifestações do silêncio
enquanto sensação.

Figuras 1, 2 e 3: Silêncios mais brandos nos filmes da trilogia das Fontainhas.

1. Ossos e a recusa da voz

Ossos é, talvez, o mais silencioso filme da trilogia, principalmente pelo mutismo manifesto
das personagens. É verdade que ruídos constantes se espalham pelo universo fora de quadro,
permitindo “o alarido do exterior corroer, sujar-lhe as imagens, como uma chuva ácida que
caísse sobre este arquipélago de solidões”7, mas eles acompanham silêncios que são
configurados, no caso, principalmente pela recusa da voz humana. Esta recusa representa no
filme um traço singular: as personagens não apenas falam pouco, como também, quando o

6
SONTAG, 2015, p. 18.
7
MARCHAIS, 2009, p. 149.
26

fazem, parecem ter dificuldades de se comunicar. Após as primeiras cenas, todas silenciosas
do ponto de vista da presença da voz, o primeiro “diálogo” tem origem nos lábios de Clotilde
(Vanda Duarte)8. Ela anuncia sua presença uma vez que entra na casa onde trabalha como
diarista, mas não obtém qualquer resposta: nota-se, de início, que Ossos é um filme de poucas
falas e de respostas, quando existentes, oblíquas.

A recusa da voz, que remete aos “silêncios de diálogos” de Théberge, surge como uma
constante no cinema moderno e contemporâneo (Akerman, Paradjanov, Antonioni;
Apichatpong, Alonso, Tsai). Antony Fiant (2004), em texto que mapeia as diferentes
manifestações do mutismo em certa tendência do cinema contemporâneo, avalia a influência
que o apego reverente ao cinema mudo ou a incomunicabilidade do cinema moderno exercem
sobre uma gama de cineastas atuais. Para o autor, mais do que presos a uma nostalgia ao
cinema do passado, no entanto, esses cineastas parecem compreender que o mutismo “explora
novos territórios para o cinema”9. Aos nomes de Sharunas Bartas, Nuri Bilge Ceylan, Wang
Chao, Claire Denis, Otar Iosseliani, Bruno Dumont, Elia Suleiman, entre outros, Fiant inclui o
de Pedro Costa.

Em entrevista que nos foi concedida, Pedro Costa atribui os poucos diálogos de Ossos a uma
dupla renúncia, sua e dos atores, cuja origem remonta ao grau de intimidade conjugado na
produção. Por ter nascido do primeiro encontro entre o cineasta e o bairro, o filme é marcado
por distâncias entre sujeito e objeto filmado. Planos gerais ou em plongée, que do alto
enquadram os corredores estreitos do bairro, testemunham o princípio de distanciamento que
caracteriza o trabalho de filmagem em relação à realidade retrata. Esta disposição, que surge
apenas como princípio (haja vista a quantidade considerável de planos aproximados), é
extenuada com No Quarto da Vanda, quando o diretor se fecha no quarto exíguo de sua
protagonista, sem o mesmo aparato cinematográfico intimidatório do filme anterior, e se
aproxima inevitavelmente de sua persona ou das figuras que ali transitam. Em Ossos, no
entanto, nem o cineasta se aproximou o suficiente do bairro para escrever os diálogos de seus
habitantes, nem estes se dispuseram a encenar as linhas que lhes eram propostas
eventualmente:
O que eu não tinha, sobretudo, era intimidade, proximidade, confiança com as
pessoas – portanto, não tinha como saber o texto. (...). Quando comecei a trabalhar
com ele [o Nuno], quanto mais lhe dizia para dizer assim ou assado, mais ele resistia

8
Ossos, 03’14’’.
9
FIANT, 2004, p. 523, tradução nossa. “(...) le mutisme ne fait qu’explorer des territoires nouveaux pour le
cinéma”.
27

– portanto, tive esta sorte. Ele e os outros. (...). Mas o rapaz era intratável,
indomável, silencioso, completamente mútico, e foi assim que eu decidi o tratar
depois. Ou seja, por que eu hei de fazer dele uma coisa que eu quero, que eu tenho
escrita, que seria um tipo que tem opiniões e não só diz os diálogos utilitários da
cena? Se ele não me diz o que acha, e se não quer dizer, e se me diz afirmadamente
que é um tipo que “prefere resolver na faca que ficar aqui”... Foi simples. Tratei-o
logo assim e à volta dele tudo começou logo a ficar mais mudo, secreto. (...) Enfim,
fala-se pouco porque eu não quis inventar os diálogos e porque eles não os queriam
inventar e ponto final10.

Ora, a resistência que se impõe ao cineasta, ou o distanciamento ao qual ele se sujeita, são
questões que, apesar de fundamentais, são relativas ao extra fílmico. Os termos do encontro
inaugural entre Pedro Costa e o bairro se prolongam em resoluções formais concretas (planos
gerais, mutismo das personagens), mas não as limitam do ponto de vista analítico. Uma vez
estruturados no interior de um filme, estes traços de estilo assumem autonomia e permitem
experiências singulares de espectatorialidade. Entendemos que, independente das intenções ou
condições da produção, os silêncios do filme, inseridos em um contexto amplo de recusa da
voz, suscitam observações e conclusões variadas no processo de análise.

A comunicação rarefeita entre as personagens não as aproxima, necessariamente, do terreno


da incomunicabilidade de Antonioni. Ossos, através não só do jovem personagem errante,
aflito por ter de lidar com a falta de perspectivas, em um ambiente suburbano marcado por
trânsitos constantes, como também pela dificuldade, por vezes superada, de seus personagens
se comunicarem e manterem laços, permitem que se estabeleça um elo com outro filme
lançado no mesmo ano: Pickpocket (Jia Zhangke, 1997), em que a atmosfera de desilusão
oprime as possibilidades de comunicação mas não as interdita. A incomunicabilidade cede
lugar, neste sentido, à comunicação que, apesar de esporádica, não é de todo impraticável.
Quando, perto do início do filme11, uma das enfermeiras do hospital pergunta ao Pai do bebê
o que há de errado com a criança, atendida emergencialmente, a resposta se restringe apenas a
“pergunte à enfermeira Eduarda Gomes”. É a enfermeira Eduarda Gomes, aliás, quem procura
se aproximar do Pai em uma cena posterior no mesmo hospital12. Ela tenta acalmá-lo
enquanto ele pede apenas por um cigarro. Ao que ela insiste na conversa, o rapaz se levanta e
abandona a sala de espera. Isto não impede que a enfermeira o siga e recomece a conversa, até
o momento em que, enfim, uma espécie de diálogo se desenha, bem como uma nascente

10
COSTA, P. Primeira entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 29 de junho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” desta dissertação].
11
Ossos, 29’26’’.
12
Ossos, 31’37’’.
28

amizade. Notamos, nesta sequência, que o universo diegético do filme permite às personagens
a possibilidade da comunicação, mesmo que sinuosa.

Em Ossos, a conversa não adquire o mesmo estatuto que nos demais filmes da trilogia.
Nestes, como seremos capazes de constatar nos próximos capítulos, o diálogo/monólogo é
uma forma de acesso às experiências e às histórias daqueles que habitam as imagens. É, mais
profundamente, uma forma de resistência e/ou instrumento de rememoração. Em suma, a voz
adquire nestes filmes uma importância ímpar, independente do sentido que é constituído pelas
linhas da conversação. Com as devidas ressalvas, poderíamos caracterizá-los como
“vococêntricos”, i.e, como aquilo que Michel Chion descrevia como uma propensão
discursiva, no cinema, em valorizar a voz em detrimento de outros elementos sonoros
(inclusive nos processos técnicos de mixagem). Este não é inteiramente o caso de No Quarto
da Vanda e Juventude em Marcha, mas a centralidade que é reservada à voz nestes filmes
tampouco está distante de certo “vococentrismo”. Segundo Chion, o cinema falado, de forma
geral, bem como a escuta humana, seriam “vococêntricos” em função de nossa busca primeira
pela voz (sua inteligibilidade e sentido) no processo perceptivo: na medida em que um corpo
estrutura o espaço onde se encontra, “a presença da voz humana estrutura o espaço cênico
que a contém”13. Defronte esta ideia, parece inevitável não pensarmos na forma como as
vozes de Vanda ou de Ventura reverberam e impregnam os ambientes onde se encontram, no
quarto das Fontainhas ou no Jardim Gulbenkian, por exemplo, e respectivamente.

As maneiras com que experimentamos os silêncios neste cinema vococêntrico são singulares.
Por serem resultados de equações sonoras, os silêncios podem ser constituídos mesmo através
da presença da voz em cena. Uma forma estimulante de sentir estes silêncios pode ser
deduzida da filosofia de Maurice Merleau-Ponty: “(...) temos de considerar a palavra antes de
ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou
ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam” 14. Para o fenomenólogo francês, o
silêncio é tanto condição quanto efeito da palavra: ele é quem possibilita a fala e é por ela
possibilitado. O cinema vococêntrico não seria aquele em que se averiguam mais claramente
os silêncios como intervalos de diálogo, como vibrações que preparam e cessam a fala, ou
seja, como condição para a linguagem? Inversamente, verificamos filmes em que os silêncios,
estruturando-se de forma mais incisiva na narrativa, surgem como efeito da ausência de voz –

13
CHION, 1999, p. 5, tradução nossa. “(...) the presence of a human voice structures the sonic space that
contains it”.
14
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 69.
29

é o caso, precisamente, de Ossos. Ora, se nossa percepção é “vococêntrica”, não o seria


também nossa impressão de silêncio?

Quanto aos filmes, o fogo íntimo que, em No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha,
conduz aos lábios das personagens o ímpeto e a força da voz, não existe em Ossos: as
personagens demasiado fracas, adoecidas e/ou exaustas parecem carecer da disposição que é
requerida no instante da fala. Algumas imagens surgem como sintomáticas deste estado de
enfermidade e letargia, a exemplo da cena em que o Pai, refugiado no quarto da prostituta
interpretada por Inês de Medeiros, pergunta se pode usar sua cama (onde ela mantém relações
sexuais com seus clientes) apenas para dormir “um bocadinho”15. Se as personagens
sussurram, como constantemente o fazem, é porque já não lhes resta qualquer traço de ânimo:
“quando falam, não é a sua voz que ouvimos, mas um eco mais longínquo, que se lhes escapa
pela boca”16. Que estes sussurros contribuam de forma essencial para a constituição dos
silêncios nesse filme é um fator incontornável.

Essas personagens quase fantasmáticas, em sua inércia sonâmbula, remontam ao cinema de


Jacques Tourneur, em especial aos filmes fantásticos produzidos por Val Lewton na década
de 40. Seus corpos podem ainda pertencer ao mundo material, mas seu espírito parece habitar
alhures, e a força que move essas figuras no espaço é como despertada somente pelo pouco
que lhes resta de vida. Neste sentido, como ocorria com a zombie de A Morta-Viva (Jacques
Tourneur, 1943), uma espécie de transe parece determinar as personagens de Ossos. A
qualidade zumbificada destas personagens parece justificada pelo próprio sentido de suas
existências: a fome consome seus corpos, tornando-os magros e pálidos; a droga avermelha
seus olhos; e a pobreza as torna impotentes diante dos próprios destinos, convertendo a carne
às disposições sonambúlicas ou vegetativas.

15
Ossos, 69’06’’.
16
MARCHAIS, 2009, p. 147.
30

Figura 4: Christine Gordon como zumbi em A Morta-Viva (1943).

Em uma cena na casa da enfermeira Eduarda, em que o Pai tenta dormir – sem sucesso – no
sofá da sala, ele percebe uma movimentação suspeita por parte da mulher17. No que ela corre
em direção ao seu quarto, onde está o bebê, ele se levanta rapidamente e segue também em
direção ao cômodo. Ela segura o bebê no colo enquanto o Pai, de costas para a câmera, a
confronta silenciosamente. O gesto do rapaz, entretanto, é desabar sobre a cama, e o da
enfermeira é se sentar na beirada do colchão. O breve deslocamento dos corpos no espaço
exige muito dessas personagens: extenuadas, resta a elas apenas encontrar um lugar onde
possam se escorar e permanecer em silêncio. É o que ilustra, no decorrer da cena, os planos
próximos de seus rostos silenciosos, cujos olhares parecem encontrar não um ponto de
ancoragem, mas justamente um alheamento que se volta mais profundamente ao próprio
interior de seus seres esvaziados.

Figuras 5 e 6: A enfermeira Eduarda Gomes (esq.) e o Pai (dir.), exaustos e silenciosos.

Cumpre sublinhar brevemente, neste caso, a maneira singular como a direção de olhares
contribui para sensações de silêncio. Como método que Pedro Costa parece desenvolver de
filme a filme, especialmente depois de Juventude em Marcha, os olhares das figuras no
quadro tendem a um ponto fixo durante o transcorrer da cena. Durante uma interlocução entre

17
Ossos, 40’17’’.
31

duas pessoas, por exemplo, se torna comum verificar que os olhares raramente são
direcionados de um interlocutor para outro, antes sendo depositados extaticamente em
determinada coordenada do espaço. Por mais que a comunicação possa ser plena, na medida
em que a conversa avança através do elemento vocal, esta espécie de “ruptura” no processo
do diálogo, em que as pessoas evitam o olhar uma para a outra, por vezes ocasiona uma
sensação de silêncio ligada à suposta incompletude da comunicação, entendida comumente
como interação não apenas entre fala, mas também entre olhares.

Seguinte à cena na casa de Eduarda, um corte nos direciona ao bairro das Fontainhas, em uma
das cenas mais impactantes do filme18. Os corpos de Clotilde e Tina, em plano conjunto,
encontram-se, eles também, escorados em uma parede. Seus olhos baixos, os movimentos
vagarosos e o silêncio que cala suas vozes participam do que supomos ser, de início, uma
festa: a canção Carro Bedjo, do grupo cabo-verdiano Os Saburas, ocupa a banda sonora de
forma predominante e corpos atravessam a frente da câmera como se dançassem. Clotilde
fuma e vez ou outra direciona seu olhar a Tina, mas esta aparenta estar profundamente
cansada, quase incapaz de manter os olhos abertos e o corpo prostrado em pé. Após ser
convidada para dançar, Clotilde abandona o plano. Em outro ângulo, vemos Tina, agora de
costas para a festa e de frente para a câmera, sentada próxima à porta, enquanto sua irmã
dança junto de outras pessoas no interior da casa. Após ser abordada pelo marido enfurecido,
que a questiona sobre a comida dos filhos, Clotilde é levada à força para outro espaço.
Através do corte, vemos o corpo de Tina, de costas para a câmera, desabar bruscamente sobre
o chão. Ela é socorrida pela outra Clotilde, a cabo-verdiana.

Figuras 7 e 8: Clotilde e Tina na festa nas Fontainhas (esq.) e Clotilde Montron acudindo a irmã debilitada (dir.).

Mas quem seria esta Clotilde Montron (como nos informa os créditos), que avistamos
ocasionalmente observando, silenciosa, as outras personagens do filme? Já vimos seu rosto

18
Ossos, 42’00’’.
32

em Casa de Lava, em meio aos retratos que povoavam as imagens do arquipélago de Cabo
Verde. Em Ossos, sabemos que ela agora habita nas Fontainhas e trabalha na cozinha de um
restaurante, ao lado da irmã de Vanda, Zita Duarte. Juntas, estas duas mulheres pertencem às
esquinas e às janelas do bairro, sempre presenciando serenamente o que se passa nele e o que
acomete as personagens que ali vivem. Quando esta misteriosa Clotilde ergue Tina do chão,
pela primeira vez ouvimos de seus lábios um punhado de palavras sussurradas: “A morte está
sobre você. Agora acabou. Deve passar toda a dor para mim” – discurso quase redentor, que
não abdica, entretanto, do enigma que o atravessa. Como uma espécie de anjo da guarda,
Clotilde Montron manteria em sua contemplação silenciosa do bairro o zelo de quem quer
proteger e guardar as almas atormentadas daquele estreito universo. Talvez seja por esta razão
que Dominique Marchais se refere às duas personagens como “fadas” 19, mas é interessante
nos determos momentaneamente no caso de Zita para verificar o que mais profundamente ela
nos diz através de seu silêncio penetrante.

2. A personagem muda

Entre todas as personagens de Ossos, Zita é a única que não pronuncia uma palavra sequer. É
dela a primeira e penúltima imagem do filme – um plano médio em que ela está sentada sobre
a cama em um quarto de paredes manchadas, observando alguma coisa indeterminada fora de
quadro, no primeiro caso, e um plano americano de sua figura encostada sobre um dos
corredores labirínticos das Fontainhas, também direcionando seu olhar para algo fora de
campo, no segundo. Se Zita é uma das personagens mais fascinantes do universo diegético do
filme, é porque sua mudez pavimenta inúmeros caminhos de interpretação para a função ou
efeito de sua presença na narrativa. Para Sontag, “um indivíduo que permanece silencioso
torna-se opaco ao outro; o silêncio de alguém inaugura uma série de possibilidades de
interpretação desse silêncio, de imputação de discurso a ele”20. Não sabemos quem é, nem de
onde vem, mas a vimos trabalhando e constantemente a contemplamos nos espaços do bairro
– na festa em que Tina desmaia, por exemplo, lá está ela, destacada da multidão, levando na
face um sorriso discreto e nas mãos um copo de cerveja escura.

19
MARCHAIS, 2009, p. 148.
20
SONTAG, 2015, p. 24.
33

Figuras 9, 10 e 11: A silenciosa Zita Duarte em espaços do bairro.

Mesmo quando Zita trava contato com alguma outra personagem, a palavra está ausente,
como na cena em que ela pede por um cigarro à enfermeira Eduarda através de um simples
gesto com a mão21. O que nos revela sua mudez, seu silêncio permanente? Michel Chion pode
nos guiar diante de uma possível interpretação. O cinema sonoro, segundo ele, teria não só
permitido o advento do silêncio como escolha estética como também a existência das
personagens mudas. Em geral, estas personagens ocupam um espaço secundário ou tangencial
na narrativa, o que não implica em dizer que elas carecem de uma função precisa, pelo
contrário: por não sabermos se ela falará e, pior, por não sabermos o quanto ela sabe
(porquanto não o verbaliza), a personagem muda instaura no espectador um sentimento agudo
de dúvida. No caso de Zita, sequer sabemos se seu silêncio é resultado de uma condição física
ou de uma recusa. Para Chion, nossa primeira reação, diante da mudez de uma personagem, é
assumir que ela “sabe tudo”, e a razão para esta onisciência é descrita nos seguintes termos:
Como muitos que foram feridos ou roubados de um de seus sentidos, ele [o
personagem mudo] pode desenvolver um talento hipertrofiado. Seus olhos são
pensados para penetrar mais profundamente. Presume-se que ele vê tudo, como se a
privação do discurso fosse o pagamento por algo que ele supostamente não deveria
ter visto22.

Em uma narrativa de doença e morte como a de Ossos, em que personagens perturbadas


buscam o suicídio ou mesmo cometem tentativas de homicídio, a hipótese de que a mudez de
Zita seja consequência de seu excesso de consciência não é de todo descabida. Pressupomos
que ela sabe que Tina tentou suicidar-se junto de seu filho recém-nascido, como também
imaginamos que ela está ciente do gás acendido por Clotilde no apartamento da enfermeira
Eduarda no episódio final do filme. Se ela tudo sabe, é porque ela tudo ocupa, isto é, sua
posição no espaço é indefinida: Zita “pode emergir do fora de quadro a qualquer momento” 23
e fazer-se presente nos cantos mais distintos do bairro. Lembremos que se nomeio a
personagem de Zita é porque os créditos finais nos dizem que assim se chama a atriz, cuja

21
Ossos, 81’45’’.
22
CHION, 1999, p. 97. “Like many who have been injured or robbed of one of their senses, he may have
developed a hypertrophied talent. His eyes are thought to penetrate deeper. He is presumed to see all, as if the
deprivation of speech were payment for something he wasn't supposed to have seen”.
23
Ibidem. “(...) might emerge from the offscreen at any moment”.
34

personagem, na verdade, não possui nome – fato que, segundo Chion, contribui para a
sensação de ubiquidade que engendra a personagem muda.

Procedendo desta forma, onisciente e oblíqua, a personagem muda deteria o “conhecimento


crucial” da narrativa. Ela se torna, no entendimento de Chion, a guardiã de um segredo
intransmissível: uma vez que dela se ausenta o elemento da voz, o conhecimento nunca pode
ser totalmente disseminado. Esta é parte da tragédia em Ossos – a incapacidade de se
verbalizar as violências cotidianas. Através de Zita, novamente Pedro Costa parece se
aproximar de Tourneur, cujos “personagens de uma história são perfeitos desconhecidos cujo
mistério não deve ser esclarecido ou explicado”24. No entanto, haveria de fato um segredo a se
infiltrar nas instâncias do drama? Quem nos aponta para sua existência irrevogável não é tanto
Zita, mas a pequena Maura, irmã mais nova de Tina e de Clotilde. Durante uma consulta no
hospital25, ela pousa sua mão sobre a boca da enfermeira que lhe atende, como se quisesse lhe
calar. O gesto pode representar tanto seu desejo de manter em segredo uma suposta doença,
dentro de uma perspectiva pessoal da personagem, quanto de fazer entrever a existência, na
narrativa mais ampla do filme, de um mistério inominável, opressivo e irresolvível.

Figura 12: O segredo anunciado pelo gesto de Maura.

Ao contrário de Clotilde Montron, sua outra companheira silenciosa, Zita se mantém fiel ao
silêncio. Ainda que ambas sejam oniscientes e ubíquas, a integridade de sua mudez permite
que Zita detenha de forma mais eloquente esse segredo que habita algures na narrativa. Chion
avalia a posição secundária da personagem muda (que aqui pode se referir às duas
personagens) como uma chave para sua compreensão: circundando o centro da história sem
nunca atravessá-lo diretamente, ela funcionaria “como um duplo, uma consciência, um

24
BIETTE, 2001, p. 131, tradução nossa. “Pour Jacques Tourneur les personnages d’une histoire sont de parfaits
inconnus dont le mystère n’a pas à être éclairci ou explique”.
25
Ossos, 60’36’’.
35

instrumento, uma reprovação, dúvida”26. Seu silêncio, apesar de expressivo, não é de todo
imputado de sentido, porque sua opacidade seria como um branco sobre o qual se entranharia
a dúvida. Na posição de “resto da história”, a personagem muda não serve à narrativa senão
para representar a falta. Preenchendo a primeira e penúltima imagem do filme, a silenciosa
Zita é como a figuração do vazio que não apenas acomete as personagens e o bairro como um
todo, silenciado e marginalizado, mas também a própria estrutura do filme – elíptica,
fragmentada, aberta.

3. O que nos dizem os silêncios?

Quanto às personagens centrais de Ossos, nos voltemos, por um momento, para Tina, que era
socorrida na festa nas Fontainhas. Sua fraqueza, ou sua doença, não só a faz desabar como
também lhe ausenta a voz em inúmeras cenas. Seu silêncio em vida e sua imobilidade relativa
se identificam com um silêncio de quase morte, exprimindo o fato de que a personagem
parece não se encontrar mais entre os vivos. Tina é silenciosa porque está doente ou porque o
silêncio da morte já se apoderou de seu corpo? Esta pergunta, que poderia ser estendida às
demais personagens do filme, encontra na figura aquebrantada de Tina sua face mais
luminosa (ou obscura), não porque sua imobilidade e desânimo são flagrantes, mas porque, ao
infligir sobre si mesma a violência simbólica do suicídio, ela falha em duas ocasiões. Assim,
as tentativas de tirar a própria vida subtraem de Tina uma parte desta mesma vida, arrastando-
a inexoravelmente ao universo dos mortos. Sua irmã, Clotilde, como se percebesse que o
remédio para trazê-la de volta aos vivos é a troca de uma vida por outra, acende o gás no
apartamento da enfermeira, ao final do filme, enquanto o Pai dorme na cama27.

As duas tentativas de suicídio são marcadas exatamente por silêncios. A primeira delas ocorre
em sua casa nas Fontainhas28. Tina, junto de seu filho recém-nascido, fecha janelas e portas
(inclusive sobre a câmera, como se quisesse nos velar a visão da morte) e, neste movimento,
abafa os ruídos do bairro que antes invadiam o ambiente. É na banda sonora agora diminuta
que o som do gás tomará protagonismo, anunciando a morte que se propaga no espaço. O
suicídio é malsucedido por razões não inteiramente explicadas, visto que uma elipse nos
interdita o direito de sabê-lo, mas ao vermos o Pai fugindo com o bebê dentro de um saco, em
seguida, supomos imediatamente sua intervenção naquele palco de autodestruição. A segunda

26
CHION, 1999, p. 98. “(...) as a double, a conscience, an instrument, a reproach, doubt”.
27
Ossos, 89’07’’.
28
Ossos, 09’55’’.
36

tentativa, por sua vez, ocorre justamente no apartamento da enfermeira29, lugar isolado,
distante dos ruídos urbanos e silencioso o suficiente para alastrar o som da morte (o gás). Se
esta segunda é frustrada pela chegada da enfermeira, o apartamento não deixa de portar o
silêncio que permite, nos instantes finais, a morte do Pai pelas mãos de Clotilde.

Também silenciosos são os apartamentos no bairro Casal da Boba, em Juventude em Marcha.


Apesar de não equivalerem de forma tão acentuada à morte ou sua proximidade, os silêncios
da Boba soam como uma amputação simbólica. Quando, ao início, Ventura grita por Vanda
no pátio residencial daquele espaço, suas palavras ecoam intensamente30. No interior de seu
novo apartamento, sem mobílias, o som de crianças brincando no bairro é flagrantemente
reverberado. Se pudéssemos traçar um paralelo, diríamos que, em oposição ao derradeiro
barraco de Bete nas Fontainhas, o apartamento de paredes brancas na Boba é de tal modo
vazio e sem vitalidade que o silêncio que o preenche surge apenas como um corolário
lógico31. Nas Fontainhas, os ruídos, as vozes plurais, as ranhuras nas paredes e a mobília são
fatores que conferem certa identidade particular ao espaço e às pessoas que ali habitam,
animando-lhes a existência. A amputação simbólica no novo bairro é fruto deste
deslocamento entre a vida (barulho) e o vazio (silêncio): deslocar um homem de sua morada,
por sua vez construída e decorada por suas próprias mãos, e lançá-lo dentro de um
apartamento demasiado branco, padronizado e asséptico é uma violência cujo silêncio é
simultaneamente sintoma e consequência.

Figura 13: Ventura em seu apartamento demasiado branco na Boba.

O mesmo não ocorre inteiramente em No Quarto da Vanda. Em muitas cenas deste filme, o
silêncio – seja ele uma consequência da ausência de voz ou da diminuição da intensidade dos

29
Ossos, 70’03’’.
30
Juventude em Marcha, 09’01’’.
31
É significativo que a cena de Paulo “no hospital”, deitado sob um suposto leito, tenha sido gravada em um dos
quartos do complexo habitacional da Boba: tudo nesse novo espaço aponta para a assepsia.
37

ruídos no extracampo, produzindo sensações de quietude – cede lugar, através de corte


brusco, à violência dos tratores incansáveis que destroem as casas das Fontainhas. De forma
sutil, esta opção de montagem contrasta a fúria ruidosa da demolição à resiliência dos
silêncios: em uma espécie de inversão em relação aos outros filmes, os silêncios surgem como
opção antagônica ao avanço inexorável da morte (a destruição do bairro). Em No Quarto da
Vanda, ainda mais incisivos que os silêncios são os próprios diálogos, instrumentos maiores
de resistência frente à brutalidade da demolição. Retomaremos este ponto no capítulo
seguinte.

Por outro lado, os silêncios em Ossos são também signo de irmandade e solidariedade: de que
outra forma interpretar as duas cenas em que Clotilde e Tina se observam silenciosamente e
terminam por sorrir ou gargalhar de si mesmas? Na primeira delas32, a personagem de Vanda
Duarte leva sua irmã para a casa onde trabalha como doméstica. Alguns instantes antes,
presenciamos uma briga entre as duas nas ruelas das Fontainhas – possivelmente em razão da
do fato de Clotilde ter ajudado o Pai a fugir com a criança. Enquanto ambas, no trabalho,
trocam de roupa em frente o espelho, seus olhares se cruzam e interpenetram, como se
buscassem silenciosamente, uma na outra, a reconciliação inevitável. Seus lábios desenham
um sorriso dócil e a harmonia retorna ao centro da relação fraterna sem que qualquer palavra
seja pronunciada. A cena imediatamente anterior, aliás, já nos revelava outro sorriso discreto
por parte de Tina, após esta presenciar, pela janela, sua irmã deitada na cama com o marido
cabo-verdiano. Se seus sorrisos através do espelho são ocasionados por esta situação
constrangedora ou apenas pela vontade de conciliação, pouco importa – o que é significativo
são os termos silenciosos dessa reaproximação.

Na segunda cena33, esta mais próxima do desfecho do filme, as irmãs estão na cozinha estreita
de sua casa. Clotilde está de volta ao lar nas Fontainhas após ter aberto o gás de cozinha no
apartamento da enfermeira, onde o Pai dormia, e o ter trancado lá. Ela começa por colocar sua
irmã mais nova, Maura, para dormir, e por cobrir Tina, doente, com um cobertor. Esta, no
entanto, se levanta e segue Clotilde em direção à cozinha, onde ocorre o pequeno acidente:
filmadas em plano-conjunto (por sua vez extremamente parecido com o plano ao início do
filme em que a jovem mãe liga sobre si o gás para se suicidar), ambas esbarram uma na outra
e Tina derruba sobre o braço da irmã um pouco do conteúdo fervente de uma panela. Clotilde,
com o semblante cabisbaixo, se aproxima da câmera até o primeiro plano, enquanto Tina a
32
Ossos, 36’14’’.
33
Ossos, 92’20’’.
38

segue logo atrás. Esta começa a esboçar um sorriso no rosto e busca o olhar de Clotilde, que a
princípio se recusa a encarar a irmã, mas em segundos dissipa a seriedade no rosto e faz troça.
A gargalhada, que emerge como um dos poucos momentos de regozijo na história, parece
possibilitada exatamente pelo silêncio cúmplice que une as duas irmãs. Que não se conclua,
perante esta risada, que o filme suspende momentaneamente a enfermidade que parece corroer
os interstícios da narrativa, pelo contrário: o júbilo silencioso sucede a despeito do possível
homicídio que presenciamos anteriormente, envolvendo este episódio de morte em uma
atmosfera de perversidade indigesta.

Figuras 14 e 15: A cumplicidade silenciosa das irmãs Clotilde e Tina.

Os silêncios de Clotilde, de forma geral, diferem em gênero. Ao contrário do silêncio de


quase morte que consome sua irmã, a personagem parece padecer da posição indefinida que
ocupa na própria narrativa. Os primeiros minutos do filme a revelam acompanhando o Pai e o
carregando consigo ao seu trabalho34. No ônibus, sua mão, em plano-detalhe, pousa sobre a
mão dele, de forma que cogitamos inicialmente sua atividade como amante. Em seguida,
descobrimos seu laço fraterno com Tina, a quem visita no hospital depois do parto. Há, além
disto, o casamento com o negro cabo-verdiano e a suposta existência de filhos – anunciada
durante a sequência da festa nas Fontainhas. Não obstante, Clotilde assume também o papel
simbólico de mãe do bebê recém-nascido, salvando-lhe, por exemplo, da morte por gás na
primeira tentativa de suicídio da irmã (ainda que o filme elida esta resolução, seu contexto é
subentendido pelo desentendimento entre Clotilde e Tina). São significativas, neste caso, suas
últimas palavras no filme – “o filho dela deveria ser meu” –, como é igualmente sintomático
que seu gesto de pousar a mão sobre outra se repita, em meados do filme e no interior de
outro ônibus, com Tina35: revezando-se em diferentes papéis, Clotilde parece não encontrar
um centro sobre o qual consiga pousar os pés e se firmar. Como se sua posição vacilante na

34
Ossos, 03’00’’.
35
Ossos, 62’02’’.
39

narrativa restringisse seu direito de imposição, o atributo da voz se perde em silêncios


impotentes.

É curioso, no entanto, que o gesto mais desconcertante na narrativa, aquele do episódio final
no apartamento da enfermeira, seja realizado por suas mãos. Compreendê-lo não se coloca de
forma descomplicada, mas o fato de ser Clotilde quem o performa é, sem dúvidas, parte
decisiva do impacto da cena. Poucas imagens nos assombram de forma tão impressionante
quanto o plano-detalhe da fechadura sendo trancada pelo lado de fora do apartamento36. A
atividade compassada das travas se erguendo parece selar de forma inabalável o destino do
Pai: ainda que ele possa acordar e desligar o gás, isto parece improvável face à marcha
inexorável da chave por detrás da porta – este instrumento fatal que isola o apartamento e o
condena. Por que Clotilde? Porque nesta sequência, finalmente, ela não é uma figura dividida:
seus papéis de amante, irmã e mãe se reúnem pela primeira vez. A vingança contra o Pai é
uma atitude que unifica todas as atribuições vacilantes, expurgando a um só tempo a traição
cometida pelo antigo amante, que agora mantém caso com a prostituta; a violência
psicológica submetida à irmã, consequência também da privação da criança por ele
ocasionada; e a impotência da maternidade almejada. Se Clotilde falha em seu anseio por ser
mãe, é porque o bebê se tornou objeto inalcançável: o Pai, angustiado com o destino de si e da
criança, decidiu vendê-lo à prostituta.

Figura 16: A fechadura do apartamento da enfermeira.

Na cena em que a prostituta questiona o pai sobre a possibilidade da compra, aliás, ele recosta
sobre a parede e silencia37. O corte para a tela preta, em seguida, é eloquente, porque ilustra
visualmente a réplica inaudita que provavelmente sucedeu. A resposta do Pai,
presumivelmente aceitando vender o próprio filho, é de tal forma insuportável que o silêncio

36
Ossos, 89’38’’.
37
Ossos, 77’45’’.
40

precisa ser transferido também para a imagem: não só devemos não ouvi-la como também é
necessário não vê-la. Recusa da voz, recusa da imagem.

4. O espectador silenciado

A tela preta estabelece uma rima com o plano final, talvez o mais formidável entre todas as
imagens que compõem Ossos. Antes, a câmera se instala sobre uma das ruelas do bairro e
encara frontalmente o corpo de Zita, prostrado silencioso ao lado de uma parede enquanto
outros corpos transitam ao seu redor, no corredor em profundidade que consome o centro do
quadro38. Entre estas figuras transeuntes está sua companheira silenciosa, Clotilde Montron,
carregando consigo uma mala de roda, como se estivesse de partida, e trocando com Zita um
olhar cúmplice: após a possível morte do Pai, o destino selado do bebê e a reconciliação entre
as irmãs, sua “missão” no bairro estaria completa? Ao murmurinho constante que impregna o
ambiente sonoro se sobrepõem ocasionalmente camadas de gritos e assobios pontuais, acordes
amplificados de guitarra, uma melodia de violino melancólica. Estes sons acusmáticos, que
ecoam dos recônditos mais diferentes do espaço, em profundidade ou nas proximidades, com
diferentes alturas e densidades, correm as bordas do quadro ao passo que Zita, enfim,
abandona o posto na esquina em direção ao fundo do bairro, afastando-se da câmera. O plano
final mantém a continuidade destes sons mesmo com o corte, de forma que se esboça uma
continuidade espaço-temporal entre o plano de Zita e este olhar último de Tina para fora de
quadro, em primeiro plano, recortada pela fresta de uma porta entreaberta. Estaria ela
assistindo aquilo que víamos no plano anterior ou outra coisa? Brevemente seus olhos recaem
para o chão e a porta é fechada sobre a câmera. Surgem os créditos enquanto os sons do bairro
persistem na banda sonora.
(...) Ossos termina exatamente como o filme Street of Shame (Akasen Chitai, 1956),
de Mizoguchi: há uma jovem que cerra a porta e lhe contempla, e a porta é fechada
sobre você. Isso quer dizer que você não pode entrar no filme. A partir desse ponto
lhe é vedada a entrada. Ou, de outro modo, é melhor que você não entre no filme,
nesse mundo. Mizoguchi fez isso em respeito ao Japão, em relação à prostituição (à
prostituição universal, não especificamente japonesa), porém, ele foi mais longe na
significação dessa miséria extrema: como um homem pode se impor sobre outro, ou
como um homem pode se impor sobre uma mulher, ou, no fundo, o que podemos
infligir sobre nós mesmos. Penso que o que Mizoguchi quis dizer nessa sequência
foi: “A partir daqui este filme não é mais possível, vai se tornar tão insuportável que
talvez não haja mesmo um filme”. Depois de fechada a porta, um filme não é mais
possível. É terrível, então, não entre. É uma porta fechada para você. Ossos termina
com uma porta fechada39.

38
Ossos, 93’40’’.
39
COSTA, 2010, p. 150.
41

No cinema de Pedro Costa, as portas surgem como metáfora para a construção de seus filmes.
Segundo o próprio cineasta, Griffith teria sido um dos primeiros a notar o poder do cinema
em mostrar e esconder simultaneamente, em descortinar coisas “que todos conhecem e
querem conhecer”40 ao mesmo tempo em que vela certas violências que não devem ser
expostas. Isto faria do cinema, portanto, uma arte da ausência, “que alcança seu paroxismo
com a ideia de falta”41. Assim, vedar a entrada do espectador no filme, não conceder-lhe o
direito de atravessar a porta ao final de Ossos, é um indício da recusa em tudo mostrar. Para
Pedro Costa, cerrar levemente a porta é como um gesto documental, porquanto contradiz o
gesto ficcional que consiste em submeter o espectador ao seu reflexo estendido na tela. Se na
ficção o espectador vê a si mesmo na projeção, no documentário ele é mantido à margem,
pois neste existem portas que não lhe permitem a entrada como protagonista. Só se torna
possível assistir a um filme verdadeiramente, no caso, quando algo na tela resiste ao
espectador. Se ele reconhece tudo, passa a se projetar no filme e fica assim impossibilitado de
ver: ele deixa de ver o filme, de ver o trabalho, de ver as pessoas fazendo coisas, e passa a ver
somente a si mesmo, cujo reflexo se estende por toda a tela.

Além de Griffith, Pedro Costa também identifica no trabalho de Mizoguchi e de Chaplin o


desejo de velar coisas, de encobrir certas violências, de fechar portas diante do espectador.
Estes cineastas opor-se-iam frontalmente ao estado de coisas do “documentário” televisivo e
das reportagens que tudo mostram. Estas, ao objetivarem o desnudamento de todos os
aspectos da vida, buscando mostrar tudo, não mostrariam nada e desembocariam na
esterilidade da emoção. Ao optar por esconder ou elidir, Pedro Costa se aproxima de Straub,
para quem “o melhor é ver menos possível”42. Não se trata, no entanto, de uma operação de
redução em termos quantitativos: seria preferível falar de uma concentração “que acaba por
nos dizer mais”43.

O trabalho de encenação em Mizoguchi é analisado por David Bordwell de forma semelhante,


através da constatação de um constante “jogo de velar e desvelar” que a organiza
internamente. No contexto de uma comparação entre Feuillade e Mizoguchi, o autor assinala
que o primeiro configura uma “arte da clareza” enquanto o segundo “esconde, e, quando
mostra, é só parcialmente”44. Nos filmes do cineasta japonês, esta “intermitência da visão”,

40
COSTA, 2010, p. 149.
41
Ibidem.
42
STRAUB apud GALLAGHER, 2009, p. 41.
43
Ibidem.
44
BORDWELL, 2008, p. 136.
42

i.e, a “recusa em designar a ação da narrativa”, atenua a mise en scène de tal forma que as
imagens se apresentam opacas e ambíguas, “indiferentes às preferências do espectador”45.
Não há, neste caso, projeção possível. Se as personagens mizoguchianas camuflam o
sentimento de seus rostos para ocultar qualquer traço de tristeza, seus corpos e gestos se
tornam mais expressivos – e igualmente eloquente se torna a porta fechada sobre quem assiste
ao filme. “Na cultura da vergonha, pessoas traídas e humilhadas afastam o rosto da câmera.
Escondem-se atrás de portas de correr e de mesas e cadeiras”46. Mizoguchi o sabia: velar pode
ser tão potente quanto mostrar.

Quando Tina fecha a porta sobre a câmera e nos impede a “entrada” no universo do filme, seu
gesto nos remete à frase célebre de Wittgenstein: “sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar”47. O mistério que sobrevoava a narrativa, representado na personagem de Zita,
não será – e nem deve ser – solucionado. Tampouco será verbalizado o segredo que pesará
sobre as costas de Clotilde, após seu gesto final no apartamento da enfermeira. A doença que
se alastrava sobre o bairro manterá sua expansão inexorável e as drogas continuarão a
penetrar os corpos esfacelados. Se há um horizonte para onde as personagens possam vir a
olhar, ele estará cada vez mais coberto de penumbra. Diante deste cenário angustioso, a porta
é cerrada e o filme termina no mais desconcertante silêncio. Aquilo que já pertencia à ordem
do não dito, da suposição, da elipse, encontra no plano final o paroxismo da ausência –
ausência da voz (manifestado pelo mutismo de Tina), ausência da imagem (o que ela vê?),
ausência de perspectiva (o que serão destas personagens?) e ausência do próprio espectador
(uma vez vedado seu direito de entrada).

Figuras 17 e 18: Os planos finais de Ossos (esq.) e Rua da Vergonha (1956) (dir.).

45
BORDWELL, 2008, p. 136.
46
Ibidem, p. 150.
47
WITTGENSTEIN, 2017, p. 261.
43

5. Sentimentos inauditos

Façamos um resumo. Constatamos, até aqui, que os silêncios de Tina, como também do Pai,
são resultado da fraqueza e da doença que os consomem. No caso de Clotilde, seu arranjo
incerto na narrativa parece ser o fator determinante para a ausência de sua voz. Zita e Clotilde
Montron, as figuras quase místicas que circundam o drama sem necessariamente cruzá-lo,
vislumbram nos silêncios a potência da onisciência e da ubiquidade. Quem sobra, neste
panorama, é a enfermeira Eduarda Gomes, cujos silêncios podem ser ocasionados por uma
sombra comum que se impõe igualmente sobre todas estas personagens. Quando Tina, por
exemplo, elege como proscênio para seu suicídio o espaço vazio de sua casa ou do
apartamento da enfermeira, é porque, talvez, este vazio pertença menos ao ambiente físico
que ao seu próprio universo íntimo, já que “os espaços estão tão vazios como os seres”48. Não
é o caso de compreender esses espaços vazios como projeções totais do estado espiritual da
personagem, como se eles não existissem concretamente, mas observar de que forma o vazio
interior que consome essa personagem reverbera no domínio material das casas, dos
corredores, das ruelas, entre outros.

Ao mesmo tempo em que nunca estão inteiramente sozinhas nas Fontainhas, em razão das
vozes que atravessam as paredes, as personagens não conseguem desvencilhar-se da solidão
que as abate. No deserto de aspereza onde elas se movem, torna-se emocionante entrever a
germinação de ternura e de solidariedade. Em uma das mais belas cenas do filme, um
travelling lateral acompanha a personagem do Pai, caminhando determinado por uma rua
asfaltada nas Fontainhas, enquanto carrega consigo um saco de lixo49. O que dantes era
indiferença ostensiva para com a sacola se converte, durante o plano-sequência, em afeto: ele
começa a apertar contra o peito o conteúdo do plástico preto. Compreendemos, então, que o
conteúdo do saco é o próprio bebê, recém-raptado da casa da mãe suicida.

O movimento da câmera, em expansão lateral para a direita, desvelando as casas do bairro,


em conjunção com a distância da personagem caminhante e sua posição no quadro e no
espaço, assemelha-se a plano-sequência do filme anterior, Casa de Lava, em que a enfermeira
interpretada por Inês de Medeiros cruza o cenário cabo-verdiano. Shiguéhiko Hasumi, a
respeito deste plano em Cabo Verde, assinala que nele vemos nascer a “beleza solitária e
taciturna de alguém que tenta sabiamente suportar uma situação”. Estas palavras poderiam

48
FERREIRA, 2004, p. 420.
49
Ossos, 19’52’’.
44

perfeitamente se referir ao travelling de Ossos, em que o Pai caminha resolutamente – e em


silêncio – rumo à sobrevivência junto à criança sem nunca desviar os olhos de seu horizonte.
A resolução, entretanto, surge apenas em meados do plano-sequência, no momento em que o
pai estreita contra seu peito a sacola de plástico. É esta, segundo Hasumi, a aventura nos
filmes de Pedro Costa: o surgimento de uma “inefável ternura” a partir do registro de “uma
experiência desconhecida que ocorre durante o próprio momento da filmagem”50.

Figuras 19 e 20: Os travellings em Ossos (esq.) e Casa de Lava (dir.).

Ternura é a palavra ideal para se reportar, por exemplo, a uma sequência de No Quarto da
Vanda em que a protagonista conversa com o vendedor de flores do bairro, um tipo chamado
Pedro, que um dia se viciou em cocaína e tem problemas com falta de ar 51. Preocupada,
Vanda lhe arranja um pouco do remédio que ela administra a si mesma, e faz questão em lhe
chamar para voltar e tomar um xarope. Em Juventude em Marcha, o reencontro entre Ventura
e Lento, já nas vias de conclusão do filme, figura o encontro de suas mãos no interior de um
apartamento em ruínas, o que é suficiente para nos comover52. O travelling em Ossos, no
entanto, é um dos únicos momentos de ternura, ao longo dos três filmes, em que o silêncio
tanto envolve quanto perfura a cena. Poderíamos mesmo insinuar que a ausência da palavra é
o que confere ao gesto do Pai uma força admirável, pois seu silêncio perturbador e misterioso
nos condiciona a observar cautelosamente aquilo que leva em mãos. O tempo perdura através
do plano-sequência e possibilita a construção de uma modulação emocional:
Qualquer um dos filmes de Pedro Costa se apodera do nosso olhar e obriga-nos a
viver pessoalmente o movimento do filme. Às vezes as imagens ferem-nos o olhar
com a sua dor pungente, outras vezes envolvem-nos os olhos com uma inefável
ternura. O que é espantoso para o espectador do travelling de Ossos é o modo como
o movimento que inicialmente interpretamos como dor se transforma como por
milagre em ternura, no instante em que o jovem abraça o saco de plástico 53.

50
HASUMI, 2009, p. 141.
51
No Quarto da Vanda, 100’35’’.
52
Juventude em Marcha, 137’21’’.
53
HASUMI, 2009, p. 134.
45

Este instante de ternura, em Ossos, rompe com o vazio interior que lentamente escava, de
dentro para fora, cicatrizes no rosto, no olhar e no movimento corporal das personagens. Ao
travelling se junta, por exemplo, o beijo de Tina no rosto da enfermeira Eduarda Gomes após
esta salvar-lhe do suicídio no seu apartamento; os sorrisos inesperados que surgem nos lábios
de ambas as personagens nomeadas por Clotilde enquanto elas se olham e esperam por Tina
no ponto de ônibus do bairro; a comida que a enfermeira prepara ao Pai faminto no
apartamento, cujo estômago doía de fome; entre outros. Assim, o deserto espiritual é povoado
por momentos de sentimento genuíno, que se revezam entre o afeto, a empatia, a generosidade
e a gratidão. A disponibilidade do cineasta a estas personagens torna possível observar o
florescimento destes gestos sensíveis – método, por sua vez, aprofundado e radicalizado desde
No Quarto da Vanda, na medida em que a operacionalização de uma construção prévia e
parcialmente roteirizada cede espaço ao trabalho cauteloso de contemplação e recriação das
forças atuantes que animam o bairro cotidianamente.

Talvez em decorrência desta mudança no método de criação, em No Quarto da Vanda ou


Juventude em Marcha o sentido do vazio tampouco é o mesmo. Pessoas como Vanda, Zita,
Paulo, Nhurro, Russo, Ventura, Bete, Lento e Pedro não são esvaziadas à maneira do que
ocorre com as personagens em Ossos. Outrossim, a câmara mortuária que antes era o bairro
não atua mais como projeção da esterilidade interior das personagens – ainda que esta leitura
se mantenha possível: pensemos, por exemplo, no paralelo que é construído entre a demolição
do bairro e o consumo cotidiano de droga por parte de Vanda, i.e, entre violências que
corrompem aquilo que tocam, “entre a demolição do bairro e a autodestruição lenta dos
corpos drogados que ele dá a ver”54. Se se nota um vazio que acomete os habitantes do bairro
nos outros filmes da trilogia, ele é menos consequência dos atos dessas pessoas do que
resultante de forças externas. A ação dos tratores ou a atividade do agente imobiliário são
agressões diretamente responsáveis pelo vazio que assola as figuras humanas em No Quarto
da Vanda e Juventude em Marcha, respectivamente.

Em texto que discute, entre outros tópicos, a questão da exiguidade dos interiores onde vivem
essas figuras, Mateus Araújo afirma que “o estreitamento do espaço em que eles se movem
acompanha um estreitamento de suas perspectivas”55. O confinamento espacial acompanha,
então, o “estreitamento do horizonte que o narrador lhes atribui”56. Este trabalho, que é de

54
ARAÚJO, 2010, p. 119.
55
Ibidem, p. 127.
56
Ibidem.
46

ordem progressiva (uma vez que o confinamento torna-se maior a cada filme), começa a ser
explorado de forma mais sistemática, segundo o autor, em Ossos. A analogia entre o espaço
social dos pobres e uma prisão “nunca visível na imagem” exprimiria a “percepção que o
narrador tem do espaço em que se movem os pobres e imigrantes, confinados no bairro das
Fontainhas”57. Ora, se a exiguidade dos espaços equivale ao afunilamento da esperança,
também o esvaziamento interior das personagens pode corresponder ao esvaziamento dos
planos. Neste caso, outro tipo de silêncio se desenha, de ordem mais plástica, ocasionado pela
ausência não da voz, mas do próprio corpo em cena.

6. Os silêncios do vazio

Naturalmente, o ser humano não é o único corpo que emite sons, como também não é apenas
do conteúdo pertencente ao quadro que se compõe um filme. Entretanto, lidamos com três
obras que, de maneira pontual, constroem sensações distintas de silêncio na banda sonora, e
delas depreendem-se artifícios visuais que as corroboram, prolongam ou negam. Em Ossos, o
plano vazio não é uma questão premente, sendo possível verificá-lo principalmente em cenas
nas quais as personagens se deslocam entre o quadro e o extracampo, podendo ou não retornar
ao plano. Neste sentido, desocupar da imagem o corpo humano, eclipsá-lo no vazio, é uma
disposição da própria narrativa, uma configuração de transição, em que o vazio é um aspecto
circunstancial da encenação. Como Mizoguchi, Pedro Costa estrutura sua encenação em torno
do movimento que encobre e descobre. Diferente de Mizoguchi, seu instrumento para velar e
desvelar reside nas bordas do quadro, enquanto nos filmes do cineasta japonês o jogo habita o
interior do plano.

Utilização mais emblemática do plano esvaziado ocorre justamente a partir de No Quarto da


Vanda. Nos primeiros minutos deste filme seminal, a silhueta de Nhurro se banha contra a luz
que invade o espaço por uma fresta na parede – possivelmente uma antiga porta então
demolida58. Nu, ele utiliza para se lavar um balde de água quente, cujo contato com a pele
produz ondulações de vapor. Ruídos de demolição assumem o primeiro plano sonoro: batidas
graves relativamente ritmadas, que se assemelham aos batuques de um surdo, um carrinho de
mão sendo manuseado e pedaços de azulejo sendo despejados sobre o chão são alguns destes
sons que se sobrepõem às esfregadas sobre o corpo de Nhurro. Uma pequena elipse em
direção a um plano aberto revela o local onde ele, agora à esquerda do quadro, se banhava:

57
ARAÚJO, 2010, p. 120.
58
No Quarto da Vanda, 05’25’’.
47

trata-se de uma sala parcialmente destruída, com os objetos jogados ao chão e com um
homem trabalhando na janela. Nhurro começa a vestir suas roupas enquanto os ruídos
permanecem estridentes. Subitamente, duas imagens sucedem: na primeira, vemos, de dentro
de um cômodo escuro, uma porta cuja abertura permite a entrada de luz externa. Através dos
feixes oscilantes de luz, no exterior iluminado, a poeira se materializa em constantes
flutuações. No interior, um garrafão de bebida se estende sobre o chão. O que vislumbramos
na segunda imagem, através dos batentes de uma porta, é uma tábua entortada de passar
roupa, uma mesa de madeira ocupada por papéis e outros objetos, tecidos jogados pelo chão e
uma cadeira encostada sobre a parede. A luz que banha este cenário, provavelmente provinda
de uma janela, oscila, revezando-o entre a claridade e a escuridão. No decorrer de ambos os
planos, o tumulto sonoro que advém desde o banho de Nhurro é contínuo.

Figuras 21 e 22: Planos esvaziados em No Quarto da Vanda.

A influência de Yasujiro Ozu no cinema de Pedro Costa é amplamente reconhecida e


debatida, inclusive pelo próprio cineasta59. O enquadramento fixo e a temática do grupo, i.e,
de uma comunidade em vias de desaparecimento, são comumente sugeridos como pontos de
intersecção entre as duas cinematografias. Outra ponte possível diz respeito aos planos
descritos no parágrafo anterior. Essas imagens “vazias” com que somos confrontados, sem
qualquer presença humana em quadro, remetem-nos aos planos de Ozu que Noel Burch
cunhou como “pillow-shots”. Planos que, em sua imobilidade despovoada, suspendem o fluxo
diegético, interrompem brevemente a narrativa e, de forma geral, representam uma “transição
gradual do ‘universo’ inanimado (...) ao mundo animado da diegese”60. Ao depositar sua
atenção sobre um aspecto inanimado do espaço (um artefato, uma paisagem, um corredor,

59
Pedro Costa (2012, p. 29): “Sem voltar à cinefilia, também é preciso dizer que Vanda é um filme que deve
muito a Ozu e que não podia existir sem ele, sem a crença de que o cinema serve para nos levar a sentir que há
coisas que não estão bem e que é preciso senti-las a um nível nuclear, a pequena dúvida nos olhos, aquele leve
tremor nos dedos...”.
60
BURCH, 1979, p. 166, tradução nossa. “a gradual transition from the inanimate ‘universe’ (...) to the animate
world of the diegesis”.
48

uma lâmpada...), a câmera provoca uma “descentralização” da personagem ao objeto. Para


Burch, o “pillow-shot” é um traço estilístico profundamente enraizado em uma cultura e
tradição não ocidentais, de forma que o estranhamento suscitado por um plano longo ou
“desmotivado”, em que não há figurado o corpo humano, surge como consequência natural de
nosso contexto antropocêntrico.

Em seu estado mais expressivo, o “pillow-shot” suspenderia não apenas a narrativa como
também o próprio significado que pode lhe ser conferido: não haveria nada além do plano, em
sentido conotativo. Na medida em que o espaço figurado no “pillow-shot” é apresentado
como estrangeiro à diegese, pela maneira como, por exemplo, a imobilidade de seu conteúdo
contrasta com a continuidade da narrativa, as peças que integram o plano passam a pertencer a
outro nível da “realidade”, mesmo que elas sejam utilizadas, previamente ou
subsequentemente, como objetos de cena por parte das personagens. Estas, ainda que não
sejam visíveis no “pillow-shot”, habitam algures no extracampo, produzindo uma “tensão
entre a suspensão da presença humana (na diegese) e seu potencial retorno”61. Uma vez
deslocado o centro de atenção, da personagem ao objeto, não deveríamos assumir, a priori,
uma “mensagem” por trás deste deslocamento (algo como compreender o homem não mais
como o centro do universo), mas antes analisar cada efeito de descentralização em sua
especificidade.

Figuras 23, 24 e 25: “Pillow-shots” em Ozu: Pai e Filha (1949) (esq.), Flor do Equinócio (1958) (cent.) e Bom Dia (1959) (dir.).

A ideia que sustenta o conceito de “pillow-shot”, entretanto, parece essencialmente visual. De


que forma nós procederíamos a uma análise de um “pillow-shot” puro, i.e, de um plano em
que a diegese é temporariamente suspensa, se o som diegético se mantivesse contínuo no
desenrolar de sua duração? Por acaso seu estatuto de “pureza” seria assim constrangido,
quebrado, tornado impuro? O descolamento irrevogável entre a diegese e o conteúdo do

61
BURCH, 1979, p. 161. “(...) the tension between the suspension of human presence (of the diegesis) and its
potential return”.
49

“pillow-shot” tornar-se-ia possível através de uma análise somente da imagem. Os planos que
se seguem ao banho de Nhurro, por exemplo, prescindem da presença humana em quadro e
não abrigam significados conotativos (no máximo denotativos: são os resquícios da
demolição no bairro), o que permitiria chamar-lhes de “pillow-shots”. Entretanto, os ruídos
estridentes são contínuos, sendo eles responsáveis por impedir que os planos sejam
interpretados como exteriores à diegese. Analisando uma cena do filme Mulher de Tóquio
(1933), em que um plano “animado” pela presença humana se converte em “pillow-shot”
conforme a personagem em frente ao espelho abandona o quadro e a imagem do reflexo vazio
é mantida por alguns segundos, Burch sinaliza que o efeito de transição é “facilitado, claro,
pela ausência de qualquer som fora de quadro”62. Questiona-se, então: para que um “pillow-
shot” seja legítimo se faz necessário silêncio absoluto? Quantos são os filmes que trabalham
efetivamente nesta esfera? O fato é que mesmo Ozu não silenciava por completo suas bandas
sonoras durante seus “pillow-shots”.

Burch descreve um tipo de plano cujo tempo é “não diegético” e “congelado”, o que não se
mantém inteiramente verdadeiro, em No Quarto da Vanda, quando se ouvem os sons
diegéticos que preenchem e inflam de movimento os planos fixos. Entretanto, estes planos de
Pedro Costa sustentam algo que, para Burch, é uma dimensão medular do “pillow-shot”: a
“incerteza fundamental”63 que nos faz perguntar se no extracampo há alguém, ou, antes,
alguéns, e onde estariam estas pessoas. As vozes e os ruídos de demolição que invadem os
planos da porta e da sala bagunçada podem nos fornecer pistas da existência de vida fora de
quadro, mas o fato de não sabermos quantas destas vidas encontram-se nas proximidades,
nem onde elas estão, e menos ainda quem são, inscreve no plano uma qualidade de
indeterminação que é característica do “pillow-shot”.

O emprego do termo “pillow-shot”, como demonstrado, é problemático. O próprio Burch,


aliás, nos possibilita desviarmos da aplicação ortodoxa de seu conceito: ao se referir a planos
que conservam em si determinada linhagem do “pillow-shot” sem necessariamente sê-los por
completo, o autor reflete sobre a noção de “pillow-status”. É o caso, por exemplo, de planos
cuja presença do corpo humano não inviabiliza o caráter imobilizado das figuras que
compõem o plano fixo, uma vez que este corpo é descentralizado pela atenção que é
depositada sobre outros aspectos inanimados do plano. O mesmo Nhurro, em outra cena em

62
BURCH, 1979, p. 169. “(...) facilited, of course, by the lack of any off-screen sound”.
63
Ibidem, p. 166. “fundamental uncertainty”.
50

No Quarto da Vanda, injeta droga em sua casa64. O plano fixo, cuja angulação da câmera é
levemente em plongée, nos mostra objetos (garrafa de água, caneca, prancheta, papel, saco
plástico, etc) sobre uma mesa redonda de madeira, cuja posição é central no quadro. No canto
inferior esquerdo do plano, o corpo de Nhurro é recortado pelas bordas do enquadramento,
restando no campo de visão somente o braço que injeta a droga. Pela maneira com que a
matéria humana é descentralizada em função da atração pelas coisas inertes, poderíamos
assumir que este plano conserva em si o estatuto do “pillow-shot”. Esta impressão
permaneceria, no entanto, se ouvíssemos ao plano e notássemos que a voz de Nhurro banha a
imagem?

Figura 26: Imagem "descentralizada" em No Quarto da Vanda.

Se nos detemos sobre o conceito de “pillow-shot”, é porque o termo de Burch reaparece


constantemente nos escritos sobre o cinema de Pedro Costa65, o que implica dimensioná-lo
para refletir sobre sua real aplicabilidade sobre as imagens e os sons dos filmes. Em
“essência”, o pillow-shot pouco se relaciona com a banda sonora, o que procede de um
problema de metodologia analítica. Diante da importância que o som adquire no cinema de
Pedro Costa, torna-se dificultosa a aproximação de alguns de seus planos com os “pillow-
shots” de Ozu, ainda que eles compartilhem características em comum, pertencentes ao
âmbito da imagem.

Cumpre-nos compreender, além disso, o que a manutenção dos sons acusmáticos nos revela
sobre esses planos esvaziados. Ao integrar a diegese destes planos ao espaço circundante,
marcado sonoramente pela ação das máquinas ou dos moradores, por exemplo, Pedro Costa
parece sublinhar que esses espaços ou objetos estrangeiros, inanimados ou descentralizados
também competem à realidade diegética do bairro. A atenção do cineasta, assim, não se

64
No Quarto da Vanda, 48’32’’.
65 65
Cf. QUANDT, 2009, p. 33.
51

direciona apenas aos fatos e aos espaços “vivos”, habitados ou atravessados por seres
humanos, mas também aos espaços e tempos “mortos”. A relação entre as casas e as ruínas,
entre as pessoas e os objetos, entre o centro e a margem, é justamente estabelecida pelos sons
contínuos que ligam os diferentes espaços. O som, neste caso, permite aos supostos “pillow-
shots” não exatamente uma suspensão ou um alheamento, mas antes uma ancoragem concreta
em relação às outras imagens.

Por outro lado, essa ancoragem pode ser atenuada. A herança do “pillow-shot” em No Quarto
da Vanda (como em Juventude em Marcha) suscita, em determinados planos, sensações
potentes de silêncio. Poderiam esses silêncios, constituídos pelo vazio inanimado dos planos,
nos guiar através de um possível descolamento entre plano e diegese? Em outras palavras,
poderiam eles apontar para a função originária do “pillow-shot” tal como descrita por Burch?

Figuras 27 e 28: Naturezas-mortas em No Quarto da Vanda (esq.) e Juventude em Marcha (dir.).

Um caminho possível para esta reflexão é traçado através da aproximação com a pintura.
Referindo-se ao plano descrito anteriormente, na casa de Nhurro, Jacques Rancière afirma:
“uma garrafa de água de plástico, uma faca, um copo, alguns objectos espalhados numa mesa
de madeira clara numa casa ocupada e eis que, com uma luz rasante, surge a oportunidade
para uma bela natureza morta”66. A disposição pictórica da natureza morta está presente em
inúmeros planos que compõem tanto No Quarto da Vanda quanto Juventude em Marcha:
basta nos lembrarmos, por exemplo, do balde vermelho cheio de isqueiros gastos, no
primeiro, e uma lamparina a gás posicionada ao lado de um facão enferrujado, no segundo.
Estas naturezas-mortas, nos filmes de Pedro Costa, resultam da atenção que a câmera deposita
sobre os objetos inanimados que integram o cenário – em especial os interiores nas
Fontainhas. Planos próximos de mesas, garrafas, utensílios domésticos, papéis e canetas,
isqueiros, agulhas de droga, entre outros, quando banhados em pouca luz, configuram
66
RANCIÈRE, 2009, p. 54.
52

imagens de rara beleza, as quais não se restringem à trilogia. Em Ossos, na verdade, elas mal
existem; por outro lado, as encontramos em filmes como Casa de Lava, Tarrafal e Cavalo
Dinheiro. Na intenção de meditar sobre a exterioridade dos “pillow-shots”, em que
personagens ou cenários são apresentados ou reapresentados fora de seus respectivos
contextos narrativos, Burch utiliza justamente a pintura como parâmetro analítico:
Esta exterioridade, o resultado de muitos fatores, não pode ser definida em termos
simples. Um de seus signos primários é a imobilidade destes planos em um contexto
cujo movimento assegura a continuidade diegética, dizendo-nos que o referente
imaginário é o mundo vivente. Os planos também implicam exterioridade porque
neles está ausente um centro composicional. É por isto que a frase “natureza morta”
muitas vezes parece adequada. Eles não podem ser corretamente descritos
meramente como planos de postes de luz ou de roupa pendurada no varal à maneira
de como um plano diegético pode ser descrito como um “close-up do John” ou um
“plano-longo da Sally”. Imóveis, geralmente durando longo tempo (...),
completamente articulados do ponto de vista gráfico, eles demandam ser escaneados
como pintura, não como planos inabitados os quais, mesmo em Ozu, são
relativamente mais centrados em torno de personagens 67.

O som é uma vibração no ar que é provocada por movimento. Em linguagem figurativa (uma
vez que em termos literais não existe silêncio absoluto), o que está imóvel não produz som. A
imobilidade relativa dos objetos da natureza morta, como o estatismo de outros gêneros
pictóricos, produz sensações de silêncios que integram a experiência mesmo da pintura. Efeito
semelhante ocorre nos planos inanimados de Pedro Costa, mesmo que neles a banda sonora
seja preenchida por ruídos, vozes ou música. A ausência do corpo humano ou mesmo de um
objeto movente, nestes planos, demonstra extraordinária capacidade de afundar o conteúdo da
imagem na mais profunda quietude, a despeito de qualquer som que deslize sobre a superfície
da imagem tendo origem no extracampo. No caso, o efeito é potencializado em planos cuja
presença humana está integralmente suspensa, e não apenas recortada pelas bordas do
enquadramento. No caso dos planos que se seguem ao banho de Nhurro, eles não poderiam se
tornar exteriores à diegese na medida em que uma sensação de silêncio é inesperadamente
suscitada? A palavra sensação, neste contexto, é fundamental: em termos técnicos, é evidente
aos ouvidos que o ruído da demolição permanece contínuo durante os planos inanimados, mas
a possibilidade de sermos acometidos por uma impressão de silêncio, decorrente da ausência

67
BURCH, 1979, p. 162. “This exteriority, the result of many factors, cannot be defined in simple terms. One of
its primary signs is the stillness of these shots in a context whose movement ensures diegetic continuity, tells us
that the imaginary referent is a living world. The shots also imply exteriority because they lack compositional
centre. This is why the phrase ‘still-life’ so often seems apt. They cannot be correctly described as merely shots
of lamp-posts or of laundry hanging on the line in the same manner that a diegetic shot can be described as
‘close-up of John’ or ‘long-shot of Sally’. Unmoving, often lasting a long time (…), fully articulated from the
graphic point of view, they demand to be scanned like paintings, not like inhabited shots which, even in Ozu, are
relatively more centred around characters”.
53

de movimento em quadro, é potencial – o que poderia ocasionar um súbito distanciamento


dos eventos diegéticos.

7. Das relações entre silêncio e pintura

A pintura fornece ainda substrato para outra reflexão sobre o silêncio. O pintor barroco
Georges de La Tour era referido por Élie Faure como “príncipe da sombra e do silêncio”68,
enquanto André Malraux descrevia sua capacidade em sugerir, através da representação da
noite, “imenso e misterioso silêncio”69. Possivelmente, a relação entre escuridão e silêncio se
verifique porque ambos atuam no campo da “ausência” – de luz e de som, respectivamente.
Em No Quarto da Vanda, a noite desaba sobre os corpos toxicodependentes de Paulo
“Muletas” e Russo na cena em que ambos injetam droga no interior de um cenário à luz de
velas70. Suas silhuetas mal se distinguem na penumbra profunda que preenche o quadro, mas
alguns traços humanos são recortados pela luz tremulante. James Quandt, curiosamente,
qualifica este plano como um “Georges de La Tour em versão submundo”71. A obscuridade
do cenário, em comparação com a imobilidade dos objetos nos “pillow-shots”, parece
resguardar igual capacidade em sublinhar certa sensibilidade silenciosa que impregna os
poros da imagem.

Figura 29: Paulo “Muletas” e Russo injetam droga à luz de vela.

Na cena à luz de velas, em que se nota “um ar de claro-escuro holandês do Século de Ouro”72,
as figuras humanas não deixam de conversar enquanto se drogam, mas novamente isto não é
um impeditivo à sensação de silêncio que é introduzida no plano. Se corretamente atentarmos
para o contexto da encenação, observaremos que há uma razão para que a droga seja injetada

68
FAURE, 1991, p. 159.
69
MALRAUX, apud COLI, 2014, p. 130.
70
No Quarto da Vanda, 102’41’’.
71
QUANDT, 2009, p. 34.
72
RANCIÈRE, 2009, p. 54.
54

no negrume da noite: o gesto precisa ser velado, tornado privado, mantido em silêncio. Em
outra sequência, as figuras se injetam durante o dia, mas o que inicialmente era luz se
converte em breu na medida em que elas fecham a porta e a janela da casa. Elas velam sua
atividade viciosa, enfim, como uma forma de silenciá-la e mantê-la clandestina. A noite
também se manifesta de forma eloquente em Juventude em Marcha, principalmente na
sequência em que Ventura e Lento se refugiam em sua barraca nas Fontainhas para se
esconder dos “soldados por toda parte, com fome de briga, em seus tanques, pedindo
documentos de toda gente”73, no sugerido contexto da Revolução dos Cravos74. Por vezes, a
obscuridade da noite parece acariciar as palavras de Ventura, que constantemente, durante o
filme, recita uma carta de amor: o silêncio da noite envolve a voz cortante de Ventura para
melhor destacá-la, como ocorre com a chama de uma vela que parece arder mais intensamente
dentro de um quarto escuro75.

Em Ossos, pouco se vê as Fontainhas durante o dia, mas a escuridão de sua noite parece
menos intensa. Talvez em função da fotografia em película de Emmanuel Machuel, filmada à
luz natural, o manto escuro que cobre as imagens não é tão intenso quanto aquele
proporcionado pela gravação em digital dos filmes seguintes, granulado e áspero. Neste filme,
em alguma medida, a escolha estética pela obscuridade acompanha simultaneamente dois
aspectos – de um lado, a gênese de uma atmosfera de doença e morte, cujo corolário visual só
poderia ser a escuridão (ausência de luz, ausência de vida); do outro, a recriação de um efeito
proporcionado pela própria arquitetura do bairro, fortemente influenciada por imigrantes
africanos que não só construíram pequenos “souks” como também substituíram o branco das
paredes pela cor ocre76. No primeiro caso, as sombras surgem como um elo expressivo na
corrente de ausências que constitui o discurso fílmico; no segundo, elas representam e
fortalecem a busca do cineasta por restituir uma “experiência” do bairro. Os silêncios que da
primeira se depreendem despontam como sensações de desespero mudo, como se as trevas
calassem (porquanto ocultam) qualquer vestígio de esperança.

73
Fala de Lento.
74
Juventude em Marcha, 106’46’’.
75
O efeito é semelhante em outra sequência na qual Ventura recita a carta enquanto vemos, na imagem, uma
espécie de natureza morta composta por garrafas verdes de vidro sobre uma bancada de madeira, iluminadas pela
lamparina que se encontra atrás.
76
Relacionado a esse segundo aspecto, está também a questão técnica e ética por trás da decisão de não trabalhar
com refletores e demais aparelhos de iluminação: “No caso de Ossos, a luminosidade excessiva dos projetores de
luz mostrou-se um incômodo para os moradores do bairro das Fontainhas, estimulando o realizador a tomar a
atitude impensável (pelo menos para grande parte do cinema industrial) de apagar as luzes e trabalhar apenas
sobre a iluminação comum do bairro” (DUARTE, 2018, p. 145).
55

Há ainda outro recurso pictórico, no filme, que sustenta sensações eloquentes de silêncio:
muitos dos planos são compostos por molduras inusitadas em seu interior. “As portas, as
janelas, os postigos, as lucarnas, as janelas dos carros, os espelhos, são outros tantos quadros
dentro do quadro. Os grandes autores têm afinidades particulares com um ou outro desses
quadros segundos, terceiros, etc”77. A câmera, em Ossos, deposita especial atenção aos
batentes de porta, às janelas das casas do bairro e aos seus corredores labirínticos, restringindo
o campo visual às áreas internas destes enquadramentos “duplicados”. Esta não é uma
estratégia exclusiva ao filme, podendo ser verificada também em No Quarto da Vanda (como
na cena em que três mulheres conversam no quarto da protagonista, refletidas por dois
espelhos encostados sobre a parede) e em Juventude em Marcha (na sequência supracitada em
que Ventura e Lento amedrontam-se pela Revolução, os vemos através da janela de seu
barraco). Entretanto, é em Ossos que este modelo de organização do plano encontra de forma
mais vigorosa a potência dos silêncios. Uma vez que a rigidez prevista à encenação – em que
as personagens demasiado doentes, fracas ou drogadas atuam como estátuas lapidares –
encontra as molduras do quadro dentro do quadro, as imagens aproximam-se de pinturas
imóveis.

Figuras 30, 31, 32 e 33: Quadros dentro de quadros em Ossos.

77
DELEUZE, 2018a, p. 32.
56

Se Quandt afirma que o Pai, através de seus olhares distantes, “evoca uma das madonne
contemplativas de Bellini”78, a razão é também sugerida pela imobilidade que entranha os
planos. Quando uma porta ao fundo do plano emoldura o rosto da personagem, finalmente,
sua inércia parece ser total. O recurso da moldura é utilizado em inúmeros planos, sendo seu
efeito a paralisação momentânea das figuras em quadro. A imagem cinematográfica, apesar
de se desenrolar no tempo, se desenvolve momentaneamente sob o signo da fixidez. O
silêncio (ou mutismo) que as acompanha, cuja força é de tal forma intensificada, é um
sintoma da paralisia que acomete as personagens no interior do quadro “duplicado”. Não é
sempre que as personagens se estratificam no plano, mas há instantes, mesmo durante um
movimento, em que elas imobilizam e retém por alguns segundos uma qualidade de pintura.
A predisposição à imobilidade, em si, é uma constante no cinema de Pedro Costa desde seu
primeiro filme, o que não faz surpreender as comparações que são tecidas entre sua arte e as
técnicas de retrato na pintura ou na fotografia. Ossos é o filme em que se nota de forma mais
cognoscível esta imobilidade em consonância com a ordenação de molduras na superfície do
plano, o que condiciona acentuadas impressões de silêncio.

Dito isso, analisemos uma cena que sintetiza, exemplar e simultaneamente, algumas das
estratégias que são empregadas na intenção de viabilizar diferentes sensações de silêncio. A
enfermeira Eduarda Gomes presta uma visita à Tina, cuja saúde deteriora implacavelmente 79.
Uma composição em camadas é sustentada por um enquadramento fixo levemente angulado
em plongée. No primeiro plano da imagem, uma janela nos possibilita ver um quarto em
segundo plano. Nele, vemos a beirada de uma cama, uma cômoda com objetos espalhados e
sacolas de plástico penduradas sobre o gancho de uma prateleira. Na parede, outra janela se
abre sobre um terceiro plano da imagem, em que vislumbramos um balde azul e outros
utensílios. Em síntese, duas molduras são ocasionadas por janelas: a primeira permite
visualizar o quarto, e a segunda uma área contígua. Na banda sonora, em primeiro plano,
ouvimos a canção diegética Lowdown, da banda Wire. A intensidade de sua presença impede
que escutemos as palavras pronunciadas pela enfermeira quando esta entra na imagem pela
direita do quadro e se volta para alguém que não vemos no campo visual. Este alguém é Tina,
que era escondida pela parte inferior da primeira janela e agora se ergue da cama. Ela busca
um roupão à esquerda do quadro, cruza o plano e desaparece novamente no extracampo
direito. Subitamente a música é interrompida, como se Tina a tivesse desligado. Esta

78
QUANDT, 2009, p. 31.
79
Ossos, 79’09’’.
57

reaparece, apanha um cigarro sobre a cômoda e o acende antes de sentar sobre a cama, gesto
que é repetido pela enfermeira, quem se prostra ao seu lado.

Ambas não trocam quaisquer palavras. Ecoando distantes, os sons de adultos conversando e
crianças gritando, um bebê chorando e um cachorro latindo. O mais próximo de uma
“interlocução” entre as duas se mantém ainda no silêncio, no instante em que Tina acende o
cigarro da enfermeira. Esta direciona a atenção para a garota, que não retribui o olhar, mas
seus lábios nada emitem. No fundo da imagem, Maura cruza o espaço contíguo da casa,
através da segunda janela, e logo atrás surge Clotilde, que se detém um instante para observá-
las. “Dê-lhe um beijo, ela se lembra de você”, sussurra. Eduarda afasta uma mecha do cabelo
de Tina e lhe beija a face, enquanto Clotilde abandona o plano lhe dizendo que elas “não
precisam de nada”. A canção demasiado alta surge novamente na banda sonora,
possivelmente acionada por Clotilde no extracampo. A enfermeira volta a falar com Tina, mas
uma vez mais não somos permitidos ouvir sua voz, calada pelo volume da música. Por fim,
ela lhe estende o molho de chaves de seu apartamento e o deposita, em plano-detalhe, sobre
uma bancada de madeira ao lado da cama. Seu rosto é refletido pelo vidro de um retrato de
Tina e do Pai. A cena, que dura aproximadamente dois minutos e meio, reúne numerosos
silêncios.

Figura 34: A enfermeira Eduarda Gomes visita Tina nas Fontainhas.

Os “tempos mortos” da cena, em que as personagens fumam ou direcionam seu olhar para
algum ponto do espaço, integram as composições em molduras e lhe conferem uma qualidade
pictórica de imobilidade plácida. No caso, o silêncio é investido sobre a fixidez das figuras
nos quadros dentro do quadro. Enquanto disposição discursiva e estética, a recusa pela voz é
marcadamente enaltecida pela presença da canção diegética. O volume excessivo da música,
que interdita ao espectador o direito de escutar aquilo que é dialogado na cena, não restringe a
sensação de silêncio, mas antes a amplifica. No caso, esta sensação se instala nos lábios cujo
58

movimento não produz palavra sequer. Em certa medida, poderíamos interpretar a presença
da música como uma porta que se fecha ao espectador, vedando-lhe a possibilidade de entrada
no universo do filme. Qual o conteúdo da fala de Eduarda Gomes? Tina o sabe, porque a
escuta, ao contrário do espectador, cujo acesso ao diálogo é restringido. Ao mesmo tempo,
não poderíamos interpretar este silêncio de Eduarda como manifestação de sua impotência? O
esforço em ajudar Tina – que, adoecida, mantém seu mutismo de quase morte – se demonstra
ineficaz, uma vez que, em sequência adiante, a jovem tenta suicidar-se no apartamento da
enfermeira. Resumindo, a cena abarca silêncios de imobilidade, de impotência e de doença, os
quais consomem as personagens, utilizando-se de um arranjo imagético em camadas e uma
canção que impossibilita nossa passagem (ou projeção) à diegese.

Na atribuição de finalizar o capítulo, convém nos determos por um último momento em outra
sequência que, de forma expressiva, se desenvolve em torno dos silêncios que sobre ela se
depositam. No caso, ela pertence ao último filme da trilogia, Juventude em Marcha. Em um
de seus episódios de deambulação, Ventura passeia pelos espaços do Museu Calouste
Gulbenkian, cuja construção, conforme descobriremos posteriormente no filme, foi erigida
pelas suas próprias mãos quando trabalhava como pedreiro em tempos passados. O primeiro
plano da sequência nos revela uma pintura de Rubens, Fuga para o Egito (1630-32),
iluminada de tal forma pontual que as zonas escuras ao seu redor constituem outra moldura
para a própria moldura do quadro80. Em seguida, um plano aberto de Ventura o posiciona no
canto direito do enquadramento, apoiado com as costas sobre uma parede sobre a qual se
veem expostas Retrato de homem (1620-21), de Van Dyck, à direita, e Retrato de Hélène
Fourment (1630-32), de Rubens, à esquerda. Passos no extracampo prenunciam a chegada de
outro homem negro, cuja postura com os braços para trás e a vestimenta nos fazem supor se
tratar do guarda do museu. Ele sussurra quaisquer palavras a Ventura, que as ouve
calmamente antes de abandonar o espaço, e esfrega o local no chão onde estava prostrado o
corpo do visitante.

80
Juventude em Marcha, 40’16’’.
59

Figuras 35, 36, 37 e 38: Ventura deambula pelo silencioso Museu Calouste Gulbenkian.

Posteriormente, Ventura se encontra já parado, em primeiro plano diagonal, em frente a um


Busto de Luís XIV. Ele desvia seu olhar do chão para o canto direito do quadro, onde parece
encontrar, no plano seguinte, o segurança lhe devolvendo a mirada para o canto esquerdo do
plano, ao lado de um fragmento de Retrato de Monsieur e Madame Thomas Germain (1736),
de Nicolas de Largillierre, que é recortado pelas sombras e pelas bordas do enquadramento81.
Uma elipse revela o protagonista sentado, agora, sobre um assento de canto em um canapé
francês do séc. XVIII. No fundo da imagem, um barômetro-termômetro do mesmo século é
exposto sobre a parede. Ambas as peças decorativas são igualmente recortadas pela luz
pontual que lhes é apontada. O segurança surge em quadro, agora de costas para a câmera, e
coloca as mãos sobre a cintura em gesto de pantomima, demonstrando insatisfação. Ele
estende uma mão para Ventura, que a apanha para se levantar do sofá e abandonar,
novamente, o espaço do plano.
Compreendemos: Ventura é um intruso. O vigilante dir-lhe-á mais tarde: este museu
é um refúgio, longe da algazarra dos bairros populares e daqueles supermercados
onde ele antes tinha de proteger as mercadorias do roubo generalizado; é um mundo
antigo e tranquilo, perturbado apenas quando por acaso aparece ali alguém do
mundo deles os dois. Isso já Ventura confirmara com a sua atitude, deixando-se
levar sem resistência para fora da sala e depois para fora do próprio museu, pela
escada de serviço, mas também já com o seu olhar, perscrutando um enigmático

81
É curioso notar que a posição do ourives Thomas Germain, na pintura, está invertida (originalmente, ela
pertence à esquerda do quadro, e no plano de Pedro Costa ela encontra-se no lado direito); muito possivelmente,
o cineasta espelhou o plano durante o processo de montagem para que houvesse este raccord de olhares entre
Ventura e o segurança.
60

ponto, aparentemente situado bem acima dos quadros. A política do episódio seria
lembrar-nos que os prazeres da arte não são para os proletários, mais precisamente
ainda que os museus estão fechados aos operários que os construíram82.

O guarda acompanha o indesejado visitante até a saída de serviço do museu, através de um


corredor ruidoso, pousando a mão sobre seu ombro e lhe guiando como a um prisioneiro. As
garras da higienização social expulsam arbitrariamente o homem que um dia construiu as
paredes daquele espaço e que inclusive ali se acidentou – para Rancière, sobre o olhar de
Ventura para o teto “poderíamos pensar que visa já em pensamentos o andaime donde caiu”83.
As molduras do museu, para o autor, não são exclusivas aos quadros: o espaço mesmo é
emoldurado na medida em que encerra transparências e reciprocidades, tornando-se reduto de
uma “arte avarenta”, que “se exclui o trabalhador que o construiu, é porque exclui o que vive
de deslocações e de trocas: a luz, as formas e as cores cambiantes ou o rumor do mundo, da
mesma maneira que os trabalhadores vindos das ilhas de Cabo Verde” 84. Rancière argumenta
que o museu não abriga a riqueza sensível da experiência da vida, encontrável, por exemplo,
na sequência em que Ventura e sua “filha” Bete observam as paredes gastas do barraco nas
Fontainhas e distinguem em ranhuras e mofos figuras como leões ou homens com rabo85. Este
tipo de experiência não existe nas paredes brancas do Casal da Boba e menos ainda nas
sombras profundas do museu.

Mas nem só de “luz, formas ou cores” se faz o universo do filme, e Rancière o sabe quando
inclui também “o rumor do mundo” como parte integrante da experiência sensível da vida. As
salas espaçosas e vazias do museu, afundadas na mais profunda escuridão, acompanham o
silêncio quase absoluto que permite ouvir os passos que se aproximam e distanciam. Este
silêncio, compartilhado com o espaço da Boba, revela-nos que da carência de tumulto sonoro
o universo mortificou-se, tornou-se mesquinho, converteu-se em espaço de indiferença e não
pertencimento. A positividade discursiva do silêncio, neste caso, equivale à recusa de toda
vida. Os ruídos das Fontainhas, ao contrário, são consequência de movimento, deslocação,
transitoriedade – em outras palavras, eles são efeito da vida mesma, sem a qual nada se
moveria. A algazarra, tão indesejada no espaço do museu, é o sintoma de que há algo que
pulsa e mantém o mundo vivente. Se nas Fontainhas é possível entrever “figuras fantásticas
desenhadas” nas paredes manchadas, diríamos que ali é admissível também ouvir vibrações
que demonstram a existência de uma comunidade que resiste ao esfacelamento, vigorosa e

82
RANCIÈRE, 2009, p. 56
83
Ibidem, p. 58.
84
Ibidem, p. 57-58.
85
Juventude em Marcha, 111’18’’.
61

corajosamente. Por outro lado, estes ruídos nem sempre manifestam a presença da vida,
podendo mesmo indicar a proximidade da morte. É o que constataremos no próximo capítulo.
Capítulo II – Os sons acusmáticos

“Dá-me uns nervos esse barulho”


Vanda Duarte sobre o ruído das máquinas
Michel Chion definiu o som acusmático como aquele que, apesar de ouvido, não é visualizado
em sua fonte ou causa1. A escuta ou condição acusmática foi abordada, enquanto fenômeno
acústico, por uma longa tradição teórica que remonta a autores como Pierre Schaeffer e
Jérôme Peignot. Mais recentemente, autores como Slavoj Žižek, Mladen Dolar, Carolyn
Abbate e Brian Kane também se dedicaram ao tema. A opção pelo termo acusmático, no
presente trabalho, não implicará na explicação detalhada da história deste conceito, uma vez
que não é de nossa alçada a revisão dos quadros teóricos que o instituíram. É imperativo, no
entanto, que resgatemos algumas das proposições de Chion na intenção de compreendermos
as qualidades deste som. O oposto do som acusmático, segundo o autor, seria o som
“visualizado”, em que sua escuta é acompanhada pela imagem da fonte ou causa que o
originou2.

A gramática usual dos profissionais de cinema prescreve a expressão “som fora de


quadro/campo” para se referir ao que se descreve como som acusmático. Em muitos casos,
termos como in, off ou over também são utilizados como ferramentas de análise do som no
cinema. No presente trabalho, entretanto, optamos por utilizar a noção de acusmatismo, o que
responde a uma problemática conceitual e metodológica. Para Christian Metz, por exemplo, o
som nunca está off, pois “ou ele é audível ou ele não existe”3. Uma questão se esboça: na
medida em que o som se propaga no espaço, não se situando ou se restringindo ao retângulo
que compõe o plano cinematográfico, seria possível descrevê-lo em função da imagem? O
problema, segundo Metz, diz respeito a uma cultura em que demasiada atenção é depositada
sobre o visual em detrimento do audível: quando ouvimos um som, imediatamente nos
perguntamos sobre sua origem, i.e, sobre o objeto visual que o ocasionou, de forma que os
ruídos deixam de ser classificados de acordo com suas propriedades para serem categorizados
a partir dos objetos que os produzem. Tal hipótese é igualmente sustentada por Michel Chion:
(...) entre o som e a imagem há uma diferença fundamental de estatuto, a imagem é,
em geral, associada à coisa mesma enquanto o som é percebido e nomeado como o
som de alguma coisa, como uma emanação e não como a coisa mesma. Além disso,
na escuta que praticamos diariamente, nossa relação com os sons não consiste em
ouvi-los eles mesmos, mas a interpretá-los por um ato automático para ir além deles,
seja ao seu sentido – se se trata de uma linguagem humana, de um código –, seja a

1
CHION, 1999, p. 18.
2
Ibidem, p. 72.
3
METZ, 1977, p. 157-158, tradução nossa. “(...) ou bien il est audible, ou bien il n’existe pas”.
63

sua causa. A forma dos sons, a matéria dos sons, a densidade, os volumes dos sons
eles mesmos, é algo que existe para nós, nós o percebemos, mas nunca o nomeamos
e imediatamente o interpretamos4.

A busca consciente ou inconsciente pela imagem (física, mental) do objeto que ocasionou
determinado som, como praticado comumente, influencia a maneira como se categoriza os
meandros gramaticais da análise cinematográfica. Em outras palavras, o léxico com o qual
descrevemos os processos do cinema se desdobra em função daquilo que o olhar apreende,
enquanto ao som, por exemplo, resta a conceituação que sobra, à margem, da imagem. In, off
e over, porquanto se referem às relações entre os sons com a imagem, são termos que
respondem a uma hierarquia (o som off, por exemplo, constituindo-se primeiramente como
ausência na imagem). Serge Daney (2007), em texto que aborda esta suposta hierarquização,
identifica impasses estruturais e lexicais na discussão sobre som no cinema, apoiando-se em
Robert Bresson para refletir sobre novas perspectivas de vocabulário – e se o cineasta francês
desponta como centelha para a questão que interessa ao autor, é porque explorou
incansavelmente as potencialidades do som cuja origem não é visível na imagem – ou seja, as
potencialidades do som acusmático.

Para Daney, a inversão possível dessa abordagem se entrevê na condição de análise do som
(ou da voz, no caso específico do autor) através de “seu efeito na ou sobre a imagem”5.
Quatro são os tipos de voz elencados pelo autor, os quais nós podemos estender aos demais
elementos da banda sonora: uma voz off equivaleria, em gênero, ao que se costuma ser
referido como voz over – “aquela que é sempre paralela ao desfile das imagens, e que não a
recorta jamais”6. A voz é tornada instrumento de indução, dirigindo-se ao espectador, aliando-
se a ele, sem encontrar, no entanto, “impacto mensurável” sobre as imagens. Geralmente
incluída no processo de pós-produção, ela revela uma ausência de relação imediata entre o
que se vê e o que se ouve, atuando como convenção expressiva, por exemplo, nos filmes de
Jean-Luc Godard. Quando a voz, permanecendo alhures do campo visual, passa a ser marca
de intromissão e de intervenção diretas sobre o espaço visual do quadro, ela torna-se voz in:

4
CHION, 1988, p. 138, tradução nossa. “(...) il y a entre le son et l’image une différence fondamentale de statut,
c’est que l’image est en général associée à la chose même tandis que le son est perçu, nommé comme le son de
quelque chose, comme une émanation et non comme la chose elle-même. D’autre part, dans l’écoute que nous
pratiquons tous les jours, notre rapport avec les sons ne consiste pas à les écouter pour eux-mêmes, mais à les
interpreter par un acter automatique pour aller au-delà d’eux, soit à leur sens – si c’est un langage humain, un
code –, soit à leur cause. La forme des sons, la matière des sons, la densité, les volumes, des sons en eux-mêmes,
c’est quelque chose qui existe pour nous, nous le percevons, mais nous ne le nommons jamais et tout de suite
l’interprétons”.
5
DANEY, 2007, p. 196.
6
Ibidem.
64

em linguagem simplificadora, trata-se da voz diegética cuja origem física não habita a
superfície do plano. Esta voz, cujo efeito ocorre – como seremos capazes de constatar – com
alguns sons acusmáticos nos filmes de Pedro Costa, será capaz de “interromper uma imagem,
golpear um rosto, um corpo, provocar a aparição furtiva ou durável de uma reação, de uma
resposta”7. O que Daney prescreve como voz off e voz in, finalmente, apontam para o
fenômeno mais amplo da voz acusmática, mesmo que o autor não utilize este termo.

As outras duas vozes correspondem àquilo que Chion define como “vozes visualizadas” – a
fonte emissora sendo visível na imagem. Empregando um arsenal teórico psicanalítico, Daney
diferencia a voz enunciada por uma boca (voz out) e aquela proferida por um corpo (voz
through): a primeira conserva-se sob o signo do espetáculo, do fetiche da sincronia entre voz
e lábios visíveis, enquanto a segunda separa a voz de seu emissor originário (boca) e a aloca
no resto do corpo. Presença incontornável no cinema moderno e nos filmes de Pedro Costa, a
voz through se manifesta, por exemplo, em enquadramentos inusitados em que os emissores
se encontram, por exemplo, de costas no interior do quadro – é o caso do célebre travelling da
carroça em Da Nuvem à Resistência (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1980), em que
Édipo e Tirésias conversam um longo diálogo inteiramente de costas para a câmera. Também
Bresson, ao despedaçar o corpo de seus atores (ou modelos, como gostava de se lhes referir),
ao fragmentá-los em planos próximos, omitindo da imagem os lábios que falam, faz da voz
uma espécie de sombra, cujo duplo visual não corresponde ao emissor originário: a voz se
distingue da boca e encontra o conjunto do corpo – o duplo visual da voz passa a ser “o corpo
em sua opacidade, o corpo expressivo, inteiro ou aos pedaços”8.

Figuras 1 e 2: O corpo humano recortado em O Dinheiro (Robert Bresson, 1983) e as personagens de costas para a câmera
em Da Nuvem à Resistência.

7
DANEY, 2007, p. 197.
8
Ibidem, p. 199.
65

Através do cunho da voz in, Daney antecipa em alguns anos as ideias desenvolvidas por
Chion a respeito do acousmêtre (neologismo composto de “acousmatique” e “être”)9, esta
entidade cuja presença física é mantida fora de quadro, mas cuja voz percorre a imagem10.
Também Chion é crítico ao termo off tal como geralmente empregado. Uma voz cuja origem
não se encontra visível em quadro não impede, segundo o autor, que sua presença sonora
preencha o campo visual. É esta a essência do acousmêtre, cuja voz desliza pela superfície da
imagem, a uma só vez dentro e fora dela, “buscando um lugar para se estabelecer”11. Ele não
ocupa a mesma posição que o comentador (ou narrador), aquele advindo da tradição da
lanterna mágica, porque está sempre com “um pé na imagem, no espaço do filme”12. Assim, o
acousmêtre assombra as bordas da imagem, questionando as definições de dentro e fora,
atuando em um espaço inominável.

Poderíamos, enfim, concordar com Mary Ann Doane, que prescinde da necessidade de uma
nova terminologia “para descrever a honra e a autonomia de uma determinada matéria
sensorial”, uma vez que, “sendo verdade que o som é quase sempre discutido em relação à
imagem, não se pode concluir automaticamente que o som é seu subordinado”13. A autora tem
razão em sua ressalva, mas o ponto da discussão, em nosso caso, não reside na subordinação
final do som à imagem, ou seja, no efeito produzido pela relação dialética de ambos, mas no
vocabulário anterior que é empregado para se referir aos elementos discursivos do filme. A
pretensa hierarquização da imagem aclimata um léxico que bem lhe satisfaz, mas não impede
que, no momento decisivo da projeção, um som adquira proeminência sobre a imagem. A
utilização do termo “acusmático”, portanto, tem o sentido de um passo para trás, de uma
reflexão mais ampla sobre os instrumentos e métodos que nos guiam diante da análise do som
no cinema, não pretendendo demonstrar relações de subordinação do som à imagem no tecido
fílmico em si.

9
O texto de Daney, chamado “O órgão e o aspirador (Bresson, o diabo, a voz off e alguns outros)”, disponível na
coletânea A Rampa (2007), foi publicado pela primeira vez em 1977, enquanto o livro de Michel Chion, La voix
au cinéma, data sua primeira publicação de 1982.
10
Exemplo canônico do acousmêtre é a mãe de Norman Bates em Psicose (Alfred Hitchcock, 1960).
11
CHION, 1999, p. 23. “(...) seeking a place to settle”.
12
Ibidem, p. 24. “(...) one foot in the image, in the space of the film”.
13
DOANE, 2018, p. 377.
66

Figura 3: Zita Duarte (esq.) e Vanda Duarte (dir.) se drogam no quarto exíguo nas Fontainhas.

1. Da destruição à resistência

Em certa medida, No Quarto da Vanda começa onde Ossos termina. Ao fechar a porta sobre o
espectador, Tina mantinha em suspenso a violência que atingia o bairro – não apenas a
hostilidade partilhada entre seus habitantes, que se matavam uns aos outros por ciúmes ou por
vingança, mas igualmente a ferocidade da droga, que consumia seus corpos e os zumbificava.
O gás de cozinha que quase matou a mãe e que possivelmente matou o Pai era como a droga
que se alastrava pelos cantos recônditos do bairro, anunciando sua presença dolorosa em
corpos esfacelados14. O primeiro plano de No Quarto da Vanda, pois, revela as irmãs Vanda e
Zita (não mais as personagens ficcionais do filme anterior) fumando heroína, em plano
conjunto, no interior de um quarto estreito e mobiliado com uma cama de casal e um criado
mudo. A mesma droga que era apenas sugerida, porquanto ausente, no filme anterior, agora
existe plenamente na imagem.

As tosses insistentes de Vanda, as discussões entre as irmãs, os ruídos do papel alumínio e as


vozes provenientes do extracampo compõem parte da banda sonora deste plano inicial, que é
também pontuado por uma canção extremamente singular, cuja origem parece ser um rádio
nas proximidades das bordas do quadro. “Il est mort le soleil”, composição de Pierre Delanoë
e Hubert Giraud, interpretada pela cantora francesa Nicoletta, aborda o tema da separação de
um casal, versando sobre os dias belos que acabaram e a sombra que se instalou no seio de
uma vida: o sol morreu e, com ele, a alma se tornou cinza. Sobre o filme, Pedro Costa afirma:
“Depois revelou-se que o filme, muito pelo som, aliás, falava do fim de um local. Não o fim

14
Pedro Costa (apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 39): “No Ossos, sente-se que o ar está contaminado: o gás
que circulava era uma pequena metáfora da droga”.
67

do mundo, mas de um local geograficamente concreto”15. Se a canção inicial reflete sobre o


fim de um tempo, No Quarto da Vanda o faz sobre a morte de um bairro.

Na introdução do presente trabalho, fizemos menção ao método de produção introduzido a


partir de No Quarto da Vanda. Para este filme, Pedro Costa registrou o cotidiano do bairro
das Fontainhas, e em especial o dia a dia de Vanda, carregando consigo um tripé, uma
Panasonic DVX100 e um microfone. A virada do século reservava ao bairro, no entanto, um
destino trágico: britadeiras e escavadeiras o colocariam abaixo para a construção de uma
autoestrada. Pedro Costa captou em sons e imagens este momento de destruição das casas, do
comércio e dos corredores labirínticos das Fontainhas. O primeiro plano do filme descortina o
princípio de contemplação que o concebe, observando frontalmente, em um espaço fechado,
as duas mulheres que revezam o trago rotineiro da heroína. O trabalho com atores não
profissionais persiste, mas a noção de personagem é finalmente diluída. As figuras do bairro
passam a representar a si próprias, encenar os seus dramas, conjurar as suas memórias e
contar as suas histórias.

O avanço das máquinas, apesar de visualizado ocasionalmente nas imagens, surge como um
ruído acusmático constante. A demolição habita as proximidades das casas, põe-se a trabalhar
incansavelmente e ameaça os moradores que, em determinado momento, verão também o seu
teto desabar diante de seus olhos e ouvidos. Os sons estrondosos e violentos penetram o
interior das casas de forma brutal. Há uma dimensão de ameaça progressiva que é
fundamentalmente sonora, conjurada através dos sons acusmáticos. A intenção deste capítulo,
neste sentido, é analisar as formas com que os sons provenientes de origens não visualizáveis
potencializam determinadas ideias que tomam corpo na integridade dos filmes. Para tanto,
centraremos nosso estudo em No Quarto da Vanda, sem abdicar de análises de Ossos e
Juventude em Marcha.

15
COSTA, P. Segunda entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 06 de julho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “B” desta dissertação].
68

Figura 4: O bairro das Fontainhas é demolido pela ação de uma retroescavadeira.

No cinema, segundo Chion, duas são as possibilidades de trajetória para o som acusmático: ou
sua fonte é visualizada, primeiro, e depois ele é acusmatizado, fazendo-se esconder sua
origem, ou o contrário. A primeira opção decorre em um som “identificado com uma imagem,
desmitologizado, classificado”16, enquanto a segunda mantém em suspenso a natureza ou a
causa do acusmático – sendo, portanto, frequentemente utilizada em filmes de mistério. Em
M, O Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), por exemplo, “pelo máximo de tempo
possível, o filme esconde a aparência física do assassino de crianças, ainda que escutemos sua
voz e seu assobio maníaco desde o início”17. Em No Quarto da Vanda, a operação é outra,
mais próxima da primeira trajetória: os tratores ou pedreiros que demolem o bairro, bem como
os tijolos que desabam sobre o chão das Fontainhas, aparecem constantemente na imagem. Os
sons acusmáticos que deles decorrem, mais do que mistérios mantidos em suspenso, são
“classificados” como fatos brutos e ameaçadores de uma realidade demasiado concreta.

Através de cortes secos – pois “quase todos os cortes deste filme são abruptos”18 –, a
montagem intercala sequências em quartos, casas e esquinas, em que pessoas conversam ou
figuras se refugiam em seus próprios pensamentos, e sequências em que nos é dado a ver o
bairro sendo demolido. A alternância entre planos dos habitantes e planos da atuação
penetrante das máquinas ou dos homens que destroem aquele espaço é uma estratégia
recorrente. Do choque destas imagens resulta a sensação de violência permanente que agride
o bairro. Por outro lado, quando os sons da destruição são acusmatizados, i.e, quando eles se
tornam ruídos constantes cuja emissão nós não visualizamos em quadro, eles adquirem uma
expressividade igualmente potente, porque se convertem em sombras que pairam insistentes
sobre os intervalos de sociabilidade dos moradores. No caso, os ruídos se tornam uma

16
CHION, 1994, p. 72. “(...) identified with an image, demythologized, classified”.
17
Ibidem. “(...) for as long as possible the film conceals the physical appearance of the child-murderer, even
though we hear his voice and his maniacal whistling from the very beginning”.
18
BÉNARD DA COSTA, 2009, p. 179.
69

presença sonora inescapável, persecutória e irremediável, que os instantes de intimidade dos


habitantes não conseguem anular19. Se lembrarmos do acousmêtre de Chion, cuja voz desliza
sobre a imagem tentando fincar raízes, esses ruídos se tornam ainda mais ameaçadores:
“buscar um lugar para se estabelecer”, no caso, é sinônimo para a ocupação daquelas casas
por máquinas e tratores. Não estamos distantes, portanto, do ser acusmático anunciado pelo
teórico francês; entretanto, mais do que um ser (être), o que se manifesta em nossos ouvidos é
uma coisa: o som de um bairro a ruir, de máquinas e de tetos desabando, martelos malhando
janelas, escavadeiras avançando sobre paredes, tijolos encontrando o cimento do solo.
Ouvimos menos a ação de um acousmêtre do que o gesto devastador de uma matéria invisível
e aterradora, um aparelho penetrante e corrosivo - em outras palavras, uma espécie de ente
acusmático de que não se pode esquivar.

Figuras 5 e 6: A montagem de No Quarto da Vanda intercala momentos de sociabilização (esq.) e imagens da destruição do
bairro (dir.).

Para Jean-Louis Comolli, No Quarto da Vanda é um filme clivado, composto por dois filmes
“que se cruzam, mas se distinguem um do outro”20: haveria o filme de Vanda, constituído
pelas cenas no quarto (que ele chama de câmara mortuária) e o filme das Fontainhas, isto é,
do pequeno universo para além deste quarto. É de se pesar que a o caráter dual do filme não
se restringe à oposição destes dois espaços: também se constata a clivagem entre homens e
mulheres, como se um universo masculino se opusesse ao universo feminino e vice-versa,
entre um antes e um depois, tal como sugerido pelas casas que primeiro vemos em pé e depois

19
“Há sobretudo em No quarto da Vanda momentos em que o ruído das máquinas que estão a proceder à
demolição do bairro se sobrepõe, ganha um maior volume e importância no plano, que invade, o que permite que
o meio, visível ou não, se imponha aos personagens e imponha a ideia de violação e de violência – em especial
quando se trata de ruídos estridentes” (FERREIRA, 2018, p. 26).
20
COMOLLI, 2012, p. 304, tradução nossa. “Qui se croisent mais se distinguent l’un de l’autre”.
70

demolidas, entre outros21. Para já, a divisão operada por Comolli imputa ao som uma função
decisiva:
A imagem, como dissemos, não é tão devastadora quanto o som. É, pois, pela banda
sonora que os “dois filmes” comunicam para se tornarem apenas um. No quarto, a
rua está presente como uma indestrutível trilha sonora de sua própria destruição.
Uma boa parte da extraordinária potência do filme se deve ao caráter obsedante,
assustador, desta banda sonora da ruína a trabalhar, que tomba, atordoa, causa
náusea. O bairro exausto concede uma alma às funções das máquinas e das pedras,
que amplificam, eco sinistro, os acessos de tosse e os papéis justamente de Vanda,
que berra nas portas da morte. Terrível concerto a duas vozes22.

O som, no caso, é o que une ambos universos. Os ruídos da destruição se propagam nas casas
na mesma medida em que as vozes das casas atingem os exteriores ocupados pelas máquinas.
É neste movimento que consiste o “concerto a duas vozes” a que se refere o autor, noção à
qual retornaremos adiante. Por agora, façamos um breve desvio pelas proposições de Thomas
Elsaesser (2018), que se questiona sobre as relações entre cinema, percepção e corpo humano,
dedicando parte de seus estudos ao ouvido e à escuta. O autor sustenta que de muitas maneiras
“somos mais suscetíveis ao som do que às percepções visuais, fato de que os filmes de terror
tiram proveito quando usam o som para evocar uma presença ameaçadora, mas ainda não
vista”23. Temos dificuldade em nos orientarmos no espaço através da informação auditiva cuja
origem não é visualizável no campo visual. Além disto, porque o som se reproduz no tempo,
não sendo possível fixá-lo em um instante ou enquadrá-lo em um frame, ele “nos faz lembrar
da irreversibilidade do tempo: ele significa perda e anuncia a morte – mais razão ainda, talvez,
para o som ser frequentemente associado ao perigo e ao medo”24.

No interior dessa associação do acusmático ao perigo e ao medo, que, por sua vez, ocorre
principalmente nos filmes de mistério, o som é propositadamente dissociado de sua fonte ou

21
“À urgência da situação – a destruição do bairro, a dissimulação de uma história – Pedro Costa escolhe opor a
calma das discussões entre amigos, a paciência da enunciação dos fatos, os tempos vazios, propícios à reflexão.
Aos planos da destruição do bairro, do apagamento dos traços da história de seus habitantes, o cineasta opõe os
planos desconcertantes das arquiteturas híbridas das Fontainhas onde se misturam materiais de Portugal e estilo
da África do Norte” (VOLTZENLOGEL, 2018, p. 140 – tradução nossa). No original: “À l’urgence de la
situation – la destruction du quartier, la dissimulation d’une histoire – Pedro Costa choisit d’opposer le calme des
discussions entre amis, la patience de l’énonciation des faits, les temps vides, propices à la reflexion. Aux plans
de destruction du quartier, d’effacement des traces de l’histoire de ses habitants, le cinéaste oppose les plans
dépaysants des architectures hybrides de Fontainhas où se mêlent matériau du Portugal et style d’Afrique du
Nord”.
22
COMOLLI, 2012, p. 306. “L’image, comme on dit, n’est pas aussi ravageuse que le son. C’est donc par la
bande-son que les ‘deux films’ communiquent pour n’en faire qu’un. Dans la chambre, la rue est présente en tant
qu’increvable bande son de sa destruction même. Une bonne part de l’extraordinaire puissance du filme tient au
caractère obsédant, effrayant, de cette bande-son de la ruine au travail, qui affale, assome, donne la nausée. Le
quartier épuisé rend l’âme dans le rôles des machines et des pierres, qui amplifient, sinistre écho, les quintes de
toux et les rôles justement de Vanda qui s’époumone aux ports de la mort. Épouvantable concert à deux voix”.
23
ELSAESSER, 2018, p. 163.
24
Ibidem, p. 164.
71

origem por um longo período de tempo. Em No Quarto da Vanda, como pontuamos


anteriormente, a operação de montagem é outra, constantemente revelando na imagem os
tratores, as britadeiras, os martelos e as escavadeiras. Neste caso, os ruídos não simplesmente
se associam às sensações de perigo e medo: eles constituem o próprio âmago dessas
sensações, ou seja, a ideia de ameaça, mais do que sugerida, é tornada existência manifesta,
concreta e retumbante – seja ela apenas escutada ou também visualizada.

Em outra chave, no entanto, nada toca de forma mais sensível e exata a violência que esses
ruídos encerram quanto a ideia de irreversibilidade do tempo entrevista por Elsaesser. No
período referente aos 170 minutos de filme, a ressonância insistente das marteladas, dos
solapamentos, das perfurações, dos carregamentos de terra e demais sons da demolição, nos
recorda que o fim das Fontainhas é um percurso irrefreável no tempo. “Este barulho me dá
nos nervos”, diz Vanda a certa altura do filme. Quanto mais escutamos aos sons da destruição,
mais nos aproximamos da morte inevitável do bairro. Esta dimensão, aliás, é substancialmente
potencializada pela duração dos planos, que tendem à dilatação. O plano longo, que nos
permite uma contemplação maior dos elementos da imagem, igualmente nos auxilia a
perceber os sons acusmáticos e sua ação no tempo da experiência cotidiana do bairro.
Esse gesto lento da morte é evidentemente o tempo que passa e que dura, é a
duração mesma na qual Vanda se encontra enclausurada (...). Para ela sozinha, ela
recusa toda evolução; não haverá nem remédio nem progresso, nem terapia nem
salvamento. Insolência da indiferença, intolerável da ausência de demanda. À
câmera, Vanda pede apenas o que ela é: máquina. Ao cinema, gravar, isto é, contar
os tempos. (Eu relembro a qual ponto uma câmera é vizinha de um cronômetro:
vinte e quatro imagens por segundo é antes de tudo uma medida de tempo)25.

Enquanto em No Quarto da Vanda os ruídos acusmáticos da demolição são dados de uma


matéria bruta e visualizável, em Juventude em Marcha alguns sons acusmáticos são, estes
sim, associados às sensações de angústia e medo. O último filme da trilogia “oscila” entre um
tempo presente – em que Ventura perambula pelo complexo habitacional da Boba e pelos
resquícios das Fontainhas – e um tempo “passado” em que o protagonista retorna ao contexto
da Revolução dos Cravos. O salto ao passado, que não opera exatamente como um flashback,
reserva à dimensão sonora uma função primordial: o 25 de Abril de 1974, data da Revolução,
é resgatado, sobretudo, como som, pois suas manifestações são sugeridas apenas pelos ruídos

25
COMOLLI, 2004, p. 628, tradução nossa. “Ce gest lent de la mort, c’est évidamment le temps qui passe et qui
dure, c’est la durée même dans laquelle Vanda se trouve enfermée (...). À elle seule, elle recuse toute évolution;
il n’y aura ni remède ni progrès, ni thérapie ni sauvetage. Insolence de l’indifférence, intolérable de l’absence de
demande. À la caméra, Vanda ne demande que ce qu’elle est: machine. Au cinéma, d’enregistrer, c’est-à-dire
compter les temps. (Je rappelle à quel point une caméra est voisin d’un chronomètre: vingt-quatre images par
seconde, c’est avant tout une mesure du temps)”.
72

acusmáticos que deslizam sobre as imagens. Se estes ruídos correspondem aos sentimentos de
angústia e medo, no caso da parte de Ventura e de outros imigrantes cabo-verdianos, é porque
foram essas as sensações experimentadas por eles na ocasião. Reclusos em suas barracas,
temerosos pelo que lhes chegavam aos ouvidos das ruas da capital, sofriam pela incerteza do
futuro, pelo medo da deportação ou da prisão.

Esse pesadelo inquietante da Revolução, que a noite mais escura faz desabar sobre homens e
mulheres cabo-verdianos consumidos pela ansiedade, pela dúvida e pelo pavor é um dos
temas fundamentais de Cavalo Dinheiro, o longa-metragem seguinte. Duas cenas com
Ventura e Lento em Juventude em Marcha, entretanto, já representam essa “história não
oficial” do 25 de Abril. Em ambas, os ruídos acusmáticos dos protestos são insinuados na
banda sonora: gritos e buzinas distantes reverberam. Segundo Pedro Costa, trata-se de sons
documentais, históricos, pertencentes àquele contexto e “gravados à altura”26. Na primeira
dessas cenas, os dois homens se encontram sentados sobre o banco de um parque e Ventura se
demonstra atento aos sons que, muito subterraneamente, se distribuem igualmente na trilha de
som – os gritos por vezes se sobrepõem às buzinas e vice-versa, mas os ruídos, em geral,
correm paralelos uns aos outros27.

Quando é noite, ambos se refugiam em sua barraca e, ouvindo aos sons acusmáticos das
manifestações, tampam a janela com tábuas de madeira28. “Justo quando as coisas
melhoravam para nós, surge essa confusão de golpe”, diz Lento. “Soldados por toda parte,
com fome de briga, em seus tanques, pedindo documento de toda gente”. O som da
manifestação, agora constituído basicamente por buzinas distantes, é sutilmente tornado mais
proeminente em dado momento da cena, levando Ventura a colocar as mãos sobre a cabeça.
“Venha escutar a carta, Lento”, ele diz. Sua ideia, possivelmente, é recitar a carta para, ao
fazê-lo, sobrepor sua voz aos ruídos dos protestos, mas Lento lhe responde que agora isto será
inútil: os correios estão fechados e a carta nunca chegará a Cabo Verde. O gesto de Lento,
então, consiste em pregar uma placa na janela, fazendo com que o ruído seco do martelo na
madeira se junte ao cão que late nas proximidades da barraca e às buzinas que ecoam longe.

26
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “B”.
27
Juventude em Marcha, 106’24’’.
28
Juventude em Marcha, 106’46’’.
73

Figuras 7 e 8: A escuta atenta dos sons acusmáticos da Revolução (esq.) e a reclusão na barraca primordial (dir.).

Diferentemente do que ocorre em Cavalo Dinheiro, nunca vemos, na imagem, os tanques que
se apropriavam das ruas de Lisboa. Também não vemos manifestantes, bandeiras ou carros –
apenas os escutamos. Que estes ruídos aterrorizem e amedrontem Ventura e Lento, como
intimidaram os imigrantes cabo-verdianos que observaram, de longe, o movimento
revolucionário, escondidos em suas barracas, é uma disposição que é notadamente reforçada
pela condição acusmática da escuta. Não obstante sua origem fora de quadro, não visualizada,
os sons da revolução surgem com pouca amplitude, quase imperceptíveis, o que lhes confere
um estatuto fantasmático que é indissociável das memórias distantes que os evocam. Ventura
é como “um fantasma da história”29, resgatando – junto de Pedro Costa, outra figura que
viveu aquele período, mas de forma completamente oposta (pois estava ele no meio dos
manifestantes) – as reminiscências do processo histórico. As relações entre Ventura e a
Revolução serão rediscutidas no próximo capítulo, de forma que, por enquanto, é preciso
somente reforçar o acusmatismo da Revolução sonora e seus efeitos nos homens e
espectadores que a escutam.

Em No Quarto da Vanda, salvo nos momentos em que as máquinas cessam temporariamente


suas atividades, os que logram uma comunicação naquele cenário de som e fúria o fazem
principalmente pela projeção exacerbada da voz, o que tem por consequência a proeminência
de vozes acusmáticas na banda sonora. O som direto, que não escapa à captação dos fortes
ruídos da demolição, acaba por captar igualmente esses gritos que fervem vivamente no
ambiente acústico do bairro. Neste sentido, as vozes acusmáticas parecem mesmo rivalizar,
em certas ocasiões, com os ruídos acusmáticos das máquinas, de forma que outro embate se
configura no interior do filme: os sons dos tratores ou das escavadeiras, por exemplo, podem

29
HASUMI, 2009, p. 144.
74

coincidir com o alarido de vozes da vizinhança e competir com estes pelo espaço derradeiro
na trilha de som. Retornamos ao “concerto de duas vozes” entrevisto (ouvido) por Comolli. É
verdade que por vezes escutamos somente as britadeiras e por vezes apenas as vozes distantes
que se acumulam nas camadas sonoras do bairro, no interior de um esquema de montagem de
som como aquele da imagem, mas mesmo esta alternância é constitutiva de um conflito sobre
quem (ou o quê) deterá o “som final”.

Não é admissível, então, que pensemos nessas vozes acusmáticas como instrumento de
resistência? Não a resistência arquitetada, planejada ou racionalizada, mas a reação intuitiva
ou lógica daqueles que gritam porque, conscientemente ou não, entendem que esta é a forma
possível de comunicação. Se pensarmos no vocabulário de Daney, que define a voz in como
aquela sonoridade acusmática que “golpeia um rosto” e “provoca a aparição de uma
resposta”, talvez decorramos na hipótese de que o grito é a resposta para este som in da
demolição. Em Ossos, o mutismo era significado e significante de um mal-estar que acometia
as personagens e lhes dificultava a expressão; em No Quarto da Vanda, esta dificuldade
parece superada, em termos quase inversamente proporcionais, pelo volume excessivo dos
diálogos. O sentido principal das vozes no extracampo, em geral, é o mesmo em ambos os
filmes: elas não só conferem ao bairro uma existência mais ampla, que excede os limites do
enquadramento, como também tensionam as noções de público e privado30. Em No Quarto da
Vanda, no entanto, essas vozes adquirem uma nova qualidade propositiva, despontando como
matérias de objeção à força destrutiva que envereda pelas ruelas do bairro.

30
Em Ossos, a pluralidade de vozes que invadem a casa das irmãs, bem como a já citada cena em que Maura
escuta o personagem cabo-verdiano flertar com a enfermeira, são sintomas de que a noção de privacidade perdeu
seu sentido social. Em No Quarto da Vanda, por exemplo, há uma cena em que Lena e Zita, mãe e filha,
despelam um coelho do lado de fora da casa onde vivem. Na banda sonora, entretanto, escutamos a discussão
entre Vanda e seu padrasto, a qual nós descobrimos depois se situar no quarto. Sobre este aspecto, Pedro Costa
(apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 123) afirma: “passa por aqui a ideia de um bairro onde é muito difícil
guardar um segredo entre quatro paredes. As portas e janelas estão sempre entreabertas e aquela gente tem bons
pulmões... O sentimento de intimidade é muito ténue. A fronteira entre o espaço público e o privado não chega a
existir. E, ao mesmo tempo, é um lugar propício aos grandes mistérios: suspeitas de tráfico de todos os tipos,
pactos de silêncio, complôs, crimes e dramas. São os subterrâneos de Doistoievski e ao mesmo tempo os bas-
fonds de Macau”.
75

Figura 9: Vanda durante a jornada de venda de legumes.

Vanda é aquela cuja voz reverbera mais fortemente nos espaços por onde transita. Nas cenas
em que vende couve ou alface, nos corredores do bairro, seus gritos penetram marcadamente
os interiores das casas. Em seu quarto, a projeção acentuada de sua voz é acompanhada de
tosses, pigarros e vômitos, os quais ao conceito de voz se somam caso pensemos nas “vozes
pré-linguísticas” abordadas por Mladen Dolar, manifestações fisiológicas, entre elas também
o suspiro, “que parecem ligar a voz a uma natureza animal”31. Há uma espécie de desmedida
em seus gestos acusmáticos, bem como uma intensidade vibrante no timbre de sua voz, que ao
mesmo tempo concordam e traem a vida excessiva e desregrada pautada pela droga. Isto para
dizer que, se Vanda é a protagonista do filme, as razões para seu destaque não devem ser
procuradas apenas no título e na quantidade de cenas em seu quarto: sua expressão, gestual ou
dialógica, compete como nenhuma outra com os ruídos acusmáticos que anunciam a
demolição do bairro. Segundo Pedro Costa, “Vanda ‘transborda’ por palavras, por sua
fotogenia, sua presença”, e quando o faz “é contra a morte”32. Este transbordamento é também
sonoro e, quando acusmatizado (como nas cenas de venda), rivaliza extraordinariamente com
os ruídos igualmente “transbordantes” das máquinas.

A intrusão da voz de Vanda nos espaços do bairro é recorrente, disposta em inúmeras cenas
ou planos em que seus gritos deslizam sobre imagens de outrem. Uma vez que seu trabalho
como vendedora implica em anunciar sua presença aos moradores das Fontainhas, a voz
proeminente é um instrumento necessário e habitual. Ocasionalmente ouvimos sua voz
mesmo quando ela não está comerciando couves – é o caso do plano emblemático de Geny33,

31
DOLAR, 2006, p. 23, tradução nossa. “which appear to tie the human voice to an animal nature”.
32
COSTA, 2007, p. 74, tradução nossa. “(...) quand ça ‘déborde’, c’est contre la mort. Vanda ‘déborde’ par des
mots, par sa photogénie, sa présence, sur le quartier, et le quartier ‘déborde’”.
33
No Quarto da Vanda, 18’25’’.
76

uma senhora silenciosa e intrigante que fuma na porta de sua casa e a qual, depois
descobrimos, morrerá (pois será assunto de conversa entre os habitantes). Vanda, cuja
presença no espaço é denunciada apenas pela voz, interage ou com ela ou com outra pessoa
fora de quadro. Estratégia igualmente presente, e talvez ainda mais interessante, é a inversão
desse painel, i.e, quando Vanda passeia pelos cenários do bairro (e pelo interior dos
enquadramentos) e se manifesta aos moradores que, fora de quadro, lhe respondem.

Na primeira vez em que Vanda sair para vender, por exemplo, na meia hora inicial do filme,
ela se dirige a pessoas que pertencem ao fora de campo34. Em uma das esquinas do bairro,
enquadrada de corpo inteiro, ela grita: “Nuno, quer couves?”, ao que uma voz acusmática lhe
responde: “Não, não!”. Ela agradece e abandona o plano. Depois, ela surge na porta de uma
casa, em plano americano, e pergunta: “Dona, quer alface ou couve?”. A voz acusmática de
uma mulher lhe diz: “Não, não tenho dinheiro!”. Novamente Vanda agradece e sai. Mais
adiante, no interior de um estabelecimento comercial, Vanda deixa sua cesta de legumes no
chão e se dirige a alguém que está atrás do balcão35. “Fátima, me dá um Martini, faz favor!”,
ela diz. Sua interlocutora, no entanto, é escondida por uma parede na esquerda do plano.
Ainda que escutemos uma voz lhe perguntando se ela quer copo ou garrafa, nunca vemos
Fátima. Já em meados do filme, a câmera, prostrada no interior de uma casa, revela uma porta
entreaberta para a rua. Vanda entra e se dirige a alguém cujo corpo não vemos porque está
encoberto, ele também, por uma parede no canto esquerdo do quadro. “Vai querer alface ou
couve?”, pergunta a protagonista, antes de pedir desculpas pelo cansaço e se sentar no sofá
próximo à porta. “Vai querer quanto?”. “Uma”, lhe responde a voz acusmática. Vanda entrega
a couve, agradece e vai embora, sem que sua interlocutora seja revelada na imagem.

O procedimento reflete uma disposição mais ampla do filme. Pensemos no plano em que
Pedro, o vendedor de flores, bebe em uma caneca de metal36. Quando ele termina, entrega a
caneca a alguém fora de quadro, à esquerda da câmera. “Obrigado, Dona”, diz ele docemente.
Também Nhurro, em suas andanças pelo bairro para vender a colher de prata que Paulo usava
“para comer iogurtes”, oferece o utensílio primeiro para Dona Gracinda, que não vemos na
imagem, e depois para Zinha, que se esconde no interior de um portão 37. Ainda que as vozes
acusmáticas dos interlocutores não estejam presentes nas três cenas, visto que ninguém

34
No Quarto da Vanda, 14’49’’.
35
No Quarto da Vanda, 46’32’’.
36
No Quarto da Vanda, 129’17’’.
37
No Quarto da Vanda, 122’03’’.
77

responde a Pedro ou Nhurro, é reveladora a maneira como se expande o bairro para além dos
limites impostos pelo plano. Quando não pertencem ao campo visual propriamente dito, os
habitantes das Fontainhas parecem sempre povoar as bordas ou áreas adjacentes da imagem,
em silêncio ou preenchendo-a com suas vozes, fazendo convergir vivências e alargando sem
limites, como uma força centrífuga, as imediações do bairro. Há um mundo além do quadro e
é preciso tangenciá-lo.

Em resumo, o fora de quadro (visual) é constantemente evocado quando se trata de construir


uma ideia espacial do bairro. A presença dos moradores pode ser tanto sugerida pela
movimentação das figuras no plano (o gesto de devolver a caneca de metal a alguém fora de
quadro, por exemplo) quanto pelas vozes acusmáticas que lhes correspondem. Tão importante
quanto as pessoas que falam em frente à câmera, nesse sentido, são aquelas que habitam as
margens do plano, pois estas comprovam que as vidas do bairro palpitam, vibram e
sobrevivem na vizinhança do enquadramento. Em equação semelhante, tão importante quanto
as máquinas tornadas visíveis no plano, para a sensação de ameaça, são os ruídos acusmáticos
de seu trabalho incansável. É por esta razão que descrevemos uma espécie de embate entre os
sons acusmáticos, nomeadamente entre aqueles provenientes dos moradores e aqueles
ocasionados pelas máquinas.

Essa tensão constante é representada de forma admirável em duas cenas. A primeira, um


plano geral, nos revela homens que, perfilados de costas para a câmera, observam a ação de
uma escavadeira38. Em primeiro plano sonoro, ouvimos a tração da máquina e os ruídos da
parede que ela faz desabar. Mais sutis são os ruídos acusmáticos das vozes, que nem por isto
se ausentam daquele palco de destruição. Está contida nessa combinação de som e imagem
uma pequena síntese dos movimentos do filme: homens e máquina convergem no plano e na
banda sonora, disputando os espaços que lhe são permitidos. A segunda cena, o último plano
do filme, mostra a ruína de uma casa39. Mantida em pé, verticalmente, como uma lápide, ela
se torna uma espécie de vestígio de um tempo passado. Ela resta e resiste ao movimento da
História. Entre os moradores que cruzam o plano, um deles se detém momentaneamente ao
lado da ruína e se apoia com a mão sobre ela: imagem potente que carrega consigo a relação
sensível entre o homem e seu espaço, ou mais especificamente entre o homem imigrante e a
casa que um dia construiu para morar em território estrangeiro.

38
No Quarto da Vanda, 55’06’’.
39
No Quarto da Vanda, 165’55’’.
78

Os sons acusmáticos, nesse plano final, são quase exclusivamente vocais e rompem
intensamente em primeiro plano sonoro: sobrepondo-se a um telefone pontual e aos ruídos de
alguém esfregando qualquer coisa nas imediações do enquadramento, homens, mulheres e
crianças conversam alhures no extracampo, distribuídos pelo bairro. Uma mulher em
específico se exalta nas proximidades, como se envolvida em uma discussão. Uma criança
chora e outra parece pedir algo a alguém. Antes do corte final para a tela escura, um riso
feminino acusmático. O Crioulo, língua sobre a qual nos deteremos no capítulo seguinte, é a
sonoridade de ordem. Todas estas vozes, dispersas com diferentes volumes, distâncias e
entonações, parecem percorrer todo o bairro para desaguar neste plano final. Se uma
comunidade é possível neste cenário de destruição, talvez ela exista nestas inúmeras vozes em
Crioulo que se interpenetram, entrecruzam, sobrepõem, somam e, enfim, se completam.
Vozes que expandem o quadro e sugerem que há um mundo não visível de muitos caminhos e
distâncias: busca-se a voz reverberada de uma criança longínqua, por exemplo, para que a
existência de um espaço mais amplo seja reafirmada. Neste plano derradeiro, a demolição
sossega momentaneamente para que vislumbremos, na imagem, a torre de babel que dela
resultou, enquanto as vozes acusmáticas se juntam à ruína como elemento que, restante e
resistente, sobrevive.

Figuras 10 e 11: Homens observam a ação das máquinas (esq.) e o plano final com a ruína de uma casa (dir.).

2. A odisseia das crianças

Façamos um pequeno parêntese para nos referirmos às crianças que povoam os filmes. Em No
Quarto da Vanda, os ruídos acusmáticos da demolição assumem protagonismo logo no início,
na sequência já descrita no capítulo anterior, em que Nhurro se banha na escuridão de uma
casa penumbrada. Ainda que não vejamos, na imagem, a origem desses ruídos, vislumbramos
a consequência de sua ação naquele espaço, notadamente manifestada pelos escombros que se
distribuem no chão. Também a luz que inunda os supostos “pillow-shots” da sequência sofre
79

modulações as quais supomos decorrentes do movimento dos homens que, no extracampo,


colocam abaixo as casas. Somente minutos depois se torna possível visualizar uma das fontes
sonoras desses ruídos: a câmera se instala em um dos corredores estreitos do bairro,
enquadrando, no fundo deste corredor e no último plano da imagem, pedaços de parede que
desabam e se empilham40. Crianças surgem no primeiro plano e caminham em profundidade
no sentido dos destroços, como se rumassem ao seu destino inevitável. Esta cena, como outras
neste e nos outros filmes, nos guiam em direção a um comentário breve sobre o peso que
adquire as presenças infantis no campo e no extracampo.

Nos três filmes que compõem a trilogia, as crianças surgem como figuras-chave. Há, na
figuração de seus corpos e olhares, um percurso que acompanha as mudanças introduzidas no
coração do bairro. Em Ossos, por exemplo, a pequena Maura, que cala a enfermeira no
hospital como se quisesse preservar determinado segredo corrosível da narrativa, protagoniza
duas sequências fundamentais. Na primeira delas, ela se prostra em frente a uma janela nas
Fontainhas e escuta os sussurros acusmáticos que são trocados, no interior da casa, entre o
marido cabo-verdiano de Clotilde e a enfermeira Eduarda Gomes41. “Esqueça Tina e
Clotilde...”, diz ele. “Elas não prestam, são duas cadelas... Você está magrinha, mas ainda me
dá apetite”. Clotilde surge no plano e retira Maura da frente da janela, evitando que ela
continue a ouvi-los. Minutos depois, no que parece o dia seguinte, Clotilde parte para
trabalhar sozinha, nos instantes que precedem o possível homicídio do Pai. Ao que ela abre a
porta da casa e sai, Maura surge na moldura do batente entreaberto, observando-a ir embora42.
Clotilde, no entanto, retorna ao plano e fecha a porta sobre a menina. Os dois gestos da
personagem mais velha remetem à ideia da porta fechada discutida no capítulo anterior: é
preciso velar das crianças aquele mundo perverso e violento, preservar sua inocência e
impedir sua passagem ao lado onde reina a violência, para citarmos Straub/Brecht 43.

40
No Quarto da Vanda, 09’16’’.
41
Ossos, 85’01’’.
42
Ossos, 87’24’’.
43
Não Reconciliados, ou só a Violência Ajuda onde a Violência Reina (1965), de Jean-Marie Straub, cujo título,
por sua vez, recorre a um aforismo de Bertold Brecht.
80

Figuras 12 e 13: Maura (esq.) observa algo fora de quadro até sua irmã Clotilde fechar a porta entreaberta (dir.).

Em No Quarto da Vanda, entretanto, não é mais possível interditar aos pequenos a violência
que acomete o bairro. As crianças passeiam sobre escombros qual o menino de Alemanha,
Ano Zero (Roberto Rossellini, 1948). Um dos planos que mais fascina o crítico português
João Bénard da Costa é aquele em que uma criança cabo-verdiana brinca na entrada de uma
casa onde vemos sentada, de costas para a câmera, uma senhora idosa sempre imóvel44.
Situada atrás desta mulher, a câmera revela a porta aberta para o exterior. No início do plano,
a criança não está em quadro: ela surge advinda das profundidades do bairro, para onde
retorna após alguns instantes na frente da casa. Seus passos curtos e balbucios infantis, por
vezes acusmatizados, por vezes visualizados, correm paralelos, na trilha de som, ao desfile de
vozes acusmáticas que invadem o plano – entre elas, a voz da própria Vanda vendendo couve.
A criança volta ao plano e começa a brincar com a pequena bicicleta que se encontra na
soleira da porta, ocasionando sons de buzina. “A brincadeira da criança é a sua resposta à
morte, o seu modo de chamar a avó à vida. O som da bicicleta é um dobre de finados e um
toque de alvorada”45. Em seu ir e vir, em sua aparição e desaparição da imagem, em sua
visualização e acusmatização sonora, a criança circula livremente, intrépida e obstinada,
abandonando não apenas as fronteiras do quadro como o próprio espaço da casa, rumo ao
mundo exterior adoecido. Clotilde, no caso, não está mais ali para lhe fechar a porta.

44
No Quarto da Vanda, 141’38’’.
45
BÉNARD DA COSTA, 2009, p. 180.
81

Figura 14: Uma criança brinca com a bicicleta enquanto uma senhora a observa.

Em outra cena, uma criança cabo-verdiana tenta estudar sentada na mesa da cozinha46. Ela lê
em voz alta o conteúdo de um papel, seguindo com seu dedo as linhas escritas. A algazarra de
vozes e ruídos acusmáticos é de tal forma acentuada que sequer distinguimos suas palavras. O
plano dura somente alguns segundos, mas a força conjurada entre o esforço de concentração
da menina e o alarido intenso concebe para a cena uma dimensão homérica. No Quarto da
Vanda é também uma odisseia sobre esta menina, ou sobre essas crianças, que sobrevivem e
resistem ao esfacelamento do bairro com seus gestos e olhares inocentes. Sobre este plano
específico, Pedro Costa ressaltou:
(...) a experiência lá do bairro, e em geral daquele mundo, é muito sonora, no sentido
de que as pessoas falam alto. Podem não falar muito – eu diria que se fala pouco e
rarefeito ou muito e em torrentes. E as pessoas entendem-se, compreendem-se e
ouvem-se resistindo às maiores dificuldades, ou seja, podem estar a falar com o
maior ruído possível, de música ou de outra coisa qualquer. Por exemplo, durante a
demolição do bairro, aquilo era incrível: falavam-se aos gritos, todos os dias, dentro
das casas... E a certa altura toda a gente se percebia. Há uma cena em No Quarto da
Vanda precisamente sobre isto. Depois ela foi-me explicada por um tipo do bairro;
eu sequer tinha percebido que filmei isto. É uma miúda de seis ou setes anos, que
está a aprender a ler, a fazer o trabalho de casa sozinha, sentada numa mesa do
bairro. Isto eu via todos os dias. E o que ele disse-me foi: “Estás vendo? Filmaste
uma menina aqui e o que estou a ver é que no nosso bairro é preciso dez vezes mais
concentração para uma menina de sete anos aprender um texto do que um vosso
filho, porque vosso filho está num apartamento, está a estudar porque o pai e a mãe
disseram-lhe para estudar, com calma, sem ouvir música nem desenho animado. Ela,
não: ela tem duzentos mil youtubes, todos os raps do mundo, todos os tipos a
assassinarem-se uns aos outros, um infernal ruído, e apesar de tudo ela está a
aprender a ler”. Isto é o dia a dia do bairro47.

O penúltimo plano do filme é também extremamente significativo no que diz respeito à


relação entre as crianças e o bairro. Estamos uma última vez no quarto de Vanda, em plano
fixo, com ela e Zita a fumarem heroína, enquanto os ruídos estridentes do desmoronamento

46
No Quarto da Vanda, 84’22’’.
47
COSTA, P. Primeira entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 29 de junho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” desta dissertação].
82

insistem em ecoar48. Vanda sai para trabalhar enquanto Zita despende o corpo esquálido sobre
a cama. A demolição do bairro não constitui o único som acusmático da cena, pois também
uma criança parece gritar nas proximidades do quadro. Esta criança, o irmão mais novo de
Zita, surge no plano com uma lasca de madeira possivelmente retirada dos destroços. “Vais-te
aleijar com isto”, diz ela ao menino enquanto o toma nos braços. Quando a criança estava fora
de quadro, seus grunhidos acusmáticos se aliavam aos ruídos de destruição do bairro, um
ocorrendo simultaneamente ao outro; ao adentrar no plano, ela carrega consigo justamente um
resíduo da demolição. É deste embate entre nascimento e morte, entre juventude e ruína, entre
inocência e aspereza que se constitui um dos eixos centrais do filme, notadamente construído
pela presença das crianças e das máquinas tanto na imagem como na banda sonora.

Em Juventude em Marcha, a guerra está terminada; o conflito foi substituído pela incerteza.
As vozes das crianças agora ecoam plenamente no pátio residencial do bairro Casal da Boba,
para onde elas foram realocadas: os gritos reverberados denunciam a brincadeira entre
meninos e meninas no extracampo dos apartamentos. Estas sonoridades acusmáticas,
especificamente, preenchem grande parte das cenas na Boba, o que é sintomático: pertence
principalmente às crianças aquele espaço sem história, sem passado, sem memória. Cumpre a
elas o destino a ser escrito naquelas paredes brancas, pois aos adultos resta a reminiscência
dos tempos em que suas casas nas Fontainhas eram fruto de seu trabalho e de sua experiência.
As crianças, entretanto, não caminham sós, e é isto que atesta exemplarmente o plano final do
filme, em que novamente figuram um adulto e uma criança49. No novo apartamento de Vanda,
Ventura cuida de sua filha pequena enquanto ela trabalha como doméstica. Ele se deita de
costas sobre a cama do quarto, qual Zita no plano descrito anteriormente, mas cruza as pernas
no ar. Beatriz, a criança, se encontra no canto inferior direito do plano, ao lado da cama e
recortada pelo enquadramento, revezando seu olhar entre a televisão (cuja tela o espectador
não vê) e o restante do quarto. Para José Oliveira, o plano contém em si uma nova vida que
desponta:
Todo fora de campo em No Quarto da Vanda é morte (...), é a extinção do mundo,
que é o mundo das Fontainhas, pelas máquinas, pelos pedreiros, a pedra a partir... A
destruição do mundo. E depois renasce: acho que o fora de campo no Juventude em
Marcha é um renascimento, daí o último plano do filme que é uma criança com o
Ventura como se fosse um novo mundo. E podemos ainda discutir se aquele novo

48
No Quarto da Vanda, 161’26’’.
49
Juventude em Marcha, 145’15’’.
83

mundo é trágico, é mal feito, é mal construído, é humilhante, é feito à pressa... Mas
é a nascença de um novo mundo50.

Andy Rector, talvez em função dessa perspectiva de renascimento, acredita que uma “tensão
de juventude e futuro incerto” é construída no plano: “os dois, juntos sem palavras, tornam-se
uma juventude em marcha”51. A expressão “juventude em marcha”, que nomeia a obra, era
grito de ordem da militância pela independência de Cabo Verde nos anos 1970, sobre a qual
trataremos no capítulo seguinte. Se antes as palavras sugeriam uma direção política clara para
a juventude que buscava a libertação cabo-verdiana no contexto das lutas anticoloniais, elas
agora são empregadas no título do filme com um sentido sutilmente diverso: Ventura e
Beatriz se tornaram a juventude que, ao contrário, marcha sem destino palpável, pertencente
ao futuro desconhecido, que será escrito pelas crianças cujos gritos acusmáticos reverberam
no pátio residencial. A luta, no entanto, deve continuar: também Vanda, Bete, Nhurro, Paulo,
Lento, os “filhos” de Ventura, não podem jamais deixar de marchar, sob o risco de serem
atropelados pelo avanço impassível da História. Este movimento de apagamento contínuo dos
corpos e de suas memórias, nós já o conhecíamos: estava estampado na fúria das britadeiras e
das escavadeiras que deitavam abaixo o bairro das Fontainhas no filme anterior.

Figuras 15 e 16: Ventura com a filha de Vanda no plano final de Juventude em Marcha (esq.) e Zita com seu irmão pequeno
em No Quarto da Vanda (dir.).

3. As sonoridades do bairro

As vozes e os ruídos da destruição, ainda que preponderantes, não constituem a totalidade da


banda sonora de No Quarto da Vanda. Os sons acusmáticos que compõem a trilha de som,
alargando o universo das Fontainhas para além daquele enquadrado no plano, são
extremamente plurais, por vezes revezando-se entre o raro silêncio que nos permite ouvir o
canto do melro de Nhurro e os ruídos expansivos da vizinhança. Em No Quarto da Vanda,
50
OLIVEIRA, J. Entrevista concedida e Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 21 de junho de 2019. [A entrevista
encontra-se transcrita no Apêndice “C” desta dissertação].
51
RECTOR, 2009, p. 230.
84

como em Ossos, nota-se um cuidado particular em restituir à imagem a lembrança vívida dos
sons do bairro, fazendo da experiência do filme um contato com as sonoridades singulares
daquele espaço. O mesmo fascínio que sentiu Pedro Costa diante da arquitetura do bairro, por
exemplo, se estendia para a gama de sons que o compunha.

Apesar de manter especial apreço pelo som direto, Pedro Costa não se restringe à sua
utilização (como o casal Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que tanto o influenciaram) e
não hesita em usar “mais pistas se achar que falta lá ao fundo o ruído do trânsito ou o ruído do
pássaro”52. Seu trabalho de construção sonora visa, senão uma relação de identidade com o
ambiente sonoro original (que o som direto por vezes não capta), uma reconstituição sensível
dos ruídos que animavam o bairro cotidianamente. A ideia de construção é fundamental para
que não nos esqueçamos de que os filmes são impregnados por um discurso, por um trabalho,
por uma criação. Uma análise das premissas dessa construção, em nosso caso da construção
sonora, acompanha a compreensão dos métodos e processos do cineasta, que envolvem
evidentemente o modo como trabalham os diretores de som dos filmes:
Sempre insisto muito que os diretores de som gravem os chamados sons ambientes.
Que andem sozinhos por determinados locais e ouçam e gravem os sons ambientes
que depois servem de suporte nas cenas. Eu sempre gostei muito disto e sempre os
incitei a isto. E no bairro das Fontainhas, ou nos outros bairros, esses ambientes
sonoros são sempre muito mais sedutores para os diretores de som do que os do
centro de Lisboa ou de Brasília. Eles chegam às Fontainhas e encontram dezenas de
sons que não se conseguem ouvir aqui [no centro de Lisboa]; há coisas que lembram
outras coisas... Eles gravam horas e horas e, no fim, temos centenas de horas disto53.

Para um cineasta como Pedro Costa, cujo método de produção reserva importância decisiva à
pós-produção, o acúmulo de material é imperioso. As “centenas de horas” a que se refere o
diretor não dizem respeito somente aos arquivos de áudio, mas igualmente aos arquivos de
imagem. Encadear imagens, editar seus sons respectivos, mixar seus volumes, entre outros,
são momentos-chave em que o filme é esculpido a partir de um bloco inteiriço de imagens e
sons. Para manter-nos em analogia com a escultura, não apenas se talha o excedente, como na
atividade de cinzelação em relação à pedra, mas também se adicionam materiais para atingir
um efeito desejado, como no processo de modelagem. Às imagens são colados sons de
alhures ou sons captados no momento mesmo da gravação e os materiais últimos envolvem-se
e constituem-se mutuamente. No Quarto da Vanda, por exemplo, chegou à etapa de pós-
produção sem que uma ideia de montagem houvesse sido ainda esboçada, de maneira que sua

52
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “A”.
53
Ibidem.
85

estrutura e construção final encontraram forma na experimentação com o encadeamento de


imagens e com os sons que as envolviam ou atravessavam.

Quanto à banda sonora, ela pode expandir, corroborar ou desviar o conteúdo das imagens, o
que não significa que a primeira se desdobra sobre as outras em relação hierarquizante:
também as imagens por vezes são montadas em função de um som e a dimensão imagética
expande, corrobora ou desvia o conteúdo sonoro. Três citações nos auxiliam a refletir sobre a
utilização criativa da banda sonora para sugerir histórias em torno da imagem: Mark
Peranson, por exemplo, sustenta a hipótese de que “à medida que a ideia de contar uma
história por meios tradicionais desaparece, à medida que Costa amadurece enquanto artista, a
ideia de contar uma história através do som desenvolve-se e complexifica-se”54. Olivier
Blanc, por sua vez, responsável pela captação de som direto de Juventude em Marcha,
esclarece que, no cinema de Pedro Costa, “o som também conta sobre as coisas que estão ao
redor”55. O entorno da imagem, que o som certifica a existência, não é outra coisa senão o
som acusmático, cuja origem visível o espectador não vê, mas cuja função compete, segundo
Blanc, as “narrativas que estão ao redor da coisa representada”56. José Oliveira, em
abordagem similar, acredita que nos filmes de Pedro Costa “cria-se de fato outra história
através do som, outras narrativas, que extravasam a imagem”57. Um belíssimo exemplo dessa
disposição sonora é encontrado em Juventude em Marcha, na cena em que Ventura e Xana
assistem ao funeral de Zita Duarte, que ocorre nas imediações da imagem58.

Figura 17: Xana (esq). e Ventura (dir.) observam o funeral acusmático de Zita.

54
PERANSON, 2009, p. 291.
55
BLANC, 2015, p. 245.
56
Ibidem.
57
OLIVEIRA, 2019. Cf. Apêndice “C”.
58
Juventude em Marcha, 109’23’’.
86

Ventura e Xana estão diante da casa de Bete, o primeiro sentado em uma poltrona e o segundo
em pé. Em silêncio, ambos são envoltos por ruídos ocasionais de crianças e pássaros, os quais
se somam a uma serra que de tempos em tempos performa seu som agudo e distendido. Algo
fora de quadro chama a atenção dos homens. “Mais um que se foi”, diz Xana, subitamente.
“Zita, a filha de Lena”, responde Ventura. Com um meneio de cabeça, ambos parecem seguir
algo que parece se suceder atrás da câmera. Ventura, agora, está prostrado de pé. Ruídos de
passos discretos, sutis e quase imperceptíveis podem ser ouvidos na banda sonora, acrescidos
aos pássaros, às crianças e à serra. Compreendemos que estes sons subterrâneos e vagarosos
dos passos nos apontam para a existência de numa espécie de cortejo fúnebre no extracampo.
O ruído é de tal forma secreto, entretanto, que colocamo-nos em questão sobre aquilo que
ouvimos. Pedro Costa revela que “sempre quis que o cortejo ficasse relativamente
fantasma”59. Como a Revolução que neste filme se ouve em poucos decibéis, tal qual uma
memória longínqua que assombra o presente, também o suposto funeral de Zita – que de fato
faleceu durante a produção de Juventude em Marcha – é como uma sombra sonora que se
estende sobre os moradores das Fontainhas e da Boba. Além disto, a sequência não apenas
ilustra o jogo permanente entre os sons acusmáticos (os passos) e os conteúdos da imagem (o
meneio de cabeça das figuras, por exemplo), como também demonstra a inclinação do
cineasta de buscar sonoridades que não necessariamente competem ao som direto. No caso, os
passos da cena foram captados/construídos à parte, em diferentes espaços e com um grupo de
pessoas especificamente dedicado à gravação sonora.

Ora, é neste sentido que Pedro Costa não estreita suas possibilidades criativas, pois a origem
dos sons independe ao cineasta. Se se trata de captação ou reconstituição de determinada
experiência sonora, pouco importa – o que é verdadeiramente decisivo é o modo como aquilo
que se ouve relaciona-se com aquilo que se vê, ou seja, os sons em conjunção com as
imagens. Não é de surpreender, neste sentido, que Pedro Costa tenha utilizado sons do Egito
para compor determinadas camadas de som das Fontainhas:
Tivemos um montador de som fantástico, o Waldir Xavier, que montou vários
filmes do Yousef Chahine. Acabara de montar um filme no Egipto, e a experiência
sonora do Cairo, dizia-me ele, não era muito distante do universo de Vanda, uma
espécie de cosmo sonoro simultaneamente muito antigo e muito moderno: os
mujahedines, os ventos do deserto, e também muitas construções, muitas máquinas.
Dizia-me: "Nos estaleiros de construção do Cairo, há sons muito parecidos com os
das demolições das Fontainhas". Era a mesma presença do trabalho: os martelos, os
motores, as serras. Deixei-o divertir-se a construir estratos e pistas sonoras que
vinham acrescentar alguma coisa. Por vezes, não funcionava. Normalmente, era
demais, pelo que o esforço consistia em reduzir ou em ser mais cirúrgico. Mas não

59
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “B”.
87

nego que lhe dizia sempre para reforçar a sensação do real. É um bairro muito rico
no que a sons diz respeito, mais rico do que uma cidade que será sempre mais
monótona por causa do barulho do tráfego60.

O que Pedro Costa procura é construir um universo sonoro que melhor corresponda à
“memória sonora” que ele mantém do bairro, i.e, fazer com que os sons captados ou
fabricados na pós-produção recordem o ambiente sonoro dos espaços em que ele filmou,
mesmo que isto implique na busca por material de áudio provindo de outros contextos
espaciais ou temporais. Em outras palavras, o retorno às “sonoridades originais” não se desvia
de um processo de construção posterior, pelo contrário – depende deste para melhor se
manifestar. Mantendo relativa independência da faixa visual, não sendo por esta subjugada, a
banda sonora dos filmes que integram a trilogia é constituída por um universo de sonoridades
que traduzem a atmosfera contraditória das Fontainhas, a um só tempo de alvoroço e
languidez, de pujança e retração, de ruídos estridentes e silêncios abissais. O que se poderia
caracterizar como um mergulho em direção ao bairro, seja do cineasta ou do espectador, é
dependente das camadas de som que o constituem.

O travelling em Ossos, referido no capítulo anterior, é imagem-síntese do que se descreve a


respeito desse mergulho. O Pai, tendo em mãos o bebê no saco de lixo, caminha por uma rua
que circunda o bairro e, no trajeto, é envolvido por inúmeros ruídos. O movimento lateral da
câmera descortina não apenas o espaço, mas as camadas de som do bairro, como se também o
microfone estivesse apontado para o rapaz que marcha pela calçada e lhe houvesse tornado o
ponto de escuta da cena. Vozes em diferentes planos sonoros, automóveis que cruzam o plano
ou se anunciam distantes, batidas musicais intermitentes, latidos reverberados, passos no chão
molhado: os sons captados ou manipulados na pós-produção, que nascem com a mesma
urgência com que morrem, revelam exatamente essa imersão rumo ao coração do bairro, terra
animada por gritos ou silêncios, pássaros ou cães, carros ou motos, crianças ou adultos. O
som daquele espaço é fundamental e parece necessário ao cineasta, neste caso, transmitir sua
percepção desta experiência sonora singular e complexa, abarcando ampla variedade de sons.

Uma sonoridade logo distinguível nos filmes é de estatuto musical. Em Ossos, músicas de
ritmo cabo-verdiano se mesclam ao rap e ao rock para atuarem ativamente no interior das
Fontainhas. As imagens em plongée, que enquadram do alto os corredores labirínticos do
bairro, encontram sua equivalência sonora neste labirinto de sonoridades musicais que se
misturam e interpenetram. Extravasando as paredes das casas, invadindo ruelas e moradias

60
COSTA apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 120-121.
88

vizinhas, sublinhando um espaço em que noções de público e privado inexistem, essas


músicas apontam para um bairro vigorosamente musical. Mesmo a cena em que as duas
mulheres de nome Clotilde conversam no ponto de ônibus, à espera de Tina, por exemplo, é
acompanhada por um violino que ecoa distante61. Gaitas, acordes de guitarra, batuques e
samples de hip-hop são presenças decisivas que, neste filme, o silêncio das personagens vem
tensionar.

Em No Quarto da Vanda, em um dos planos em que a protagonista anda pelo bairro vendendo
legumes, ouvimos reverberada a canção diegética I’ve Got The Power, do grupo Snap!62.
Vanda se distancia da câmera, afastando-se pelo corredor rumo ao fundo do plano. Um corte
na imagem subitamente a revela em uma esquina do bairro, sentada sobre uma mesa. A
música, no entanto, não só se manteve contínua como se tornou mais proeminente, localizável
nas proximidades do quadro. Em outras palavras, o corte na imagem, elíptico, não acompanha
um corte do som, visto que a música permanece contínua. Este procedimento será alvo de
nossa atenção a seguir, pois por enquanto interessa-nos, sobretudo, a presença da música
naquele universo sonoro:
I’ve Got The Power passava milhares de vezes, eu ouvia todos os dias, sempre que
estava no bairro, de manhã ou à noite. Era típico dos tipos mais jovens, os
“desocupados” que acordavam lá pelo meio dia ou duas da tarde e nessas alturas
começavam a tocar muito alto essas coisas nos quartos e nas janelas. Como eu havia
tantas vezes ouvido – não foi uma coisa que ouvi uma vez e achei piada –, a ideia
era um bocadinho essa: o sentimento que eu queria dar era de uma coisa perene, de
uma coisa do dia a dia, que não é excepcional. É uma coisa que toca todos os dias e
alto, com certa força e dinâmica. Portanto, há um dos planos que tem aquilo em
direto e depois os outros planos “levaram”, submeteram-se àquele que tem a música,
que é muito mais forte. Os outros são construídos em volta desse ponto de vista do
som. A Vanda andava a fazer a sua venda de legumes, ela está a falar com uma
vizinha, numa porta, e é este plano que tem o som direto63.

Reentramos na questão do método. Pedro Costa tentou gravar o som da música no próprio
bairro, preservando sua espacialidade e qualidade, mas o efeito desejado não foi alcançado.
Renunciando à ideia do som direto ou mesmo da captação sonora em outro espaço ou tempo,
o cineasta buscou a canção em sua versão original, gravada em estúdio: “(...) quando
misturamos, recorremos ao disco. E ‘massacramos’ o disco no sentido de pô-lo como um som
que seria o som daquela música tocada no bairro”64. Por “massacrar” entendemos o processo
de adequação e espacialização da música à diegese, fazendo-a “pertencer” ao ambiente do
bairro como se nele se propagasse, instituindo ao som uma qualidade de captação direta que

61
Ossos, 75’12’’.
62
No Quarto da Vanda, 143’07’’.
63
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “B”.
64
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “B”.
89

ele não previa inicialmente. O resultado, enfim, não deixa de contemplar a caracterização do
universo sonoro musical das Fontainhas, e é pertinente pontuar como a música surge não da
escolha deliberada do cineasta de incluí-la sobre o filme, mas de seguir sua presença
incontornável no momento de captação das imagens e dos sons.

Figura 18: Vanda faz uma pausa na venda de legumes.

O “acaso” da gravação também acarreta outra cena “musical”. Trata-se do momento em que
Vanda, em seu quarto, conta à Zita sobre sua visita à penitenciária onde estava presa sua irmã
Nela65. A protagonista raspa as folhas amarelas de uma lista telefônica, em busca de restos de
droga, enquanto diz sobre a imagem que não lhe quer sair do pensamento, de sua irmã no
pavilhão da prisão. Segundos antes, Vanda se refere às celebrações do dia 13 de maio em
Fátima, cidade no centro de Portugal, onde na data se comemora a primeira aparição de Nossa
Senhora de Fátima. Maio, para ela, é “o mês mais bonito” – mês da cereja, da Nossa Senhora,
da própria Vanda. Durante a cena, uma música diegética, possivelmente vinda da sala, lhe
serve de acompanhamento musical, e não se trata de qualquer melodia: ouvimos o movimento
Agnus Dei da Missa em Si Menor de Bach. Vanda, ocasionalmente, chega a cantarolar trechos
da peça musical, o que fortalece nossa impressão de som direto, captado no instante da
gravação.

Pedro Costa, sobre a presença da música na cena, que ele credita ao televisor pequeno da sala,
afirma que nela as coisas “se constroem por ti”: “Ela [Vanda] está a falar da irmã, que foi
presa pela polícia, torturada; está a falar do seu próprio medo de ir à prisão, de ficar como o
cordeiro de Deus, e a própria banda sonora do que ela está a dizer e sentir é Bach” 66. A
música, com todo o imponderável que a acompanha, é de tal forma integrada ao contexto da
cena que se tem a impressão, segundo o cineasta, de que Bach compôs a missa para aquele

65
No Quarto da Vanda, 89’29’’.
66
COSTA, 2019. Cf. Apêndice “B”.
90

plano, ou seja, de que o compositor alemão a escreveu para a própria Vanda. Tal como na
cena descrita anteriormente, Pedro Costa buscou uma gravação da música para melhor dispô-
la no ambiente sonoro do quarto: “consegui saber quem era os intérpretes e o maestro, e pus o
mesmo disco, sincronizado mas ligeiramente mais alto para que se ouvisse melhor”67.

Por outro lado, o princípio de utilização de músicas “diegéticas” não se verifica na cena em
que Vanda lamenta a prisão de uma mulher que “roubou Caldos Knorr”68. Nesta, uma
melodia extremamente subterrânea atua como acompanhamento musical para o diálogo entre
as três pessoas no plano (duas refletidas no espelho, entre elas Vanda, e uma no extracampo).
Trata-se de uma composição de Anton Webern69 que Pedro Costa decidiu incluir
deliberadamente sobre a cena para mascarar os problemas de captação sonora, gravados
diretamente de um microfone acoplado à câmera. Para o cineasta, este é “um princípio
estúpido e censurável, mas a música era de tal modo concentrada, violenta e, ao mesmo
tempo, doce”70 que sua adaptação à cena não foi vista como contraditória. Fato a ser
sublinhado é que a inclusão da música, por sua vez quase imperceptível, não vai de encontro
aos “acasos” do processo de gravação do filme, sendo antes um recurso de sustentação da
cena e dos diálogos primorosos que a compõem.

As televisões cumprem presença nos três filmes da trilogia, habitando o plano ou sendo
sugerida por seus sons acusmáticos. Um tipo de programa é logo reconhecível: a telenovela
brasileira. Com forte índice de penetração na cultura portuguesa, no que diz respeito ao
consumo de conteúdo audiovisual, as telenovelas brasileiras ocuparam e ainda ocupam boa
parte da programação televisiva em Portugal. Não coincidentemente, a primeira telenovela
veiculada no país europeu não foi portuguesa, mas brasileira: Gabriela, Cravo e Canela,
produzida pela Rede Globo em 197771, impactou consideravelmente a fidelização das
audiências portuguesas à televisão pública. Diante deste cenário, o processo de produção dos

67
COSTA apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 129.
68
No Quarto da Vanda, 65’46’’.
69
Trata-se de um pequeno movimento da obra Seis Peças para Grande Orquestra (Op. 06, 1909-10). É
interessante pensar esta escolha em relação ao trabalho de Pedro Costa com Jean-Marie Straub e Danièle Huillet,
uma vez que o episódio sobre os cineastas para a série televisiva – que depois se converteu no filme Onde jaz o
teu sorriso? – foi gravado entre a produção e a pós-produção de No Quarto da Vanda. Os Straub sempre
demonstraram admiração por Webern, assim como por Schoenberg. Sabendo disto, Pedro Costa, depois de
aproveitar material não utilizado do seu trabalho com os Straub e realizar um curta-metragem com estas sobras,
nomeou seu filme 6 Bagatelas (2003), inspirando-se na peça de Webern chamada Seis Bagatelas para Quarteto
de Cordas (0p. 09, 1913). No curta-metragem, aliás, esta peça é ouvida ocasionalmente sobre uma imagem
branca. Para as relações entre o cinema dos Straub e a música serialista, cf. ASPAHAN, 2017.
70
COSTA apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 53.
71
Cf. CUNHA, 2002.
91

filmes, em seu empreendimento de captar em som direto ou recriar a realidade sonora de um


universo impactado pela presença da televisão, acaba por prever os sons da telenovela como
um fator incontornável.

Em Ossos, por exemplo, as telenovelas se fazem escutar na sequência em que Tina arrasta o
Pai pela sua casa depois que ele desaba de cansaço sobre a cama 72. Em No Quarto da Vanda,
uma das cenas na sala da casa da protagonista é sonorizada pelos ruídos acusmáticos pelo
televisor73. Juventude em Marcha, ao revelar a nova residência de Vanda no complexo
habitacional da Boba, acaba por mostrar-nos que a televisão continua presente em seu modo
de vida, agora situada no próprio quarto. Além de telenovelas brasileiras74, há também, agora,
os programas de reality show aos quais ela reage – “a anaconda, filha!”, Vanda pontua em
determinado momento – e os desenhos infantis. Independente do tipo de programa sendo
veiculado e captado pela câmera ou pelo microfone, o dado a ser sublinhado é que a televisão
participa ativamente dos espaços domésticos, seja na qualidade de ruído exterior que atravessa
as paredes das casas (Ossos), enquanto som onipresente que se estende da sala em direção aos
outros cômodos (No Quarto da Vanda) ou como atividade cotidiana com a qual se interage e
se entretém (Juventude em Marcha).

4. Construções sonoras

Um último e breve comentário sobre a presença e função dos sons acusmáticos. Entre os
filmes de Pedro Costa, No Quarto da Vanda é o mais propenso a suscitar interpretações
contraditórias sobre seu processo de produção, razão pelo qual nos debruçaremos sobre ele
finalmente. Pela maneira como o cineasta reivindica uma distância das coisas filmadas, como
posiciona sua câmera fixamente, como deposita o olhar de sua lente na direção das máquinas
que de fato colocaram abaixo as Fontainhas, como trabalha com atores não profissionais que
habitavam o bairro, como pacientemente grava uma espécie de cotidiano em vias do
desaparecimento, seu filme pode conduzir um espectador desatento a creditar àquilo que se vê
na imagem o estatuto de realidade pura e simples. Acompanhada deste estatuto, a ideia
errônea de que o filme é uma colagem de fragmentos variáveis, desestruturados, desconexos,

72
Ossos, 15’01’’.
73
No Quarto da Vanda, 50’27’’. Os sons provindos da televisão são de tal forma salientes e nítidos que é
possível esboçar hipóteses sobre qual seria a telenovela em questão: o período de exibição (1998-1999) e uma
personagem nomeada de “Carlão” fazem-nos pensar se não se trataria de Pecado Capital, de Glória Perez.
74
Na cena em que Vanda, em seu quarto, se lamenta a Ventura pelo luto que mantém por Zita e por sua mãe, a
televisão ligada sonoriza o espaço com a banda sonora da telenovela Cabocla (2004), de Benedito Ruy Barbosa,
que é reconhecível pelo seu período de exibição, sua trilha musical em estilo caipira e pelas personagens Tobias
e Mariquita.
92

vacilantes, inapreensíveis, “tal como a própria realidade se revela”. Ora, esta suposta
realidade não poderia estar mais distante da realidade do filme: No Quarto da Vanda é um
filme que organiza esses fragmentos de forma ordenada e orientada, mesmo que possa
ocasionalmente transmitir o contrário. Entre os instrumentos cinematográficos utilizados
nessa composição rigorosa, o som desponta como fundamental para a construção fílmica.

O que se procurou fazer transparecer nas páginas deste capítulo, principalmente por meio do
conceito de acusmatismo, em que um pensamento criativo determina o que se escuta e o que
(não) se vê na imagem, é que o som, nos filmes que analisamos, é produto de uma montagem,
de uma repartição, de uma triagem, de um processo de alocação e tratamento, de uma ideia
que toma corpo, enfim, por meio de uma construção. Não há gratuidade naquilo que é
escolhido, manipulado e disposto arbitrariamente em determinada posição num conjunto
fílmico. Não há passividade na prática de recolha do dispositivo e de sua orientação à
contemplação das forças atuantes na realidade, pois o próprio enquadramento, como nos
recorda Pascal Bonitzer, porquanto a câmera “decupa de maneira interessada um pedaço do
espaço visual”75, é um gesto de montagem. Se o som utilizado em um plano é proveniente da
captação direta, e se um pássaro sobre o qual não há controle cantou por acaso durante o
processo de gravação, sua utilização no filme não é por isto ocasional: além da escolha
arbitrária dos realizadores de incluí-lo, também a disposição deste bloco de som e imagem
sincrônica no contexto de outras imagens e de outros sons, ou seja, no contexto estrutural do
filme, atende a uma premissa de montagem, de intervenção, de discursividade.

Em primeiro lugar, o som acusmático permite uma operação de espacialização: ele aproxima
ou distancia pontos no espaço, fornece as coordenadas geográficas da diegese, conecta
diferentes zonas do mundo físico. Fragmentos do espaço podem ser ligados uns aos outros
pela presença de um som acusmático: pensemos, por exemplo, no célebre canto de Doris Day
em O Homem que Sabia Demais (Alfred Hitchcock, 1956): sua voz se estende ao cômodo
onde seu filho, sequestrado, reconhece-a como sendo de sua mãe. Medimos a distância entre o
hall onde a cantora entoa sua canção ao piano e o quarto onde a criança está presa através da
ressonância da onda sonora neste último espaço: se o menino consegue escutá-la, mais baixa,
é porque está próximo de onde está sua mãe. Não há, neste caso, apenas o esboço de uma
relação espacial: na medida em que o menino escuta a canção enquanto Doris Day a

75
BONITZER, 1999, p. 85, tradução nossa. “Il y a toujours du montage, et la place de la caméra elle-même dans
le champ, qu’elle découpe de façon intéresée un morceau de l’espace visuel, est déjà un montage”.
93

performa, ou seja, no exato momento da apresentação, conjugamos aí uma relação igualmente


temporal, em que os espaços articulam-se também no tempo, em simultaneidade.

Em No Quarto da Vanda, o corte na imagem representa, na maior parte das vezes, uma
mudança no espaço e no tempo do filme. As cenas se compõem, geralmente, por um único
plano76. Vanda se droga em seu quarto em plano médio, em seguida um trator derruba uma
parede em plano geral, e daí Nhurro injeta heroína na sua casa à noite... Também o som
possui cortes definidos, que acompanham os cortes da imagem: cada momento em que um
plano é substituído por outro, alterando cenas, alteram-se também as qualidades, propriedades
e texturas dos sons. Entretanto, as matérias que originam esses sons não mudam – são
pessoas, britadeiras, cachorros, martelos, entre outros. Porque esses sons se prolongam e
invadem outros espaços, compreendemos que a casa de Vanda é conjugada às ruínas, assim
como o trator trabalha próximo da barraca de Nhurro. Compreendemos, enfim, que esses são
sons de um mesmo bairro, que os ruídos do trator e o burburinho da vizinhança, por exemplo,
apesar de surgirem em diferentes contextos, com diferentes timbres e variações de volume,
remetem a uma mesma ideia de ambiente sonoro – o ambiente particular das Fontainhas. Há
momentos no filme, por outro lado, em que se constroem relações temporais, instantes que,
apesar de raros, não são, por isto, menos importantes.

Fundamento clássico na edição sonora que se pretende “naturalista”, um ruído ambiente,


quando em continuidade, pode garantir uma unidade temporal a um espaço decupado e
montado. Imaginemos uma cena que transcorre em um restaurante com música ao vivo: esta
pode mantida em continuidade durante a maior parte das situações descritas na cena,
conferindo-lhes uma sucessão contínua no tempo. Planos, fragmentos descontínuos de tempo,
podem então ser montados em continuidade a partir da música que se mantém constante
durante os cortes. Não se trataria mais, no caso, apenas de continuidade espacial (os diferentes
planos remetendo ao mesmo restaurante), mas também de continuidade temporal (cada plano
se sucedendo ao outro em uma cadeia de acontecimentos narrativos)77. Em No Quarto da
Vanda, contrariamente ao que se poderia concluir pela suposta estrutura fragmentária do

76
“Sobretudo a partir de No quarto da Vanda é notória a tendência para uma cena-um plano – como mera
tendência” (FERREIRA, 2018, p. 43).
77
Esta convenção sonora é engenhosamente tornada cômica em Playtime (Jacques Tati, 1967): no restaurante em
que se desenrolam os acontecimentos caóticos do terço final, os músicos no palco performam melodias que se
mantêm contínuas durante todas as gags, envolvendo as situações em uma linha temporal bem definida. O gênio
de Tati está em apontar a artificialidade da convenção: esta continuidade é logo colocada em causa quando o dia
começa a amanhecer e percebemos que, diegeticamente, passou-se muito mais tempo do que se poderia prever
pelas músicas.
94

filme, algumas sequências revelam construções que, através do som, privilegiam a


continuidade temporal entre diferentes planos.

Em uma dessas sequências de planos, vemos uma mão negra destacada na escuridão de uma
esquina das Fontainhas78. O corpo a quem pertence esta mão, tragado pelo breu, parece
encolhido de cócoras. Entre os ruídos de vozes, de latidos e de águas escorrendo, distingue-se
entre os sons acusmáticos uma canção baixa, sutil, distante. Alguns instantes nos permitem
reconhecê-la como “Memory”, de Andrew Lloyd Weber, célebre por sua presença no musical
Cats. Um corte na imagem nos direciona para um plano médio de Lena Duarte, a mãe de
Vanda, no interior de sua cozinha estreita, cheirando rapé. A canção acusmática, neste
momento, adquire mais intensidade, mantendo-se contínua em relação ao plano anterior.
Estamos, de certa forma, mais próximos de sua fonte sonora. Um novo corte da imagem nos
revela, finalmente, a sala da casa de Vanda, onde uma televisão de tubo, no canto do cômodo,
transmite o musical em questão. O padrasto da protagonista encontra-se sentado no primeiro
plano da imagem, de costas para o televisor, com a cabeça apoiada sobre a mão. À canção que
agora se projeta mais intensamente e que se mantém contínua em relação aos planos
precedentes se junta os sons do irmão pequeno de Vanda, situado algures no extracampo.
Nessas imagens não só encontramos um percurso da rua (exterior) para a casa (centro), à
maneira do que se verifica na lógica interna do filme (as Fontainhas como periferia do quarto
de Vanda), como também constatamos que os espaços se tornam comunicantes em função da
canção diegética.

Figuras 19, 20 e 21: Uma mão na escuridão do bairro (esq.), Lena Duarte na cozinha de sua casa (cent.) e o
padrasto de Vanda na sala (dir.).

No primeiro capítulo, fizemos menção à sequência inicial em que Nhurro se banha em meios
aos destroços de uma casa. Os sons acusmáticos das picaretas, dos tratores e das paredes
sendo demolidas são contínuos e mantêm o mesmo volume mesmo quando seu corpo

78
No Quarto da Vanda, 128’15’’.
95

banhado em água quente é substituído, na imagem, pelos planos “vazios”, supostos pillow-
shots, aos quais nos referimos. Esses sons, no entanto, são diminuídos e abafados quando o
corte seguinte na imagem encontra o rosto de Paulo, que come e tem atrás de si suas muletas.
A razão para essa mixagem, em que se abaixa o volume e se abafa o som, é simples: esse
homem que agora vemos está mais distante de onde estávamos anteriormente (a sala onde
Nhurro se banha), mas seu plano está encadeado temporalmente aos precedentes em razão dos
sons contínuos. A mesma estratégia de mixagem ocorre em outras sequências na casa de
Vanda, notadamente o momento igualmente referido em que a discussão sua com o padrasto
chega aos ouvidos de Lena e Zita enquanto ambas despelam um coelho do lado de fora da
casa79. Em outra sequência do filme, a família hospeda uma festa com música e esta
sonoridade instrumental, possivelmente cabo-verdiana, ecoa da sala em direção aos cômodos
contíguos: assim, ela se mantém contínua, mas diminuída, no interior do quarto de Vanda,
onde ela e Zita se drogam80. A continuidade espacial encontra, portanto, a continuidade
temporal.

Por outro lado, a continuidade temporal pode mesmo ser tensionada em relação à
continuidade espacial: lembremo-nos da sequência em Vanda caminha nos corredores do
bairro ao som da canção diegética I’ve Got The Power. Ao plano em que a protagonista vende
seus legumes e se dirige ao fundo de um corredor estreito, em profundidade, e no qual
escutamos a canção reverberada, distante, se segue o plano da mesma figura escorada sobre
uma mesa, prostrada em pé, quase imóvel, agora com a canção em primeiro plano sonoro
(alta, ruidosa, preponderante). Estamos diante de um caso incomum: há um corte temporal na
imagem (elipse), visto que o movimento de Vanda no primeiro plano tornou-se inércia no
plano seguinte, mas a música se mantém contínua. Há continuidade temporal no som, pois a
canção é continuada, mas não há continuidade temporal na imagem. O procedimento
desemboca num estranhamento súbito: como poderia a protagonista “transportar-se” de um
lugar ao outro no decorrer constante da música? Ou então: como a música manteve-se
contínua na transição entre dois espaços que são temporalmente distintos pelo movimento do
corpo que os atravessa? Não há resposta certa para essas questões, mas podemos deduzi-las da
quase onipresença da canção no bairro, tão marcadamente cotidiana que a distinção de inícios,
términos, quebras ou desmembramentos de suas notas se torna difícil. Talvez sua
continuidade perene seja sintoma de sua presença rotineira no modo de vida das Fontainhas.

79
No Quarto da Vanda, 119’36’’.
80
No Quarto da Vanda, 123’21’’.
96

Porém, o que todas essas sequências nos revelam, e no contexto de uma análise que extrapole
a interpretação subjetiva de cada uma delas, é que o cineasta intervém diretamente, no caso
através da banda sonora, nos fragmentos de realidade colhidos nos momentos de gravação. Os
sons persistem e atravessam diferentes planos, costuram frações do bairro, unem
temporalidades distintas, agrupam figuras em torno de um mesmo espaço, fornecem
coordenadas temporais e espaciais para nos situar em relação ao bairro e sua dinâmica interna,
entre outros. Acrescente-se a isto que a noção de comunidade é consideravelmente fortalecida
pela instrumentalização de tais estratégias sonoras, uma vez que apontam para “uma dinâmica
que unifica o bairro”81. Não diríamos que a dimensão fragmentária do filme desaparece, pois
ainda se trata de um trabalho de composição baseado na disposição de retalhos daquela
realidade, mas acrescentaríamos que esses fragmentos não são simplesmente dispersos ou
desconexos entre si; eles são organizados, ordenados e construídos, no caso, por sons que
costuram diferentes tempos e espaços e os seres que os habitam: “Vanda é o espaço recriado
poeticamente”82.

Um último exemplo: em uma das sequências em que os homens se drogam na barraca


penumbrada de Nhurro, este, em primeiríssimo plano e agora banhado pela escuridão de sua
casa, diz que “é hora de abandonar o barco”83. Na banda sonora, sons altos e estridentes da
demolição invadem o espaço de forma perturbadora. A linha de diálogo parece fortemente
influenciada pelos sons acusmáticos que a acompanham, como se a resolução de Nhurro fosse
decorrente daqueles ruídos de morte que consomem as casas e os seres do bairro. Ao close-up
de Nhurro se segue um plano próximo dos joelhos de outra figura, igualmente incorporada
pelo breu. Em seguida, um plano aberto da sala de Nhurro, onde reconhecemos três silhuetas
mal delineadas pela luz das velas sob a mesa. Após alguns instantes, Russo abre a janela e
permite a entrada de luz no recinto, como se a injeção de heroína tivesse encontrado fim.
Nhurro se levanta em um plano que recorta apenas seu quadril, leva as mãos ao bolso e se
pergunta sobre suas chaves. Em todos esses planos, claramente decupados, os sons da
demolição se mantém contínuos e com o mesmo volume, empregando à sequência um aspecto
ainda mais sequencial, encadeado, estruturado.

81
PERANSON, 2009, p. 294.
82
COSTA, 2012, p. 24, tradução nossa. “Vanda, c’est l’espace recréé poétiquement”.
83
No Quarto da Vanda, 117’33’’.
97

Que terminemos este capítulo, afinal, com uma cena em que o mesmo Nhurro conversa com
Vanda no quarto da mesma84. Vanda é enquadrada em primeiro plano, como num retrato de
Vermeer (o azul de sua blusa lembrando o tecido azul que veste a cabeça da moça com os
brincos de pérola, a luz doce e diagonal iluminando seus rostos, o fundo negro enaltecendo
seus traços), fumando e escutando Nhurro, o qual, por sua vez, se encontra em algum lugar
próximo às zonas do quadro. Não o vemos, mas escutamos sua voz. “A vida só tem me dado
desprezos”, ele diz. “A morar em casas fantasmas, que outras pessoas deixaram...”. Faz
menção às casas que ocupou, casas clandestinas, casas abandonadas, casas “que nem uma
bruxa queria lá morar”. Para esta sequência, Pedro Costa deslocou o som de outra cena ao
plano de Vanda, o que “explica” a ausência do corpo de Nhurro – “eu tirei só o som e
coloquei numa imagem”85. Este é um detalhe, entretanto, apenas de fabricação: no filme,
Nhurro está na cena, notadamente pela sua voz.

Figura 22: Vanda, em seu quarto, escuta as palavras acusmáticas de Nhurro.

As palavras do rapaz tocam a questão do não pertencimento, da marginalização, das distâncias


sociais (“se estivesse lá uma pessoa de bem, eles até não as mandavam [as casas] abaixo”).
Seu próprio corpo não pertence ao quadro, que é preenchido apenas pela sua voz fantasmática
e não localizável. Pertencente às margens do plano, este corpo pertence igualmente às
margens da sociedade. “Já paguei mais pelas coisas que não fiz do que pelas coisas que fiz”,
ele conclui. As palavras nos atingem ferozmente, consideravelmente potencializadas pelo
estatuto acusmático e a qualidade de sussurro da voz que a conjura, oscilante entre o cansaço
e a desilusão. Também aqui, e para retornar ao vocabulário de Daney, sua voz in não provoca
qualquer resposta de Vanda, o que nos afunda no mais discreto sentimento de impotência.
Entretanto, os filmes das Fontainhas nos revelam que essas palavras, em vozes acusmáticas ou

84
No Quarto da Vanda, 143’53’’.
85
COSTA, 2002, p. 93.
98

visualizadas, sussurradas ou gritadas, cansadas ou exaltadas, recitadas ou cuspidas,


descortinam mundos inteiros, perfuram a realidade aparente dos seres, nos abrem as portas
para um universo de experiências, memórias e histórias infindáveis. Para o próximo capítulo,
nos deteremos sobre essas vozes.
Capítulo III – As vozes

“Todos os dias, todos os minutos, aprendo umas


palavras novas, bonitas, só para nós dois”
Ventura
No princípio de seu livro A voz no cinema (1982), Michel Chion nos apresenta um dos
impasses fundamentais dos estudos sobre este tópico, notadamente aquele que confunde voz e
discurso. Enquanto o discurso representa aquilo que a voz expressa em termos linguísticos e
semânticos, a voz se configura como uma mídia que, como tal, comporta materialidade.
Quando ouvimos uma voz, tendemos a esquecer de sua materialidade para centrarmos o foco
naquilo que é tido como sua função primária de mídia – comunicar um sentido. Mladen Dolar,
por sua vez, atesta que a possibilidade de notarmos determinadas particularidades de uma voz,
entre elas sua coloração e acento específicos, é logo frustrada por nossa acomodação e
concentração direcionadas somente ao significado que esta voz comporta. “A voz é o
instrumento, o veículo, a mídia, e o sentido é o objetivo”1, prossegue o autor esloveno.

Em nosso caso, de uma análise do som no cinema, poderíamos resguardar dessa questão
inicial a seguinte prerrogativa: um estudo sobre a voz enquanto elemento sonoro é
indissociável de sua dimensão material. Não basta, neste sentido, analisar aquilo que as vozes
comunicam, pois é preciso ampliar nosso olhar e nossa escuta em direção à maneira como
essas vozes se manifestam. Em outras palavras, equilibrar voz e discurso, considerar as
propriedades singulares da voz enquanto mídia sonora e equacioná-las em relação ao sentido
de sua comunicação. Como escapar, no entanto, da tirania do discurso? Quais métodos nos
permitem maior percepção do fenômeno da voz? Dolar, novamente, pode nos guiar diante
desse dilema. A voz, para o autor, se coloca a serviço da linguagem, depositada de sentido,
mas não abdica de rastros de sua condição material. Assim, ele indica três características
sonoras da voz que a distinguem enquanto mídia dotada de materialidade: sotaque, entonação
e timbre2.

O sotaque, na medida em que nos faz conscientes do suporte material da voz, constantemente
negligenciado pelo foco no conteúdo semântico das palavras ou sentenças, aproxima a voz do
canto. Para Dolar, o sotaque difere da “norma”, a qual nada mais é do que um sotaque que,
por razões sociais ou política, foi declarado não-acento, e é justamente esta diferença entre o

1
DOLAR, 2006, p. 15, tradução nossa. “The voice is the instrument, the vehicle, the medium, and the meaning
is the goal”.
2
Ibidem, p. 20.
100

sotaque regional e a “regra” que “o faz cantar”. A entonação remete às melodias, modulações,
cadências e inflexões da voz, instâncias que, segundo Dolar, “podem inverter o sentido de
uma sentença”3. O timbre da voz, enfim, é configurado pela individualidade do(a) emissor(a),
isto é, pela particularidade com que ele(a) pronuncia determinadas palavras. Uma análise
dessas propriedades nos permitiria, então, “perseguir a dimensão da voz”. O confronto dessas
perspectivas analíticas com cineastas que instrumentalizaram a voz como recurso estético
determinante nos permite diferentes e renovadas leituras sobre o espaço ocupado pela palavra
humana em suas cinematografias. Diretores como Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e
Danièle Huillet, Yasujiro Ozu e Howard Hawks tem seus filmes exemplarmente cotejados
com o estudo da dimensão material da voz, enquanto outros igualmente expressivos deste
ponto de vista ainda podem render análises similares4.

A questão da “palavra humana” toca em um ponto fundamental. Presente no cinema desde o


período silencioso, a palavra cinematográfica se tornou sonora com o advento do som em
1927. Se antes esta palavra era lida em cartelas ou intertítulos dispostos entre os planos do
filme, quando tornada sonora ela passou a pertencer, segundo Deleuze, à própria imagem em
que surgia5. Era preciso, no caso, que uma voz a conjurasse, ou seja, que ela fosse expressa
por uma mídia. Neste sentido, pensarmos em “palavra no cinema” no contexto de uma análise
do cinema sonoro se torna uma proposição genérica. Carlos Melo Ferreira sugere um
enunciado mais preciso: é necessário pensar na “palavra dita pela voz humana no decurso de
uma fala”6. Que esta noção de palavra não dissocie discurso e materialidade, que ela preveja
uma imbricação mútua entre o sentido veiculado e as propriedades da voz, é um dos objetivos
do presente capítulo.

Após termos estudado os silêncios e os sons acusmáticos que atravessam o conjunto de filmes
das Fontainhas, dedicamos esta última parte às diferentes vozes que compõem a trilogia.
Compete ao nosso trabalho um olhar (ou uma escuta) mais detido sobre essa dimensão vocal
que é imprescindível no trabalho de Pedro Costa. Ora, não pretendemos apenas uma análise
das palavras em suas características sonoras e semânticas, pois a discussão extrapola os
limites da simples representação de diálogos. Se nos é importante o “o quê” essas figuras

3
DOLAR, 2006, p. 21. “Intonation can turn the meaning of a sentence upside down”.
4
Faço menção, por exemplo, aos “hollywoodianos” Ernst Lubitsch, Frank Capra, Joseph L. Mankievicz, Otto
Preminger, George Cukor, Leo McCarey e Billy Wilder.
5
“(...) em vez de uma imagem vista e de uma fala lida, o ato de fala torna-se visível ao mesmo tempo que se faz
ouvir, mas também a imagem visual torna-se legível, enquanto tal, enquanto imagem visual em que se insere o
ato de fala enquanto componente” (DELEUZE, 2018b, p. 337).
6
FERREIRA, 2011, p. 79.
101

marginalizadas dizem e o “como” elas o fazem, também a forma como essas vozes reportam
ao próprio método de produção do cineasta é uma questão que nos interessa particularmente.
A centralidade reservada à voz no cinema de Pedro Costa, em especial a partir de No Quarto
da Vanda, não é fortuita. Manteremos o enfoque em Juventude em Marcha, o último filme da
trilogia, sem que desapareçam as análises dos filmes precedentes. Contrariamente ao que se
propôs como estrutura nos outros capítulos, este segue uma divisão em dois blocos: o
primeiro para as palavras faladas (diálogos, monólogos ou vozes mentais) e o segundo para as
palavras cantadas (cantos amadores e canções diegéticas).

1. As palavras faladas

Ossos é um filme construído em torno da noção de mutismo. As impressões de silêncio que


dele emanam, no caso, são constituídas em sua maioria pela recusa da voz humana. As poucas
palavras sussurradas que surgem nos lábios das personagens exasperam seus rostos
inexpressivos e seus corpos adoecidos ou fracos. No primeiro capítulo, tratamos da dimensão
da voz neste filme ao abordar exatamente como sua ausência impregna possíveis sensações de
silêncio, de forma que retornar às questões analisadas anteriormente faria com que nos
repetíssemos. Entretanto, duas sequências ainda nos despertam interesse, não apenas porque
não foram tratadas no primeiro capítulo, mas igualmente porque se relacionam a um dos
pontos principais da discussão que se pretende empreender, que diz respeito ao método de
produção de Pedro Costa.

Em meados do filme, Clotilde (Vanda) leva Maura ao hospital, onde se encontrará com a
enfermeira Eduarda Gomes7. Um plano conjunto nos revela as duas irmãs sentadas em um
ônibus, de costas para a câmera, envoltas pelos estrondos do veículo. A voz da mais velha
começa a repetir algumas sentenças com certa neutralidade: “Sou uma diarista. Sou uma
diarista. Trabalho por dia. Trabalho por dia”. A cada frase, no entanto, uma entonação
diferente. “A senhora enfermeira Eduarda Gomes está? Bom dia. A senhora enfermeira
Eduarda Gomes?”, Clotilde continua. A posição da personagem, que esconde seus lábios, não
nos abre margem para distinguir se aquela voz é de fato pronunciada ou pensada: seria ela
uma voz mental, uma voz interna, “uma voz que não pode ser silenciada”8? Uma elipse na
imagem nos mostra Maura sentada sob uma maca hospitalar. A voz de Clotilde, no entanto,
permanece na banda sonora, agora tornada uma espécie de diálogo em função da interlocução

7
Ossos, 60’01’’.
8
DOLAR, 2006, p. 14. “(...) the internal voice, a voice which cannot be silenced”.
102

da enfermeira (também fora de quadro): “Sou a Clotilde”. “Sim, lembro-me de ti”, responde
Eduarda. “Sou uma diarista, estou desempregada. Se a senhora precisar de ajuda na sua
casa...”. A enfermeira acaba por contratá-la por dois dias da semana.

Figuras 1 e 2: Clotilde e Maura no ônibus (esq.). e Maura no hospital (dir.).

Compreendemos que as palavras que escutamos no ônibus, sejam elas pensadas ou ditas,
refletiam o inquérito interior de Clotilde, que buscava pela melhor maneira de abordar a
enfermeira Eduarda Gomes para lhe pedir um emprego. Seu jogo com repetições em
diferentes entonações é o que demonstra sua apreensão. Entre um plano (ônibus) e outro
(hospital), a voz perde seu estatuto enigmático, entre a voz mental e a voz pronunciada, para
se tornar diálogo acusmático. Por outro lado, não há garantia de que o diálogo aconteça na
mesma diegese da situação descrita pelas imagens, em que Maura é atendida na maca
hospitalar. Ocultado do espectador, o diálogo (mas também o monólogo anterior) pode
apontar para um desdobramento da diegese em direção a outras dimensões temporais – ele
pode ter ocorrido no passado (retrospectivo) ou ocorrer no futuro (premonitório). Além disto,
e este é um dado a ser sublinhado, porque potencializa essa impressão de desdobramento
diegético, há uma qualidade “limpa” e sussurrada na voz que nos remete diretamente a um
som gravado em estúdio. Quando temos em vista o espaço onde o primeiro plano se sucede
(um ônibus ruidoso), logo constatamos que Pedro Costa parece recorrer à dublagem para nos
dar a ouvir a voz de sua personagem.

Assim que Clotilde retorna para o bairro das Fontainhas, em seguida, Tina está sentada no
ponto de ônibus9. “Estava à sua espera, por que demoraste tanto?”, ela pergunta, preocupada
com as “coisas más” que poderiam ter acontecido à irmã. Enquanto Clotilde abandona o plano
conjunto, ela revela que conseguiu um emprego na casa de “uma senhora muito simpática”.
Novamente, não é tanto o conteúdo do diálogo que está em causa, mas sua limpidez e

9
Ossos, 63’25’’.
103

destaque em relação ao ambiente sonoro em que está inserido – neste caso, a vizinhança do
bairro. As vozes são dubladas e assim o percebemos, menos por uma questão de
sincronização com os lábios do que pela sua cristalinidade. Elas sequer parecem
espacializadas, mantendo-se em primeiro plano sonoro mesmo quando as personagens se
movimentam em profundidade no quadro. O recurso da dublagem também se verifica em
outros momentos dispersos pelo filme, como na cena em que o Pai, carregando o bebê, pede
esmolas no centro de Lisboa, próximo à Praça do Rossio, entre uma multidão de
transeuntes10. Entretanto, o exercício da dublagem se torna cada vez mais incomum nos filmes
seguintes, não fortuitamente aqueles em que o método de produção do cineasta se modifica
radicalmente. Sobre sua utilização suscita-se, então, uma questão não apenas técnica, mas
também ética.

Renunciando a uma ideia estabelecida de cinema, que dispõe de equipes numerosas, de


imensa aparelhagem técnica, de produções regradas por ordens do dia e planilhas de imagem
e som, entre outros, Pedro Costa renuncia também, a partir de No Quarto da Vanda, a intervir
de forma mais incisiva na realidade captada por sua câmera e seu microfone – o que não
significa afirmar, como dito anteriormente, que o cineasta é um agente passivo na enunciação
fílmica. A dublagem, assim, é substancialmente menos utilizada, como se passasse a
interessar ao cineasta os ruídos que contornam e arranham a voz no espaço onde ela está
sendo pronunciada. Não é que Pedro Costa não se preocupe com a inteligibilidade das vozes,
pelo contrário; trata-se, antes, de uma ancoragem mais determinante dessas vozes no ambiente
onde elas nascem. Tão importante quanto o que está sendo dito, no caso, é “como” e “onde”
essas vozes surgem, isto é, “conferir um meio concreto a gente concreta que vemos no espaço
dos planos”11. O som direto, portanto, desponta como um procedimento fundamental à
poética e à política do cineasta.

Por outro lado, há uma dimensão ética e profissional na recusa pela dublagem, que diz
respeito ao trabalho adicional que seria imposto aos seus atores e atrizes: “Não é que a Vanda
não pudesse ou não tivesse talento para isso – ela tinha, porque foi uma das atrizes que mais
fez takes de seus planos, portanto ela teria competência para fazer pós-sincronizações dela
própria –, mas seria mais um trabalho sobre aquele trabalho todo”12. A produção dos filmes,

10
Ossos, 24’00’’.
11
FERREIRA, 2018, p. 59.
12
COSTA, P. Segunda entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 06 de julho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “B” desta dissertação].
104

que evidentemente extrapola o cineasta e atinge todos os que trabalham com ele, é um
processo exaustivo o qual se soma, por si só, ao trabalho e ao cansaço da vida mesma dessas
pessoas. Na medida em que a dublagem impõe um novo esforço sobre o esforço do filme e da
própria vida, Pedro Costa a recusa, de forma geral, como instrumento técnico. Nada que
impeça, porém, que o cineasta a ela recorra quando, em situações emergenciais, o som direto
se encontra demasiadamente prejudicado ou inutilizável. Para Juventude em Marcha, certas
dublagens ou foleys, por exemplo, eram gravados em direto em bairros cujo ambiente sonoro
assemelhava-se ao que restou do bairro das Fontainhas.

Se em Ossos as vozes existiam principalmente como ruídos acusmáticos, a um só tempo


encurralando as personagens e expandindo o universo das Fontainhas, em No Quarto da
Vanda elas alcançam o conteúdo semântico das palavras: os habitantes das Fontainhas
conversam entre si e carregam discursos. Abandona-se o registro de silêncio do filme
precedente e conquista-se a palavra, processo que se justifica, sobretudo, por uma questão de
intimidade: o cineasta renuncia à escrita dos diálogos, se aproxima dos moradores do bairro e
começa a ouvir atentamente suas histórias. O filme se torna, assim, um “laboratório”13.
Anteriormente, diante da ausência de proximidade e de conhecimento das leis daquele espaço,
Pedro Costa “não tinha como saber o texto”14, e é por esta razão, entre outras, que No Quarto
da Vanda é um filme absolutamente seminal em sua cinematografia: a autoria dos diálogos
passa a recair sobre seus atores e atrizes, pessoas que lhe dão a palavra a ser filmada e
registrada15. O cineasta tem consciência que sua posição não se confunde com aquela dos
habitantes, que entre ele e aqueles filmados há uma distância social, cultural e econômica,
uma distância intransponível que o leva a preferir o termo “ética” ao termo “estética” para se
referir ao próprio trabalho.

Stella Senra comenta, neste sentido, que “o diretor não ignora seu lugar privilegiado na
distribuição social da fala; mas se não pretende falar ‘por’ aqueles a quem esse privilégio foi

13
“Vanda é um laboratório. (...). Todos os atores do filme são pesquisadores. Mesmo os figurantes que passam
buscam sentimentos, pensamentos, palavras. Quanto a mim, eu procuro o bairro e como vou olhá-lo e depois
filmá-lo” (COSTA, 2012, p. 24, tradução nossa). No original: “Vanda, c’est un laboratoire. (...). Tous les acteurs
du filme sont des chercheurs. Même les figurants qui passent cherchent des sentiments, des pensées, des mots.
Moi, je cherche le quartier et comment je vais le regarder puis le filmer”.
14
COSTA, P. Primeira entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 29 de junho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” desta dissertação].
15
Sobre No Quarto da Vanda, Pedro Costa (apud SENRA, 2008, p. 92) afirma que “jamais seria capaz de
inventar coisas tão belas, tão fortes, tão justas, tão bonitas como as que a Vanda, o Pango e todos os outros
dizem”. Sobre Juventude em Marcha, o cineasta (2014, p. 67) revela: “Eu não escrevi uma só palavra, limitei-me
a organizar um pouco o que eles queriam dizer”.
105

subtraído, tampouco pretende fazê-los ‘aceder’ a esse lugar”16. É conhecida a ressalva de


Vanda ao cineasta quando este se instalou em seu quarto para gravá-la em seu cotidiano: a
atriz lhe alertou para nunca tentar se colocar em seu lugar, nunca imaginar que poderia viver o
que ela viveu17. Na busca por uma intimidade maior, intimidade esta salientada nos próprios
enquadramentos do filme – mais próximos, tendendo ao primeiro plano, concebidos no
interior de um quarto pequeno –, Pedro Costa se desarma, se resguarda, coloca-se à disposição
das pessoas com quem trabalha, à disposição para escutá-las e acolhê-las com sua câmera e o
seu microfone. Também essas pessoas, em movimento recíproco, acolhem o cineasta em suas
casas e colocam-se à disposição para o trabalho. Em seu cinema, disponibilidade, bem como a
escuta que nela está implicada, é uma ideia fundante.

Relacionada a essa disponibilidade do cineasta e à conquista de intimidade, a palavra falada se


torna “o grande estímulo sonoro dos filmes de Pedro Costa”18. Quando vemos pessoas em
frente à câmera conversando sobre determinado assunto, a presença incontornável da palavra
falada nos permite constatar que entre essas pessoas e o cineasta foi construída uma relação de
cumplicidade que permite ao último captar em imagens e sons aquilo que de mais íntimo
perpassa suas subjetividades. O registro da voz, especificamente, se configura como meio de
acesso privilegiado às experiências e memórias de cada uma dessas pessoas, as quais se
dispõem de corpo e espírito ao olhar de à escuta atenta de Pedro Costa19. Segundo Antony
Fiant, este “material memorial se torna a fonte principal do diálogo final, um diálogo sempre
trabalhado, durante uma boa parte de sua espontaneidade inicial”20. Uma vez conquistada essa
relação de alteridade e esse método de trabalho, elabora-se no interior do filme uma cultura
vocal21 em que os habitantes das Fontainhas se exprimem uns aos outros e também ao
cineasta.

16
SENRA, 2008, p. 89.
17
É o caso, também, da relação entre o cineasta e Ventura: “Haverá sempre, como nesse filme com o Ventura
[Juventude em Marcha], um oceano entre eu e ele, eu não poderei jamais passar para o lado dele, eu não saberia
atravessar esse oceano para passar para o lado dele, e nem quero, acho que é mais interessante contar com esse
abismo, esse silêncio, de uma pessoa de uma outra classe social que a minha, eu não nasci naquela classe, não
tive a mesma vida que ele...Ventura dizia isso todos os dias, quase sem dizer : ‘nós estamos aqui fazendo um
filme sobre mim, sobre o meu passado, mas você nunca saberá o que eu sofri’”(COSTA, 2007b, s/p).
18
FERREIRA, 2018, p. 44.
19
“O que eu sei é que a minha matéria de trabalho é a memória, a memória das pessoas com quem eu trabalho”
(COSTA, 2015, p. 84).
20
FIANT, 2011, p. 88, tradução nossa. “(...) ce matériau mémoriel devient la source principale du dialogue final,
un dialogue toujours travaillé, pendant une bonne part de sa spontanéité initiale”.
21
A opção pelo termo “vocal” em detrimento de “oral” prolonga as ideias do medievalista Paul Zumthor.
Interessado em lançar novos olhares sobre a tradição literária do período medieval, o autor se questiona sobre a
natureza e as funções da oralidade na Idade Média, centrando suas reflexões no tópico da voz. A função poética
106

As vozes em No Quarto da Vanda estão constantemente engadas em uma interlocução,


mesmo que por vezes aparentem constituir monólogos. Para Carlos Melo Ferreira, o que está
em jogo é uma “tentativa de aproximação física entre os personagens, como numa partilha”22.
Ora, o mundo que essas figuras conhecem e habitam está ameaçado, sendo tombado pelos
tratores e as britadeiras, de forma que o contato, o toque, a escuta – a partilha, enfim – se
configuram como conforto que, apesar de efêmero, nunca é ilusório. À tragédia que se
anuncia entre as ruínas, os moradores das Fontainhas contrapõem um senso de comunidade
calorosa e alentadora que passa pelo verbo compartilhado, ou seja, por “palavras ditas no
quotidiano e em sofrimento, trocadas em improviso e sujeitas ao imprevisto, numa atitude de
convívio e de partilha com inequívoco significado político”23. A violência que acomete o
bairro não é suspensa, mas é consideravelmente apaziguada pelo consolo que as palavras vêm
contornar24.

Essa noção de comunidade é estreitamente ligada ao caráter rotineiro das palavras filmadas:
enquanto as máquinas realizam seu trabalho extraordinário, o diálogo é ordinário, cotidiano e
sereno, inserido no contexto da vida que enfileira episódios um em seguida do outro. Para
Thomas Voltzenlogel, “os numerosos diálogos entre dois personagens, reunidos em torno da
luz de uma vela durante a preparação de uma dose, lembram as conversas em torno de uma
fogueira nos faroestes que alimentaram Pedro Costa”25.

da voz, segundo sua hipótese, se relaciona aos modos de socialização dos textos medievais (canções, narrativas,
crônicas), ou seja, ao caráter oral das canções de gesta, canções de santo, entre outras. Entretanto, a voz é uma
coisa, portanto detentora de qualidades materiais como timbre, altura e alcance; e, sendo concreta, ela faz com
que a noção de “oralidade” se torne uma abstração: “é por isso que à palavra oralidade prefiro vocalidade.
Vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso” (ZUMTHOR, 1993, p. 21). Pretende-se, assim, que “cultura
vocal” resguarde a dimensão material implicada nessas vozes.
22
FERREIRA, 2018, p. 38.
23
Idem, 2009, p. 55.
24
Podemos pensar no estatuto da conversa entre os moradores das Fontainhas a partir dos termos de Daniel
Ribeiro Duarte (2018, p. 83), para quem o cinema de Pedro Costa “traz em si o paradoxo de, mesmo mostrando
um mundo desesperançado, oferecer-nos na própria matéria cinematográfica a possibilidade de novas formas de
vida”. Os diálogos trocados entre os moradores das Fontainhas não constituiriam “novas formas de vida” no
contexto de violação destrutiva e de morte paulatina a que o bairro está sujeito?
25
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 147, tradução nossa. “Les nombreux dialogues entre deux personnages,
rassemblés autour de la lumière d’une bougie pendant la préparation d’un fix, rappellent les conversations autour
d’un feu dans les westerns qui ont nourri Pedro Costa”.
107

Figura 3: Paulo "Muletas" (esq.) conversa com Russo (dir.) sob a luz de velas.

Esses diálogos que os moradores travam e que o aparato cinematográfico de Pedro Costa
capta também nos remetem a um texto canônico escrito por Walter Benjamin em 1936. Em
“O Narrador”, o autor alemão se debruça sobre a obra de Nikolai Leskov para refletir acerca
da arte de narrar, que se encontraria em “vias de extinção”26. Para Benjamin, porque fatores
como a guerra, o romance e a imprensa empobreceram as experiências comunicáveis, a
faculdade de intercambiá-las se viu comprometida. O narrador é aquele que recorre a essas
experiências que se transmitem de pessoa para pessoa para delas retirar sua fonte, contando e
recontando histórias para conservá-las. A narrativa consiste, no caso, em mergulhar a coisa
narrada “na vida do narrador para em seguira retirá-la dele”27, fazendo com que ela, a
narrativa, seja impregnada pela marca do narrador. Tais considerações nos recordam da
importância que a cultura vocal adquire nos filmes de Pedro Costa, em especial os que se
seguem a No Quarto da Vanda: os marginalizados que os filmes retratam são como mestres
da arte de narrar, de contar histórias, de comunicar experiências, de preservar uma memória
que os gestos bárbaros do higienismo social e do preconceito de classe prometem arruinar.

Em No Quarto da Vanda, no centro desses diálogos está Vanda Duarte, que “abre um mundo
com suas palavras”28, não apenas pelo que estas contêm e descortinam de sua subjetividade,
mas pelo que elas permitem desabrochar das subjetividades com quem ela conversa. A Vanda
se junta Zita, sua irmã, que compartilha com a protagonista a maior parte de cenas no quarto.
A absoluta consciência que ambas demonstram de que o mundo em volta está a ruir,
consciência traduzida em palavras, se estende aos demais habitantes das Fontainhas,
suspensos entre um presente que em breve se tornará futuro e um futuro que logo se tornará
presente. Segundo Pedro Costa, “Vanda é alguém muito lúcida, que possui um espaço, que

26
BENJAMIN, 1997, p. 197.
27
Ibidem, p. 205.
28
COSTA, 2007a, p. 75, tradução nossa. “Vanda ouvre um monde avec ses mots”.
108

sabe que há classes sociais, que há dinheiro no meio das relações entre as pessoas, e que
nunca para de falar de nós”29. Assim, quando a protagonista narra e lamenta, incrédula, a
prisão da mulher que roubou Caldo Knorr (naquela cena em que o cineasta prefere incluir
uma melodia de Webern para mascarar problemas de captação sonora do que dublar os
diálogos na pós-produção), ela conclui em tom pessimista: “o nosso país é mesmo o mais
pobre e o mais triste”.

Nhurro, por seu lado, é como o semelhante de Vanda no universo masculino do filme. Em
determinado momento, na escuridão quase absoluta que uma vela alumia, Paulo Muletas diz
que vai morrer30. Nhurro lhe responde, sussurrando: “Nós, os merdas, nunca morremos.
Quem morre são os inocentes”. Em outra ocasião, este último, uma silhueta recolhida em sua
casa, na presença de Russo, diz que a sujidade de seu cabelo faz com que ele cresça mais
depressa, antes de elencar as profissões que já teve (estacionador de automóveis, ladrão,
calceteiro, servente de pedreiro...) e constatar, enfim, que já não sabe mais o que lhe resta para
fazer no mundo31. Nesta cena, suas frases são sussurradas de tal maneira que parecem ditas
para si mesmo. Há uma cadência em sua fala que intercala as frases breves com silêncios
distendidos, formando uma espécie de compasso: Nhurro toma seu tempo antes de proferir
suas próximas palavras, as quais desaguarão em um novo período de silêncio antes do
sussurro seguinte. Estes instantes de silêncio, entretanto, não são desprovidos de sons: para
retomarmos as discussões do primeiro capítulo, os silêncios são uma impressão suscitada
principalmente pela quietude do ambiente sonoro, agora marcado não pelas máquinas e
britadeiras, mas pelo murmurinho distante do bairro e pelo melro que canta docemente na
casa.

Quando, em uma cena posterior, Nhurro é cercado pelos ruídos estridentes da demolição na
obscuridade de sua casa, sua voz aponta para o destino irremediável: “É hora... de abandonar
o barco”32. Aqui, novamente, sua voz surge em poucos decibéis, taciturna, como se dita para
si próprio, o que é substancialmente potencializado pela altura berrante dos sons acusmáticos
da destruição. Há uma pequena pausa em sua pronúncia, como se vacilasse a pronunciar as
palavras derradeiras. As vozes de Vanda e de Nhurro, enfim, se somam às muitas outras que

29
COSTA, 2007a, p. 76. “Vanda est quelqu’un de très lucide, qui a un espace, qui sait qu’il y a des classes
sociales, qu’il y a de l’argent au milieu des rapports entre les gens, et qui ne cesse de parler de nous...”.
30
No Quarto da Vanda, 53’51’’.
31
No Quarto da Vanda, 93’03’’.
32
No Quarto da Vanda, 117’23’’.
109

detalham as histórias singulares que compõem o bairro das Fontainhas. Ambos protagonizam,
aliás, uma das cenas mais emblemáticas quanto à dimensão e alcance dessas vozes.

A câmera fixa enquadra Nhurro no primeiro plano da imagem, o corpo voltado para o
espectador, recostado sobre a cama onde Vanda, deitada, repousa de olhos fechados 33. Metade
da imagem é preenchida pelo rosto suado do rapaz; a outra pelo torso e a cabeça da mulher,
estendidos horizontalmente. Após sua casa ter sido demolida, Nhurro busca abrigo na casa de
Vanda. Introspectivo, diz que traz consigo uma mochila onde guarda duas calças e uma
camisa. Fora isso, carrega uns “tênis velhos”. “Não tenho mais nada”, ele revela, mas
ressalva: “Tenho-te a ti. Já posso me contentar com isso”. Vanda lhe responde que sempre o
ajudou e continuará a ajudar, pois ambos se conhecem desde criança. Nhurro diz saber que
aquele é um quarto de menina, ao que Vanda, que agora não retira o olhar do teto, responde
que o problema é o caso de ele surgir enquanto ela está despida. “Se entraste, é porque pediste
para entrar”, ela diz. “Pois. Bati à porta. Pelo menos, aí, a pouca educação que meu pai me
deu foi assim”, ele responde. “Sempre que entro aqui, penso como se estivesse em minha
casa. Por isso é que vim te pedir um abrigo, um teto”, confessa. “E sabes que o tens. Não tem
porque não queres. Comida nunca te falou”, ela responde. Nhurro concorda: “Claro. Comida e
nem um lugar para me encostar”.

Figura 4: Nhurro conversa com Vanda no quarto penumbrado desta.

Enquanto a demolição sossega no extracampo – os sons acusmáticos constituídos apenas por


um murmurinho constante de vozes longínquas –, tudo isto é dito em baixo tom, como
sentenças confidenciadas. Há uma secura nas palavras de Vanda e uma brandura nas de
Nhurro; e enquanto Vanda é mais expressiva e segura em suas pronúncias, as frases de
Nhurro são atravessadas por uma sutil insegurança que parece fazê-lo buscar as palavras
certas para aquilo que ele quer comunicar: há pausas, oscilações, microssegundos para

33
No Quarto da Vanda, 132’09’’.
110

apanhar ar, frases que começam e não terminam... Não se trata da insegurança do ator diante
da câmera, mas do próprio Nhurro diante de seu destino, despejado de sua casa e em busca de
refúgio sob outro teto, dentro do quarto de Vanda.

Os diálogos seguem da mesma forma: “A vida que a gente quer é essa... A vida da droga”, diz
uma resignada Vanda, que continua deitada, mas ocasionalmente direciona o olhar para as
costas da cabeça de Nhurro. “Não, não é a vida que a gente quer; parece que é a vida que a
gente é obrigado a ter”, responde o rapaz, que continua: “Penso que já é um destino, um
traço...”. Quando ele, entretanto, confidencia que gastava os trocos que sobravam em droga,
Vanda volta à oposição entre sina e livre-arbítrio: “É assim, é a vida que uma pessoa quer,
acho eu”. A vida da droga “aconteceu-me a mim, a ti e a muitos mais”, ela resume. Nhurro
começa uma frase (“só que tu ainda tens uma mãe que...”) e Vanda completa (“me ajuda
muito”). “A minha mãe acima de tudo. Como esta há poucas”, ela pondera. “Eu também...
Não tenho ninguém como a minha mãe”, ele aquiesce. Eles concluem que mãe só há uma,
enquanto pais há muitos, e depois o rapaz continua: “Nunca me recusou nada. Também nunca
teve nada, não é?”. Novamente Nhurro tem sua sentença (“Mas o pouco que a minha mãe
teve, sempre...”) terminada por Vanda (“te deu”). Ele prossegue: “Evitava muito lhe pedir
dinheiro porque sabia que aquele pouco que ela tinha fazia-lhe falta. Também lhe fiz muito
mal, mas acho que ela sempre me perdoou. Por isso é que eu saí de casa. Para deixar de lhe
fazer mais mal”. No meio da fala de seu amigo, Vanda conclui o contrário do que dizia antes,
desanimada e com uma inflexão de voz descendente: “Pá, é o destino, acho eu...”.

Nhurro ainda conta que sua mãe deixou de beber e está “naquele tempo de ressaca”, enquanto
Vanda ainda discorre sobre seu cunhado e sua irmã, aprisionados e distantes do vício da
heroína. Por causa da droga, que ambos na cena consomem desde “putos” (garotos), ela
perdeu a avó e ele perdeu quem lhe ajudava. Vanda enfim levanta-se e diz “não aguenta ouvir
mais nada”. “Mas deixas-me ficar aqui? Por uns tempos”, Nhurro pergunta. “Claro que deixo.
Sabes que sim”, ela responde já nas imediações do quadro. Esta longa cena, gravada em
plano-sequência, é descrita aqui quase em sua integridade porque percorre uma vastidão de
temas importantes – liberdade, vício, família, morte, abstinência, dinheiro, desigualdade, entre
outros. Os interlocutores, que não trocam um único olhar e parecem demasiado atentos aos
próprios pensamentos, falam baixo, quase aos sussurros.

Para Voltzenlogel, o diálogo entre ambos, e em especial o que concerne a contradição interna
de Vanda, exprime a dificuldade que eles possuem de encontrar uma orientação na existência:
111

suspensos entre “entre uma determinação social objetiva” e a “possibilidade subjetiva de


agir”, essas figuras nos demonstram, através de suas vozes, “a improvisação cotidiana à qual
eles parecem condenados”34. A qualidade murmurada das vozes, em especial de Nhurro, nos
aproxima daquelas palavras e nos faz ouvi-las como se nos fossem confessadas. Por outro
lado, a câmera estática e a longa duração do plano convocam um distanciamento que nos
permite uma posição que, segundo Voltzenlogel, não se confunde com aquela dos atores35.

A cena ainda representa um dos momentos incomuns em que homem e mulher compartilham
um mesmo espaço. No Quarto da Vanda é um filme que contrasta de maneira muito
demarcada dois tipos de espaço distintos: um primeiro ocupado pelas mulheres, centralizado
no quarto de Vanda, e outro ocupado por homens, concentrado na casa de Nhurro. Por
questões que envolvem voz, ruídos e encenação, Pedro Costa enxerga no campo das mulheres
um lado teatral e no campo dos homens uma faceta cinematográfica: “as mulheres são o teatro
e os rapazes são o cinema”36. A distância que o cineasta se impõe de Vanda e das outras que
se juntam a ela, bem como a força e expressividade com que as vozes femininas são
exteriorizadas, se contrapõe aos jogos de decupagem do espaço e ao recolhimento e o
marasmo que atravessam as palavras masculinas. Essa separação de sexos, que Pedro Costa
aproxima de Lubitsch37, é diluída nas raras cenas em que um homem entra no quarto de
Vanda. É o que ocorre com Nhurro, ainda que neste caso a tendência ao sussurro continue a
ser mais forte no homem.

Figuras 5 e 6: Alternância entre o quarto de Vanda (espaço “feminino”) (esq.) e a casa de Nhurro (espaço “masculino”) (dir.).

34
“une détermination sociale objective des individus et la possibilité subjective d’agir” (VOLTZENLOGEL,
2018, p. 148) / “(...) l’improvisation quotidienne à laquelle ils semblent condamnés” (Ibidem, p. 149).
35
Para Carlos Melo Ferreira (2018, p. 114), os planos fixos e longos, nos filmes de Pedro Costa, implicam em
um distanciamento por parte do(a) espectador(a).
36
COSTA apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 55.
37
“(...) é divertido constatar que estas cenas lubitschianas, com mulheres cosmopolitas e galãs nervosos, podem
voltar a ser representadas com o mesmo charme e o mesmo humor numa outra classe social e noutros cenários”
(COSTA apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 55).
112

Essas vozes, que o microfone registra e a câmera filma, são evidentemente políticas e
pertencem à classe que Marx definiu como “lumpemproletariado”38. Mais do que
simplesmente resignadas, elas se contrapõem, em sua serenidade e cadência particulares, ao
furor intempestivo das máquinas e têm plena consciência daquilo que flagela o espaço em que
vivem. São vozes que, apesar de vacilantes, por vezes confusas, exprimem sentimentos
profundos e caracterizam o bairro a partir da subjetividade de cada morador. No Quarto da
Vanda não é um filme de denúncia, ao menos como se realiza comumente, nem acena para
um gesto revolucionário no interior da sociedade. Para Voltzenlogel, “mais modestamente, ele
[o filme] comunicaria que aqueles filmados não são nem delirantes, nem incapazes, nem
inativos. Ao contrário, eles nunca param de falar, de pensar, de inventar e de agir”39. Que se
retenha como fundamental, neste caso, a dimensão do falar: se quisermos nos apropriar de
uma expressão de Paul Zumthor, diríamos que nestas pessoas filmadas por Pedro Costa “o
sopro da voz é criador”40 Essa “mensagem”, que o filme expressa e torna política, se
contraporia dois discursos hegemônicos:
O primeiro é aquele do Estado, que considera os pobres como uma despesa social
drogada, doente e violenta que deve ser sistematicamente reprimida, isolada e
controlada. Isto se vê em No Quarto da Vanda quando os rapazes falam de seu medo
da polícia, quando Vanda evoca sua amiga atirada na prisão por ter roubado tabletes
de caldo Knorr, mas igualmente em Juventude em Marcha quando Ventura visita
um apartamento de conjunto habitacional no qual ele deve ser realojado. O segundo
discurso é aquele de uma esquerda radical ou revolucionária que repete um discurso
marxista vulgar ou proletário e descreve o Lumpemproletariado como uma classe
perigosa, sem consciência política e na qual são recrutadas as forças repressivas a
serviço da contrarrevolução 41.

É exatamente sobre isso que Ventura e Lento conversam no interior de um apartamento


incendiado em Juventude em Marcha42. Ruídos baixos e vozes distantes, ambos acusmáticos,
percorrem os pátios e apartamentos do conjunto habitacional da Boba. Ventura e Lento,

38
“(...) soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni
[lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel,
carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma,
toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la
bohème [a boemia]” (MARX, 2011, p. 91).
39
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 142. “Plus modestement, il communiquerait que ceux qu’il filme ne sont ni
délirants, ni incapables, ni inactifs. Au contraire, ils ne cessent de parler, de penser, d’inventer et d’agir”.
40
ZUMTHOR, 1997, p. 12.
41
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 142-143. “Le premier est celui de l’État qui considére les pauvres comme une
charge sociale droguée, malade, violente qu’il faut systématiquement réprimer, isoler et contrôler. On le voit
dans La chambre de Vanda quand les garçons parlent de leur peur de la police, quand Vanda évoquent leur amie
jetée en prison pour avoir volé des cubes Knorr, mais également dans En avant jeunesse lorsque Ventura visite
un appartement HLM dans lequel il doit être relogé. Le second discours est celui d’une gauche radicale ou
revolutionnaire répétant un discours marxiste vulgaire ou ouvriériste qui décrit le Lumpenprolétariat comme une
classe dangereuse, sans consciente politique et dans laquelle sont recrutées les forces répressives au service de la
contre-révolution”.
42
Juventude em Marcha, 137’02’’.
113

dentro da casa queimada, têm suas vozes reverberadas pelo vazio do cômodo. O primeiro
mira algo no horizonte, com o semblante compenetrado, e diz que “nem a polícia... nem a
COPCON43... nem os ciganos... e nem os brancos” conseguiram incendiar sua barraca. Uma
pequena pausa se instala entre cada período, como se Ventura listasse cuidadosamente os
agentes a que se refere, sinalizando para a violência que eles infligem sobre a classe
lumpemproletária. As vozes das Fontainhas, assim, resistem imperturbáveis ao avanço das
máquinas ou à política de realojamento, de forma que aquilo que Deleuze definiu como ato de
fala, “o enunciado cinematográfico ou a imagem sonora”44, se torna nos filmes de Pedro
Costa “ato de resistência”. Essas vozes vencem “a resistência dos textos dominantes, das leis
preestabelecidas, dos veredictos previamente decididos”45, carregando consigo a violência
paciente de quem resiste à ameaça e desconstruindo os preconceitos dominantes. Tal hipótese
é compartilhada por Carlos Melo Ferreira, para quem Pedro Costa herda dos Straub – o objeto
da análise de Deleuze – o ato de fala como ato de resistência46.

Vanda e Nhurro ressurgem em Juventude em Marcha, a primeira realojada no complexo


habitacional da Boba e o segundo trabalhando no Porto. Há apenas uma cena do rapaz no
filme, que chegamos a questionar se é encenada por pessoas “reais” ou por personagens
fantasmas. Por quê? Primeiro porque Bete, uma das “filhas” de Ventura, conta ao pai que
ouviu de alguns empreiteiros o nome de Nhurro durante um almoço e ele estaria supostamente
trabalhando no norte do país47. Ela, no entanto, “não acredita que seu irmão esteja vivo”.
Depois, a cena imediatamente seguinte nos mostra o encontro entre Ventura e Nhurro, em
uma local que se assemelha a uma loja de móveis48. Sabe-se que Ventura não possui amarras
espaço-temporais na narrativa do filme, portanto pode, entre um plano e outro, lançar-se de
Lisboa ao Porto, mas o salto não deixa de provocar estranhamento. Ventura pergunta a
Nhurro se está curado, ao que este responde baixo como para si próprio: “Eu não sou o
mesmo Nhurro que você conhecia antes, naquele buraco. Mas curado... Ninguém pode
afirmar isso”. Instantes depois, já em outro cômodo do mesmo espaço, Nhurro confessa a
Ventura que, apesar de estar ali, “sua cabeça está lá embaixo”, em Lisboa, com sua mãe.

43
A estrutura militar revolucionária que se criou em Portugal depois do 25 de Abril de 1974.
44
DELEUZE, 2018b, p. 366.
45
Ibidem.
46
FERREIRA, 2018, p. 44.
47
Juventude em Marcha, 65’23’’.
48
Juventude em Marcha, 70’03’’.
114

Neste momento, curiosamente, ele repete o diálogo do filme anterior: “Ela parou de beber faz
três semanas e está naquela fase de ressaca”. Ora, este Nhurro que vemos é um fantasma do
filme precedente, figura que Bete acredita não estar viva, ou um corpo em carne e osso que
confirma que a vida dos pobres, como de sua mãe, é repetir-se no vício? Novamente suas
palavras adquirem um tom neutro, com o rosto impassível iluminado diagonalmente. Há, no
entanto, uma diferença fundamental entre as palavras pronunciadas no filme anterior e aquelas
pronunciadas neste filme: antes, Nhurro dizia suas falas em português; agora, seu monólogo é
inteiro em Crioulo, língua cabo-verdiana. Aí reside um dos principais pontos de inflexão no
cinema de Pedro Costa: as vozes, depois de Juventude em Marcha, passam a lidar com o
Crioulo como uma espécie de língua oficial. É o caso da maior parte dos diálogos deste e dos
filmes seguintes do cineasta (com exceção de Ne Change Rien), e talvez aí compreendamos o
significado por trás da repetição daquela linha de diálogo: a língua que lhe anima, conjura, dá
vida, torna-a completamente diferente. Procedimento deflagrador da influência da
materialidade da voz (mídia) sobre seu conteúdo semântico (sentido).

Figura 7: Nhurro volta a falar da mãe em Juventude em Marcha.

Quando Pedro Costa assistiu Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro,
filme sobre a região em Portugal que dá nome ao filme, o cineasta se impressionou,
sobretudo, com o som fílmico, em especial com as palavras em dialeto mirandês, captadas
com sua mistura de sotaques e com sua musicalidade. Segundo ele, “agora que faço filmes,
sei que é mesmo um milagre conseguir esta variedade; e como minhas rodagens são
complicadas e duram muito tempo, o lado colorido das vozes, o que se pode fazer com elas e
com a língua funcionam como pequenos milagres quotidianos que ajudam a continuar”49. A
língua crioula, com sua riqueza de dialetos e inflexões, é o que lhe possibilita, especialmente,
essa coloração a que faz referência, pela sonoridade sensível e a poesia singular que perpassa

49
COSTA, 2014, p. 184.
115

cada voz. Entretanto, há algo de fundamentalmente político na opção pelo Crioulo, que se
relaciona tanto com uma postura ética-profissional do cineasta quanto com um sentimento de
pertença à língua por parte dos intérpretes.

No primeiro caso, trata-se, por parte de Pedro Costa, de investir sua escuta na língua que é
cotidianamente utilizada por seus atores e atrizes cabo-verdianos: por mais que residam em
um país em que a língua oficial é o português, estes imigrantes não renunciam ao Crioulo.
Assim, o cineasta se predispõe a colocar-se mais perto dos que filma, aprendendo sua língua
e, com isto, se interessando ainda mais por suas histórias. No segundo caso, os imigrantes
com quem ele trabalha podem enfim retornar à sua língua materna, preservando sua
identidade cabo-verdiana em país estrangeiro. Quando estes assistem a si próprios ou aos seus
próximos nestes filmes que resguardam o Crioulo, sabem que eles, e talvez somente eles,
compreenderão o que está sendo dito, que terão a chave para acessar o conteúdo daquelas
vozes sem o auxílio das legendas, essa ferramenta a que os demais espectadores estão
condenados.

Em Juventude em Marcha, essa pluralidade de vozes em Crioulo, à qual a voz de Vanda vem
se juntar, dá continuidade à lógica fragmentada dos discursos que estruturava o filme anterior,
lógica esta que possibilita ao espectador perceber, com certo distanciamento, que essas
histórias estão “dispersas em uma rede de corpos que apenas os encontros permitem reunir”50.
Em outras palavras, é no encontro com o outro que nascem as vozes desses imigrantes cabo-
verdianos ou pobres portugueses; como é na reunião desses enunciados dispersos que se
constrói um senso de comunidade superior. Também o espectador, no caso, “pode
pacientemente reunir” esses fragmentos de histórias, narrativas e memórias, os quais se
opõem, segundo Voltzenlogel, “ao curso lógico e linear do processo de destruição e de
realojamento”51. O mesmo autor defende que, no cinema de Pedro Costa, não há distinção
entre os grandes discursos de emancipação e aqueles anedóticos, da ordem cotidiana:
A construção lenta e paciente dos filmes tende, ao contrário, a mostrar como as
histórias se constroem, se cruzam, se interpenetram, se completam. Para Vanda, Zita
ou Ventura, a anedota não é um fim em si – ela é um ponto nodal (e não um ponto
de partida, mas um ponto que se encontra sempre no meio de qualquer coisa) a partir
do qual eles vão estabelecer correspondências. Esses pontos nodais são feitos de
múltiplas marcas que os incitam a falar, a contar aquilo a que elas remetem. (...). A

50
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 150. “(...) dispersés dans un réseau de corps que seules les rencontres permettent
de rassembler”.
51
Ibidem, p. 147. “Au déroulement logique et linéaire du processus de destruction et de relogement”.
116

multiplicação das anedotas é suficiente para mostrar a heterogeneidade dessa classe


de pobres52.

Por mais que os filmes mantenham em comum a disposição fragmentada das histórias, o
tratamento das vozes que lhes evocam é consideravelmente diverso. Para Rancière, há em
questão uma ruptura: enquanto Ossos “se desenrolava sob o signo de um certo mutismo” e No
Quarto da Vanda “adotava, com um jeito documental, o tom da conversa entre quatro
paredes”, o último filme da trilogia das Fontainhas “instala blocos de silêncio entre dois
regimes bem distintos de palavra”53. O primeiro regime é representado pelas cenas no novo
quarto de Vanda, em que ela adota “o mesmo tom familiar de outrora” para contar, entre
outras coisas, sobre o abandono do vício da heroína, sobre as dores que antecediam o parto de
sua filha ou sobre sua aversão a hospitais54. Seus longos diálogos com Ventura, próximos do
naturalismo, são tornados solilóquios pelo silêncio de seu interlocutor. O outro regime de
palavra nutre-se deste silêncio de Ventura e dele se manifesta, variando “entre a fórmula
lapidar (próxima de um epitáfio ou de um hemistíquio de tragédia) e a dicção lírica”. Neste
segundo sistema, em que a palavra parece “emanar, mais do que dos lábios de um locutor,
diretamente do fundo de um ser e de sua história”, Pedro Costa se aproximaria, segundo o
autor, da poética de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a quem, não coincidentemente, o
cineasta português dedicou um documentário no período entre No Quarto da Vanda e
Juventude em Marcha.

Também James Quandt nota uma qualidade straubiana nos monólogos de Juventude em
Marcha, que “parecem inspirar-se nos filmes recentes de Straub e Huillet”55. Visto que o
cineasta português sempre reconheceu a influência do casal francês, e que uma variedade de
pontos de semelhança pode ser encontrada entre as duas cinematografias, as comparações são
sintomáticas. Como ocorre no cinema dos Straub – mas também em Bresson e Ozu –, “não há

52
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 151. “La construction lente et patiente des films tend au contraire à montrer
comment les histoires se construisent, se croisent, s’interpénètrent, se complètent. Pour Vanda, Zita ou Ventura,
l’anecdote n’est pas une fin en soi, elle est un point nodal (et non un point de départ mais un point qui se trouve
toujours au milieu de quelquer chose) à partir duquel ils vont risser des correspondances. Ces points nodaux sont
faits des multiples traces qui les incitent à parler, à raconter ce à quoi elles renvoient. (...). La multiplication des
anecdotes suffit à montrer l’hétérogénéité de cette classe de pauvres”.
53
RANCIÈRE, 2010a, p. 104.
54
Ainda que o tom familiar e naturalista seja preponderante nessas cenas, elas são fruto de constantes repetições,
variações e afinações. Sobre o plano-sequência em que Vanda relata sua experiência no hospital no período do
nascimento de sua filha, Pedro Costa (2014, p. 73) comenta: “A cena em que a Vanda fala do parto dela, que é
provavelmente a cena que pode parecer mais improvisada, foi feita vezes sem conta, dias a fio, palavra por
palavra, e temos pelo menos dez takes, muito boas e parecidíssimas. Foi um trabalho de semanas e semanas de
mecanização pura e simples, de repetição das ideias e das palavras”.
55
QUANDT, 2009, p. 38.
117

plenitude psicológica nos filmes de Pedro Costa”56. Em outra chave, Juventude em Marcha
ecoa o engessamento dos corpos, do qual emerge certo grau de hieratismo, dos intérpretes
straubianos: monumentalizadas, procedendo por movimentos mínimos, essas figuras
hieratizadas, em Costa ou em Straub-Huillet, parecem carregar em suas vozes o peso de algo
que as ultrapassa – algo para além do indivíduo, da ordem do ancestral ou do subterrâneo.
Entretanto, há diferenças na maneira como os diálogos são declamados nos filmes de Pedro
Costa, o que acompanha uma tendência expressa, inclusive, na montagem de seus filmes. Para
Tag Gallagher, enquanto os Straub compreendem a montagem como um instrumento para
clarificar, Pedro Costa faria da operação dos cortes um desafio para seus espectadores.
Igualmente, os atores straubianos “nos oferecem uma porta de entrada especial, uma clareza
obtida através de ritmos treinados, vozes como instrumentos musicais”, disposição que parece
inexistir em Pedro Costa, cujos filmes contêm diálogos “por vezes monocórdicos, emitidos
em curtas rajadas, e muitas vezes elípticos e inescrutáveis”57.

Voltemos à distribuição dos regimes de palavra proposta por Rancière. Em que consiste a
materialidade dessas vozes que pertencem ao regime em que se insere Ventura? O autor já nos
apontou para o tom que oscila “entre a fórmula lapidar e a dicção lírica”, como igualmente
referiu-se ao primeiro monólogo do filme, proferido por uma mulher cabo-verdiana chamada
Clotilde, como algo da ordem “da palavra nobre e da dicção teatral”. A impressão teatral ou
lapidar se deve, em grande medida, ao distanciamento pessoal que os atores imprimem ao
texto. Ventura, Lento ou Bete não “representam”, não estabelecem com o texto uma relação
clara de pertencimento, antes preferindo recitá-lo. São figuras esvaziadas de psicologia, que
eliminam traços de “espontaneidade” e se opõem ao registro naturalista adotado por Vanda
em seu novo quarto. Para Voltzenlogel, a “dicção distanciada” e a “condensação de
informações em um mínimo de frases” nos auxiliam a identificar o trabalho de repetição a que
se propõe o método de Pedro Costa58. O autor prossegue:
Se as conversas entre Vanda e Zita dão a impressão de não terem sido preparadas, os
diálogos entre Ventura e Lento ou Bete parecem, ao contrário, ter sido preparados e
recitados antes da filmagem, mesmo que não tenham sido escritos. Pedro Costa
explica que ele começa “por escutar” o que os personagens com os quais ele trabalha
tem a dizer, depois ele seleciona “momentos e histórias que ele considerava

56
SENRA, 2008, p. 91.
57
GALLAGHER, 2009, p. 45.
58
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 151. “Le travail de répétition est perceptible à la fois dans la diction des acteurs
distanciée de leurs histoires et dans la condensation des informations en un minimum de phrases”.
118

interessantes” antes de lhes pedir “para dizer de novo” a fim que o “o tom adquira
aquela aura mais descolada, mais distante”59.

Os motivos para esse distanciamento podem ser buscados na dialética que se define, em
Juventude em Marcha, entre a história individual e a História coletiva. Stella Senra acredita
que a distância que os intérpretes imprimem às suas falas contribui para “evitar qualquer traço
de expressão (marcas do ‘eu’) que as remeteria a um ‘indivíduo’, mas também toda operação
de generalização que sugeriria uma ‘enunciação coletiva’”60. Em outras palavras, os diálogos
“desprendidos” de um corpo, recitados menos como diálogos do que como frases, suspenderia
o intérprete de sua identidade individual e o desaproximaria, igualmente, de uma suposta
proposição comunitária. A afirmação de Senra não se coloca sem problemas, visto que o jogo
com os atores nos parece mais complexo: mais do que “suspender” o ator entre os dois polos
dessa dialética, a pronúncia distanciada dos diálogos permite, ao contrário, que ele tangencie
ambos. Por mais que se eliminem traços de expressão e se busque uma dicção lapidar ou
lírica, não se apagam as particularidades sonoras de cada voz: identidade individual. Ventura
não possui a mesma voz de Lento, que não detém a mesma voz de Bete, e assim a
individualidade se mantém preservada em certa medida. Para retomarmos Dolar, a recitação
dos diálogos de forma distanciada não impede que o timbre da voz permaneça como uma
verdade incontornável de cada indivíduo.

Abordar a questão da História coletiva resvala em uma discussão mais complexa. Quando
Carlos Melo Ferreira afirma que Ventura é um imigrante cabo-verdiano que carrega consigo
“uma longa história presentificada pela memória e expressa em palavras”61, esta história não
se reporta somente ao que ele, individualmente, viveu. Ventura é como um espectro da
História, um homem que é como um grande pai daquela comunidade desalojada das
Fontainhas, não à toa tratando seus próximos, no filme, como “filhos”, a quem estende sua
mão e sua escuta. Para Pedro Costa, “Ventura é uma espécie de mito fundador do bairro”, mas
um mito trágico: “é um dos primeiros heróis a fazer a primeira barraca e, ao mesmo tempo, é
o símbolo de todos os que caem dos andaimes e dos postes e ficam malucos ou deficientes” 62.
Na mesma linha, Daniel Ribeiro Duarte argumenta que a “solidão de Ventura, isolada pelos
59
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 151. “Si les conversations entre Vanda et Zita donnent l’impression de ne pas
avoir été préparées, les dialogues entre Ventura et Lento ou Bete semblent au contraire avoir été plus préparés et
récités avant l’enregistrement et ce, quand bien même ils n’auraient pas été écrits. Pedro Costa explique qu’il
commence ‘d’abord par écouter’ ce que les personnes avec lesquelles il travaille ont à dire, puis il sélectionne
‘des moments et des histoires qu[‘il] trouvai[t] intéressantes’ avant de leur demander ‘de les dire à nouveau’ afin
que ‘le ton pren[ne] cette allure plus détachée, plus distante’”.
60
SENRA, 2018, p. 94.
61
FERREIRA, 2018, p. 14.
62
COSTA, 2014, p. 90.
119

procedimentos poéticos do filme, condensa uma multidão de mortos anônimos que caíram
para que a história pós-colonial de Portugal se consolidasse”63. Assim, suas palavras, bem
como seus gestos, tocam a realidade de muitos cabo-verdianos que, como ele, residiram e
residem em país estrangeiro; elas tornam-se, portanto, discursos de uma identidade coletiva64.

Para Paul Zumthor, a beleza da voz humana pode “conceber-se como particular, própria ao
indivíduo emissor do som vocal”, mas pode também ser concebida como “histórica e social
naquilo que une os seres e, pelo uso que fazemos dela, modula a cultura comum”65. Ora, a
qualidade distante da voz de Ventura, seu aspecto “desincorporado”, reafirma sua
proximidade para com a enunciação coletiva; por outro lado, texto algum é neutro quando
pronunciado por uma voz e tornado palavra vocalizada por determinado corpo social. Sobre
isto, Daniel Ribeiro Duarte afirma que o “esvaziamento dos gestos e a neutralidade do texto
como tarefa da ordem do impossível são capazes de fazer ver, através da exterioridade, o
combate do ator com as palavras que emite e nesta luta é que expõe a sua singularidade”66. A
dialética da voz de Ventura se manifesta neste combate: específica em seu timbre, ela
pertence ao emissor independentemente do tom de declamação do texto; distanciada, ela
reporta a uma história coletiva que não invalida, antes complementa, sua subjetividade: “(...)
os filmes de Pedro Costa nos mostram personagens que só existem na implicação recíproca do
singular e do comum”67.

Ventura não é o único indivíduo alinhado a uma comunicação coletiva. Uma cena com Lento,
em Juventude em Marcha, pode nos auxiliar a clarificar e refletir sobre essa dialética. Trata-se
da já referida sequência em que Ventura e seu “filho” se encontram dentro de um apartamento
incendiado na Boba. Após abrir a porta de entrada chamuscada a Ventura, Lento, portando um
gorro e um paletó cinza vestido sobre uma camiseta amarela, acompanha seu companheiro à
sala consumida pelo fogo. Ventura pousa sua mão sobre a mão de Lento, um ao lado do outro,
encarando algo fora de campo. Com sua voz neutra, se assim podemos referi-la, ele diz ao
filho: “Dizem que você pulou janela abaixo com os quatro filhos, a mulher, e caíram em cima
de um carro, todos em picadinho”. “Eu gritei até não poder mais, pela minha mãe, meu pai, os
bombeiros, Santa Teresa, a generosa... Gritei até o seu nome”, responde Lento, com tom

63
DUARTE, 2018, p. 31.
64
Para Carlos Melo Ferreira (2009, p. 56), “pelos diálogos e monólogos deste filme perpassa uma busca das
origens, próximas e distantes, a construção da memória, o estabelecimento e exteriorização de laços familiares
de uma forma que configura, muito mais que o registo de uma comunidade, a fundação dele”.
65
ZUMTHOR, 1993, p. 20.
66
DUARTE, 2018, p. 84.
67
Ibidem, p. 41.
120

igualmente distanciado68. Pede que Ventura veja suas mãos, “queimadas”, que ficaram
coladas na parede por conta da temperatura elevada. Elas, no entanto, não demonstram
qualquer cicatriz: torna-se evidente que Lento está representando alguém que ele efetivamente
não é.

Figura 8: Lento (esq.) e Ventura (dir.) no apartamento incendiado na Boba.

Mais adiante, na mesma casa incendiada, ambos entram no quarto que pertencia às crianças.
Lento, ou quem ele representa na cena, diz que ateou fogo no colchão – “por causa de todos
os nossos problemas”. O plano em que ambos figuram é sintomático da situação narrada:
Ventura, em plano médio, é banhado pela luz de uma suposta janela, a que direciona seu
olhar, enquanto Lento, atrás, é mantido na penumbra como um fantasma cujos traços se
confundem ao breu. Este sequer é o mesmo Lento que vimos no decorrer do filme,
companheiro de barraca de Ventura, com quem joga cartas e teme pela revolução nas ruas.
Aliás, o Lento-personagem desta barraca primordial, que se situa algures no contexto da
Revolução dos Cravos, suspensa entre tempos, não é, evidentemente, o mesmo Lento-ator.
Antes, portanto, ele representava alguém que viveu com Ventura em tempos passados e que
também morreu depois de cair de um poste de eletricidade; agora, ele representa outra pessoa
que, na Boba do presente recente, preferiu o suicídio à experiência trágica da existência. Há
pistas, por outro lado, que nos indicam se tratar da mesma pessoa: ambos fazem menção, por
exemplo, a uma mulher chamada Arcângela. A sequência no apartamento incendiado,
segundo Rancière, nos indica que
(...) os episódios do filme não são momentos vividos da vida de dois imigrantes
apreendidos pela câmera. Eles são ficções – mas uma ficção de um tipo particular:
não histórias de personagens imaginados e interpretados por atores, mas pequenas
cenas, à maneira do Brecht de Terror e Miséria no Terceiro Reich: cenas que são
formas de condensação de sua história e da história de todos os trabalhadores

68
Sobre esse diálogo, entre Ventura e Lento, Rancière (2018, p. 138, tradução nossa) comenta: “Eles são como
atores de teatro e seu diálogo adquire o ritmo de uma psalmodia trágica com suas vozes alternadas”. No original:
“Ils sont comme des acteurs de théâtre et leur dialogue prend le rythme d’une psalmodie tragique avec ses voix
alternées”.
121

imigrantes que partilham de seu destino nas metrópoles do Capital. O que Lento
conta não lhe aconteceu. Mas aconteceu, de fato, a uma família de imigrantes cabo-
verdianos durante a rodagem do filme. E a história desta se encontra integrada à
performance de Ventura e Lento. Simplesmente eles não a performam como atores
assumindo papéis. Eles a performam com seus corpos marcados pelo exílio e pela
exploração, corpos que carregam a marca global da condição da qual eles falam,
mesmo se o que eles dizem aconteceu a outros69.

Assim, os atores conjuram experiências de outrem através, principalmente, de seus corpos,


ponte entre a experiência individual e coletiva. Na medida em que emprestam estes corpos
explorados ao exercício da ficção coletiva, também um movimento em direção ao indivíduo
se desvela: o corpo de Lento, nele incluso sua voz, sua dicção e sua respiração, atua como
peça que une a história coletiva à sua história individual, pois a ficção (história imaginada)
nasce no corpo único e indivisível do ator. Para Rancière, Lento é como um “habitante dos
Infernos”, duas vezes morto no mesmo filme, e é em sua condição de zumbi ou de juiz
infernal que “ele pode fazer aparecer a vida de todos aqueles que partilham sua condição por
aquilo que ela é: uma vida suspensa entre vida e morte, uma vida de mortos-vivos”70. À
imagem do imigrante pobre morto-vivo se soma, segundo o autor, outra que nos faz retornar
aos argumentos de Voltzenlogel sobre a capacidade de invenção e ação dos atores de Pedro
Costa: “eles são artistas, capazes de transformar sua história em vários pequenos esquetes em
que eles se fazem os intérpretes”71.

O que descrevemos, grosso modo, é um deslocamento da história coletiva rumo à história


individual do ator. Entretanto, há igualmente, e talvez de forma mais constante, o movimento
inverso, em que os atores conjuram suas experiências pessoais e acabam por tocar na
trajetória de outrem. Tag Gallagher, em texto que compara o cinema dos Straub ao de John
Ford, utiliza um termo absolutamente pertinente para o estudo em questão: trata-se da noção

69
RANCIÈRE, 2018, p. 139-140. “(...) les épisodes du film ne sont pas des moment vécus de la vie de deux
immigrants saisis par la caméra. Ce sont des fictions – mais de fiction d’un type particulier : non pas des
histoires de personnages imaginés et joués par des acteurs mais des petites scènes, à la manière du Brecht de
Grand-Peur et Misère du IIIe Reich: des scénes qui sont des formes de condensation de leur histoire et de celle
de tous les travailleurs migrants qui partagent leur destinée dans les métropoles du Capital. Ce que Lento raconte
ne lui est pas arrivé. Mais c’est arrivé, de fait, à une famille d’immigrants capverdiens pendant le tournage du
film. Et leur histoire s’est trouvée intégrée à la performance que Ventura et Lento donnent ici. Simplesment ils
ne la donnent pas comme acteurs endossant des rôles. Ils la donnent avec leur corps marqués par l’exil et
l’exploitation, des corps qui portent la marque globale de la condition dont ils parlent, même si ce qu’ils disent
est arrivé à d’autres”.
70
Ibidem, p. 140. “C’est en tant qu’habitant des Enfers qu’il peut faire apparaître la vie de tous ceux qui
partagent as condition pour ce qu’elle est: une vie suspendue entre vie et mort, une vie de morts-vivants”. Se nos
reportarmos às discussões do primeiro capítulo, notaremos que a herança de Tourneur e de seus personagens
zumbificados continua a se manifestar no terceiro filme da trilogia das Fontainhas, herança esta também
afirmada por Rancière.
71
Ibidem, p. 141. “(...) ils sont des artistes, capables de transformer leur histoire en autant de petites saynètes
dont ils se font les interprètes”.
122

de ricorso. Em No Rufar dos Tambores (John Ford, 1939), Henry Fonda retorna da guerra,
que não vemos, e “revive” os acontecimentos que sucederam através de um longo monólogo
filmado em plano-sequência72. A jornada emocional da personagem, assim, é experimentada
pelos espectadores conforme sua voz repassa os eventos da batalha, que em momento algum é
visualizada na imagem. Ora, Juventude em Marcha é um filme povoado por ricorsos que
pelas vozes dos atores ou atrizes contam e revivem uma história passada que nunca nos é dada
a ver.

Figuras 9 e 10: Henry Fonda recorda a guerra em No Rufar dos Tambores (esq.) e Ventura recorda sua chegada em
Portugal em Juventude em Marcha (dir.).

Pensemos, por exemplo, na cena de Ventura no jardim da Fundação Gulbenkian73.


Acompanhado do segurança negro que o retirou do museu, ele evoca, com “dicção lírica”, sua
chegada em Portugal no dia 19 de agosto de 1972. O primeiro plano da cena, um plano geral
em contra-plongée, nos mostra os galhos e as folhas de uma árvore. Pássaros gorjeiam no
extracampo, mas o cenário bucólico não nos isola da cidade, visto que carros não tão distantes
transitam continuamente e produzem ruídos acusmáticos. Sobre esta imagem, as palavras de
Ventura, também acusmáticas, se sobrepõem ao ambiente sonoro e começam a recordar a
viagem de avião, a comida servida durante o voo e o choro do primo que o acompanhava.
Subitamente, a câmera descreve um movimento suave, diagonal, descendente, girando sobre o
próprio eixo. A voz de Ventura, ainda acusmática, continua a minuciar a chegada ao
aeroporto, o começo na construção civil, o salário, entre outros. A câmera, que mantém seu
movimento em espiral, finalmente cruza com os pés de Ventura, que caminham no solo
terroso com folhas dispersas, e termina por acompanhá-lo até ele se sentar em uma espécie de

72
GALLAGHER, 2005, s/p. A mesma operação se encontra, por exemplo, anos antes, em A Vingança dos 47
Ronins (Kenji Mizoguchi, 1941).
73
Juventude em Marcha, 43’58’’.
123

arquibancada74. Quando a câmera volta a se fixar, Ventura está enquadrado em plano médio e
continua seu ricorso: explica como construiu, junto de seus companheiros pedreiros, o prédio
do Museu Gulbenkian, de onde foi expulso momentos antes.

A trajetória em caracol da câmera, neste que é um dos raros movimentos do aparato no filme,
parece acusar o acesso aos labirintos da memória de Ventura, como se projetasse nesta espiral
a descida aos recônditos do passado. Pedro Costa nunca reconstrói via imagem, entretanto, os
acontecimentos descritos no monólogo de Ventura, preferindo que a voz, elemento sonoro,
cumpra a função de revivê-los. Ao mesmo tempo, a história de Ventura é parelha àquela de
muitos outros imigrantes cabo-verdianos que pousaram seus pés em Portugal na década de
1970 em busca de melhores condições de vida e de trabalho. O alcance amplo de sua voz,
portanto, não é decorrente apenas do tom distanciado com que ela é pronunciada, mas
também do conteúdo semântico das palavras. O ricorso, neste sentido, parte do indivíduo para
descobrir o coletivo, não trazendo prejuízo nem ao primeiro nem ao segundo, antes
estabelecendo entre ambos uma relação de complementaridade e comunhão. A isto se
relaciona diretamente a afirmação de Pedro Costa, bem como a tal dialética que a contorna:
“É preciso um tipo que fale por seiscentos desaparecidos, por quatro mil mortos. Somente um.
É preciso que em um momento, durante um segundo ou dez minutos, ele fale pelo bairro,
pelos outros”75.

A sequência no apartamento incendiado a que nos referíamos, e em especial o plano em que


Lento é escondido pelas sombras, prossegue em tom distanciado: “Você conseguiu tudo,
Ventura. Água, eletricidade, gás, uma carteira de identidade. Você trabalhou dia e noite”.
Ventura olha para o chão, direcionando-se à saída, e faz uma reserva: “Eu durmo sozinho”.
Pensamos na condição dos que foram realojados para a Boba: eles “conquistam” uma casa,
um teto, mas os sensos de pertença e de comunidade lhes são paulatinamente retirados.
Ventura, ao exprimir um sentimento pessoal, de solidão (sua mulher lhe expulsou de casa no
início do filme e seus “filhos” não vão morar com ele no apartamento novo com muitos
quartos), remete ao sentimento coletivo de uma comunidade cujos elos se perderam, em
grande parte, entre as ruínas das Fontainhas. Destituído de sua casa logo no princípio de sua

74
Trata-se da arquibancada do anfiteatro ao ar livre que se encontra nas dependências da Fundação Gulbenkian.
No filme, entretanto, nunca nos é dado a ver o palco.
75
COSTA, 2012, p. 21. “Il faut un type qui parle pour six cents disparus, pour quatre mille morts. Juste un. Il
faut qu’un moment, pendant une seconde ou dix minutes, il parle pour le quartier, pour les autres”. Acrescente-se
ainda, à afirmação de Pedro Costa, outra do próprio cineasta (apud NEYRAT; RECTOR, 2012, p. 82): “Para
mim, nos melhores casos, uma personagem é uma concentração de muitas pessoas num só corpo”.
124

jornada, Ventura encontra a História dos que também foram destituídos de suas moradas. “Por
acaso tivemos uma infância fixe aqui no bairro”, dizia Zita no filme anterior: as experiências
dela e dos outros que habitavam as Fontainhas coincidem e se completam com as experiências
de Ventura, num encontro que a voz distanciada deste último verbaliza e intensifica.

Quando Ventura se dirige à porta de saída do quarto dos filhos, Lento segura sua mão e
começa a recitar a carta que o primeiro lhe pediu, anteriormente, para memorizar. É sobre esta
carta, quiçá a peça mais importante do filme, que devemos nos debruçar por último. Na
primeira vez em que a ouvimos – sua existência não é física, sendo antes recitada –, Lento e
Ventura jogam cartas na barraca antiga76. O mais jovem pede ao senhor idoso, letrado, que
escreva uma carta de amor para sua mulher, Arcângela. Ventura começa a recitá-la sem
desviar sua atenção do carteado, até que pede por uma caneta. “Na barraca não tem caneta”,
diz Lento. “Isso é triste”, diz o recitante. Na cena seguinte, a voz acusmática de Ventura
chama por seu companheiro, encolhido em primeiro plano na escuridão de um cômodo. O
som da lanterna a gás agora prepondera no ambiente. Lento ergue a cabeça enquanto Ventura
lhe sussurra, agora na imagem, os mesmos versos da carta. Durante o filme, a situação se
repete constantemente, com Ventura a declamá-la para que Lento a aprenda, pronunciando os
versos “ora perdido em seu devaneio, ora com a autoridade do professor que martela as
palavras a serem incutidas numa cabeça refratária”77.

A carta parece destinada a uma mulher que Ventura teria deixado para trás em Cabo Verde,
revezando seus versos de amor entre a esperança de reencontro e o relato da vida imigrante.
Curiosamente, não é primeira vez que a carta surge no cinema de Pedro Costa, também
presente em Casa de Lava, o segundo longa-metragem do cineasta. Uma investigação de sua
função no filme em questão nos auxilia a compreendê-la no contexto do último filme da
trilogia das Fontainhas. Naquele, Leão (Isaach de Bankolé) é um pedreiro cabo-verdiano, em
Lisboa, que sofre um acidente no trabalho e, em coma, é levado de volta à sua terra de
origem. Mariana, enfermeira interpretada por Inês de Medeiros, o acompanha e perambula
pelas terras de Cabo Verde, onde conhece, entre outros, Tina, irmã mais nova de Leão, e
Edite, mulher portuguesa que teria migrado para o arquipélago após seu marido ser retido
como preso político no campo do Tarrafal. Em certa ocasião, Mariana encontra na gaveta de
Edite uma carta escrita em Crioulo. Acreditando ser de Leão, pede a Tina para que a leia.
Trata-se da mesma carta que Ventura recita ao longo de Juventude em Marcha, enunciada sob
76
Juventude em Marcha, 16’19’’.
77
RANCIÈRE, 2010a, p. 105.
125

outro contexto e envolvendo personagens diferentes. Leão acorda do coma, mas, quando
questionado por Mariana sobre a carta, não explica sua origem.

Para Chris Fujiwara, em Casa de Lava a “escrita atribui às pessoas os seus lugares e exerce
poder sobre o corpo, que pode erguer e transportar”78. É uma carta anônima que envia Leão
de volta para Cabo Verde, como também, inversamente, é através de cartas que surge a
possibilidade, sonhada por Bassoé (pai de Leão) e seus filhos, de trabalhar na construção civil
em Sacavém. Também Edite entrega um molho de cartas para Tina e lhe confia a segurança
delas – a mesma Tina que traduz a carta de amor em Crioulo. A hipótese de Fujiwara é que
“talvez seja a Tina que a história do filme acontece, e talvez seja ela quem, armada destes
textos, pode conduzir a história a um novo lugar e tempo”79. Mais do que isto, a carta em
Crioulo é como a matéria que une, mesmo momentaneamente, essas personagens em instantes
de solidária correspondência: Mariana, que rouba a carta, a entrega para Tina, por sua vez
apoiada sobre Leão no leito do hospital; assim, as três personagens compartilham o mesmo
enquadramento durante a leitura dos primeiros versos. Na medida em que a montagem do
filme nos desloca para o rosto de Edite em sua casa, enquanto ainda se ouve a voz de Tina
sobre as imagens, esta última é também inclusa na equação que a carta principia.

A hipótese de interpretar esta carta como tendo sido escrita pelo marido de Edite, assassinado
no campo de concentração do Tarrafal, encontra respaldo no material original em que a carta
de baseia. Segundo Rancière, a carta (de Ventura, mas também de Edite e de Leão) possui
duas fontes diferentes: por um lado, cartas reais dos emigrados do Cabo Verde em Lisboa; de
outro, uma carta enviada pelo poeta francês Robert Desnos para sua mulher Youki quando
este era prisioneiro no campo de concentração Theresienstadt80. Neste caso, a carta evoca a
memória dos prisioneiros de Terezín, do Tarrafal e, hoje, das Fontainhas. O campo de
concentração do Tarrafal, que dá nome a um curta que Pedro Costa realizou, na ilha de
Santiago, é o espaço “onde o poder salazarista exilou, aprisionou e fez morrer os opositores
mais resolutos à sua ditadura”81.

78
FUJIWARA, 2009, p. 121.
79
Ibidem.
80
RANCIÈRE, 2010a, p. 105.
81
LEMIÈRE, 2009, p. 101.
126

Figura 11: Os pijamas listrados de Ventura.

Ventura não apenas nasceu na ilha de Santiago como também veste, durante algumas
sequências de Juventude em Marcha, uma camisa riscada à maneira dos uniformes de campos
de concentração nazistas. De certa forma, o cineasta e seus atores nos dizem que algo
perdurou do período nazista ao cotidiano presente dos imigrantes cabo-verdianos,
atravessando a história recente do Estado Novo em Portugal: a condição marginalizada,
reprimida e perseguida de determinadas classes sociais. A carta, portanto,
é um jogo de ligações que atravessa os tempos históricos e que cria uma
contemporaneidade entre o extermínio em Flöha/Terezin ou no Tarrafal e a violência
daqueles que negligenciam e esquecem, endossando a macabra exploração da qual
são vítimas os imigrantes cabo-verdianos em Portugal82.

Em Juventude em Marcha, a carta, cuja origem na narrativa se mantém imprecisa, volta a


reunir os seres, especialmente Ventura e Lento. Ao longo do filme, ambos compartilham não
apenas a penumbra da barraca, mas também as palavras conjuradas pela voz de Ventura.
Diferentemente do que ocorre em Casa de Lava, no entanto, o tom da carta é menos epistolar
do que mnemônico: Ventura, tendo decorado seu conteúdo, recita-a para não esquecê-la e
igualmente para não esquecer-se (“às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer-me”, diz
o último verso). Por Ventura ser um homem que carrega, sobretudo, traços de história e de
memória, a carta se torna um instrumento de sobrevivência porquanto de rememoração. Além
disto, Jacques Rancière relaciona a carta de amor com a “política de arte” de Pedro Costa,
afirmando-a como modelo de “uma arte onde a forma não se separa da construção de uma
relação social e da mobilização de uma capacidade que pertence a todos”. Para o filósofo

82
DUARTE, 2018, p. 101.
127

francês, está em questão “a proximidade da arte com todas as formas em que se traduz a
afirmação de uma capacidade de partilha ou de uma capacidade partilhável”83.

Ou seja, reivindicando uma concepção norteadora de partilha, a carta é colocada à disposição


daqueles com que Pedro Costa trabalha. Pobres ou imigrantes cabo-verdianos se apropriam
desta carta de amor cujos termos podem “tomar de empréstimo para os seus próprios
amores”84. Se quisermos utilizar as palavras que Rancière dedica a outro tópico,
nomeadamente o do espectador emancipado, retirando-as de seu contexto original, diríamos
que Ventura “compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem à sua frente”85.
Composta igualmente a partir de uma ideia originária de partilha, em que as palavras de
Desnos se somam às palavras dos imigrantes e ambos se complementam mutuamente, a carta
atua, segundo o filósofo francês, como “uma partitura do mesmo gênero daquela talhada por
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub nos textos de Vittorini”86.

Aos textos de Vittorini acrescentaríamos os de Pavese, com os quais o casal de cineastas


franceses também trabalhou. Danièle Huillet, em entrevista para a revista Cahiers du Cinéma
em 197987, nos fornece uma reflexão preciosa que se estende ao que realiza Pedro Costa neste
filme: segundo ela, as pessoas que, em seus filmes, dizem o texto de Pavese, pela maneira
como o dizem e os problemas que possuem ao dizê-lo, fazem com que esse mesmo texto não
pertença mais ao poeta italiano; ele passa a pertencer à pessoa mesma. Ora, o mesmo se
verifica em Juventude em Marcha: a carta deixa de pertencer, de certa forma, a Desnos e aos
imigrantes cabo-verdianos letrados para se integrar à própria vida de Ventura. O processo,
seguindo Huillet, envolve o modo como o texto é dito, ou seja, como a voz do intérprete lhe
dá ânimo e o particulariza; desta feita, a voz inconfundível de Ventura, que alterna entre o
registro do sussurro e da rajada eloquente, da compenetração e da declamação, acolhe o texto
da carta como um ricorso pessoal, não antes de estender seus temas (imigração, amor,
saudade, esperança) aos demais cabo-verdianos que vivem na diáspora.

Efeito semelhante ocorre na cena do funeral de Zita, referida no capítulo anterior. Enquanto o
cortejo fúnebre, completamente acusmático, é acompanhado pelos olhares atentos de Xana e
Ventura, o primeiro reflete sobre a causa da morte a partir de uma metáfora para o consumo

83
RANCIÈRE, 2009, p. 60.
84
Ibidem.
85
Idem, 2010b, p. 22.
86
Idem, 2010a, p. 105.
87
DANEY; NARBONI. “De la nuée à la resistance: Entretien avec Jean-Marie Straub et Danièle Huillet” In:
Cahiers du cinéma, nº 305.
128

de drogas: “O veneno de costume”. Ventura, sempre impassível, com seu tom distanciado,
responde ao colega: “Não foi o veneno que ela tomou, mas o veneno que todos tomaram antes
de ela vir ao mundo”. As frases em questão não foram criadas pelos envolvidos na cena: elas
pertencem ao livro de Georges Bernanos, Diário de um Pároco de Aldeia, que por sua vez foi
adaptado por Robert Bresson em 1951. Pedro Costa toma emprestado o texto de
Bernanos/Bresson para introduzi-lo em outro contexto e fazê-lo pertencer a Ventura, entre
outras causas pela maneira como sua voz singular o personaliza e o assimila, incorporando-o e
integrando-o ao universo diegético do filme.

2. As palavras cantadas

Uma vez conquistada a palavra no cinema de Pedro Costa, se assim podemos referir o seu
processo de aproximação das Fontainhas que culmina na criação dos diálogos por parte dos
próprios intérpretes, surgem também canções interpretadas pelos habitantes do bairro no
interior diegético dos filmes. Assim, em No Quarto da Vanda, Nhurro, por exemplo, canta
para si músicas como Kind of Magic e No Woman no Cry; e por vezes sua voz soma-se ao
canto de seu melro para compor um dueto inesperado. Vanda, em seu quarto, trauteia a missa
de Bach, numa cena, e noutra assobia e entoa os versos de “Ai, Mouraria”, fado de Amália
Rodrigues. Para Pedro Costa, a interpretação do fado se torna uma espécie de “homenagem
involuntária de Vanda a Amália”88, que teria morrido durante a produção do filme. “Amália
que foi a encarnação total, absoluta, de minha melancolia portuguesa”, diz o cineasta. As
canções e melodias são anexadas ao ambiente sonoro das Fontainhas, juntando-se às músicas
que, como I’ve Got The Power, o bairro insiste em nos dar a ouvir.

Este canto que é interpretado e percebido como um elemento diegético do filme, Claudia
Gorbman (2012) o chama de “canto amador”. Sua qualidade amadora deve-se, sobretudo, às
imperfeições que cada interpretação preserva, como vacilações, tremulações, erros, pausas,
etc. São estas imperfeições da voz que conferem autenticidade e realismo ao estatuto amador
do canto. Segundo a autora, mais do que um recurso apto a desnudar a subjetividade ou a vida
interior de uma personagem, o canto amador, por vezes corriqueiro e despretensioso, é um
instrumento expressivo para destilar “temas, linhas narrativas e outros aspectos da arquitetura
formal de um filme”89. Simultaneamente, ele resguarda uma qualidade intersticial, “entre a
fala e a música”, que o torna ocasionalmente mais potente que qualquer linha de diálogo.

88
COSTA, 2007a, p. 95. “C’est une sorte d’hommage involontaire de Vanda à Amalia (...)”.
89
GORBMAN, 2012, p. 25.
129

Além disto, Gorbman indica que o canto é um instrumento de domínio do medo, pois “cantar,
como assobiar no escuro, é em essência uma tentativa de organizar algo a partir do caos –
uma música, como som organizado, dá ou promete uma estrutura reconfortante” 90. Em No
Quarto da Vanda, no caso, o canto amador pode tanto prolongar o estado emocional de quem
o performa (a melancolia com o fado, por exemplo) quanto proporcionar um instante de
alento no contexto de destruição do bairro, descortinando, neste duplo movimento, os
meandros da experiência sonora das Fontainhas.

Em Juventude em Marcha, a opção pelo canto amador deflagra um exercício mais complexo.
O filme tem início com a expulsão de Ventura de sua casa. Sua mulher Clotilde, empunhando
uma faca em riste, rememora passagens de seu passado em Cabo Verde (ricorso) após termos
presenciado móveis sendo atirados através de uma janela envolta pelo breu cintilante da noite.
No primeiro plano após o letreiro anunciar o título do filme, o ângulo em contra-plongée e
diagonalizado da câmera nos revela uma parede parcialmente iluminada91. “Bete!”, ouvimos
de uma voz acusmática. Ventura entra em quadro pela esquerda e a câmera performa uma pan
que o acompanha no sentido direito. Ele se prostra na frente de um poste de madeira, situado
entre duas janelas. “Bete”, ele repete, “sua mãe se foi, ela não me ama mais”. A jovem,
sozinha no espaço que se supõe o interior da casa, escuta o homem lhe contar sobre o
episódio. Quando a imagem retorna ao protagonista, agora cujo rosto se encontra encostado
no poste, a voz feminina, acusmática, lhe grita: “Ventura, você se enganou de porta”.
Sabemos, no entanto, que ele não se enganou; e logo descobrimos que Bete, a “filha”, o quer
ignorar. Em uma tentativa última de conquistar o direito de entrada, Ventura canta os versos
de uma canção em Crioulo sobre um filho humilde, “amor de sua mãe”. O som de seu canto,
acusmatizado conforme a montagem nos revela a imagem de Bete, aos poucos diminui à
medida que ele se distancia do barraco.

90
GORBMAN, 2012, p. 29.
91
Juventude em Marcha, 03’15’’.
130

Figuras 12 e 13: Ventura (esq.) espera pela resposta de Bete (dir.).

O gesto do canto repete-se no decorrer do filme, em situação semelhante: Ventura caminha


em direção à casa de Bete, coloca-se em frente à porta e entoa alguns versos de outra canção
em Crioulo92. Como se cantasse a senha secreta que lhe permitisse a entrada, a porta é
destrancada e levemente entreaberta. Na primeira cena, o canto de Ventura não encontra
reflexo prático em sua tentativa de se aproximar da filha, mas na segunda os versos
possibilitam que ambos, enfim, se reencontrem. A interpretação racional desse gesto poderia
nos trair e nos guiar em direção à mortificação da experiência emocional que eclode
exatamente de seu mistério, mas podemos refletir sobre possíveis justificativas para a
presença desse canto no contexto da narrativa. Pensemos nas ideias de Gorbman, para quem a
música alenta e auxilia a dominar o medo – razão pela qual os pais costumam cantar para as
crianças assustadas. Ventura, quem sabe despedaçado pela ruptura recente com Clotilde – e
assim o reconhecemos durante seus monólogos que constantemente retornam ao assunto –,
busca reatar-se com sua filha Bete. Uma vez que a porta, no início, não se abre para ele, talvez
os versos da canção passem a constituir uma forma de consolo, até que estes possibilitem a
vindoura reconciliação.

Há um conto de Italo Calvino que o canto amador de Ventura nos suscita a lembrança. Em
“Um Rei à Escuta” (1995), conto previsto para integrar uma coletânea sobre os cinco
sentidos, o escritor italiano nos fala sobre um rei que, alienado no seu trono, mantém os
ouvidos vigilantes aos ruídos que lhe chegam do palácio e da cidade. O palácio “é uma
urdidura de sons regulares”, de forma que a autoridade real, presa à posição que deve ocupar
socialmente, sentada durante toda a jornada diária em seu trono, tenta reconstruí-lo por estes
sons que dele provém. Assim, a arquitetura do espaço se torna uma “construção sonora que
ora se dilata ora se contrai”, que pode ser percorrida pelo rei quando “guiado pelos ecos,

92
Juventude em Marcha, 63’58’’.
131

localizando rangidos, assobios, imprecações, seguindo respirações, sussurros, rosnados,


gorgolejos”. O rei se torna um “prisioneiro de uma jaula de repetições cíclicas”, aguçando seu
ouvido na expectativa por algo que “rompa o ritmo sufocante” e seja como “uma ruptura da
cadeia”. A quebra dessa rotina fria e apática se entrevê na voz feminina que, em determinada
noite, estende seu canto da cidade ao palácio. Trata-se de uma canção de amor que restitui ao
rei seus desejos vitais; não o desejo pela canção ou pela mulher, mas pelo prazer que esta voz
investe em sua própria existência, “pela voz enquanto voz, como se oferece ao cantar”.

Adriana Cavarero, em sua análise do conto de Calvino, afirma que o rei não só descobre a
singularidade (uniqueness) da voz dessa mulher como também sua capacidade de equivaler ao
que de mais escondido e genuíno carrega sua emissora. O rei recobre-se de um sentimento de
vida porquanto a voz feminina “emerge do mundo dos vivos que está fora da lógica mortal do
poder”93. Antes, sua escuta se destinava a decifrar os ruídos do palácio; agora, ela se reserva
ao prazer que a voz desperta. Resguardadas as proporções e diferenças que existem entre o
conto e o filme de Pedro Costa, que são inúmeras, podemos compreender que Bete não está
distante da figura do rei isolado em seu palácio. Sua barraca no espaço que sobrou das
Fontainhas lhe concede cotidianamente os ruídos estridentes das serrarias. O canto, que a voz
doce e suave de Ventura arranca de seu âmago, constitui, como na história de Calvino, a
ruptura na cadeia de sons diários. É possível que Bete, quando decide abrir a porta para seu
pai e à semelhança do rei de Calvino, deseje correr ao encontro dessa voz investida de prazer,
para que “sua escuta fosse ouvida por ela”.

Quando lemos que, para Calvino, uma voz significa a existência de “uma pessoa viva,
garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras”, e que
a voz “põe em jogo a úvula, a saliva, a infância, a pátina da existência vivida, as intenções da
mente, o prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras”, torna-se inevitável não
lembrarmo-nos da discussão sobre história individual e/ou coletiva empreendida
anteriormente. Mais do que isto, e no contexto de Juventude em Marcha, a voz de Ventura,
dotada de vida e musicalidade, convoca a escuta de Bete para que a reunião entre ambos seja
firmada. Cavarero94, reportando-se ao conto, afirma que o ouvido demonstra seu talento
natural para perceber a singularidade da voz (e, por consequência, de cada ser humano) na
medida em que o emissor desta voz mantém-se invisível: é o caso de Ventura, que para Bete

93
CAVARERO, 2012, p. 521, tradução nossa. “(...) emerges from the world of the living that is outside the
deadly logic of power”.
94
Ibidem, p. 522.
132

não é outra coisa senão uma voz acusmática que se destaca no ambiente sonoro do bairro e lhe
convida para uma interlocução. Ao chamado singular de Ventura ela responde, então, com
uma intenção recíproca de escuta.

Podemos, ainda, meditar sobre outra dimensão possível desse canto amador. Para tangenciá-la
e compreendê-la, no entanto, é preciso que façamos um desvio pela canção que neste filme
ocupa uma posição central. A sequência musical do filme acontece ainda na primeira hora95.
Ventura, de testa enfaixada, está junto de Lento na barraca. O curativo figuraria um acidente
que ele teria sofrido, trabalhando na construção civil, no tempo que esta barraca enclausura.
Após um jogo de carteado, Ventura se levanta da mesa em busca de algo para comer. Um
corte desloca a posição da câmera para o lado oposto da sala, passando a enquadrar Lento
sentado no lado direito do plano. A posição relativamente baixa da câmera e o ângulo
levemente posicionado em contra-plongée acentuam o teto rebaixado da habitação informal.
A mesa é o ponto mais iluminado da cena, sobre a qual pousam o monte do baralho e duas
canetas que Lento buscou para a escrita da carta. Este apanha uma delas e começa a rabiscar a
superfície da mesa. Depois de trazer consigo uma garrafa de vinho e abandonar novamente o
quadro, Ventura retorna com uma vitrola, a qual pousa sobre a bancada, e se senta
ligeiramente de costas para a câmera. Lento permanece riscando a tábua iluminada, sua caneta
produzindo um ruído baixo e irregular, sem cadência específica, enquanto Ventura coloca um
disco na vitrola. O mais velho se encolhe sobre si e em seguida uma canção em Crioulo ecoa
no espaço da barraca.

Figura 14: Ventura (esq.) pousa sua mão sobre a mão de Lento (dir.) para poder escutar a canção.

Os rabiscos incessantes na mesa interferem no trabalho da agulha na vitrola e,


consequentemente, na continuidade da música. Ventura, então, pousa sua mão sobre a de

95
Juventude em Marcha, 48’22’’.
133

Lento; e por alguns instantes ambos se imobilizam no quadro para escutar, até seu final, a
canção. Trata-se de uma música do gênero coladera96 chamada Labanta Braço, interpretada
pelo grupo cabo-verdiano Os Tubarões com voz marcante de Ildo Lobo. Seus versos fazem
referência ao grito de liberdade e de felicidade manifestados no dia 5 de julho de 1975 – data
em que Cabo Verde tornou-se independente da colônia portuguesa. A canção também exalta o
líder e intelectual guineense Amílcar Cabral, figura central na reivindicação de soberania
política das nações africanas em contexto de dominação colonialista. Segundo o antropólogo
Rui Cidra, o Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC),
principal organização de libertação nacional nas lutas anticoloniais, foi devedor da liderança,
do pensamento e da obra de Cabral, assassinado em janeiro de 197397.

Em termos históricos, o acordo entre agentes do Estado português e lideranças do PAIGC,


firmado em 1974, possibilitou que nas terras do arquipélago houvesse pleito eleitoral, o que
levou o grupo de libertação nacional – que durante meses constituiu um governo de transição
– a receber 92% dos votos para representação na Assembleia Nacional do Povo98. O primeiro
ato desta assembleia ocorreu em 5 de julho, data que foi assimilada, então, como dia oficial da
Independência do país. Foi já no período de transição, entretanto, que a banda Os Tubarões
acompanhou delegações do PAIGC em ilhas do arquipélago na tentativa de “solidificar a
soberania cultural e política e se afirmar enquanto representante do Estado junto das
populações”99. A produção musical do grupo, neste contexto, esteve diretamente relacionada à
política cultural do Partido. Em termos estéticos, “uma relação com os estilos da música
popular internacional moldou a formação de suas identidades cosmopolitas”, enquanto as
interpretações “circunscreviam-se à coladera, um gênero de dança adequando-se ao contexto
dos bailes, cujas canções adaptavam aos estilos e tipologia instrumental dos conjuntos
electrónicos”100.

O caráter político das letras era demonstrado pela presença expressiva de alusões ao partido e
de enaltecimentos aos líderes políticos do movimento de libertação nacional. Em 1976, Os

96
A coladera, como a morna, utiliza uma instrumentação de corda (violão, rabeca, cavaquinho), mas,
diferentemente desta, possui um andamento mais rápido e se abre mais à inclusão de instrumentos elétricos ou de
percussão. No caso do grupo Os Tubarões, os músicos abordam ambos os gêneros “com recurso a uma
instrumentação electro-acústica e electrónica alargada (instrumentos de corda, tecla, de sopro, bateria, outros
instrumentos de percussão e voz)” (CIDRA, 2012, p. 220). Sobre as relações entre a morna e a coladera, cf.
BRAZ DIAS, 2004.
97
CIDRA, 2011, p. 212.
98
Ibidem, p. 212.
99
Ibidem, p. 227.
100
Ibidem, p. 228.
134

Tubarões gravou seus primeiros fonogramas na Holanda. Um destes, intitulado Pepe Lopi,
comportava justamente Labanta Braço, composição de Alcides Spencer Brito (e interpretação
de Ildo Lobo) não só fortemente inspirada pelo entusiasmo com o processo de Independência,
como também, evidentemente, tributária das iniciativas revolucionárias de Amílcar Cabral,
para quem, curiosamente, a cultura era um espaço de resistência e de preservação da
identidade nacional. Segundo Rui Cidra, se Cabral defendia a Independência como ato de
cultura, era porque a música, entre outras manifestações culturais, cumpriria papel decisivo na
construção de uma ideia de nação; assim, a produção de discos de vinil contendo tanto música
quanto poesia “foram conscientemente produzidos enquanto artefactos de identidade cultural
cabo-verdiana com a possibilidade de circular internacionalmente”101. A razão para esta
internacionalização adquirir importância está inscrita, em certa medida, na imigração massiva
do arquipélago para países mais ricos. A cena de Juventude em Marcha nos mostra
exatamente um desses imigrantes, Ventura, escutando a canção de caráter nacionalista em sua
vitrola antiga e a partir de um disco também seu.

Quando nos defrontamos com Ventura e Lento escutando essa canção sobre a Independência
no espaço exíguo de sua barraca, nossa primeira interpretação pode escorrer para o campo da
ironia: parece irônico que aquele seja o destino dos imigrantes cabo-verdianos que
abandonaram seu país de origem na expectativa por uma vida melhor. Parece igualmente
irônico que os sonhos irrestritos de uma nação em formação sejam enclausurados ao
enquadramento fixo e ao cenário acanhado de uma barraca de paredes manchadas e teto
baixo. A interpretação não está incorreta, mas tampouco é suficiente para penetrar as
diferentes fendas que se abrem neste plano-sequência de cinco minutos em que o grande gesto
humano é a escuta de uma canção.

Lembremos que Ventura é um dos imigrantes que participou da migração em massa das
colônias africanas para Portugal, iniciada no final da década de 60 e justificada pelo incentivo
do Estado Português, que buscava mão-de-obra barata no contexto de sua participação nas
guerras coloniais102. O bairro das Fontainhas, construído de maneira espontânea na Área
Metropolitana de Lisboa, abrigou principalmente cabo-verdianos laborais, e nele, como em
outros bairros próximos, a música de Cabo Verde teve atribuição fundante, especialmente nos
últimos trinta anos do século passado: “a música, interpretada ou gravada, e a dança,

101
CIDRA, 2011, p. 236.
102
Idem, 2008, p. 114.
135

constituíram meios significativos para imigrantes e seus descendentes articularem identidades


culturais, organizarem sociabilidades, demarcarem momentos rituais e religiosos”103.

A abordagem metodológica de Rui Cidra, que se liga ao campo da Etnomusicologia, edifica


sua argumentação em torno do termo “cultura expressiva”, que o autor define como
“expressões culturais interligando o som, o texto e o movimento que participam centralmente
da experiência social dos cabo-verdianos”104. Em outras palavras, o conceito se relaciona com
a produção de manifestações culturais em cujas veias percorrem valores estéticos e
significativos, envolvendo “políticas de identidade que são desenvolvidas enquanto
estratégias de inserção em sociedades de acolhimento e ou destinadas à participação política e
imaginações de nações ou territórios de origem”105. Neste âmbito de produção, a música
torna-se experiência social na medida em que agencia relações emocionais e intelectuais entre
os imigrantes e as terras do arquipélago que deixaram para trás.
A cultura expressiva e as tradições de Cabo Verde são muito importantes para o
modo como as pessoas se entendem, se auto-definem, se conceitualizam como
sujeitos e como grupo, como pessoas cabo-verdianas. Eu diria que, à parte da língua
crioula, à parte de certas práticas alimentares, a partilha da música e da dança é
talvez o principal diacrítico, o principal marcador, de uma identidade cabo-verdiana.
Porque a música comunica este sentido de individualidade e singularidade, e
condensa esta forma que as pessoas encontram de se auto-definir. E depois, ela
proporciona momentos de prazer intensos, porque está ligada à memória e à vida das
pessoas desde sempre. Através da música as pessoas aproximam-se de modos
imaginados do seu lugar de origem e de pertença – Cabo Verde. Teríamos que entrar
em concessões sobre o que é uma diáspora, mas acho que uma das ideias
fundamentais da noção de diáspora nas ciências sociais é precisamente a lealdade ao
território de origem, e as formas partilhadas de sofrimento, de nostalgia, os projetos
de restauro desta terra de origem... A música está no centro de tudo isto, ela
aproxima as pessoas de um lugar de origem e faz com que elas se experimentem
como cabo-verdianos. Por isto digo que a música é fundamental para a maneira
como as pessoas se definem como cabo-verdianos e como se localizam mesmo
como pessoas, em tempos de crise e de fragmentação 106.

A migração laboral, que tem por consequência o abandono de certos costumes e tradições,
representa também o abandono da família, da cultura e das redes de sociabilidade que foram
construídas no período em que estes trabalhadores viveram e cresceram em Cabo Verde. A
música e a dança cabo-verdianas se tornam, no contexto da diáspora, “práticas culturais
centrais para as suas identidades e para a reconfiguração das suas memórias em contextos de
separação e desestruturação ditados pela migração”107. Elas contribuem, portanto, para a

103
CIDRA, 2008, p. 116.
104
Ibidem, p. 105.
105
Ibidem, p. 110.
106
CIDRA, R. Entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 24 de junho de 2019. [A entrevista
encontra-se transcrita no Apêndice “D” desta dissertação].
107
Idem, 2008, p. 110.
136

manutenção da linha já desgastada que une os imigrantes ao território do arquipélago. Ainda


que arrancados de sua nação e impossibilitados de retornarem, eles encontram na música uma
forma retornar simbolicamente às suas terras de origem108.

É por esta razão que a cena na barraca, em que Ventura escuta pacientemente à coladera
nacionalista, transcende uma construção dramática pautada simplesmente na ironia. Quando
este se senta para escutar a música, uma dimensão inevitavelmente política passa a habitar
aquelas pessoas e objetos e a sombra que os envolve: a canção cabo-verdiana, de certa forma,
aponta para “uma necessidade inconsciente de manter por perto e vivo o sentimento de
pertença a um lugar”109, configurando-se, tal qual a carta, como forma de rememoração. O
gesto de Ventura, sua mão determinada encontrando a mão incansável de Lento, impedindo
que este continue a rabiscar sobre a mesa, e, por conseguinte, atrapalhe o desenrolar da
canção na vitrola, subitamente adquire o peso de um despertar: é preciso ouvir para não
esquecer.

A escuta silenciosa é amplificada pela continuidade da ação dramática, possibilitada pelo


plano-sequência. Uma vez que ouvir a canção é o gesto mais importante, para que assim os
personagens se recordem de onde vieram e encontrem simbolicamente suas origens, a câmera
e a montagem são moduladas em direção a esta empreitada, preservando a continuidade
espaço-temporal. Também aos espectadores, neste sentido, parece reservado o direito da
escuta, uma vez que esta disposição do plano longo nos convida a contemplarmos o espaço e
a ouvirmos a canção como os fazem os personagens, mas a construção da cena é ainda mais
complexa do que inicialmente se insinua, pois se há contemplação, talvez ela seja distanciada:
Ventura senta-se de costas para a câmera, que se situa afastada da ação. Pensemos brevemente
nas razões por trás desse distanciamento prefigurado em termos visuais e sua relação com a
escuta da canção, discutindo as ideias de duas autoras.

Wendy Everett, em sua análise de filmes autobiográficos, salienta a importância da música (e


em especial das canções populares) na estruturação de um discurso intimamente ligado aos
processos da memória. Nestes filmes, as músicas atuariam como instrumentos discursivos
importantes, “fornecendo acesso privilegiado às ficções alternativas da memória e servindo
como lócus da complexa interação entre passado e presente, verdade e ficção, eu e outro, que

108
Lembremos que, em Ossos, a festa nas Fontainhas, em que Tina desaba e é socorrida por Clotilde Montron, é
animada por uma canção diegética cabo-verdiana: Carro Bedjo, do grupo Os Saburas.
109
MARTINS, 2015, p. 146.
137

estrutura uma pesquisa individual por identidade pessoal”110. Por abarcar um trabalho
colaborativo entre cineasta e atores sociais, que se configura principalmente desde No Quarto
da Vanda, os filmes de Pedro Costa não impedem que a alcunha de “autobiográficos” lhes
seja de todo descabida. Também a jornada de Ventura em Juventude em Marcha não está
distante daquela descrita pela autora nos filmes autobiográficos que analisa, visto que a
preocupação maior destes seria “não a recriação de um passado estático, mas a exploração do
processo de rememoração; da maneira como a mente viaja através das paisagens temporais e
espaciais da memória”111. Esta noção é particularmente interessante quando em vista da
figuração do mesmo corpo idoso e errante de Ventura, o qual atravessa diferentes
temporalidades narrativas.

Certas conclusões de Everett, no entanto, são discutíveis quando, primeiramente, parecem


contradizer uma de suas principais referências argumentativas e, em segundo lugar, são
tensionadas com a cena específica com que lidamos. Comecemos pela contradição inicial: em
sua intenção de sumarizar abordagens teóricas que tratem das relações entre música e
passados irrecuperáveis, a autora se vale de algumas das ideias de Caryl Flinn (1992), cujo
livro Strains of Utopia: Gender, Nostalgia and Hollywood Film Music aborda precisamente a
“função utópica” da música no contexto hollywoodiano clássico, mais precisamente no
período entre 1930 e 1940. Everett não está incorreta na leitura que faz de Flinn, descrevendo
como, para esta, a função utópica da música está relacionada à sua capacidade de se referir a
mundos que não pertencem à realidade concreta, ou seja, universos ansiados, porém
irrealizáveis. Uma vez que a música possui o poder de transportar o ouvinte na direção de
tempos e memórias melhores, sublinhando, no mesmo movimento, a impossibilidade deste
retorno, ela manteria uma qualidade “utópica”. Flinn, de fato, destaca que a “promessa de
utopia” pode habitar a música principalmente por suas características de arte “não
representacional”, pois ela, como a utopia, também seria um “não lugar”, irrepresentável em
termos práticos.

Ocorre que, para a autora de Strains of Utopia, a função utópica da música não é algo da
“natureza universal”, como sugere Everett talvez por descuido. Ao contrário, a argumentação
de Flinn é contextualista: “as projeções utópicas da música são interpretadas diferentemente

110
EVERETT, 2000, p. 100-101, tradução nossa. “(...) providing privileged access to the alternative fictions of
memory, and serving as the locus of the complex interplay between past and present, truth and fiction, self and
other, that structures an individual’s search for personal identity”.
111
Ibidem, p. 110. “(...) not the re-creation of a static past but an exploration of the process of remembering; the
way mind travels through the temporal and spatial landscapes of memory”.
138

de acordo com seus contextos críticos e históricos”112. A expressão utópica, na verdade, deixa
de ser uma qualidade inerente à música para ser uma construção atravessada,
necessariamente, por ideologia, economia, cultura e subjetividade humana. A separação entre
música e mundanidade, que acentua um suposto aspecto imaterial e místico do discurso
musical, teria sido preconizada pelo romantismo do século XIX. A segmentação vislumbra a
música como uma arte abstrata atemporal, universal e livre de contingências históricas,
materiais e subjetivas. Ora, essa arguição essencialista é problematizada por Finn, que assume
uma postura crítica frente ao suposto estatuto “universal” da música, em que esta se apresenta
como fenômeno transcendente apto a ultrapassar obstáculos nacionais e/ou linguísticos, por
exemplo.

A perspectiva essencialista não impede, segundo Flinn, que um consenso se esboce sobre a
função da música. Na medida em que ela transmitiria uma sensação de plenitude ou
simplesmente algo melhor, ela ampliaria a impressão de perfeição e de integridade em um
mundo fundamentalmente imperfeito. Esta teria sido a capacidade utópica da música que
guiou grande parte das escolhas estéticas musicais no cinema hollywoodiano clássico, período
sobre o qual a autora se debruça. Everett apreende a noção de utopia, o faz com clareza, mas
retira dela uma conclusão um tanto paradoxal quando mantemos em mente a crítica ao
universalismo. Segundo ela, os cineastas de filmes autobiográficos “subvertem as
expectativas e envolvem as próprias memórias do espectador no interior do processo”113.
Neste tipo de operação, as canções populares seriam alegadamente capazes de quebrar
barreiras de idade, nação e língua. Curiosamente, como se depreendesse da argumentação de
Flinn somente aquilo que esta procura justamente denunciar, Everett adota um ponto de vista
em que a suposta universalidade da música está prevista no enunciado cinematográfico.

Voltemos à cena musical de Juventude em Marcha. O texto de Everett nos auxilia de forma
significativa na compreensão das borras que se produzem entre passado e presente, como
também entre ficção e realidade, através da utilização de canções em filmes autobiográficos.
Por outro lado, no caso específico que analisamos, as memórias dos atores e dos espectadores
não são exatamente diluídas em um mesmo processo de rememoração, porque, à semelhança
do que propõe Flinn, as músicas não devem ser compreendidas, aqui, como instrumentos de

112
FLINN, 1992, p. 9, tradução nossa. “(...) the utopian projections of music are construed differently according
to their different critical and historical contexts”.
113
EVERETT, 2000, p. 116. “(...) subverts expectations and involves the spectator’s own memories within its
processes”.
139

alcance universal. As memórias do espectador não se mesclam às memórias dos atores,


porque a experiência afetiva suscitada pela música naquelas figuras enclausuradas no barraco
não é a mesma que aquela produzida em um espectador alheio às questões de nação e de
identidade cabo-verdianas. Mesmo a maneira como Ventura a experimenta não é a mesma
que Lento, por sua vez, a escuta.

Há uma espécie de barreira cultural que não permite à maioria dos espectadores a mesma
relação emotiva que se constrói entre Ventura e a canção, pois a mesma música que o
possibilita vislumbrar memórias antigas, construir identidades fragilizadas e, acima de tudo,
conhecer parte de si mesmo, não reverbera da mesma forma no espectador dito “comum”. É o
que acontece, de forma semelhante, com a presença da língua crioula no filme. Se nos
reportamos à discussão empreendida no primeiro capítulo, na seção “O espectador
silenciado”, nós constataremos que ambas, canção e língua crioula, são portas que Pedro
Costa e seus atores fecham ao espectador, impedindo, de certa forma, sua projeção à diegese.
Para Daniel Ribeiro Duarte, embora os filmes nos “mostrem muitas portas, estas portas não
são atravessáveis, não são um convite para que o espectador entre”; na verdade, elas “são uma
forma de mostrar que há algo do outro lado, mas que não chegaremos a este mistério com
facilidade”114.

De certa forma, dois níveis de emoções se conjugam na cena: o primeiro é onde ocorre a
manifestação sensível, velada e profunda, entre canção e sujeito retratado, em que a
ressonância da canção, provavelmente inacessível à maioria, atinge de forma mais íntima o
imigrante do que a nós, espectadores. O segundo é o da própria representação, precipitado
pelo contato distanciado destes espectadores com o primeiro nível descrito; ou seja, se não
somos capazes de compartilhar das mesmas memórias, vivências ou experiências afetivas ou
identitárias sugeridas pela canção, não por isto deixamos de nos emocionar com a constatação
deste vínculo inicial entre ela e Ventura. O fosso que é sutilmente aberto entre os atores e os
espectadores encontra reflexo na disposição imagética adotada por Pedro Costa: o
enquadramento imóvel e distante, a continuidade do plano no tempo, a posição de costas em
¾ de Ventura, a luz que incide sobre a mesa e a vitrola. Câmera e montagem respondem ao
propósito de escuta musical, neste caso uma escuta distanciada, na qual as emoções dos
intérpretes, ocasionadas pela música, são enclausuradas junto a eles e com eles permanecem
até o momento em que cessa também a canção.

114
DUARTE, 2018, p. 66.
140

A cena musical ainda nos reserva mais uma implicação, que deverá deter nossa atenção
momentaneamente. Para contornar esta implicação, no entanto, é preciso que analisemos
outra cena, esta mais próxima ao desfecho do filme, em que Bete, já tendo permitido o acesso
de Ventura à sua barraca, conversa com o suposto pai115. Ambos encontram-se sentados
diante de uma mesa, em plano conjunto, com pratos de comida e uma garrafa em sua frente.
Ventura começa a contar sobre o frango que levou para a mãe de Bete no hospital quando esta
nasceu, ao que a filha lhe pergunta sobre como ele a conquistou. Um corte na imagem nos
aproxima de Ventura, agora em plano médio, a partir de “um método de decupagem do
espaço em planos que se aparenta àquele de Straub-Huillet”116, em que se preserva uma única
perspectiva da câmera, mas se trocam as lentes focais para aproximar-se ou distanciar-se do
objeto ou da pessoa no plano.

Figuras 15, 16 e 17: Ventura e Bete conversam sobre o passado.

Ventura, sempre com seu olhar detido em algo fora de quadro, sem direcioná-lo para Bete,
começa seu ricorso em tom baixo, distanciado e sem variações de entonação: “Foi no Rio
Águas Podres, em Assomada. Ela recolhia água em uma lata. Eu cavalgava o meu burro,
Fogo-Serra. Levou-me três anos para conquistá-la. A princípio, ela nem ao menos olhava para
mim. No dia 5 de julho, dia da Independência e de festa, ela estava lá entre os violinos,
bandeiras, gaitas e tambores, e ela começou a cantar”. Neste momento, ele canta os versos de
Labanta Braço: “Cinco de julho / Levanta o braço gritando “liberdade”! / “Grita, grita
‘Cabral’”! / “Povo da Guiné e Cabo Verde Libertado”. “Mas ela não sabia cantar”, Ventura
continua. “Eu comecei a provocá-la. Você está cantando fora do tom!”. Ventura finalmente
torna seu olhar para a filha, antes de concluir: “Ela me bateu com o mastro da bandeira e
começou a gostar de mim”. O plano seguinte é de Bete, também mais aproximado,
funcionando como um contracampo. “É uma bela história para contar para os seus filhos e

115
Juventude em Marcha, 134’05’’.
116
VOLTZENLOGEL, 2018, p. 139. “(...) une méthode de découpage de l’espace en plans qui s’apparente à
celle de Straub-Huillet”.
141

netos. Ainda bem que me contou”. Comecemos pelo final do diálogo: na constatação de Bete
está implicada a noção de tradição oral a que nos referíamos anteriormente. As palavras de
Ventura, que Bete escuta e apreende, poderão ser transmitidas aos seus filhos e netos, para
que, a despeito do que a sociedade lhes quer reservar, memória alguma seja esquecida e
história alguma seja apagada117.

Descobrimos, por meio do diálogo, que Labanta Braço abriga uma memória doce para
Ventura, pois teria sido ela a música que inaugurou seu amor com Clotilde, mulher que vimos
despejá-lo no início do filme. A canção, no caso, teria uma importância pessoal para o
imigrante cabo-verdiano, e ao contextualizá-la para o espectador através de seu relato,
Ventura faz com que lancemos sobre a sequência musical um olhar retrospectivo. Mais do que
um documento de rememoração e de pertencimento, relativo a uma comunidade inteira de
imigrantes cabo-verdianos em contexto diaspórico, a canção do grupo Os Tubarões parece
relembrar Ventura de seus anos de juventude em Cabo Verde e os amores que nutriu por
Clotilde, ambos agora pertencentes ao passado. Ao escutar aquela sonoridade que a agulha da
vitrola produz, Ventura se recolhe como se lamentasse o término de seu relacionamento. Ora,
a música é uma peça que, entre outras descritas, participa do duplo movimento que o filme
descortina entre história coletiva e história individual, apontando para um sentimento
comunitário perdido de nação e de identidade e, ao mesmo tempo, desvelando uma lembrança
igualmente longínqua de Ventura. Entre um caso e outro, de qualquer forma, é preciso que a
mão de Ventura encontre a de Lento, que o primeiro cesse o rabisco do segundo sobre a mesa,
para que a música exista plenamente e, com ela, a corrente de memórias que ela torna
possível.

Assim, Ventura canta para Bete na intenção que esta lhe abra a porta de sua casa. Não seria o
canto uma forma de aproximação exatamente porque, histórica e culturalmente, a música
cabo-verdiana foi um dispositivo de aproximação entre os ex-habitantes do arquipélago? Os
versos de Ventura não estariam inseridos em um contexto maior de sociabilização na

117
Pensemos novamente, por exemplo, no que diz Walter Benjamin (2013, p. 85) e a forma como suas palavras
recaem sobre a figura de Ventura: “Sabia-se muito bem o que era a experiência: as pessoas mais velhas
passavam-na sempre aos mais novos. De forma concisa, com a autoridade da idade, nos provérbios; em termos
mais prolixos e com maior loquacidade, nos contos; por vezes através de histórias de países distantes, à lareira,
para filhos e netos. Para onde foi tudo isso? Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma
história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um
anel de geração em geração? Um provérbio hoje serve para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar
com a juventude invocando sua experiência?”. As relações entre Juventude em Marcha e as ideias de Benjamin,
que pensa na barbárie por trás da pobreza das experiências transmissíveis no pós-Primeira Guerra, advogando
em função de um novo conceito positivo de barbárie, ainda poderão render discussões futuras.
142

diáspora? Se a música é uma forma expressiva de experiência social para os cabo-verdianos


imigrantes, Ventura, exilado de sua própria casa por Clotilde, pode utilizá-la como
instrumento para construir uma espécie de vivência comunitária: ele se aproxima de outros,
seus filhos, através do canto, e, talvez sem o saber, constata a força intrínseca que se conserva
no interior dessas canções. Por outro lado, se o canto de Clotilde foi a fagulha que deu início
ao seu relacionamento no passado, não seriam os versos de Ventura uma forma de
reconquistar, não pela chave romântica, mas familiar, a confiança e o amor de Bete, com
quem em algum momento travou uma separação? Responder estas questões não é tão
importante quanto elaborá-las, pois estamos diante de um filme cujos mistérios desvelam
constelações inteiras.
Considerações finais

Permitamo-nos uma síntese das discussões empreendidas em cada capítulo, mesmo em


consciência da impossibilidade de se reunir todos os pontos analisados. No primeiro, nos
dedicamos ao estudo sobre as diferentes impressões de silêncio que determinadas disposições
imagéticas e sonoras acarretam nos filmes da trilogia. Para tanto, centramos nosso foco em
Ossos, filme em que a recusa da voz humana contribui de forma expressiva para a
constituição desses silêncios. Ao mutismo penetrante das personagens solitárias e seus
prolongamentos narrativos soma-se, ainda, o aspecto adoecido ou zumbificado dos corpos, as
sombras incontornáveis do bairro das Fontainhas, as organizações pictóricas de quadros
dentro do quadro cinematográfico e o “silenciamento” dos espectadores que são mantidos à
margem do filme. Em No Quarto da Vanda, os silêncios, novamente contornados pela
escuridão, se manifestam principalmente por oposição à fúria estrondosa das máquinas e pelo
esvaziamento dos planos ditos “pillow-shots”. Juventude em Marcha, por sua vez, possui um
trabalho sonoro que contrasta os ruídos remanescentes das Fontainhas aos silêncios
desertificados do bairro Casal da Boba e do Museu Gulbenkian, pois está em causa o
confronto dialético entre os sons viventes e os sons mortificantes, ou seja, entre a positividade
e a negatividade do silêncio.

No segundo capítulo, os sons acusmáticos despontam como objeto de nosso estudo. No


Quarto da Vanda, por conferir aos ruídos das máquinas e ao burburinho dos moradores das
Fontainhas uma posição que se alterna entre o acusmático e o visualizável, tornando essa
variação configuração fulcral, é o filme sobre o qual nos debruçamos de forma detida. O som
acusmático, neste filme, pode ainda demonstrar um perigo imanente, atrapalhar os estudos de
uma menina ou ampliar o espaço das Fontainhas para além daquele contido no plano. Esta
última disposição verifica-se igualmente em Ossos, filme que além de expandir os limites do
enquadramento através da utilização de sons cuja origem não é visível, também por meio
destes confunde as instâncias do público e do privado. As crianças estão presentes nos três
filmes, cada qual com suas relações singulares com o acusmatismo. Em Juventude em
Marcha, estas crianças são, sobretudo, sons acusmáticos pertencentes aos pátios amplos e
reverberantes da Boba, pois principalmente a elas compete o destino de todos os realojados.
No último filme da trilogia também se constata a potência dos sons acusmáticos da Revolução
dos Cravos, documentos sonoros que chegam aos ouvidos atentos e temerosos de Ventura e
de Lento em sua barraca.
144

O terceiro capítulo analisa as diferentes vozes que preenchem os filmes da trilogia, não
restringindo o recorte aos diálogos e estendendo a perspectiva analítica às canções que essas
vozes ocasionalmente manifestam. Em Ossos, a recusa da voz pode ser suplantada pelo
recurso à dublagem, situação técnica que a partir do filme seguinte começa a perder espaço no
ideário cinematográfico de Pedro Costa. No Quarto da Vanda representa uma aproximação
maior do cineasta em direção aos moradores das Fontainhas, em processo de conquista de
intimidade que culmina na apreensão do verbo: as pessoas passam a falar mais abertamente
sobre suas experiências e memórias – sempre, entretanto, em regime de ensaios e repetições –
e com isto se transformam nas autoras dos diálogos. Estes diálogos, que se opõem a discursos
hegemônicos preconceituosos, nos fornecem acesso privilegiado às pessoas que o filme
retrata. Em Juventude em Marcha, filme que elegemos como norteador de nossa análise no
último capítulo, as vozes tanto conjuram experiências individuais quanto espelham histórias
coletivas. As formas de pronúncia distanciada de Ventura, bem como a utilização decisiva da
língua crioula, são peças que balizam esta relação entre singular e comunitário – relação que
encontra na carta de amor do filme um modelo de partilha. Também a canção diegética, que
neste filme se ouve por meio de uma vitrola antiga na barraca de Ventura, torna complexas as
instâncias pessoais e coletivas, configurando-se, ela também, como uma porta que se fecha
aos espectadores. Não se deve, enfim, deixar de fazer menção às canções que Ventura
performa para sua filha Bete: canto amador que procura reatar uma relação outrora desfeita e
inspira muitos mistérios.

A estrutura do presente trabalho, pois, buscou demarcar a pluralidade de perspectivas que


atravessa uma análise de som no cinema. Ao recorte usual que segmenta os elementos da
trilha em ruídos, músicas e diálogos procuramos contrapor (ou, antes, complementar) uma
metodologia de análise que conjugue esses elementos em diferentes combinações possíveis.
Assim, o silêncio não é simplesmente a abstenção total de sons: é uma sensação produzida no
espectador por determinada equação sonora. Os sons acusmáticos, por sua vez, constituem-se
de ruídos, músicas e/ou diálogos, em variações inúmeras, dispostos em unidade apenas pela
ausência da origem física que os ocasiona. A voz, por fim, não se restringe ao dispositivo
cinematográfico do diálogo falado, podendo mesmo interpretar uma canção ou tornar-se ruído
no interior de um ambiente sonoro. Esta estrutura de análise, entretanto, não é aleatória: ela
acompanha, antes, uma determinação de nosso objeto de estudo, cuja riqueza sonora nos
exige um exercício analítico amplo e transversal. Os filmes de Pedro Costa requisitam de seus
145

espectadores uma escuta atenta às relações possíveis entre os diferentes sons de uma trilha
sonora; eles nos convidam a uma experiência relacional dos elementos sonoros.

Que o passado de Pedro Costa com a música, em especial sua relação com o movimento punk
em Portugal na segunda metade do século XX, constitua uma das justificativas da importância
que ele resguarda à banda sonora de seus filmes, parece-nos um argumento tautológico. Sua
atenção ao trabalho sonoro, que o cineasta pode ter aprendido igualmente com Ford, Tati,
Grémillon, Bresson, Renoir ou os Straub, não deve simplesmente ser compreendido a partir
de ilações de seu passado. É preciso, na verdade, que os filmes de Pedro Costa, e somente
eles, nos demonstrem como o som, em seu conjunto, é um instrumento indispensável para a
construção de uma poética e uma política. Assim, são as relações entre os sons com as
imagens e as relações entre os sons mesmos que nos servem de evidência para o trato
cuidadoso do cineasta para com as bandas sonoras de seus filmes, mais do que qualquer
resgate biográfico de sua relação com a música. Em todos os capítulos, as discussões travadas
sobre silêncio, acusmatismo ou voz nos possibilitaram refletir sobre os modos de produção de
Pedro Costa, o que devemos considerar como imprescindível a uma análise sobre o estilo e a
política do diretor, em primeiro lugar, e sobre som em seu cinema, em seguida.

Pedro Costa é um cineasta com uma visão total de sua produção: por mais que controle a
câmera e participe mais ativamente do processo de montagem do que da edição e mixagem
sonoras, ele empresta ao seu processo produtivo uma percepção integral dos recursos
cinematográficos dos quais dispõe. Uma cena que é gravada no instante da produção, por
exemplo, pode delegar ao som que será fabricado na pós-produção uma função central, sem o
qual ela abdica de sentido. Ainda que a atenção do cineasta seja dirigida, em graus maiores,
ao plano e ao jogo dos atores, seu ouvido atento não se desvia da musicalidade dos ambientes,
das narrativas sonoras do extracampo, e dos espaços que o som acusmático é capaz de intuir.
O posicionamento dos corpos não responde somente ao plano, mas também às formas de
captação das vozes, cujas entonações são repetidas, moduladas e afinadas no momento da
gravação. Em outras palavras, Pedro Costa é um realizador absolutamente consciente das
potencialidades do som cinematográfico, com o qual experimenta em todas as fases de
produção. Esta inclinação, apesar de existir desde seu primeiro filme, é consideravelmente
amplificada após a renúncia ao método de produção convencional em No Quarto da Vanda,
quando o cineasta reduz sua equipe de trabalho e passa a lidar mais diretamente com seus
meios de criação.
146

Integrada a essa compreensão total de sua produção, o cineasta expressa em seus filmes uma
ideia sonora que se mantém íntegra e homogênea no decorrer de cada projeção. Assim, os
silêncios em Ossos são preponderantes até os instantes finais do filme. Adota-se um registro
de encenação que, por sua vez, nunca escapa à peculiar dimensão silenciosa da banda sonora.
Em No Quarto da Vanda, as vozes dos habitantes das Fontainhas são massacradas pelo ruído
das máquinas, com os quais trava uma batalha tanto na imagem quanto na banda sonora, e o
conflito se estende ao longo de todo o filme. Juventude em Marcha adota diferentes regimes
de palavra (para utilizarmos a expressão de Rancière) e com eles, através deles, desenvolve
sua narrativa do primeiro ao último minuto. Evidentemente, estas são apenas algumas das
ideias sonoras, grosseiramente resumidas, que percorrem a extensão da trilogia de Pedro
Costa, mas delas depreende-se que à visão total da produção – a consciência dos
instrumentos técnicos e discursivos – soma-se a concepção total dos filmes, em que uma obra
não se concebe como um amontado heterogêneo de partes, mas como um todo cujas partes
comunicam entre si.

Além disto, os filmes da trilogia das Fontainhas configuram verdadeiros documentos sonoros
de um bairro que hoje não existe mais. O registro imagético deste espaço e das pessoas que
nele habitavam caracteriza um tempo perdido no decurso da história, mas também os sons do
bairro cumprem essa função: seu ambiente sonoro de burburinhos, algazarras vocais e música
denuncia a densidade humana que o povoava. Os sons humanos transpiravam, atravessavam
paredes, escorriam pelos ouvidos dos moradores: as Fontainhas eram como um corpo vivo
cujos sons eram as veias sanguíneas. O processo de destruição do bairro, que a captação
sonora das máquinas trata de documentar, representou naquele espaço, por exemplo,
escoamento maior dos sons das grandes avenidas circundantes. O realojamento dos moradores
no bairro Casal da Boba, por sua vez, é igualmente um movimento sonoro: o espaço
demasiadamente aberto do novo complexo habitacional permite sons de vento e intensas
reverberações, assim como sua arquitetura vertical, que produz grandes pátios esvaziados,
impede que seus sons compactuem com a densidade humana de outrora. Vozes acusmáticas,
que determinadas vivências cabo-verdianas ocasionam, representam um sopro de vida neste
deserto de paredes e construções brancas.

O bairro atravessa um percurso na História, é certo, e com ele também Pedro Costa. Da
chegada ao bairro das Fontainhas, após a gravação de Casa de Lava, até o último filme da
trilogia, o cineasta não cessou de se questionar e se colocar questões concretas sobre o próprio
147

trabalho. A mudança de postura do diretor, que No Quarto da Vanda inaugura e que depois
Juventude em Marcha torna ainda outra, encontra reverberações em seu método de produção
e, por conseguinte, em seu processo de criação sonora. O silêncio de Ossos, além de causa e
efeito de uma doença generalizada que atinge o bairro e que toma por nome “vício”, era
sintoma da falta de proximidade de Pedro Costa para com os atores não profissionais com que
trabalhava. O filme seguinte, em que a conquista da intimidade entre ambas as partes dá início
a um processo colaborativo, as palavras passam a surgir dos lábios dos moradores das
Fontainhas. Também não se escapa aos ruídos das máquinas e ao murmúrio das vozes que
contornam e por vezes mutilam essas palavras, preferindo mesmo mantê-los quando a
inteligibilidade destas não é prejudicada. A última obra da trilogia, por seu turno, baliza as
instâncias dessa colaboração criativa ao fazer da carta de Ventura, elemento externo ao ator,
trazido ao interior fílmico pelo cineasta, a espinha dorsal do filme, que a voz deste imigrante
cabo-verdiano insufla de ternura. A conquista da palavra, neste filme, é acrescida ainda da
singularidade da língua crioula, a que o cineasta não declina.

O som dos filmes, portanto, caminha conforme as imposições pontuais e contextuais que a
reflexão do cineasta sobre seu método de produção deflagra. Esta dinâmica de trabalho
exprime um princípio que seus filmes tornam manifesto: cada espaço, cada rosto, cada
memória é um universo que o filme persegue e ao qual os instrumentos técnicos se adequam.
Se pensarmos no que se tornou a cinematografia de Pedro Costa após No Quarto da Vanda,
em que a mudança de método é crucial, podemos elencar seus longas-metragens nos seguintes
termos, de forma cronológica: um filme sobre um bairro e seus habitantes (No Quarto da
Vanda); um filme sobre um casal de cineastas que trabalha para montar seu filme (Onde jaz o
teu sorriso?); um filme sobre um imigrante cabo-verdiano que mantém relação intrínseca com
o bairro demolido onde viveu em Lisboa (Juventude em Marcha); um filme sobre uma
cantora que ensaia suas músicas e as performa sobre diferentes palcos (Ne Change Rien); um
filme sobre aquele mesmo imigrante e suas memórias aterrorizantes e assombrosas do período
da Revolução dos Cravos (Cavalo Dinheiro); um filme sobre o luto e o drama de uma mulher
cabo-verdiana que chega em Portugal para enterrar o marido (Vitalina Varela).

Ainda que nos filmes encontremos recorrências estilísticas, notadamente o plano longo,
estático e com profundidade de campo, Pedro Costa costuma adaptar seu arsenal técnico ao
que requisita cada universo filmado (um espaço, um rosto e/ou uma memória). Assim, por
exemplo, ele transita do realismo quase documental de No Quarto da Vanda ao
148

expressionismo surrealista de Cavalo Dinheiro, enquanto este e Juventude em Marcha, cujos


pontos de vista se adequam ao aquebrantado Ventura e fazem traduzir seu universo interior
fantasmagórico, são filmes amplamente mais abstratos, fragmentados e narrativamente não
lineares do que Vitalina Varela, que focaliza uma mulher resoluta, firme e centrada. Se
pensarmos na ausência de planos gerais em No Quarto da Vanda, constatamos que esta é
consequência do espaço reduzido onde o cineasta filma; e que em Juventude em Marcha, tal
condição é parcialmente suplantada pela área ampla dos apartamentos da Boba, o que tem por
consequência a adoção de planos mais distanciados.

O emprego de determinadas estratégias cinematográficas, portanto, é dependente do ser


humano ou do espaço a que elas se ajustam1, o que influi nas formas de captação imagética ou
sonora e nos procedimentos de montagem ou edição de som. Pudemos constatar, no decorrer
de nosso trabalho, a conformação de determinados recursos sonoros aos filmes que eles
originam, por sua vez aclimatados à pessoa ou espaço que se pretende captar. O apelo à
dublagem, a construção de silêncios, a opção pelo som direto, a busca por diferentes pistas na
banda sonora, a preservação da inteligibilidade das vozes, as camadas de sons acusmáticos,
entre outros, atendem a uma poética singular – nunca desvinculada de uma política – que se
descobre na produção mesma de cada filme.

Que se faça menção, neste sentido, ao que nos revelam as músicas dos filmes das Fontainhas.
Em Ossos, a canção do grupo Wire silencia as personagens: seu volume elevado impede que o
espectador escute aquilo que as personagens dizem entre si e que os lábios moventes não
escondem aos olhos. Em exercício retrospectivo, Pedro Costa pondera sobre esta cena: “Hoje
em dia, se eu fizesse uma cena assim, em que há duas ou três personagens a conversar num
quarto, no bairro, com uma música desse gênero – um heavy metal, ou um rap qualquer –,
provavelmente seria uma cena para se ouvir as palavras”2. Ossos, como em certa medida os
filmes anteriores, e isto tanto a música quanto o plano final asseguram, eram obras sobre o
cinema, sobre o universo de referências pessoais de Pedro Costa. Era um filme, como define o
próprio cineasta, “demasiadamente protegido pelo cinema”. O que mudou para que se
desejasse ouvir o que as pessoas têm a dizer? Certamente algo da ordem da alteridade, da

1
Em sua tese de doutorado, Daniel Ribeiro Duarte (2018) estuda a noção de comunidade no cinema de Pedro
Costa e parte desta mesma ideia de adequação, considerando “de que forma o cinema de Pedro Costa se oferece
à mutabilidade, deslocando-se a cada encontro, construindo no embate com o outro filmado a possibilidade de
acrescentar sempre uma nova perspectiva ao filme”. Para o autor, o que está em jogo, no caso, não é nunca um
projeto, mas um processo.
2
COSTA, P. Primeira entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 29 de junho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” desta dissertação].
149

reflexão sobre o próprio método de trabalho, da meditação sobre as formas da representação


do Outro, da vontade de aproximação deste Outro e da renúncia a um modelo pré-estabelecido
de produção cinematográfica.

Em No Quarto da Vanda, ele se acerca dos moradores das Fontainhas e procura, acima de
tudo, escutá-los. Acaba por escutar, também, as músicas que animavam o bairro em seu
cotidiano, como I’ve Got The Power, sem que renuncie às suas presenças na banda sonora. As
canções, no entanto, deixam de ser impostas pelo cineasta ao universo diegético do filme; elas
emanam, agora, de uma experiência comunitária que ele procura traduzir em imagens e sons.
Trata-se, portanto, de um problema de adaptação ao objeto do filme – o próprio bairro e seus
habitantes. Em Juventude em Marcha, a utilização de Labanta Braço, como também
constatamos, remete-nos ao passado de Ventura, figura que Pedro Costa elege como
protagonista do filme. É certo que a carta que Ventura recita é um componente que pertence
ao universo do cineasta, como era a música do Wire, mas contrariamente a esta, a carta é
partilhada entre os diferentes autores que ela convoca – Pedro Costa, Robert Desnos, Ventura
e os imigrantes cabo-verdianos que se correspondiam com seu país de origem.

Em Vitalina Varela, encerra-se o filme com uma música sobre uma tela preta. Trata-se do
movimento final da elegia que Gyorgy Kurtág escreveu para o compositor húngaro Endre
Szervánszky3. O fragmento musical, no entanto, nós já o escutamos anteriormente na
filmografia de Pedro Costa: também sobre o ecrã escuro, ele conclui No Quarto da Vanda e
Juventude em Marcha. No primeiro caso, a dádiva que Kurtág dedicou ao falecido amigo
arremata um filme sobre a morte de um bairro. Em ambos os filmes, a música preserva ainda
outro sentido (quiçá o mesmo): após os anos de gravações diárias no bairro das Fontainhas ou
no bairro Casal da Boba, e com tudo que isto resultou, Pedro Costa oferece ao bairro e aos
seus moradores, sem os quais estes filmes jamais seriam possíveis, uma pequena dádiva
provinda de seu universo pessoal. Através desta oferenda em forma de música, presente
sonoro para um bairro que sonoramente tanto lhe intrigou e para pessoas que humanamente
tanto lhe fascinaram, o cineasta parece agradecer aqueles cujas histórias foram captadas e
rememoradas por uma câmera e um microfone sempre disponíveis.

Pedro Costa lhes agradece com uma música enquanto nós, através desta pesquisa,
agradecemos ambas as partes pelos filmes realizados.

3
Trata-se do movimento XV da peça Officium breve in memoriam Andreae Szervánszky for String Quartet (Op.
28, 1989-90).
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_____. “Entrevista a Pedro Costa”. [Entrevista concedida a] Daniel Ribeiro e Pedro Maciel
Guimarães. Lisboa, 2007b Disponível em <http://www.forumdoc.org.br/2007/wp-
content/uploads/2007/11/entrevista_pc.pdf>. Último acesso em: março de 2020.
154

_____. “Petite caméra, grand film”. [Entrevista concedida a] Dominique Villain. In:
VILLAIN, D. Le travail au cinéma I. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2012,
p. 13-43.
_____. “Juventude em Marcha”. In: NEVES, J. (org.). O lugar dos ricos e dos pobres na
arquitetura de Portugal. Porto: Dafne Editoria, 2014. Mesa-Redonda.
_____. “Mesa-redonda”. In: Corte e Abertura. Porto: Edições do Centro de Estudos Arnaldo
Araújo, 2015, p. 79-104. Mesa-Redonda.
NEYRAT, C.; RECTOR, A. Um melro dourado, um ramo de flores e uma colher de prata:
No quarto da Vanda – Conversa com Pedro Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.

Entrevistas realizadas e incluídas como apêndice

COSTA, P. Primeira entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 29 de junho de


2019. [A entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” desta dissertação].
COSTA, P. Segunda entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 06 de julho de
2019. [A entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “B” desta dissertação].
OLIVEIRA, J. Entrevista concedida e Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 21 de junho de 2019.
[A entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “C” desta dissertação].
CIDRA, R. Entrevista concedida a Luiz Fernando Coutinho. Lisboa, 24 de junho de 2019. [A
entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “D” desta dissertação].

Filmografia de Pedro Costa, em ordem cronológica

1987 – Cartas a Júlia (curta-metragem)


1990 – O Sangue
1994 – Casa de Lava
1997 – Ossos
2000 – No Quarto da Vanda
2001 – Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, Cinéastes (Episódio da série Cinéastes de notre
temps)
2001 – Onde jaz o teu sorriso?
2003 – 6 Bagatelas (curta-metragem)
2003 – The end of a love affair (curta-metragem)
2006 – Juventude em Marcha
2007 – Tarrafal (curta-metragem integrante de O Estado do Mundo)
2007 – A caça ao coelho com pau (curta-metragem integrante de Memories, Jeonju Digital
Project)
2009 – Ne Change Rien
2010 – O Nosso Homem (curta-metragem)
2012 – Sweet Exorcist (curta-metragem integrante de Centro Histórico)
2014 – Cavalo Dinheiro
2019 – Vitalina Varela
155

Filmes citados na dissertação, em ordem alfabética

Alemanha, Ano Zero (Roberto Rossellini, 1948)


Amarga Esperança (Nicholas Ray, 1948)
Bom Dia (Yasujiro Ozu, 1959)
Central do Brasil (Walter Salles, 1998)
Da Nuvem à Resistência (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1979)
Diário de Um Pároco de Aldeia (Robert Bresson, 1951)
Dinheiro, O (Robert Bresson, 1983)
Estado do Mundo, O (Ayisha Abraham, Chantal Akerman, Pedro Costa, Vicente Ferraz,
Wang Bing, Apichatpong Weerasethakul, 2007)
Flor de Equinócio (Yasujiro Ozu, 1958)
Homem que Sabia Demais, O (Alfred Hitchcock, 1956)
M, O Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931)
Morta-Viva, A (Jacques Tourneur, 1943)
Mulher de Tóquio (Yasujiro Ozu, 1933)
Não Reconciliados, ou só a Violência Ajuda onde a Violência Reina (Jean-Marie Straub,
1965)
No Rufar dos Tambores (John Ford, 1939)
Nuvem (Ana Luísa Guimarães, 1991)
Pai e Filha (Yasujiro Ozu, 1949)
Pickpocket (Jia Zhangke, 1997)
Playtime (Jacques Tati, 1967)
Psicose (Alfred Hitchcock, 1960)
Rua da Vergonha (Kenji Mizoguchi, 1956)
Stromboli (Roberto Rossellini, 1950)
Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, 1976)
Uma Rapariga no Verão (Vitor Gonçalves, 1986)
Vingança dos 47 Ronins, A (Kenji Mizoguchi, 1941)
156

Apêndices

As entrevistas aqui anexadas foram realizadas durante um período de estágio em Portugal,


financiado por uma Bolsa de Estágio para o Exterior (BEPE) concedida pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pela CAPES. Agradece-se pelo
apoio.
Apêndice A – Primeira entrevista com Pedro Costa.

Realizada no escritório do cineasta em Lisboa.


29 de junho de 2019.

Luiz F. Coutinho: Em diversas entrevistas, você declara que de início seu gosto era pela
música. Uma vez descobertos os filmes, como se deu a conjugação entre cinema e
música?

Pedro Costa: Talvez a proximidade com a música tenha ajudado a ir mais rapidamente ao
encontro de filmes ou diretores mais musicais. Naquele momento de juventude, de
aprendizagem, de saída da universidade para outros estúdios do cinema – que eu fiz um pouco
por acaso, porque estava desocupado e não tinha decidido o que poderia fazer –, também um
momento muito forte da música popular, da música rock, nos anos 70 e princípio dos anos 80,
a música tocou muito em outras coisas (literatura, artes gráficas, política). Hoje já não se
passa assim. Era também muito menos mercantil e massificado, à altura. No mundo da música
poderia existir, e existia – aqui, no Brasil, na Inglaterra –, uma espécie de artesanato: milhões
de pequenos grupos, bandas, oficinas, ateliês. Misturavam-se muito as coisas. Esse momento
fez-me mais facilmente ir ter apreciação de quais eram as equivalências, para mim, entre o
cinema e a música que eu gostava naquele momento. Um pouco estranhamente para os meus
colegas e amigos, eu punha o Straub ou Godard (sobretudo estes dois, porque brilhavam com
muita intensidade nesta altura, com uma produção muito forte e regular) ao lado dessas
dezenas de discos de pequenos grupos. Havia uma espécie de entusiasmo, para citar lá o
Vertov, que tem um pouco a ver com isto com seu lado espirituoso do princípio de século.
Godard é óbvio, Straub é óbvio, e os grupos de rock são óbvios se tu fores ver as capas, as
letras, a maneira como os chamados cadernos de encargo listam os objetivos. “O que
queremos fazer”, “o que queremos destruir”, “o que queremos construir” – isto tudo podia ser
os manifestos dos cineastas, dos escritores e dos artistas russos do século passado.

Portanto, foram esses que escolhi logo [Straub e Godard], talvez mais do que o cinema
americano. Godard e Straub passavam por cima disto. O resto do cinema na Europa,
principalmente de autor, aborrecia-me mais, ao contrário dos meus colegas e amigos, que não
viam no Straub e no Godard, naquele momento, essa proximidade com os grupos que eu
gostava – os Sex Pistols, por exemplo. Para mim era muito óbvio que em todos era a mesma
ideia política de que temos de ser autônomos, donos de nossos meios de produção e senhores
da nossa convicção. Parecia-me ser a mesma ideia; mesmo na velocidade, muito lenta ou
158

muito rápida, as coisas muito extremas... Ao contrário daquele pântano que era para mim, na
altura, a Escola de Cinema, que foi onde entrei nesse momento. Os fundadores da Escola
foram o António Reis, o João Bénard da Costa e o Alberto Seixas Santos, que eram pessoas
muito fortes teoricamente. Alguns, praticamente – caso do António Reis. Paulo Rocha passou
por lá, de quem não fui aluno. Era uma Escola com alguma categoria, digamos. Não tinha
qualquer espécie de institucionalização; não era ilegal, mas não era uma academia ou algo
parecido. Estava em formação. Pelo seu lado de vanguarda, ela punha muito na vitrine de
entrada coisas como Godard ou Straub. Rivette passou pela Escola, Serge Daney, os grupos
dos Cahiers du Cinéma daquela altura, Robert Kramer vivia por cá... Houve uma altura em
que começaram a passar por cá muitos cineastas por causa do Paulo Branco, que estava a
trabalhar na produção deles, entre eles o Raúl Ruiz, fazendo 50 filmes por ano. Só para dar
um pouco o perfume da época. Aos poucos foi se desvanecendo e apagando um pouco a
minha ligação com a música. Todos os meus amigos que nessa altura passaram para lá do
cinema eram da música, de grupos de rock. Amigos de quarto, de café. Depois passei para o
mundo do cinema, que era completamente desconhecido, pois comecei a ser cinéfilo quase
por aí, talvez um pouco antes.

- Você mencionou Sex Pistols... Houve alguma influência do punk em sua formação
como cineasta?

- Foi tudo muito, muito rápido, como uma espécie de encontro explosivo e supersônico entre
as primeiras coisas que eu ouvi dos chamados “punk”, dos grupos, das músicas e dos discos, e
de certo cinema que era contemporâneo. O Straub era contemporâneo de um grupo chamado
Wire, que para mim era a coisa mais importante, séria, interessante, rica... Ou outros muitos,
dezenas e dezenas, que eram contemporâneos do Straub e do Godard. Discos como os dois ou
três primeiros dos Wire – Chairs Missing ou 154 – são contemporâneos do América 1do
Straub. Visto este filme ou ouvido aquele disco na mesma altura, a relação que eu estabeleci
foi imediata. Isto era um pouco também por oposição a algo que eu via na música – em
alguma música, não em toda. Nesse movimento do punk havia talvez mais condescendência.
Eu tinha mais condescendência quando ia ver ou ouvir 40 bandas que eram péssimas, que não
sabiam tocar, cantar ou escrever. Mas era o gesto, era a fulgurância do gesto. No cinema, era
o equivalente a dezenas de filmes punks que eram péssimos. E aí eu tinha menos
condescendência. Talvez alguns amigos meus tivessem mais, mas eu tinha muito pouca,

1
Relações de Classe (1984).
159

porque talvez começasse a tomar mais seriamente, para mim, a hipótese de que me
interessava o cinema, como maneira de conhecer coisas, de investigar, de prolongar uma vida
de trabalho. Nessa altura, talvez já tivesse posto de lado ou descartado a ideia do trabalho na
música, que nunca foi muito sério. Portanto, não tinha condescendência nenhuma pelos filmes
que diziam ser equivalentes à música punk. Foi uma coisa mal vista: tomaram-se os três
acordes, ou as guitarras partidas, ou o slogan de palavra de ordem, ou as letras ultra
minimalistas dos Wire e adaptou-se isso no cinema como “não há planos, não há quadros, não
há atores, não há ponto de vista”. Não havia nada o que fazer. O cinema não aguenta isso.
Não é como se a música aguentasse, porque os Wire, os Buzzcocks, ou mesmo os Sex Pistols,
aquilo era relativamente sério. Sempre foi.

Havia uma partilha, entre todos os meus amigos da mesma idade, da mesma geração, que
estavam na música. Todos eram relativamente cinéfilos – todos gostavam do John Carpenter –
, mas havia outros que davam um passo à frente e punham as coisas mais sérias em relação.
Eu fui um deles. No meu caso, creio que a lição principal, assim vista hoje – não posso dizer
que já tivesse pensado nisso – foi uma ideia que talvez viesse também pelo lado de professor
do António Reis, que foi a pessoa de quem me aproximei mais na Escola. Este sim tinha um
espírito relativamente independente, rebelde... Enfim, essas palavras não querem dizer muito.
Era uma pessoa muito tenaz. Muito teimoso e furioso nessa altura, muito fulgurante, tinha
uma espécie de brilho... Ele mesmo, como personalidade, como pessoa, era um poeta
camponês, pobre, com um interior duro e puro. Passou a vida um pouco solitariamente a
escrever poemas, perdido na cidade, e criou uma espécie de armadura, de carapaça, muito
feroz e dura. Um pouco como o Straub, não é? Mas menos politicamente vincado que o
Straub, mais poeta lírico. E mais sentimental, é claro – basta ver os filmes. Foi muito
impressionante para um tipo de 20 e poucos anos ver alguém que era muito pior que ti nas
suas arrogâncias e insolências adolescentes/punk. Ele é dez vezes pior que ti e acalma-te logo.
Sendo uma pessoa de cinema, fez-me ver tem coisas que não se podem tratar assim. Tens que
analisar, tens que ver... Foi com ele que percebi que o cinema poderia ser – são palavras
também um bocadinho chatas, mas... – analisado, estudado, no bom sentido, para além do
encantamento e da magia que ele sempre foi. Já sabia nessa altura, porque era preciso ser um
bocado idiota para não perceber, que Bresson ou Dreyer eram imensos. Mas pôr um filme de
algum deles e falar sobre ele plano a plano, segundo a segundo, numa mesa de montagem ou
escrevendo sobre ele, foi sem dúvida o Reis (o João Bénard também, mas o Reis primeiro)
que me abriu esse campo, ou essa janela. Desviei outra vez, mas a lição principal foi essa: ser
160

um pouco dono dos seus meios de produção. À altura era um pouco impossível, e andei
alguns anos a pensar em como escapar de todas as armadilhas possíveis. O António Reis
dava-nos algumas pistas, mas não eram suficientes, e ele próprio sofreu muito – se ele
estivesse vivo, não tenho qualquer dúvida que estaria como o Straub estava há dez anos ou
coisa assim, com pequenas câmeras, vídeo... Pelo menos haveria um peso do qual ele teria se
libertado. A equipe pesada, a produção organizada no sistema convencional, o financiamento
de laboratórios... Ele sofria bastante com isso. Não tanto o Straub, que sempre teve um lado
de “cineasta industrial”. Ele poderia ser um dos muitos cineastas de estúdio como Ulmer ou
Borzage. Ele tem estofo, aparelhagem técnica, e é um tipo que está à vontade numa rodagem,
num laboratório, fala à vontade de câmeras, lentes ou emulsões fotográficas. É um
profissional... duro (risos). Um profissional à antiqua, da tradição – e ele é um tradicionalista,
é claro. O António Reis, menos: vinha da poesia, da escrita, era mais delicado, mais frágil,
sofria muito com as cópias dos filmes – coisas que eu também sofria muito, ou seja, tinha
horror de chegar ao pane de não se ver nada, ou de estragar, ou de não acontecer. São coisas
completamente estranhas ao Straub, que não se põe esses problemas líricos.

Enfim, era preciso ser dono de sua voz, de sua maneira de fazer e de suas ferramentas. Na
altura, já havia um bocadinho disso na Escola, que estava no rastro da Revolução. Nós
tínhamos aquelas câmeras de 16 mm, íamos para a rua, filmávamos o povo, fazíamos nós, etc.
Essa aprendizagem prática deixava logo muito apetite para ter uma câmera. Era como a
fotografia. Eu tinha amigos que eram fotógrafos, e hoje em dia um dos meus melhores amigos
é fotógrafo – o outro é escultor e o outro é arquiteto; não tenho muitos amigos cineastas.
Todos eles são donos dos seus meios de produção. Ou seja, o escultor tem a sua oficina, com
suas máquinas de corte; e o fotógrafo e o arquiteto também. Todos servem patrões, às vezes,
mas o fotógrafo, por exemplo, aprendeu como eu, na altura, a revelação, para tirar a
fotografia, revela-la e imprimi-la sozinho. No cinema havia essa falta, tu podias filmar, mas
depois não conseguias nem revelar, nem imprimir, nem mostrar, nem nada. Tu podias fazer o
filme e depois eras despossuído. Uma parte desse fazer faltava, e levou alguns anos até eu
conseguir chegar a esse ponto. Outros cineastas ou colegas meus nunca se puseram esse
problema e nem se põe até hoje.

- Talvez você concorde que, desde seu primeiro filme até o último, há um percurso muito
singular que é construído pelos encontros. Além disto, os filmes parecem sempre refletir
sobre o que é isto que entendemos por cinema. Há um questionamento sobre como
161

representar, como enquadrar... Coisas materiais. Esse questionamento se estende ao


trabalho de som, de alguma forma?

- Sim, claro. Não tem diferença. Mas estou muito mais perto da câmera, como qualquer
diretor na minha família – morta ou viva (risos) –, ou seja, estamos sempre muito mais perto
da imagem, e em alguns casos somos até diretores de fotografia ou operadores. Eu, por
exemplo, não só estou sempre perto da câmera como também a opero, e às vezes faço a luz
quando não tenho ninguém, seja porque tenho gosto por isso ou porque faço em conjunto com
o diretor de fotografia que tem feito os últimos filmes. Temos um diretor de som na rodagem
e, depois, há pessoas que trabalham a montagem do som, enquanto nós montamos a imagem.
Não gosto de operar eu o “Final cut” ou o “Premiere”, mas tenho uma pessoa que faz isso e a
cada segundo da montagem estou presente, sempre. Procuro estar na montagem de som, mas
há etapas dela em que não é necessário estar, e, por outro lado, se calhar, é mais benéfico que
eu não esteja. O montador de som percebe seu trabalho mais concentrado, talvez. Nessas
etapas do som estamos um bocadinho mais desligados, embora nalguns filmes, como em No
Quarto da Vanda, eu tivesse feito as duas coisas.

Mas Vanda é um filme à parte, para tentar por em prática tudo aquilo que já falamos, ou seja,
ter tudo à minha disposição todos os dias e durante um tempo que eu pensava ser ilimitado e
não era – não só equipamentos, mas atores, cenários, guarda-roupa, imagem e som. Então fiz
o som, operei microfone, e foi a única vez. Foi um filme que fiz praticamente sozinho, sem
equipe, talvez também para testar. Fui longe demais, não sei se é possível ou útil... Sim e não.
Há sacrifícios a fazer. Por exemplo, o som desse filme não é o que poderia ter sido. Sabia que
a imagem ia ser pobre, mas não era isso que me interessava, não era isso que me importava;
eu sabia que certas coisas eram mais importantes. Mas do som descuidei um pouco, e eu devia
ter calculado o fato de que uma câmera-vídeo, que grava imagem e o som, tem um microfone
que é péssimo. Aliás, já disse muitas vezes que o som digital existe há mais anos do que a
imagem digital, portanto isso é uma coisa da indústria, da economia – “não deem ao povo
uma câmera com alta imagem digital e um super som digital, porque assim acabava com
tudo”. O som tem que estar muito à parte de qualquer câmera. Trabalhei agora com uma
câmera Arriflex, 4K, uma dessas câmeras normais com que todos os filmes são feitos, e não
tem entradas de microfone. Há empresas que já fabricaram agora um aparelho, uma espécie
de adaptação para um amplificador, mas é caro, e ainda não são câmeras que te permitam
162

ligar o som com a mesma altíssima qualidade da imagem. É o peso do capital, da indústria – o
peso no sentido das imposições.

Sempre tive muito gosto por trabalhar o som, e não só por causa da música, mas porque quero
que o interesse, ou o espanto, seja imediatamente o mesmo num filme em que há mais
imagem e menos som, por exemplo, nos clássicos ou nos de série B (e ainda há uma ligação
entre os dois nestes), e nos filmes como os de Straub ou Godard – e esses dois são bons para
por em paralelo, não só pelo som. É óbvio que quando vês um filme do Straub ou do Godard
percebes que som e imagem não são coisas que se desliguem, e que não podes pensar as
coisas em dois momentos, tens que pensar tudo. Se tu vais fazer um plano da Vitalina, que é a
pessoa que filmei nesses últimos dois anos, há o rosto, a alma, o invisível, o visível, o espírito,
a história, o texto, e há uma altura em que começa a ser bastante mais importante a voz, a
palavra, o silêncio, o ambiente da cozinha, da casa de banho, onde ela vai falar ou calar-se.
Não digo que a imagem começa a ficar secundarizada, mas começas a pensar mais do ponto
de vista sonoro. Aconteceu muito e está a acontecer muito agora, porque estamos a montar o
som, e neste filme nós filmamos convencionalmente, com uma câmera, com vários
microfones, com um diretor de som que escolheu seus pontos de vista, e hoje em dia tentamos
tirar o melhor partido desses pontos de vista que ele escolheu conosco e em relação a Vitalina
ou outros. Gosto muito do som, gosto muito da voz, e acho que há assim um princípio
imbatível (que deve se ligar ao punk), um princípio que a Vanda tem um pouco, que é aquele
sonho absurdo de ter uma pessoa em frente à câmera a falar. Ford, Dreyer, Eustache, Straub,
Godard, Vertov, Eisenstein, em todos há essa certeza de que uma pessoa filmada e ouvida é
imbatível. É o melhor que há (risos). Podia ter sido, podia ser, e não foi por muitas razões,
mas quando aparece uma coisa dessas... A Vanda passava por aí. Ou o filme sobre os Straub,
era sentar a pessoa e deixa-la falar. E, depois, é uma questão de atenção, de tenacidade. Tem a
ver, portanto, com a palavra, com a gravação e registro dessa palavra. Gosto disso e ao
mesmo tempo gosto da montagem de som, da multiplicação das pistas, da montagem mais
musical, ou godardiana, não sei. Tenho um grande fascínio e amor pelo som direto – que
pratico –, mas não limito-me e uso mais pistas se achar que falta lá ao fundo o ruído do
trânsito ou o ruído do pássaro. Vou buscá-lo, gravá-lo e colocá-lo. Sempre fiz e acho que é
um trabalho que, quando bem feito, é magnifico.
163

- Percebo que desde o início há um jogo com a materialidade da voz, um apreço pelos
sussurros... Há uma intervenção sua nesse sentido da forma como são declamados os
diálogos?

- Sim, sim. Há. Depende dos filmes. E depois, o que eu faço agora (e que pode ser que não
faça a seguir, que faça um intervalo...), por exemplo, são filmes que a maior parte não é falada
em português. Talvez nenhum espectador pense muito nisso ou nem se dê conta, mas estou a
filmar num dialeto que não é o meu, que não é o português. A Vitalina e o Ventura não falam
português todos os dias, falam um pouco por obrigação, por estarem cá, por serem imigrantes
onde a língua oficial é o português. Mas no caso da família, do bairro, não é assim. E eu estou
num país linguístico diferente. Meus filmes são legendados em português, cá. Este filme,
Vitalina Varela, que acabamos de fazer, tem alguns pequenos pedaços em português porque
são da bíblia. A bíblia não foi traduzida em crioulo. Nós poderíamos ter feito, eu poderia ter
feito, mas a lei do texto religioso é sempre... Como dizer isto? Do colonizador (risos). As
lições, os hospitais, a escola... São em português. Pior até, mesmo a mística é portuguesa, não
é crioula. Ou seja, quando há a verbalização, por exemplo, dos espíritos, eles não falam em
crioulo, mas em português. Mas isso é a velha história dos filmes do Jean Rouch, aquela coisa
de falar em francês e não nos dialetos africanos. Para já, não sei se isso me torna mais
concentrado (espero que sim), mais atento, porque tive que aprender, ou pelo menos tentar
compreender, esta língua ou este dialeto. Eu sabia que devia praticar com eles também, por
todas as razões. Acho que há de fazer um mínimo esforço para praticar as mínimas coisas do
dia a dia na língua da pessoa com quem tu estás. Foi isto que eu fiz, desde muito longe, desde
o Casa de Lava. E acho que isso me predispôs a estar mais perto, em todos os sentidos, das
pessoas com quem estou a filmar. E mais: faz-te interessar-te pela história deles, pela história
desse dialeto, a história dessa família, desse país, daquele barco, daquela aldeia... Isto sempre
interessou-me muito, e nos filmes nada talvez passe tão obviamente assim como eu digo, mas
é o que os constrói, é a fundação.

Quando estou com a Vitalina no quarto dela, numa língua que é dela, a tentar imaginar o que
é que pode ser uma cena sobre o marido dela, que morreu na cama onde nós estamos
sentados, naquela barraca que ele construiu, pagou, traficou, naquele bairro que foi construído
por todos os imigrantes, pedra a pedra, nos fins de semana e naquela língua, contra os patrões,
os mal entendidos da polícia... É um universo diferente daquele que é chegar ali à Praça do
Rossio, com o carro de um assistente, e dizer “a câmera está posta e agora olhes para o teu
164

texto”, e ver o ator e a atriz, ele a dizer “cheguei muito tarde”, e ela dizer “não, chegaste na
hora certa”. Não é o mesmo universo, não é sequer o mesmo universo de valores plásticos,
nem do som e nem da imagem. Há coisas que não me interessam, que jamais darei atenção,
que não me seduzem. O pequeno jogo do cinema da solução nunca me seduziu, aquela coisa
do diretor-ator ou coisa assim. Não, é outra coisa: é aprofundar, aprofundar, aprofundar,
cavar, cavar, cavar, quanto mais possível. Ir o mais longe possível lá dentro.

Também confesso que tudo tem sido feito, neste filme ou noutros, fragmentariamente ou por
blocos, ou seja, penso mais a cena, o plano, e não necessariamente o filme inteiro. Há uma
unidade, para mim, muito mais forte que para a maioria dos cineastas de hoje, que é o plano.
Para alguns cineastas já não faz muito sentido o plano. Para mim ainda faz muito e é nisso que
eu penso. Isso é indissociável da cena e de como é que se vai construir a cena, ou a sequência,
se quiseres. E como é que esta se organiza com outras, não no filme, mas naquele momento
do filme. Sabendo que eu não sou o argumentista ou o guionista do filme. Quem é o guionista
é a Vitalina, ou o Ventura, etc. Estou muito dependente deles e estou muito dependente do
meu trabalho com eles, portanto do nosso trabalho, de nossa disciplina... Temos que ser
mesmo muito severos, porque não faço documentários, não faço entrevistas, e levo muito
tempo. É um trabalho de investigação, de arqueologia ou até de sociologia. Eu preciso saber
por que a Vitalina utiliza tantas vezes tal palavra, que não é um tique ou uma razão nervosa.
Tem razões que eu precisava saber, porque vou gravar a palavra dela, então tenho que
explicar a ela que o trabalho que nós fazemos é sério. Porque se não ficamos naquela coisa do
documentário, da entrevista, da televisão, que muitos deles pensam que é: uma coisa rápida,
sem consequências, que se faz sempre com uma gargalhada, com um sorriso... O Ventura já
sabia, a Vitalina já sabe também, que são dias, dias e dias de sofrimento, ou de lágrimas
mesmo, de impasses, de grandes tormentos. Não pode ser um choque para eles, tem que ser
um trabalho – trabalho tem isso. É necessário que haja repetição, ensaio, esforço.

A Vitalina agora está reformada, o Ventura também, a Vanda também era o que era, estava
ali. Era preciso sempre buscar as coisas passadas, que no caso da Vanda podiam ser futuras –
“vou deixar isto e trabalhar, vou deixar isto por uma vida melhor”. É o mínimo de ligação ao
esforço, ao fazer um pouco diferente, ou melhor, ao encontrar tal coisa, procurar, lembrar... E
depois passar muito concretamente à palavra, à frase, à ligação de uma frase à outra, o
silêncio, a pausa, o gesto. São muitas horas de trabalho que eu dedico e que eles dedicam
comigo. Não tenho qualquer dúvida – e não é vaidade, nem nada – que não tem comparação
165

com qualquer trabalho que é feito. Qualquer pessoa que trabalha comigo pode confirmar. Não
quer dizer que o resultado seja melhor do que o de um tipo que vai filmar um minuto com um
ator e é genial, mas eu necessito e eles necessitam desse trabalho, desse esforço. Porque eles
não sabem e eu também não, só isso (risos). Duvidamos, e eu duvido muito, não acredito na
espontaneidade, nem na primeira ideia. Nunca me aconteceu e nunca vi.

São filmes que dependem muito, especialmente os últimos, de uma espécie de verdade, que é
a verdade deles, não é minha. Talvez se ligue a uma coisa que tu disseste agora, que é uma
verdade do cinema. Acho que poderia se falar de uma verdade do cinema. Com eles, eu sei
que é necessário que estejam constantemente numa verdade da experiência – que se veja no
olhar, na palavra. E que é uma história da qual eles são protagonistas, no filme, mas da qual
foram vítimas. Isto precisa se sentir: cada um deles é vítima de muitas coisas, sobretudo de
uma ou, sobretudo, de outra, e isto passa, pode ser partilhado, pode atravessar. E só pode
atravessar pela imagem e pelo som, pois é a única maneira que nós temos. É um quadrado, e
depois lá dentro manchas de luzes e sombras, com um som que está à frente, atrás ou dos
lados. São as duas únicas coisas. Portanto, é bom que nada de muito deficiente, medíocre,
resista nesse quadrado ou nesse alto-falante. Mas é bom eliminar tudo que não interesse, que
não é bom ou que é mentira. Porque se eu não estiver a dizer a verdade, é porque há um guião
(risos). Nosso caso é completamente assim: é porque foi escrito e inventado. E aí vamos para
outro lado, que pode interessar ou não, para fazer uma ligação, pode ser uma coisa poética,
mas o ator, o protagonista, dá sempre conta disso e tem a ver com isso. No caso da Vitalina,
eu e ela, de acordo um com outro, sabíamos sempre quando a coisa passava da verdade em
direção, não à mentira, mas à imaginação.

Enfim, acho que, sem separar uma coisa da outra, a imagem e o som, o trabalho deles de
representação (em todos os sentidos) é muito difícil. Não quer dizer que seja impossível, mas
é muito difícil. Sabemos que partimos sempre para um trabalho longo, duro, que tem de ser
muito disciplinado, e que tem pouca comparação com o trabalho que se faz no cinema hoje.
Não podia ser de outra maneira, porque se não os resultados seriam o que eu vejo nesses
filmes, com pessoas, coisas e histórias desse gênero, que não me agradam muito. Acho que
sempre não vão ao fim de algumas razões. Encontra-se uma razão para fazer aquilo, mas
depois fica uma história de amor ou de polícia. Não sei. Mas é um trabalho que nos dá, apesar
de tudo, algum prazer, claro. É uma aventura muito excitante. Também não há separação
entre o desejo de dizer qualquer coisa e o desejo de gravá-la de certa maneira, de um certo
166

ponto de vista, de cima, de baixo, de lado. E aí entram duas ou três pessoas, técnicos, e há
uma pequena excitação quando queremos preservar tal palavra do barulho dos carros, por
exemplo. Quando há esta preciosidade, é interessante. Para depois expor nas melhores
condições possíveis, isto tem germes interessantes. Não quer dizer que funcione sempre, mas,
no meu caso, tem sido assim. Um trabalho sempre muito árduo (e acho até que se deve sentir
nos filmes), a força de muita perseverança. Tem essa dura realidade que muitas pessoas dizem
ser a mesma coisa, as mesmas pessoas, “lá vai o Ventura, lá vai os mesmos tipos outra vez”...
Tem esse problema que se agrava um bocadinho porque não consegui financiamentos para
além dos institucionais que são quase obrigatórios – como já fiz alguns filmes, não digo que
seja natural, mas é quase óbvio que vou tirar algum apoio institucional daqui. Os
investimentos das televisões, que são quase todas privadas, não financiam. E a razão é porque
não há guião.

- Voltando à questão da voz, é interessante como, de forma geral, ela é um dos meios de
entrada ao passado, à história e às memórias daquelas pessoas. Isto é algo defendido
pelo Carlos Melo Ferreira em seu livro: a voz talvez seja a principal...

- Chave?

- Talvez outra palavra, mas pode-se se falar em chave, também.

- Estou a pensar neste filme que acabei, por exemplo, onde a personagem não é personagem
sequer, é uma pessoa. Penso que neste caso vai ser óbvio que esta ideia de personagem está,
para mim, finalmente apagada. Não há personagens, é muito mais complexa a mistura entre
ficção e o chamado documentário ou a verdade; é mesmo complicado. Há ela, a palavra dela,
a memória dela, a inquisição dela – porque é uma história de inquisição, de uma pessoa que
chega a um local e quer saber das pessoas e quer entender. Não é que passe tudo pela palavra,
mas há esta ideia de “expliquem, digam”. E, ao mesmo tempo, qual o Ventura, que é um
personagem mais secundário, mais subterrâneo, que antecipa ou comenta isto que disseste da
palavra. Ele tem uma palavra fantasmagórica, ou fantasmática, ou profética. Ele antecipa,
como um profeta; anuncia, repete, responde, nega, confirma toda a outra palavra (palavra,
texto) da Vitalina. Uma espécie de verdade, ficção, mentira, documentário, etc, que parece
muito teórico (o filme não é assim), mas que está neste filme. Se calhar, isto estava em outros
filmes, de alguma maneira, mas só uma parte; neste estão as duas. Há um vai e vêm entre
essas duas coisas, esses dois lados.
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- Você já declarou ter se fascinado com o universo do bairro das Fontainhas quando o
viu pela primeira vez. Você diria que o fascínio foi também sonoro, pelos sons daquele
espaço?

- Sim, claro. E perdura ainda hoje. O filme que nós fizemos agora, talvez mais do que todos, é
o que vai mais longe à minha memória e à minha tentativa de reconstituição das pequenas
ruas e da vida do bairro original. Da vida, isto é, do som e da luz, sobretudo. É um filme
completamente de estúdio. Amanhã vamos prosseguir em encontrar em nossos arquivos sons
d’altura, até para antes do Ossos, em coisas do Casa de Lava – que são, por um lado,
ambientes gravados Cabo Verde, rurais e campestres, e, por outro, os primeiros sons que nós
gravamos no bairro das Fontainhas. Procuramos todos os dias em arquivos, cassetes, etc.
Porque, como deves saber, há sempre além do som direto. Sempre insisto muito que os
diretores de som gravem os chamados sons ambientes. Que andem sozinhos por determinados
locais e ouçam e gravem os sons ambientes que depois servem de suporte nas cenas. Eu
sempre gostei muito disto e sempre os incitei a isto. E no bairro das Fontainhas, ou nos outros
bairros, esses ambientes sonoros são sempre muito mais sedutores para os diretores de som do
que os do centro de Lisboa ou de Brasília. Eles chegam às Fontainhas e encontram dezenas de
sons que não se conseguem ouvir aqui [no centro]; há coisas que lembram outras coisas... Eles
gravam horas e horas e, no fim, temos centenas de horas disto. E agora estamos a tentar
recuperá-las e introduzi-las neste filme. Tem sido um trabalho louco, louco. É quase todo o
trabalho que estamos a fazer, porque são cassetes, são bobinas, são fichas digitais... Depois,
há uma recuperação, ouvir horas e horas, perceber o que é interessante ou não.... Não é só a
minha ideia de que aquele é um mundo especial, é que qualquer técnico com os quais eu
trabalho diz que se tivermos esse som com aquela imagem, aquilo parte para outra coisa, liga-
se a Cabo Verde imediatamente, à infância do Ventura, apenas com o som. Por exemplo, há
três ou quatro semanas, inesperadamente, pusemos um som de Cabo Verde numa dessas cenas
em que o Ventura está a ministrar. Este som de lá numa imagem de cá foi imediatamente
certo, justo. E, no entanto, é aquela coisa que o Godard e não sei quem diz: não podia haver
coisa mais longínqua, ou seja, jamais nos lembraríamos, com a nossas cabeças formadas, e
diríamos que “aqui ele está a dizer isto e temos que pôr um som de pessoas ou carros”. E, de
repente, não sei como, num engano ou numa proposta de alguém, porque se estava à procura
de um cassete, tocou o som de uma aldeia que nós gravamos em Cabo Verde e que consiste
apenas em galinhas, água e vozes distantes. Imediatamente era o som mais longínquo da
imagem e, ao mesmo tempo, juntou-se a ela sem qualquer dúvida. Foi imediato. Ninguém pôs
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em causa, nem eu e nem o montador de som. Mesmo com o perigo de algum ridículo,
percebes? A galinha, que tem aquele som, com o Ventura relativamente concentrado no papel.
Pareceu fazer muito sentido.

Ou seja, aquele bairro que eu conheci, a maneira como eu o conheci e como fui acolhido, o
que eu vivi – as tardes, noites e manhãs que lá passei – são uma coisa do cinema. Era como
sentar-me à frente do Stars in my Crown. É esse tipo de experiência, aquela coisa que tu sabes
que jamais poderás viver e que, assim que aquilo acabar, acabou. A porta do cinema abre e é
isto. Mas... tu farias tudo para recriar aquele mundo.

- Você diria, então, que houve um trabalho de reconstituição o mais exato possível
daquele mundo?

- Sim, houve este trabalho, neste filme, para longe e para trás. Para todos os sentidos. No
arquivo, quanto mais longe, mais hipóteses; e quanto mais longe a data (2000, 1980, etc),
provavelmente melhor será o som. Ou melhor se vai adaptar à esta história que fizemos agora.

Esse mundo das Fontainhas – sempre disse exagerando um bocadinho, como é de costume,
mas era preciso – estava todo pronto. Ou seja, a imagem, o som, o som ambiente, o guarda-
roupa, os atores, o texto. Depois era preciso filmá-lo. Podia ser eu, podia ser outra pessoa
qualquer. Dependia do ponto de vista. O meu foi de paciência, de recordação, de como aquele
mundo me fazia lembrar algumas coisas do John Ford ou muitas coisas do Eisenstein, por
exemplo. Talvez mais até do Dovjenko. Para ir até o Straub não era difícil, o Bresson... O
padre da aldeia vivia nas Fontainhas, nunca viveu noutro lado. Aquilo era povoado por
imensa gente que eu já conhecia de outro mundo. E o som das Fontainhas estava montado,
gravado e dado de uma maneira especial. Tem esse lado de estúdio, de casa acolhedora, que
tinha tudo a ver com o cinema.

- Há uma cena que se repete nos filmes, de Casa de Lava à No Quarto da Vanda, que são
cenas de festa da comunidade, geralmente com canções populares. Era algo comum no
cotidiano dos cabo-verdianos?

- Sim, têm-me feito por vezes essa pergunta ou crítica. Há a chamada comemoração da
comunidade (não estou a falar de natal, etc), em três ou quatro datas, que são festas que, a
cada ano que passa, se tornam uma espécie de “folclore” ou um bocadinho mercantis e
televisuais. Uma grande parte da comunidade – por exemplo, a Vitalina – não tem esse gosto
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e é muito crítica disto. A festa da independência, a festa religiosa do São João... Começa a ser
uma coisa meio brasileira, um bocadinho entre o rap e o Brasil, que não tem nada a ver com o
que eu vi, por exemplo. E mesmo em Cabo Verde isso já acontece, muito. Com a força do
turismo, da televisão, tudo. Já não tem nada a ver. Fui testemunha de uma degradação – não é
bem o termo, mas... Essa comunidade cabo-verdiana, e creio que outras são parecidas, sofreu
e foi obrigada a fazer um percurso de integração na sociedade portuguesa, com os
realojamentos em bairros sociais, normalização, bilhete de identidade, essas coisas. Na minha
cultura, a festa se deslocou para a casa, para dentro da sala de estar. Há anos isso acontece,
para tudo – casamento, batizado, funeral, festa. E a festa deles é sempre na casa, tal como nós,
pequeno-burgueses ou menos-burgueses ocidentais. Na casa, com bolo, em volta da mesa.
Ora, em Cabo Verde não era nada disso, imagino. Imagino, não! Enfim, eu sou da história,
um bocadinho da antropologia, e a festa comunitária não era na casa. Era na praça, ao ar livre.
Nas Fontainhas eu vi tentativas disso, ainda, principalmente nos terreiros. E isto apareceu aos
poucos, primeiro com a violência do que foram os anos em que estive lá. Apesar de tudo, é
uma comunidade recente – quero dizer, a imigração é recente; eles chegaram no fim dos anos
60. Nos anos 80, começaram os embates da polícia com o tráfico de drogas, a impossibilidade
de poupar ou arranjar dinheiro e, portanto, a passagem rápida ao tráfico, as dificuldades todas
de viver num bairro daqueles. Portanto, as últimas coisas festivas que eu vi foram muito
violentas. Era o chamado escape, e não celebração. E quanto ao álcool, por exemplo, em
relação aos cabo-verdianos – e não estou a dizer que seja singular –, para a maioria das
pessoas da minha idade ou para os mais jovens, ainda hoje, a bebedeira é violenta, da raiva,
do ódio, raramente é alegre. E faz sentido isto. Tem a ver com a violência que lhes foi
imposta. Uma coisa de impotência, de falhanço, da comunidade ou do indivíduo, “aquele não
conseguiu, outro não trouxe a mulher, outro matou, outro roubou”. É sempre, sempre, sempre
isto. Restam poucos bairros – restam apenas ilhas pequeníssimas, que são muito efêmeras,
com barracas por aqui e ali... A comunidade a viver num bairro organizado, como eram as
Fontainhas, já existe pouco. Onde a Vitalina vive hoje, Cova da Moura, é um bairro grande,
mas já muito diferente, com muitos brancos. Ainda é o que mais se aproxima e é onde nós
filmamos; é o mais próximo que eles conseguem ter ainda como memória de Cabo Verde... É
como fotocópia. Uma maneira de viver a casa, a cor, o cheiro, a música, as vivências privadas
e públicas. É o que mais se aproxima. O resto desapareceu, foi demolido. Eles realojaram-se
em bairros que não têm nada a ver com eles. Apagaram-se, de certa maneira. E os jovens,
portanto a juventude, que, apesar de tudo, faz a festa ou devia fazer, faz a festa de outra
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maneira, nas zonas industriais de Lisboa, com discotecagens, como os outros. E aculturados,
completamente – ouvem Kanye West, por exemplo, nem mais nem menos que os outros. Isto
sempre foi uma coisa de degradação progressiva, de violência do álcool e de agitação muito
febril e terrível. Não hesito em dizer que estas comunidades estão cada vez mais fechadas e,
por outro lado, mais envelhecidas – porque aos novos cabo-verdianos e guineenses (mas não
só: também aos portugueses, lisboetas, consumidores de cultura americana como eu ou como
tu), resta pouco. Resta a língua, e uma das coisas que me dizem quando falo com alguns que
restam ativistas no bairro, por exemplo, quando passam por mim ou passo por eles, é que o
gosto de ter um filme falado em crioulo é muito especial. Tem a contrapartida de que “só nós
vamos perceber”. É claro que não nego isso – um filme em crioulo é como se estivesse a fazer
uma versão super especial do Night of the Demon, escrita em rúnico, sabes? (risos) Este
ninguém vai perceber, mesmo. Ou seja, posso fazer tudo o que vocês quiserem e jamais
perceberão. Aprendam crioulo! Já tenho feito isto há muitos anos: há muitas coisas dentro dos
filmes que eu não traduzo ou que estão lá – por exemplo, no Cavalo Dinheiro – que só as
pessoas que falam crioulo perceberão.

Se nós precisamos falar de integração, tudo bem, eles integraram-se, em blocos brancos...
Vivem completamente separados nas suas noites, ou completamente à parte. Nos dias, os que
conseguem trabalhar, trabalham ainda nas obras; e os das gerações mais novas continuam
muitos a trabalhar nas obras. Outros conseguiram fazer alguns estudos para passar em
engenharia ou fazer outros serviços com computador, entregas de pizza, não sei o quê. Tem a
ver com isso da festa. Mas nas Fontainhas, que era um microcosmo, uma coisa muito
pequena, sentia um dia a dia com vários componentes que, hoje, já não estão presentes. Um
deles é essa mística religiosa – católica, cristã, nada de bizarro, nada de apostólico, nada. No
filme está isso. Na primeira hora, têm verdadeiramente cristãos, três pessoas numa sala,
rezando o terço. É muito estranho, parece uma seita. Se puseres umas togas, eles ficam
exatamente como aqueles que seguiam o Cristo. No bairro tens as outras coisas, claro:
Universal do Reino de Deus e não sei o quê, que estão cheíssimas, como estádios... Não era
assim nas Fontainhas, começou neste momento. Esse embuste começou quando começaram a
chegar os pequenos panfletos, os jeovás, etc. Mas havia aquela vivência normal, básica, em
que eles iam à igreja conosco, com os brancos. Agora tem essas igrejas que vocês inventaram
e mais nada (risos). É bizarro, muito bizarro. Não pode não ser. Mesmo a Vitalina, que não
viajou muito pelo mundo e não viu muita coisa, percebe que aquilo não é sério. Que roubam
as pessoas, que há uma parte de exploração...
171

A única coisa que resta ali é uma espécie de consciência do oprimido, no fundo. Isto continua,
ainda está lá e durará. Consciência de que foram todos enganados, apezinhados e oprimidos,
de que se deveria sair disto de uma maneira ou de outra – se for pelo tráfico ou pelas drogas,
que se lixe; se for pelo conhecimento e pelo enriquecimento, um tanto melhor... Isto continua,
mas não há a solidariedade que em princípio decorria dessa consciência. Não sei se alguma
vez senti isso lá, mas essa consciência mortífera, doentia, ela existe. Em muitíssimos quartos,
casas, ruelas e cafés. Todos os dias. Se fores comigo lá, tu vais ver que, a partir das três da
tarde de sexta, todos os homens que vão estar na segunda-feira às cinco da manhã nos
andaimes vão cair de bêbados e, se acontecer, matam-se uns aos outros. Não por dinheiro ou
mulher, mas por uma cerveja ou futebol, por exemplo. Isto mesmo em Cabo Verde, para onde
fui há pouco tempo (porque três planos deste filme são gravados lá), nas cidades... Tornou-se
destino turístico, com dezenas de hotéis, pizzarias, etc. Senti que o que eu vi está a
desaparecer. E já não há memória sequer.

- Essa dimensão de solidariedade a que você se refere está em todos os filmes...

- Mas isto é algo que eu criei. E que, de certa maneira, o Ventura também puxou um
bocadinho, sem querer. Sobretudo o Ventura, que sempre me disse sem dizer. O Ventura é um
homem muito inteligente, como se vê logo; é uma pessoa que participa de longe, é generoso,
solidário, companheiro, mas tem um olhar de observador distante e crítico – algo que os
outros tipos não têm. Ele pode dizer: “eu, como vocês, falhei, mas eu digo e não me importo
de mostrar que falhei da maneira mais miserável”. Constatei, e quase senti, que ele me dizia:
“estou a fazer isto para ser visto, mas eu já estou a fazer o meu cinema”. Era um bocadinho
isto que eu sentia quando o conheci. E ele fazia a representação do que eles não queriam ver:
do tipo que vem, engana a mulher, deixa-a em Cabo Verde, diz que vai lhe comprar um
bilhete de avião, mas arranja uma aqui e nunca mais telefona, depois bebe, se droga, perde o
emprego, mata dois ou três, etc. O Ventura entrou nesta espiral e arrebentou, como outros. Só
que, bizarramente, ele mostrava isto ao bairro e todas as pessoas mais jovens sentiam.

No bairro, muitos dos meus amigos, que eram da minha idade e acolheram-me naquela altura,
eram os dealers, e eu cresci com eles, vivemos as mesmas coisas. Lembro-me que, nesta
altura, quando conheci o Ventura, perguntei: “quem é este gajo?”. E me diziam: “Ele é tal, tal,
tal, a história dele é mais ou menos essa, ninguém sabe bem – meu pai é que sabia... –, mas é
um gajo que eu posso vir a ser. Porque sou preto, cabo-verdiano, pobre, drogado,
desempregado, espoliado, batido...”. Havia sempre um lado de projeção, que ia para frente e
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para trás. Há o Nani, o jogador de futebol, outro que faz música, etc, mas há cem mil que são
Venturas. O fracasso é aquele; e está ali sempre. Quando o conheci, ele passava pelo bairro,
andava descalço e sujo, a fazer as chamadas rondas de dia e de noite. Era impressionante,
absolutamente shakespeariano, só faltava uma lanterna na mão à noite. E cantava canções
cabo-verdianas, pois canta maravilhosamente bem. Não é um cantor, mas sabe cantar e sabe
dezenas de canções. Na juventude dele, ele era dos discos de vinil, e Cabo Verde sempre teve
muita música e muitos cantores. Não são somente “pretinha, quero ir contigo à fonte”... São
também as canções que ele cantou em Cavalo Dinheiro, que ele sabe de cor. Ele dizia: “ponha
neste filme”. “Vidinha dura na barraca e no andaime”... Sempre a mesma coisa. E ele andava
descalço pelo bairro a cantar isto, todos os dias. É um doido, então um dia quis sentar-me num
café com ele, mas talvez seja menos doido que os outros. Há um ser poético no Ventura,
delirante, que figurava/representava aquele mundo todo. A história, os fracassos, a vida
cotidiana, como se vive aqui...

- Mas mesmo antes do Ventura, por exemplo em Ossos, existe uma solidariedade muito
forte entre a Tina e a irmã, entre as figuras do bairro.

- Isto era a solidariedade do gueto, mais do que da comunidade. Ossos é um filme metade-
metade, meio branco e meio preto. A metade do bairro e a metade que não era do bairro. Era
uma aproximação e uma tentativa de se aproximar, perceber, e entrar ali como um estrangeiro.
Nas primeiras vezes que lá fui, e depois nos primeiros meses e anos, percebi que essa era uma
cumplicidade que imagino que seja igual em todos os guetos. Gueto não no sentido racial; é
mais como bunker, como fortaleza cercada. Uma multitude de variedades de pessoas. Há uma
solidariedade em relação à opressão, à polícia... Era mais isto. E misturada com os laços
familiares. A casa da Vanda era um bunker dentro de outro bunker: ninguém toca aqui, na
minha irmã, na minha vó, no meu pai. Isto está no filme. “Já odeio a todos, mas a minha
família... Mato a minha mãe, mas mato-me logo a seguir porque não aguento o desgosto”.

O bunker era muito forte, como se houvesse uma ameaça. Era tão forte que estava quase
como que dividido por bairro. Havia o gueto das Fontainhas e havia outro, mais acima, que
era o 6 de Maio, que já tinha disputas com as Fontainhas, embora ambos fossem cabo-
verdianos. Mas porque havia uma rua, ou uma pequena história, uma pequena liturgia do
bairro e não sei o quê, criou-se logo uma fronteira – “daqui para ali somos nós e nunca lá
vou”. Depois isto foi exponenciado quando apareceu o tráfico de droga, por exemplo, porque
tiveram que se organizar... Não é à toa: quando foi forte, foi forte. É como no Brasil, com
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soldados, áreas demarcadas, etc. E demarcou-se muito mais na altura. Como vivi os anos
violentíssimos da droga lá no bairro, percebi que era mesmo marcado. Tu não podias passar
daquele sítio para outro lugar – como deve ser no Brasil, imagino – ou então tinhas de ter
password, um salvo-conduto. Havia muita fronteira policial, havia corrupção, havia a polícia
lá dentro que falava com a polícia cá fora...

Eu tenho sempre que contar com muito tempo, muita disponibilidade e generosidade da parte
do Ventura, do Benvindo, da Vitalina, da Vanda ou seja de quem for, porque é absolutamente
constitutiva do filme. Só assim é que se vai poder fazer o filme. E, normalmente, esse tempo
tem que ser passado no cenário, onde as coisas se passaram. Aquela coisa das poças de sangue
em todos os lados, nas quais só tu não sabes que andas a pisá-las. Estão lá as poças de sangue,
os cartões no chão, as coisas todas. Depois aquilo pode crescer, tu podes inventar, e crescer,
crescer e crescer a ponto de passar-te e não ter maneiras de dominar. Eu tento refrear e
passamos para meios que eu não preciso ou não quero ter, como pela evocação ou pela
sugestão, essas figuras. O cinema já não precisa dizer tantas coisas que era preciso dizer, mas
também não é preciso, por exemplo, deixar lá esta amargura de que não há solidariedade.

Pelo menos no Juventude em Marcha e no Cavalo Dinheiro isto está muito presente – o
companheirismo, os camaradas que trabalham, os camaradas da vida, da comunidade, que
apanharam o mesmo barco... Deixar a amargura e ficar com esta tristeza a pulsar. E depois de
ver o filme, perceber que esta solidariedade está em perigo ou desapareceu. A minha ideia é
que o cinema continua a poder restaurá-la, ou seja, no meu filme eles são mesmo muito
camaradas. Como tu vês no Ventura e no Benvindo, aquilo é fortíssimo. Nos filmes do John
Ford, do Raoul Walsh ou dos Straub também era fortíssimo. Mas é no filme, no cinema.
Minha ideia era de que a gente podia falar disso como se pudéssemos dizer que isto existia.
Estamos a filmar uma ruína disto, é claro, com os restos de tudo, e estamos a filmar os restos
com os restos, com restos de pessoas, com restos do que podia ter sido. O Ventura é o
Lincoln, ou o Sócrates, todos os heróis... Mas é também uma espécie de Empédocles, um
suicida. Este novo é muito mais feminino, talvez, mas ainda está lá isto: acho que há um
desgosto de que a comunidade – seja do cabo-verdiano, da mulher, do homem, da criança, da
poesia – esteja partida, quebrada, e que não seja possível recompô-la. Não parece ser possível
recompô-la. E eu, de vez em quando, estupidamente, tenho a sensação de que no cinema é
possível.
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- Queria falar um pouco ainda sobre os três filmes – Ossos, No Quarto da Vanda e
Juventude em Marcha... Ossos é o filme menos falado, com menos diálogos. Já li
entrevistas tuas que em que dizes que esta foi uma escolha relacionada com uma
incapacidade tua de escrever os diálogos. O mesmo já não ocorre em Vanda porque os
diálogos começam a vir daquelas pessoas...

- Sim, em Ossos eu ainda estava muito longe deles, em um lugar muito longínquo. Isto se vê
até na distância dos planos, na maneira como são feitos. Há uma distância média, larga, que é
mais óbvia. Vanda é muito mais próximo. É mesmo físico, geográfico e geológico – coisas
muito práticas do mundo físico. Em Ossos havia aquela sensação de que havia um filme que
se estava a fazer, com equipe grande, máquinas, instrumentos, e de que se visitava ou viajava
até certos locais que seriam filmados. O ponto de vista, portanto, era sempre ligeiramente
turístico (estou a exagerar um pouco, mas pronto...). Em No Quarto da Vanda, não: entraste
no quarto e o quarto tem dois metros por três, ou três por três, portanto são dimensões físicas
completamente diferentes. No outro não tinhas propriamente autorização, não te sentias
autorizado a entrar realmente naquele bairro, naquela intimidade, naquelas vidas. As pessoas
davam-nos a certeza, mesmo na altura, mas eu não sentia-me ainda capaz. E um dos grandes
problemas – aliás, uma das coisas mais proveitosas e salutares – foi que eu não percebia como
se podia fazer um filme ali com aquele número de pessoas, aqueles meios, carros,
equipamentos, ferro... Era simples perceber que as 50 pessoas não caberiam no quarto da
Vanda, fisicamente. Seria uma recriação daquele quarto, daquela casa e daquele bairro em
estúdio, em outro lado, na Cinecittà ou não sei o quê. Era simples. O que eu não tinha,
sobretudo, era intimidade, proximidade, confiança com as pessoas – portanto, não tinha como
saber o texto. Tinha um guião, que era escrito de um ponto de vista de fora, mas não sabia até
que ponto a coisa era codificada; não conhecia as leis daquele sítio. E não conhecia os textos,
a história de ninguém, nenhum passado de família...

Em Ossos, por exemplo, o pai, o herói da história, não era daquele bairro, embora fosse de um
bairro parecido. A história dele era muito diferente das histórias daquele bairro. Depois, há
essa mistificação que extravasa isto que estamos a falar do cinema, em que são todos iguais,
malucos, pobres, ofendidos; é tudo igual – um pobre é um pobre, um preto é um preto, etc. O
Nuno, este rapaz, eu o encontrei numa rua em Lisboa, ele estava a dormir na rua porque
estava na hora do almoço na obra que estava a trabalhar. Portanto, ele estava em Lisboa a
trabalhar e depois ia para um bairro longíssimo do bairro das Fontainhas, onde ele não
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conhecia ninguém. E as pessoas e vivências do bairro dele não eram nada como nas
Fontainhas. Eram mundos quase opostos, embora as condições sociais fossem aparentemente
as mesmas – miséria igual, etc. Apesar de tudo, há que dizer isto: Wang Bing não sou eu, nem
eu sou Wang Bing. Não tem nada a ver. Aquilo é incompreensível para mim. Acho que se
deviam marcar estas diferenças, pronto.

Quando comecei a trabalhar com ele [o Nuno], quanto mais lhe dizia para dizer assim ou
assado, mais ele resistia – portanto, tive esta sorte. Ele e os outros. Mas devia ter contado com
isto, pois estava a trabalhar com pessoas marginais, de fato, que querem lá saber disso de
cinema... Estavam só a aproveitar o pouquinho do dinheiro que nós pagamos. Ao fim de uma
hora de trabalho de cinema, chateavam-se, aborreciam-se, perdiam a paciência, queriam ir
embora. Pouca disciplina, nenhum prazer... E como todos estavam um bocadinho nas várias
drogas, aquilo era uma vida que obrigava a fugir, esconder-se, não estar conosco. Portanto, foi
uma rodagem um bocadinho bizarra porque nenhum dos atores almoçava conosco. Ninguém
comia, não havia aquela camaradagem de costume, embora toda a gente admirasse imenso a
Vanda, por exemplo, com aquela sua força. Mas o rapaz era intratável, indomável, silencioso,
completamente mútico, e foi assim que eu decidi o tratar depois. Ou seja, por que eu hei de
fazer dele uma coisa que eu quero, que eu tenho escrita, que seria um tipo que tem opiniões e
não só diz os diálogos utilitários da cena? Se ele não me diz o que acha, e se não quer dizer, e
se me diz afirmadamente que é um tipo que “prefere resolver na faca”... Foi simples. Tratei-o
logo assim e à volta dele tudo começou logo a ficar mais mudo, secreto. Tive correlações com
os atores principais que foram desse gênero, de resistência, o que deu ao filme uma
observação interessante. Um lado resistente, duro... As pessoas ficaram todas muito ausentes,
mas não só. O João Bénard da Costa, ou outro, tinha um texto bom que falava disto. Como se
fossem enfermos de uma epidemia que era invisível. Uma peste invisível que já estava no
centro da cidade. Portanto, o filme ia muito ao centro da cidade e nós seguimos o rasto dessa
peste até a origem – aquela casa, aquelas casas, aqueles acontecimentos... Uma espécie de
miséria original. E fechava-se como uma ronda.

Enfim, fala-se pouco porque eu não quis inventar os diálogos e porque eles não os queriam
inventar e ponto final. E com a Vanda tive conversas várias em que a provoquei, perguntei o
que ela poderia dizer, o que poderia fazer. Ela dizia-me: “menos do que tens aí, menos”. Em
geral, em todas as cenas, podiam estar escritas dez palavras nas notas que eu tinha no bolso e
ela diria duas. Sempre por aí ou então por um gesto, por um olhar, por uma ação. Eu decidi
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seguir essas propostas dela e do rapaz, sobretudo. E estando ali no bairro eu próprio
constrangido com aquele exército atrás, percebi a certa altura que o filme era este – era um
filme de olhares – e que não tinha, sobretudo, tempo (eram cinco ou seis semanas de rodagem
no bairro, mais duas ou três fora) para entender, compreender, falar, entrar nas casas. Não tive
esta preparação, não a fiz, portanto era melhor não “pôr o pé na argola”, como se diz.

- Uma cena interessante em Ossos é justamente aquela em que toca Lowdown, do Wire, e
não conseguimos escutar o que as personagens dizem...

- Sim. Hoje em dia, se eu fizesse uma cena assim, em que há duas ou três personagens a
conversar num quarto, no bairro, com uma música desse gênero – um heavy metal, ou um rap
qualquer –, provavelmente seria uma cena para se ouvir as palavras. Seria um desafio técnico,
também. Porque a experiência lá do bairro, e em geral daquele mundo, é muito sonora, no
sentido de que as pessoas falam alto. Podem não falar muito – eu diria que se fala pouco e
rarefeito ou muito e em torrentes. E as pessoas entendem-se, compreendem-se e ouvem-se
resistindo às maiores dificuldades, ou seja, podem estar a falar com o maior ruído possível, de
música ou de outra coisa qualquer. Por exemplo, durante a demolição do bairro, aquilo era
incrível: falavam-se aos gritos, todos os dias, dentro das casas... E a certa altura toda a gente
se percebia. Há uma cena em No Quarto da Vanda precisamente sobre isto. Depois ela foi-me
explicada por um tipo do bairro; eu sequer tinha percebido que filmei isto. É uma miúda de
seis ou setes anos, que está a aprender a ler, a fazer o trabalho de casa sozinha, sentada numa
mesa do bairro. Isto eu via todos os dias. E o que ele disse-me foi: “Estás vendo? Filmaste
uma menina aqui e o que estou a ver é que no nosso bairro é preciso dez vezes mais
concentração para uma menina de sete anos aprender um texto do que um vosso filho, porque
vosso filho está num apartamento, está a estudar porque o pai e a mãe disseram-lhe para
estudar, com calma, sem ouvir música nem desenho animado. Ela, não: ela tem duzentos mil
youtubes, todos os raps do mundo, todos os tipos a assassinarem-se uns aos outros, um
infernal ruído, e apesar de tudo ela está a aprender a ler”. Isto é o dia a dia do bairro. Portanto,
se eu fizesse uma cena assim, hoje em dia, haveria um grande ruído e duas pessoas que se
entendem perfeitamente. Naquela altura, foi assim... E havia razões de dramaturgia da cena.
Mas é um mundo muito sonoro, alto, vibrante e duro, sobretudo – duro, ríspido, como é a
música dos Wire, que é muito cortante e incisiva.
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- Em diversas ocasiões, você diz que os filmes anteriores a No Quarto da Vanda eram
demasiado protegidos pelo cinema. Sabendo que o Wire foi um grupo importante na sua
formação, você diria que eles eram também protegidos pela música?

- Apesar de tudo, há pouca música nos filmes. Tirando esse momento, não há tanta música
quanto nos filmes de outros colegas... Antes era um bocadinho diferente, mas eu confesso que
tenho muito pouco tempo para pensar nisto. Tenho pouco tempo para pensar na música –
aquelas coisas do Tarantino de “escrevo e olho a música”; do outro que “foi-me suscitado
quando ouvi cem mil vezes o Marvin Gaye”... São histórias bonitas, fico sensibilizado, mas
não tenho tempo. Não tenho tempo para ouvir música quando estou a fazer um filme, durante
a rodagem... Eu não tenho “preparação”, é tudo misturado: a nossa preparação é a rodagem,
como eu já disse muitas vezes. Podemos começar uma cena num cemitério e acabar num
aeroporto. Pensávamos, sei lá, que ela seria sobre uma sepultura e ela é sobre um reator de um
Boeing. É estranho, mas é preciso. Há histórias interessantes sobre isso, sobre como a gente
partiu daqui e chegou ali, sobre como ninguém percebeu que era isso... Esse caminho precisa
ser feito. Bem, mau, estúpido ou não, para mim é o trabalho das famosas oito a dez horas por
dia. Eu e as pessoas que estão comigo partimos às 8h da manhã, vamos para tal sítio e este vai
ser o nosso trabalho. Depois temos que descobri-lo em muitas facetas – a luz, o som, a
história... Tudo.

- Talvez eu utilize uma palavra ruim, mas me parece que, sobretudo a partir de Vanda,
as canções surgem de uma forma “acidental”.

- Eu ia chegar aí. Eu não tenho tempo para essa coisa – do tal tipo a pensar no What’s going
on do Marvin Gaye, que vai ficar esplendorosa naquela cena, com aqueles cortes, em que
cortas o plano e a música entra, com os efeitos... Coisa que toda a gente faz. Não só não tenho
esse apetite, essa mentalidade, essa passada, como não tenho tempo. O tempo que eu tenho é
para descobrir, trabalhar, e tentar que o trabalho gere outro trabalho ainda mais interessante.
Não há propriamente um resultado, porque o resultado às vezes nem sinto – e eu sequer senti
neste filme novo. Senti que acabou o trabalho, percebes? Depois começo a ver o que o
Ventura fez nesse plano, o que a Vitalina fez naquele plano, e fico contente ou mais ou menos
contente. No caso da música, é exatamente a mesma coisa.

Por exemplo, em No Quarto da Vanda, lembro-me de andar a trabalhar na forma de filmar.


Mas também me lembro de montar e ver – porque passo muito tempo a ver o material. Essa é
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uma lição do Straub, ou da Danièle, talvez. Mesmo antes de conhecê-la eu já tinha lido ou
percebido que ela dizia coisas como “o mais difícil para mim é ver o que se fez, o choque com
o que se fez”. Para mim é a mesma coisa. É muito duro. E depois escolher... Eles, como eu,
somos realizadores – vou dizer um sacrilégio – da take, da tomada. Não o plano, mas as vezes
que se faz o plano. Uma vez, três vezes, cem vezes... A repetição, a pequeníssima variação. E
escolher isso é a coisa mais dolorosa e cruel que há. No caso deles, e no meu, é o mais longe
que se pode chegar. Bresson também, talvez. Porque trabalhamos com pessoas que não são
profissionais, e isto conta muito. Quem está na frente da câmera – Ventura, Vanda – está à
procura ao mesmo tempo em que eu estou à procura – eu, por exemplo, ao deslocar a câmera
um milímetro para a esquerda, ou ao deslocar um refletor ou um microfone porque se ouve
melhor ou de forma mais interessante... Essas razões todas de busca, pesquisa e
aperfeiçoamento. E porque sou a pessoa que mais está perto disto, eu vejo a cara e o corpo da
Vitalina, da Vanda ou do Ventura e vejo temor, reação, tensão, descanso... Isto diz-me que
eles também estão à procura – e que encontraram ou falharam. No caso dos Straub isto conta
muito, porque mesmo que tu possas dizer que o Robert De Niro está à procura de um
sentimento num plano – e eu não tenho qualquer dúvida de que ele está –, não é a mesma
coisa. Aqui temos que ser cruéis e falar do dinheiro, da posição social, da minha relação a
eles, do que se passa numa rodagem – como ela é organizada, como é vivida... Pá, tudo. Não
pode ser só “ele é um ator e está a fazer exatamente o mesmo que a Vitalina”. Não, não é de
todo, não é. Não é uma discussão que vale à pena ter agora, mas é fascinante.

Partilhando algumas coisas com o trabalho do Straub, que já é muito singular, eu, como ele,
trabalho numa espécie de preparação durante um ano, no mínimo. Não posso ter menos que
um ano. Se tiveres um ano de trabalho com alguém, tu integras o tom da voz, por exemplo, e
ele fica lá como uma cor do filme. Tu sabes que se tu seguires estas ideias, o filme vai ter uma
cor, que é a cor da voz dela, por muito pouco que ela fala. Pá, isto é o que o primeiro ano
consolida antes que te parta para outros sítios – isto já para não falar do som dela no sítio onde
ela está a falar, que é o quarto, a sala, a casa... Quando começas a ter isto preenchido – e é
uma sorte, se for um trabalho interessante, se ela começar a ter uma cor que está integrada
(uma cor, um tom, um espírito) –, tu sequer te lembras dessas coisas da música. É um
bocadinho como aquilo que o Rossellini disse ao Truffaut, se não me engano, quando este
dizia: “estou a fazer o genérico do meu filme O Menino Selvagem e estou a desenhá-lo em
letras tais, etc”. O Rossellini dizia-lhe: “mas o genérico são letras brancas num cartão
preto...”. Há uma altura, no fim de dois anos, em que se me disserem perguntarem da música,
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direi: “mas qual música?”. Há uma vida que o filme tem, necessariamente, já filmada,
preparada, registrada, que não incluiu nenhuma orquestra ou disco a ser tocado durante o
nosso trabalho. Podia ser, ou se calhar podia ter a loucura, como há gajos que tem, de pôr
sempre música quando se está a trabalhar. Nós não temos, não acho que seja proveitoso para o
trabalho.

Portanto, acidentes? Claro. Era o que eu estava a dizer. Eu filmei durante imenso tempo No
Quarto da Vanda. Eu, ela e a irmã Zita vivemos esse momento, eu vi esse momento – pois
desviei-me para dizer que vi e revi esse momento até escolher a take, o que é muito difícil –
dezenas, centenas de vezes durante imenso tempo e depois montei-o. E só depois de montar é
que percebi que a Vanda estava a cantar uma melodia do Johann Sebastian Bach. Depois de
dezenas e centenas de vezes. E num dia, perguntei-me “o que é que ela está a cantar?”. Ela
está a falar da irmã, que está presa, a quem visitou na cadeia. Nas pausas dessa confissão dela,
ela começa a trautear uma melodia que está na sala, onde eles guardam os caixotes e tal, uma
melodia que está na televisão. Já se viu que é uma televisão pequeníssima, que se ouve muito
pouco, cujo som é muito pobre. Depois pensei: “Mas este é o momento em que ela diz que o
mês de maio é o mês da Vanda, o mês das cerejas e não sei o quê... E é o mês de Fátima, para
nós, também... É páscoa”. Eu estava com ela, não estava na sala, e quando estou a filmar há
coisas que me escapam porque estou demasiado concentrado com a câmera, com o som, tenho
que estar muito ligado àquilo. E escapou-me. O som estava a entrar, a música da televisão,
mas não dei atenção. Era maio, era páscoa, o que estava na televisão era uma espécie de
concerto religioso em uma Igreja, e aquilo era a “Paixão” do Bach. Eu quando percebi que ela
estava a trautear Bach... Aquilo é maluco da cabeça, como a coisa se constrói por ti. Ela está a
falar da irmã, que foi presa pela polícia, torturada; está a falar do seu próprio medo de ir à
prisão, de ficar como o cordeiro de Deus, e a própria banda sonora do que ela está a dizer e
sentir é Bach. Bach está ali a fazer a música.

É tão simples como eu te dizer: será que se eu tivesse um ator ou dois ou três, e tivesse aquele
texto (que jamais conseguiria escrever), e dissesse: “pronto, agora é uma cena em que tu estás
a falar de que tens pena da tua irmã, de que foste à cadeia – é páscoa, então fala um bocado da
páscoa...”, eu não sei se me lembraria de pôr a “Paixão” do Bach, ou uma oratória, ou uma
missa. Fato é que aquilo aconteceu e é como se fosse, mais do que um acidente, um grande
encontro sacrílego (risos). Estamos a falar do Agnus Dei, do Bach, um homem que devia
levar aquilo muito a sério, mas tenho a impressão que ele fez música para a Vanda. E com
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certeza fez, isto o Straub diz sempre: o Bach fazia música para os operários da Lisnave e,
dizia o Cézanne, não para os mercadores de petróleo em Chicago. Portanto, Bach estava ali na
televisão a fazer a música para a cena e eu não dei por isto – nem tinha que dar, porque estava
a fazer o meu papel. Quando chegamos à montagem, a montadora que me disse. É que tudo é
tão integrado, orgânico, que não vale à pena tu pensares em separado. Não vale à pena e tu
não conseguirias. São esses momentos que para mim me dizem: “pá, deixa lá a música, se
acontecer, acontecerá...”. Se for preciso, eu acho que o Beethoven vai fazê-la, percebes?
(risos). E é evidente que há os rádios, a televisão, nos filmes que estou a fazer agora – e este
filme está cheio disto –, porque não posso escapar e nem quero; está lá e de todo gênero:
sentimental brasileiro, rap, não sei o quê, nem quero saber por causa dos direitos...

- As telenovelas...

- As telenovelas... Hoje em dia mais portuguesas que brasileiras, porque já passamos para
frente (risos). As brasileiras já são muito menos vistas, com menos audiência. Ou seja, eles
trazem uma música deles, e o filme impõe a sua música, mas se eu quisesse pôr uma música,
de mim para eles, talvez incluísse tal como fiz em No Quarto da Vanda, como oferenda...

- O Kurtág no final?

- Pois. Mas nesse sentido, é mais que acidental. É mais no sentido bressoniano, de uma
espécie de Graça naquela conjugação de fatores – domingo de páscoa, visita à cadeia, Agnus
Dei e a música do Bach. Tudo junto; e tu não te dás conta que está tudo junto. E não tens que
dar: é só colher e agradecer. Há momentos assim; não são muitos e às vezes não são sentidos
por toda a gente da mesma maneira. Para mim é uma grande experiência e acho que é uma
cena muito bonita. Provavelmente seria secundária em um filme do Ford, mas tem o mesmo
sentido e sentimento. Uma grandeza própria. E é assim também porque não vi a música,
porque tenho tanto a fazer com a câmera, com o microfone, com a luz, com a sombra, com
qualquer coisa que vai cair, com uma porta que está quase para abrir, que não tenho tempo.
Hoje em dia, tudo se passa assim. Depende muito mesmo da Graça de cima ou de baixo
(risos). É raro, mas acontece.

Há vários momentos assim, inclusive com música, como no Juventude em Marcha, na cena
em que se põe o disco. Aquilo não foi escrito, não foi dito que seria assim, “faz assim, faz
assado”. Havia o Ventura, que escolhia um disco e punha-o para tocar, e havia o Lento. Eu
ainda não sabia o que seria e, portanto, começamos a fazer takes, começamos a filmar uma
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primeira, segunda, terceira, quarta vez... Normalmente, a primeira take é uma coisa e a décima
quinta é outra completamente diferente. Nesta cena há um lado muito comovente, sobretudo
quanto ao Lento. É uma cena musical, que tem o encanto da música numa imagem, mas é
uma cena em que há muita coisa a pesar sobre o Lento, sobre o humilhado e ofendido, sobre
um tipo que não tem hipótese.

Esses momentos existem, mas não é que sejam assim de repente. Uns tu não vês ou vês muito
mais tarde. Neste sentido, a Danièle tem muita razão. E, no caso dela, o filme era 35 mm.
Hoje em dia, é muito mais possível fazer teu filme, mostra-lo em Cannes, voltar para casa e
mudar três takes em três minutos. Como tu sabes... Não é preciso chamar nenhum assistente.
Aquela décima quinta take que andavas a pensar, tu vais lá e troca. Aqui [aponta para o
computador], com operações deste gênero. No passado, não era assim. E há de ficar sempre
aquela dúvida, porque quando tu tens quarenta ou cinquenta takes (o que no meu caso é
perfeitamente normal, e no caso deles também) e consegues chegar a uma colheita (como eles
diziam) de dez que achas que são interessantes, por exemplo, depois reduzes para três e tens
que escolher um – este é o momento mais difícil de todos, para mim, e era para eles. Não é o
corte – o corte é o corte, tens que encontrá-lo, é complicado, trabalhoso e doloroso, mas
aquela dúvida entre as 57 milhões de coisas naquele plano ou as 56 milhões naquela take –
pois conhece todos por de cor... Ficas sempre naquela indecisão, mas tens que escolher um.
Isto é o momento mais difícil. Tem a ver com coisas destas.

Eu sinceramente vi aquela take do Bach milhões de vezes e nunca tinha visto como deve ser.
Por acaso tive sorte, foi um momento crucial que pus no filme, mas podia não ter posto. Neste
filme novo há takes que, com certeza absoluta, devia ter posto e não pus. Eles [os Straub]
estão acostumados. Eles arranjaram um truque absolutamente genial, que foi fazer diversas
versões do filme. E tinham muita razão em fazê-las, porque como se trabalhava com negativo
em 35 mm, tu podias ter três negativos diferentes. Todo o material era diferente. Assim, de
cada negativo tu fazias menos cópias. Com negativos de filme gasta-se muito, ele risca... Ao
fim, não sei quantas cópias eram tiradas, mas eram poucas, e eles tinham um negativo em
francês, outro em italiano e outro em alemão – um para cada produtor/financiador do filme. O
negativo italiano, por exemplo, continha as takes que eles achavam as melhores. Os outros
eram as segundas escolhas, mas muitas vezes ouvia o Straub dizer: “esta segunda é que é a
primeira!”; e a Danièle responder-lhe: “a terceira é que é a segunda!” (risos).
182

Portanto, quando tu tens o Lento ou o Ventura ou qualquer dos atores dos Straub a fazer
aquele trabalho, aquilo não tem preço. O que tu viste sendo feito por eles... É aqui que se
distingue do trabalho dos atores profissionais, por muito extraordinário que eles sejam. A
procura e a descoberta no trabalho de um ator profissional e de um ator amador não são da
mesma ordem. O que é buscado não é o mesmo, sabes? Podiam ser os melhores atores do
mundo – e são –, o que eles procuram são uma verdade diferente da verdade do Ventura e da
Vitalina. Não há no Ventura, nem nunca houve, até a última take, ambição artística.
Absolutamente zero. Não faz qualquer sentido para ele – ele nunca pensou e nem eu acho que
ele deva pensar nisso. Este é um “conforto” sem preço, para mim. Estou livre dessa
contingência... Com o Robert De Niro ou o Daniel Day-Lewis, há a verdade do personagem, a
psicologia, e se o braço, a mão ou a língua estão de acordo com essa verdade, mas depois
sempre vai-se logo para a estética, para a plasticidade, para a sedução, para a arrogância. Com
esses gajos, uma palavra que está sempre a pairar quando tu vês as coisas deles é arrogância.
Com o De Niro, menos, mas com os outros não há como escapar. É abominável quando
aquilo está ali sempre latente. Eu estou a falar da arrogância na sordidez, mesmo. Ora, isto eu
não tenho com o que me preocupar. Eu podia dizer: “Ventura, isto é bonito demais”, mas
nunca diria isso a ele, porque não está em cima da mesa.

Depois, há muitas outras coisas, como dominar ou apropriar-me de um ritmo deles. Da


palavra, por exemplo, que já tentei, mas não consigo e agora não quero. Eles não conseguirão
passar o ritmo que seja de outra pessoa, ou seja, eles não conseguem entrar numa personagem
específica. Não há parte que possa colher esta ideia, “tu vais fazer como se fosse outro...”. O
que é confortável, para mim, e que não quer dizer que dentro deles não haja coisas que eles
não tivessem feito. A Vitalina agora disse-me: “nunca pensei dizer isto aqui ou desta
maneira”. Dizer cem vezes, depois outras cem para filmar... Há um momento em que ela
percebe o que ela está a fazer e para quê. Ela percebe que está a fazer aquilo para um filme,
para muitas pessoas que vão vê-la, e quando ela liga tudo isto... “Eu tenho que dizer mesmo
como foi”. Este não é o trabalho do De Niro nem do Luís Miguel Cintra, ao contrário. No
caso deles, nunca é “como foi”, mas “como devia ser”. Ou como o Martin Scorsese gostaria
que fosse. Há essa coisa absolutamente inexplicável que é o que a Vitalina acha que foi a
verdade. Ou a Vanda, por exemplo. São coisas que estão fora do meu campo... Não me
preocupo com essas coisas, percebes? Posso lhe dizer que é aborrecido, ou que é muito longo,
ou muito lento, ou muito rápido, ou que não se percebe, mas, depois, onde é que ela se vai
emocionar ou não... É surpreendente e contraditório, às vezes: as coisas mais melodramáticas
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ou sentimentais podem ser as mais “frias” enquanto outras coisas, que me passava pela cabeça
serem “frias”, coladas a um olhar ou um gesto, são as que as deixa quase às lágrimas. Tem a
ver com o trabalho que a gente faz, com a verdade da poça de sangue, ao lado ou em cima do
sítio onde as coisas aconteceram.

- Sobre a carta do Ventura, ele a recita em diversos momentos do filme e com variações
no tom, na voz... Você lhe pedia para recitá-la de diferentes maneiras?

- Sim, pedia diversas formas no sentido que te disse há pouco. Mais baixo, mais alto, mais
devagar... Coisas simples. De compreensão, por exemplo: “Ventura, não se compreendem as
palavras ‘cem mil cigarros’, estás a dizer muito depressa e não se percebe”. No princípio do
filme, fui com ele aos sítios onde íamos filmar, que podia ser a casa dele ou o museu
Gulbenkian, e passávamos uma tarde. Podíamos levar a câmera ou um gravador, mas não
filmávamos. Voltávamos um mês depois para filmar. Também no princípio, na preparação, eu
dei-lhe a carta escrita, e todos nós da equipe tínhamos uma cópia da carta. Depois ela passou
para outras pessoas – a Vanda, por exemplo, tinha a carta e sabia dizê-la, porque a leu e achou
bonita. O Lento a tinha também. Todos eles tinham a carta, andavam com ela no bolso, e às
vezes a liam porque julgavam que, a certa altura do filme, seriam obrigados a dizê-la. O
Ventura, sobretudo, leu muitas vezes a carta, e quando andávamos com ele ou tínhamos que o
levar num sítio de carro, ele lia a carta. Ia ao médico, lia a carta. Ia almoçar, lia a carta. Para
decorar, para dizer a carta de trás para frente. Ele não tinha problemas com isso. O único
problema, para mim, era que a carta já estava mecanizada demais, mas, a certa altura, comecei
a pensar que se tinha mesmo que tirar o lastro sentimental daquilo. Ele, Ventura, é um tipo
que é um bocadinho mais culto que os outros, mais letrado, que escreve todas as cartas para
todos – cartas de amor, de dinheiro, dos impostos... Tudo. Portanto, podia ser como a dos
impostos: “Eu, abaixo assinado, declaro que, neste ano, recebi...”. Podia ser declamado assim,
tudo igual. Não o perturbou, ele já estava completamente mecânico com aquilo. A ideia foi
sempre andar com a carta no bolso, pelos cenários, e testá-la para ver quando ela podia
aparecer. Ou, mesmo que não fosse dita, há coisas que a carta sugere ou indicia que estão no
filme de certas maneiras.

A carta é um guião suficientemente abstrato, aberto e vasto para tu desenhares o filme, para tu
filmares de outra maneira, e não te impõe um diálogo, nem uma direção de luz, nem décor...
Havia uma ideia de que a sentimentalidade daquela carta devia, no fundo, ser coral. Não devia
ser só do Ventura. Não sei qual é a ideia que se tem, mas o que eu achava é que deviam ser os
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próprios planos, a própria construção do filme, a Vanda, a filha da Vanda, o quarto... – tudo
isso devia ser a carta. Ela devia ser mais do que a maneira como o Ventura a diz. E eu insisti
em alimentar que o Ventura dissesse aquilo como se fosse uma máquina. Há um momento em
que ele diz a carta inteira, com a cabeça atada – e aquilo tudo é razoável para o Ventura, ou
seja, o acidente ele sofreu mesmo e a cabeça esteve mesmo assim –, e eu lhe disse: “Ventura,
hoje, amanhã e depois vamos te filmar a dizer a carta toda como se estivesse com a cabeça a
doer muito”. Foi a única coisa que eu lhe disse. E estivemos vários dias a filmar com esta
ideia, que ele fez à sua maneira. Foi a única vez que dei-lhe uma indicação mais clara e
precisa. Queria, no fundo, mais do que sentimentalizar a carta ou torna-la só uma carta de
amor, torna-la testamentária, de horror: horror da separação, da morte, do desencontro, do
“nunca mais”.

É sempre preparar, preparar, preparar; ler, ler, ler; e fazer. Fazer as coisas muitas vezes. Ele
abrir a porta, sentar-se e dizer alguma coisa – vamos fazer mil vezes. Há sempre um momento
em que, ao fazer, eles associam aquilo a uma experiência pessoal. Eles lembram-se de uma
vez que entraram num sítio, viram uma coisa... Ou seja, o que estamos a fazer lembra-lhes
qualquer coisa que aconteceu com eles.
Apêndice B – Segunda entrevista com Pedro Costa.

Realizada no escritório do cineasta em Lisboa.


06 de julho de 2019.

Luiz F. Coutinho: Em No Quarto da Vanda, o som é utilizado muitas vezes como


instrumento para costurar espaços diferentes, mantendo-se contínuo mesmo com o corte
da imagem. Passava por ti esta ideia manter uma continuidade temporal entre os
diferentes espaços?

Pedro Costa: Eu diria que não é bem assim, mas posso estar enganado, porque tenho uma
ideia de que, cada vez que se muda a sequência (quase ao nível do plano), se muda de som
ambiente. Tenho certeza, por exemplo, que no Juventude em Marcha é mais isto que estou a
dizer. No Quarto da Vanda é quase todo, senão inteiramente, gravado em som direto – por
isto é que estou a pôr um pouco em causa o que estás a dizer. Tudo que é dito – talvez nem
sempre tudo o que acontece – corresponde com aquilo que estás a ver. Quase inteiramente
tudo que é dito pelas pessoas é gravado em som direto. Portanto, este som direto são palavras,
mais um ambiente do local daquele momento. O que aconteceu, do meu ponto de vista, foi
enriquecer com outros ambientes, com outras pistas, com outras bandas sonoras, sobre esta.
Mas, de qualquer maneira, cada vez que gravamos som direto... Tu me estás a gravar aqui e,
mesmo que agora eu me sente nesta cadeira e tu aproximes o teu telefone para pô-lo mais
perto de mim, não mudamos de espaço. Estamos no mesmo quarto, no mesmo escritório, na
mesma divisão do escritório, mas mudaste de ponto de vista – ou de ponto sonoro, neste caso
– e de acústica, portanto se mudares o teu telefone um metro e meio para a esquerda ou para a
direita, a acústica muda, embora o ambiente possa não mudar. Se o trânsito lá fora se mantiver
com o mesmo nível de ruído ou de timbre, pode haver a ilusão de que nada muda, mas muda o
ponto de vista sonoro. Por isto que estou a pôr um bocadinho em causa o que estás a dizer.

Um plano da Vanda e da Zita na cama foi gravado com qualquer ponto de vista de imagem e
de som, e há, normalmente, um corte para uma aproximação à Vanda ou à Zita em grande
plano. Portanto um plano aproximado das duas e depois um plano de uma e um plano de
outra, por exemplo. Quando isto muda, de uma para outra, o som corta, ou seja, corta a
imagem e corta o som. Portanto, esta continuidade de que tu estás a falar não é verdadeira, há
sempre um corte. Há uma continuidade, como tu dizes, uma colagem, uma montagem... Por
vezes tenta-se uma sensação de continuidade por várias razões – teríamos de ver cena a cena,
pois estamos naquele momento em que se deveria analisar o filme no ecrã. Dependendo das
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cenas, por vezes é mais interessante ou eficaz ter uma certa continuidade no som. Porque
também existe na imagem o espírito de uma cor que exige ou sugere que se mantenha uma
continuidade sonora. Mas muitas vezes se provocam choques muito grandes ou violentos de
som – entre som e imagem e no interior de uma mesma cena, ou de um mesmo espaço, por
exemplo, o que pode ser também muito interessante e ter outras motivações ou razões. Não
me lembro, agora, de muitos casos assim, mas há. É muito variável.

Eu diria que o que tu sentes ou referistes é mais porque... É uma coisa que as pessoas não
pensam ao ver os filmes de hoje; elas eram muito mais sensíveis, por exemplo, aos filmes em
mono, em que o som estava bastante mais integrado – estéreo quer dizer separado... Mas não
quero dizer que era melhor. As vozes, os diálogos, os ambientes, os ruídos e a música estavam
todos juntos e saíam por trás do ecrã, digamos. Hoje sai por detrás do ecrã apenas a voz e os
diálogos, e todo o resto começa a sair pelos lados – pela esquerda e pela direita, muito
diretamente aos seus ouvidos, nas paredes laterais e de trás do cinema. Acho que a
continuidade de que tu falavas, nestes filmes em mono (ou mesmo em alguns no estéreo no
momento mais recente), vem da sensação de que tudo estava junto – e por vezes estava
mesmo, mas não é que estivesse realmente, porque muitos filmes clássicos, digamos,
americanos ou não, não eram gravados em som direto. Nenhum filme italiano até os anos 60
era gravado em som direto – era tudo pós-sincronizado, todas as vozes feitas depois, todos os
ruídos ambientes... Daí aquelas coisas um pouco risíveis dos automóveis dos filmes do
Rossellini, que são sempre o mesmo automóvel, ou as dobragens um pouco aproximativas.
Mas os americanos, os franceses, pelo menos estes, muitos gravavam em direto. Em alguns
filmes americanos, pelo que sei, começou a se ter uma pequena montagem de som por volta
do final dos anos 40, ainda incipiente, e nos anos 50. Depois chegou a televisão e os filmes
adotaram esses procedimentos. Havia um som direto enriquecido, digamos, por ambientes
ainda um pouco enlatados. Ruído de selva era sempre o mesmo pássaro... Mas era uma
espécie de céu ou chão. Todos os filmes mais espetaculares dos anos 60, por exemplo, as
superproduções, as Cleópatras, já tinham bastantes bandas de som. Gravadas para o filme ou
não, os barcos, os mares, essas coisas já eram juntadas ao som.

Há uma sensação nestes filmes mais antigos... Por exemplo, isto é muito sentido – e quem me
chamou atenção para isto há muitos anos foi o Straub -, é muito audível, neste caso, no Jean
Grémillon. Era um tipo que era músico e fez muitas das músicas dos filmes dele. Era um
músico sério, a par dos compositores franceses daquela altura. Podia ter sido compositor
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como o Ravel, que vem um pouco antes, ou como o Dutilleux, que era muito amigo dele. Por
ser um tipo da música, obviamente nos filmes dele tens um som completamente diferente e
muito especial. A todos os níveis: de experimentação, de ousadia, até da montagem. La Petite
Lise, por exemplo, é de cair para o lado. É um som direto, obviamente, vê-se logo e sente-se
logo, mas é um som que nenhum cineasta, por um lado, saberia fazer hoje e nem conseguiria.
É completamente revolucionário. Por isto não me espantou nada quando o Straub me
começou a falar – e fala sempre – do Grémillon e do som, muito mais que do Renoir. E o
Renoir foi aquele que gravou quase sempre em som direto, sempre que pôde. Mas o
Grémillon levou o trabalho de som muito mais longe, nos curtas-metragens, nos
documentários sobre pintores e nos filmes de ficção. La Petite Lise é inacreditável, Daïnah la
métisse... Dá para ver que a música, a inclusão daquelas músicas estranhíssimas, ou tudo que
é montagem do som – os passos, as portas, os ruídos – é muito especial, muito diferente dos
outros. Por um lado muito mais material, muito mais concreto, e daí muito mais estranho. É
bizarro, mas... É o que se passa com o Renoir às vezes, também: como o som direto era muito
concreto, bruto, gravado com instrumentos que na altura eram um pouco deficientes e não
captavam todo o espectro acústico, ele ia imediatamente para coisas muito brutais, o espaço
era pesado, de certa maneira, mas dava aos filmes um lado muito estranho, feérico. Há aquele
filme do Renoir, La Nuit du Carrefour, que é estranhíssimo, cheio de nevoeiro e todo feito em
som direto. E de 1931, portanto completamente no princípio. Estava a dizer que estes filmes,
gravados em direto, com tudo junto, continuam a dar-me mais a impressão de
descontinuidade, variedade ou diferença de ponto de vista do que as coisas muito mais
montadas, hoje, com essa vontade. É estranho.

- Algum dos seus filmes é em mono?

- Só O Sangue é em mono. Não é que não existisse estéreo na altura, mas é que era um filme
de baixo orçamento e os filmes em estéreo eram mais comerciais, digamos. Era um estéreo
simples, no princípio do Dolby Stereo (esquerda e direita, portanto) e já custava algum
dinheiro. Mesmo naquela altura havia licenças a pagar para se utilizar aquele sistema nas
salas. Depois, não era muito comum, era para filmes de maior orçamento ou de muitas cópias
e tinha custos na feitura do filme. Era película e, portanto, havia uma operação de revelação
do negativo de imagem, revelação do negativo de som, junção dos dois, fabricação de cópias,
etc. Tinha custo e nós na altura não tínhamos meio. Ainda hoje, no som de qualquer filme do
Spielberg ou do Straub (risos), se existirem vozes, são gravadas em mono. É um microfone
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que capta em mono, capta a tua voz ou a tua voz e a de outro ator, e a partir daí há cineastas
ou técnicos que tomam opção de multiplicar os microfones. Mas não trás nada demais... É
simples de perceber: se tu tiveres alguém em campo, digamos, no ecrã, e se ele te falar muito
à direita ou à esquerda enquanto está no ecrã, é inaceitável, não fica bem. Tirando em
experiências muito descabeladas ou experimentais (risos). Coisas, por exemplo, que o Godard
faz, mas não é bem a mesma coisa.

Os ambientes e os ruídos, sim, tu podes fazer panorâmicas com eles, multiplicá-los. Ou o fora
de campo, isto sim: pessoas fora de campo, que chamam outras, gritos e não sei o quê, tu
podes tê-los em outros sítios. Mas isto já não é o que nós chamamos de diálogos em direto,
são offs. Tudo que é diálogo é captado com microfone mono, normal, e depois os ambientes,
sobretudo, são captados em estéreo. Podem ser captados em estéreo com muitos microfones.
Quando tu vês uma fotografia do making off de uma rodagem do Scorsese, veem-se no
mínimo seis ou oito microfones espalhados. Mas também se veem seis ou oito câmeras. É a
mesma ideologia, quase. Na imagem, ter a chamada segurança, não falhar nada, digamos, ou
ter hipóteses por todo lado; e no som é quase a mesma coisa – é tentar captar tudo o que se
passa para ter um som o menos... Monótono, não sei.

É evidente que a acumulação de pistas, de sons e de microfones tem – como sempre teve –
algumas razões muito básicas e econômicas. Tem a ver com a equipe, com os salários, com os
sindicatos... Por que não três pessoas no som e em vez de uma, por exemplo? Há uma
rentabilidade nisto, os filmes dão lucro, as indústrias se desenvolvem. A indústria americana,
talvez a indiana... A francesa, não: o diretor de som é o diretor de som, o diretor de fotografia
controla uma câmera ou, vá lá, duas. Na América, sempre houve aquelas equipes A, B, C e D
e isto tem muito a ver com os sindicatos. A ideia é: por que não ter uma equipe B?
“Recebemos pouco, mas oferecemos uma segurança e um back up”.

- Quando pensei em continuidade, tinha em mente, sobretudo, a sequência em que uma


canção de Andrew Lloyd Weber está a tocar na TV da sala e é possível escutá-la em
outros espaços: a sequência começa com um par de mãos num canto escuro do bairro (a
música está distante), depois continua na cozinha onde vemos a Lena (e a música já está
um pouco mais alta) e termina com o plano da sala onde vemos a origem daquela
canção.
189

- Sim, sim. Era o que estava na televisão, pois. No Quarto da Vanda, como eu te disse, foi
gravado um pouco selvagemente, por mim sozinho, e, portanto, toda a colheita (risos), como
se diz, não só era bem-vinda como tinha de ser realmente aproveitada. Não tinha muita volta a
dar. Tu podias substituir o som, do princípio ao fim, de uma sequência, mas, na altura, não era
muito fácil porque eu não tinha muitos meios e porque muitas sequências iriam sempre dar a
palavra, o diálogo, o monólogo, e isto seria dificílimo de dobrar. Não é que a Vanda não
pudesse ou não tivesse talento para isso – ela tinha, porque foi uma das atrizes que mais fez
takes de seus planos, portanto ela teria competência para fazer pós-sincronizações dela própria
–, mas seria mais um trabalho sobre aquele trabalho todo. O que aconteceu nessa cena foi que
comecei a gravar, salvo engano, o último plano dela – que é o que tem o Miranda, o homem
negro, sentado, e por detrás tem a televisão com aquela coisa. Lembro que filmei um plano
que tinha isto, que tinha não só a televisão como a música que lá estava. Depois não sei
garantir se a Lena estava com este som em fundo – acho que não, acho que é de outro dia, de
outro momento completamente diferente, como os outros planos. Na minha vaga lembrança,
acho que era o princípio das nossas ideias de montagem do filme: construíamos uma cena
com planos que podiam ser todos do mesmo momento, e normalmente até eram – por
exemplo, no quarto da Vanda eles pertencem todos à mesma unidade temporal, digamos
assim; durante uma manhã ou durante um dia filmaram-se esses planos e depois eles
conseguem montar-se e formar uma ideia –, mas neste caso me parece que não eram, que
eram planos díspares de vários sítios que depois foram juntados. E uniram-se por causa dessa
música, também. Portanto, foi uma montagem de som que aglutinou uma série de imagens de
proveniências muito diferentes. Há, se calhar, uma continuidade, claro – o que não quer dizer
que não haja diferenças no ponto de vista realizadas tecnicamente na mistura de som, mais do
que na montagem. Na mistura tu pões a Lena na cozinha com o som muito longínquo, do
ponto de vista sonoro, e dá-te perspectivas diferentes. Coloca-te a cozinha mais longe, a porta
que faz haver ruídos do exterior... Estas coisas normais dos montadores de som, enfim.

- O mesmo acontece com I’ve Got The Power.

- Sim, isto. Este pequeno momento teve várias versões. Era uma música desta altura, que era
muito tocada, muito ouvida e muito característica. Era o lugar comum, um bocadinho antes do
rap e até antes do hip-hop – quer dizer, nesta altura era o hip-hop muito pop, que era ouvido lá
em um momento em que mesmo os mais velhos ouviam pouca música cabo-verdiana. Os
mais novos também ouviam pouco – hoje ouvem mais: mais rappers, músicos cabo-verdianos
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ou de descendência africana, que eles ouvem e podem gostar. Naquela altura havia muito
pouco. Coisas daquele gênero tocavam sempre. I’ve Got The Power passava milhares de
vezes, eu ouvia todos os dias, sempre que estava no bairro, de manhã ou à noite. Era típico
dos tipos mais jovens, os “desocupados” que acordavam lá pelo meio dia ou duas da tarde e
nessas alturas começavam a tocar muito alto essas coisas nos quartos e nas janelas. Como eu
havia tantas vezes ouvido – não foi uma coisa que ouvi uma vez e achei piada –, a ideia era
um bocadinho essa: o sentimento que eu queria dar era de uma coisa perene, de uma coisa do
dia a dia, que não é excepcional. É uma coisa que toca todos os dias e alto, com certa força e
dinâmica. Portanto, há um dos planos que tem aquilo em direto e depois os outros planos
“levaram”, submeteram-se àquele que tem a música, que é muito mais forte. Os outros são
construídos em volta desse ponto de vista do som. A Vanda andava a fazer a sua venda de
legumes, ela está a falar com uma vizinha, numa porta, e é este plano que tem o som direto.

Filmei a Vanda, andava atrás dela, e esses planos eram relativamente documentais, ou seja, eu
estava ali sozinho com o tripé e a câmera e, portanto, filmava umas coisas e outras, não,
ficava mais perto ou mais longe dela. Tentava não chateá-la, digamos, não estar sempre muito
perto. Quando tinha tempo, afastava-me, aproximava-me, via através da câmera, testava
algumas coisas, via se a luz era interessante ou não – porque havia também muitas situações
em que eu sabia que não teria imagens muito interessantes por causa da escuridão de alguns
becos ou do sol que estava contra a câmera, entrando diretamente na lente... Tinha muitas
contrariedades que um filme normal não tem. Se tens o sol assim, armas uma série de aparatos
técnicos e dominas a coisa. Eu, não: sozinho, a situação era de muitas limitações, aquelas do
documentarista, do amador. Lembro-me de andar com ela, e lembro-me de deparar com duas
ou três situações em que ela falava, vendia, não vendia, mas normalmente o que ela fazia mais
era puxar conversa com as pessoas. E acabava por não vender nada. Voltava a passar lá e
ficava três ou cinco minutos numa porta. Entrava sempre dentro das casas, no quarto, na
cozinha ou na sala se a pessoa estivesse lá. Ainda há um plano ou dois dela a entrar, sentar,
ver a televisão junto com as pessoas. É um bocado um serviço a domicílio (risos), só que
muito mais amigável. Portanto, ficava longe ou mais perto, filmava algumas coisas e lembro-
me de filmar e ouvir. Eu até sei quem estava a tocar a música – era um tipo que quase
anunciava sua presença. Era como a abertura da loja dele. Abria para o negócio, punha uma
música e se não fosse essa era Madonna ou coisa assim.
191

Depois, cheguei à montagem com essa massa de planos dela a vender, que tinha filmado em
diferentes locais. Quando peguei nesse, comecei a organizar os outros em relação à música. A
música que se ouve, nos outros, eu já tive que ir ao disco, buscar a gravação, embora eu
sempre tentasse gravar – e lembro-me perfeitamente que tentei gravar especificamente o “I’ve
got the power” lá, no beco, mas acho que gravei mal, tecnicamente. Pedi a um amigo meu
para pôr a música no beco, perto da janela, e eu a gravei sem filmar, mas não foi exatamente
como eu deveria ter gravado. Estava a ouvir, mas mal. Sei que, quando misturamos,
recorremos ao disco. E “massacramos” o disco no sentido de pô-lo como um som que seria o
som daquela música tocada no bairro.

- E como surgiu, no final, a música do Kurtág?

- Ela surge já bastante tarde. A montagem teve muitas fases, mas duas principais. A primeira
muito longa, de muitos meses, em que se pensou e testou muito, em que se montaram
algumas versões, e que terminou o filme um bocadinho em suspenso porque, na altura, eu
pensava que ou me faltavam coisas – sentia que não tinha a matéria toda que era preciso para
fazer aquele filme – ou não tínhamos encontrado ainda o fio da meada. Foi uma fase muito
complicada e difícil para mim e para a montadora – ou chefe de montagem, que era a
Dominique Auvray, porque havia uma assistente que era a Patrícia Saramago, com quem
montei filmes depois. Não havia montador de som, ainda, pois é uma fase que vem sempre
um bocadinho depois da imagem. Este momento foi complicado, porque lembro-me de
estarmos os três e elas a submeterem-se um pouco, se calhar, ao meu desânimo um tanto
contagioso. Parecia-me que não tinha encontrado ainda o filme.

Antes da segunda fase, entretanto, filmei uma parte do filme sobre os Straub. Foi neste
momento que fui contatado e convidado para fazer aquele episódio, então filmei uma parte do
filme sobre os Straub entre as duas montagens de No Quarto da Vanda. Quando voltei à
montagem, na segunda vez, uns seis meses depois, nós voltamos quase ao zero. Havia coisas
interessantes montadas, esboços de sequências, mas nada de muito definitivo. Até acho que a
rodagem do filme dos Straub, por um lado, acalmou-me e, depois, se calhar, fez-me pensar...
Não pelo que dizia o Straub ou a Danièle, mas só pelo fato de estar a filmar uma montagem,
que aparentemente era muito diferente do que a dos meus filmes. A maneira como eles
montavam era aparentemente muito diferente. Eram coisas muito preparadas, com uma
planificação que não digo rígida, mas muito pensada, estruturada, com poucos desvios. O meu
192

filme, não: foi uma rodagem ao sabor do tempo, dos acontecimentos, e daí uma matéria
completamente desorganizada.

Mas, aparentemente muito diferentes, as coisas juntam-se muito rapidamente. Foi a Danièle
ou o Straub que me disse: “nós preparamos durante um ano e a nossa preparação é um pouco
o que tu fazes: nós sentamos com os atores, pensamos no que filmar e eles começam a ler um
texto que nós gostamos. Eles começam a aprender o texto, que não conheciam, de uma
maneira que, como nós queremos, as palavras sejam tornadas deles, da vida deles”. Um
bocadinho como a Vanda. Fui lá e filmei tanto com ela que é quase como fazer o contrário: é
como se a palavra dela fosse estranha a ela, como se fosse tão estranha a ela que passasse a
ser de toda a gente, em todos os sentidos. Porque é muito privada, por exemplo, e um texto
dos Straub é sempre muito público, é uma coisa patrimonial, tudo que eles filmam é um
patrimônio da humanidade. Eu faço absolutamente o contrário: é uma coisa mais secreta,
privada, calada, e pelo simples fato de eu insistir, insistir e insistir, ela começa a se tornar
pública e talvez política, importante, poética, não sei.

Eles me disseram que, se calhar, era a mesma coisa: “tua filmagem é a nossa preparação. Este
tempo gigantesco que tu tens de filmagem passamos nós na preparação. Depois filmamos por
três ou quatro semanas” – Sicília são quatro semanas de filmagem, quer dizer, é muito rápido.
O Jean-Marie foi quem me disse: “não digas que é diferente, é muito parecido... Não estamos
a falar da qualidade das coisas, mas os métodos que são parecidos para resultados parecidos”.
Parecidos no sentido de tornar públicas as experiências pessoais. Ele diz sempre que o que
está sendo dito pelo ator num filme dele é uma experiência pessoal. Não é um diário do Kafka
ou a poesia do Pavese, é alguma coisa que alguém tornou sua e te deu como se fosse dela. Era
o caso da Vanda: tentava dizer coisas que nunca disse e que, ao dizê-las, tocava muita gente.
Sobretudo Vanda. É um filme muito especial nesse aspecto. Até hoje perguntam-me sobre ela
e é estranho, porque é como se ao John Ford perguntassem: “e o John Wayne, como está?”.
Ou o Ventura... Há qualquer coisa de relativamente documental, lá está, que se torna muito
privado, ou o contrário.

Fiz um grande desvio, mas foram essas as fases da montagem de Vanda. Depois, quando
voltei, organizamos o material e eu fiquei convencido que não faltariam coisas. Normalmente
é assim, as coisas estão lá e tu é que passas por elas sem as ver durante muito tempo – como
em tudo: mesmo nas rodagens, tu passas mil vezes por uma coisa... Mas é preciso passar mil
vezes, porque se passares uma vez talvez não as veja. Ou talvez não as filme da mesma
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maneira. Eu passava mil vezes pelas coisas, prefiro passar, e ao passar mil vezes pelas
matérias, não as via. Então voltamos a ver e rever coisas, pusemos outras em prática e,
sobretudo, encontrei ou pensei que as tinha encontrado. Às vezes a gente agarra-se a coisas
que podem ser uma espécie de rampa de lançamento, e pensei naquela história de que o filme
tinha não só a Vanda como tinha os rapazes, em geral. Ou seja, os homens e as mulheres. Foi
uma coisa que a gente não tinha na cabeça. Era uma coisa desorganizada, com personagens,
figurantes que passavam, tornavam a passar ou desapareciam, mas não tínhamos aquilo
estruturado. Há a Vanda, as mulheres e meninas e há os rapazes e os homens do outro lado.
Comecei a perceber que era mesmo separado pela simples razão de que eu estava a filmar
muito mais jovens, e estas pessoas, em geral, estavam todas bastante nas drogas. Estava a
filmar o coração do bairro muito doente, que era jovem e drogado. E aí a própria heroína faz
isso – separa. Separa-te de ti, parte-te aos bocados, mas separa, por exemplo, os homens das
mulheres, em todos os sentidos – até no mais básico, que é o do desejo sexual. Aquilo para
imediatamente, há uma parte da fertilidade que é desorganizada pela droga. O desejo torna-se
outro, que é a próxima dose. Acabas de dar a dose e, quando já estás num ponto como estava
a Vanda, o desejo é ter mais disto.

Portanto, isto estava ali e eu não tinha visto. Eles e elas sem se tocarem. Eram todos mais que
amigos – tinham sido amantes, namorados, maridos; todos estiveram na mesma escola e
tiveram a mesma vida. De repente, pareciam todos estranhos uns aos outros, indiferentes, com
aquele lado zombie que muitos textos falam. Comecei a ver isto e a organizar o filme assim.
Começaram a aparecer, nesta fase da montagem, coisas que antes estavam postas de lado –
que nós tínhamos achado interessantes e bonitas, mas que não tínhamos posto em cima da
mesa – e que eram a vida deles. As casas, os quartos, os negócios, as dores, as ideias deles.
Pensamos: “bom, se isto é com a Vanda, é com a Vanda; há que concentrar e já ela tem tanta
matéria...”. De repente, começaram a se fabricar, de um lado, cenas deles e, do outro, cenas
delas. Aí começou a ser um jogo até mais excitante – ver quando é que eles podiam voltar,
por exemplo... Então entrou grande parte de ficção. Ficção no sentido de jogo, porque também
é um jogo ver onde é que encaixam as peças, tipo Lego. Isto é uma parte de ficção: quando
estás a fazer um Lego, tu estás a construir um boneco, uma história, uma casa, uma rua, etc, e
depois queres outra rua, um parque, isto e aquilo, portanto é necessariamente um jogo,
sempre. Foi assim que o filme foi chegando ao seu fim, quando apareceram os rapazes e as
raparigas. O filme tinha um tom ou uma cor muito forte, muito sofrida e intensa, da Vanda, e
com eles não sei se se carregou ou se matizou outra cor. Acho que esta ideia dos dois sexos
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deu uma complementaridade interessante e melancólica. A Vanda não é tão melancólica no


filme e eles deram esse lado ao filme, trouxeram uma diferente tristeza. Não creio que a
Vanda seja melancólica, nem saudosista, nem nostálgica; ela tem uma tristeza muito negra,
mas também uma energia muito clara. Eles, não: tem um lado sombrio, lânguido e doentio.

Foi quando essas duas coisas se juntaram que o filme se montou, encontrou a sua forma, e eu
achei que aquilo nós não só tínhamos encontrado como sempre nos escapou. Mesmo esta
forma final do filme, mais do que uma coisa encontrada, foi algo que nos escapou. Aquilo
estava lá, foi só organizar os momentos. Por isto sempre vi o Vanda como um filme muito
menos meu do que os outros. Estão lá coisas muito mais deles do que minhas. As músicas,
por exemplo... “I’ve got the power” não é uma música que eu ouça, Lloyd Weber não está lá
para nenhum comentário, está lá porque estava e não queria tirá-lo para pôr outra coisa – isto
sim seria fazer uma espécie de manipulação... manipulativa (risos). Não é só por deixar o que
estava – às vezes, sim, um bocado como os pássaros nos Straub, que estavam lá naquela altura
e fizeram uma impressão qualquer –, mas porque seria bizarro depois manipular. Ia partir para
um processo muito diferente, eu em frente às imagens e aos sons seria outra coisa. Ia me
esquecer de qual foi a experiência, percebes? Ao esquecer minhas experiências naquele
momento, ia me esquecer de todas e ia fazer um filme muito mais... do meu lado. E eu acho
que está muito mais do lado deles. Não quer dizer que fosse assim que eles montassem o
filme deles, mas que há uma força dali, daquele bairro, daquele sítio.

Por isto lembro-me bem que, chegado ao fim, faltava-me qualquer coisa. Sentia falta de
qualquer coisa minha. Foi quase como se eu quisesse deixar uma coisa mais pessoal, do meu
lado, do meu mundo. A música era bastante improvável, um bocadinho como a opção do
Straub de trazer alguma coisa que não é conhecida naquele meio – um texto, uma música... –
e dá-la um sentido após ela ser apropriada. Ver o que acontece quando as pessoas tornam suas
aquela ideia. Era um pouco a mesma coisa. Como eu fiz outras vezes, quando levava discos
meus para os meus amigos de lá para lhes dar e ver se gostavam ou não gostavam. Ou
filmes... Não durante as rodagens, mas nas associações do bairro, coisas assim. Neste caso,
era trazer uma coisa minha para o filme ao terminá-lo. Depois revelou-se que o filme, muito
pelo som, aliás, falava do fim de um local. Não o fim do mundo, mas de um local
geograficamente concreto. Cada vez que lá passo faz-me impressão, a mim ou a qualquer
outra pessoa que passou lá muitos anos. Hoje em dia é um amontado de viadutos, túneis e
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autoestradas e não há traço nenhum do que lá existiu. Zero. Voltamos às poças de sangue:
andamos sobre as poças de sangue sem saber que lá estão.

Na montagem, percebemos que No Quarto da Vanda, muito pelo som, era sobre o fim de um
tempo. Da Vanda, dos rapazes... É como depois ela me disse: a Vanda deste filme só existe
neste filme, não existe em mais nenhum. Nos outros filmes ela é outra. A música do Kurtág
também servia a esse sentimento. É um fragmento de uma peça maior, uma espécie de elegia,
em sua forma musical e poética, uma oferenda do Kurtág para um amigo que morreu, outro
compositor húngaro. É uma dádiva a alguém que morreu. Neste caso não é alguém, mas as
Fontainhas, um sítio que é feito de pessoas e de vida. A oferenda musical é um gênero que
existe; no natal ou na páscoa oferece-se uma peça musical como quem oferece um presente,
uma peça de roupa. É isto: esta vinha do nosso mundo para lá depois de três horas daquela
vida para cá.

- Entrando em Juventude em Marcha, queria falar sobre dois sons que surgem fora de
campo. Um é das manifestações do 25 de Abril, e outro é do funeral da Zita. Foram
resoluções ditadas pelas condições de produção?

- No que diz respeito às manifestações, foi uma decisão um pouco brusca, pouco pensada,
talvez até um pouco precipitada, mas não digo que esteja mal. Havia uma parte do Juventude
em Marcha que pairava em volta da história que o Ventura me contava sobre como viveu a
revolução. Não só aquele dia [o 25 de Abril], mas a semana, o mês, o ano depois. Depois o
Cavalo Dinheiro foi muito mais sobre isto. Eu sempre pensei que a certa altura do filme
haveria um momento alusivo àquela atmosfera – que eu vivi e, portanto, sabia o que era.
Sobretudo os dias do verão quente, em 1975, um ano quente com um verão longo, de junho a
outubro, em que a temperatura não descia nem subia; de dia e de noite era tudo igual. As
pessoas estavam sempre em manifestação, sempre na rua, havia uma desorganização e quase
um anarquismo, à beira de uma espécie de caricatura da democracia popular. A polícia não
era respeitada, mas também por vezes não havia nem polícia.

Quando entrei para a Escola de Cinema, um pouco depois, nós saneávamos e despedíamos
professores que pensávamos ser completamente inúteis ou contrarrevolucionários (risos).
Éramos mais que insolentes, éramos terroristas. Os estudantes tomavam conta, literalmente,
da Escola. Havia comitês, unidades, este tipo de coisas. Portanto, foi um período
relativamente perigoso e intenso, e o som disto era um rumor de ameaça. Não era que fosse
196

constante, mas lembro-me da expectativa pelos ruídos das coisas no céu, os helicópteros, os
caças... Os jipes militares eram uma imagem que, para o Ventura, também era muito forte,
essa imagem do jipe com quatro gadelhudos – que chamavam-se assim por causa dos cabelos,
das gadelhas... A polícia militar, que chamava-se COPCON, era mais revolucionária, era a
unidade de polícia de Otelo Saraiva de Carvalho, que foi o principal estrategista da revolução.
Era uma coisa assim entre Cuba e, sei lá, jipes, cabelos até os ombros, barbas, metralhadoras
atrás das costas... Era muito rock ‘n’ roll (risos).

Daí as histórias que estão no Juventude em Marcha e no Cavalo Dinheiro, dos atrevimentos
ou excessos da polícia militar de esquerda, digamos, nos bairros periféricos. O Ventura e
alguns amigos estarem a jogar cartas na esquina do bairro era, aos olhos desse pessoal, uma
atitude contrarrevolucionária. “Não devias jogar cartas, devias estar a ler opúsculos do Lênin”
e coisas assim. Há histórias macabras. Depois tu ligas as coisas, fazes associações... Esses
soldados, os militares que patrulhavam por aí, eram todos jovens, entre os 18 e os 25 anos.
Não digo que fosse natural, mas a juventude tem sede de sangue, como dizia o Rimbaud. Esta
juventude de que estamos a falar esteve com um pé dentro dos barcos para combater na
África. Literalmente do dia para a noite: no dia 24 de abril, estava aqui no Tejo o navio que os
levava e os trazia, o Santa Maria, um navio de passageiros que foi requisitado para as tropas e
levava não sei quantos mil soldados. Eles estavam a embarcar para destronar os fascistas, e
esses mesmos soldados que iam para Angola, Moçambique ou Guiné para combater os
terroristas negros, ficaram cá para defender o povo contra os fascistas daqui e depois patrulhar
os subúrbios de Lisboa que já eram bastante angolanos e moçambicanos. Portanto, quando
eles chegaram nestes bairros, deve-se ter havido uma espécie de vertigem qualquer que não se
passou bem. Não é que tenha sido uma história fundamental ou constitutiva, mas este
episódio, estando eu a trabalhar com o Ventura e com aquele pessoal no bairro, era muito
importante deste ponto de vista. Para ele, havia um rumor – para voltar ao som – na sua
cabeça, no seu coração, que nunca saiu dele e é feito disso: jipes, dedos no gatilho, botas no
chão, insultos em português, um concreto racismo... Eu estive em muitas dessas
manifestações, estive no primeiro de maio com dois milhões de pessoas, no assalto à
embaixada da Espanha, que foi saqueada porque a Espanha era franquista, assaltos às
emissoras de rádio e outras ações desse gênero. Manifestações várias contra toda espécie de
coisas, solidariedades várias... Sobretudo por questões nacionais sobre o processo
revolucionário em curso.
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Mais que visual, era um rumor, de fato: havia uma coisa no ar, nos sons latentes. Eu comecei
a juntar as minhas memórias com as memórias do Ventura – ou o que imaginei que fossem as
memórias dele depois de falar com ele, saber onde ele estava, o que ele via – e cheguei à
conclusão que talvez pudesse juntar à cena que estava prevista para ser filmada, do Ventura
com o colega a falar coisas muito óbvias – “não há nada, está tudo fechado, não há comboio,
não há correio, está tudo em greve” –, o som de qualquer manifestação. Era uma cena que
tinha pensado em fazer noturna, portanto seria estranha ou inabitual uma manifestação à noite
– foi este o gesto um tanto precipitado... São sons da revolução, gravados à altura. Quem sabe
se eu não estava lá? (risos). Estou a exagerar, estive sempre um bocadinho de lado, pois todos
meus amigos na altura eram mais anarquistas. Nas três ou quatro fotografias a cores que
circulam aí, eu e meus amigos somos as quatro ou cinco bandeiras pretas no meio das
vermelhas (risos).

- Estes sons são documentos, então?

- Sim, pedi ao Rádio Clube Português, que era a emissora... São documentos reais. É uma
manifestação em Lisboa, não sei onde e nem por quê. Mas é real, sim. Também teve a ver
com a qualidade do som e com a maneira como o som estava gravado.

O funeral foi bastante mais complexo e trabalhoso porque, ainda que não se ouça bem (no
sentido de ser claro ou audível), tivemos que gravar os passos das pessoas. Eu queria uma
espécie de cortejo sonoro. Aliás, reutilizamos os passos neste filme, Vitalina Varela, porque
ficam como arquivo e depois temos tantos arquivos de som e de imagem... As imagens eu
ainda não utilizo de um filme para outro, mas em breve creio que vou começar (risos). Mas o
som, sim. Há muitos sons neste filme de No Quarto da Vanda, de Juventude em Marcha... Os
cortejos funerários nós gravamos durante dias e dias, depois do filme estar rodado, com o
mesmo diretor de som, à noite. Juntamos dez pessoas, nós próprios, e fomos testar em vários
sítios diferentes acústicas que pudessem entrar naquela imagem dos três – Ventura, Bete e
Xana. Foi um trabalhão excessivo, passou para lá do razoável a gravação desse som. Pelo
número de segundos que ocupa, pelos decibéis que ocupa, porque é ultra sutil... Aliás, sempre
quis que o cortejo ficasse relativamente fantasma, também. É ou não é um funeral? É ou não é
uma despedida? O que é que eles estão a ver? O que é que se passa no fundo? Queria que
fosse uma coisa assim.

- Mesmo a revolução não é muito alta...


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- Mesmo a revolução, não... Lembro-me de um ou outro momento da mistura de som, em que


o misturador, que é francês, dizia-me que seria melhor clarificar até tornar, no caso, mais
espetacular. E eu dizia-lhe que não, que deixasse nas frequências lá debaixo, para ser uma
coisa subterrânea. Depois ele concordou comigo. Sobretudo no funeral, porque ele é
composto de muitas coisas. É um bocado godardiano, neste aspecto. O que o Ventura diz é
uma frase do Georges Bernanos, que está num filme do Robert Bresson, Diário de um Pároco
de Aldeia. É o que ele diz, não eu. Foi a coisa mais bonita que pude encontrar, porque a ideia
do que ele diz em relação à droga, que matou a Zita, irmã da Vanda, era não sobre a droga que
ela tomou, mas a droga que foi tomada por todos. O veneno. No Bernanos, o padre da aldeia
bebe o álcool que a França bebeu. O alcoolismo, a loucura... Depois, é muito óbvio que
aquele tipo de cortejo funerário tem uma origem, que é o John Ford. Talvez até tenha outra,
que depois eu associei, que é o Jacques Tourneur, em que há coisas muito parecidas ao nível
da sugestão. Em todos os filmes do Tourneur, especialmente no Stars in my Crown. Conheces
este filme?

- Sim.

- Tem a ver com uma comunidade, uma aldeia ou uma povoação unida numa tristeza ou no
que for, que tenta uma concentração de silêncio e de contemplação. Funerais, casamentos,
cerimônias, rituais... Há uma memória que vai imediatamente para o Stars in my Crown, em
especial. É muito contido na emoção, no som e na imagem. Não se vê, ouve-se pouco e não se
transparece, não se chora, não há histeria. No Ford, há três ou quatro momentos, sobretudo
funerais, que são desse gênero – vistos de longe, vistos com distância. Portanto, essa cena do
funeral vem desses sítios, ou seja, de voltar a essa distância, a essa memória que também eu
tinha. No caso do som, acho que vem do diálogo esparso. No Ford, se diz uma palavra; duas é
loucura absoluta, não pode ser. O nome da pessoa é dito e não se diz mais. Ou um “adeus”, ou
“bom dia”, ou “felicidades”. É sempre assim. E um nível de volume – que no caso do
Tourneur é alucinante, como também no Grémillon, por exemplo, que põe os ruídos do
mundo em relação às vozes– em que as pessoas, não digo que falem relativamente baixo, mas
são contidas e tem uma gravidade na voz, um tom grave... E todo o ruído do mundo é muito
violento. As portas batem, os motores do avião são de uma violência absurda, os sons do
barco a reboque no mar são completamente agoniantes. As pessoas estão sempre muito
próximas umas das outras, as vozes as aproximam. No Daïnah, por exemplo, elas entram lá
para as cabines do barco, de repente, e recolhem-se.
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Recolhimento é a palavra: as duas cenas de que falamos são feitas sob a ideia de
recolhimento. Uma literalmente, que é o funeral, com o recolhimento do John Ford, com o
Bernanos, o padre da aldeia. (E, retrospectivamente, Diário de um Pároco de Aldeia é o filme
mais importante, para mim. Aos poucos ele toma um lugar que eu jamais tinha suspeitado.
Talvez seja o filme que eu vi mais vezes na vida). E recolhimento também na cena da
revolução, porque é uma coisa que terminou, falhou, morreu... como a outra. A cena tem a ver
com esse recolhimento, ainda por cima associada àquela carta de amor. Não há correio, então
não há maneira de enviar a carta. Esta ideia de que não se consegue enviá-la e nem sequer
escrevê-la, porque não temos caneta e não temos palavra, é, como dizia o Manoel de Oliveira,
funesta (risos). Sendo funesta, são duas cenas funestas, também. Um adeus às duas coisas.

- Queria terminar aproveitando a citação a Ford, Tourneur, Bresson... Você é sempre


muito reticente com as pessoas que, para falar de cinema, trazem a pintura. E quando
trazem outros filmes para falar de seus filmes?

- Trago eu primeiro (risos). Trago quando acho que devo trazer. Neste caso vou ter que me
lembrar do Straub, quando ele fala que há coisas que devem ser faladas e outras que, não é
que sejam secretas, mas são menos óbvias, menos evidentes. É claro que há cenas, há planos...
Não digo que fossem filmados ou pensados para serem homenagens, pois isto é raro. É o que
estou a dizer: retrospectivamente, quanto mais os dias passam na minha vida, ou na vida do
cinema, eu acho o Pároco de Aldeia um filme monumental. E não que outras coisas não
sejam: há muitos filmes do Mizoguchi, do Dreyer, do Ford, do Tourneur, do Naruse. Mas o
peso que Pároco da Aldeia tem é enorme. A Vanda, por exemplo, que é relativamente
indomável, não obedece à polícia. Se nunca obedeceu à polícia, seria completamente idiota
ela obedecer a mim, a uma direção de ator ou seja lá o que for. Mas eu não deixo de encontrar
na Vanda, seja num filme ou no outro, ou numa cena, coisas que vem desses filmes. Que ela
fez sem saber, mas que fez porque estava olhada de uma maneira, ouvida de uma maneira.

É por isso que digo muitas vezes, e isto talvez sirva para fechar esta coisa toda, que o cinema
tem um altíssimo grau de ritualismo. É ao nível da possessão: quando a coisa corre bem,
alguém vai ser possuído por um espírito, por uma ideia, e numa comunidade todos serão ao
mesmo tempo. Possuído no sentido de tomado, investido de... Assume a voz, o corpo, a
indumentária. Em qualquer filme do Jean Rouch – e não é que ele programasse, ele constatou
aos poucos e trabalhou sobre isto –, tu és o rei, tu és a rainha, tens um papel de jornal na
cabeça e são imediatamente reis. Era um bocadinho o jogo que eu tenho, sem ir tão longe na
200

fábula. “Ventura, voltamos ao 25 de Abril...” – de repente estamos lá. Com a ajuda da câmera,
do gravador de som e de uma espécie de ritual que eu não consigo abandonar, não posso e
nem quero, que é este da cerimônia. Três pessoas reunidas, recolhidas em volta da palavra, em
volta de uma ideia ou de uma memória. Sempre estas coisas. Memórias que são feitas de
muitas coisas, sobretudo as do Ventura, mas também são minhas e são feitas disto tudo. Nas
minhas mistura-se o cinema e na dele, naturalmente, não. São três pessoas ou quatro, daí a
minha dúvida se 20 ainda podem – eu duvido. Mas três ou cinco em volta dessa memória, que
pode começar ser comum por causa desses instrumentos bizarríssimos e totêmicos que são a
câmera e o gravador – que são muito estranhos e é mesmo como diz o Straub: são um espelho,
no sentido de um microscópio, uma coisa muito violenta, pois o que é captado é muito real.
Não tem qualquer paralelo com a pintura. Claro que eu vejo uma luz no quarto da Vanda e me
lembro de imagens que eu vi nos museus ou nos livros. Não posso deixar de pensar nas
meninas do Vermeer, claro, que estavam a cozinhar ou fornicar, enquanto a Vanda estava a
preparar sua destruição. Sentidos opostos, mas a luz é a mesma. O cruel é isto: a luz serve
para nascer e morrer da mesma maneira.

Esta é a última ideia que eu queria dizer. Se o ritual continuar, dará sempre frutos desse
gênero. Podemos continuar a representar grandes ideias, bonitas ou interessantes, mas há que
haver alguma cerimônia. Insisto sempre. A repetição das takes tem a ver com isto: tentar lá
chegar, tentar lembrar, tentar consolidar, tentar conjurar... Se não nos lembramos do rosto ou
da voz da pessoa amada, por exemplo, há que fazer o esforço para chegar lá, apesar de tudo.
Fazê-lo sem recolhimento ou sem cerimônia é um ato sem consequência.
Apêndice C – Entrevista com José Oliveira

Realizada na Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema.


21 de junho de 2019.

José Oliveira é cineasta, cineclubista, crítico e professor de cinema. Realizou, entre outros
filmes, O Atirador (2013), 35 anos depois, O movimento das coisas (2015) e Longe (2016).
Em 2016, fundou o “Lucky Star - Cineclube de Braga”, onde programou filmes de Pedro
Costa (responsável pela escolha do nome do cineclube), Charles Chaplin, Frank Borzage,
Michael Cimino, Howard Hawks e James Gray. Junto de João Palhares, co-criador do
“Lucky Star”, recolheu as folhas de sala (as críticas escritas e distribuídas nas sessões) para
lançar um compêndio em livro chamado “Uma Viagem pelo Cinema Americano”. De 2008 a
2010, manteve o blog online "Sempre em Marcha", onde reuniu entrevistas, textos críticos e
ensaios sobre Pedro Costa.

Luiz F. Coutinho: O blog “Sempre em Marcha” reuniu, ao longo de dois anos, mais de
uma centena de publicações sobre Pedro Costa – publicações que se alternavam entre
entrevistas, ensaios, textos críticos e imagens. Gostaria de começar esta entrevista pelo
início, isto é, a primeira publicação do blog, em que há uma descrição curiosa das
intenções por trás da criação daquele espaço: “(...) para mim o Costa é o maior, quem o
assim achar que venha por bem, os outros igualmente.” Na época havia uma razão para
lhe chamar de “o maior”?

José Oliveira: Havia. Há aí um bocado do por que parei de postar em 2010. Foi uma altura
em que se começou a haver certa consciência da obra dele – ela começou a ser estudada... Foi
na altura em que saiu o livro “Cem Mil Cigarros”, que é uma compilação fundamental de
textos sobre ele. Ou seja, neste período entre 2008 e 2010 era uma questão, sobretudo, de
reconhecimento. Eu gostava muito dos filmes dele, sobretudo o trabalho que ele fazia com
não atores, o trabalho formal, o imenso tempo que demora a construir cada plano, que às
vezes pode demorar meses a ser feito... Era essa intransigência que me interessava que as
pessoas conhecessem. Criei este blog com este único objetivo: divulgar para que as pessoas
tivessem acesso a textos complexos e mais densos sobre a obra dele para que pudessem
explorá-la. Em 2010 senti que esta missão estava cumprida e finalizei com o texto do João
Bénard da Costa que ele terminou precisamente antes de morrer, chamado “O negro é uma
cor: o cinema de Pedro Costa”.
202

- Havia uma seleção dos textos ou era, sobretudo, uma questão de publicar tudo que se
encontrasse sobre o trabalho de Costa?

- Entrevistas, por exemplo, fazia questão de publicar todas, boas ou más. Penso que os textos
passavam por um pequeno crivo, sejam eles positivos ou negativos, embora eu ache que só
publicava coisas que fossem a favor dos filmes. Eu acho que havia sempre um pequeno juízo
de valor, mas já não me lembro bem. Que pelo menos problematizasse o filme, e que o fizesse
bem, com propriedade. Se fosse só uma coisa básica, aí acho que já não fazia sentido. Tentava
sempre que fossem textos bons...

- Você transcreveu alguns textos de outras fontes?

- Vários. Cheguei mesmo a publicar alguns inéditos, como do João Mário Grilo, que é um
historiador português importante. Soube que ele havia escrito dois ou três textos sobre Costa,
os quais eu conhecia, mas não encontrava. Quando lhe pedi os escritos, ele mandou estes e
enviou-me também um inédito sobre No Quarto da Vanda, chamado “In and Out”. Não sei se
foi o único caso, talvez uma ou outra pessoa tivesse me enviado textos inéditos. Mas
transcrevia muitos, dos jornais, de revistas...

- Algo que penso ser fundamental para quem se debruça sobre a obra do Costa é
perceber como as entrevistas iluminam os textos e vice-versa.

- As entrevistas são fundamentais porque é um cineasta que, ao contrário de muitos outros,


sabe o que fala do próprio trabalho. Muitas vezes há entrevistas brilhantes de outros
realizadores, mas que falam de outras coisas, estrutura do filme, da mensagem, o que queria
se dizer, e o Pedro Costa fala de condições de produção, coisas muito materiais, o que se tinha
e o que não se tinha, mesmo a câmera que havia – a famosa câmera mini-dv –, como é que
trabalhava o som, os espaços confinados em que só cabia uma pessoa, coisas muito visuais e
materiais... Como disse, isto ilumina o trabalho dele. Esta é uma coisa que já não acontece,
mas que acontecia em outras artes, quando grandes autores como Manet e Renoir falavam da
maneira como pintavam, da matéria que utilizavam, o pôr do sol utilizado em determinadas
horas... E o Costa falava assim em termos dos filmes das Fontainhas, uma rotina que ele tinha
muito fixa. Eram coisas práticas. Mesmo às vezes contradizem-se certos textos, ou minam-se,
complementam-se... Faz parte de um segredo que tem a ver com toda esta constelação dos
filmes dele e que nunca será desvendada. Há milhares de textos, entrevistas, mas permanecerá
um segredo. É um método muito complexo, que se contradiz a ele próprio. Por exemplo,
203

soube recentemente que a maior parte de Cavalo Dinheiro foi filmada meses antes de estrear
em Locarno, e o filme já estava a ser rodado a quatro ou cinco anos. Se calhar é um filme de
transição, como diz o Carlos Melo Ferreira em seu livro, mas é um método que encerra
muitos segredos, sobretudo em função dos atores, claro. Se um ator está doente – o que
acontece muitas vezes em seus filmes –, o próprio Pedro Costa ou um amigo dele tem que ir
com o ator ao hospital. Ele pode ficar internado e, portanto, já não há filme. Eles não são
atores, são pessoas normais, e tem que se esperar que o ator fique bom. Ou isto está até no
filme, no sentido de se fazer uma narrativa em volta disso, o filme muda... Tudo muda, tudo é
inesperado, tudo é uma constante tensão em que qualquer coisa nova pode acontecer. Tudo
pode acontecer. É isto também que me interessa e vem a propósito das entrevistas. Mesmo
assim o próprio Pedro Costa não pode revelar tudo... (risos).

- Mesmo porque os filmes não inspiram grandes explicações.

- Sim, são um segredo (risos).

- O que você disse sobre a contradição é interessante porque se nos dedicamos a ler
retrospectivamente as entrevistas, percebemos que há um pensamento que muda aos
poucos e encontra forma no percurso dos filmes. Nos anos 90, antes de No quarto da
Vanda, que é um ponto de inflexão fundamental, ele dizia que o essencial do cinema era
a montagem. Hoje, talvez, o essencial já se tornou o modo de produção, a condição
material do cinema... No fundo, estas contradições acompanham o próprio
desenvolvimento da obra e a maneira como ele se descobre enquanto cineasta.

- Acho que sim. Porque tem a ver com a realidade. O meio de realidade que ele trabalha. Hoje
em dia o mais importante são as condições de produção – são os atores, o bairro que está a
desaparecer... No Cavalo Dinheiro já se tem muita coisa em estúdio, em digital, porque as
coisas já são memória e não se pode filmar em termos materiais.

- Ontem, durante o lançamento do livro novo de Carlos Melo Ferreira1, você disse que
foi seu aluno na Escola Superior Artística do Porto (ESAP) e que teria visto No quarto
da Vanda em uma das aulas. Por curiosidade, visto que também venho do meio
acadêmico, como seus colegas reagiram ao filme?

1
Pedro Costa (Edições Afrontamento, 2018).
204

- Como um bom espelho do que acontece no resto do país, duas ou três pessoas ficaram
interessadas e a mim interessou muitíssimo. Dois ou três amigos de cinema me
acompanharam para ir ver ao Juventude em Marcha. O resto ficou completamente indiferente.
Talvez não indiferente– não há indiferença no caso dos filmes do Costa. Mas reagiram mal, na
maior parte.

- Será que não passa por aí a vontade de afirma-lo como “o maior”?

- Sim, de provocação, exatamente. Uma dimensão provocatória que é consciente. Lembro-me


de quando estávamos a ver uma sessão do Juventude em Marcha numa sessão no Porto com
meia dúzia de pessoas no circuito comercial. Lembro-me de um comentário de uma pessoa
que estava lá: “este Pedro Costa é bom para filmar publicidade”. Disse isto alto. Portanto é
um cinema que divide as águas, hoje se calhar menos, mas ainda divide muitas. Na altura de
Juventude em Marcha, ou de No quarto da Vanda, era tudo ou nada. Era tudo muito radical,
não havia meio termo. Defendia-se com unhas e dentes. O próprio Pedro Costa era muito
provocatório nas entrevistas desta época.

- Hoje tens algum filme preferido?

- Quando vi Cavalo Dinheiro achei que era o melhor filme dele. Obra-prima, digamos (risos).
Eu vi em condições brutais, no Cinema Ideal, umas melhores projeções que alguma vez vi.
Achei que era um filme revolucionário. Achei que era o melhor filme dele, e que quase tudo
que havia para trás era um ensaio para chegar ali. Hoje em dia, passados alguns anos,
continuo a achar que foi a experiência mais forte – com exceção, é claro, do primeiro impacto
com No Quarto da Vanda. Mas penso que a construção mais sublime, em termos épicos,
sussurrados, ainda seja o Juventude em Marcha. Houve aí um trabalho não só formal mas
narrativo, da construção elíptica, do trabalho com o som... E, sobretudo, essa dimensão
fordiana do filme. Acho que é o filme mais fordiano dele. O Ventura é uma figura como as do
Ford, que são capazes de conduzir o povo para algum lado. E está filmado de uma forma
magistral.

- E há a cena do funeral da Zita, extremamente fordiana...

- Sim, exato.
205

- O Andy Rector diz que o que choca no Juventude em Marcha é que há ali uma história
a ser contada (risos). E, já entrando no tópico do som, esta história é muitas vezes
implicada na dimensão sonora, no som fora de campo, por exemplo...

- É o que diz o Carlos Melo Ferreira: ele trabalha de uma forma total o som. Isto é evidente,
mas evidente no sentido em que, se calhar, se trabalha mais tempo no som do que na imagem
durante a pós-produção. E cria-se de fato outra história através do som, outras narrativas, que
extravasam a imagem. Outras histórias sobre aquilo que está a se passar fora de campo, que se
vislumbra... A história de um povo, da memória e da matança de um povo, mas também do
nascimento – os bebês no Juventude em marcha... E lá está este trabalho épico, que é
verdadeiramente romanesco, como No Quarto da Vanda: trata-se de estar ali e contar, contar,
contar e fazer uma construção muito complexa, temporal, completamente ancorada no tempo,
e que extravasa para todos os lados. Daí a dimensão do segredo que estávamos a falar.

- Ontem durante uma fala você se referiu à construção sonora em No Quarto da Vanda
como um “trabalho revolucionário”.

- Tem a ver com as questões materiais. Aquilo com o fora de campo é absolutamente sublime,
porque estás a ver na imagem aquelas pessoas que estão em sofrimento, desesperadas, e que
são captadas de forma muito forte pelo Costa, e no som estás a ouvir o mundo a morrer, e que
vai renascer no Juventude em Marcha. Isto é que é interessante. Todo fora de campo em No
Quarto da Vanda é morte – tens a morte no plano, é claro, os personagens a fumar... –, é a
extinção do mundo, que é o mundo das Fontainhas, pelas máquinas, pelos pedreiros, a pedra a
partir... A destruição do mundo. E depois renasce: acho que o fora de campo no Juventude em
Marcha é um renascimento, daí o último plano do filme que é uma criança com o Ventura
como se fosse um novo mundo. E podemos ainda discutir se aquele novo mundo é trágico, é
mal feito, é mal construído, é humilhante, é feito à pressa... Mas é a nascença de um novo
mundo.

- O som fora de quadro parece resumir a tensão do filme. Temos no extracampo o som
dos tratores a demolir o bairro, é certo, mas ao mesmo tempo ouvimos ali as vozes que
habitam este espaço. Ou seja: já na dimensão sonora está esboçada esta tensão entre a
demolição e a resistência, a destruição e a sobrevivência...

- Exatamente. É esta dialética, sobretudo...


206

- Gostaria de falar um pouco sobre o Lucky Star, o cineclube que você mantém em
Braga. Já foram programados quatro filmes do Costa – No Quarto da Vanda, Juventude
em Marcha, Cavalo Dinheiro e O Nosso Homem. Este último foi sugerido pelo próprio
Pedro Costa, na abertura do cineclube, em uma carta branca na qual o diretor
programou este curta junto de Monsieur Verdoux. Qual relação você percebe entre os
dois filmes, particularmente, e entre o trabalho de Costa e Chaplin, no geral?

- O trabalho, sobretudo. Também dou aulas de história do cinema em uma escola e ainda estes
dias estive a mostrar alguns episódios do Chaplin. Hoje em dia demora-se muito para
construir uma cena. 50, 100, 200 takes. Em Chaplin, se uma mesa não funciona, tenho aqui
uma parede, e toda a dinâmica da cena muda. É isto que acontece com o Pedro Costa: tudo é
constantemente reorganizado com o que há, com o que existe lá no bairro, com o estado de
saúde da personagem. Tudo isto é organizado e reorganizado in loco, e a mise en scène só
deriva daí. É por isto que o Pedro Costa diz muito das condições da produção: podes querer
fazer um plano-sequência absolutamente fabuloso, mas se o espaço não te permite, se o bairro
já está destruído, se não tens as condições materiais, se o ator fisicamente não consegue fazer
isto ou dizer aquilo, tens que te adaptar aos meios de condições e tornar as coisas mais fortes
possíveis. E o Verdoux também tinha uma dimensão da morte, o olhar da morte, que é o olhar
do Verdoux no final, sobretudo. É algo que está presente nos olhares de Cavalo Dinheiro, por
exemplo. É uma questão de filmar os olhos como se filmava antigamente, que hoje já
ninguém filma, porque há atualmente um grande espetáculo. Era a questão primordial do
cinema, o grande-plano e o olhar. Hoje em dia há milhões de coisas relacionadas com as
câmeras novas, com a luz, com o espetáculo visual, e o olhar é a última coisa em que se
pensa.

- Esta pergunta já se tornou um pouco um clichê, mas você identifica outras referências
além do Chaplin e do Ford?

Há muitas, sobretudo as mais conhecidas, que são Ford, Tourneur e Chaplin. Mas acho que da
minha relação pessoal com ele posso dizer que é também a série B americana, Cy Endfield,
Robert Floure... Ainda ontem ele me enviou um filme do Mitchell Leisen, o Easy Living.
Coisas completamente escondidas. Há um filme chamado The Sound of Fury, do Cy Endfield,
que é muito importante. Também é um clichê, mas a série B envolvia fazer filmes com os
meios e condições que se tinha. Naquele caso era para despachar, porque havia um contrato
para cumprir, mas o princípio era o mesmo. Era trabalhar com o que tinhas, basicamente. E se
207

houvesse alguma coisa a se explorar no cinema do Pedro Costa, em termos de referências, era
esta série B americana. Há o Ozu, também, claro. Tourneur, Ozu, o cinema nipônico... Mas a
série B é fundamental. Mesmo os romances policiais são fundamentais. Ninguém sabe porque
também ninguém tem que o saber. Coisas baratas do David Goodis, do William Irish, do
Dashiell Hammett... São coisas com muita pressão do tempo, ou seja, mediante a pressão da
situação, tinha que se dar resposta às coisas... Numa conversa há coisa de um ano com o
Bernard Eisenschitz a propósito de uma projeção de Onde jaz o teu sorriso?, o Pedro Costa
disse que o cinema fundamental para o Straub – e isto para mim foi uma surpresa – foi a série
B americana. Fala-se de Dreyer, claro, mas há também estes realizadores de série B,
pressionados pelo macarthismo... São filmes que o Straub está constantemente a rever, porque
são filmes feitos com a pressão do tempo e da morte.

- No caso de Tourneur, as contingências materiais por vezes implicam em subtração da


imagem e ocupação criativa do fora de campo. Isto delega ao aspecto sonoro uma
importância que outros filmes talvez não mantenham. A pantera em Cat People habita
sempre o fora de quadro, como também fora de quadro ocorre o funeral da Zita. Não
que o Costa tenha aprendido com o filme de série B a utilizar criativamente o som fora
de quadro em função das condições de produção, mas...

- Arranjar soluções, não é? Robert Rossen, Cy Endfield, Edward Dmytryk… Passou um filme
deste ultimo na exposição do Serralves, chamado Give us the Day, que é um filme
fundamental para o Costa e para o Straub. Tem a ver com os trabalhadores, os que morrem na
construção civil... Lá está, é o mesmo tema. E há coisas perfeitamente inesperadas nestes
filmes, que no caso do Costa envolve o trabalho sonoro. Invenções que, quando se vê o filme,
são uma completa revelação. São completamente inesperadas as soluções que ele encontra. E
está sempre de acordo com o que se está a passar. Nunca é uma coisa gratuita.
Apêndice D – Entrevista com Rui Cidra

Realizada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.


24 de junho de 2019.

Rui Cidra é antropólogo e investigador contratado do Instituto de Etnomusicologia – Centro


de Estudos em Música e Dança, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. A sua investigação reflete sobre a música e a dança ao longo
da trajetória colonial/póscolonial que interliga Portugal e os países africanos de expressão
portuguesa, em particular Cabo Verde. Incide particularmente sobre as relações de poder e
as fronteiras da diferença que configuram a produção da cultura expressiva. Na sua tese de
doutoramento, “Música, Poder e Diáspora: uma Etnografia e História entre Santiago, Cabo
Verde, e Portugal” (2011), abordou o modo como as práticas expressivas interpretadas por
tocadores de gaita, fero e cantores, sobretudo o funaná, foram historicamente mobilizadas na
demarcação de fronteiras de raça, nação e género, em especial de masculinidade, em Cabo
Verde e na Área Metropolitana de Lisboa1.

Luiz F. Coutinho: A sua tese “Música, poder e diáspora : uma etnografia e história entre
Santiago, Cabo Verde e Portugal”, finalizada em 2011, analisa a importância da prática
musical cabo-verdiana no contexto diaspórico. Como começou sua formação enquanto
pesquisador e de onde surgiu seu interesse pelo tema?

Rui Cidra: Eu sou antropólogo, mas ao longo do meu percurso fui tendo uma formação,
digamos, interdisciplinar. Ao formar-me na licenciatura como antropólogo, me interessei pelo
som e pela música. Aqui na faculdade2 havia no departamento de ciências musicais pessoas
que trabalhavam em torno da Etnomusicologia, que é esta disciplina que há quem defenda ser
um cluster de disciplinas, ou um conjunto de adições intelectuais, que são agrupadas em torno
do fenômeno do som e da música, tentando explica-lo, e que são, portanto, interdisciplinares.
Mas podemos simplificar muito, e dizer de um modo mais ou menos objetivo, que a
Etnomusicologia é uma antropologia do som e da música. É uma área que cruza antropologia
cultural e musicologia. E foi sempre aqui na Universidade Nova de Lisboa que me formei,
mas estive também em Paris por um tempo, com uma bolsa Erasmus sobre antropologia do
espaço, e depois também vivi dois anos nos Estados Unidos, precisamente em Berkeley, na
Califórnia, onde também estive ligado, sobretudo, à Etnomusicologia. Na minha formação,

1
Disponível em: http://www.inetmd.pt/index.php/pessoas/integrados/contratados/146-rui-cidra.
2
Universidade Nova de Lisboa (UNL).
209

portanto, sempre tive o pé nestas duas disciplinas – antropologia e musicologia – e para mim
é difícil perceber quais são as tradições de pensamento que pesam mais na minha forma de
trabalhar. Mas diria que sou um antropólogo ligado à Etnomusicologia.

No final dos anos 90 fui convidado por uma pessoa que estava a liderar uma equipe para uma
enciclopédia da música em Portugal no século XX. Na época estava a finalizar a minha
licenciatura, e estava a trabalhar sobre o hip-hop. Tanto o hip-hop quanto o rap estavam a
surgir com força aqui em Portugal, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, e envolvia
muitos jovens descendentes de imigrantes africanos, especialmente cabo-verdianos. Portanto
tinha às mãos este objeto e estava interessado nas práticas culturais, ou práticas expressivas,
dos descendentes da imigração. À medida que fui avançando na minha tese sobre hip-hop fui
começando a ficar cada vez mais interessado nas práticas musicais dos próprios imigrantes.
Essa sensibilidade também tinha crescido comigo por influência de alguns professores do
departamento de antropologia – embora esta enciclopédia fosse feita no departamento de
ciências musicais –, que também estavam interessados em estudar as comunidades imigrantes
em Portugal e com quem mantive diálogos.

Nesta enciclopédia fui trabalhar sobre um dos domínios da prática musical, que era música
nestas comunidades. À medida que fui finalizando este meu trabalho sobre hip-hop, portanto,
comecei a trabalhar muito com alguns dos principais músicos profissionais cabo-verdianos,
que viviam aqui – alguns ainda vivem em Portugal – para fazer pequenos verbetes, pequenas
biografias sobre eles para a enciclopédia, e também para escrever um artigo mais vasto, que
existe e se chama “Música e Imigração”. É uma contextualização histórica alargada sobre a
produção de músicas por imigrantes africanos em Portugal ao longo do séc. XX. O interesse
por Cabo Verde surge, por um lado, por este trabalho na enciclopédia, e, por outro, através de
um fundamento político. Na altura a música de Cabo Verde começava a ter muito sucesso nas
redes de world music, sobretudo na Europa, mas a maior parte dos músicos vivia em Portugal.
Por que esta música com tanta qualidade, que estava a ser feita aqui e que estava a ser
reconhecida internacionalmente, não era reconhecida por nós portugueses? Meu primeiro
questionamento surgiu em torno disto. Se calhar, as respostas para a pergunta deixou de ser
importante, porque passei a buscar outras perguntas e, digamos, a resposta para esta pergunta
também não era a mais evidente. Se não tratamos bem os imigrantes, se não nos interessamos
por eles, a questão da raça... É mais complicado do que isso.
210

Escrevi um projeto de doutoramento em torno da música cabo-verdiana e minha intenção era


continuar a trabalhar com os músicos profissionais que viviam aqui para depois ir para Cabo
Verde e trabalhar com os músicos de lá. Aqui trabalhei, sobretudo, com músicos das Ilhas de
Barlavento, São Vicente, Santo Antão, etc. Pessoas que interpretam um tipo de prática
musical tão bem explorada nos filmes de Pedro Costa, sobre quem podemos falar a seguir.
Mas Cabo Verde é um arquipélago com nove ilhas, e neste sentido com muitas tradições
musicais, em parte comuns e em parte diferenciadas. Depois deste primeiro trabalho com os
músicos aqui, fui fazer pesquisa etnográfica em Cabo Verde e a minha pesquisa mudou
completamente. Guardei meu primeiro mês de pesquisa para estar na Cidade da Praia e
conversar com algumas pessoas na Ilha de Santiago, e depois viajar para as ilhas de São
Vicente, Santo Antão, etc, que eram as ilhas dos músicos com quem eu trabalhava aqui.
Acontece que, logo a partir dos primeiros dias da minha viagem, comecei a perceber as
múltiplas diferenças no respeito à prática cultural/expressiva entre as pessoas das diferentes
ilhas e comecei a ficar muito interessado pelas tradições de Santiago, sobretudo aquelas que
haviam sido marginalizadas no período colonial português – caso do funaná, do batuku, etc.
Iniciei um diálogo com um tocador de acordeão e ele revelou-me uma história de
marginalidade que eu não conhecia. Não conhecia por várias razões, mas, sobretudo, porque
não é uma história oficial da nação cabo-verdiana. Fui me interessando cada vez mais pelo
funaná como praticado por estes tocadores. Depois acabei por viajar para São Vicente, mas
minha cabeça já estava com a minha pesquisa que comecei em Santiago.

A minha tese tem vários enfoques. Um deles é, de fato, a interpretação diaspórica do funaná,
mas também há outras problemáticas... Há a questão do Estado-nação, da transição do
colonial para o pós-colonial, da masculinidade – um gênero que é importante para a
constituição do sujeito masculino cabo-verdiano da Ilha de Santiago e para a sua performance,
não só da música, mas no cotidiano. Foram todas estas questões que tentei articular. E, claro,
as questões da imigração, e por que o funaná foi marginalizado no período colonial em Cabo
Verde e no período pós-colonial em Portugal, concentrando-se no âmbito dos bairros onde o
Pedro Costa também trabalhou.

- Você desenvolveu um trabalho de pesquisa de campo nos bairros?

- Sim, eu também trabalhei no que resta das Fontainhas, nomeadamente no bairro 6 de maio.
Este não é mais do que um prolongamento das Fontainhas, do que sobrou após a demolição. É
um bairro junto à antiga estrada militar – a estrada que demarca o limite de Lisboa e o início
211

do Concelho da Amadora. Portanto trabalhei em um dos bairros onde o Pedro Costa também
trabalhou.

- Você se refere muito ao termo prática expressiva/prática cultural. O que define este
conceito?

- Há um texto ou outro em que explico isto. Numa certa linha do pensamento antropológico,
ou da Etnomusicologia, não conseguimos separar música e som de uma noção mais alargada
de expressividade, que envolva palavra, voz, movimento corporal, dança, por vezes a
visualidade e a plasticidade. Todas estas dimensões interligadas, envolvendo não só o som
musical, mas outros tipos de sonoridades – o corpo, a poesia, a voz, o texto... Tudo isto
preferimos em uma noção mais alargada, para não compartimentalizar muito as coisas. Esta
noção nós chamamos de prática expressiva: trata-se de uma expressão cultural que é
esteticamente padronizada, tem certo significado cultural para as pessoas, e que não podemos,
de maneira muito restrita, associar ao entendimento ocidental sobre o que é arte. Não
queremos compartimentalizar, pelo contrário, queremos ficar com os olhos muito abertos e
com os ouvidos à escuta. O termo prática expressiva interliga várias dimensões da expressão
humana, seja ela organizadora do som, ou do movimento, ou da palavra.

- Quanto tempo você ficou em Cabo Verde?

- Vivi quase um ano em Cabo Verde. Visitei cinco ou seis ilhas. Estive, sobretudo, em
Santiago, por cerca de seis ou sete meses, e dois ou três meses em São Vicente, mas viajei
também para Ilha Brava e Ilha do Fogo, no grupo das Ilhas de Sotavento, e depois no grupo
das Ilhas de Barlavento, visitei a ilha vizinha de São Vicente, que é Santo Antão. Estive de
passagem também pela Ilha do Sal.

- Como você analisa a presença da música cabo-verdiana na Área Metropolitana de


Lisboa?

- Ela acontece a vários níveis. Por um lado, ela dá-se através de redes de produção de música
que estão associadas à produção de discos e espetáculos, e, portanto, situa-se no domínio da
música popular, a popular music, no sentido anglófono. Uma música que é constituída em
mercadoria, gravada e produzida em termos comerciais, envolta em uma economia. Nos
aproximamos da indústria da música, da indústria cultural, etc. Mas a cultura expressiva
ocorre também na própria rede familiar e isto é o caso do funaná, por exemplo. É um gênero
212

que é interpretado no âmbito dos bairros onde vivem muitos imigrantes cabo-verdianos –
Fontainhas, 6 de Maio, Cova da Moura... Este último um bairro muito midiático por razões
sensacionalistas que dizem respeito à violência, onde a polícia se confronta com traficantes de
droga, onde há baixas tanto de um lado quanto de outro. Um pouco como nas favelas
brasileiras. São bairros muito pobres, onde estão acumulados muitos problemas que não são
necessariamente responsabilidade das pessoas que lá vivem, mas são projeções do exterior
para lá. Isto também acontece nas próprias favelas. Acabam sendo cristalizações de problemas
políticos mais alargados. Mas nestes vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, a
música/cultura expressiva é interpretada pelas populações no seu cotidiano, nas suas
sociabilidades, nos seus momentos de lazer, e é, sobretudo, esta a dimensão da música que
conheço entre os cabo-verdianos.

- Há um artigo seu em que você afirma a importância da música e da dança cabo-


verdianas na articulação de identidades culturais e na demarcação de práticas rituais e
religiosas. Poderias dizer um pouco mais sobre isto?

- A cultura expressiva e as tradições de Cabo Verde são muito importantes para o modo como
as pessoas se entendem, se auto-definem, se conceitualizam como sujeitos e como grupo,
como pessoas cabo-verdianas. Eu diria que, à parte da língua crioula, à parte de certas práticas
alimentares, a partilha da música e da dança é talvez o principal diacrítico, o principal
marcador, de uma identidade cabo-verdiana. Porque a música comunica este sentido de
individualidade e singularidade, e condensa esta forma que as pessoas encontram de se auto-
definir. E depois, ela proporciona momentos de prazer intensos, porque está ligada à memória
e à vida das pessoas desde sempre. Através da música as pessoas aproximam-se de modos
imaginados do seu lugar de origem e de pertença – Cabo Verde. Teríamos que entrar em
conceções sobre o que é uma diáspora, mas acho que uma das ideias fundamentais da noção
de diáspora nas ciências sociais é precisamente a lealdade ao território de origem, e as formas
partilhadas de sofrimento, de nostalgia, os projetos de restauro desta terra de origem... A
música está no centro de tudo isto, ela aproxima as pessoas de um lugar de origem e faz com
que elas se experimentem como cabo-verdianos. Por isto digo que a música é fundamental
para a maneira como as pessoas se definem como cabo-verdianos e como se localizam mesmo
como pessoas, em tempos de crise e de fragmentação. Quanto às práticas rituais, diria que a
música também é mobilizada em momentos religiosos. No caso das pessoas de Santiago, no
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âmbito de muitas famílias, quando há um batizado de criança, há a tradição de se ter batuku


ou funaná durante a celebração.

- Sobre os filmes, você os conhece ou os assistiu?

- Sim, assisti. Ao Ossos e ao No Quarto da Vanda até antes de iniciar minha investigação.
Juventude em Marcha foi lançado no momento em que eu estava fazendo a pesquisa e na
época não o vi, por estar muito recolhido e muito concentrado no meu trabalho. Depois, mais
tarde, o vi na televisão. Até me lembrei de que conhecia de vista aquele senhor, o Ventura.

- Há um cena em Ossos em que as figuras do bairro estão em uma festa e dançam uma
canção do grupo Os Saburas. Em Vanda ouvem-se as músicas atravessando paredes,
surgindo no fundo do plano sonoro, alastrando-se pelo bairro. E em Juventude em
Marcha o Ventura senta-se para escutar na íntegra a canção Labanta Braço. Mesmo
Cavalo Dinheiro...

- Este eu não vi...

- Há uma cena com Alto Cutelo. Ouvimos a canção enquanto vemos um painel de
retratos filmados dos cabo-verdianos nas Fontainhas (ou do que restou das Fontainhas).
Como no Juventude, é um momento em que somos colocados numa “situação de escuta”,
em que devemos parar e escutar a canção. Este tipo de mobilização não é muito comum
no cinema... De forma geral, como você avalia o retrato da vivência destes imigrantes
cabo-verdianos?

- Acho que é um olhar individual, necessariamente diferente do meu. Em que medida


comunica com o meu, eu teria de ver os filmes com mais atenção. É um retrato
necessariamente diferente, porque a minha bagagem como antropólogo pesa muito. Na
verdade, nunca refleti muito sobre isto. Claro que o Pedro Costa, enquanto artista e
intelectual, tem um olhar diferente. O meu olhar é muito enquadrado pela história, pela minha
experiência etnográfica, pelas disciplinas que moldam meu pensamento.

- De fato, diria que o olhar do Costa não é o de um antropólogo – e nunca se pretendeu


ser...

- Certo. E isso é muito interessante. Não se pretende nem um realizador documental nem um
antropólogo visual. Eu teria de pensar um pouco... Quando penso nele, penso efetivamente em
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um artista e um cineasta muito importante para a história do cinema produzido hoje. E não
estamos só a falar de uma história do mundo de língua portuguesa, mas global. Do pouco que
sei e que tenho acompanhado... É renovador, na história do cinema, como em outros períodos
foi Robert Bresson ou o casal que tanto o inspira. Mas sempre me pareceu um olhar muito
individual, e não sei em que medida comunica com o meu. Acho que não comunica. Quando
fazemos antropologia, tentamos um olhar horizontal e (eu pelo menos tento isto) uma grande
proximidade relativamente às pessoas. Queremos que a realidade se expresse, que as pessoas
falem, e que nos mostrem coisas que não poderíamos entender sobre aquela realidade se não
estivéssemos com aquelas pessoas. Eu tinha certo entendimento do bairro das Fontainhas, do
bairro 6 de maio, até o momento em que eu passo a frequentar regularmente o bairro por dois
anos e todos os pré-conceitos, os entendimentos prévios, desaparecem. E há todo um novo
conjunto de ideias, de novos argumentos – digamos uma nova sensibilidade. Um novo
entendimento vai emergindo do diálogo com estas pessoas. Sou muito sensível a isto, como
antropólogo.

- Mas aí também já existe uma ponte com o trabalho do Costa, porque é um cineasta que
vive cotidianamente com aquelas pessoas e o “roteiro” é sempre construído em conjunto
com as pessoas com quem ele trabalha.

- Claro, por isto enfatizei a questão do nosso background e os domínios da expressão em que
nos movemos. É um cinema também de difícil classificação – não podemos classifica-lo só
como ficção ou só como documental. No caso, é um lado do cinema e outro da produção
escrita. Dois suportes de representação e de reflexão diferentes. Preparações diferentes para
nos movermos nesta dialogia que já percebi que existe com o Pedro Costa. E quanto a mim,
pessoa que se inscreve numa etimologia etnográfica, também eu desenvolvo esta preparação.
Realmente há olhares diferentes, e porque eles existem tem a ver com o modo com que esse
diálogo se processa e com o olhar individual.

- Voltando ao Juventude em Marcha, eu diria que você é um espectador incomum


porque quando assistiu ao filme já tinha conhecimento prévio do passado da canção
Labanta Braço, e não só do caráter nacionalista da canção, mas também o que ela
significa para os cabo-verdianos. Como se deu a sua recepção a esta sequência musical?

- Labanta Braço é de fato uma das poucas canções que transmite o sentimento de soberania e
de autodeterminação dos cabo-verdianos. É uma canção nacionalista por excelência: é a
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canção da conquista da liberdade perante o regime colonial; é a canção da conquista do


alcance da independência nacional... É uma canção que junta todos os cabo-verdianos nesse
sentimento íntimo através do qual, depois, passam a ser pessoas livres – social, política,
culturalmente, etc. Quer esta, quer Alto Cutelo são canções muito fortes no sentido em que
transmitem sentimentos de soberania política e cultural. Política porque temos ali um novo
estado-nação e cultural porque, para se formar como nação, precisou haver uma história e
uma cultura partilhada. Alto Cutelo reflete toda uma história da diáspora cabo-verdiana e do
sofrimento que se trouxe com isto. E mais, é uma canção muito clara relativamente aos
contornos em que esta experiência da diáspora se deu, e a ênfase é colocada, sobretudo, na
questão do corpo cabo-verdiano que é explorado. Mulheres e homens que são exploradas
através das relações de trabalho e de produção nesta diáspora. São mão-de-obra barata.
Depois, tanto Labanta Braço quanto Alto Cutelo são canções que foram escritas por poetas
nacionalistas comprometidos com o projeto nacionalista. As lutas anticolonialistas se deram
nas florestas da Guiné, e não em Cabo Verde, e todos os nacionalistas cabo-verdianos que se
juntaram a elas tiveram de se exilar politicamente. Sair de Cabo Verde e rumar ou a Bissau ou
mesmo às redes nacionalistas na Europa para se juntar às lutas. Abraçar o exílio: é este o caso
de vários nacionalistas cabo-verdianos como Pedro Pires. A luta é travada de acordo com a
obra de Amílcar Cabral, de seus princípios políticos e filosóficos, e ocorre na Guiné-Bissau
em nome dos dois territórios – Guiné e Cabo Verde. Neste, no caso, não houve luta armada. E
como é um território de ilhas relativamente pequenas, há também um esforço da polícia
política portuguesa de controlar as movimentações políticas. Era muito arriscado para as
pessoas desenvolverem uma luta que seria, com certeza e muito depressa, abafada e reprimida
do ponto de vista até armado. Os nacionalistas, portanto, exilam-se e juntam-se à luta para
combater na África Continental. Quando esta classe nacionalista regressa a Cabo Verde após
a independência nacional, alguns desses poetas já estavam fidelizados e ligados à luta
nacionalista, mas muitos outros, na diáspora ou mesmo no arquipélago, simpatizam logo com
a luta. Isto, em termos mais sociológicos ou antropológicos duros, refere-se às pessoas com
algum grau de informação, ou seja, as classes médias altas cabo-verdianas. Na Índia, por
exemplo, acontece a mesma coisa. As classes nacionalistas são classes relativamente
informadas e são formadas por pessoas que pretendem a criação de um estado-nação, de uma
democracia parlamentar burguesa. São classes intermédias no período colonial. E são pessoas
com algum capital cultural, com algum estudo. Alguns são poetas e intelectuais. São eles
quem recebem os nacionalistas no país e cumprem um papel importante na mediação com as
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pessoas sem os mesmos instrumentos intelectuais, que estão desconfiadas das lutas. Mesmo
que tenham sofrido muito no período colonial, estas pessoas não sabem o que se está a passar
ali. Temos que ser rigorosos do ponto de vista histórico porque há muitos nacionalistas cabo-
verdianos que podem não contar a história assim, mas foi assim que aconteceu: as pessoas
num primeiro momento estão confusas e desconfiadas, como é natural, afinal, durante 500
anos, Cabo Verde foi um território político português. Mas a classe nacionalista faz o seu
trabalho e, com a ajuda de grupos como Os Tubarões, ou de poetas, convence as pessoas a
aderir em massa e convictamente ao projeto nacionalista. Alcides Spencer Britto, Renato
Cardoso, ou outros poetas com quem Os Tubarões gravam, são pessoas com este projeto de
independência desde o início. Labanta Braço, em especial, celebra este momento de conquista
da liberdade, em que as pessoas passam a ser autônomas, autodeterminadas, independentes.
Quando vi os filmes, de fato já tinha toda esta informação na minha cabeça. Claro que o
Ventura não pertence a essa classe intermédia. É sujeito subalterno, mas é uma das pessoas
das quais Alto Cutelo fala. É um corpo que, através da diáspora e da imigração, é explorado
nas relações de produção. Mas dada a profundidade e, sobretudo, a circulação dessa
mensagem, cantada pela voz de Ildo Lobo, ele sabe daquilo tão bem quanto a pessoa
informada. Sabe do peso daquela canção. E algo muito profundo é mesmo esta maneira como
o Pedro Costa coloca as pessoas em estado de escuta. As cenas são momentos de muita
intimidade ou, melhor, de cultural intimacy, para usar as palavras de outro antropólogo. Uma
intimidade cultural com a nação, com aquilo que implica ser o nacional, um estado-nação
moderno... A canção é um pedaço de história de onde ele vem, e por isto falava há pouco
sobre a importância da música para a identidade e para o modo como ela equaliza as pessoas.

- Curioso na cena de Juventude em Marcha é o fato de que a canção é tocada através de


um disco. Tendo a pensar que é um destes LP’s produzidos na Holanda...

- Sim, ou na Holanda ou em Boston, Massachusetts.

- LP’s feitos justamente para se produzir esta ideia de nação.

- Certamente, é o que defendo no meu trabalho.

- No Quarto da Vanda trata da demolição do bairro e Juventude retrata a realocação dos


moradores para o Casal da Boba. Os cabo-verdianos já haviam abandonado o país de
origem, de repente em Portugal eles são obrigados a abandonar o bairro que a eles
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pertencia e rumar a um novo território. A canção parece surgir, neste sentido, como
formar de reafirmar uma identidade que está errante.

- Precisamente.

- Labanta Braço, entre outros, faz um elogio a Amílcar Cabral. Em sua tese, você dedica
um capítulo a esta personalidade. Poderia falar um pouco sobre sua importância no
contexto anticolonialista? E também, se possível, dizer mais sobre o papel do grupo Os
Tubarões neste processo.

- O Amílcar Cabral é uma pessoa muito importante para a construção de uma nação cabo-
verdiana. Ele elabora toda uma obra que mobiliza encontros da sociedade civil e teses que ele
apresenta perante camaradas nacionalistas. Há um pensamento nacionalista e anticolonialista
em Cabral que é muito importante não só para a formação dessas duas nações – cabo-verdiana
e de Bissau –, mas também para os estudos acadêmicos, nomeadamente os estudos pós-
coloniais. É Cabral, digamos, que vai denunciar a situação das colônias portuguesas a partir,
mais ou menos, dos anos 50. Ele vem estudar na metrópole como grande parte das pessoas do
grupo intermediário vinha e, aqui, envolve-se, de modo mais intenso, com debates políticos,
ou seja, conhece estudantes de outros territórios coloniais africanos – e estas são pessoas que
também começam a desenvolver as suas ideias mais nacionalistas em torno dos seus países de
origem – Angola, Moçambique... Aqui também conhecem ativistas políticos que se opunham
ao Estado Novo; portugueses ligados ao Partido Comunista e às ideias de esquerda. Portanto,
vai crescendo esse projeto de conseguir certa autonomia frente ao regime colonial e de
conquistar a independência nacional. Cabral possui uma obra muito importante que contém,
digamos, ideias muitíssimo valiosas referentes à história de Cabo Verde e também ao modo
como guineenses e cabo-verdianos podem descolonizar o seu pensamento e alcançar ideias de
autonomia e de liberdade. Em outras palavras, há ali uma práxis: é um pensamento, mas é um
pensamento prático. E essa práxis se traduz na própria luta armada, anticolonial, na medida
em que Cabral se afirma cada vez mais como um ativista político. Ele também entra no exílio,
forma o PAIGC, organiza encontros, e a partir daí faz várias intervenções de recusa ao Estado
Colonial e ao Estado Novo. Para dialogar com as organizações nacionalistas, também adere à
luta armada e consegue apoios, neste contexto de Guerra Fria, de vários países na África, na
Ásia (China), Cuba... O que é muito interessante é que, depois, o seu pensamento é muito
importante para fazermos uma genealogia do que foi o pensamento nacionalista cabo-
verdiano, que muitas vezes reporta ao próprio momento da luta armada, de forma que
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podemos fazer uma leitura de como aquilo migrou para outros aspectos dos pensamentos
cabo-verdiano e guineense, mas, sobretudo, cabo-verdiano. Por exemplo: uma crítica
importante relativamente aos grupos sociais (as classes sociais) entre os cabo-verdianos e o
modo como essas classes foram construídas pelo próprio regime colonial. É o tipo de crítica
que precisa ser feita para que essas barreiras se dissolvam e para que a luta armada se torne
mais efetiva.

Outro dos aspectos que mais me interessaram foi o papel da cultura na luta pela libertação.
Cultura entendida, aqui, no sentido antropológico alargado: tudo que pertence à produção
humana. Mas também cultura num sentido especificamente mais identificado com o que que
tenho definido como cultura expressiva: mais artística... Portanto, questiona-se o lugar que
essa prática artística pode ter também na luta pela libertação e pela tal descolonização da
mente. Cabral foi muito importante também por enxergar isto.

Cabral foi assassinado em 1973, com a guerra colonial ainda a correr, com combates na
Guiné-Bissau contra tropas portuguesas. Não se tornou claro quem foram as pessoas que
perpetuaram o assassinato, mas há várias teses. Há teses que colocam o regime colonial
português como mandante; há outras que deslocam a problemática para os conflitos que
existem entre os cabo-verdianos e os guineenses no âmbito da luta anticolonial, porque havia
a ideia de que os cabo-verdianos comandavam o movimento e os guineenses combatiam...
Mas isto é uma ideia global, sendo claro que na prática é muito mais complexo. Cabral nasceu
na Guiné-Bissau, mas era filho de pais cabo-verdianos, portanto tinha um estatuto híbrido.
Ainda hoje se disputa: os guineenses gostam de defender que ele era guineense, e há quem
defenda o lado mais cabo-verdiano... O projeto de Cabral, no entanto, era de nação que unia
Guiné e Cabo Verde, e este projeto de nação foi abandonado mais ou menos em 1980. Mas
são duas nações que se constroem sob a sua obra e sob a sua visão da libertação, da
independência nacional, e desta ideia muito importante da independência nacional como um
ato de cultura.

- E sobre Os Tubarões?

- Os Tubarões são jovens que pertencem a esse grupo intermediário, são pessoas que podem
estudar, que são dessa classe média que o regime colonial produz. Por muitos são tidos como
um grupo de elite, embora Ildo Lobo, por exemplo, me tenha dito que eles não eram
propriamente isto, porque, naquele contexto da Cidade da Praia nos anos 60 e 70, havia
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grupos ainda mais de elite. Por isto Ildo Lobo não se considerava de elite: para ele, da elite
eram outros grupos... Portanto, é um grupo que se forma na Cidade da Praia com elementos
desse grupo social, mas as pessoas que o formam não necessariamente nasceram na Cidade da
Praia. O Ildo Lobo, por exemplo, é de famílias da Ilha do Sal. São estudantes de Liceu – e é
preciso entender o que é estudar num liceu durante o regime colonial, pois quem ali chega é
alguém já de muitas posses e de muita capacidade familiar em meios muito pobres, sobretudo
em relação às populações do cais – e podem ter seus próprios instrumentos, mesmo que os
adquiram lentamente ou com alguma dificuldade. Estes instrumentos não eram mercadorias
baratas na época, em especial os amplificados, como era o caso. A princípio há semelhança
com agrupamentos que, tal como em Portugal, se chamam conjuntos, e que começam por
interpretar música internacional – seja música pop de um mundo mais anglófono, como os
Beatles, seja Roberto Carlos, Nelson Ned... A música do Brasil sempre teve muito sucesso em
Cabo Verde, historicamente. Essas músicas podiam vir também de Itália, França; estilos de
música pop ou romântica. Mas depois, lentamente – e isto é assumido, sobretudo, após o 25
de Abril de 1974 e a chegada dos nacionalistas – ganham importância os gêneros locais como
a morna e a coladeira. Dois gêneros que, lá está, surgem nos filmes do Pedro Costa: Alto
Cutelo julgo ser uma morna e Labanta Braço uma coladeira. Os grupos assumem cada vez
mais os gêneros locais de acordo com uma sensibilidade nacionalista, de valorização dos
próprios gêneros da terra, e para fazerem isto – em especial nesse momento de transição para
a independência nacional – começam por interpretar mornas e coladeiras de autoria de poetas
e compositores os quais, muitas vezes, eram amigos dos próprios músicos. São pessoas
próximas, dos mesmos círculos de classe média ou mais nacionalistas. Os Tubarões, então,
começam a fazer interpretações e fazer arranjos, ajustados a essa configuração de conjunto,
com instrumentos amplificados, destas composições. É este repertório que vemos nos discos
do grupo. Há um aspecto interessante: acho que o Ildo Lobo – com quem tive o privilégio de
falar – se manteve nacionalista convicto até o fim da sua vida. E no diálogo com ele dei-me
conta de certa desilusão relativamente ao processo político da nação cabo-verdiana. Não sei se
terá sonhado ou projetado uma nação como não estava a ver naquele momento em Cabo
Verde, e se calhar estava desiludido porque achava que alguns nortes de horizontalidade, de
igualdade social, que se viveram nesses momentos após a independência, se tinham perdido.
Devia olhar para o panorama político cabo-verdiano desta altura e já não se via nele. E o Ildo
contou-me como nesse período inicial, nesse período de fervor político, para congregar as
pessoas e para fazer com que as pessoas experimentassem de um modo mais efetivo as
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mensagens que os nacionalistas vieram trazer às ilhas, eles interpretavam mornas, claro, mas
interpretavam, sobretudo, o gênero da coladeira – um gênero de dança, que todas as pessoas
reconheciam, dançavam e se divertiam. Foi, portanto, o principal gênero interpretado pelo
grupo para transmitir essas mensagens nacionalistas. E isto não é inocente: a coladeira foi
utilizada precisamente por ser um gênero de dança, ao qual a maior parte dos cabo-verdianos
aderia nas suas sensibilidades. A morna é um gênero que exige maior investimento no
processo da escuta, porque geralmente a sua poesia é mais densa e mais profunda – há uma
linguagem poética mais elaborada. É um gênero que exige aquilo que o Pedro Costa também
exige do espectador, que é o ato de escutar e sentir a poesia, por vezes até de modo nostálgico.
A coladeira tem mais a ver com a expressão corporal. O que o Ildo acentuou – que já estava
no meu trabalho, mas sem este acento – é justamente a importância da coladeira para a
transmissão dessas mensagens nacionalistas, como em Labanta Braço. Quando os Tubarões
começam, muito jovens, há uma grande referência na música do país, que é A Voz de Cabo
Verde, um grupo formado em Roterdã na Holanda. Este é um conjunto pioneiro nessa
interpretação da morna e da coladeira, de acordo com essa instrumentação amplificada de
guitarras, baixos, baterias, sintetizadores, etc. É a grande influência d’Os Tubarões. E é A Voz
de Cabo Verde que mostra o caminho, para os conjuntos musicais que estão a se formar em
Cabo Verde, para passar da interpretação de músicas internacionais para o processo criativo
de interpretar repertórios dos gêneros locais. Depois, Os Tubarões desenvolvem seu próprio
percurso, e podemos perguntar, por exemplo, o que é eles trouxeram que A Voz de Cabo
Verde não trazia. Claro que são instrumentistas e músicos diferentes, a voz do Ildo Lobo é
muito marcante e muito diferente da voz dos cantores de A Voz do Cabo Verde. Mas além
disso, os tipos de arranjos são diferentes, as escolhas de compositores e poetas são diferentes,
as influências internacionais musicais são diferentes. Não sei se isso se escuta no Labanta
Braço ou no Alto Cutelo, por exemplo, mas a partir do terceiro disco do grupo começamos a
ouvir influência das músicas da Nigéria, Fela Kuti... Depois, e especialmente também, havia o
principal diretor e arranjador musical do grupo, o Zeca Couto, com a música de Cuba, tendo
estudado lá composição e trazendo suas próprias ideias. Depois, há poetas de várias ilhas,
alguns a viver na diáspora. E, por exemplo, é importante perceber a importância de um desses
compositores, o Manuel de Novas, porque grande parte do repertório é dele. Por acaso, julgo
que o Pedro Costa não terá escolhido nenhuma composição do Manuel de Novas, mas ele é o
compositor por excelência, que fornece e dá material aos Tubarões para gravar. Também já
falecido, como o Ildo.
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Há muitas pessoas que associam o grupo ao regime de partido único dos nacionalistas, mas o
Estado não o financiou abertamente. Eles do conjunto fazem questão de afirmar isto. O Ildo,
de maneira aberta, e, sobretudo, o Zeca Couto gostam de dizer que não receberam apoio do
Estado. Como explico na minha tese, em parte sim: receberam vistos, foram muitas vezes
mobilizados em cerimônias do Estado, mas, de fato, não há um apoio declarado. Temos de ser
sempre comedidos ao explicar este processo. Depois deste período de fervor nacionalista, Os
Tubarões continuaram a ser uma referência, sempre com base neste tipo de molde, ou seja:
não compondo repertório original, mas alimentando-se do repertório de bons compositores
que habitavam seja em Cabo Verde, seja na diáspora, e fazendo as suas próprias versões. O
grupo funcionou assim até o fim, tendo pontos muito fortes: a qualidade dos arranjos, a
qualidade das interpretações e, claro, a voz formidável do Ildo Lobo, que é uma voz muito
poderosa como aquela que temos em vários lugares do mundo de forma muito marcante, que
possuem o tal grão da voz, que conseguem pôr pessoas a chorar, etc. O Ildo é uma dessas
vozes.

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