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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES
FACULDADE DE LETRAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

Em colaboração com a Escola Superior de Teatro e Cinema,


da Escola Superior de Dança e da Escola Superior de Música do
Instituto Politécnico de Lisboa

A CONSTRUÇÃO DE UM ROTEIRO DE
DOCUFICÇÃO Todas as Vidas de Telma

Adriana Barroso Botelho

Doutoramento em Artes

Tese orientada pela Profa. Doutora Marta Filipe de Matos Ribeiro Mendes e
pelo Prof. Doutor Fernando Paulo Rosa Dias, especialmente elaborada para a
obtenção do grau de Doutor.

2021
UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES
FACULDADE DE LETRAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

Em colaboração com a Escola Superior de Teatro e Cinema,


da Escola Superior de Dança e da Escola Superior de Música do
Instituto Politécnico de Lisboa

A CONSTRUÇÃO DE UM ROTEIRO DE
DOCUFICÇÃO Todas as Vidas de Telma
Adriana Barroso Botelho
Doutoramento em Artes
Tese orientada pela Profa. Doutora Marta Filipe de Matos Ribeiro Mendes e
Prof. Doutor Fernando Paulo Rosa Dias, especialmente elaborada para a
obtenção do grau de Doutor
Júri
Presidente: Doutora Mónica Sofia dos Santos Mendes, Professora Auxiliar e vogal do Conselho Científico
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Presidente do júri por nomeação do Presidente do
Conselho Científico desta Faculdade, Prof. Doutor Ilídio Óscar Pereira de Sousa Salteiro, nos termos do
n.º 1.1. do Despacho n.º 3426/2021, do Diário da República, 2ª série, n.0 62, de 30 de março;
Vogais:
- Doutora Sylvia Beatriz Bezerra Furtado, Professora Associada do Instituto de Cultura e Arte da
Universidade Federal do Ceará;
- Doutora Manuela Maria Fernandes Penafria, Professora Associada da Universidade da Beira Interior;
- Doutor José Bogalheiro, Professor Coordenador da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa;
- Doutora Marta Filipe de Matos Ribeiro Mendes, Professora Adjunta da Escola Superior de Teatro e
Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa [orientadora].
2021
RESUMO
Como criar uma narrativa que expresse o encontro interrompido? Este estudo transdisciplinar das
ciências humanas e das artes investiga o lugar da documentarista e os estatutos narrativos do
documentário e da ficção. Portanto, uma produção teórico-prática no campo do cinema
contemporâneo, incorporando a teoria acadêmica às reflexões de natureza prática da pesquisadora
documentarista, com o objetivo de criação de um roteiro de docuficção, que defende a utilização
de mecanismos de uma linguagem híbrida para a aproximação ao real.

Palavras-chave: Telma Saraiva. Docuficção. Fotopintura. Roteiro cinematográfico.

ABSTRACT
How to create a narrative capable of conveying the interrupted encounter? This transdisciplinary
study between the Human Sciences and Arts investigates the place of the documentary filmmaker
and the narrative statutes of documentary and fiction. Therefore, a theoretical-practical production
on the field of contemporary cinema, incorporating the academic theory to reflections of a practical
nature from the documentary researcher, with the objective of creating a docufiction script, of
which thesis advocates the use of hybrid language mechanisms to approach reality.

Keywords: Telma Saraiva. Docufiction. Photography on Canvas. Screenplay.


À minha mãe, Solange Barroso Botelho.
In memoriam (1942-2010)

À Universidade Federal do Cariri (UFCA),


recém-criada (2013) instituição de ensino público na região sul do Ceará.
AGRADECIMENTOS

Aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, pela expansão, em seus respectivos
governos, da universidade pública e da pesquisa científica no Brasil.

Aos meus pais, Solange Barroso Botelho e Jarbas de Almeida Botelho, e à minha filha, Luiza
Botelho Gonçalves, pelo amor e dedicação mútuos, estímulos à minha formação humana e
profissional.

Aos professores orientadores, Marta Filipe Mendes e Fernando Rosa Dias; aos professores Jorge
Ramos do Ó, José Bogalheiro, João Maria Mendes, Marta Cordeiro, Mónica Baptista e Fernando
Pereira, pelo compromisso exemplar com o conhecimento.

À fotógrafa Telma Saraiva, pela produção inestimável de sua obra artística e cultural.

À família Saraiva, nas pessoas de Edilma (filha), Ricardo (filho), Roberto (filho), Ernesto (filho) e
Roberta (neta), pela contribuição com informações e relatos essenciais para a compreensão do tema.

Aos companheiros e companheiras de estudo, Alexandre Guedes, Ana Maria Barbosa, Samuel
Macêdo, Reneude Andrade, Waléria Américo e Hugo Gama, por suas presenças imprescindíveis.

Ao professor Paulo Cajazeiras e à Dra. Maria Helena Pinheiro, pelo impulso primeiro ao
doutoramento.

Aos cineastas Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado, pelas orientações na realização
cinematográfica, fazendo desses diálogos e convivência, momentos de intensa felicidade.

À Escola Porto Iracema das Artes (Instituto Dragão do Mar) e Escola Vila das Artes, equipamentos
públicos do estado do Ceará!
Se a imagem observada na fonte por Narciso é seu próprio reflexo
“pintado” e se o quadro, como a fonte, é também uma pintura-
“reflexo”, então o que reflete será sempre a imagem do espectador que
a observa, que nela se observa. Sou, portanto, sempre eu que me vejo
no quadro que olho. Sou (como) Narciso: acredito ver um outro, mas
é sempre uma imagem de mim mesmo.
Philippe Dubois

Uma vez que o poeta é um imitador, como um pintor ou qualquer


outro criador de imagens, imita sempre necessariamente uma das três
coisas possíveis: ou as coisas como eram ou são realmente, ou como
dizem e parecem, ou como deviam ser.
Aristóteles
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Imagem compósita com os autorretratos de Telma Saraiva para cartaz 11


fílmico......................................................................................................
Figura 2 – Telma e o fotógrafo Cristiano Mascaro, no Estúdio Saraiva................... 18
Figura 3 – Telma Saraiva, na sala de visita de casa, segura uma fotopintura de sua 18
autoria.......................................................................................................
Figura 4 – Telma Saraiva e sua fotopintura............................................................... 21
Figura 5 – Telma Saraiva na varanda de sua casa, na cadeira que usava para as fotos 22
de formatura, com seus autorretratos........................................................
Figura 6 – Júlio Saraiva, fotopintura por Telma Saraiva........................................... 23
Figura 7 – Sabonete Lever......................................................................................... 25
Figura 8 – Revista Cena Muda.................................................................................. 26
Figura 9 – Fotografia feita por Telma Saraiva, com tema debutante........................ 26
Figura 10 – Revista O Cruzeiro.................................................................................. 28
Figura 11 – Telma Saraiva e integrante do bloco carnavalesco Garotos de 28
Ouro..........................................................................................................
Figura 12 – Print screen de uma tela de computador com imagem da pesquisa para 53
o roteiro: Todas as Vidas de Telma..........................................................
Figura 13 – Lalá fotografada por Telma Saraiva no Foto Saraiva............................... 54
Figura 14 – Bastinha Job e Branco.............................................................................. 55
Figura 15 – Viajo porque preciso, volto porque Te Amo........................................... 64
Figura 16 – Reminiscências de uma Viagem a Lituânia.............................................. 65
Figura 17 – Moi, um Noir........................................................................................... 66
Figura 18 – No Home Movie....................................................................................... 66
Figura 19 – Agnès Varda em filmes............................................................................ 67
Figura 20 – Autorretratos de Telma Saraiva............................................................... 81
Figura 21 – Print screen de uma tela de aplicativo, Instagram................................... 86
Figura 22 – Iacy Pierre............................................................................................... 92
Figura 23 – Shirley Temple........................................................................................ 92
Figura 24 – Autorretrato de Telma Saraiva............................................................... 92
Figura 25 – Shirley Temple........................................................................................ 92
Figura 26 – Loja Gino, com seu proprietário, Lindovaldo Frutuoso Gino.................. 97
Figura 27 – Print screen de uma tela de computador com imagem da Loja Gino para 97
o documentário.........................................................................................
Figura 28 – Fotografias de still do documentário (1º registro)................................... 97
Figura 29 – Chapada do Araripe................................................................................. 97
Figura 30 – Vista da cidade do Crato, envolta pela Chapada do Araripe.................... 98
Figura 31 – Telma e Ricardo Saraiva.......................................................................... 98
Figura 32 – Telma Saraiva em trajes de carnaval....................................................... 98
Figura 33 – Telma Saraiva.......................................................................................... 99
Figura 34 – Print screen com imagem do documentário............................................ 99
Figura 35 – Telma Saraiva.......................................................................................... 102
Figura 36 – Cindy Sherman......................................................................................... 102
Figura 37 – Telma como Atriz Espanhola................................................................... 103
Figura 38 – Cindy Sherman como Madame de Pompadour....................................... 103
Figura 39 – Autorretratos fotopintados por Telma..................................................... 110
Figura 40 – Autorretrato de Telma como Grega......................................................... 111
Figura 41 – Fotografia em sépia de Telma Saraiva como espanhola.......................... 111
Figura 42 – Fotopintura de Telma como espanhola.................................................... 111
Figura 43 – Conjunto de autorretratos fotopintados por Telma Saraiva..................... 112
Figura 44 – Autorretratos e fotografias de Telma Saraiva.......................................... 113
Figura 45 – Telma Saraiva.......................................................................................... 114
Figura 46 – Fotopintura de Telma como índia............................................................ 115
Figura 47 – Fotopintura de Telma como gueixa......................................................... 116
Figura 48 – Imagem de registro da primeira fase do processo.................................... 120
Figura 49 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 121
Figura 50 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 123
Figura 51 – Imagem de registro do processo.............................................................. 124
Figura 52 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 125
Figura 53 – Imagem de registro do processo.............................................................. 127
Figura 54 – Imagem de registro do processo.............................................................. 127
Figura 55 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 128
Figura 56 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 129
Figura 57 – Mosaico da pesquisa das imagens........................................................... 130
Figura 58 – Imagem de registro do processo.............................................................. 131
Figura 59 – Imagem de registro do processo.............................................................. 132
Figura 60 – Ilustração................................................................................................... 143
Figura 1 – Imagem compósita com os autorretratos de Telma Saraiva para cartaz
fílmico, Todas as Vidas de Telma. Partimos de uma ideia de muitas vidas projetadas, o
que desde muito cedo animou Telma, pela influência do cinema. Imaginário que
acompanha por toda sua vida, o que podemos ver materializado em suas fotografias.
Fonte: Acervo Família Saraiva. Arte Gráfica: Leo Ferreira.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 14
2 UMA NARRATIVA DE DOCUFICÇÃO: TODAS AS VIDAS DE 18
TELMA...............................................................................................................
2.1 Fotopintora Telma Saraiva................................................................................ 18
2.2 Fotopintura......................................................................................................... 20
2.3 Telma e as imagens que criou: os autorretratos.............................................. 21
2.4 Telma e o pai, Júlio Saraiva Leão..................................................................... 22
2.5 Telma, o Crato e o cinema clássico de Hollywood........................................... 24
2.6 Etapas do Roteiro............................................................................................... 29
2.6.1 Storyline............................................................................................................... 29
2.6.2 Sinopse................................................................................................................. 29
2.6.3 Personagens......................................................................................................... 29
2.6.4 Argumento........................................................................................................... 31
3 FUNDAMENTOS DO DOCUMENTÁRIO E DA FICÇÃO......................... 32
3.1 Documentário e ficção....................................................................................... 35
3.2 Viagem de volta.................................................................................................. 46
3.3 O mundo em gesto: contexto sociopolítico....................................................... 49
3.4 O acaso e o previsível......................................................................................... 56
4 CINEMA HÍBRIDO: DOCUFICÇÃO............................................................ 62
4.1 Drama, encenação, realidade............................................................................ 70
4.2 A narrativa......................................................................................................... 77
4.3 Os participantes................................................................................................. 87
4.3.1 Música, sons e voz............................................................................................... 89
4.3.2 Montagem............................................................................................................ 93
4.3.3 Paisagem, interiores e cenários.......................................................................... 96
4.3.4 Imagem e os autorretratos.................................................................................. 101
4.4 Telma e a imagem manipulada: fantasia......................................................... 104
4.4.1 Fantasia, fantasma, fantasmático..................................................................... 106
5 METODOLOGIA DA CRIAÇÃO................................................................... 117
5.1 Relato de experiência da documentarista........................................................ 117
5.2 Temas geradores................................................................................................. 119
5.3 Escaleta.............................................................................................................. 130
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 140
6.1 Imagem Conclusiva............................................................................................ 143
6.2 Telma Pop.arte.................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS................................................................................................. 147

APÊNDICE – ROTEIRO: TODAS AS VIDAS DE TELMA .................... 153

CARTAZ FINAL .............................................................................................. 196

ANEXO – Conversa com Titus Redl............................................................ 197

Conversa com Ricardo Saraiva ................................................. 204


Conversa com Allan Bastos .......................................................
207
Conversa com Carlota ................................................................ 209
Conversa com Herbeno .............................................................. 211
14

1 INTRODUÇÃO

Robert Bresson, cineasta ficcional, teorizava sobre o cinema, ao mesmo tempo que o
praticava. Sob essa inspiração, e por meio dos(as) cineastas e teóricos(as) que têm como centro
de suas análises o ato da realização, buscamos fundamentar esta tese.
Dessa forma, estudamos o cinema enquanto campo das artes historicamente recente,
com formação plural e transdisciplinar, visando compreender como este produz seus discursos
e a interlocução com outras áreas de estudo e da criação artística. Assim, investigamos a teoria
e as formas dramatúrgicas, a fim de obtermos os elementos a experimentar no exercício de um
roteiro de docuficção, que recebe o título de Todas as vidas de Telma.
Voltando a Bresson (2000, p. 27), o cineasta, que por meio de analogia, nos aponta
caminhos ao pensarmos nas articulações formais: “As grandes batalhas, dizia o general M...
travam-se quase sempre no ponto de intersecção dos mapas do estado-maior”. Em outro
momento, o autor (2000, p. 46) diz: “Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e não
pareciam predispostas a sê-lo”.
O roteiro parte da premissa de uma história que narra o encontro da documentarista,
autora desta tese, com as fotopinturas da fotógrafa Telma Saraiva. O tema especula, ainda, sobre
duas questões que dão suporte à trama: o lugar do feminino na sociedade brasileira e o sentido
imagético dos autorretratos de Telma.
Concomitantemente à escritura do roteiro, definíamos um corpo teórico. Para análise
dos autorretratos, recorremos à teoria da imagem, fazendo uso, particularmente, da ideia de
substituto, de Susan Sontag; de corpo sensitivo, de Serge Leclaire; de identidade fantasmática
e de fantasia como construção da realidade psíquica, trazidas por Jean-Pierre Vernant, para
assim entendermos os signos visuais e seus significados.
Para compreendermos o sentido da busca e do encontro, motivador necessário para
colocarmos as personagens em ação, construímos o percurso da viagem, baseamo-nos nos
estudos de Catherine Russell (1999), quando traz a ideia de busca “como um meio de explorar
‘eus’ fragmentados, colocando algo para recordar”.
Com base nessas reflexões, foi possível concebermos um filme-diário que narra a
viagem da protagonista Ana, no momento em que ela volta à cidade de infância e é afetada não
somente pelo deslocamento geográfico e temporal, mas também pelo estranhamento familiar e
de si mesma. O objetivo é colocarmos em atividade o sentimento de incômodo ou estranheza
necessário à mudança. Para refletirmos sobre o feminino, imergimos nos conceitos de
15

autobiografia e autoetnografia, nos quais se localiza a realizadora, com sua história pessoal
entrelaçada às formações sociais e aos processos históricos dos territórios onde vive. Faz-se
necessário ressaltar que a escolha em falar na primeira pessoa tem o intuito de desenvolver uma
linguagem subjetiva, valiosa à experiência dos processos autoetnográficos.
Para uma compreensão dos domínios do documentário e da ficção, pesquisamos
realizadores de diferentes origens, gêneros e estéticas, que teorizaram sobre seus processos
criativos, mas citamos, sobretudo, Robert Flaherty, Maria Augusta Ramos, João Moreira Salles,
Jean Rouch, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, Agnès Varda, Jonas Mekas, Chris Marker,
Krzysztof Kieslowski, Andrés Di Tella, Eduardo Coutinho, Chantal Akerman, Jean-Claude
Bernardet, Viktor Kossakovsky, Dziga Vertov, Kazuhiro Soda, Jean-Luc Godard, Gabriel
Abrantes, Sandra Kogut, e Abbas Kiarostami; e ainda alguns filmes de Hollywood. O encontro
com esses autores nos permitiu observar como se transcreve uma ideia do real, que envolve
personagens, ambientes, tramas e eventos, para a narrativa fílmica.
Nesse sentido, utilizamos distintas referências para criação do nosso roteiro, no entanto,
mais diretamente, e com maior frequência, os filmes Moi, un noir (1958), do etnólogo e cineasta
Jean Rouch; Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), dos cineastas Marcelo Gomes
e Karim Aïnouz; e Ulysse (1982), de Agnès Varda. Inspiramo-nos em Gomes e Aïnouz para
criar a personagem ficcional Ana, voz off, que substitui a voz da documentarista na narração e
nos leva à história documental da fotopintora Telma. Da mesma forma, a protagonista é
ficcionalizada à maneira de Jean Rouch, quando, em Eu, um negro (1958), Oumarou Ganda
interpreta Edward G. Robinson.
Durante o processo de criação, ao elaborarmos a sinopse, selecionamos uma imagem
síntese como dispositivo dramático do roteiro. Os autorretratos de Telma, que se tornam o
enigma e a resolução do enredo, são também uma figura metafórica que representa o hibridismo
imagético dos gêneros, em uma correspondência similar entre a fotopintura e a docuficção.
Os autorretratos possibilitaram o aprofundamento do nosso estudo sobre o sentido da
imagem, levando-nos às questões sobre verossimilhança, duplo, mimese, verdadeiro e falso, e,
mais especificamente, ao trabalho de fotopintura de Telma, no que tange à questão da fantasia,
do fantasma e do fantasmático.
Dessa maneira, organizamos a tese iniciando pela apresentação do objeto prático, pois
embora pareça quebrar um ritmo mais convencional, que seria iniciarmos por uma apresentação
teórica de análise da criação e, depois, do objeto, inferimos que a teoria dependia do objeto de
tal maneira, que não conseguimos desenvolver a análise sem situá-lo desde o início. Desse
16

modo, começamos pelas etapas do roteiro.


Na segunda parte, levantamos discussões que tratam de fundamentar o documentário e
a ficção; nessa fase, o objetivo era perceber as referências que utilizamos de um e de outro, sem
cabermos exclusivamente em nenhum deles. Na terceira parte, aprofundamos as questões de
unidade, presentes tanto no documentário, como na ficção, e fizemos pesquisa sobre a origem
do drama, apoiando-nos em Martin Esslin; a poética, tendo como base Aristóteles; e a estética
do cinema de Hollywood, a partir dos estudos de Jacqueline Nacache.
Tecemos o fio do processo em torno da pergunta sobre o lugar da documentarista,
envolvendo o objeto da procura, o autobiográfico e a biografia da fotopintora. Por isso, foi
fundamental, para a compreensão do acionador da ação narrativa, localizarmos, por meio da
análise de Sarah Yakhni (2014, p. 107) sobre o filme Ulysse (1982), de Agnès Varda, o conceito
de intercessores desenvolvido por Gilles Deleuze, quando diz que “o percurso da busca fornece
a estrutura mesma do filme. A cineasta também vai se colocar como intercessora de si mesma,
quando transcende a sua condição em direção a uma terceira pessoa que adentra a narrativa
[...]”.
Conjuntamente às análises, desenvolvemos o argumento; as personagens protagonistas,
antagonistas e coadjuvantes; e a escaleta, para, finalmente, fecharmos a primeira versão
completa do roteiro de longa-metragem, apresentada em anexo.
Ressaltamos, ainda, que o perfil teórico-prático da investigação delineou, através da
docuficção, algumas ideias-chave, como a autobiografia, o eu, a memória, o processo, o ensaio.
Outra ideia-chave é a reviravolta, o nascimento da personagem-narradora-projetada (Ana-
Adriana-Telma-Mulheres do Crato-Divas de Hollywood), gerada a partir da morte de Telma
Saraiva.
Por isso, como abordagem metodológica procurou-se articular a investigação específica
sobre a docuficção com o saber prático advindo da escritura das versões do roteiro das Vidas
de Telma, criando também, simultaneamente, uma espécie de diário das Vidas da Tese. Desse
modo, o percurso da tese e do roteiro desenha-se e se cria através dessa articulação, quando o
roteiro começa desde logo a servir como matéria da reflexão. Essa reflexão síncrona, teórica e
artística, ao mesmo tempo que assenta num estado da arte da matéria, vai abrindo caminho a
partir da pesquisa realizada para o próprio roteiro – as entrevistas e toda a realidade ligada ao
universo diegético das Vidas de Telma –, e revelando a natureza híbrida da tese.
O primeiro roteiro documental, realizado pela pesquisadora, investiga o processo de
criação artístico de Telma Saraiva, através do dispositivo de reconstituição de três quadros
17

fotopintados. Com a ausência de Telma Saraiva, desenvolvemos o roteiro docuficcional,


realizado pela pesquisadora com a colaboração da roteirista Reneude Andrade e tutoria dos
roteiristas e cineastas Karim Aïnouz e Marcelo Gomes através do laboratório de cinema da
Escola Porto Iracema das Artes, no ano de 20171. Roteiro que investiga o ambiente cultural de
Telma Saraiva incluindo a fala das mulheres de diferentes gerações, através do dispositivo da
personagem ficcional centrada nas questões da documentarista.
Por fim, ao criarmos uma história situada no intermédio de dois gêneros bem definidos,
procuramos pelos temas transversais, desde os estudos literários aos gêneros mistos do teatro,
como a tragicomédia, e mesmo a psicanálise. Constatamos, com isso, que perceber ou ler o
mundo por meio dos códigos da docuficção nos mostra como esses mesmos códigos, porque
permitem duplos sentidos, têm imensa maleabilidade narrativa, capaz de reconfigurar
obstáculos intransponíveis.2

1
Disponível em: https://portoiracemadasartes.org.br/laboratorios-de-criacao/laboratorio-de-cinema/ . Acesso em:
30 de abr. 2019.
2
O português da escritura é o do Brasil.
18

2 UMA NARRATIVA DE DOCUFICÇÃO: TODAS AS VIDAS DE TELMA

2.1 Fotopintora Telma Saraiva

Telma Saraiva (1928-2015) nasceu no Crato, cidade localizada na região do Cariri, no


sul do Ceará, Nordeste do Brasil. Em seus depoimentos3, não dizia a idade. Ao ser questionada,
afirmava: “O tempo dá sabedoria e, em troca, rugas e perda da beleza”. Beleza e juventude
sempre foram suas matérias imprescindíveis de trabalho. A artista dizia: “A arte expressa a
beleza”, e completava: “Na fotografia, tem que se ver o bonito, o especial, o diferente”.
Todos os dias, ao acordar, Telma punha batom e fazia os cachos dos cabelos de tons
castanho-claros, que escondiam seus fios lisos e brancos. Segundo ela cachos à moda de Shirley
Temple, atriz de cinema norte-americana, muito popular nas décadas de 1930 e 1940. Em 2010,
ano desta entrevista, Telma estava com 81 anos.
Os filmes clássicos hollywoodianos foram sua maior influência artística. Apaixonou-se,
como ela dizia, pela “tela dos desejos eternos!”. Muito menina, aprendeu a ler de forma rápida,
pelas legendas dos filmes e, mais tarde, apropriou-se dos cenários, figurinos e dramas. Foi dessa
maneira que apreendeu conhecimentos sobre composição, contraste, cores e luz. Telma dizia:
“Tudo é luz! Há padrões de utilização da luz, que são as normas clássicas da fotografia”.
Foi o pai quem a ensinou a fotografar e, depois, ela conseguiu adquirir sua primeira
máquina fotográfica. Nessa época, por volta das décadas de 1940 e 1950, ressentia-se de as
imagens não terem o colorido, e nos diz que o filme colorido instantâneo foi introduzido pela
Polaroid somente em 1963.
Ao avistar, na revista Cena Muda, tintas fabricadas nos Estados Unidos, que podiam dar
cor às fotos em preto e branco, conseguiu, com o apoio do irmão fluente em inglês, solicitar
que a encomenda chegasse às suas mãos. Assim, iniciou uma vida dedicada à imagem
fotográfica e à fotopintura.
Exímia colorista conquistou muitos admiradores, o que resultou em numerosa e regular
freguesia. No Cariri, passaram por suas lentes do ilustre músico Luiz Gonzaga à sua professora,
que, como ela nos contou, “[...] tirou uma fotografia na cidade vizinha e se achando feia na
foto, que pagou tão cara, deixou que eu modificasse. Ela gostou de tal maneira que nunca mais
levei qualquer repreensão na sala, ao contrário, tudo que pedisse à professora eu conseguia”.

3
Os depoimentos foram realizados na etapa de pesquisa para a construção do primeiro roteiro (documentário),
ocorrida entre os anos de 2010 e 2012.
19

Telma criou cenários para suas fotografias, inspirando-se, por exemplo, nas atrizes Gina
Lollobrigida; Vivien Leigh, de E o vento levou; Ava Gardner, em A Condessa Descalça; Rita
Hayworth, em Gilda; e em filmes como A Noviça Rebelde e os do gênero “capa e espada”.
Trabalhou com fotografia de estúdio e fotopintura por 60 anos, até que as próprias tintas e os
produtos químicos de uso na revelação fotográfica começaram a prejudicar sua saúde,
impedindo-a de continuar. Telma pintou sua última tela em 2003.
No início do século XXI, teve sua primeira exposição com curadoria. A partir de então,
principiou novo momento de sua trajetória, com o reconhecimento artístico ultrapassando as
fronteiras familiares e regionais. Suas imagens ocuparam os espaços de arte, como a Pinacoteca
de São Paulo, em 2006, a Galeria Estação (São Paulo), em 2008, os centros culturais, como o
Centro Cultural Dragão do Mar (Fortaleza) e o Centro Cultural Banco do Nordeste (Fortaleza).
Publicações sobre seu trabalho foram editadas no Brasil.
Telma Saraiva faleceu com 86 anos, em 8 de junho de 2015, no Crato.

Figura 2 – Telma e o fotógrafo Cristiano Mascaro,


no estúdio do Foto Saraiva
Fonte: Acervo Família Saraiva.

Figura 3 – Telma Saraiva, na sala de visita


de casa, segura uma fotopintura de sua
autoria. Fonte: Fernanda Chemale.
20

2.2 Fotopintura

Segundo pesquisa do Instituto Itaú Cultural4, a arte da fotopintura, no Brasil, remonta a


1866. Atualmente, segundo as mesmas fontes, os principais artistas do gênero estão
concentrados nas regiões Norte e Nordeste.
No Crato, Telma Saraiva foi uma das primeiras a usar essa técnica, sendo a pioneira na
utilização de referências do cinema como tema para composição de suas fotopinturas.
Constituiu-se, assim, como uma das matrizes formadoras das imagens tradicionais de retrato na
cultura fotográfica no Nordeste.
No que toca à origem e à técnica da fotopintura, é importante apontar:

Processo inventado por André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889/90), em torno de


1863, a fotopintura é obtida, a partir de uma base fotográfica em baixo contraste – que
tanto pode ser uma tela quanto uma imagem sobre papel – sobre a qual o pintor aplica
as tintas de sua preferência, geralmente guache, para o papel, e óleo, para as telas.
Essa técnica apresenta a vantagem de dispensar a exigência de grande talento do pintor
para o difícil gênero do retrato, transformando-o na maior parte dos casos num mero
colorista, ao mesmo tempo que libera o cliente das fastidiosas sessões de pose exigidas
pela pintura tradicional. Já em 1866, encontramos os primeiros praticantes deste
processo no Brasil, que era denominado nos países de língua inglesa de photography
on canvas. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2019).

Cabe ressaltar que, diferentemente do uso costumeiro, Telma utilizava tintas a óleo no
papel fotográfico de suas fotopinturas.
A imagem da fotopintura resulta de dois processos: um fotográfico e outro pintado.
Assim, consideramos que a utilização desses dois meios produz uma imagem híbrida. Em outras
palavras, a captação da imagem pelo processo físico-mecânico, e a posterior sobreposição de
processo químico-manual, revelam dois processos para a geração de uma terceira imagem, ou
seja, duas técnicas e materialidades distintas na impressão da percepção do real.
A imagem híbrida simboliza a metáfora visual e conceitual; em parte, uma resposta à
reflexão da tese. No caso da pintura, trata-se de um maior poder de interferência na imagem
indicial. Dessa forma, temos a representação dos autorretratos fotopintados e a docuficção,
postos no desenlace da trama no momento final, em que surge o insight do sentido da imagem
híbrida para Ana, protagonista do nosso roteiro.

4
FOTOPINTURA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural,
2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3871/fotopintura. Acesso em: 30 de abr. 2019.
Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.
21

2.3 Telma e as imagens que criou: os autorretratos

Telma Saraiva fotografou, revelou e pintou seus 24 autorretratos aproximadamente entre


os 20 e 50 anos de idade. Segundo pesquisa de Anylan Silva (2018, p. 57), “Não se sabe ao
certo em que ano Telma Saraiva começou a produzir seus autorretratos, mas constatou-se que
provavelmente tenha sido entre as décadas de 1940 e 1950”.
Preparava sua indumentária, construía o cenário e se maquiava. Posicionava os
refletores, a câmera no tripé e, com um cabo para acionar o mecanismo do disparador, dava seu
clique único. Depois, ampliava e revelava a imagem em seu laboratório (que chamava de quarto
escuro) – espaço contíguo ao estúdio. Já no cavalete disposto no corredor do pátio, que ligava
o estúdio ao interior da casa, dedicava-se horas a fio à etapa da pintura. Em entrevista à revista
Cariri (2012), comentou: “Com um grafite de ponta fininha, eu homogeneizava a pele, dava
reflexos nos cabelos, definia feições do rosto. Esse era meu photoshop! Essa é minha técnica”.

Figura 4 – Telma Saraiva e sua fotopintura. a) Telma Saraiva simula a maneira de como fazia
sua fotopintura. b) Detalhe explica que também utilizava a palma da mão para a mistura das
tintas, ao longo do tempo, as tintas e os produtos químicos utilizados na pintura e revelação,
causaram-lhe intoxicação. c) Autorretrato de Telma Saraiva como espanhola.
Fonte: Acervo Família Saraiva.

Retratava-se como atriz de cinema, ou atrizes de cinema, pois cada retrato recebia um
tratamento singular, destacando a personalidade de suas personagens. Em cada retrato, uma
persona distinta, partindo de referências como Vivien Leigh; Elizabeth Taylor; as cantoras de
rádio Ângela Maria e Dalva de Oliveira; Ava Gardner; Rita Hayworth; e muitas outras, tantas
quanto imaginasse.
Os autorretratos que fazia os guardava para si, ‘secretamente’. As obras passaram a ser
conhecidas quando Telma, durante uma seleção para exposição coletiva sobre fotopinturas da
região, apresentou algumas delas ao curador da mostra, que então as tornou públicas. A partir
disso, foi convidada para exposições e suas obras passaram a integrar publicações. Somente
22

após esse período, Telma colocou parte do conjunto dos autorretratos em sua varanda, para que
todos que a visitassem pudessem vê-los.

Figura 5 – Telma Saraiva na varanda de sua casa, na cadeira que usava para as fotos de formatura, com seus
autorretratos. Fonte: Fotografia de Fernanda Chemale.

Embora todo o conjunto comercial da produção de Telma pertença ao seu estilo


inconfundível, de uma estética do cinema com referências à publicidade da época, seus
autorretratos nos trazem características distintas dentro do conjunto de sua obra. A identidade
plural no conjunto de personas da Telma. Sobre a imagem construída, a partir do autorregistro,
da auto-observação, interpelou-nos uma questão acerca da alteração da imagem projetada: o
que está em jogo nessa modificação?

2.4 Telma e o pai, Júlio Saraiva Leão

Telma Saraiva, criança, era levada pelo pai a um dos cinemas que existiam na cidade,
para que aprendesse a ler de maneira rápida, silabando as legendas em português dos filmes
estrangeiros. Em uma das últimas entrevistas que deu à imprensa, ela disse o que repetia a cada
fala pública: “Pode escrever aí. Eu sou filha de meu pai. E para entender minha história, eu
23

tenho que falar dele”. (Revista Cariri, 2012).


O ambiente afetuoso criado pelo pai e o encanto pelo universo das histórias orais e
cinematográficas foram os aspectos que nutriram seu imaginário artístico profissional: “Eu,
vendo aquelas artistas de cinema tão bonitas, comecei, na minha cabeça de criança, a me
embelezar por elas. Minha mãe ia na rua e comprava umas bonecas de celulose, e eu já colocava
nas bonecas os nomes das atrizes: Rita Hayworth; Hedy Lamarr; Elizabeth Taylor”. (Revista
Cariri, 2012).
Telma acompanhava a vida das atrizes e cantoras de rádio por duas ou três revistas que
chegavam à cidade, a saber, Cena Muda, Jornal das Moças e O Cruzeiro. Contava que começou
a colecionar cartelas coloridas, com fotos de atrizes, que vinham no sabonete Lever, pois nos
filmes só as via em preto e branco.
Júlio Saraiva Leão, fotógrafo, foi também paisagista e urbanista, tendo montado o
primeiro estúdio profissional de fotografia no município do Crato, o Foto Riso. Telma, desde
os 12 anos, convivendo no ambiente profissional do pai, aprendeu os processos necessários da
revelação, ampliação e impressão fotográfica em preto e branco. O que não a impediu de, desde
muito jovem, colorir as fotos em preto e branco com as raspas dos lápis escolares. Como dito
anteriormente, somente mais tarde, com a ajuda do irmão, fluente em inglês, conseguiu comprar
tintas à óleo coloridas vindas dos Estados Unidos.
Telma se casou com o também fotógrafo Edilson Rocha, especialista na técnica da
fotopintura. Depois de casada, ela iniciou a prática de forma profissional em um quarto de sua
casa, homenageando com o nome do pai, criou o Foto Saraiva.
Pela maneira como trabalhava a luz e o notável domínio do colorido, restaurava,
segundo seu ponto de vista, as “imperfeições” faciais dos retratados, imprimindo ar
cinematográfico aos rostos de seus clientes. Telma passou, aos poucos, a receber visibilidade e
o pai, pela idade avançada, aposentou-se e encerrou sua vida profissional. O Foto Saraiva de
Telma passou então a ser o mais procurado da cidade.

Figura 6 – Júlio Saraiva. Fotopintura por Telma Saraiva


Fonte: Acervo Família Saraiva.
24

2.5 Telma, o Crato e o cinema clássico de Hollywood

O auge do cinema de Hollywood corresponde, aproximadamente, ao período


cronológico que ocorre do final dos anos de 1920 até os anos de 1950. Segundo pesquisa de
Jacqueline Nacache (2012), abrange a época que compreende o cinema mudo, chegando aos
grandes estúdios do cinema sonoro, que resvalou no triunfo de um modo de produção ligado ao
modelo de indústria capitalista norte-americano, prevalecente até os dias de hoje.
Em 1925, segundo pesquisas de Aurília Sousa (2016), o Crato tinha uma população de
35.000 habitantes e apresentava comércio bastante diversificado, possuindo cerca de 5.000
casas. O contexto cultural da cidade era impulsionado, desde o início do século XX, pela
presença de salas de cinema, fato que nos surpreende, tendo em vista que não há, atualmente,
nenhuma sala de cinema em funcionamento no município. Rebouças e Silva (2011) nos relata
que “na década de 1930, as primeiras emissoras de radiodifusão sonora são instaladas no
Nordeste”, e que, nas décadas de 1930 e 1940, o Crato “contava com duas importantes
amplificadoras para divulgar mais amplamente as informações para sua população”.
Telma nasceu em 1928, mas já no ano de 1911 foi criado o Cinema Paraíso e, em 1918,
aberto o Cine Casino Sul Americano. Na década de 1950, foram inaugurados o Cine Moderno,
no centro da cidade; o Cine Rádio Araripe; o Cine Educadora; e, na década de 1970, o Cine São
José, no bairro Seminário5.
Importante realçar a inauguração, em 1950, do Crato Tênis Clube, com quadra de
esportes e salões de dança. Clube que realiza as festas de carnaval que ganharam expressiva
repercussão em todo o estado do Ceará. Para o nosso enredo o Clube, além da casa e do cinema,
é também um ambiente social para entendermos a personalidade da protagonista biografada. O
carnaval era a festa anual que Telma não dispensava participar.
O número de salas demonstra que o cinema era um dos principais veículos populares de
difusão cultural na região. Havia revistas nacionais e jornais impressos que circulavam
semanalmente, como A Ação e Fôlha da Semana, e os de periodicidade mensal, como os jornais
Voz do Cariri, A Classe, O Ideal, O Levita e o Boletim da U. E. C. (SOUSA, 2016). Entretanto,
se entendermos que o processo de alfabetização era restrito a uma elite econômica e à parte da
classe média, não poderemos considerar os meios escritos como os mais acessíveis ao grande
público, diferentemente do alcance do rádio e do cinema.

5
Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/regiao/cariri-ainda-exibe-vestigios-dos-
seus-cinemas-de-rua-1.1849199. Acesso em: 20 jul. 2019.
25

Telma teve acesso aos meios de comunicação e cultura de sua época e conviveu
fortemente com a estética do cinema de ficção de estúdio hollywoodiano. De acordo com a
pesquisadora Jacqueline Nacache (2012), uma estética que se manteve com uma produção
abundante, regular e que perdura em um estilo narrativo dominante:

Não deixa de ser verdade – e ainda que este não tenha sido o objetivo da “política dos
estúdios”, assente, sobretudo, na procura do lucro – que este modo de produção
engendrou um tipo de representação do real específico do cinema de Hollywood, um
mundo de representação cuja elaboração e coerência estão geralmente ligadas a
aspectos particulares do sistema de produção. (NACACHE, 2012, p. 12).

Conforme Nacache, o modelo narrativo se estrutura em seis figuras constantes do


discurso hollywoodesco: o gag, a elipse, a entrada em cena da estrela, o flash-back, o suspense,
e o happy-end. Alguns pontos desse alicerce estabelecem uma relação dramatúrgica direta com
o universo estético das fotografias de Telma, no que se refere ao enquadramento, à iluminação,
aos objetos de cena, ao figurino, e às expressões faciais e corporais, o que constrói um ambiente
de cinema às personalidades retratadas:

A montagem, os seus efeitos e artifícios, os raccords, os esbatidos, a escolha do


enquadramento, a escala dos planos e a iluminação das cenas, a construção do
argumento: tudo isto assenta em “efeitos calculados”, que visam agradar ou emocionar,
de acordo com o primeiro objetivo de qualquer retórica. (NACACHE, 2012, p. 9).

Pelas revistas e jornais da época, Telma acompanhava as notícias das vidas das atrizes,
que apareciam em imagens coloridas, com iluminação e cenário de estúdio que reproduziam
um estilo de vida baseado nos filmes. O que não diferenciava a vida privada da pública, afinal,
mulheres que continuavam, mesmo fora das telas, marcadas pela estética dos filmes de romance
policial, sentimentais, de aventura e históricos.

Figura 7 – Sabonete Lever.


Cartelas publicitárias com as atrizes, que vinham na embalagem do Sabonete Lever
Fonte: https://www.propagandashistoricas.com.br/2014/03/sabonete-lever-rita-hayworth-
anos-40.html Internet, site do Mercado Livre
https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1091557402-estampa-card-sabonete-
lever-lola-lane-atriz-cinema-antigo-_JM
26

Fotografia feita por Telma, inspirada em revista da época:

Figura 8 – Revista Cena Muda Figura 9 – Fotografia feita por Telma Saraiva, com
Fonte: site da Loja do Som. tema debutante.
Fonte:https://telmasaraiva.wordpress.com/galeria/15-
anos/

Andy Warhol (1928-1987), nascido no mesmo ano que Telma, faz sua primeira
exposição pública em 19526. Posteriormente, divulga uma série de fotografias sobre a América,
por meio da qual traduz bem o universo que se formava com o cinema:

É o cinema que realmente controla tudo na América, desde que foi inventado. Ele
mostra o que fazer, como fazer, quando fazer, como se sentir com relação a isso e
como perceber o modo como você se sente sobre isso. Quando eles mostram como
beijar feito James Dean, como conquistar feito Jane Fonda ou como vencer feito
Rocky, é ótimo. (WARHOL, 2012, p. 11).

Sobre modos de viver ditados pelo cinema, Nacache (2012, p. 52) localiza uma rede
comercial que promovia a divulgação das atrizes: “Lançado muito cedo, apoiado por serviços
de publicidade muito eficazes e amplificado pelo fenômeno invasivo das fan magazines, o star
system torna-se um dos pilares econômicos do cinema dos estúdios, a cujo funcionamento está
estritamente ligado”.

6
Fez a sua primeira mostra individual em 1952, na Hugo Gallery, onde exibiu quinze desenhos baseados na obra
de Truman Capote. Essa série de trabalhos foi mostrada em diversos lugares, durante os anos 50, incluindo o
Museu de Arte Moderna – MOMA – em 1956. Disponível em: http://warburg.chaa-
unicamp.com.br/artistas/view/724. Acesso em: 15 ago. 2019.
27

O glamour criado em torno das atrizes de cinema, personalidades internacionais,


contribui para a construção de um modelo de comportamento das mulheres e de parâmetro para
uma ideia do feminino e de status social. A fotopintura revela sua importância nessa produção
de uma imagética social quando contribui para conferir prestígio social. Titus Ridl, curador e
fotógrafo, nos depoimentos para o documentário, nos informa:

Assim digo, a fotopintura é, sobretudo, uma técnica de transformação, da imagem em


preto e branco para o colorido... Enfim, que há uma tradição, na verdade, tênue, entre
coloração, imagem e fotopintura. [...] Tudo isso, a meu ver, explica um pouco a
popularidade da fotopintura até recentemente, aqui no Nordeste. Que era muito difícil
e muito caro obter as fotografias coloridas até épocas mais modernas, quando já havia
técnica, já havia fitas coloridas, mas a ampliação, e enfim, era muito cara! A
fotopintura permitia essa transformação da fotografia de um original em preto e
branco para o colorido e algo que é interessante nesse sentido é que junto com essa
transformação que frequentemente também era uma ampliação da imagem, uma
imagem 3x4 que se torna 13, 18, 20, 30 ou ainda em tamanho maiores! Junto com
essa transformação que dá um aspecto evidentemente oficial e mais... Transmite uma
autoridade maior, a fotografia... Fotopintura, pra mim, tem muito a ver com prestígio
social... [...] Uma imagem representativa, de mais prestígio social... Inclusive, porque,
na fotografia ou fotopintura, se podia agregar elementos como paletó, gravata... Dar
uma roupa mais social, portanto, o cliente poderia transformar uma imagem feita por
um fotógrafo lambe-lambe, um fotógrafo da praça, num retrato de maior prestígio
social, eu diria assim. E, frequentemente, a fotopintura também era não só mais
importante, mas praticamente é a única fotografia que se mostrava antigamente nas
casas. Frequentemente, na sala de estar, na sala de entrada ou junto com o oratório
doméstico, portanto, ela, nas casas, na população, em termo geral, ela ganhou um
destaque. (RIEDL, Anexo, 2015, p. 198).

Ampliamos o debate que Riedl desenvolve entre o colorido na fotopintura e a


possibilidade de modificar a imagem e o prestígio social, aproximando-o com a análise sobre o
star system que Edgar Morin faz:

Como escreve Edgar Morin, em Les Stars: “A estrela é o produto de uma dialética da
personalidade: um ator impõe a personalidade aos seus heróis, os seus heróis impõem
a sua personalidade a um ator; desta sobreposição nasce um ser misto: a estrela”. Visto
pela sociedade como particularmente harmonioso, o ator vedeta é um ser compósito,
detentor simultaneamente da realidade de um indivíduo, da imagem que dele dão os
media, da galeria de personagens que interpretou anteriormente e da dimensão mítica
resultante da reunião destes elementos díspares. Assim, a estrela beneficia-se daquilo
a que Morin chama uma superpersonalidade. (MORIN apud NACACHE, 2012, p.
54-55).

É esse ser compósito (que nos interessa), misto de real e ficção, que familiariza e
introduz o espectador no drama:

A superpersonalidade da estrela provoca outro paradoxo. Por que razão esperamos


28

pela estrela? Como já dissemos, a estrela é a razão pela qual o espectador entra na
ficção: a relação privada (de admiração, amor) que mantém com ela, condiciona, em
parte, o seu investimento e a sua recepção do filme. Por definição, a estrela deve
aparecer o mais cedo possível; ao mesmo tempo, esta aparição é um momento de tal
valor que não deve ser estragado nem desperdiçado. Daí o cuidado em mostrá-la, sem
a mostrar, fazendo falar dela, ou revelando-a pouco e pouco, tanto no sentido literal,
como no sentido figurativo. (NACACHE, 2012, p. 56).

Figura 10 – Revista O Cruzeiro (1960)


com atriz Kim Novak em visita ao Brasil Figura 11 – Telma Saraiva e integrante
no período carnavalesco. do bloco carnavalesco Garotos de Ouro.
Fonte: site do Mercado Livre. A fa Bloco que participava do carnaval do
Crato Tênis Clube. O figurino foi
concebido por Telma Saraiva.
Foto: Acervo Família Saraiva.

Encontramos aqui a referência da ficção para nossa história, a personagem invisível


(sem corpo, com voz) com a personagem ausente:

Contudo, de todas estas formas de ausência, a mais espetacular – se assim se pode


dizer – é a da personagem invisível. Há filmes cujos papéis principais nunca
funcionam como estrelas, pela simples razão de que o lugar já está tomado por uma
ausência que, paradoxalmente, ocupa um enorme espaço imaginário. Pode ser uma
voz: a de Addie Ross em Carta a Três Mulheres (apesar de invisível, é a única estrela
em relação aos três principais papéis femininos). Pode ser o traço de uma escrita, de
uma inicial omnipresente: o “R” de Rebecca no filme de Hitchcock: a entrada em cena
de Joana Fontaine não é o objeto de qualquer trabalho particular, porque a verdadeira
estrela da história é a ausente Rebecca, de quem o próprio Selznick diz que é
irrepresentável, e que eclipsa totalmente a personagem desajeitada e tímida,
interpretada por Joan Fontaine. (NACACHE, 2012, p. 60-61).

Pensamos, com isso, que a ausência física de Telma na dramaturgia ficcional, será
atenuada pela força de seus retratos, e o relato sobre sua vida e obra feito por Ana.
29

Também como referência das pesquisas fílmicas de Nacache (2012, p. 113),


introduzimos no roteiro a expressão “não é o fim”, para uma ideia de história em continuidade:
“Em Aurora, tal como mais tarde, em Moby Dick, ‘Finis’ substitui ‘The End’. Os Carrascos
Também Morrem termina com a inscrição ‘Não é o Fim’”.

2.6 Etapas do Roteiro

2.6.1 Storyline

Ana vai ao Crato receber uma herança e encontra o acervo de fotografia da tia-avó,
Telma Saraiva, o que a leva a repensar sua vida.

2.6.2 Sinopse

Ana, 39, vive no Canadá e está passando por um conflito de relacionamento com o
marido, sentindo-se insatisfeita com sua vida profissional. Nesse momento, é chamada para ir
ao Crato, interior do Ceará, resolver um inventário familiar.
No Crato, a partir de suas memórias de infância, vai à procura de suas fotografias de
família e, dessa forma, descobre o acervo fotográfico de sua tia-avó, Telma Saraiva. Uma
fotopintora que se utilizava de técnicas sofisticadas e fez uma série de autorretratos, inspirada
no cinema. Esse encontro faz Ana repensar sua vida.

2.6.3 Personagens

I. Telma Saraiva (protagonista)

Maria Telma Saraiva Rocha foi uma fotógrafa e fotopintora, que nasceu e viveu toda
sua vida na cidade do Crato, região do Cariri, sul do Ceará. Aprendeu fotografia com o pai.
Casou-se com o também fotógrafo Edilson, com quem teve cinco filhos. Construiu, em sua casa,
o Foto Saraiva, o mais importante estúdio de fotografia da região. Fotografou as famílias de
classe média, além de toda a elite econômica e política, nas cerimônias de batismo, primeira
comunhão, crisma, festa de 15 anos e de 18 anos, formaturas, e casamento. Como exceção,
30

registrava também as fotos dos mortos, o que não era sua predileção. Especializou-se em
fotopintura e inspirava-se na estética clássica do cinema. Telma fazia para si seus autorretratos,
como personagens de gueixa, espanhola, grega e muitas outras, vivendo, dessa forma, várias
vidas.

II. Ana Saraiva (protagonista)

Ana Saraiva, 39 anos, advogada, nasceu em Fortaleza, capital do Ceará. Durante seus
estudos acadêmicos, conheceu Miguel, na faculdade de Direito. Com a morte dos pais, resolveu
casar-se e seguir com Miguel para acompanhá-lo em seus estudos de mestrado no Canadá. Há
15 anos vive com o marido e a filha de 13 anos, em Winnipeg, no Canadá. Não exerce a
profissão de advogada. Cuida da casa, da filha e auxilia o marido em seu trabalho de advogado.
Quando, frustrada profissionalmente e em crise conjugal, foge para o Crato, interior do Ceará,
Ana descobre o universo de sua tia-avó, Telma Saraiva. Pela história de Telma e das mulheres
fotografadas por ela, Ana questiona as suas escolhas e decide mudar sua vida.

III. As Mulheres do Crato (coadjuvantes)

Ao contrário de Telma Saraiva, as mulheres do Crato, da geração da mãe de Ana, eram,


em sua maioria, dependentes do marido. Tão dependentes que não podiam ser chamadas pelo
próprio nome. O nome delas vinha sempre acompanhado do nome do marido. Ana, ao conhecer
a história dessas mulheres, descobre que, mesmo passado tanto tempo, sua vida é um espelho
da história das mulheres do Crato, e precisa mudar.

IV. Miguel (coadjuvante)

Miguel Oliveira, 40 anos, advogado, nasceu em Fortaleza. Conheceu Ana Saraiva na


faculdade de Direito. Casaram-se e, após sua graduação, com sua aprovação na seleção de
mestrado, mudam-se para o Canadá. Tem uma filha de 13 anos com Ana. Após concluir o
mestrado, conseguiu um emprego, por isso, permaneceram no Canadá. Trabalha no setor
jurídico de uma empresa e Ana (voluntariamente) o auxilia nos processos.
31

2.6.4 Argumento

Ana Saraiva, 39 anos, nasceu em Fortaleza, de pai e mãe fortalezenses e avós cratenses.
Durante a infância, passava as férias na casa dos avós, no Crato, com a família.
Ana está há 15 anos morando no Canadá, é advogada e trabalha informalmente, fazendo
assistência ao marido Miguel (40), advogado, em uma empresa de exportação. Ela cuida da
casa e da filha, Lia (13).
Um dia recebe a notícia de que precisa ir ao Crato, pois sua tia-avó, Telma, faleceu há
seis anos atrás (2015), e a casa da família será dividida como herança entre os filhos de Telma
e Ana, única herdeira do seu avô Salviano (irmão de Telma). Chegando à região do Cariri
cearense, entra em contato com os lugares que conviveu na infância, o que dispara sua memória
afetiva familiar.
Essa memória a leva para a casa da herança, à procura de suas fotos de infância. Ali,
descobre o acervo fotográfico de Telma e o Foto Saraiva. As fotografias das mulheres
encontradas, da geração de sua mãe e da geração de Telma, despertam a curiosidade para saber
quem são essas mulheres e como estão, nesse momento, mas também o que fizeram de suas
vidas profissionais e afetivas.
Redescobre Telma e muitas outras mulheres, Carlota (80), Violeta Arraes (88), Celene
Queirós (72), Socorro Neves (70), Bastinha Job (70), D. Neusa (71), Bárbara de Alencar (1760-
1832), Iacy Pierre, Lalá (84). A partir desses encontros, observa as dificuldades e conquistas de
gerações de mulheres, descobrindo que sua tia-avó não se transformou em Telma de Edilson
(marido), nem Telma de Júlio (pai), ela conseguiu ser uma voz pública, Telma Saraiva, uma
fotógrafa extremamente dedicada e profissional. Logo, por comparação, percebe que está se
transformando em Ana de Miguel.
Ana, em um diário, explica a Miguel o que vai descobrindo, porque ao contato com
essas mulheres, ela se faz perguntas. Nesse percurso, ao encontrar os autorretratos de Telma,
desvenda para si o trabalho da tia-avó. Ana tem um insight, o de que todos os ritos sociais têm
seus elementos de fantasia, antes de serem construídos e incorporados.
32

3 FUNDAMENTOS DO DOCUMENTÁRIO E DA FICÇÃO

Antes de apresentarmos o debate sobre a teoria dos gêneros, iniciaremos do lugar da


prática do documentário.
Decidimos por um argumento que se conecta ao dispositivo, assumido no processo, da
documentarista como personagem, conforme trazido pela pesquisadora de cinema documental
Manuela Penafria, no texto O ponto de vista no filme documentário:

Acima de tudo, um documentário transmite-nos não a realidade (mesmo nos louváveis


esforços em transmitir a realidade “tal qual”), mas, essencialmente, o relacionamento
que o documentarista estabeleceu com os intervenientes. No caso de documentários
mais pessoais, o que é patente é a relação que o documentarista estabelece consigo
próprio. O processo de produção dos documentários, mais do que permitir, exige uma
relação de grande proximidade e envolvimento com o que se filma. (PENAFRIA,
2001, p. 7).

Situamo-nos em uma tradição do cinema brasileiro que tem por referência as discussões
estéticas dos documentaristas Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, comentadas pelo
pesquisador Amir Labaki (2005, p. 89): “A inquietação estilística desta nova geração reflete a
nova liberdade alcançada pela ruptura do documentário com o padrão griersoniano dominante
na história do gênero no Brasil”. E acrescenta, citando argumento de João Moreira Salles: “A
‘pedagogia utilitária’ não mais monopoliza o gênero no Brasil”.
Essa mudança promoveu a linguagem do documentário para outro patamar, como
esclarece o documentarista Patricio Guzmán:

Assim começou a surgir o chamado “documentário de autor”, que até hoje consiste
em mostrar qualquer atividade humana, por mais simples que seja, mas sempre do
ponto de vista pessoal do cineasta. Tratava-se de filmes com maiores recursos
narrativos que os velhos documentários. Nem a técnica nem o dinheiro eram, contudo,
o mais importante, e sim a maneira de contar as histórias, expondo cada tema com
senso maior de relato, sem apoiar-se apenas na voz em off do narrador, mas também
nos personagens e utilizando melhor a linguagem cinematográfica. O surgimento
desse novo tipo de documentário elevou a categoria do gênero, que abandonou o
“realismo” e a retórica educativa dos tempos iniciais. (GUZMÁN in LABAKI (org.),
2015, p. 221).

Entendendo ainda que o cinema se constrói, continuamente, com as demarcações de


fronteiras permeáveis e móveis, o pesquisador Philippe Dubois, em aula inaugural na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), afirma:
33

Após cerca de vinte anos, o cinema e a arte contemporânea manifestaram, um em


relação ao outro, formas de aproximações que revelam relações múltiplas e variadas.
Uma dessas formas de aproximação é, sem dúvida, a utilização cada vez mais
frequente nos espaços expositivos, de obras ou imagens cinematográficas, convocadas
por intermédio de instalações, projeções, intervenções. No plano histórico, é
importante não esquecer que o chamado “cinema experimental” (expanded cinema ou
found footage films) e a videoarte (da videoescultura à videoinstalação) vêm atuando,
há muito tempo, como mediadores essenciais, encontrando-se plenamente na
intersecção dos meios da arte e do cinema. (DUBOIS, 2013).

Ainda no sentido de se contestar um pensamento conservador sobre o cinema, o teórico


Arlindo Machado (2010), partindo do significado etimológico da palavra cinema, “do grego
kínema-ématos + gráphein, ‘escrita do movimento’”, e em referência ao livro histórico de Gene
Youngblood, Expanded Cinema, traz contribuição quando defende que todas as formas de
imagem em movimento vistas na televisão, no vídeo e nas multimídias são legítimas para
ampliarmos a atividade cinematográfica. Tal compreensão se revela como uma maneira de
evitar o processo de fossilização do cinema, garantindo sua hegemonia diante das outras formas.

[...] essa arte das imagens em movimento – que no passado já foi teatro de sombras,
caverna de Platão, lanterna mágica, praxinoscopia (Reynaud), fenaquistiscopia
(Plateau), cronofotografia (Marey) e depois se tornou cinematografia (no sentido que
lhe deu Lumière) – está sofrendo agora um novo corte em sua história para se tornar
cinema expandido, ou seja, o audiovisual. (MACHADO, 2010, p. 67).

Exemplos citados são os artistas dos campos convergentes, referências da pesquisa que
utilizamos para a seleção dos realizadores, a partir dos estudos de Machado e Dubois. São eles,
Jean-Luc Godard, Peter Greenaway, Chantal Akerman, David Larcher, Gianni Toti, Zbigniew
Rybczynski, Pierre Huyghe e Vito Acconci. Recorremos também à teoria psicanalítica,
enquanto área de interação com as artes, na intenção de entendermos os conceitos de real e
realidade, e assim, seus sentidos de representação e sua relação com os aspectos da ficção:

Aprendemos a pensar que a arte recria, deforma ou repete diferencialmente a realidade,


seja ela a realidade perceptual, seja ela a realidade social a que chamamos mundo. A
arte contemporânea, definida a partir das neovanguardas dos anos 1960, começa com
o reconhecimento da impotência da verdade diante da realidade. Impotência que
repete e retorna ao diagnóstico feito pelas vanguardas da década de 1930, ou seja, de
que a realidade está perdida. O real é o nome desta realidade perdida, verdadeira
obsessão, paixão e programa para as artes e para a crítica da subjetividade até hoje.
Para os formalistas, trata-se de inventar uma nova linguagem, capaz de apresentar o
real destituído de toda ficção narrativa da verdade, o real como instante ou
acontecimento puro. Para os críticos historicistas, o real pode ser aprendido por meio
do exagero e da deformação de nossas formas sociais, capaz de inventar um novo
olhar, no qual a verdade se mostra como contradição. (FONSECA, 2016).

Portanto, essa pesquisa se coloca no trânsito entre um certo fascínio que tem o
documentário pelo acontecimento enquanto manifestação desse mundo social e a adesão aos
críticos historicistas, no que propõem a busca da verdade por meio da contradição.
34

Arlindo Machado (2010, p. 16) nos aponta a impossibilidade da neutralidade, existente


em cada escolha temática e formal: “As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza
o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes,
nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer
outras”.
Ainda sobre forma, conteúdo e discurso autobiográfico, uma das perguntas condutoras
para se pensar o objeto de realização desta tese foi feita pelo documentarista Andrés Di Tella
(2014, p. 98): “Por que um documentarista tem que falar na primeira pessoa? Que necessidade
ele tem de nos contar seus problemas?”. Apontando para a ideia de cinema pessoal, uma
resposta é trazida pelo pensador Michael Renov, quando afirma:

A palavra autobiografia é composta de três partes principais – “auto”, “bio” e “grafia”


– que compreendem os ingredientes essenciais desta forma de representação: um self,
uma vida e uma prática escrita. [...]. É certo que nenhum ato autobiográfico pode ser
considerado responsável pela integralidade de uma vida; sendo assim, seus símbolos
são considerados emblemáticos ou, pelo menos, evocativos do todo? Embora o “auto”
e o “bio” sejam objetos de discussão para todos os tipos de autobiografia, é a dimensão
grafológica que deve ser um ponto focal recorrente para um exame da autobiografia
fílmica, eletrônica ou digital. O autorregistro é necessariamente constituído de suas
práticas significantes. Como declarou Jerome Bruner, “a autobiografia é a construção
da vida através da construção do ‘texto’”. (RENOV apud DI TELLA, in MOURÃO
e LABAKI (orgs.), 2005, p. 237).

Assim, o processo de pesquisa acerca do roteiro nos leva à compreensão de que o curso
da investigação produz um texto e cria a história e seus personagens. A discussão nos aproxima
de outro teórico, Jean-Claude Bernardet (apud Veiga, 2014, p. 2), que, em suas abordagens,
define o discurso autobiográfico como “[...] o movimento por meio do qual o realizador
documenta seu processo de busca por um ‘objeto’ pessoal e, dessa forma, coloca em relação o
gesto autobiográfico e o gesto documental”, criando um tipo de categoria que Bernardet chama
de documentário de busca e que a pesquisadora Roberta Veiga define como:

[...] os mecanismos que promovem a fusão e/ou o tensionamento entre um projeto


pessoal, um desejo subjetivo de construção de si (com suas ficcionalizações) e o
cometimento de um filme documentário que, na concepção de Comolli, “só pode se
construir em fricção com o mundo”. (VEIGA, 2014, p. 1).

Com base nessas explanações, conseguimos destacar um princípio da criação, vinculado


ao processo autobiográfico, que se faz no entendimento dos personagens como sendo
constituídos por camadas de ficcionalização postas em relação a um dado contexto e fluxo
social. Com isso, procuramos uma maneira, como nos traz a psicanálise, de “sermos capazes
35

de inventar um novo olhar, no qual a verdade se mostre como contradição” (FONSECA, 2016).
Da mesma forma, a participação do autor e o uso da voz em primeira pessoa são escolhas
fundamentais para o nosso processo, alinhados ao que nos diz o documentarista Andrés Di Tella,
ao citar o poeta e dramaturgo polonês Witold Gombrowicz, sobre essa questão:

A enorme pressão a que estamos submetidos de todos os lados – para renunciarmos à


nossa própria existência – como todo postulado impossível de ser levado adiante,
conduz somente à deformação e à falsidade da vida [...]. Particularmente, um artista
que se deixa enganar e dominar por este convencionalismo agressivo está totalmente
perdido. Não deixe que alguém o amedronte. A palavra “eu” é tão fundamental e
primordial, tão plena da realidade mais palpável – e em consequência disso a mais
honesta – tão infalível como guia e tão severa como critério, que em lugar de desprezá-
la, deveríamos cair de joelhos perante ela. (GOMBROWICZ apud DI TELLA, in
Mourão e Labaki (orgs.), 2005, p. 70).

Escolhemos, assim, os pontos de partida que estruturam nossa narrativa dramatúrgica


pelos conceitos postos no documentário de busca, no documentário pessoal e no percurso
autobiográfico. Adiante, veremos como eles funcionam na escritura, a partir das escolhas que
melhor traduzem a intenção da documentarista em contato com os eventos.

3.1 Documentário e ficção

Um dos eixos de construção desta pesquisa reside em conhecermos a trajetória histórica


que fundamenta os estatutos de cinema documental e cinema ficcional, para entendermos como
se constituíram os espaços e as características de estilo.
Partindo de um meio popular de informação disponível on-line, a enciclopédia livre
Wikipédia7, encontramos a seguinte definição acerca do termo documentário:

[...] É uma produção artística, via de regra, um filme, não ficcional, que se caracteriza
principalmente pelo compromisso da exploração da realidade. Isto não significa que
represente a realidade “tal como ela é”: o documentário, assim como o cinema de
ficção, é uma representação parcial e subjetiva da realidade.

Utilizando essa mesma definição, se substituirmos documentário pela palavra ficção, a


descrição também revela sentido, pois a única especificidade que marca a diferença é o fato do
documentário é ser algo em oposição à ficção. Não há, portanto, características de forma ou de
conteúdo que marquem a distinção.
Em consulta ao dicionário Priberam, o termo documentário é definido como “relativo

7
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Document%C3%A1rio. Acesso em: 10 jan. 2019
36

a documentos”, ou seja, “tudo o que documenta ou comprova. Diz-se de um filme de caráter


informativo, didático ou de divulgação” 8 . Depreendemos, por essa descrição, que o filme
documentário aborda a realidade por prova material, quer seja documento ou testemunho de
evento histórico. Dessa maneira, o documento comprova sua presença no mundo social, embora
também, como signo, esteja relacionado às interpretações e leituras que envolvem o próprio
documento. Uma contribuição reflexiva encontra-se no campo da investigação histórica, sobre
o documento como presença da realidade. O historiador Carlo Ginzburg cita o crítico italiano
Renato Serra:

Tem gente que imagina de boa-fé que um documento pode ser uma expressão da
realidade [...]. Como se um documento pudesse exprimir algo diferente de si mesmo
[...]. Um documento é um fato. A batalha, outro fato (uma infinidade de outros fatos).
Os dois não podem fazer um. [...] O homem que age é um fato. E o homem que conta
é outro fato. [...] Todo depoimento dá testemunho apenas de si mesmo, do seu
momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais. [...] Todas as críticas que
fazemos à história implicam o conceito da história verdadeira, da realidade absoluta.
É preciso enfrentar a questão da memória; não na medida em que é esquecimento,
mas na medida em que é memória. Existência das coisas em si. (SERRA apud
GINZBURG, 2006, p. 272-273).

Dessa maneira, partiremos da memória como documento da experiência do encontro


com Telma, em forma de relato que constituirá parte da experiência de Ana.
Ainda sobre a conceituação de documentário, Silvio Da-Rin, teórico e realizador, diz-
nos de evento histórico ocorrido em 1948, quando uma associação de realizadores ingleses, a
World Union of Documentary, definiu o termo como:

Todo método de registro em celuloide de qualquer aspecto da realidade interpretada,


tanto por filmagem factual, quanto por reconstituição sincera e justificável, de modo
a apelar seja para a razão ou emoção, com o objetivo de estimular o desejo e a
ampliação do conhecimento e das relações humanas, como também colocar
verdadeiramente problemas e suas soluções nas esferas das relações econômicas,
culturais e humanas. (apud DA-RIN, 2004, p. 15-16. In: WINSTON, 1978/1979, in:
ROSENTHAL, 1988, p. 22).

Destacamos a ideia de “filmagem factual” como um definidor, ao que especificaria o


campo. Um dos realizadores que integrou a World Union of Documentary foi John Grierson,
que definiu documentário como o “tratamento criativo da realidade” (apud Da-Rin, 2004, p.
16). Nesse sentido, esboçamos panorama em que o documentário se define por sua relação de
compromisso com essa realidade definida pelo factual. Joris Ivens (in Labaki, 2015, p. 42),
documentarista e economista, corrobora: “Os primeiros filmes eram usualmente feitos a partir

8
Disponível em: https://dicionario.priberam.org/document%C3%A1rio. Acesso em: 13 jan. 2019.
37

de fatos, e a raiz permanece nos documentários factuais. De um lado, tem-se a ficção ou filme
encenado, e do outro, o cinejornal; entre ambos, está o campo coberto pelo documentário”.
Ivens apresenta o diálogo com o cinejornal como uma das tendências de estilo para o
documentário, em contraponto ao filme de ficção, o qual define como filme de encenação. Essa
distinção entre fatos da realidade e realidade encenada é um ponto-chave para nossa pesquisa.
Para Dziga Vertov (in Labaki, 2015, p. 41), documentário e ficção são dois pontos de
vista extremos, “um é o dos kinocs, que perseguem a organização da vida visível com a ajuda
da câmera cinematográfica: ‘cine-olho, montagem da própria vida’. O outro é o ponto de vista
dos restantes, orientados em direção ao drama ficcional de agitação, com emoções e aventuras”.
Em contraponto à posição de Vertov, trazemos análise sobre Eisenstein:

Vertov considerava que uma compreensão autenticamente cinematográfica da


realidade só poderia ser atingida com base na fixação documental dos fatos reais. Ele
chamava o cinema atuado de “teatro restaurado”. Eisenstein reservava ao cinema o
direito de fazer uso de qualquer tipo de material, “para além de atuado ou não atuado”.
(PELECHIAN apud VERTOV in LABAKI, 2015, p. 165).

Considerando que ambos seguem princípios diferentes sobre o real, o cineasta João
Moreira Salles especifica a abordagem documental:

[...] Dizem respeito a fatos que ocorreram no mundo. Diante desses filmes, realizador
e espectador estabelecem um contrato pelo qual concordam que tais pessoas existiram,
que disseram tais e tais coisas, que fizeram isso e aquilo. São declarações sobre o
mundo histórico, e não sobre o mundo da imaginação. (SALLES in LABAKI, 2015,
p. 267).

Em Todas as vidas de Telma, evidenciam-se pessoas que existiram e existem nos seus
lugares sociais e que dão depoimentos sobre o que aconteceu, embora o que nos tenha
conduzido ao encontro dessas histórias seja uma personagem ficcional. O cineasta Krzysztof
Kieslowski, que iniciou sua vida de realizador pelo documentário, passando, depois, a se
dedicar quase que exclusivamente à ficção, acrescenta às diferenças:

A realidade é o assunto do filme documentário, e é algo que existe de fato; gente de


verdade, eventos de verdade, sentimentos de verdade, estados de espírito, rostos,
pensamentos e lágrimas verdadeiros. A essência desse gênero é a relação pessoal e
subjetiva do autor diante de tudo isso, em geral, manifestada por meio de construção
do filme (dramaturgia, se quiserem) e obtida com um laborioso e fantasticamente
interessante trabalho na sala de montagem. O filme documentário não conta nada
sobre seu autor; conta sobre o mundo e as pessoas, a partir do ponto de vista do autor.
A argúcia, a expressividade e a fragrância desse olhar do autor conferem importância
ao filme. Portanto, coberturas esportivas de partidas de futebol, longos relatórios
diários da Guerra do Golfo, a câmera transmitindo à Terra a imagem de Armstrong
encostando o pé na lua, e uma reportagem de TV sobre um antílope devorado por um
leão – apesar de mostrarem eventos reais, não são filmes documentários. Uma vez que
38

seu pressuposto fundamental é a objetividade do relato. (KIESLOWSKI in LABAKI,


2015, p. 199).

Ana vai ao encontro dos fatos e pessoas reais, encarna sentimentos da documentarista,
e, embora como uma personagem inventada, ela tem sua história, o que cria um afastamento do
ponto de vista exclusivo da autora. Sobre essa questão, Kieslowski diz que o documentário não
aborda a realidade sob o prisma da objetividade, mas sob o ponto de vista do autor. Ana é esse
movimento em direção à ficção.
Embora consideremos que toda abordagem é um ponto de vista, portanto, parcialidade,
João Moreira Salles (in Labaki, 2015, p. 270) apura tal definição: “Não cabe aqui enveredar
pela natureza dos documentos; basta ressaltar que eles possuem a característica essencial de
serem índices do mundo real. Os documentos mantêm uma relação de contiguidade com a
realidade”.
Fazemos então uma espécie de tradução do mundo histórico, por meio dos documentos
inscritos no mundo histórico, estes, nas palavras de Salles, “índices do real”. Com o objetivo
de problematizar essa questão, Da-Rin cita Vaughan (2014, p. 17), afirmando: “O que faz um
filme documentário é o modo como nós o vemos; e a história do documentário tem sido a
sucessão de estratégias através das quais os cineastas têm tentado fazer os espectadores verem
os filmes deste modo”. Reiterando, Salles nos diz:

O ponto-chave é que, segundo a escola do contexto e da recepção, bem mais do que


conteúdos ou estratégias narrativas, o que faz um filme ser um documentário é a
maneira como olhamos para ele; em princípio, tudo pode ou não ser documentário,
dependendo do ponto de vista do espectador. [...] Ele é uma convenção, um fenômeno
social. (SALLES in LABAKI, 2015, p. 271-272).

Para trabalharmos com uma certa ideia do dúbio, procuraremos convenções narrativas
do documentário para Ana, e aspectos da ficção para Telma, tendo em vista que há autores que
defendem que tudo pode ser documentário, bastando eleger-se uma convenção que assim o diga;
e há aqueles que, do outro lado, negam a existência de algo que podemos chamar de
documentário. Da-Rin faz as seguintes observações, citando Rosenthal:

Não existe isto que se chama documentário – esteja este termo designando um tipo de
material, um gênero, uma abordagem ou um conjunto de técnicas. Esta afirmação –
tão antiga e tão fundamental quanto o antagonismo entre palavras e realidade – deve
ser incessantemente recolocada, apesar da bem visível existência de uma tradição do
documentário. (ROSENTHAL apud DA-RIN, 2004, p. 17).

Da-Rin sinaliza os pontos de encontro que nos auxiliam a mapear um núcleo de


consenso do que seja o documentário e, assim, situarmo-nos em relação às convenções e
39

características estilísticas:

O documentário se enquadra perfeitamente em um dos “grandes regimes


cinematográficos” a que se referiu Christian Metz. Regimes que correspondem às
principais fórmulas de cinema, cujas fronteiras são fluidas e incertas, mas “são muito
claras e bem desenhadas no seu centro de gravidade; e por isto que podem ser
definidas em compreensão, não em extensão. Instituições mal definidas, mas
instituições plenas”. (DA-RIN, 2004, p. 18).

Ao mesmo tempo, o autor (2004, p. 19) evidencia a tradição como constituidor do


gênero: “[...] O que mantém agregado um campo tão plural é o fato de que seus membros
compartilham determinadas referências, ou seja, gravitam em torno de uma mesma tradição”.
Portanto, a definição dessa tradição e o que a constitui nos é necessário para a compreensão das
convenções. No entanto, essa tradição é um meio misto entre artes e ciências, pois se trata,
segundo Da-Rin (2004, p. 23), de um “processo que tem origens remotas na Antiguidade, passa
pela câmera escura e ganha maior impulso, a partir do século XVII, com o uso da lanterna
mágica e a proliferação de pesquisas ópticas, visando o registro e a reprodução do movimento”.
Se considerarmos a herança do cinema de ficção, com suas origens na tradição do teatro
greco-romano e, posteriormente, no romance moderno, e se fosse possível procurarmos uma
cadeia na tradição do documentário anterior ao cinema, poderíamos fazer associações com os
poemas épicos da Antiguidade e mesmo com os relatos dos viajantes, com vistas a
encontrarmos os nexos e compreendermos melhor como chegamos às convenções.
Em busca de entender o documentário a partir da definição de seu oposto, a ficção,
trazemos as reflexões da filósofa e artista visual Anne Cauquelin:

O produto de uma ficção é tão real quanto o gerado pela natureza, apenas não pode
ser avaliado de acordo com os mesmos critérios. Para a natureza, os seres que ela
produz são como eles são: ela sabe o que faz, e o faz bem, suas regras de produção
são imanentes (mesmo que aconteçam vez por outra, muito raramente, erros de
programação – por exemplo, monstros por falta ou por excesso). Não acontece a
mesma coisa com os seres de ficção; o que é processo interior na natureza está, no
artefato, submetido à exterioridade e, portanto, à contingência. (CAUQUELIN, 2005,
p. 62).

Para não entrarmos na complexidade da natureza do evento social como esse produto
da sociedade humana, ficaremos com suas formas de representação. Com isso, voltemos às
convenções. Pela via dos processos de criação, encontramos paralelismos na prática de ambos.
Nos estudos de Cauquelin, há um procedimento da ficção que é conceituado como
40

“afastamento”; já no documentário, temos o “deslocamento”. Em termos, o “deslocamento”


está relacionado aos procedimentos dos realizadores, pela atividade da viagem.
Há um consenso entre os teóricos do cinema, quando afirmam que o pai do cinema
documentário é Robert Flaherty (1884-1951), geógrafo contratado para inspecionar a costa leste
da Baía de Hudson, onde seria construída a ferrovia transcontinental Canadian Northern, que,
durante suas expedições técnicas, resolveu filmar o que via. Flaherty conseguiu o recurso
financeiro através de uma rede comercial norte-americana que comercializava peles de animais,
e, assim, realizou um filme em preto e branco, mudo, que conta a história de Nanook (Nanook
of the North, 1922). Seu pioneirismo é reconhecido por ele ter construído um ponto de vista
dramatúrgico, pela maneira como organizou as ações e pela forma como recorreu a encenações
para filmar o cotidiano de uma família de esquimós, partindo de referências pouco comuns, que
ele próprio cita – os filmes de viagem e os dramas de ficção.

Novas formas de filmes de viagem estavam surgindo e um filme sobre a ilha Johnson
South Sea particularmente me pareceu ser uma garantia do que poderia ser feito no
Norte. Passei a acreditar que um bom filme retratando os esquimós e sua luta pela
existência, no dramaticamente árido Norte, poderia valer a pena. Para resumir a
história, decidi ir de novo para lá – desta vez com o exclusivo propósito de fazer filmes.
(FLAHERTY in LABAKI, 2015, p. 12).

Observamos, neste evento, que um dos motivadores que despertam no realizador o


desejo de contar sua história tem, aqui, a particularidade da experiência de certo tipo de
estranhamento advindo do movimento para outro ambiente cultural. No processo da ficção,
também há o afastamento que cria outro ambiente. Diz Cauquelin (2005, p. 62): “Como a
natureza, a produção dispõe de elementos, de meios e de um objetivo ou fim: fazer com que,
de algum modo, os objetos ou seres que ela vai produzir possam ‘funcionar’ no universo para
o qual estão destinados”. E detalha a análise:

É nesse “como”, nesse afastamento, que se instala a ficção. Assim, por exemplo, a
história que procura permanecer o mais fiel possível aos acontecimentos produzidos
pela necessidade, e que são o que são, não manifesta esse afastamento que constitui a
essência da poesia. A história repete o mais exatamente possível, é guiada pela
preocupação com a verdade. A ficção, por sua vez, não repete, ela compõe, e sua
preocupação é com o verossímil, não com a verdade. (CAUQUELIN, 2005, p. 62).

Portanto, esse mundo ficcional se constitui atrelado aos sentidos de verossimilhança e


mímesis. Segundo Cauquelin (2005, p. 63): “O que o afastamento anuncia é a possibilidade de
as coisas serem diferentes do que elas são. Em outras palavras, é um universo do possível
instaurado pela ficção”.
41

Procurando pontos de contato, encontramos relações na justificativa de João Moreira


Salles:
Como teria afirmado o escocês John Grierson, “Flaherty percebeu que o cinema não
é um braço da antropologia nem da arqueologia, mas um ato da imaginação”. [...]
Precisamente essa imaginação narrativa – que Flaherty decerto possuía, alguns dizem
até que em excesso – é o que faz dele o pioneiro do documentário. Ele não descreve;
constrói. (SALLES in LABAKI, 2015, p. 272).

E também para reforçarmos, ainda, mais uma tradição do documentário, a que nasce
ligada à dramaturgia da ficção, não somente pela encenação – pois sabemos que para contar a
história, Flaherty precisou reencenar parte das ações da família escolhida por ele, já que a pesca,
naquele momento, tinha mudado com a introdução de ferramentas que substituíram o uso do
arpão –, mas, sobretudo, pelas referências em que se baseou. Em relação a esse aspecto, Salles
(in Labaki, 2015, p. 273) informa-nos: “Flaherty apropriou-se da gramática do cinema ficcional
e com ela escreveu seu filme. Como mostra Silvio Da-Rin, ‘ao optar por concentrar-se na vida
de um esquimó e sua família, estava partindo de um princípio próximo ao das ficções
cinematográficas’”.
Instauram-se então o deslocamento do realizador a uma região que não é o seu habitat
e o trabalho com a memória coletiva, para recuperar as práticas sociais que passam por
mudanças. Esses dois elementos, o deslocamento a um território diferente e a memória, misto
de elaborações do próprio autor junto à memória do grupo que ele propõe narrar, constituem,
assim, marcos desse primeiro processo de uma tradição, os quais utilizamos como fundamentos
para estruturação da nossa história.
Aristóteles, no seu estudo à Poética, um dos primeiros tratados registrados que
conhecemos sobre dramaturgia, comparando a história com a poesia (ficção), escreve que uma
difere da outra porque a primeira diz “o que aconteceu”, e a segunda “o que poderia acontecer”.
Retomamos essa passagem para analisarmos o conceito de mímesis:

Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu, mas
aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da
verossimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo facto de
um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de
Heródoto, com verso ou sem verso, ela não perderia absolutamente nada o seu carácter
de História). Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia
acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um caráter mais elevado do que
a História. É que a poesia expressa o universal; a História, o particular. O universal é
aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verossimilhança ou a
necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às
personagens. (ARISTÓTELES, 2015, p. 54).
42

A verossimilhança é o que confere credibilidade à ficção e ao documentário, sendo


ambos discursos construídos. Desse modo, o acontecimento deve ser “verossímil”, para que os
espectadores acreditem. Aristóteles (2015) nos diz: “Deve preferir-se o impossível verossímil
ao possível inverossímil”. É então o verossímil que se encontra no cerne do prazer estético,
proporcionado pela ficção e pelo documentário, tanto quanto a verdade histórica. Isto posto,
recorremos à pergunta central posta por Cauquelin: de que forma uma ficção pode nos oferecer
a aparência de verdade, de tal maneira que pensemos que “aquilo” pode ter acontecido ou
poderá vir a acontecer?

Aristóteles dá então alguns preceitos: o maravilhoso, os encontros e os


reconhecimentos inesperados, as peripécias excessivamente numerosas, tudo isso
deve ser evitado. A linguagem, da mesma maneira. Deve ser compreensível,
rebuscada demais, escapará à compreensão; vulgar, não apresentará o afastamento
necessário para que se possa falar de ficção. O que provoca prazer é nos encontrarmos
em um meio conhecido, no qual um certo arranjo interior nos encanta por sua
novidade, sem, contudo, nos excluir de sua intimidade. A articulação entre trivial e
ficção cativante é delicada; felizmente, temos diversas cartas na manga: os tropos ou
figuras de linguagem, os topoi ou lugares-comuns. (CAUQUELIN, 2005, p. 64).

E ainda Aristóteles, esmiuçando o sentido da verossimilhança, como uma chave


fundamental dos modos de tradução da realidade ao discurso artístico:

Percebe-se, portanto, que, dentro do gênero “discurso”, a espécie “filosofia”, por


exemplo, tem como fim a tríade “bem-verdadeiro-belo”. A espécie “retórica”, por sua
vez, visa decerto ao bem, mas já o verdadeiro está um tanto afastado de seu objetivo;
é o verossímil que ela procura, na maioria das vezes. Já a história tem em vista o
verdadeiro, mas se preocupa pouco com o bem e o belo. A arte da mímesis também
deve ter algum traço a mais ou a menos, por intermédio do qual seus fins se distingam
das outras espécies e a definam. Antecipando um pouco o que virá a seguir, diremos
que não se trata nem do bem nem do verdadeiro, mas do verossímil e do prazer; o que
de fato a diferencia de tudo o mais. (CAUQUELIN, 2005, p. 60).

Assim, construir um sentido de verossimilhança pela docuficção requer que nos


atenhamos aos fatos, mas compondo-os com uma narrativa poética, fabular, o que possibilita
acrescentarmos outros elementos à ação das personagens, não nos limitando aos eventos
descritivos da vida dos personagens biografados.
Para a verossimilhança na construção do drama, encontramos amparo no que Aristóteles
denomina de enredo centrado na ação:

Como a tragédia é a imitação de uma ação e é realizada pela atuação de algumas


pessoas que, necessariamente, são diferentes no carácter e no pensamento (é através
disto que classificamos as ações [são duas as causas das ações: o pensamento e o
caráter] e é por causa destas ações que todos vencem ou fracassam), o enredo é a
imitação da ação, entendendo aqui por enredo a estruturação dos acontecimentos,
43

enquanto os caracteres são o que nos permite dizer que as pessoas que agem têm certas
qualidades e o pensamento é quando elas, por meio da palavra, demonstram alguma
coisa ou exprimem uma opinião. (ARISTÓTELES, 2015, p. 48).

Portanto, se o que constrói o relato é definido pela ação das pessoas que estruturam os
acontecimentos, partimos de Ana, que tem perguntas sobre sua vida que terão como resposta a
biografia de Telma:

É que a tragédia não é a imitação dos homens, mas das ações e da vida [tanto a
felicidade como a infelicidade estão na ação, e a sua finalidade é uma ação e não uma
qualidade: os homens são classificados pelo seu caráter, mas é pelas suas ações que
são infelizes ou o contrário]. Aliás, eles não atuam para imitar os caracteres, mas os
caracteres é que são abrangidos pelas ações. Assim, os acontecimentos e o enredo são
o objetivo da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo. Além disso, não
haveria tragédia sem ação, mas poderia haver sem caracteres. (ARISTÓTELES, 2015,
p. 49).

Há uma falta, e a busca de Ana move a ação. Aristóteles analisa maneiras de narrar da
poesia, do épico à ciência história, mas encontramos nessa passagem uma aproximação ao
nosso objeto, quando o filósofo fala do poeta que se utiliza de fatos reais e imaginados.

De tudo isto resulta evidente que o poeta deve ser um construtor de enredos mais do
que de versos, uma vez que é poeta, devido à imitação e imita ações. E, se lhe acontece
escrever sobre fatos reais, não é menos poeta por isso: nada impede que alguns fatos
que realmente aconteceram sejam [possíveis e] verossímeis e é nessa medida que ele
é o seu poeta. (ARISTÓTELES, 2015, p. 55).

Se um dos motivadores de Ana à ação está no processo de rememorar, abrimos um


parêntese para voltarmos à ideia da memória, pelo olhar do historiador Carlo Ginzburg, no
tocante à reflexão sobre verdade e narrativa:

Em Guerra e Paz acontece exatamente o contrário: tudo o que precede o ato da


narração (das recordações pessoais à memorialística da era napoleônica) é assimilado
e deixado para trás, a fim de permitir que o leitor entre numa relação de especial
intimidade com os personagens, de participação imediata nas suas histórias. Tolstói
supera de um salto a brecha inevitável entre as pistas fragmentárias e distorcidas de
um acontecimento (uma batalha, por exemplo) e o próprio acontecimento. Mas esse
salto, essa relação direta com a realidade, só pode se dar (ainda que não
necessariamente) no terreno da ficção: ao historiador, que só dispõe de rastros, de
documentos, a ele é por definição vedado. (GINZBURG, 2006, p. 271).

Como partimos de uma história biográfica e de uma personagem narradora que entra
nessa história e se utiliza de elementos da autobiografia, considerando que temos os fatos como
a primeira matéria, Ginzburg lança-nos uma questão maior, quando tratamos com
acontecimentos: “Pode a memória abolir a mediação constituída pelas ilusões e distorções do
44

nosso eu de outrora, para alcançar as “coisas” (“as coisas em si”)?”.


Uma resposta imediata seria que “não absolutamente”, se nos basearmos na citação de
Philippe Dubois, e que prefacia esta tese:

Se a imagem observada na fonte por Narciso é seu próprio reflexo “pintado” e se o


quadro, como a fonte, é também uma pintura-“reflexo”, então o que reflete será
sempre a imagem do espectador que a observa, que nela se observa. Sou, portanto,
sempre eu que me vejo no quadro que olho. Sou (como) Narciso: acredito ver um
outro, mas é sempre uma imagem de mim mesmo. (DUBOIS, 2008, p. 143).

Quando somos tomados por certo sentimento de impedimento quanto ao desejo de


conhecermos as coisas em si, fragilizamo-nos. Contudo, retomamos esse contexto com
Ginzburg (2006, p. 274), para nos trazer um alento: “As últimas palavras de ‘Lembranças de
uma batalha’ (o sentido de tudo aparecendo e desaparecendo) insistem na precariedade da nossa
relação com o passado. E, no entanto, esse ‘quase’ (‘quase nada’) sugere que o passado, apesar
de tudo, não é inalcançável”.
Destacamos, no caso de Nanook, a memória coletiva como fundamento para a
reencenação, que é em parte dele e em parte da comunidade, construindo juntos os gestos e
movimentos que mostram o como se fazia. Da mesma forma, é pela memória da infância que
conduzimos a protagonista Ana, quando chega à cidade do Crato, o seu elo afetivo ao universo
feminino – da geração de sua mãe e da tia-avó – e que a faz, aos poucos, constituir, ao mesmo
tempo, seu estranhamento e pertencimento com o ambiente familiar.
De certa forma, é o que acontece com Flaherty, em Nanook, ou seja, a identificação
como um dos elementos do conflito narrativo, entre o autor/documentarista e o retratado, além
do contato com o outro, para falar também de si, de quem interroga.
Voltamos à ideia de alguém que registra, acionado por um movimento de deslocamento
para outro ambiente. Grierson (in Labaki, 2015, p. 20) informa: “Os franceses que usaram o
termo pela primeira vez pretendiam apenas dizer ‘relato de viagem’”. Nessa questão, Da-Rin
afirma:

Convém destacar as características de um gênero particular de atualidades: o filme de


viagem. Suas origens remontam a meados do século XIX, quando as palestras
ilustradas com projeções de lanterna mágica passaram a atrair uma elite letrada
desejosa de ampliar seus conhecimentos sobre localidades desconhecidas e culturas
exóticas. (DA-RIN, 2004, p. 40).

O relato de viagem do século XIX refere-se às terras longínquas, sabemos de todo um


vasto repertório para o imaginário coletivo do que significavam as viagens a terras distantes –
45

só possíveis para um público muito restrito – portanto, o desconhecido estava fora ou de difícil
acesso à maioria.
O documentarista Patricio Guzmán explicita o aspecto da tradição documental das
viagens e corrobora:

Os primeiros documentaristas foram grandes exploradores (Flaherty, Vertov,


Grierson), que realizaram expedições de trabalho aos lugares mais remotos do mundo
para filmar, pela primeira vez, acontecimentos ou culturas que ninguém conhecia de
perto. Assim, trabalharam e viveram a primeira e a segunda gerações, formadas por
homens lendários (Karmén, Medvedkin, Ivens, Rouch, Marker). A televisão – a partir
da década de 1960 – ameaçou gravemente esses pioneiros, obrigando-os a reformular
seu trabalho, substituindo-os, parcialmente, por modernas equipes de repórteres que
duplicaram sua capacidade de viajar. Porém, depois desse período – pouco a pouco –,
os diretores de documentários descobriram que era possível fazer filmes sem nem
sequer sair do bairro. Apareceram inúmeros documentários sobre qualquer atividade
do homem; por exemplo, sobre pintura, ciência, política, música, esportes, literatura,
medicina, etc., que demonstraram que esse gênero era útil para mostrar geografias
remotas e também para registrar qualquer aspecto da sociedade. (GUZMÁN in
LABAKI, 2015, p. 220-221).

Atualmente, vivemos em um mundo global cada vez mais interligado, seja pela
facilidade dos meios de transportes, seja por meio das redes digitais e pela expansão dos meios
de comunicação, por outro lado, deparamo-nos com a crescente concentração de renda e os
graves riscos à diversidade da vida no planeta pelos efeitos da degradação ambiental. Esses
mundos ininteligíveis e estranhos se voltam para o mais próximo de si, ao entorno e dentro de
cada um.
Assim, Ana faz agora sua viagem para a terra de sua infância, que também está
localizada na memória ligada à sua família. É a nossa própria paisagem afetiva e familiar que
parece um lugar no qual somos chamados às terras estranhas. Sigmund Freud analisa o
sentimento da inquietante estranheza, a partir dos enredos criados no drama literário, que nos
ajuda nesse caminho, e o fazemos como uma possível correspondência com a psicanálise, ou
seja, “a ficção origina possibilidades de vivência do sentimento de algo ameaçadoramente
estranho que na vida não ocorreria” (FREUD, 1994, p. 237), dotando-a do poder de sublimação,
e mais adiante ressalta: “Nada mais podemos dizer acerca da solidão, do silêncio e da
obscuridade, exceto o fato de constituírem verdadeiramente os fatores aos quais se associa, na
maior parte das pessoas, o medo infantil nunca extinto por completo” (FREUD, 1994, p. 238).
Destacadas as ideias geradoras, seguimos à construção da ação narrativa, ampliando-a
gradativamente com a contribuição dos temas transversais.
46

3.2 Viagem de volta

Sobre o processo de construção de um documentário, há a ideia de que o roteiro nasce


no contato com o ambiente, in loco, e que, a partir dessa convivência, nasce a história. Grierson
sobre essa questão (in Labaki, 2015, p. 25) aponta: “Flaherty embrenha-se durante um ano,
talvez dois. Vive com seu povo até que a história se conte ‘por si mesma’”. E prossegue, mais
enfático, acerca da importância do ambiente para o documentarista:

Flaherty tornou-se um princípio absoluto que a história devia ser extraída da locação,
e que fosse (o que ele considerava ser) a história fundamental da locação. Seu drama,
portanto, é um drama de dias e noites, da passagem das estações do ano, das lutas
fundamentais que dão o sustento ao povo, ou tornam possível a vida comunitária, ou
conferem a dignidade da tribo. (GRIERSON in LABAKI, 2015, p. 24).

Temos então uma personagem encenada que é introduzida no ambiente “natural”, e que
deve seguir o fluxo das ações espontâneas. Parece surgir, em certa medida, uma contradição, já
que a interação com esse mundo social é mediado pelo “falso”. No entanto, presumimos que
essa realidade que se apresenta, terá primazia diante do percurso da personagem. Grierson
defende o documentário como meio dramatúrgico que se aproxima com mais fidedignidade à
realidade e explica sua defesa:

Os filmes de estúdio ignoram largamente essa possibilidade de abrir a tela ao mundo


real. Eles registram histórias encenadas com planos de fundo artificiais. O
documentário registra a cena viva e a história viva. Acreditamos que o ator original
(ou nativo) e a cena original (ou nativa) são os melhores guias para uma interpretação
do mundo moderno projetada em tela. Eles dão ao cinema maior provisão de material.
Eles dão poder a mil e uma imagens. Eles potencializam a interpretação a
acontecimentos do mundo real mais complexos e surpreendentes do que a
mentalidade do estúdio [...]. Acreditamos que os materiais e as histórias extraídas da
realidade bruta podem ser melhores (mais reais num sentido filosófico) do que as
obras encenadas. O gesto espontâneo tem valor especial na tela. (GRIERSON in
LABAKI, 2015, p. 22).

Segundo o realizador e etnólogo Jean Rouch, mesmo quando tudo é reencenação e


cumprimos nossos papéis de atores sociais, há, no drama documental, uma dificuldade maior,
quando se trata de nos colocarmos na história. Sobre essa ideia, Rouch recorre a Flaherty para
exemplificar seu ponto de vista:

Flaherty, durante os quinze meses da realização de Nanook (após uma primeira


temporada igualmente longa, por certo), tudo inventou e pôs em prática: o contato
prévio, a amizade, a participação, o conhecimento do assunto indispensável à
filmagem, a vivência da situação (“Nanook interpreta o papel de Nanook”, afirma Luc
de Heusch), a encenação mais difícil, a encenação da vida real... (ROUCH in
LABAKI, 2015, p. 84).
47

Há um tipo de verdade que Jean Rouch busca, e nos interessa, encontrado na prática de
Flaherty:

Mas Flaherty é, sobretudo, um poeta dos homens. O que ele tinha em vista não era,
como para muitos exploradores, o insólito ou o extraordinário. Mesmo no outro lado
da terra, o que ele buscava não era o anedótico nem o exótico, mas simplesmente uma
mensagem que julgava comum a todos os homens. [...] O próprio Flaherty tentou
exprimir essa ideia durante uma entrevista sobre a arte cinematográfica: “Falta
verdade aos filmes, é esse o seu defeito. Eles são cheios de artifícios, de lugares
comuns; até mesmo o público mais inculto é capaz de perceber isso, sem saber dizer
por quê... Mas, um dia, esse público deixará de ir ao cinema, eis tudo... Eu só trabalho
com personagens reais, com pessoas que vivem nos lugares onde filmo... Uma história
deve tirar sua força de todo um povo, não das ações de alguns indivíduos. Há uma
espécie de grandeza em todos os homens – cabe ao autor do filme revelar sua
existência, encontrar o incidente singular ou mesmo o movimento singelo capaz de
torná-la perceptível. Acho que um dia os filmes serão feitos desse modo”. (ROUCH
in LABAKI, 2015, p. 90-91).

O que destacamos de Flaherty (Nanook, 1922), para o nosso enredo, é a história que
surge da relação entre o ambiente e o realizador e que só pode ser contada por meio desse
encontro, único e intransferível. Outra referência essencial sobre esse aspecto é aquilo que nos
diz o cineasta Jonas Mekas com seus filmes-diários:

A árvore na rua é realidade. Mas aqui eu a destaquei, eu eliminei toda a outra realidade
que a cerca, e escolhi apenas aquela árvore específica. E a filmei. E se agora começo
a examinar o que filmei, o que coletei, tenho uma coleção de muitos desses detalhes
destacados, e toda vez que eles apareceram, eu não os busquei, eles me escolheram, e
reagi a eles por razões muito pessoais, e é por isso que todos eles se conectam, para
mim, por uma razão ou por outra. Todos significam algo para mim, ainda que não
entenda por quê. Meu filme é uma realidade destacada por mim mediante esse
processo muito complexo; e é claro, para quem o consegue “ler”, esse material diz
muito sobre mim. (MEKAS in LABAKI, 2015, p. 134).

É por esse pensamento que voltamos à ideia da importância da memória para a condução
do enredo. Mekas filma o cotidiano como uma forma de evocar sentimentos e episódios vividos,
acionando assim, a memória que se revela na seleção, mesmo que, durante a ação da filmagem,
este não seja um processo consciente. Sobre o que procuramos através das imagens, Mekas
afirma:

Com frequência, digo: Oh, veja meu filme, está tudo lá, não tenho mais nada a dizer,
não sei nada sobre isso. Porque a verdade é que não vi a vida real lá. Eu estava sempre
procurando pelo que restou das lembranças do que existiu, do que foi há muito tempo.
Não vi a realidade de hoje, ou a vi através de um véu. (MEKAS in LABAKI, 2015, p.
138-139).

Mekas produz lirismo no ato de evocar. Nos ajuda ainda mais quando retira as fronteiras
entre o espaço físico e o espaço da fantasia (Mekas in Labaki, 2015, p. 132): “Na verdade, estou
48

filmando minha infância, não Nova York. É uma Nova York de fantasia – ficção”.
O percurso da viagem também guarda o mistério da crise conjugal de Ana, que a faz
sair de casa no Canadá e mover-se de volta ao Crato. Ana se dirige a Miguel (marido que ficou
no Canadá), que representa um lugar do espectador, enquanto aquele que recebe as informações
cifradas do que ela vai experimentando. Entendemos essa comunicação, que recebe a forma de
diário de viagem, por meio de uma narrativa epistolar. Como Mekas sugere, ambos, carta e
filmagem são mediações de estado de ânimo do personagem, memória e presente:

Percebi outra coisa. No início, pensei que houvesse uma diferença básica entre o diário
escrito que alguém escreve à noite, e que é um processo reflexivo, e o diário filmado.
Em meu diário em filme, pensei, eu estava fazendo algo diferente: estava capturando
a vida, fragmentos dela, enquanto ela passa. Mas percebi bem cedo que não era tão
diferente, afinal. Quando filmo, também estou refletindo. Eu pensava que só estivesse
reagindo à realidade. Não tenho muito controle sobre ela e tudo é determinado por
minha memória, meu passado. De forma que esse filmar “direto” também se torna um
modo de reflexão. Da mesma maneira, me dei conta de que escrever um diário não é
meramente refletir, olhar para trás. Seu dia, quando volta para você no momento da
escrita, é mensurado, escolhido, aceito, recusado e reavaliado pelo que e como se está
no momento em que se escreve. Tudo está acontecendo de novo, e o escrito é mais
fiel ao que se é quando se escreve do que aos eventos e emoções do dia que se foram.
Portanto, não vejo mais diferenças tão grandes entre um diário escrito e um diário
filmado, no que diz respeito ao processo. (MEKAS in LABAKI, 2015, p. 132).

Nesse sentido, entendemos o diário fílmico como um dispositivo narrativo que


complementa a ideia de temporalidades intercaladas e expressa o misto de afetos do passado e
presente em ação.
Quando Ana, ao chegar ao Brasil, deixa de apanhar o segundo voo, e resolve fazer a
viagem de carro, pela estrada, pelos 507 quilômetros que interliga Fortaleza ao Crato, ela se
encontra movida pelo desejo de repetir o que fazia quando criança, com seus pais – como em
um processo de anamnese, procurando reorganizar sentimentos, partindo de reminiscências.
Ana segue por esse caminho, chega ao Crato, hospeda-se no mesmo hotel, vai aos lugares
afetivos, e o que aparenta ser apenas uma viagem a mais pela cidade, após saber da existência
das suas fotos (imagem-dispositivo) e das de sua mãe, desvela-se como uma experiência outra.
Isso acaba por revelar, pouco a pouco, sua inquietude. Como sua mãe e tia-avó faleceram, são
as mulheres que ela encontra que se tornam as vozes complementares, as quais ela se indaga,
através do labirinto do enigma dos autorretratos e do porquê das fantasias.
49

3.3 O mundo em gesto: contexto sociopolítico

Mekas torna o seu diário um registro dos lugares que percorre, ação descritiva, e,
também, ação de seu íntimo – projeção da sua subjetividade. Pretendemos um percurso
semelhante, pelos fragmentos de lembranças do álbum que Ana procura reconstituir.

[...] Esse material diz muito sobre mim – na verdade, mais sobre mim do que sobre a
cidade em que filmei: você não vê a cidade, só vê esses detalhes destacados. Portanto,
quando se sabe “lê-los”, embora eu não apareça falando ou andando, pode-se dizer
tudo sobre mim. No que diz respeito à cidade, é claro, você também poderia falar algo
sobre ela partindo de Walden – mas apenas indiretamente. Ainda assim, caminho por
essa realidade concreta, representativa, e essas imagens são todas registros da
realidade concreta, mesmo se apenas fragmentos. Não importa o modo como eu filme,
rápido ou devagar, como é feita a exposição, o filme representa certo período histórico
concreto. Porém, como um grupo de imagens, ele diz mais sobre a minha realidade
subjetiva, ou você pode chamar de minha realidade objetiva, do que sobre qualquer
outra realidade. (MEKAS in LABAKI, 2015, p. 134).

Em Todas as vidas de Telma há um equilíbrio entre o itinerário subjetivo de Ana e o que


ela encontra fora de sua história pessoal, que é a biografia de Telma. Embora a imagem
selecionada seja um misto da subjetividade, há algo que está fora, autônomo. Santiago Álvarez,
ao relacionar jornalismo e documentário, traz-nos a ideia de um movimento oposto, mas
complementar, em que podemos considerar que os fatos em curso também acionam a memória
e produzem afeição, de fora para dentro:

A “tomada 1” de fatos que jamais se repetirão, na maioria das vezes não planejada,
constitui a principal matéria-prima e característica fundamental do jornalismo
cinematográfico. É o elemento mais importante e significativo desse gênero, dessa
categoria. [...] O jornalismo cinematográfico, ao aproximar-se da realidade como
notícia, enriquece a linguagem do documentário. Porque o documentário atual não
existe sem uma parcela considerável de jornalismo. [...] Muitos de nossos
documentários tiveram sua origem no registro de uma notícia, de um acontecimento,
de um fato histórico (ÁLVAREZ in LABAKI, 2015, p. 146-147).

Para aproximar essa reflexão da questão entre documentário e ficção, relacionando o


fora e o dentro, ao ato da política e à nossa capacidade de inserção social, evocamos o teórico
e realizador Martin Esslin: “No drama moderno, os dramaturgos se tornaram mais conscientes
do que nunca do potencial dessa tensão entre a ilusão e a realidade, o fato e a ficção, na
experiência teatral” (1978, p. 100). E cita uma situação hipotética, mas que revela a linha tênue
entre ilusão e realidade:
50

O policial de trânsito que multa o carro estacionado ilegalmente pode dizer ao


motorista: “Sinto muito, não tenho qualquer intenção de magoá-lo, porém na minha
capacidade de policial de trânsito é meu dever multá-lo”. Uma vez que ele vista seu
uniforme de policial de trânsito, as emoções reais e pessoais do indivíduo em questão
deverão ser suprimidas e ele terá de passar a desempenhar o papel que a sociedade lhe
reservou, inclusive com o uso do figurino adequado, o uso de uma linguagem
específica e própria, e a execução de ações que ele não teria desejo de executar em
sua personalidade privada. (ESSLIN, 1978, p. 102).

Para realçarmos esse “fora” como o mundo social em que estamos inseridos ao
pensamento do mundo como palco social e à ação dos personagens que nele atuam para sua
intervenção, seja de alteração ou de adequação, buscamos por Aristóteles, bem como por Esslin
citando Northrop Frye (1978, p. 113), quando afirmam que “no drama, nós vemos
invariavelmente, no início, o que equivale a uma ordem social que está sendo perturbada e que,
no decorrer da obra, de um modo ou de outro, é derrubada ou reestabelecida, muito embora de
forma alterada”.
Sob esse viés, tratando-se de conflito e resoluções humanas, haverá sempre implicações
políticas.
Nesse aspecto, o documentarista Peter Wintonick afirma:

Vivemos num mundo político. Assim como todos os artistas, os documentaristas


devem clamar à posteridade contra a injustiça, onde quer que ela resida. “Mentir” é a
palavra de ordem desta era. Estamos, sempre estivemos e sempre estaremos, em
guerra. É uma guerra pelas mentes humanas e sua vontade ativa. Pensadores
independentes, realizadores de documentários e artistas de mídia digital são os
soldados de infantaria dessa guerra midiática. (WINTONICK in LABAKI, 2015, p.
233).

O primeiro roteiro que planejamos concentrava-se, exclusivamente, no trabalho


fotográfico de Telma e abordava a região do Cariri, onde está situada a cidade do Crato. Havia
um contexto de crescimento econômico e desenvolvimento social gerado pela
redemocratização, pelo qual passou a região, nas últimas décadas (1994-2015). A morte de
Telma, em junho de 2015, aconteceu no primeiro ano do mandato de reeleição da presidenta
Dilma Rousseff. Em 2016, iniciou-se o processo de golpe midiático-jurídico-parlamentar, com
sua destituição do cargo. Os conflitos políticos acirraram uma onda crescente de misoginia. A
própria presidenta Dilma Rousseff (2017) tratou publicamente desse tema:

Apesar de afirmar que não foi deposta por ser mulher, ela ressaltou a linguagem
machista utilizada durante o processo de impeachment. “Diziam que eu era obsessiva
e compulsiva com o trabalho; se eu fosse homem, seria trabalhador. Diziam que eu
51

era dura; se fosse homem, seria firme. Isso fora os componentes sexuais nos cartazes
e adesivos”, disse. (ALMG, 2017).9

Nesse contexto, o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro ganha notoriedade e,
mais adiante, vence as eleições presidenciais de 2018, destacando-se por seu veemente discurso
contra as mulheres. Caso notório foi o processo judicial movido pela deputada federal Maria
do Rosário, devido à agressão cometida contra ela por Jair Bolsonaro, que bradou publicamente
que não a estuprava porque ela não era de sua preferência (registro em vídeo10), além de ter
proferido outras agressões verbais de conteúdo sexista.
Nos anos seguintes, há uma acentuação da crise econômica em todo o Brasil, e, com a
eleição do discurso de misoginia, cresce o número de agressões e de mortes de mulheres.

Dados inéditos revelam que 92.323 denúncias foram registradas e encaminhadas pelo
Ligue 180, canal do agora Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
– 25,3% a mais do que no ano anterior. Em 2017, foram 73.669. Para se ter dimensão
da barbárie, 391 mulheres foram agredidas por dia em dezembro, mês no qual 12.123
se tornaram vítimas de todo o tipo de violência. Em relação ao mesmo período de
2017, o número mais que dobrou. (CORREIO BRAZILIENSE, 2019).11

Cabe destacar declaração da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),


da Organização dos Estados Americanos, sobre o aumento de assassinatos de mulheres no
Brasil:
Na nota, a organização, vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), cita
o fato de que o Brasil concentrou 40% dos feminicídios da América Latina, em 2017.
“A impunidade que caracteriza os assassinatos de mulheres em razão de seu gênero
transmite a mensagem de que essa violência é tolerada”, diz a CIDH. (AGÊNCIA
BRASIL, 2019).12

O candidato eleito com esse discurso legitima as práticas existentes, em vez de torná-
las condenáveis, criando um aparente cenário “favorável” e acentuando um problema histórico
que, infelizmente, persiste:

9
Disponível em: https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2017/12/11_com_mulheres_dilma.html.
Acesso em: 11 abr. 2019.
10
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jblFui_nNnA. Acesso em: 25 abr. 2019.
11
Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/01/08/internabrasil,729519/feminicidios-e-
tentativas-de-assassinato-disparam-no-brasil-em-2018.shtml. Acesso em: 10 abr. 2019.
12
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-02/numero-de-assassinatos-de-
mulheres-no-brasil-em-2019-preocupa-cidh. Acesso em: 15 abr. 2019.
52

A face mais marcante da desigualdade de gênero se reflete na experiência cotidiana


da violência interpessoal doméstica. Historicamente, as mulheres são as maiores
vítimas da violência doméstica, quase sempre perpetrada por cônjuge, ex-cônjuge,
companheiro, ex-companheiro ou namorado. (INSTITUTO MARIA DA PENHA,
2016).13

O contexto sociopolítico muda o olhar sobre a biografia de Telma. Antes, o que era
circunscrito à produção artística em seus aspectos formais, agora, é acrescido da inquietação de
saber como Telma, fotógrafa e mulher, sobreviveu profissionalmente a um cenário de meados
do século XX, marcadamente assimétrico em relação à autonomia feminina e à participação
pública das mulheres, se comparada à dos homens.
Em outras palavras, um cenário composto pela tradição histórica de formação de um
país assentado no patriarcalismo e no autoritarismo. Então, Ana insere-se no contexto presente,
atravessada por diversas perguntas.
Essa conjuntura nos leva às conversas que Ana tem com as mulheres que encontra, sobre
como acontecia o poder de escolha sobre suas próprias vidas, fossem suas decisões profissionais
ou amorosas. Já tínhamos alguns indícios, por ocasião das entrevistas realizadas no primeiro
roteiro, com imagens gravadas, perguntando especialmente às mulheres sobre as fotos que
fizeram com Telma, abordando a maneira como foram representadas, em torno da beleza juvenil.
Posteriormente, já no processo desta tese, fizemos outras entrevistas, enfatizando o aspecto
profissional.
Mulheres relatam que conseguiram êxito profissional e independência econômica, mas
que também pagaram um preço por suas decisões. Uma delas, Celene Queiroz (2017), fala que
seu pai morreu e ela, como filha mais velha, precisava trabalhar para manter a mãe e o irmão
mais novo. Foi ser professora. E quando quis casar com o namorado, a família dele não permitiu,
justificando que mulher que trabalhava e tinha independência financeira não era mulher
adequada para casar. Reafirmando essa posição, apresentamos outras mulheres, para que se
mostre que não se tratava de uma fala isolada. Além de Celene, citamos também Naísa e Lalá.
Assim, as informações se tornam ações no roteiro:

SEQ. 27 - INT. CASA CELENE QUEIROZ - DIA


Penteadeira com perfumes, escovas de cabelos, esculturas de porcelana no estilo rococó. Fivelas,

13
Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/assets/downloads/relatorio_I.pdf. Acesso em: 16
abr. 2019.
53

grampos para cabelos, colares, produtos de maquiagem. Na parede em cima da penteadeira, três
fotografias de Celene feitas por Telma.

ANA (V.O.)
A Celene é professora, seu pai morreu jovem e ela precisou trabalhar cedo para sustentar a
mãe e o irmão. Teve um namorado e estavam apaixonados, e planejaram se casar. Mas foi aí
que a família do rapaz preferiu que ele casasse com uma moça que não trabalhasse fora de
casa. E Celene não casou mais.

Figura 12 – Print screen de uma tela de computador com


imagem da pesquisa para o roteiro: Todas as Vidas
de Telma. Depoimento de Celene Queiroz. Ela nos
explica como eram feitas as fotos no estúdio do
Foto Saraiva, repetindo o gesto de como Telma
posicionava seu rosto, de acordo com a luz e a
posição da câmera fotográfica.
Fonte: Fotografia feita pela autora.

SEQ. 28 - INT. A VIRGEM LALÁ - DIA


Uma fotografia de Lalá jovem e duas fotografias da formatura de Lalá feitas por Telma.

ANA (V.O.)
Lalá por ser boa em cálculos, logo se tornou contadora – essa era a outra opção para quem
não queria ser professora. Ela sempre teve o seu dinheiro, e acha que foi isso que assustou os
homens de sua juventude. Me disse que ainda é virgem.
54

Figura 13 – Lalá fotografada por Telma Saraiva no Foto Saraiva


Fotos da formatura em contabilidade. Lalá nos seus 21 anos. Imagens da pesquisa para o
roteiro Todas as Vidas de Telma. Fonte: Acervo Familiar Lalá.

Em contraposição aos dois depoimentos anteriormente referidos, há o de Bastinha Job,


que, professora e cordelista, casou-se. No entanto, ela conta o caso de uma cordelista mais velha
do que ela, que não pôde assinar seus cordéis por ser mulher, mantendo seu registro intelectual
de criação literária no nome do marido. Não é de todo inoportuno, em comparação lembrarmos,
aqui, de um fato público relacionado à poeta brasileira Cora Coralina (1889-1985). Segundo
sua biografia, a escritora foi convidada a participar da Semana de Arte Moderna de São Paulo,
em 1922, um marco fundante do modernismo brasileiro, porém o marido não a deixou ir. Só
após a morte dele, Coralina, já aos 76 anos, teve seu primeiro livro publicado.

SEQ. 24. - INT. BASTINHA - DIA


Fotografia de Bastinha Job e o marido, feita por Telma.

ANA (V.O.)
Bastinha Job fez sua foto logo depois da cerimônia do casamento. Foi professora dos filhos de
Telma, que lhe deu essa foto de presente. Me contou que foi só porque Patativa do Assaré, o
grande poeta, lhe disse que ela escrevia muito bem, que ela assumiu ser cordelista. Que era
muito difícil naquela época ser uma mulher cordelista, me disse também que a primeira
cordelista, Maria Batista Pimentel, não pôde assinar com seu próprio nome, só no nome do
marido.
55

Figura 14 – Bastinha Job e Branco


Fotografia feita por Telma Saraiva Imagem da pesquisa para o roteiro. Bastinha
conta-nos que era professora dos filhos de Telma, e no dia de seu
casamento, estava com pouco dinheiro, além disso, não tinha se planejado
para fazer o registro fotográfico, mas alguém avisou a Telma de seu
casamento, e ela disse que a trouxesse ao estúdio, pois ela faria a foto.
Dias depois, ao ir apanhar a fotografia, Telma a deu de presente.
Fonte: Acervo Familiar Bastinha Job.

É nesse contexto que Telma se destaca com seu Foto Saraiva, estúdio profissional
montado dentro de casa, que, de certa forma, não deixava de ser o espaço tradicionalmente
circunscrito ao feminino. Destacamos, ainda, que esse aspecto surgiu, também, porque se ouvia
repetidamente, nos depoimentos, que Telma não saía de casa, que “trabalhava de segunda a
segunda”.
No começo, o que era uma informação sem importância, relativa ao rigor profissional
ou, talvez, à constante demanda pelos seus trabalhos fotográficos, depois passou a ser elemento
de estranhamento. Foi então que começamos a perguntar se as mulheres costumavam sair de
casa sozinhas. Celene Queiroz disse-nos que as mulheres só saíam acompanhadas, com exceção
dos trajetos ao trabalho, diurnos. E Bastinha Job, que se vê frustrada por não ter sido jornalista
– durante sua juventude, não havia a formação superior na região (somente no ano de 2009 foi
56

criado o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, que se tornou, em 2013,


Universidade Federal do Cariri) –, diz que deixou de viajar para a França, com bolsa de estudo,
porque precisaria ir sozinha. E disse ainda “que mulher não viajava só, que tinha muito medo”.
Depoimentos que reforçam a ideia de que o espaço público era feito para os homens, e que as
mulheres deveriam temer e se manter dependentes.
Telma, nos primeiros anos de seu casamento, resolveu montar seu estúdio, pois o marido,
Edilson – fotógrafo que se tornara assistente de Júlio Saraiva, seu pai – não trazia recursos
financeiros suficientes para manter a casa. Em depoimento, a filha, Edilma Saraiva, corrobora
que Telma ganhou muito dinheiro, chegando mesmo, por algumas vezes, a emprestar dinheiro
ao seu pai, Júlio Saraiva. E foi ela quem manteve a casa e possibilitou que todos os filhos
estudassem, além de constar em testamento a partilha na herança de seu relevante patrimônio
artístico e financeiro. Os filhos, atualmente (2021), decidem sobre a possibilidade de tornar a
casa um memorial, como era o desejo de Telma, relatado no testamento. Essas informações são
citadas aqui porque foram colocadas no enredo.

SEQ. 43 - EXT. FÓRUM - DIA


Alguém anda pelas calçadas quadriculadas de mosaicos antigos entrecortados com os mosaicos
atuais. Fachadas de casas antigas com placas comerciais atuais.
Fachada do Fórum. Movimento de pedestres.

ANA (V.O.)
Edilma trouxe o testamento escrito por Telma e leu na audiência com o juiz (leitura do
testamento por Edilma). Ela pede que a casa seja um memorial de seu trabalho artístico e eu
estou de acordo. Peço a Edilma para entrar no Estúdio de Telma, ela me entrega a chave.

Esses interesses pela vida das mulheres chamam a atenção de Ana sobre sua vida
profissional, como não repetir hábitos e convenções que limitam o espaço de atuação da mulher,
agora através de Ana, nas primeiras décadas do século XXI. Quando nos aproximamos do
centenário de nascimento de Telma (1928), Ana volta ao Crato, em 2021 (ano de filmagem do
roteiro), como a terceira geração de mulheres da família, e na correlação com essas histórias,
vai ampliando o conhecimento de si. Com isso, queremos dizer que os elementos de gênero no
constructo da identidade de Ana e Telma são fundamentais para entendermos as personagens e
a trama.
57

Sobre conteúdo e forma, uma fala conclusiva de Abbas Kiarostami:

Quase sempre, quando falamos de filmes, não é deles que falamos, e sim dos andaimes
interpretativos que erguemos em volta deles. Quando a obra é narrativa ou expositiva,
a nossa ilusão até pode ter algum fundamento, mas em geral nosso discurso se refere
ao enredo e às suas possíveis significações psicológicas, morais, sociais ou outras.
(KIAROSTAMI in BERNARDET, 2004, p. 16-17).

3.4 O acaso e o previsível

O acaso, em seu sentido de imprevisto, que mudou o curso do primeiro projeto, é


elemento essencial para esta tese. Pensamos a tese como o roteiro, e o acaso como o detonante.
Segundo Syd Field (2001), detonante é o movimento em direção ao enfrentamento do conflito,
que permite o debate, o momento em que surgem as perguntas e em que definimos a resposta
da personagem. Analisemos como o detonante, que nos leva à tese, emergirá com a mesma
força no enredo de Ana, bem como analisemos a natureza do conflito para o documentário e a
ficção.
A morte da protagonista, evento que rompe definitivamente a continuidade anterior, é o
obstáculo irreversível que modificou a estrutura narrativa. Nas discussões de linguagem, esse
obstáculo entra como um constituinte dramatúrgico que diferencia o documentário da ficção.
Temido por muitos, festejado por outros, está sempre inserido no planejamento das etapas do
processo de realização.
Enquanto alguns documentaristas ampliam seus efeitos, incorporando-o como elemento
da manufatura no processo, os diretores de ficção costumam circunscrever seu campo de ação.
Ingmar Bergman (2013, p. 58) traz afirmativa que exemplifica: “Nossa profissão se torna muito
estranha, quando a realidade invade e massacra a ilusão de nossas brincadeiras”.
Nacache (2012, p. 30) expõe a mudança das regras no mainstream hollywoodiano,
acerca da figura dramatúrgica que trabalha com o improviso nas comédias: “Desde o início que
o gag é um ato da escrita, e confirmar-se-á como tal; após o jovial ambiente de improvisação
dos inícios do burlesco, os grandes filmes cômicos mudos transformam-se em máquinas de
precisão que não toleram o acaso”.
Cabe destacar que o improviso é calculado como alteração dos custos financeiros, mas
dentro de uma lógica predominante de produção industrial, quando tudo tem que ficar sob o
controle do orçamento. O que resulta em um modelo de escritura hegemônico, em relação ao
ritmo da montagem, segundo afirma Nacache:
58

O culto da montagem rápida, além das suas causas econômicas, parece ter pretendido
reduzir a nada as possibilidades de o espectador se aborrecer. Para além deste objetivo
oficial, compreende-se bem, retrospectivamente, que essas opções exprimiam numa
forma condensada toda a filosofia da narrativa hollywoodesca. Suprimir todos os
elementos inúteis à ação ou à psicologia, reduzir ao mínimo, através de uma
montagem rápida, o tempo de reação do espectador, significava interditar qualquer
forma de intrusão do real na ficção e assegurar uma fluidez hipnotizadora da narrativa,
única garantia de uma adesão total do espectador. (NACACHE, 2012, p. 44).

De outro modo, Jorgen Leth, poeta e realizador, examina o acaso como expressão da
realidade e trabalho do documentarista (in Labaki, 2015, p. 161): “Assim como William
Burroughs, considero o acaso uma grande inspiração. A ele permito certa margem de manobra
em meus filmes, durante as filmagens, e às vezes durante a montagem também. De várias
maneiras, convido o acaso a participar do jogo”.
Programar antecipadamente e seguir o previsto, decerto nos colocam em posição de
maior segurança, no entanto, quando não temos tudo sob controle, faz-se necessária uma
atenção diferente, uma destreza para o casual. Não por escolha, o acaso foi primordial no enredo
de Telma, o que nos fez encontrar o processo de trabalho de documentaristas que lidam de
forma brilhante com o acaso em sua dramaturgia, fazendo dele o próprio estado de criação.
Como exemplo, citamos o autor do filme Tishe! (2003), Viktor Kossakovsky (in Labaki,
2015, p. 247): “Busque não obrigar as pessoas a repetir uma ação ou falas. A vida é impossível
de repetir e imprevisível. [...] Lembre-se de que os melhores planos capturam momentos da
vida impossíveis de repetir, filmados de uma forma impossível de repetir”.
Outra referência é o documentário Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo
Coutinho, que teve sua formação no jornalismo. Ele comenta:

Filmar sempre o acontecimento único, que nunca houve antes e nunca haverá depois.
Mesmo que seja provocado pela câmera. Mesmo que não seja verdade. Sem esse
sentimento de urgência em relação ao que estará perdido, se não for filmado
simultaneamente, para que fazer cinema, atividade no fim das contas lenta, cansativa
e pouco rentável? Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceita, antes,
todo o existente, pelo simples fato de existir. (COUTINHO in LABAKI, 2015, p. 230).

Para contribuir na maneira da abordagem com os intervenientes através das entrevistas,


o que muito nos ajuda, Coutinho fala sobre o cinema de conversação, sua designação:

Escolhi ser alimentado pela fala-olhar de acontecimentos e pessoas singulares,


mergulhadas na contingência da vida. Eliminei, com isso, até onde fosse possível, o
universo das ideias gerais [...]. O improviso, o acaso, a relação amigável, às vezes
conflituosa, entre os conversadores dispostos, em tese, dos dois lados da câmera –
esse é o alimento essencial do documentário que procuro fazer. O que não exclui, é
claro, uma ideia central, prévia à filmagem, que preside a construção do filme, mas
59

que não passa de uma hipótese de trabalho a ser testada na prática desses sucessivos
encontros com personagens de carne e osso. (COUTINHO in LABAKI, 2015, p. 226).

Ainda nesse processo, Coutinho (in Labaki, 2015, p. 226) expõe-nos como lida com o
roteiro: “Nesse sentido, nunca fiz roteiros de documentário. Fiz pesquisas, leituras, recolhi
dados. E disso tudo recolhi ‘roteiros’ de viagens, de encontros, de perguntas, principalmente.
Portanto, notas de trabalho, e privadas, para uso próprio”.
Procurando eixos aproximados nos processos dos realizadores, que lidam com a questão
do roteiro, e que permita a entrada do improviso, voltamos às afirmações de Ingmar Bergman,
cineasta que também foi diretor de teatro:

Um dia surpreendi Torsten Hammarén folheando meu caderno de direção. Não havia
anotações ou desenhos das cenas. “Quer dizer que você não desenha suas cenas”, disse
ele, sarcástico. “Não, prefiro criar diretamente na cena, junto com os atores”, disse eu.
“Vai ser interessante ver até quando você vai ter nervos para isso”, respondeu
Hammarén, e fechou o caderno. Logo seu vaticínio se realizou. Preparo-me em
solidão absoluta, dedico-me a desenhar cada cena. Quando vou para o ensaio, cada
momento da apresentação deve estar pronto. Minhas instruções devem ser claras,
aplicáveis e de preferência estimulantes. Só quem está preparado tem possibilidade
de improvisar. (BERGMAN, 2013, p. 165).

Também nesse campo, Jacques Aumont acrescenta reflexão sobre encenação e


montagem, na ficção, o que é importante para nos depararmos com os pontos de encontro.

Passou a ser raro ensaiar antes de filmar – o que não significa que a improvisação
reine nos locais de filmagem, mas que os cineastas já não desejam construir uma
encenação nem desenvolvê-la segundo o modelo antigo; encenar, atualmente – num
cinema em que a montagem tem um papel cada vez mais importante e em que a
rodagem em estúdio não é obrigatória –, é, na maioria dos casos, reagir ao encontro
entre atores, um cenário e uma situação dramática. É ter aprendido a utilizar o acaso.
(AUMONT, 2008, p. 173).

No filme Un passeport Hongrois (2001), de Sandra Kogut, estudado por Jean-Claude


Bernardet, vemos que o acaso é desejado para intensificar um sentido do real. Kogut relata:

Não é por não sabermos onde o filme vai dar que as coisas são menos construídas. Os
acasos dão sempre muito trabalho; porque é preciso criar todas as condições para eles
existirem. Durante a filmagem, eu estou o tempo todo pensando na montagem,
escrevendo o filme na minha cabeça; juntando, separando, preparando. (KOGUT in
MOURÃO e LABAKI (orgs.), 2005, p. 146).

No documentário de busca, analisado por Jean-Claude Bernardet por meio do processo


de Kogut, há fundamentalmente o realizador como personagem dentro da narrativa. Tal
característica é percebida tanto em Un passeport Hongrois, como em 33 (2002), de Kiko
Goifman. Para Bernardet, ambos os filmes nascem de projeto bastante pessoal de seus
60

realizadores, o que se torna o ponto de partida.

Portanto, são projetos que partem de um alvo bastante preciso, bastante determinado,
mas os cineastas não sabem se esse alvo será ou não atingido e não sabem de que
forma será atingido. Portanto, a filmagem tende a se tornar a documentação do
processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não
há uma pesquisa prévia; a pesquisa, que frequentemente no documentário é anterior à
filmagem, é a própria filmagem. (BERNARDET in MOURÃO e LABAKI (orgs.),
2005, p. 210).

Após a realização do primeiro roteiro sobre Telma, surgiu a necessidade de se recolocar


o objetivo e transformá-lo em processo. É nesse sentido que o conceito de busca nos parece útil,
pois define um certo momento do processo de criação. A morte de Telma criou um vácuo que
paralisou o processo. A partir disso, foi elaborado o segundo roteiro, quando procuramos
soluções para suprir a sua ausência, criando a personagem ficcional-documentarista. Definimos
o campo desse processo de criação apontando para as intenções de uma escrita pessoal, em que
a realizadora entra como uma peça articuladora no enredo.
Sobre essas novas práticas processuais no cinema contemporâneo, Di Tella cita o
documentarista Nick Broomfield:

Nos últimos anos, Broomfield teima em mostrar cada dia mais o que os outros
documentaristas escondem, e isso quer dizer, basicamente, os nossos fracassos. [...]
Sua atuação nos mostra que ele quer fazer um documentário, seguindo o conceito
tradicional de prestar contas, de um modo transparente, a partir de uma série de fatos
reais. [...] A verdade do documentário não é outra coisa senão o resultado dessas
negociações. (DI TELLA in MOURÃO e LABAKI, (orgs.), 2005, p. 112-113).

Embora o roteiro de Todas as vidas de Telma tenha uma história construída com início,
meio e fim, com narração pré-determinada, aos moldes da ficção, com os personagens
escolhidos e parte das imagens pré-definidas, construímos uma linha de ação direcionada, com
o intuito de termos um guia para sair à viagem. O curso de toda viagem é planejado (ou
imaginado previamente), mas ele só se concretiza ao fazermos a viagem. É na própria
experiência que devemos estar preparados para permitir o improviso e o acaso.
Permitindo mais reflexões que cruzam campos artísticos e a relação com o acaso, o
artista Francis Bacon, em seus escritos biográficos, cita sua predileção pelos filmes de
Eisenstein e diz que foi o close-up da mulher a gritar no filme O encouraçado Potemkin, que o
influenciou seu estudo no retrato do Papa Inocêncio X:

No meu caso, toda a pintura é casual – e quanto mais envelheço, mais assim é.
Antevejo-a na minha cabeça, antevejo-a e, no entanto, é raro sair do modo que a vi. É
transformada pela pintura real. Uso pincéis muito grandes e, devido à maneira como
trabalho, na realidade, muitas vezes, não sei o que a tinta vai fazer, e faz muitas coisas
61

que são muito melhores do que as que eu conseguiria fazer. É um acaso? Talvez se
possa dizer que não é um acaso, porque se torna um processo seletivo em que
escolhemos preservar parte deste acidente. É claro que se tenta manter a vitalidade do
acidente e preservar uma continuidade. (BACON, 1999, p. 332).

Permitam-nos estabelecer relação entre uma ideia de Bacon com algo que podemos
encontrar, de certa maneira, nos diversos autorretratos de Telma. Bacon pintou, frequentemente,
trípticos e séries de variações sobre um tema. Ele mesmo explicou a razão, dizendo:

[...] Nas séries, uma pintura reflete-se interminavelmente na outra e, por vezes, fica
melhor em série do que separada porque, infelizmente, ainda nunca consegui fazer
uma imagem que fosse o somatório de todas as outras. Talvez seja um fenômeno típico
do nosso perturbado século – em que o todo desapareceu de vista – o fato de a
substância da obra de um artista já não poder ser destilada numa única obra, mas
apenas revelada através de uma série de obras. (BACON, 1999, p. 332).

Essa ideia de conjunto para a potência interpretativa de uma visão artística encontra
correspondência no trabalho seriado de Telma, relevando-se aqui o vigor expressivo de sua
obra, tanto na produção de estúdio, como, particularmente, nos 24 autorretratos.
Telma produziu seu trabalho a partir de uma tradição de representação da beleza, do
equilíbrio e das emoções, reelaborando, dessa forma, mitos antigos, segundo seu tempo. Bacon
(1999, p. 133), que trabalhava se reapropriando de imagens acadêmicas consagradas, elucida:
“Não existem mitos novos, um artista tem de interpretar continuamente os mitos antigos –
independentemente de qualquer religiosidade tradicional”. E Jacques Aumont acrescenta
(2008, p. 167): “O repertório das possibilidades não é ilimitado, mas é bastante vasto. Ideias
antigas, abandonadas ou aparentemente esgotadas podem ser recuperadas, reatualizadas e até
modificadas para lhes mudar o valor estruturante”.
62

4 CINEMA HÍBRIDO: DOCUFICÇÃO

Eu tinha uma avó que, sentada no banco traseiro do


carro, dizia: “Olha lá, a árvore, o morro [...]”. No meu
entender, naquele momento, ela me apontava uma
imagem inesperada no meio de milhões de ângulos
diferentes, e se regozijava por isso. Ela estava
fazendo pintura mental.
Abbas Kiarostami

Neste capítulo, investigaremos casos empíricos que nos referencie para o exercício da
docuficção, partindo da história sobre o cinema. O documentarista Silvio Da-Rin (2004, p. 41)
cita que “entre 1903 e 1904, Edwin Porter realizou para o catálogo Edison alguns filmes
híbridos, que mesclavam imagens típicas de atualidades e cenas dirigidas com atores”. Embora
sem acesso ao material fílmico, há na descrição da experiência apontamentos importantes para
nosso apoio:

Ao descrever essas experiências, Charles Musser sublinha que a flutuação entre os


dois gêneros remete a um lançamento anterior de Edison e Porter, The Life of an
American Fireman (1903), que era oferecido aos exibidores com duas diferentes
descrições: como reencenação documental ou como filme de enredo. Durante a
projeção, o exibidor podia enfatizar um aspecto ou outro. Segundo Musser, “para
serem corretamente interpretados, estes filmes de transição devem ser entendidos
dentro do quadro dos filmes de viagem”. (DA-RIN, 2004, p. 42).

Observamos a dificuldade na definição do gênero, quando a película é denominada ora


reencenação documental, ora filme de enredo. Outro aspecto é que esses filmes são entendidos
como filmes de viagem. Portanto, é-nos favorável a escolha da viagem como recurso narrativo
da docuficção.
Podemos, também, procurar equivalências na história do teatro, com as tragicomédias,
unindo características aparentemente díspares, o que produz um estranhamento aos
acontecimentos, pois gera a dúvida estabelecida pela fratura da convenção estética:

A mistura de gêneros, própria do Renascimento inglês, foi, também, experimentada


pelos isabelinos, cujas tragédias e comédias mantiveram, contudo, uma maior
separação irônica e realista. A Tempestade tem muito de tragicomédia, mas a ironia e
a comicidade das personagens, a profundidade da exploração filosófica, lhes conferem
maior valor. O mesmo se pode dizer de muitas outras grandes comédias de
Shakespeare e isabelinas, nas quais o cômico se mistura com o trágico, como por outra
parte ocorre no cinema moderno. O cômico de O Rei Lear, com a loucura do rei caído
em desgraça pela traição de suas filhas, às quais, por afeto, havia presenteado todo
seu patrimônio, proporcionava o alívio cômico ao público, fazendo ressaltar, como
pelo efeito do chiaroscuro, a tragédia pessoal de Lear e a nacional da Inglaterra
63

maltrapilha, por causa da guerra civil. (WIKIPÉDIA, 2019).14

Outro ponto, oriundo da pesquisa dramatúrgica, liga-se à maneira como utilizamos o


recurso do espelhamento de um personagem nos outros: Ana procura os filmes a que Telma
assistia, repete os gestos de Telma, assiste aos filmes Gilda e A Condessa Descalça. Testa, para
saber se consegue chegar a algum entendimento, procurando imitar, uma imitação reflexiva,
seguindo os seus rastros até que apareça a identificação de Ana à Telma, e uma ideia do
feminino.

Que o teatro isabelino era um “teatro aberto”, não somente no sentido literal do termo,
parece demonstrado também pelo sentido da autoironia dos atores e dos dramaturgos
isabelinos. Para essa classe de atores, o dramaturgo isabelino inventa o teatro dentro
do teatro. Viu-se a mascarada em A Tempestade, mas o exemplo mais emblemático é
o de Hamlet, no qual o jovem herdeiro ao trono da Dinamarca contrata um grupo de
atores itinerantes, para representar ante os olhos de Claudio, do que suspeita ter
assassinado seu pai, um drama que reconstrói o suposto assassinato. Ao final, Claudio
se levanta, desgostoso e aterrorizado, deixando a corte. Por isso o jovem Hamlet se
convence da culpa (até então sem provas) de seu padrasto, tramando seu assassinato.
Pode-se encontrar destes dentro do teatro isabelino, com êxito semelhante ao do
“cinema dentro do cinema”. (WIKIPÉDIA, 2019).

De certa forma, a proposta de trabalhar a ideia da história dentro de outra história


promove uma relação de correspondência entre as características das personagens. Ao mesmo
tempo, a história de Ana não é a da documentarista, nem a de Telma. Desse modo, há
identificação, mas também afastamento. A personagem ficcional introduzida na narrativa
permite essa ambiguidade em relação à figura da documentarista.
Karim Aïnouz e Marcelo Gomes pertencem à geração de cineastas contemporâneos
brasileiros que trabalham com cinema narrativo de ficção e de documentário. Juntos,
escreveram o roteiro de Madame Satã (2002), codirigiram Sertão de acrílico azul piscina (2004)
e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). De suas realizações, ativemo-nos à maneira
que trabalharam no filme Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), especialmente a
relação com o ambiente geográfico e cultural do sertão nordestino, o mesmo por onde se passa
Todas as vidas de Telma. Karim nasceu em Fortaleza, capital do Ceará, e Gomes nasceu em
Recife, capital de Pernambuco, ambas no litoral do Nordeste brasileiro, com histórias de
desenvolvimento econômico ligadas às tradições do sertão. Portanto, vemos nessa produção
uma discussão sobre tradição e modernidade, argumento que também nos interessa.
Viajo utiliza um personagem ficcional, o geólogo José Renato, protagonista e narrador,

14
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_isabelino. Acesso em 11 nov. 2019.
64

uma voz off que nos leva ao ambiente documental do sertão. Gomes relata o processo de criação,
em entrevista veiculada na internet (2016)15:

Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) adota a emoção como princípio de
filmagem e montagem, de modo a manter no corte final planos embaçados e tremidos,
contaminados pelos sentimentos do momento. O projeto era registrar a imagem de
feiras do sertão, mas, durante as filmagens, essa ideia deu lugar a escolhas mais
subjetivas: “No terceiro dia, decidimos que não cumpriríamos o plano [...]. Filmamos
feiras, mas se existia alguma coisa que nos emocionasse, a gente parava e filmava e
passava o dia. Como no encontro com a Pati. [...] Não existia um roteiro. Só um desejo
de se perder através de emoções”. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2016).

Com base no procedimento de Gomes – das escolhas subjetivas e movidas pela emoção
–, pesquisamos algumas sequências, como imagens temas que inspirassem um modo para a
subjetividade de Ana à busca por Telma. Selecionamos trechos de filmes de Jonas Mekas,
Marcelo Gomes, Karim Aïnouz, Chantal Akerman, Jean Rouch, Agnès Varda e Chris Marker.
O geólogo Zé Renato está no carro pela estrada, em viagem a trabalho, sozinho, pelo
interior do Nordeste. Observa os ambientes, envolvido pelos sentimentos recentes do término
de sua relação amorosa. Dentre os muitos lugares por onde passa, para em uma casa de
agricultores. Casa modesta. A câmera, em um plano de conjunto, delimita a parede do oratório
da sala da casa, com o casal em uma pose frontal aguardando tirarem sua fotografia. Eles
observam Zé Renato e, por consequência, observam-nos, já que situados no contracampo. Na
narração off do protagonista, ele aguarda o senhor vir para a frente do quadro, para poder “fixá-
los” juntos, pois nunca se separaram. O tom é de melancolia.

Figura 15 – Imagens do filme: “Viajo porque preciso, volto porque te amo”. Seu Nino e dona
Perpétua serão os primeiros desapropriados. Eles estão casados há mais de 50 anos.
Nunca tiveram outra casa, nunca tiveram uma briga, nunca dormiram uma noite longe
um do outro. Seu Nino saiu para desligar o rádio e eu pedi para ele voltar. Não quis
filmá-los separados (Gomes, Aïnouz, 2015).
Fonte: http://www.cineset.com.br/viajo-porque-preciso-volto-porque-te-amo-de-karim-ainouz/
https://wsimag.com/pt/espetaculos/19739-viajo-porque-preciso-volto-porque-te-amo
Acesso em: 20 jun. 2019

15
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa13948/marcelo-gomes. Acesso em: 20 jun. 2019.
65

A câmera na mão enquadra um primeiro plano de uma senhora idosa, que nos olha
fixamente, rosto envolvido por lenço na cabeça, ornamento das antigas camponesas. A câmera
em sobressaltos segue a pequena senhora que, em constante mobilidade, prepara a refeição,
apanha lenha para o fogão, cuida dos animais domésticos e limpa a casa. Seu semblante
demonstra uma discreta satisfação e, ao mesmo tempo, um desconforto, por estar no centro das
atenções. Jonas Mekas registra seu reencontro com a família depois de 25 anos de exílio de sua
terra natal, a Lituânia. É uma câmera extensão do corpo, que inscreve, pelas imagens, suas
intensas emoções – ampliadas pela trilha musical e narração em primeira pessoa. Assim, o
vemos através de seu diário afetivo.

Figura 16 Imagens do filme: Reminiscências de uma Viagem a Lituânia.


Fonte: http://www.forumdoc.org.br/movie/reminiscences-of-a-journey-to-lithuania/
https://www.caimanediciones.es/reminiscencias-mekas/
https://mubi.com/pt/films/reminiscences-of-a-journey-to-lithuania.
Acesso em: 20 jun. 2019

Robinson é um jovem africano e demonstra uma vitalidade contagiante, perambula pela


cidade, procura emprego, casa, amigos e espera encontrar uma jovem com quem possa se casar.
Com ele, por aonde vai, está Jean Rouch, que o registra com sua câmera móvel. Robinson é a
extensão de Rouch. Planos médios intercalados com planos em detalhe nos aproximam do
protagonista e de sua saga. Percorremos sua façanha em conseguir emprego e um ambiente de
proteção. O relato em tom aventureiro mostra-se contraditório em relação às imagens do
cenário, que são de aparente abandono social. Mas Robinson tem a presença do registro, o que
diminui a sensação de isolamento. É um herói aventureiro em seu próprio território. A ilusão
de milhões de olhos por trás da câmera, que faz daquela vida objeto de observação e aventura,
diminui o fosso trágico do enredo de Robinson, na sua provável incapacidade de suplantar seus
conflitos reais, pois ele está localizado na esfera tênue entre dois mundos, o do possível da
ficção e o do peso de sua realidade social.
66

Figura 17 Imagens do filme (still): Moi, um Noir.


Fonte: https://m.cia.edu/cinematheque/film-schedule/2018/02/moi-un-noir-i-a-negro
https://br.pinterest.com/mlapierre3549/jean-rouch/
https://docuseek2.com/wp/jean-rouch-six-films/.
Acesso em: 20 jun. 2019

Plano médio delimita galhos da copa de árvore envolvidos por forte ventania. O
ambiente é desértico, a árvore é o único vegetal que vemos em primeiro plano, situada à frente
da vasta paisagem de dunas arenosas que se estende à linha do horizonte a se perder de vista.
Provavelmente na região do Oriente Médio. O som ambiente, marcado pelo forte vento, amplia
a capacidade de resistir da árvore, que, isolada, verga na direção dos ventos. A paisagem que
inicia a história é a síntese das sensações da protagonista-cineasta, Chantal Akerman, e sua mãe,
no curso final de suas vidas. Durante o tempo fílmico, sabemos da morte da mãe. Akerman
falece um ano depois.

Figura 18: Imagens do filme: No Home Movie.


Fonte: https://mubi.com/notebook/posts/chantal-akerman-discusses-no-home-movie
http://cinema-scope.com/columns/filmart-we-cant-go-home-again-chantal-akermans-no-home-
movie/
https://www.tribecafilm.com/stories/chantal-akerman-no-home-movie-documentary-review
https://www.ybca.org/whats-on/no-home-movie
Acesso em: 20 jun. 2019

A metáfora com o ambiente geográfico nos leva à ideia de Chris Marker acerca da
memória, quando afirma: “Uma abordagem mais modesta, e talvez mais proveitosa, poderia ser
considerar os fragmentos da memória, em termos de geografia. Em cada vida, encontramos
continentes, ilhas, desertos, pântanos, territórios superpovoados e terra incognitae” 16 . Essa

16
Disponível em: https://chrismarker.org/chris-marker/immemory-by-chris-marker/. Acesso em: 10 jul. 20
67

ideia aproxima-se de uma outra, de Kiarostami (in Bernardet, 2004, p. 95), quando se refere ao
Gosto de cereja: “o filme é uma espécie de geografia de minha vida interior”.
Para adensarmos essas experiências com as imagens fílmicas, acolhemos os estudos de
Catherine Russell, sobre autoetnobiografia, e de Sarah Yakhni, que se debruça sobre a
cinematografia de Agnès Varda, especialmente para tratar dos conceitos de encontro e acaso,
bem como da presença da cineasta em seus filmes, o que permite que, através da fabulação, a
ação documental adentre na ficção.

Figura 19: Visages, Villages (Agnès Varda e JR, 2017)


Os respigadores e a respigadora (Varda, 2000).
Fonte: https://www.gazetaonline.com.br/entretenimento/cultura/2019/02/-sempre-
luto-contra-a-estupidez--diz-agnes-varda-em-despedida-1014168006.html
http://mulhernocinema.com/listas/10-filmes-imperdiveis-para-conhecer-o-
cinema- de-agnes-varda/. Acesso em: 20 jun. 2019

Segundo Yakhni (2014, p. 95), o cinema realizado após a Segunda Guerra Mundial,
como uma reação mesmo à gravidade do estado de guerra e à crise civilizatória, baseia-se na
busca de construir formas estéticas distintas das referências clássicas dominantes. Exemplo
disso é o que fazem Jean Rouch, em Eu, um negro (1958), e Chris Marker, em Cartas da Sibéria
(1957), inventando novas relações entre narrador e ambiente fílmico. Chris Marker inicia o
filme com uma narração na primeira pessoa: “Eu vos escrevo de um país distante...”. Nesse
período, a Nouvelle Vague, importante movimento cultural que veiculou suas discussões em
textos publicados, vem ampliar o novo ideário experimental, a partir de, nas palavras de Yakhni
(2014, p. 95): “[...] novos procedimentos estilísticos, como uso criativo do off, explicitação da
figura do narrador, fragmentação da narrativa, trazendo para primeiro plano o seu caráter de
construção”.
Nesse contexto surge Agnès Varda, que, conforme aponta Yakhni (2014, p. 95),
apresenta uma filmografia caracterizada, majoritariamente, por utilizar como dispositivo
documental a narração off, associada a uma personagem fora de campo, criando inflexões
subjetivas “como o uso da primeira pessoa, o bom humor, o comprometimento com uma
68

opinião ou interpretação pessoal, com a afetividade”. Essa voz off, seguindo sua análise, “será
fundamental para criar novas estratégias de abordagem configuradas por narrativas que se
comportam ora como diário de viagem, como caderno de notas, ora como uma investigação ou
como um encontro”. (YAKHNI, 2014, p. 95).
Temos, para exemplificar a análise, o magistral filme Ulisses (Ulysse, 1982), no qual
Varda utiliza como dispositivo narrativo uma fotografia realizada por ela, em 1954, que retrata
uma vista de praia com uma cabra morta, um garoto que se chama Ulisses e um homem de
frente para o mar e de costas para quem observa a fotografia. A partir disso, ela resolve, depois
de 30 anos, procurar saber o que aconteceu com cada integrante da foto. Dessa maneira, leva-
nos a cada personagem, utilizando a fotografia para acionar a ação e gerar os questionamentos
sobre a memória e seus significados. É o que Yakhni destaca, como a figura do intercessor da
ação narrativa:

Varda busca seus intercessores nos personagens da foto, que, em suas fabulações a
respeito daquela imagem e suas memórias, vão constituir a narrativa do filme passo a
passo, encontro a encontro. Nesse sentido, o percurso da busca fornece a estrutura
mesma do filme. A cineasta também vai se colocar como intercessora de si mesma,
quando transcende a sua condição em direção a uma terceira pessoa que adentra a
narrativa no papel de fotógrafa que virou cineasta, personagem ligada às imagens e
suas possibilidades. (YAKHNI, 2014, p. 107).

De fato, e de forma semelhante, Ana, os autorretratos de Telma e as mulheres do Crato


mobilizam-se como intercessores. O conceito deleuziano de intercessor é retomado por Yakhni:

[...] uma necessidade do outro para sair de si mesmo, para passar do “eu” para o “eles”.
Os intercessores são necessários para a expressão, a criação são os intercessores. O
autor cita o exemplo do cineasta canadense Pierre Perrault, que busca intercessores
no interior de uma comunidade que, no flagrante delito de fabular, se constituiu como
povo. São essas potências do falso que vão constituir o verdadeiro, isso são os
intercessores. (YAKHNI, 2014, p. 107).

Trazemos também para este campo o conceito de autobiografia, nomeadamente a ideia


do artista como elaborador de si, enquanto personagem, que encontramos formulada por
Catherine Russell, na sua análise dos escritos de Walter Benjamin:

Ao longo de seus diversos escritos autobiográficos, surge um sentido do “eu”


completamente baseado na experiência e na observação. Walter Benjamin se
desenvolve como uma identidade socialmente construída, que se encontra em séries
69

permutantes de outros, na topografia das ruas da cidade e no detalhe da vida diária.


(RUSSELL, 2011, p. 1, tradução nossa).17

É também Russell quem nos define o sujeito que se constrói pelas experiências, e não
em uma essência predeterminante. Para nós, essa ideia é central e mobilizadora, pois fortalece
a ação da documentarista no processo fílmico. Por conseguinte, ela observa Walter Benjamin
no contexto da realidade social:

Teoria, filosofia e vida intelectual eram inseparáveis de sua própria experiência de


modernidade, e sua identidade como judeu-alemão impregna seus escritos em forma de
experiência, mais que essência. Susan Buck-Morss sugere que “Benjamin percebia sua
própria vida de maneira emblemática, como uma alegoria de realidade social, e sentia
profundamente que nenhum indivíduo poderia viver uma existência resolvida ou
afirmativa em um mundo social que não o fosse”. (RUSSELL, 2011, p. 1, tradução
nossa).18

Com os estudos da autobiografia, entendemos a realizadora enquanto intercessora de si


na ação dos acontecimentos, que percebe sua experiência, reflete, e se reelabora enquanto
personagem que é levada pela busca de conhecer os autorretratos de Telma e a
autorrepresentação do feminino. Assim, voltamos a Russell, para sua síntese:

Como gêneros literários, a autobiografia e a etnografia compartilham “um


compromisso com o real” e Michael Fisher argumenta que “a autobiografia étnica”
deve ser reconhecida como um modelo de etnografia pós-moderna (1986, p. 194-233).
A autobiografia é uma técnica de autorrepresentação que não possui uma forma fixa,
mas que está em constante modificação. Ele descreve a “autobiografia
contemporânea” como uma exploração das identidades fragmentadas e dispersas da
sociedade pluralista do final do século XX. Nesse contexto, a autobiografia étnica é
uma “arte de memória” que serve de proteção contra as tendências homogeneizadoras
da cultura industrial moderna. Por outra parte, a autobiografia se converteu em uma
poderosa ferramenta de crítica cultural, pondo em paralelo teorias pós-modernas de
textualidade e conhecimento. Fisher descreve as “táticas de escrita” da autoetnografia
assim: “as autobiografias étnicas contemporâneas tomam parte do ânimo do
metadiscurso, de enfocar a atenção em sua natureza linguística e fictícia e utilizar o

17
A lo largo de sus variados escritos autobiográficos, surge un sentido del “yo” completamente basado en la
experiencia y la observación. Walter Benjamin se desarrolla como una identidad construida socialmente, que se
encuentra en series cambiantes de otros, en la topografía de las calles de la ciudad y en el detalle de la vida
diaria. (RUSSELL, 2011, p. 1)
18
Teoría, filosofía y vida intelectual eran inseparables de su propia experiencia de modernidad, y su identidad
como judío alemán impregna sus escritos en forma de experiencia, más que de esencia. Susan Buck-Morss sugiere
que “Benjamin percibía su propia vida de manera emblemática, como una alegoría de la realidad social, y sentía
profundamente que ningún individuo podría vivir una existencia resuelta o afirmativa en un mundo social que no
lo era”. (RUSSELL, 2011, p. 1).
70

narrador como uma figura inscrita no texto, cuja manipulação chama a atenção às
estruturas de autoridade”. (RUSSELL, 2011, p. 1, tradução nossa).19

Ana volta à cidade da infância. Não pode, como Mekas, filmar o retorno à mãe, porque
essa, para ela, só existe em sua memória. Também o lugar não é mais o mesmo. Mas o presente
não é o lugar distópico, é o que precisa ser reconhecido novamente.

4.1 Drama, encenação, realidade

Abordaremos o drama pelos estudos de Martin Esslin, incluindo a encenação por


Jacques Aumont, para compreendermos a ficção e seus modos de produção da realidade. Por
essa via, estruturaremos as ações da personagem protagonista, em seu percurso da viagem (ação
documental) e o parentesco familiar (ação inventada). Pensando uma comparação, seria
Flaherty entrando no enredo como um parente na família de Nanook. O que isso significa, e o
que altera para o sentido da proposta em relação aos fatos?
Entendemos que, ao colocar a documentarista como personagem na trama, muda-se a
graduação da relação entre pesquisadora de artes e artista-documentada. Dessa forma, podemos
criar outras aproximações com o espectador, acrescentando à narrativa um drama comum entre
neta e avó (drama geracional), e esposa e marido (drama conjugal).
Segundo Esslin (1978), sobre a função e origem do drama, a necessidade de encenar os
acontecimentos está ligada ao nosso instinto lúdico, como uma das forças básicas da vida,
essencial à sobrevivência do ser humano enquanto espécie. Ele dá como exemplo o fato das
crianças, como todos os animais, para aprenderem os esquemas de comportamento de sua
espécie, fazerem-no por meio da brincadeira. De acordo com Esslin (1978, p. 22): “toda
atividade lúdica desse tipo é essencialmente dramática, porque consiste em mimese, em
imitação de situações da vida real e de esquemas de comportamento”. Assim, ao tempo que o

19
Como géneros literarios, la autobiografía y la etnografía comparten “un compromiso con lo real” y Michael
Fisher argumenta que “la autobiografía étnica” debe ser reconocida como un modelo de etnografía postmoderna
(1986, p. 194-233). La autobiografía es una técnica de auto-representación que no posee una forma fija, sino que
está en constante cambio. Él describe la “autobiografía contemporánea” como una exploración de las identidades
fragmentadas y dispersas de la sociedad pluralista de finales del siglo XX. En este contexto, la autobiografía étnica
es un “arte de la memoria” que sirve de protección contra las tendencias homogeneizadoras de la cultura industrial
moderna. Por otra parte, la autobiografía se ha convertido en una poderosa herramienta de crítica cultural, poniendo
en paralelo teorías postmodernas de textualidad y conocimiento. Fischer describe las “tácticas de escritura” de la
autoetnografía así: “Las autobiografías étnicas contemporáneas toman parte del ánimo del metadiscurso, de
enfocar la atención en su naturaleza lingüística y ficticia, de utilizar al narrador como una figura inscrita en el
texto, cuya manipulación llama la atención hacia estructuras de autoridade”. (RUSSELL, 2011, p. 1).
71

drama é uma atividade da natureza humana, é também uma forma de pensamento concreto,
pelo qual podemos elaborar reflexões a respeito, no que Esslin (1978, p. 24) afirma: “Trata-se
de uma forma de filosofar em termos não abstratos, mas concretos; no jargão contemporâneo
da filosofia, diríamos em termos existenciais”.
O drama se materializa no teatro, nos veículos de comunicação de massa – cinema, TV,
rádio –, e, atualmente, nos diversos formatos das mídias e jogos digitais na internet, todos
obedecendo, segundo Esslin (1978, p. 14), “aos mesmos princípios da psicologia da percepção
e da compreensão das quais se originam todas as técnicas da comunicação dramática”.
No entanto, o autor (1978, p. 15) alerta para o uso das imagens dramatúrgicas: “A força
de sua influência nos tempos atuais nos coloca frente aos desafios dos riscos de suas formas
insidiosas de manipulação subliminar de nossos conscientes; mas, também, com imensas
oportunidades criativas”. E reitera com otimismo:

Em nossa própria civilização, o drama, em suas formas de produção e consumo de


massa, inevitavelmente causará impacto maior e mais forte do que em qualquer outro
momento da história. É impossível prever as consequências a longo prazo dessa
imensa expansão do drama, como veículo de expressão e comunicação, porém não há
dúvida nenhuma de que, em última instância, ele trará contribuições e grandes
mudanças sociais. (ESSLIN, 1978, p. 115).

Ao mesmo tempo, Esslin (1978, p. 17) lança uma pergunta primordial: “Por que, por
exemplo, haveríamos de representar um incidente, em vez de apenas contar uma história a
respeito?”.

[...] Nas páginas do roteiro, esse pequeno diálogo transmite apenas uma pequena
fração do que a cena representada expressará. Isso ilustra a importância dos atores e
diretores na arte do drama. E indica também o fato de que um dramaturgo realmente
bom precisa de uma enorme habilidade para transmitir o clima dos gestos, do tom de
voz que deseja de seus atores, através dos diálogos que escreve. (ESSLIN, 1978, p.
18,19).

Mirando os aspectos do drama que favoreçam a docuficção, amparamo-nos em Esslin


quando destaca o tempo da ação, que acontece da mesma forma no documentário e no teatro,
pois ambos atuam no presente. Ele comenta:

E essa sua natureza concreta deriva do fato de que, enquanto qualquer forma narrativa
de comunicação tende a relatar acontecimentos que se deram no passado e já estão
agora terminados, a concretividade do drama acontece em um eterno presente do
indicativo; não então e lá, mas agora e aqui. (ESSLIN, 1978, p. 21).
72

O tempo que atualiza o encontro com Telma, apresenta-se pelo monólogo de Ana. Trata-
se de uma narração, que é uma mistura do relato feito ao marido, intercalado por conversas com
os intervenientes, e uma espécie de monólogo interior, misto de subjetividade inventada e
memória coletiva. Sobre a técnica moderna do monólogo, o autor menciona que:

[...] O romancista nos coloca dentro da mente de seu personagem e segue seus
pensamentos, à medida que ocorrem. Porém, o próprio termo monólogo, que vem do
drama, revela que o monólogo interior é, de fato, uma forma tão dramática quanto
narrativa. Monólogos interiores são, essencialmente, drama; e, portanto, podem ser
representados – como frequentemente o são – particularmente no rádio. (ESSLIN,
1978, p. 21).

A voz off, tradicionalmente ligada ao rádio, encontra correspondências dramatúrgicas


como também estéticas, pois foi o veículo midiático mais importante à época da juventude de
Telma, e ainda tão presente nas cidades médias (em número de habitantes) do Ceará. Indagamos
acerca da maneira de narrar, representação formal, mas também sobre a representação da
realidade, no contexto do documentário e da ficção: De que maneira o drama se diferencia do
real? E em que essa duplicidade permite ou contribui à nossa percepção dos eventos?

[...] O drama tem todas as qualidades do mundo real, das situações reais que
encontramos na vida, – porém com uma diferença fundamental: na vida, as situações
que se nos confrontam são reais; no teatro – ou nas outras formas de drama (rádio,
TV, cinema) – elas são apenas representação, faz-de-conta, jogo. Ora, a diferença
entre a realidade e o jogo dramático é a de que o que acontece na realidade é
irreversível, enquanto que em uma peça, que é um jogo, é possível começar-se tudo
de novo, da estaca zero. Uma peça é um simulacro da realidade. (ESSLIN, 1978, p.
21-22).

Assim, depreendemos o drama como um núcleo estrutural de ambos, documentário e


ficção. Sendo o drama um artifício da natureza humana para lidar com o real, voltamos à
questão da construção da dramaturgia com a pergunta sobre os eventos sociais, que não são
considerados, pelo senso comum, artifícios. Esslin nos esclarece:

Ambas são experiências coletivas, com o reforço triangular do feedback que há entre
celebrante e plateia e entre plateia e plateia. O homem, como um animal social, animal
incapaz de viver em isolamento, compelido a se tornar parte de uma tribo, um clã,
uma nação, é profundamente dependente de tais experiências coletivas. [...] E todo
ritual é basicamente dramático, simplesmente porque combina um espetáculo, algo a
ser visto ou ouvido, com uma plateia viva; basta pensar na eucaristia, ou em uma
coroação, ou em um funeral. (1978, p. 31).

O rito seria então esse drama social aceito sem artifícios. Pensando a interpretação da
realidade, que estrutura comum existe no rito e no drama?
73

O lado dramático do ritual manifesta-se no fato de todo ritual ter aspectos miméticos:
contém uma ação de natureza altamente simbólica e metafórica, seja na dança, por
meio da qual a tribo representa os movimentos de seu animal totêmico, seja no
compartilhar do pão e do vinho da eucaristia cristã [...]. (ESSLIN, 1978, p. 31).

Em função dos ritos, voltemos à questão do tempo da ação, sendo este posto em
Aristóteles e retomado por Esslin:

Este também é um aspecto verdadeiramente dramático do ritual: o drama, ao contrário


da poesia épica, é um eterno presente. Cada vez que se representa o Hamlet, Hamlet
está presente e experiencia a sequência dos eventos que lhe aconteceram antes como
se estes estivessem acontecendo pela primeira vez. O que é igualmente verdadeiro em
relação ao ritual. O ritual abole o tempo, por colocar sua congregação em contato com
eventos e conceitos que são eternos e, portanto, infinitamente repetíveis. E no ritual,
assim como no drama, o objetivo é um nível intensificado de conscientização, uma
percepção memorável da natureza da existência, uma renovação das forças do
indivíduo para enfrentar o mundo. Em termos dramáticos, catarse; em termos
religiosos, comunhão, esclarecimento, iluminação. (ESSLIN, 1978, p. 30).

Pretendemos aprofundar e questionar, com essas colocações, o sentido e a coerência em


utilizarmos a personagem ficcional, Ana, que atua pelo curso da documentarista. Um outro
aspecto foi colocado no enredo como solução para o enigma das imagens: isto é, as fotopinturas
de Telma ganham o sentido de ritual, o que será exposto na sequência final.
Assumimos que a caracterização das fotografias de Telma é feita pelo sentido do rito.
Trata-se, em nosso entender, de uma mistura de rito e de fantasia e é essa ambiguidade, colocada
como imagem, que revela sua condição de construção e maleabilidade para a mudança. Telma
fazia registros dos cerimoniais, os quais, com todo o seu peso de permanência, eram atos
distintivos socialmente, desde o custo financeiro e tecnológico envolvido, até o processo de
feitio da imagem. Da preparação do ambiente, indumentária, maquiagem, cabelos ornados, ao
clique único levado às etapas da ampliação, revelação, retoque e coloração.

SEQ. 64 - INT. TELMA FOTOS EMBARALHADAS - DIA


Estúdio de Telma iluminado por refletores. Em cima de uma mesa, uma mão feminina retira
fotografias dos sacos e ordena-as, classificando por tema, separando-as aos dois lados da mesa.
Do lado direito, coloca as fotos dos rituais: primeira comunhão, debutantes, casamento,
formatura, religiosos. Do lado esquerdo, põe fotos de Telma fantasiada de espanhola, grega,
índia, gueixa, até o preenchimento de toda a mesa.
Lentamente, começa a deslocar as fotos de seus lugares, trocando algumas delas de seus lados.
Pausadamente, as fotos são sobrepostas e se fundem umas nas outras, saindo da linha divisória,
74

criando camadas de imagens umas às outras, podendo ver religiosa – grega; debutante – índia;
casa de Telma/foto de Cristiano Mascaro – casa de Telma/empoeirada; noiva – Telma jovem;
homem de paletó – homem hippie; Telma gueixa – mulher formada; Telma índia – Telma no
estúdio cercada de refletores, e assim sucessivamente, formando um padrão de cores e formas
multicoloridas.

Mas existe uma tensão nessa defesa do poder da transformação, tendo em vista que nos
deparamos com a realidade, que, como colocou Esslin (1978), não deixa que os fatos se repitam
e que impõe limites ao nosso domínio. Ana volta a essa tensão contraditória entre a capacidade
de nos observarmos, bem como observarmos o mundo à nossa volta, e o poder de mudar, frente
às decisões únicas, em contextos restritos, mas com algum nível de escolha, na melhor das
hipóteses, ou em um contexto social precário, que não permite escolha alguma. Ana se utiliza
da memória afetiva, tendo o ambiente familiar para sua auto-observação. A vantagem do
artifício é que, como afirma Esslin (1978, p. 94), “um texto dramático transformado em
espetáculo contém um percentual muito mais alto da realidade”.
No trajeto da investigação entre verdade e fantasia, chegamos à seguinte questão: o que
encontramos por meio de uma história inventada, uma ficção?

Considerando-se libertados das consequências que poderão advir de qualquer coisa que
possa dizer ou fazer no mundo real, o inventor de estórias, de situações manipuladas,
fica livre para satisfazer suas mais desatinadas fantasias. No entanto, sob outro aspecto,
estas vão constituir-se verdades importantes. Elas nos falarão das fantasias de seus
autores, dos devaneios e visões que lhes ocorrem quando deixam soltas as rédeas da
imaginação. E tais devaneios e imaginações e fantasias são verdades que contêm
material precioso a respeito da vida interior de seus criadores, fornecendo-nos
profundos insights da personalidade e psicologia dos seres humanos que os produziram.
(ESSLIN, 1978, p. 117).

Ainda nesse percurso, qual a necessidade de nos comunicarmos por meio da fantasia?

Se acontece que este ou aquele indivíduo se entrega a devaneios e vidas fantasiosas


para aliviar suas tensões psicológicas particulares, então as criações de um artista têm
a capacidade de aliviar as tensões psicológicas de grande número de indivíduos – bem
como as de seus autores. É por isso que ler ficção ou assistir a um drama não
constituem, para muita gente, apenas atividades aprazíveis, mas sim uma verdadeira
necessidade. (ESSLIN, 1978, p. 117).

Telma fantasiou criando diversas Telmas. Não era cantora de rádio, mas produziu
imagem à maneira que se parecesse com uma. Não era atriz de cinema, porém elaborou
autorretrato caracterizada como uma. E o que fazia para si, fazia para os outros, de um desejo
75

seu, delineou o desejo do outro. Então, indagamos a Esslin, qual a relação entre experiência e
imaginação?
Um dramaturgo, ao imaginar seus personagens e o diálogo que trocam, precisa, se ele
realmente tem habilidade, penetrar nos sentimentos, nas reações, nos maneirismos
individuais do modo de falar de cada personagem. Por outro lado, cada personagem
que assim nasce da mente de seu criador, irá, de algum modo, corresponder e
representar certos aspectos e elementos da experiência pessoal e da estrutura
psicológica daquele dramaturgo; toda imaginação terá sempre de basear-se em pelo
menos um germe de experiência pessoal. (ESSLIN, 1978, p. 118).

Telma foi normalista (fez o Curso Normal para ser professora), teve um casamento (e
cinco filhos), e fazia esporadicamente breves viagens em visita aos parentes. Nunca morou fora
da cidade do Crato e saía pouco de casa, mantendo-se no trabalho diário do estúdio (o marido
fotógrafo, era quem fazia as fotos externas dos eventos sociais), ou seja, manteve-se
regularmente num ambiente familiar e profissional restrito. Com isso, chama-nos a atenção para
as vidas que projetava, modelos de mulheres tão diferentes dela, tanto na fisionomia como na
profissão. Mesmo sendo projeções de seus desejos, de imaginar a vida como nas aventuras do
cinema, de eternizar a beleza juvenil, é surpreendente a intensa variedade de suas imagens.
Esslin discorre sobre o drama, como verdade do inventor:

Tais considerações não são apenas interessantes, do ponto de vista da psicologia do


ato criativo de um dramaturgo. Elas são também extremamente relevantes para o
estudo da própria natureza do drama, pois nos mostram que toda ficção, inclusive o
drama, é verdadeira, se não nos fatos que concernem às circunstâncias exteriores
delineadas na trama e nos personagens, muito mais o é na penetração que podemos
ter, por intermédio dos personagens, na mente do autor e, desse modo, no modo pelo
qual ele pensa e sente. (ESSLIN, 1978, p. 119).

Esslin refere-se a Kafka e Joyce, que representaram o mundo pela fantasia e pelo sonho,
sendo que, mesmo que a matéria da criação necessite da experiência do autor, por si só ela não
basta, mas precisa estar em consonância, dramaturgicamente, com a força da expressão do
mundo interior do artista:

Strindberg e o dramaturgo alemão Frank Wedeking, que começaram ambos como


naturalistas, tomaram caminhos ligeiramente diferentes. Fiéis à resolução de
representar a experiência exatamente como ela é, em breve descobriram que retratar
o mundo exterior só conta metade da história; é preciso incluir também o modo pelo
qual o mundo é experimentado pelo indivíduo, o que significa falar de seu mundo
interior. (ESSLIN, 1978, p. 68).
76

A escolha pela mistura dos gêneros trouxe-nos o desafio de, ao mesmo tempo que
contamos a história de uma biografia, termos evidenciada sua forma híbrida, tornando tudo
mais complexo.
Sobre a mistura dos gêneros que Esslin (1978) identifica no teatro, sua fonte de análises,
ele nos diz que, por alterarmos as convenções – ou seja, trazer de outro lugar os códigos de
interpretação para uma ação modulada nos seus próprios códigos –, esses exercícios
dramatúrgicos exigem uma atenção diferente, já que o público reagirá primeiramente à
mudança das convenções, afinal, estaremos evidenciando a forma. Nesse sentido, Esslin (1978,
p. 82) declara: “A tragicomédia é, desse modo, um gênero complexo, que exige do público um
alto grau de sofisticação. Pois o impacto que todo drama alcança junto ao público depende, em
última análise, de um sutil intercâmbio de expectativas e satisfação das mesmas”.
Desse modo, quando alteramos a estrutura de narrar o acontecimento geramos uma outra
interpretação sobre a realidade. Logo, Esslin (1978, p. 82) afirma: “O gênero moderno e
altamente sofisticado da tragicomédia produz boa parte de seus efeitos pelo repentino
desapontamento e reorientação das expectativas criadas”.
Sendo a linguagem constituída de conteúdo e forma, é pertinente a afirmação de Brecht
de que uma escolha estética não é concebida somente pelo ato formal puro em si, mas que cada
experiência dessa natureza trata de uma maneira de entender o mundo e a existência:

O Verfremdungseffekt, de Brecht, o efeito de tornar estranho, que, em última análise,


pode ser reduzido ao processo de se criar certas expectativas e depois, repentina e não
raro brutalmente, destruí-las, é essencialmente um recurso tragicômico; como assim
também o é a mistura de comédia, farsa e desespero usada por Beckett em Esperando
Godot. Os personagens estão vestidos como palhaços de music-hall e como tais se
comportam, suas piadas são as dos cômicos de nariz pintado de vermelho e, no
entanto, a peça retrata nada menos do que a trágica posição do homem em um universo
vazio, que pode ter uma significação, significação essa, no entanto, que permanecerá
para sempre oculta de todos nós. (ESSLIN, 1978, p. 83).

Essa discussão nos evidencia o porquê de utilizarmos formalmente a docuficção, tendo


em vista o sentido estético dessa forma de representação do mundo, e o que ela pode contribuir
à percepção da realidade. Reafirmamos, finalmente, por meio de Esslin, que os meios
dramáticos constituem uma das formas mais sofisticadas de comunicação que a humanidade já
criou:

Como um meio de expressão e comunicação, o drama – deixando à parte o relato de


estórias ou o suprimento de modelos de situações sociais em ação – concerne, em
grande parte, à recriação de estados emocionais humanos, a ocasião que é oferecida
às mais variadas plateias de compartilhar de emoções que de outro modo lhes seriam
77

negadas, constituindo-se, desse modo, em instrumento de ampliação da experiência


do ser humano, aumentando sua capacidade de sentir emoções mais ricas, mais sutis,
mais elevadas. (ESSLIN, 1978, p. 128).

Amparados em Esslin, entendemos a função do drama como pensamento estrutural da


tese, por considerarmos que a narração é constituída de descrição e também de fabulação.

4.2 A narrativa

As primeiras imagens gravadas depois da morte de Telma, de sua casa, como também
as entrevistas feitas com amigos e familiares, foram construídas a partir do ponto de vista de
uma documentarista que se senta na sala de visitas e desenvolve uma conversa. Isso ocorre
dentro de uma proposta em que a visitante chega à procura de saber notícias de uma pessoa que
todos ali conhecem (para isso, os encontros eram intermediados por um produtor da cidade, que
foi escolhido por ser amigo e conhecido dos envolvidos). Não tínhamos mais o primeiro
argumento, que seria feito com a presença de Telma, e o segundo não tinha uma linha condutora
clara, sem a presença dela, já que as falas nos chegavam com certa dispersão, porque não era
propriamente sobre a vida de Telma que queríamos saber, e sim, sobre seu processo de criação
artístico e os autorretratos.
No entanto, foram feitas as imagens, que entram no segundo argumento – o da
docuficção – transformadas em documento do primeiro encontro, frustrado, mas como uma
ação potencializadora. Essas primeiras imagens documentos foram pensadas da seguinte forma:
o ponto de vista da câmera está situado à altura do observador, de alguém que passeia junto e
que observa os objetos e lugares. A referência para essa escolha foi colhida do cinema de
conversação de Eduardo Coutinho (2015):

As palavras são quase infinitas, do mesmo modo, talvez, que posições de câmera num
dado cenário. Isso nos filmes chamados de ficção. Justamente, no tipo de
documentário que escolhi, reduzi ao mínimo esse dilema. As limitações impostas pelo
improviso, pela captação do acontecimento ao vivo, pelas relações primordiais olho a
olho entre os conversadores, que exigem amiúde a atenção total do diretor – todas
essas contingências tornam a posição da câmera tão dependente do real que não se
pode mais falar de escolha livre, como seria o caso da ficção. (COUTINHO in
LABAKI, 2015, p. 226).

Já na docuficção, as imagens documentais serão apresentadas conforme o ponto de vista


de Ana, que está no lugar da documentarista, acrescentada pelos sentimentos de sua história
78

ficcionalizada ao encontro da tia-avó.


Entramos, assim, em um tipo de cinema de conversação que surge de uma confabulação
íntima, em que tudo o que vemos é intermediado pelo parentesco e pelos interesses da
protagonista. A única forma de conhecermos Telma será pela voz de Ana, misto de interioridade,
fantasia e fatos históricos (emblema dos autorretratos).
A voz off de Ana, nesse aspecto, é um recurso que resolve o desenvolvimento do enredo,
de alguém que conta uma história e, ao mesmo tempo, é uma ausência. Trata-se de uma voz
guia. Observamos o que ela vê, ouvimos suas descrições subjetivas, mas sem uma imagem
corporal de apoio para nos afastarmos, a não ser suas fotografias de infância, que ela encontra
no acervo de Telma. Imagens de um tempo longínquo, que talvez ela observe com o mesmo
afastamento que nós, em relação a si, uma espécie de fantasma ou algo como fantasias de um
passado.
Voltamos novamente ao protagonista do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo
(2009). O personagem, que está em viagem de trabalho, em uma fala endereçada a si, como um
pensar em voz alta, narra sua dor diante do fim de um relacionamento. Como somos guiados
por esses sentimentos, o que vemos é uma paisagem ampliada de seu estado emocional.

José Renato (Irandhir Santos), geólogo, 35 anos, foi enviado para realizar uma
pesquisa de campo durante a qual terá que atravessar o sertão nordestino – região
semidesértica, situada no Nordeste do Brasil. A missão de sua pesquisa é avaliar o
possível percurso de um canal que será construído, desviando as águas do único rio
caudaloso da região. Durante a viagem, percebe-se que há algo comum entre o
protagonista José Renato e os lugares por onde ele passa. Desde o vazio a uma
sensação de abandono, de isolamento. Ele decide seguir viagem, na esperança que a
travessia transforme seus sentimentos. (WIKIPÉDIA, 2019).20

Há o estado de crise da protagonista, Ana. Crise que ela, inicialmente, supõe vir da vida
de casada ou dos conflitos com o marido. E isso é posto nas suas conversas:

SEQ. 2 (cont.) - Imagens da estrada, do ponto de vista de quem dirige - DIA

ANA (V.O.)
Podia ter pego logo um voo, e em meia hora eu tava no Crato, você teria feito isso... né? Ahh,
mas eu quero diferente... Eu aluguei um carro super poderoso! Nem entendo de motor, mas é
só tocar o pé, que é uma beleza, suave na pista, responde rápido, com bluetooth e ar-

20
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Viajo_porque_Preciso,_Volto_porque_Te_Amo. Acesso em: 20
ago. 2019.
79

condicionado, o básico! E eu ainda comprei do rapaz da loja o pendrive dele, com todo o
repertório musical... Sabe por que eu fiz isso, Miguel? Porque toda vez que a gente viaja, é só
você quem dirige, e nunca me deixa dirigir, agora, dessa vez, EU é que dirijo...

E em outro momento:

SEQ. 18 - EXT. PRAÇA DA SÉ/ESCULTURA BÁRBARA DE ALENCAR - NOITE

Praça da Sé. Pernas de mulheres que caminham. Grupo de mulheres que conversam em pé.
Mulheres com crianças. Mulheres que vendem comidas. Gestos das mãos, movimentos dos
braços. Penteados dos cabelos, ornamentos no corpo, brincos, pulseiras.

ANA (V.O.)
Saí da casa da Socorro, e um pensamento não me sai da cabeça, e se eu tivesse casado com
Allan? O que eu estaria fazendo da minha vida? Assistente de fotógrafo? Como eu sou sua
assistente no escritório, Miguel?... Terminei minha faculdade de Direito e não saí disso!!!...

(Pausa)

O percurso da procura por suas fotografias e os encontros com as mulheres acentuam


seus dilemas. Não é pelo estranhamento com as imagens que ela mergulha no universo da tia-
avó. Inicialmente é a fotografia da mãe que lhe desperta curiosidade. Só chegamos aos
significados das imagens na última parte, quando ela começa a ficar intrigada com as fantasias
e com os autorretratos em diversas personas. Ana observa essas imagens em seu quarto.

SEQ. 61 - INT. QUARTO DE HOTEL - NOITE

Teto do quarto de hotel.


ANA (V.O.)

Acordei, perdi o sono, uma angústia, parece que eu sinto o mesmo silêncio, quando eu
parei naquela casa, a da Mazé no meio da estrada...

Foto restaurada de Ana como índia, na parede.

ANA (V.O.)

Não sei se porque vem tudo de uma vez só, não consigo mais dormir.
80

24 autorretratos de Telma, pregados na parede do quarto, junto à foto restaurada de Ana.

ANA (V.O.)
Miguel, tirei os autorretratos dos sacos e olho para eles (pausa).
Comecei a imaginar a Telma e aquela parede da casa dela, que o Ricardo me falou que tinha.
A galeria que a Telma fez na varanda da casa, que ela fez velhinha, as suas vidas
imaginadas...

Telma como espanhola, em sépia, transição para a cor, Telma espanhola em cor.

ANA (V.O.)
Quando ela começou a fotografar em preto e branco, e começou a sentir falta das cores, das
cores que via pelas vidas das atrizes....

Olhares, rostos de Telma. Detalhes dos sinais de beleza nos rostos das fotos de Telma.

ANA (V.O.)
E começou a desenhar, retocar seu rosto, seus gestos.

Telma, com fundo azul e vestido verde, com fundo azul-esverdeado e vestido vermelho. (As
formas desfocam e formam manchas de cores).

ANA (V.O.)
Todas as combinações de cor, o rosa com o azul, com o verde, com o amarelo, com o roxo,
que vem do rosa com o azul...

As manchas de cores se transformam nos detalhes de mãos sobre o rosto, mão pousa uma
sobre a outra, mão segura uvas, mão segura lenço.

ANA (V.O.)
As mãos são um leque, um ponto um sinal!
81

Telma-espanhola, com as mãos em leque, fusão com a mão que pousa sobre o braço da foto
Telma-índia. Foto de Telma-índia.

ANA (V.O.)
O olhar parece que foge, não, acho que não é bem esse olhar ... É um olhar na mesma altura.
Deixa que a gente olhe para ela. Ela não tem medo.

Foto de Telma-índia.

ANA (V.O.)
É uma Iracema! E quem foi Iracema?..

Telma-índia sai do foco e se transforma em manchas de cores.

ANA (V.O.)

Aí, ela se maquiava todos os dias, e se admirava, porque as pessoas depois da foto tiravam a
maquiagem... (Imitando Herbeno falando da Telma). Olha, Herbeno, elas tiram a
maquiagem?!... (Pausa).
(Mudando o tom da fala) Tenho duas escolhas, tirar a maquiagem ou colocar a maquiagem,
mas por que só uma é fantasia? E a outra é o quê?

Painel com fundo infinito de manchas coloridas.

Figura 20 – Autorretratos de Telma Saraiva: Telma Saraiva


como índia, Telma Saraiva como gueixa.
Fonte: Acervo Família Saraiva.
82

Viktor Kossakovsky (2015, p. 246) expõe um de seus alicerces de trabalho, que é


também o percurso autobiográfico: “Não tente mudar o mundo. Não tente salvar o mundo. É
melhor que seu filme mude você mesmo. Descubra o mundo e descubra a si mesmo enquanto
filma”.
Andrés Di Tella, analisando o lugar do documentarista e a obra autobiográfica,
complementa essa questão:

Evidentemente, na obra autobiográfica, há sempre um elemento de ficção, inevitável


quando “nos contamos” a nós mesmos. É necessário, pelo menos, inventar esse
personagem que sou eu, o narrador da autobiografia e o protagonista do documentário.
Não vou negar que há uma discreta operação ficcional no meio. Mas não é uma
construção fictícia qualquer. É uma construção que revela uma verdade. Você não
pode fazer qualquer construção autobiográfica, simplesmente não pode. Você vai
fazer um tipo de construção que vai falar quem você é, diga o que disse, vai terminar
confessando quem você é. Acredito que seja assim. De qualquer modo, também é a
ideia de Freud, que é muito interessante e muito paradoxal: a ideia do romance
familiar, de criar uma espécie de mito, ou de fabricar recordações, a inevitabilidade
da fábula. Contudo, qualquer coisa que você fabrique e construa e fabule sempre vai
revelar quem você é. Quando você fala de si mesmo, não há onde esconder-se. (DI
TELLA in LABAKI, 2015, p. 251).

Foi a frustração com a impossibilidade do contato com Telma que nos levou a entender
a busca. Di Tella (2015, p. 256) comenta sobre isso: “Via de regra, o que NÃO ocorre de acordo
com o roteiro é o mais revelador”. E, mais adiante, se pensarmos a quebra do script como
obstáculo que nos coloca novas perguntas: “Tenho pensado muito em como o fracasso de um
projeto, o equívoco de uma ideia que se choca com a realidade, pode expressar a verdade dessa
ideia, o sentido desse projeto. E busco como refletir esse fracasso, de alguma maneira, no filme”.
(DI TELLA in LABAKI, 2015, p. 255).
Na mesma diretriz, Abbas Kiarostami destaca a importância do tema do obstáculo,
quando nos diz:

A maçã não devia seguir uma linha reta [...] Diante de um obstáculo, ela se orienta
para um outro caminho. A poesia persa define esse movimento como o curso de um
riacho num prado. A água nunca segue linha reta. A essência de seu movimento é o
obstáculo. O que obstrui a água a obriga a se movimentar. Essas curvas e meandros,
que fazem a beleza dos riachos, provêm de seu encontro com obstáculos.
(KIAROSTAMI in BERNARDET, 2004, p. 64).

Podemos acrescentar aqui um preceito que Bernardet (2004, p. 57) analisa na obra de
Kiarostami, o princípio da incompletude: “O que fica é o movimento que se desenrola no tempo,
não a sua finalidade. O que importa na busca é o seu dinamismo, não o seu objetivo”. Para,
logo depois, outro depoimento de Kiarostami (2004, p. 64) completar: “A finalidade do filme
83

consiste em mostrar o que vivenciei durante essa viagem, é toda a minha experiência”.
O documentarista Rithy Panh (apud Kovács e Szilágyi, in Labaki, 2015, p. 258),
refletindo sobre memória e reconstituição, declara: “Contrariamente ao que eu acreditava no
princípio, reviver é também reconquistar a memória e a palavra. A memória é a ressurreição do
passado, dos mortos, da via e da cultura morta que implica também a ressurreição daquele que
recorda”.
Destacamos um recurso da ficção, presente em Eu, um Negro (1958), de Jean Rouch,
que revela que eu, como personagem, ficcionalizo-me para contar minha história: o que sou, e
o que não sou, mas gostaria que fosse. Procuraremos enfatizar essa ideia, presente em tudo, dos
autorretratos à invenção de Ana, passando pelas mulheres do Crato, inseridos todos no contexto
do documento. A imagem é a de Socorro, que nos olha e fala do marido. É de Allan, que é mais
ficcionalizado, porque Ana o torna seu ex-namoradinho de infância. Então, há um jogo de
verdade e mentira na história, que o espectador não poderá decifrar totalmente, cabendo a ele
mesmo escolher o que irá considerar verdadeiro ou inventado.
Andrés Di Tella, no filme Fotografia (2007), com imagens de sua mãe, mistura métodos
de abordagem do modelo performático com a narrativa autobiográfica, e nos ajuda nessa
questão:

O interessante do mecanismo autobiográfico é que permite, justamente, que vejamos


a nós mesmos como outro: quem escreve narra a vida de quem a viveu. E, na
autobiografia contemporânea, a identidade do autor já não é um ponto de partida, mas,
em todo caso, a autobiografia se torna uma experiência que permite desenhar uma
identidade, unindo os pontos. A identidade como algo contingente, necessariamente
incompleto, que muda o tempo todo, em função da experiência, que a confronta com
diferentes possibilidades (DI TELLA in LABAKI, 2015, p. 249-250).

Pelo relato da experiência autobiográfica, permite-se também uma projeção do


espectador. Di Tella a compara com o ato da leitura:

Segundo Proust, o escritor que conta sua vida oferece ao leitor uma espécie de
instrumento óptico que lhe permite ver aquilo de sua vida que, sem o livro, ele não
poderia ver por si mesmo. O fato de o leitor reconhecer em si mesmo o que o livro diz
é a prova da verdade deste. Ou seja, Proust escreveu uma obra abertamente
autobiográfica, embora se trate de um romance. Entretanto, é preciso dizer que ele
não a escreveu porque queria contar sua vida, e sim que contou sua vida para iluminar
nos leitores a vida deles? (DI TELLA in LABAKI, 2015, p. 251).

Pensando o estudo da autobiografia e o discurso narrativo, Catherine Russell (1999),


nomeadamente a sua análise sobre o uso da voz na primeira pessoa, menciona o fato do
depoimento ter um caráter confessional, advindo da experiência do autor. O depoimento produz,
84

então, o poder de evocar história e memória, de maneira que memória e testemunho são
articulados como modos de redenção.
Interessa-nos uma análise sobre espectador, autor e realidade fílmica em termos de
correspondências. Nesse sentido, Guzmán relata:

No momento, a questão do olhar dirigido às coisas é o fulcro do meu trabalho. A ideia


do olhar, da força do olhar, me leva à questão da realidade. Concebo a realidade não
tanto como algo que se pode fixar sobre a película, e sim como um campo (em termos
energéticos). Isso talvez seja um tanto vago. O que quero dizer é que a imagem
filmada, tal como tento realizá-la, resulta antes de uma colisão entre o campo do real
e a energia que ponho em explorá-lo. É um impulso ativo, agressivo. Em algum lugar,
a meio caminho, encontra-se um ponto forte que vem a ser a imagem filmada. Por
várias razões, deixamos de lado a ideia de que a realidade é uma entidade fechada,
que existe fora de nós. Isso é explicável em parte pela tecnologia, pela eletrônica e
pelo caráter múltiplo que a realidade assumiu na consciência das pessoas. Por essa
razão, o cubismo constitui para mim uma referência capital e, a meu ver, ainda atual,
pois a multiplicidade de cada fragmento de realidade nele se exprime de modo
essencial e rigoroso. Se quiser me exprimir não como uma espécie de receptor passivo
de uma realidade exterior, e sim como alguém que é espectador e, a um só tempo,
agente, já estarei implicado nessa problemática. O que está em causa é toda a questão
da definição do indivíduo. A relação no cinema, a participação em um espetáculo de
cinema deve ser justamente isto: uma tentativa de definição ou redefinição de si, de
cada espectador. No tocante à explicação que tentei dar sobre a minha posição de
cineasta no mundo da imagem, a meio caminho entre eu e a realidade, acredito que o
espectador de cinema deveria, idealmente, se encontrar numa posição similar
(GUZMÁN in LABAKI, 2015, p. 158-159).

Relato dos documentaristas Fernando Solanas e Octavio Getino traduz a proposta que
perseguimos para o roteiro de Telma. Ademais, para sermos mais felizes com esse relato, eles
introduzem a fantasia e o testemunho:

A recriação ou a fantasia não negam a visão testemunhal de uma realidade; ao


contrário, muitas vezes podem ser elementos que a enriqueçam mais do que qualquer
outra coisa. A utilização de personagens, de sequências recriadas, de situações
“ficcionais”, conserva toda a sua vigência na medida em que serve a um objetivo
maior que não é outro senão submeter as abstrações e as ficções às necessidades de
iluminar testemunhalmente (documentalmente) uma situação histórica ou uma
situação política concretas. Por outro lado, essa é, em nosso entender, a maior
possibilidade de libertar verdadeiramente e não ficticiamente a fantasia. (SOLANAS
e GETINO in LABAKI, 2015, p. 193).

De forma a criar com os cruzamentos e pensar a forma de apresentação dos personagens,


chamamos a documentarista Marina Goldovskaya (in Labaki, 2015, p. 200), que trabalhou
também com a ficção:

É crucial introduzir os personagens e anunciar o tema bem no começo do filme. O


85

público tem que ser atraído, intrigado e fisgado. Que tipo de filme será? Quem são
aquelas pessoas? Tudo tem que ser disposto como num tabuleiro de xadrez antes de o
jogo começar. O público tem que entender as regras do jogo logo no início. Dedico
cinco minutos a isso, nada mais – então é hora de mover as peças. (GOLDOVSKAYA
in LABAKI, 2015, p. 204).

Pelo cinema clássico hollywoodiano, Jacqueline Nacache (2012, p. 18) informa que,
também na ficção, é no início que se situa a maneira de indicar estilisticamente o gênero do
filme: “Momento solene da entrada do espectador na ficção, o genérico e os primeiros minutos
da narração constituem um lugar privilegiado para todos os indicadores de gênero”.
Como exemplo para o roteiro, citamos ainda Salles (in Labaki, 2015, p. 269), ao analisar
o filme de Flaherty: “Antes de apresentar Nanook a seus espectadores, Flaherty utiliza três
cartelas e dois mapas. Com eles, afirma: num lugar verdadeiro, habita um homem real, Nanook.
Trata-se de ancorar o filme no mundo histórico”.
Assim, no início de Todas as vidas de Telma, inserimos uma cartela enunciativa (Roteiro,
Anexo, 2017, p. 151):

Em 2009, vi uma exposição de fotografias que não me saiu da memória. Um ano depois,
em 2010, numa viagem à cidade do Crato, conheço a fotógrafa, Telma Saraiva, autora dos
retratos. Tivemos 3 encontros, e elaboramos um roteiro para o documentário. Faltando dois
meses para as gravações, no dia 8 de junho de 2015, Telma falece. (pausa) Agora, encontramos
outra forma para continuarmos nossa história.

Logo após a cartela enunciativa, entra em Fade e depois a sequência:

SEQ. 1 - INT. CABINE DE PASSAGEIROS DE AVIÃO - DIA


Céu azul com sol da manhã, pequenas nuvens brancas. Som suave da turbina do avião. Dentro
do avião se observa o céu pela janela. Burburinhos inaudíveis do interior do avião.
ANA (V.O.)
Miguel,... essa é a primeira vez, depois de 10 anos, que viajo sem você....
10 anos de viagens juntos!

Pela janela do avião, vê-se a cidade margeada pelo oceano Atlântico.


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26/05/2019 Adriana (@adri.botelho) • Fotos e vídeos do Instagram

https://www.instagram.com/p/Bsgv0x5ngKm/ 1/1

Figura 21 – Print screen de uma tela de aplicativo, Instagram.


Imagem de pesquisa para roteiro. Fotografia de Victor de Melo, onde se vê de dentro do avião a
cidade de Fortaleza margeada pelo Oceano Atlântico.
Fonte: https://www.instagram.com/p/Bsgv0x5ngKm/.
Acesso em: 20. jun. 2019.

Mostra-se uma cartela explicativa no formato do documentário, que ancora a história


ocorrida, a partir dos acontecimentos anunciados. Posteriormente, há uma sequência de planos,
que nos coloca dentro da história, através da narração fabulada da voz off da personagem
ficcional. Com a narrativa híbrida, podemos correr o risco de perder o senso de credibilidade
na biografia da Telma, e não conquistarmos o entendimento suficiente para o drama de Ana.
No entanto, posta a ambiguidade nos momentos iniciais, procuraremos manter a coerência de
significado através da continuidade de certos recursos. Por exemplo, se for por meio de Ana,
personagem ficcional, que será estabelecido o diálogo com as personagens reais, esse recurso
será mantido até o final.
Problematizando acerca da incompletude como processo, e localizando o ponto
divergente entre o fazer da ficção e o do documentário, Kieslowski traz posição contundente
sobre sua saída da realização de documentários:

Nem tudo pode ser descrito. É esse o grande problema do documentário. Ele é
apanhado na sua própria ratoeira. [...] Se estou a fazer um filme sobre o amor, não
posso entrar num quarto se pessoas reais estiverem lá a fazer amor. [...] Quando
filmava documentários, reparei que, quanto mais perto queria chegar de um indivíduo,
mais objetos que me interessavam ficavam de fora. Foi provavelmente essa a razão
87

que me levou a mudar para os filmes de longa-metragem. Aí não há problema. Se


preciso de um par a fazer amor na cama, não custa nada. É claro que pode ser difícil
encontrar uma atriz que se disponha a tirar o sutiã, mas basta descobrir uma que o
faça. [...] Posso mesmo comprar glicerina, pôr-lhe umas gotas nos olhos, e ela chora.
Consegui algumas vezes filmar lágrimas reais. É algo completamente diferente. Mas
agora tenho glicerina. Tenho pavor das lágrimas verdadeiras. Com efeito, nem sequer
sei se tenho o direito de fotografar. Nessas alturas sinto-me como alguém que se vê
num reino cujo acesso é, de fato, proibido. Esta foi a razão principal por que fugi dos
documentários. (KIESLOWSKI apud ZIZEK, 2013, p. 8).

Nesse contexto, Kossakovsky (in Labaki, 2015, p. 247) relaciona ética e estética: “O
documentário é a única arte em que cada elemento estético quase sempre tem aspectos éticos e
cada aspecto ético pode ser utilizado esteticamente”.
João Moreira Salles (in Labaki, 2015, p. 277) corrobora esse limite do processo de
realização, demarcando a diferença primordial: “O paradoxo é este: potencialmente, os
personagens são muitos, mas a pessoa filmada, não obstante suas contradições, é uma só. Aqui
– precisamente aqui – reside, para mim, a verdadeira questão do documentário. Sua natureza
não é estética, nem epistemológica. É ética”. Em outro momento, ele complementa:

O que nós, documentaristas, temos de lembrar o tempo todo, é que a pessoa filmada
possui uma vida independente do filme. É isso que faz com que nossa questão central
seja de natureza ética. Tentando descrever o que fazemos numa formulação sintética,
eu diria que, observada a presença de certa estrutura narrativa, será documentário todo
filme em que o diretor tiver uma responsabilidade ética para com seu personagem. A
natureza da estrutura nos diferencia de outros discursos não ficcionais, como o
jornalismo, por exemplo. E a responsabilidade ética nos afasta da ficção. (SALLES
in LABAKI, 2015, p. 279).

Com base nesses argumentos, concluímos que o documentário se diferencia do


jornalismo por sua estrutura dramática e se diferencia da ficção por sua responsabilidade ética
em relação ao personagem. Salles (in Labaki, 2015, p. 281) finaliza: “Documentário teria usos.
Talvez, mas meu argumento é que não conseguimos definir o gênero pelos seus deveres para
fora, mas por suas obrigações para dentro. Não é o que se pode fazer com o mundo. É o que
não se pode fazer com o personagem”.

4.3 Os participantes

Ao iniciarmos as entrevistas, na primeira aproximação com os participantes, percebeu-


se a dificuldade de sairmos das informações de consenso, que se repetiam nas falas gerais: sobre
a dedicação de Telma ao trabalho, o gosto pelas festas de carnaval, a atenção com que se
dedicava aos clientes, a sua aparência bem cuidada – tanto que “nunca foi vista sem batom, sem
88

rímel e os cabelos estavam sempre bem penteados”. Os especialistas, curadores e artistas,


localizavam o trabalho nas referências da história da arte e citavam os aspectos biográficos mais
conhecidos. Por esse caminho, não teríamos filme, precisávamos do pensamento que saísse dos
relatos mais generalistas de uma biografia distanciada.
Outro desafio era ampliarmos a leitura sobre Telma nos depoimentos de cada
entrevistado. Se se pergunta à Madre Feitosa, professora e amiga religiosa, ela enaltece a
dedicação ao trabalho e a vida reservada; ao vizinho que gosta de arte e cinema, ele nos exibe
as imagens dos filmes assistidos. Percebemos que a narrativa ficava redundante, não se criava
o elemento inesperado. Então, optamos por interferir com a voz de Ana, ou seja, acrescentando
o seu conflito emocional.
Indo Ana ao encontro de Telma, colocamos as duas personagens em ação. A análise da
pesquisadora Marta Mendes, acerca do jogo de espelho, ajuda-nos na caracterização dos
personagens como ativadores da ação dramática:

Assistimos à criação de uma língua ou de uma voz partilhada, não só entre Jean Rouch
e Edward G. Robinson (Oumarou Ganda) – o protagonista narrador deste filme –, mas
entre Oumarou Ganda (ator) e Edward G. Robinson (personagem). Trata-se sempre
de um fenômeno de duplicação ou espelhamento. Logo no início de Eu, um negro, as
primeiras palavras são de Jean Rouch: “Segui durante seis meses um pequeno grupo
de jovens do Níger em Treichville. Propus-lhes fazer um filme em que eles
representariam os seus próprios papéis ou teriam o direito de tudo fazer e de tudo dizer.
Foi assim que improvisámos este filme”. Pouco depois destas palavras, Jean Rouch
passa a palavra a Edward G. Robinson, que diz não se chamar Edward G. Robinson,
e este ser um nome que lhe chamam porque ele se parece com um certo Edward G.
Robinson, que aparece nos filmes americanos. Robinson nunca diz o seu verdadeiro
nome, o seu nome aparece no seio de um jogo e este jogo é sempre um jogo de
espelhos. As duas vozes do filme, distintas e irredutíveis uma à outra, constituem-se,
no entanto, como um único ato de fala, numa espécie de monólogo partilhado, em que
o motor ou desencadeador é o fenómeno da alteridade ou da estranheza. A visão
desdobra-se e este desdobramento é feito através de um dispositivo a que, na literatura,
se chamou discurso indireto livre, que aproxima num mesmo enunciado, o ponto de
vista do narrador e o da personagem, tornando-os indiscerníveis. “Eu não digo o meu
verdadeiro nome” (de Robinson) e “ele não diz o seu verdadeiro nome” (de Rouch)
tornam-se um só enunciado, duplo por natureza. (MENDES, 2016, p. 26).

Ainda sobre essa questão, João Moreira Salles analisa a natureza do encontro entre o
documentarista e o outro, e seus modos de fala:

Um dos benefícios dessa definição é que ela rejeita qualquer formalismo ideológico,
ou seja, não acredita que determinados modelos narrativos sejam inerentemente
superiores a outros. Se a prova dos nove for a natureza da relação que se estabelece
entre documentarista e documentado, cada escola produzirá seus desafios específicos.
Mas nesse ponto é preciso fazer uma observação importante: nos últimos anos, o
89

cinema documental vem tentando encontrar modos de narrar que revelem, desde o
primeiro contato, a natureza dessa relação. São filmes sobre encontros. Nem todos são
bons, mas os melhores tentam transformar a fórmula eu falo sobre ele para nós em eu
e ele falamos de nós para vocês. Desse encontro talvez nasça uma relação virtuosa
entre episteme e ética. Filmes assim não pretendem falar do outro, e sim do encontro
com o outro. São filmes abertos. (SALLES in LABAKI, 2015, p. 279-280).

Jean Rouch (apud Salles in Labaki, 2015, p. 276) escreveu: “O cinema é a única arma
que possuo para mostrar ao outro como eu o vejo”, no que Salles (in Labaki, 2015, p. 276)
complementa: “[...] porque assim, consigo me observar também”.

4.3.1 Música, sons e voz

O ritmo do fluxo temporal é conduzido por uma voz diegética de Ana. Segundo Nacache,
mediante estudos de Michel Ciment, este inventou um conceito que localiza a voz da narradora,
a “voz-eu”, que, para nós, é a mais representativa da nossa intenção dramatúrgica de filme-
diário. Isso acontece porque a voz-eu narra um modo correspondente ao estatuto da voice over,
mas vai mais além do que somente dizer que a imagem está sempre no presente e que não
usamos flashback, ela nos amplia para uma noção subjetiva do tempo da ação. Sobre essa
abordagem, Michel Ciment expõe sua motivação filosófica:

Isso corresponde a algo de muito profundo em mim. Não me resta muito tempo de
vida para explicar o meu sentimento e o meu pensamento a esse respeito, mas não
creio que vivamos apenas no presente. Temos, ao mesmo tempo, a consciência do
passado e do futuro [...]. (CIMENT apud NACACHE, 2012, p. 81).

É um espaço-tempo narrativo multitemporal. O estado presente está pleno de memória


(passado), conjuntamente às projeções e planejamentos (futuro).
As músicas e os sons descritos no roteiro são diegéticos estão no ambiente pelo qual
Ana se move, ou seja, acompanham o contexto da ação.

SEQ. 2 - EXT/INT. VIAGEM DE CARRO - DIA


Carro na estrada, Rodovia BR-116, saída de Fortaleza, sol a pino. Vemos uma placa: Crato, 510
km. Paisagem externa, construções de um lado e do outro. No interior de um carro, toca música
eletrônica.
90

Ainda que seja uma voz no presente que conduz a ação, Bernardet, em seus estudos
sobre a obra de Kiarostami, tem análise sobre a voz narrativa e realidade, que nos serve de
parâmetro:

Embora estejamos vinculados à realidade, me parece que o primeiro passo para chegar
ao cinema [que faço] consiste em quebrar essa realidade. Minha voz me pertence
quando falo, a sincronização da minha voz com a minha imagem afirma minha
realidade. Mas extrair ou separar o som da imagem nos aproxima de uma significação
nova, que é a própria estética do cinema [...] Na prática, separamos as coisas e, com
um novo ordenamento, obtemos uma coisa nova, diferente da realidade habitual.
(BERNARDET, 2004, p. 63)

Sobre a função da música e sua relação com o real, nos filmes ficcionais de Hollywood,
Nacache informa:

Já na época do mudo, a música era um fator de fluidez e de continuidade: servia tanto


para sublinhar os efeitos dramáticos, como para encobrir os ruídos indiscretos. Esta
função isoladora, que contribui para ritualizar a projeção e a proteger de qualquer
contacto incomodativo com o real, iria depois amplificar-se. (NACACHE, 2012, p.
95).

As músicas citadas no roteiro fazem referências ao ambiente cultural da região em


consonância ao drama dos personagens. A música faz a primeira imersão de Ana em suas
memórias. Como na sequência que Ana passa pela cidade de Quixadá e sintoniza na rádio local:

SEQ. 6 - EXT/INT. ESTRADA QUIXADÁ - DIA


Sol a pino. Carro na estrada, placa indica cidade de Quixadá. Formação rochosa à frente.
Grandes monólitos no entorno da estrada. Sons de frequência de rádio, que tentam sintonizar
em alguma estação de rádio local. Carros ultrapassam na estrada.

RADIALISTA RÁDIO (programa de domingo)


Programa O Rei do Baião, campeão de audiência. Abraço a todos os ouvintes, a todos os
distritos do nosso município... Tarde ensolarada na terra dos monólitos.
A primeira música que ouviremos é o Gonzagão.

E, mais adiante, quando Ana caminha pela feira da cidade do Crato e, pelo rádio de um
vendedor, ouvimos a emissora local, que utiliza um jingle de abertura do programa retirado dos
filmes de faroeste norte-americanos.
91

SEQ. 13 - EXT. BARRACA DE FEIRA NO CENTRO DO CRATO – DIA


Barracas da feira (manhã de segunda-feira), no entorno do rio Granjeiro. Rádio amarrado na
barraca. Movimento intenso dos compradores pelas barracas. Cereais, frutas, artigos de casa.

RÁDIO EDUCADORA (OFF)


(Canto de passarinhos) O canto da natureza exige silêncio. Vai começar, começar…
(Música)…
O show, show de notícias. (jingle)

Mulheres olham os produtos. Caminhões, topics e motos circulam nas ruas, no entorno da feira,
chegam com compradores e trabalhadores, que vêm dos distritos e sítios próximos. Mulheres
vendem produtos nas suas barracas, nas calçadas das ruas, e anunciam, em voz alta, os produtos
à venda, atendem os compradores, ensacam os produtos, contam o dinheiro e passam o troco.

RÁDIO EDUCADORA (OFF) cont.


(Sons de tiros de filmes de faroeste, toque de corneta. Jingle de abertura do programa).
Aqui, começa a história do Cariri. Tenham todos um bom dia...

Outra referência musical para a nossa dramaturgia são as comédias musicais de


Hollywood, relacionadas a certa ideia de felicidade. Referência adotada não só porque Telma
assistia a esses filmes, mas porque se inspirava neles para decorar os ambientes de sua casa.
Além disso, em seus depoimentos, ela diz que copiou da atriz Shirley Temple o hábito de usar
cabelos cacheados, informação que foi posta no roteiro:

SEQ. 46 - AUTORRETRATO DE TELMA COMO SHIRLEY TEMPLE

ANA (V.O.)
Todos os dias, ela acordava e passava o batom e fazia os cachos nos seus cabelos lisos
e castanhos, que escondiam os cabelos brancos. Os cachos, me disseram, vem da moda da
Shirley Temple, atriz de cinema da década de 30. (Pausa)
Telma viveu 86 anos e dedicou mais de seus 60 anos à fotografia. E aí eu fico
pensando sobre o que a gente faz. E sobre o que é verdadeiro para mim, que possa caber numa
frase: 86 anos de vida e dedicação à fotografia.
92

Figura 22: Iacy Pierre fotografada Figura 23 – Shirley Temple


por Telma Saraiva. Fonte:
Fonte: Acervo Familiar de Iacy https://marziagatto.wordpress.com/2
Pierre. 013/10/20/grandes-atores-mirins/

Figura 24 – Autorretrato de Figura 25 – Shirley Temple


Telma Saraiva Fonte:
Fonte: acervo Família Saraiva. https://brasil.elpais.com/brasil/2014/
02/11/album/1
392116673_761401.html#foto_gal_
8

Felicidade expressa em imagens e músicas, mas que chama a atenção para um outro
lado, pois percebemos, pelos depoimentos das mulheres, um mundo em tensão. Apresentamos
esse aspecto como contradição. Como apoio a essa ideia, trazemos Nacache em suas análises
das comédias musicais hollywoodianas:
93

Com a comédia musical, extinguiu-se também uma ideologia da felicidade, que


representava um dos aspectos mais fortes da filosofia de Hollywood e que legitimava
os imperativos do Código de Produção: poucos filmes eram mais “familiares”, mais
conformes ao poder e à moral, do que os alegres musicais da MGM. É verdade que
continua a existir uma parte da produção americana onde sobrevive esta ideologia da
felicidade, mas já não tem meios para se exibir com cores tão provocantes.
(NACACHE, 2012, p. 104).

E, sobre o sentido de verdade nos happy end, que complementa essa análise, a
pesquisadora afirma:

Este direito provocador à mentira poderia ser resumido, de forma simbólica, pela
atitude do jornalista no final de O Homem Que Matou Liberty Valance: distorce a
narração verídica dos fatos ao senador e diz-lhe: “No Oeste, quando a lenda é mais
bela do que a verdade, imprimimos a lenda”. No fundo, cada happy end poderia ser
representado por uma espécie de alegoria do tipo “Hollywood derrubando a verdade”.
(NACACHE, 2012, p. 118).

No enredo de Telma, pelo uso das cores, levantamos a pergunta: o que escondem as
cores? Andy Warhol, no texto que acompanha seu ensaio fotográfico sobre a América,
responde-nos:

Todos têm uma América própria, e todos têm os fragmentos de uma América
fantasiosa que acreditam existir, mas não podem ver. Quando eu era pequeno, nunca
saí da Pensilvânia, e fantasiava coisas que supunha estarem acontecendo no Meio-
Oeste, ou lá no Sul, ou no Texas, que acreditava estar perdendo. Mas você só pode
viver em um lugar de cada vez. E a sua vida, enquanto acontece, não tem atmosfera
nenhuma até que se transforme em memória. As esquinas do imaginário americano
parecem muito atmosferas porque você as criou com base em cenas de filmes, músicas
e trechos de livros. E você vive nessa América onírica, construída sob medida, a partir
da arte, sentimentalismos e emoções, tanto quanto vive na América real. (WARHOL,
2012, p. 8).

Warhol define diversas nuances que nos foram aparecendo durante esta pesquisa.
Nuances que expressam sentimentos de escapismos e desejos, bem como a capacidade da arte
de mediar sentimentos de estar no mundo, que, ao mesmo tempo que o construímos em imagem,
o percebemos em contradição com o real.

4.3.2 Montagem

Como parte do processo de desenvolvimento do roteiro, pensamos o encadeamento da


ação, também em relação à montagem, expressa nestas palavras de Kiarostami (2004, p. 103):
94

“A obra cujo enredo não ordena em situações consecutivas e inter-relacionadas, que não é
delimitada por um tema em torno do qual se concatenam argumentos que levem da exposição
à conclusão, corre o risco de se dissolver”. Nesse sentido, analisamos várias possibilidades de
um fluxo discursivo. De início, levantamos a questão sobre o sentido e a função da narrativa
linear, a partir de comentário de Robert Musil sobre a lei da narrativa clássica:

Ocorreu-lhe que a lei desta vida, pela qual ansiamos quando ficamos sobrecarregados
de tarefas mas sonhamos com a simplicidade, não era senão a lei da narrativa clássica!
Aquela ordem simples que permite dizer: Depois de isso acontecer, aconteceu aquilo!
É a sucessão pura e simples, a reprodução da arrebatadora multiplicidade da vida
numa forma unidimensional, como diria um matemático, e isso nos tranquiliza.
(MUSIL in BERNARDET, 2004, p. 99-100).

Adiante, Musil (in Bernardet, 2004, p. 99-100) completa: “No relacionamento básico
com si mesmos, a maioria dos homens são contadores de histórias [...] preferem a sucessão
ordenada dos fatos, porque parece necessária, e, com isso, a impressão de que suas vidas têm
um curso, protege-os de alguma forma no caos”.
Na posição da narrativa linear e/ou multiforme, Zizek apresenta as reflexões:

Podemos afirmar que, nos nossos dias, estamos a aproximar-nos de um limiar homólogo: uma
nova “experiência de vida” está no ar, uma percepção da vida que faz explodir a forma da
narrativa linear centrada e transmite a vida como um fluxo multiforme. Mesmo no domínio das
ciências “duras” (a física quântica e a sua interpretação de realidades múltiplas, ou o
neodarwinismo), parece que estamos obcecados pela dimensão aleatória da vida e pelas versões
alternativas da realidade. Stephen Jay Gould tem uma formulação crua que usa precisamente a
metáfora do cinema: “Rebobinem o filme da vida e passem-no outra vez, a história da evolução
será totalmente diferente”. Ou a vida é vista como uma série de destinos paralelos múltiplos que
interagem e são afetados de um modo crucial por encontros contingentes sem sentido, pontos
nos quais uma série intersecta outra e interfere nela (ver shorts cuts de Altman). (ZIZEK, 2010,
p. 16-17).

De acordo com essa perspectiva de múltiplos fluxos aleatórios, que são afetados por
encontros contingentes e imprevisíveis, modificando o curso “roteirizado” e abrindo
possibilidades para outras reorganizações, Zizek ainda nos provoca:

Esta percepção da nossa realidade como um dos desfechos possíveis, muitas vezes
nem sequer o mais provável, de uma situação “em aberto”, esta ideia de que outros
desfechos possíveis não são simplesmente eliminados, mas continuam a assombrar a
nossa realidade “verdadeira” como um espectro do que podia ter acontecido,
conferindo à nossa realidade um estatuto de fragilidade e contingência extremas,
colidem implicitamente com as formas de narrativa “linear” predominantes da nossa
literatura e do nosso cinema. (ZIZEK, 2010, p. 17).

Zizek nos lança um desafio e, de fato, talvez esta ideia esteja contida no tema, na própria
95

simbologia dos autorretratos. Talvez se encontre também naquilo que Ana pensa sobre sua vida
e naquilo que interroga às mulheres. No entanto, sem encontrarmos uma expressão que lhe
corresponda, enquanto ação narrativa, essa ideia é posta aqui como desafio.
Muitos teóricos do documentário dão destaque à montagem como construção da
linguagem cinematográfica. Ou seja, é na etapa da montagem, que a subjetividade do realizador
manipula a matéria do real, construindo o discurso à sua maneira. Trata-se da aproximação com
a ficção, no que ela tem de realidade construída.

Para o cinema, a montagem se tornou a ferramenta mais importante e específica de


organização espaço temporal do material. Se para os diretores e teóricos do primeiro
cinema a montagem era um meio para a simples exposição dos acontecimentos na tela,
Eisenstein e Vertov desvendaram suas potencialidades como método de “organização
do mundo visível”, seu significado como “nervo essencial do puro elemento
cinematográfico”. “A cinematografia” escreveu Eisenstein, “é antes de tudo,
montagem”. (LETH in LABAKI, 2015, p. 164).

Levantamos hipótese de que a escrita de um diário de viagem pode se organizar em


fragmentos, com a ideia de uma narrativa em blocos episódicos, tendo como referência as
reflexões sobre montagem de Zizek e Pelechian:

[...] Nós vemos como esses episódios inteiros se “libertam” das fronteiras dos temas
factuais autônomos e, em razão dessa influência da montagem por blocos, alteram
suas individualidades e geram uma nova ideia, que dá simultaneidade para cada um
dos episódios, uma nova coloração, uma nova compreensão, uma nova sonoridade.
(PELECHIAN in LABAKI, 2015, p. 177).

Ainda sobre esses significados formais no processo da montagem, Zizek nos aponta
mais possibilidades:

Uma vez que a filmagem de documentários produz uma superabundância de material


descoordenado, em grande parte gerado por contingências imprevisíveis, nenhuma
língua narrativa consegue organizá-lo num Todo consistente, pelo que a única maneira
de obter a unidade necessária é organizar o material de acordo com padrões rítmicos
formais. A realização de documentários e o formalismo estão estreitamente
correlacionados. (ZIZEK, 2013, p. 14).

Em seus estudos sobre montagem, Amiel (2010, p. 13) demonstra o caráter flexível do
roteiro programado: “Na fase do argumento em particular, como na montagem propriamente
dita, podem ser feitas muitas escolhas essenciais, respondendo-se, completando-se ou
neutralizando-se, consoante os casos. É sabido que projetos filmados, a partir de um
determinado argumento, foram totalmente modificados na montagem”.
Pasolini falava de “língua escrita da realidade”, sublinhando, assim, o entrelaçamento
96

das evidências e das escolhas. Por esse viés, Amiel destaca a importância da montagem: “É a
“estrutura” do acontecimento que é mostrada, mais do que o próprio acontecimento. No ecrã
toma forma uma espécie de acontecimento, liberto das contingências do episódio.” E, mais
adiante: “encontramos em O Homem e o mar (1934), esse ‘poema documental’, de Robert
Flaherty, uma utilização similar da repetição sincopada de um gesto, que retira a este o seu
caráter funcional, para atingir uma espécie de movimento essencial”. (AMIEL, 2010, p. 16).
Como referência estética que nos interessa, o autor cria uma associação do processo de
montagem no cinema com experimentações advindas da pintura:

A montagem, executada como uma “colagem”, substitui pela surpresa e pelo aleatório
qualquer espécie de necessidade, como as colagens dos pintores surrealistas, ou as de
Braque e Picasso, que associando matérias e figuras inesperadas, provocavam formas
novas, e acasos apaixonantes. (AMIEL, 2010, p. 17).

Como se trata de um filme-diário, a viagem está traçada, mas aberta. Assim, ao já


delineado é possível integrarmos os acontecimentos espontâneos. Temos, também, os blocos
temáticos que demonstram um coletivo, expresso pela voz representativa das mulheres, e o
tempo demarcado através da agenda diária de Ana. Na montagem, procuraremos equilibrar um
ritmo que descreva a ação das protagonistas, mas sem perder de vista as análises de Amiel e
Zizek, referenciadas na pintura que utiliza a colagem para composições inesperadas, e na
potência do sentido de vida em construção, de seu fluxo arbitrário e contingente.

4.3.3 Paisagem, interiores e cenários

Delimitamos um cenário urbano e social que mostra onde Telma viveu. Há o estúdio e
sua casa, e as salas de visitas das casas das famílias de classe média, que formam a grande
galeria de arte que expõe suas fotografias na cidade. Há, também, a loja Gino, onde ela
comprava seu material fotográfico; os estúdios de fotopintura, os poucos que existem; e a
grande paisagem natural da Chapada do Araripe, que envolve toda a cidade do Crato.
97

Figura 27 – Print screen de uma tela de computador


Figura 26 – Loja Gino, com seu proprietário, com imagem da Loja Gino para o documentário.
Lindovaldo Frutuoso Gino Fonte: Foto Titus Riedl. Fonte: Foto Antônio Luiz Mendes. Fotografia de Still

Figura 28 – Fotografias de still do documentário (1º registro): Sala de visita da casa de Allan Bastos e
Socorro, com a equipe de filmagem. Sala de visita da casa de Ricardo Saraiva (filho de Telma), com a
documentarista. Sala de visita da casa de Roberta Rocha (neta de Telma), com a equipe de filmagem.
Fonte: Fotografias de Still. Arquivo da autora. Agosto de 2015.

Figura 29 – Chapada do Araripe


Imagens de pesquisa do ambiente de Floresta para o desenvolvimento do roteiro, com o objetivo de
representar o estado de ânimo de Ana.
Fonte: Internet: http://www.artnet.com/artists/yann-arthus-bertrand/eb%C3%A9ne-rose-sur-la-montagne-
de-kaw-guyane-430n-kVgOY6RF7-ueignSCprRpQ2
98

Figura 30 – Vista da cidade do Crato, envolta pela Chapada do Araripe Fonte: Foto Ricardo
Baptista. Fotografia de Still.

Telma, além dos filmes de Hollywood, tem no carnaval outro universo de inspiração
para sua vida e seu trabalho. Utilizaremos o cenário do Crato Tênis Clube para falar das grandes
festas que marcam as tradições da cidade – o baile de carnaval, as festas de debutantes, as
cerimonias dos bailes de formatura, e os célebres desfiles de misses.

Figura 31 –Telma e Ricardo Saraiva Figura 32 –Telma Saraiva em sua


(filho) em baile de carnaval no Crato casa, vestida para o baile de carnaval
Tênis Clube. Fonte: Acervo Família .Fonte: Acervo Família Saraiva.
Saraiva.
99

Figura 33 – Telma Saraiva como Oriental segura um frasco de lança-


perfume. Telma Saraiva como Pirata, segura um lança-perfume.
Fonte: Acervo Família Saraiva

Figura 34 – Print screen com frame do documentário Herbeno mostra a fotografia de um amigo feita
por Telma Saraiva. Por trás dele, no canto superior direito, se vê sua foto feita por Telma. Ele explica
como ela posicionava a luz. Mostra, também, fotos de atrizes e matéria de revistas de cinema que ele
e Telma gostavam. Imagens dispostas em cima da mesa. Depoimento para o documentário. Agosto
de 2015.
Fonte: Fotografia Antônio Luiz Mendes. Arquivo da autora.
100

Como é o ambiente do carnaval – a única festa pública de que Telma participava na


cidade – um marco distintivo do universo da biografada, uniremos o carnaval e o cinema em
imagens. Como exemplo, tomamos o filme Gilda, que ela assistiu algumas vezes, e que
Herbeno, seu vizinho, afirma em depoimento. A sequência escolhida trata do carnaval. Ana vê
o trecho e o repete, sobrepondo sua voz à de Gilda, reproduzindo o que ouvira dizer que Telma
fazia quando pequena, que era ler as legendas dos filmes.

SEQ. 52 - INT. LOJA DE INTERNET/ TRECHO DO FILME GILDA - DIA

Cabine com divisórias de fórmica branca. Na mesa, um monitor de computador, teclado, cabo
do fone de ouvido esticado para fora. Na tela do computador, o filme Gilda. Sem legendas.
Escutamos o som de áudio pelo fone de ouvido. Ana fala em português, sobrepondo sua voz ao
que Gilda conversa em inglês com a empregada doméstica. Gilda e Maria observam pela janela
os foliões no salão, em festa de carnaval.

TRECHO DO FILME GILDA (1946)

GILDA
Olha, Maria, é carnaval.

MARIA

É... Carnaval.

GILDA
O que significa, exatamente?

MARIA
São os três dias que precedem à Quaresma. Nos países católicos, celebra-se com muita
alegria e festas. Depois, vem o jejum e a penitência.

GILDA
Ou seja, aproveitar enquanto se tem chance.

MARIA
Você diz coisas estranhas.
101

GILDA
Quero dizer... Três dias semeando e, então, vem a colheita.
(Pausa).

Outro elemento de caracterização do ambiente está no uso das cores. Telma era exímia
colorista, por isso um dos conceitos basilares é a cor. Ana faz essa reflexão nas suas observações
dos autorretratos. Assim, ligamos cor, sedução, memória e ambiente.

SEQ. 53 - INT. NOVA MIRADA ESTÚDIO DE TELMA - DIA

Foto de Telma-gueixa retirada pela metade de um saco. Detalhes da flor nos cabelos, a fita
grega amarela na túnica vermelha, os olhos.

ANA (V.O.)
Não sei se são as cores ou o brilho das fantasias ... Parece uma viagem de volta... ouvi numa
música, dias desses, que “voltar quase sempre é partir
para um outro lugar”.

4.3.4 Imagem e os autorretratos

Telma Saraiva produziu uma visualidade singular, composta por imaginário advindo do
cinema e de suas divas das décadas de 1940, 1950 e 1960.
Através dos autorretratos e da numerosa produção artística, encontramos seu ideário
estético – juventude, beleza, feminino – e uma memorável cronologia de sua vida. Telma, já na
década de 1950, ou seja, vinte e sete anos antes da artista norte-americana Cindy Sherman
(primeira exposição em 1977), representou o feminino nas imagens fotográficas, com
referências do cinema.

Considerada como uma das principais artistas contemporâneas do mundo, Cindy


Sherman (n. 1954) ganhou notoriedade pela série Untitled Film Stills, criada por ela,
pouco depois de se mudar para Nova York, em 1977. Composta por 70 imagens, a
obra foi a primeira grande declaração artística de Sherman e definiu sua abordagem.
Usando a si mesma como modelo, em uma variedade de trajes e penteados, suas
imagens em preto e branco capturaram o visual de Hollywood dos anos 50 e 60, filmes
102

21
noir, filmes B e filmes de arte europeus. (TOUCHARTE REVISTA
ELETRÔNICA, 2018).

Ambas se colocaram como personagens em suas composições, ou seja, partindo de


reflexões artísticas semelhantes. Em suas representações, interessa-nos o uso que fazem da
imagem para criar a fantasia de serem muitas mulheres, contrapondo-se a um estereótipo. Dessa
forma, conseguem expressar as tensões relacionadas ao universo feminino, além das
contradições nesse embate com o mundo social do qual fazemos parte.
Por isso, o filme interroga sobre o trabalho e a biografia de Telma, a relação com a
imagem e o poder de criar mundos ideais, ou, melhor dizendo, mundos possíveis.

Figura 35 – Telma Saraiva Figura 36 – Cindy Sherman


Fonte: Acervo Família Saraiva. Fonte:
https://www.icaboston.org/art/cin
dy-sherman/untitled

21
Disponível em: http://www.touchofclass.com.br/index.php/2018/08/01/untitled-film-stills-serie-completa-de-
cindy-sherman-sera-exibida-pela-primeira-vez-no-reino-unido/. Acesso em: 6 jul. 2019.
103

Figura 37 – Telma como Atriz Figura 38 – Cindy Sherman como


Espanhola Fonte: Acervo Madame de Pompadour Fonte:
Família Saraiva. https://www.thebroad.org/art/cind
y-sherman/untitled-193

Por esse itinerário, chegamos, na nossa investigação, aos significados dos autorretratos
fotopintados, estes que se tornam a grande metáfora de todo o processo.
Selecionamos os autorretratos de Telma Saraiva, também, como uma ação performática,
trazendo uma rede de relações do cinema, como construtor de hábitos, modelos e narratividades,
que influenciou todo o imaginário de criação da fotógrafa Telma.
Apontamos para a relação da arte contemporânea com Cindy Sherman e Andy Warhol,
artistas que tomamos como referência para um paralelo com o trabalho de Saraiva, no que
concerne ao ato poético de autorrepresentação para a construção das muitas Telmas.
Interessa-nos a performance no sentido de ficcionalização, expressa por Zumthor,
através da análise de Osmar Gonçalves e Isabelle Morais:

A teatralidade propiciaria, então, a emergência daquilo que o autor chama de situação


performancial: espaço de criação cujo aspecto mais relevante é o da possibilidade de
exploração de seu potencial ficcional e no qual se estabelece o jogo de um sujeito com
seu corpo em relação ao mundo e ao seu imaginário, resultando na transmissão de
uma força energética e expressiva que Zumthor assume como performance.
(ZUMTHOR, 2007, p. 41, apud GONÇALVES; MORAIS, 2016, p. 6).

Como, também, na relação com a fotografia, quando Gonçalves e Morais examinam o


autorretrato Afogado (1840) de Hippolyte Bayard:

Tais reflexões, emprestadas de Zumthor, poderiam ser aplicadas à fotografia e, mais


especificamente, ao autorretrato fotográfico, implicando compreendê-lo como um
espaço ficcional propício para, em uma situação performancial, materializar uma
mensagem poética. Em ato de reconhecimento, realização e materialização de uma
virtualidade em uma atualidade de si, gerando efeitos de presença através de seu corpo
104

ativo, que transmite energia poética, Bayard abre-se à criação por meio do
performático: “algo se criou, atingiu a plenitude e, assim, ultrapassa o curso comum
dos acontecimentos” (Zumthor, 2007, p. 31). Redimensiona a fotografia expandindo-
a para uma plasticidade ligada mais à ordem do sensível, repleta de sentidos e
significados renovados e atualizados na experiência vívida de sua autorrepresentação.
(GONÇALVES; MORAIS, 2016, p. 6).

Portanto, vinculamos Telma Saraiva à essa tradição dos autorretratos como meio da
dramaturgia, encenação e performatividade, o que amplia nossa percepção dos sentidos de
representação do sujeito e de sua imagética.

4.4 Telma e a imagem manipulada: fantasia

A biografia foi uma das fontes para a análise da imagem, compreendendo-se o conceito
de fantasia e de fantasmático como instrumentais à investigação acerca da representação que
Telma fazia de si, em seus autorretratos. Pelo exíguo domínio da área da psicanálise, optamos
por seguir os estudos de Mardem Leandro Silva sobre fantasia, para entendermos a
especificidade e a diferença em relação aos conceitos de real, realidade, fantasma e fantasmático.
A hipótese de que partimos, é a de que a fantasia seria esse élan, misto de afetos, memória e
realidade, que permitiu Telma criar suas personas. Nesse contexto, o conceito de identidade
fantasmática amplia nosso entendimento, porque considera a materialidade das imagens.
Portanto, partimos das seguintes perguntas: o que é a fantasia? Como é sua atuação na
elaboração da imagem, e o que explica do imaginário de Telma?
Especulamos, por alguns dados biográficos, que há uma simbiose profissional e afetiva
entre Telma e o pai, permeada pelo universo da fotografia e do cinema, e que se manteve em
sua memória, fazendo com que ela continuasse revivendo esse vínculo através de sua profissão
e dos autorretratos.
Em suas entrevistas, Telma diz, “eu sou filha de pai”. Cabe atenção a uma delas:

Pode escrever aí. Eu sou filha de meu pai. E para entender minha história eu tenho
que falar dele. Minha família é uma família de artistas. Meu avô era ourives e meu
pai, que se chama Júlio Saraiva, aprendeu esse ofício muito novo com ele. Com dez
anos teve que assumir a oficina e a família quando meu avô faleceu. Por causa disso
ele estudou pouco, só até o segundo ano primário, mas era um homem de uma
inteligência formidável. Um autodidata. Todo mundo dizia que se meu pai tivesse
estudado teria sido um cientista. A fotografia surgiu na vida dele muito depois, quando
chegou um senhor aqui chamado Pedro Maia. Esse Pedro Maia inventou de trazer a
fotografia pro Crato. Quando papai viu a fotografia ficou encantado! Como era bonito
botar uma pessoa dentro do papel! Até a máquina foi ele que fez. Chamou um
105

carpinteiro, ensinou como devia ser. Foi para Fortaleza, comprou uma lente, montou
a máquina dele e começou a tirar fotografia, em 1939, com 29 anos.22 (REVISTA
CARIRI, 2020).

Telma tinha 11 anos, quando seu pai começou a fotografar. Com referências na
Psicologia Científica de 1895, Silva (2014) pontua como a experiência de satisfação produzia
no psiquismo do recém-nascido o que Freud denominou de traço mnêmico.
Serge Leclaire (1968, p. 38) relaciona a imagem mnésica com o objeto de desejo: “O
objeto que suscita em todos os casos o movimento chamado desejo é um objeto alucinado ou,
mais precisamente, o investimento de uma imagem mnésica”. Traço mnêmico que se instala no
corpo, um corpo sensitivo, ele todo erógeno. É um corpo que, dividido entre suas necessidades
e as interdições socioculturais, busca gestos sensitivos de produção de prazer, que elaboram
objetos feitos como extensão desse corpo erógeno. É na busca de recuperar esse objeto
alucinado que há a reencenação de uma prática que repete o que se viveu. A repetição da
encenação seria uma forma de recordar os gestos sensitivos de prazer.
Dessa forma, entendemos que repetimos para recuperar um objeto de desejo, imagem
mnésica, sendo assim, estando nosso mundo interno em relação ao mundo exterior, surgem-nos
questionamentos: como podemos entender a fantasia na sua proximidade com a realidade e o
real? Seria uma mediadora entre os dois mundos?
Segundo Silva (2014, p. 34), a psicanálise se aproximou da filosofia moderna para
entender as categorias de percepção: “Se com Freud a fantasia diz respeito a um modo de se
pensar a realidade por um viés psicanalítico, no sentido de que a fantasia forneceria elementos
para se conjugar realidade interna e externa, com Lacan, a fantasia é teorizada como sendo a
própria realidade em oposição ao real”.
Continua Silva, citando Vieira, com a análise de Lacan, na relação entre fantasia e a
percepção do mundo em si:

[...] Relativiza a distinção entre dentro e fora, privilegiando a oposição entre o mundo
da cultura e o mundo em si, tal como o veríamos, se pudéssemos olhá-lo. Como isto
não é possível, ficamos com este mundo simbólico e alguma noção do mundo real,
inacessível de maneira direta, quer com nossos órgãos de percepção, quer com os
instrumentos mais aperfeiçoados que possamos construir, pois o jogo de
representações e de traços da cultura estarão sempre lá, atuando como prismas, como
elementos difratores da visão nítida do real. (VIEIRA apud SILVA, 2003, p. 6).

Pela discussão desenvolvida, a realidade seria efeito de uma operação simbólica e

22
Disponível em: https://caririrevista.com.br/telma-saraiva-sob-o-signo-da-fantasia/. Acesso em: 10 set. 2020.
106

imaginária. Para ampliarmos um pouco mais esse entendimento, Silva elucida:

Aqui cabe uma pequena explanação a respeito dos conceitos de real, simbólico e
imaginário, visto que eles estão em íntima ligação com a fantasia. No real, Lacan “[...]
colocou a realidade psíquica, isto é, o desejo inconsciente e as fantasias que lhe estão
ligadas, bem como um resto: uma realidade desejante, inacessível a qualquer
pensamento subjetivo” (Roudinesco & Plon, 1998d, p. 645). O simbólico designa “[...]
um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações
que determinam o sujeito à sua revelia, permitindo-lhe referir-se a ele, consciente e
inconscientemente, ao exercer sua faculdade de simbolização” (Roudinesco & Plon,
1998e, p. 714). Por fim, o imaginário, “[...] se define, no sentido lacaniano, como o
lugar do eu por excelência, com seus fenômenos de ilusão, captação e engodo”
(Roudinesco & Plon, 1998b, p. 371). (SILVA, 2014, p. 37-38).

Com a compreensão dos significados de imaginário, mas também da realidade desejante


e do real, obtemos uma maior clareza sobre os autorretratos. Situa-se em torno do sujeito e sua
percepção do mundo:

[...] O que singulariza o sujeito é a trama de suas histórias e fantasias que, mesmo já
dispostas na cultura, são amarradas de forma particular pela pulsão, enquanto aquilo
que se distingue do instinto animal, aparecendo como [...] dedução necessária, porque
o universo de representações e de ideias, a satisfação obtida pela obtenção dos
objetos/sentidos do mundo da realidade, nunca é bastante. Desta forma, o aparelho
psíquico constitui sua realidade para fugir do real, para existir, mas ao mesmo tempo,
luta para buscá-lo. [...] Então, a condição de existência do objeto, enquanto uma
positividade investida, é que ele seja capturado pela fantasia. A questão a ser posta é
se seria possível haver um objeto que não fosse um objeto capturado pela fantasia.
Pois se a fantasia tem por função oferecer ao desejo seus objetos, então ela está
diretamente associada ao princípio do prazer, no sentido de possibilitar certa
constância da economia psíquica e assim suscitar algo, como uma homeostase
psíquica. (VIEIRA apud SILVA, 2014, p. 38-39).

Entrelaçamos esse diálogo da psicanálise à arte, de acordo com algumas pesquisas de


Susan Sontag (2012, p. 149) mais especificamente a fotográfica, sobre o sentido da imagem:
“A fotografia é entendida por um desejo de substituir, guardar a experiência autêntica, uma
invenção ou um substituto da memória. É o substituto da posse de uma coisa ou pessoa querida,
no desejo de fotografar: a experiência que procura uma forma à prova de crise”.

4.4.1 Fantasia, fantasma, fantasmático

Telma produz imagens de si. A fantas


ia é um agente constituidor. No registro de se fotopintar, ela cria algo simbolicamente
mais aderente às vidas projetadas. Quando Telma, uma fotógrafa na década de 1940,
107

personifica-se em atrizes de cinema, surgem as questões acerca de suas referências estéticas.


Em um período no qual o retrato estava no ambiente da casa, na sala de visitas, como
algo solene, que registrava os momentos especiais, bailes de debutantes, primeira comunhão,
formatura, casamento ou falecimento, as imagens “falsas” das personas de Telma seriam o
registro mais próximo daquilo que se encontra fora do rito, ou então, ao contrário, a criação de
um Super-Rito. No plano do extraordinário, ser uma gueixa japonesa só se faz possível
considerando a força da ideia da fantasia capaz de recuperar algo que, não sendo uma gueixa
japonesa, passa a sê-lo, através da imagem. Silva traça um histórico do conceito:

O termo phantasía, no que possa implicar para uma teoria do conhecimento, aparece
pela primeira vez nos Diálogos de Platão (República), e se refere a duas propriedades
distintas: a faculdade humana de imaginar e a propriedade do objeto em aparecer.
Entretanto, tanto a noção de fantasia, imaginação, quanto à de fenômeno, eram
admitidas com severas ressalvas da parte de Platão e os platonistas, sendo
consideradas apenas como índices de um tipo de conhecimento duvidoso, capaz de
gerar por si sós apenas um conhecimento relativo (doxa: opinião) e impreciso. (SILVA,
2014, p. 40).

É, posteriormente, na ideia das imagens que fazem aparecer, no sentido de aparência,


que adensamos nossa compreensão às realizações de Telma.

Segundo Gobry (2007), o sentido dicionaresco do termo para os gregos se refere à


“faculdade da alma humana de criar imagens imanentes” (p. 111). Apesar de a fantasia
ser tomada num sentido geral como uma criação de imagens, a etimologia do termo
revela uma íntima associação com o termo fenômeno. Pois, segundo o referido autor,
ambos derivam do radical phan, que por sua vez é oriundo da raiz phao, que indica
luz e aparência. O verbo phaínen é relativo a fazer aparecer e phaínesthai significa
aparecer. O termo phainómenon, significa aparência, aquilo que aparece, ou seja, o
próprio fenômeno. Dessa forma, o termo fantasia se refere à articulação entre a criação
imaginativa e aquilo que aparece, entre aparência e imagem. (SILVA, 2014, p. 40).

Persistimos ainda pelos estudos de Silva, trazendo o desejo ao centro da questão:

Em geral, a esfera da fantasia sofreria dessa desconsideração da parte dos filósofos.


Sendo associada a devaneios sem compromisso ou desejos inconfessos, incapazes,
por sua vez, de poder contribuir para a construção de um corpo de conhecimento. Esse
cenário começaria a mudar a partir da consideração – da parte dos filósofos, artistas e
psicanalistas – do desejo como razão de ser daquilo que aparece. Filosofias como as
de Schopenhauer e Nietzsche, precedidas por Spinoza e Lucrécio, contribuíram para
a descentralização da razão em seu sentido forte, criando espaço para a possibilidade
de se considerar o desejo como a essência do humano. (SILVA, 2014, p. 40).

Um dado específico é que os autorretratos surgem de um diário íntimo e secreto, que


depois passam a pertencer ao campo das artes (salas de exposições). É na transposição para esse
108

outro lugar, do fora da sala de visitas ou do mundo secreto, que elas são ressignificadas. Silva
evidencia a ponte, no sentido de encontrar-se no desejo do outro, com o conceito de fantasma:

Ainda segundo Zizek (2010), a fantasia seria o recurso que o sujeito teria para
responder à fundamental questão sobre sua localização no desejo do Outro: a fantasia
refletiria exatamente o tipo de objeto que ele seria frente ao olhar do Outro. Com isso,
a fantasia se formularia como sendo a prova irredutível de que o desejo do sujeito
seria de fato o desejo do Outro. Entre outras consequências, essa afirmação permite
localizar no conceito de fantasia algo da ordem de uma alteridade irredutível, um
ponto de opacidade fundamental, que permite, entre outras deduções possíveis, tomar
o conceito de fantasia por fantasma, tal como sustenta Checchinato (2007). Este autor
propõe que o termo fantasma encontra de alguma forma referência já no próprio Freud,
em sua reflexão sobre o fato de as poesias dos poetas sempre anteciparem, em larga
medida, algo das descobertas da clínica psicanalítica. Afirma Checchinato: “Após
meditar sobre as poesias do inconsciente, em Fernando Pessoa, parece-me que nada é
mais justo que substituir o termo fantasia por fantasma, conforme foi proposto por
Lacan”. (SILVA, 2014, p. 19).

Tracemos, nesse ponto, um diálogo com os estudos de Jean-Pierre Vernant (2010), sobre
as discussões acerca do ser e do parecer em relação à imagem:

É opondo mais nitidamente o parecer ao ser, separando-os um do outro, em vez de os


associar em equilíbrios diversos, como tinha sido feito antes dele, que Platão confere
à imagem sua forma de existência própria, atribuindo-lhe um estatuto fenomenal
particular. Definida como semblância, a imagem adquire um caráter distintivo tão
maior que, doravante, ela não será mais considerada um aspecto, um modo, um nível
da realidade, uma espécie de dimensão do real, mas uma categoria específica, situada
frente ao ser, numa relação ambígua de “falso-semblante”. Essa especificidade
implica, em contrapartida, a expulsão da imagem do domínio do autenticamente real.
Ela é relegada ao campo do ficcional e do ilusório e desqualificada do ponto de vista
do conhecimento. (VERNANT apud LIMA, 2010, p. 79).

Atendo-nos à imagem como um nível da realidade, Vernant especifica que o elemento


da phantasía detém a capacidade da imaginação:

É preciso esperar o fim do século II d.C. para se encontrar, em Flávio Filóstrato, a


propósito de artistas como Fídias e Praxíteles, a afirmação de que o que presidiu à
criação de suas mais belas obras foi uma phantasía, uma imaginação não mais
dependente da mímesis, mas oposta e superior a ela, por conta de sua sophía: “[...]
Pois a mímesis apenas representa em imagem o que viu, mas a phantasía também o
que não viu”. Quando sobe aos céus para recolher as imagens dos deuses, o artista não
imita nem copia: ele imagina. Dissociada da mímesis, a phantasía vê-se capaz desse
mesmo poder de contemplar o invisível, de ultrapassar a aparência pelo acesso ao
mundo superior das Formas, que Platão havia reservado à filosofia. (VERNANT apud
LIMA, 2010, p. 86).

Para entendermos o resultado das imagens enquanto sua produção material, trazemos
análise do conceito de fantasmático, que considera a parcialidade das pulsões para que se
109

produza o objeto, e é essa materialidade – resultado da falta – que ocupa o mundo externo.
Segundo Silva (2014):
Essa condição permite entender melhor que todo encontro com o objeto é, na verdade,
um reencontro e que é na condição de ser parcial que o objeto alcança seu fundamento
de ser narcísico. Em outras palavras, o objeto parcial é referência maior à operação de
síntese que a fantasia opera, além de ser referência ao conflito inerente ao caráter
parcial das pulsões. Desse modo, a fantasia é uma operação que produz o objeto pelo
recurso de conformar os objetos da cena atual às primeiras experiências de satisfação.
Trata-se de um endereçamento contínuo, em que os objetos do mundo empírico são
remetidos ao roteiro fantasmático do sujeito. (SILVA, 2014, p. 43).

Em continuidade, num exercício da pesquisa advindo do método de entrevistas,


trataremos da análise de José Bogalheiro, pesquisador do cinema e da psicanálise, sobre a
identidade fantasmática. Embora faltem, nesta pesquisa, leituras que deem conta dessa reflexão,
foi utilizada como referência teórica a transcrição de aulas do professor (com seu consentimento,
conhecimento e avaliação). Disse-nos Bogalheiro (2016), que a expressão dos autorretratos
seria destacadamente uma ideia de identidade fantasmática:

A nossa identidade só é concebível como identidade fantasmática, pois ela tem que ter
conta o que já vivemos até ao momento presente, mas ao mesmo tempo incluir o que
ainda não foi vivido. Em cada momento, nós somos, simultaneamente, a vida passada
e essa que ainda não consumámos. Quando nós próprios nos perguntamos, ou nos
imaginamos, quem é que somos, não nos conformamos em ser apenas aquilo que já
fomos até ao momento, pois, simultaneamente, nos consideramos como seres de
indefinição. O que o futuro nos reserva acrescenta uma outra dimensão à nossa própria
identidade e, por isso, quer para nós próprios, quer para os outros somos um fantasma.
(BOGALHEIRO, 2016).

Sobre a identidade fantasmática e os autorretratos:

Somos uma imagem que projetamos, na qual nós nos vemos. Nela misturamos uma
parte que foi vivida, que está a passar e que, de uma certa maneira, é irreversível, que
foi como foi, e uma parte que ainda não vivemos, que está completamente em aberto,
mas que nós sabemos que tem também um conjunto de determinações que fazem com
o seu curso não dependa somente de nós próprios. Assim, os autorretratos da Telma são
elementos dessa ideia de identidade fantasmática que tinha um lado concreto, material,
mas que eram atravessados por projecções e desvios. (BOGALHEIRO, 2016).

Acerca da diferença entre fantasia e fantasma, continua:

A fantasia pode ser qualquer coisa sem tanta determinação, um produto mental, a que
faltam determinações concretas. Na ideia de fantasma, encontramos qualquer coisa que
pertence à imagem, que tem uma relação com a realidade, o que somos, o que fomos, o
110

que haveremos de ser. Este é o eixo central da reflexão que considera a imagem como
duplo. (BOGALHEIRO, 2016).

Comenta ainda a ideia de fantasma em relação à personagem Ana:

A personagem Ana, a neta, é a geração futura. No fantasma da Telma existe essa


geração futura. Se ela própria tivesse vivido a sua vida futura, o modo como que essa
neta a poderia ver seria algo materializado. Equivalendo a como essa neta a poderia ver,
existe a dimensão material da fotografia. Essa materialidade é o que nos amarra a essa
imagem que a própria Telma produziu. (BOGALHEIRO, 2016).

Portanto, os autorretratos objetivam os desejos e, como materialidade, projetam esses


desejos para o futuro presente.

Figura 39 – Autorretratos fazem parte do conjunto de 24 imagens que geraram suas exposições de arte.
Fonte: Acervo Família Saraiva.
111

Figura 40 – Autorretrato de Telma como Grega.


Fonte: Acervo Família Saraiva.

Figura 41 – Fotografia em sépia de Figura 42 – Fotopintura de Telma como


Telma Saraiva como espanhola Fonte: espanhola. Fonte: Acervo Família
Acervo Família Saraiva. Saraiva.
112

Figura 43 – Conjunto de autorretratos fotopintados por Telma Saraiva. Fazem parte das 24 imagens
comentadas.
Fonte: Acervo Família Saraiva.
113

Figura 44 – Autorretrato de Telma Saraiva, fotografada por Júlio Saraiva, e pintada por Telma Saraiva.
(superior, lado esquerdo)
Autorretrato em sépia, por Telma. (superior, direito)
Autorretrato em sépia, por Telma Saraiva. (inferior, esquerdo)
Autorretrato fotopintado por Telma Saraiva, segundo depoimentos, inspirados em Scarlett O’Hara
no filme E o vento levou. (inferior, direito)
Fonte: Acervo Família Saraiva.
114

Figura 45 – Telma Saraiva como egípcia, fotografia em sépia.


Telma Saraiva como soldada.
Telma Saraiva como índia.
Autorretratos fotopintados por Telma Saraiva. Segundo depoimentos os três
últimos de sua série, esses inspirados no filme Gilda.
Fonte: Acervo Família Saraiva.
115

Figura 46 – Fotopintura de Telma como índia Fonte: Acervo Família Saraiva


116

Figura 47 – Fotopintura de Telma como gueixa. Fonte: Acervo Família Saraiva.


117

5 METODOLOGIA DA CRIAÇÃO

Peço-lhes que me desculpem por expor-me assim


diante dos senhores; mas penso ser mais fácil relatar
o vivido do que simular um conhecimento
independente de toda e qualquer pessoa, e uma
observação sem observador. Na verdade, não há
teoria que não seja um fragmento, cuidadosamente
preparado, de uma autobiografia qualquer.
Paul Valéry

Como se trata de um exercício não realizado anteriormente pela pesquisadora-


documentarista, nem pelo aspecto da reflexão teórica, procuramos estabelecer um método que
passasse pela articulação entre a investigação específica sobre a docuficção e o saber prático
que surge à medida da escritura de cada versão do roteiro.
Processo que se fez num imbricamento entre o roteiro e a tese. Ou seja, a pesquisadora-
realizadora gera um problema que é testado na escritura, que o próprio roteiro coloca como
matéria da reflexão para a teoria. É esta reflexão simultaneamente teórica e artística, que, ao
mesmo tempo, vai abrindo caminho a partir da pesquisa para o roteiro, e vice-versa.

5.1 Relato de experiência da documentarista

A morte de Telma aconteceu dois meses antes de começarmos as gravações, por isso,
fizemos uma pausa e iniciamos em agosto do mesmo ano, com um roteiro desmotivado e
imaturo. Havia a intenção de construirmos uma biografia da artista, com uma proposta de
documentário de entrevistas, visitando os ambientes das salas das casas, emoldurados com as
fotografias de seus retratados. Também tínhamos imagens que foram o ponto de partida para se
pensar a docuficção, mas que não continham uma dramaturgia prévia.
Como um dos objetivos, desde o início, foi o de explorar a memória envolvida desde o
contato com os retratos de família até a curiosidade pela artista, levantamos a hipótese de
utilizar a participação da documentarista, de forma mais direta, também como elo dramático.
Como recurso, encontramos o relato em diário, feito pela personagem, sobre experiência
da viagem que a leva tanto à terra da infância, como ao lugar das memórias afetivas. Para
aprofundarmos os sentidos dessas escolhas, baseamo-nos nas análises de Catherine Russell
(1999) sobre autoetnografia pelo ato de deslocamento, tanto o geográfico, como, o mais
importante, aquele provocado pelo estranhamento do cotidiano. Alicerçamo-nos no sentimento
118

da não adaptação, objetivando produzir uma distância relativa, para observar o familiar e
também se auto-observar. Russell (1999) enfatiza que a memória e as viagens “são meios de
explorar ‘eus’ fragmentados e maneiras de se colocar algo para recordar”. Com isso, a
documentarista encontra a história da artista. E foi a presença da morte, que nos impeliu a optar
por uma narrativa híbrida.
Logo depois, iniciada a escrita do roteiro, sentíamos passo a passo as dificuldades
avolumarem-se, pois cada escolha exigia uma coerência formal de continuidade. Além de
percebermos que os campos, tanto o da ficção, como o do documentário, estão muito bem
definidos e organizados nas características formais, com seus realizadores, críticos e
pesquisadores, pelas publicações especializadas e em seus locais de recepção, sejam as salas de
cinema, festivais (com as categorias de competição que estão também nos editais de fomento),
e nas galerias e museus. Desse modo, as concepções de mundo, as quais organizam o
documentário e a ficção, estão bem traçadas, e por estarem dessa forma, há a tendência de
excluir aquilo que foge à regra.
Em outras palavras, cada campo expõe seus discursos sobre a realidade, muito bem
constituídos histórica e socialmente, não havendo muitas tensões entre eles.
Então, o problema surge pela nossa escolha, falar de um lugar de intermeio, um tipo de
subgênero pouco delineado. Voltamos para nossa pergunta motivacional: por que fazer uma
docuficção? Que leitura do mundo ela pode nos acrescentar?

Cena final

Seguiremos Ana em sua descoberta do acervo fotográfico de Telma. As imagens


tornam-se um enigma, pois, inicialmente, estranha a forma pela qual o retrato realista está
representado. Conforme vai conhecendo, cada vez mais, o processo de feitura da fotopintura,
Ana adentra no imaginário que elas representam. As características formais, desde a luz, as
cores, a indumentária e o cenário cerimonial, revelam os desejos imbuídos em cada elemento
idealizado, advindos, em parte, dos romances de cinema e das novelas de rádio. No entanto, ao
procurar as personagens retratadas nas fotografias e ouvir as histórias de cada uma delas, Ana
sente que as imagens, sendo capazes de representar anseios e frustrações, tornam-se um espelho
de auto-observação, em que ela se vê em cada história que escuta. Tudo isso culmina para a
cena final, quando, no quarto do estúdio fotográfico de Telma, ao manusear as fotografias e
119

mudá-las de lugar, torna-as formas móveis, desenhos manipulados, recuperados da


imutabilidade do tempo passado para a reelaboração da memória.
É então, a partir desse encontro, que Ana nos conduz às questões – e ao que representam
as imagens que decoram as paredes das salas e as páginas dos nossos álbuns de família –, para
que as revisitemos.

5.2 Temas geradores

As imagens captadas do primeiro roteiro nos serviram de guia temático. São imagens
documentais realizadas com as entrevistas dos contemporâneos e familiares que declaram o que
sabem sobre Telma. Portanto, nesta primeira etapa, utilizamos as nossas entrevistas e, também,
um vasto material de pesquisa que foi coletado de sites na internet, dos entrevistados, dos
acervos de exposições, de matérias na imprensa, para encontrarmos todos os temas possíveis,
que foram organizados dessa forma:

1. Telma banheira (acervo fotográfico): tema ligado ao desejo, às imagens de cotidiano


das atrizes;
2. Telma Ronnie Von: disco de vinil encontrado na sala de visitas de sua casa. Edilma
confirma que ela gostava de ouvir as canções do cantor (estilo pop da década de 1960);
3. Telma mãe (acervo): tema ligado à sua biografia de mãe precoce;
4. Crato Tênis Clube (acervo): ambiente que Telma frequentou e representa seu imaginário
das festas de carnaval, festas de cerimoniais que seu estúdio fotografava (bailes de
formatura, bailes de debutantes, concursos de misses, etc.);
5. Casa de Telma e Estúdio: ambiente de reconstituição para representar o cotidiano
familiar e profissional;
6. Telma Rio de Janeiro (acervo): ambiente de viagens;
7. Casa Gino: ambiente que representa os materiais de seu trabalho, molduras, pincéis,
reproduções de gravuras populares, acessórios fotográficos;
8. Colégio Santa Teresa: ambiente de formação escolar, religioso e onde ela aprende
técnicas de desenho e pintura;
9. Seminário e Igreja: ambientes religiosos, que representam espaços de agregação social
da cidade do Crato. O Seminário está ligado à Diocese;
10. Telma Fantasias: tema estruturante do roteiro que precisa ser representado em tudo no
120

enredo, desde fotos, indumentárias, ritos, ornamentos domésticos, etc.;


11. Crato: ambiente formador da vida social e do trabalho de Telma;
12. Carnaval do Crato Tênis Clube: festa importante no imaginário de Telma. Observar o
que encontramos de carnaval de rua atualmente, na cidade do Crato.

Figura 48 – Imagem de registro da primeira fase do processo. Para facilitar a


visualidade dos temas, criamos cartelas que eram afixadas na parede. Cada cartela
continha os temas selecionados (retirados das fotografias e imagens do
documentário), de onde derivaram os subtemas. Por exemplo, na cartela do Colégio
Santa Teresa temos como subtema, as fotografias da locação e a personagem Madre
Feitosa, que foi professora de Telma Saraiva. Ou seja, um ambiente e uma
personagem.
Fonte: Foto elaborada pela autora.
121

Figura 49 – Este mosaico representa uma pequena ilustração da


pesquisa das imagens. Uma parte das fontes é derivada da Web
(internet) e a outra, adveio do acervo fotográfico da família Saraiva.
Da esquerda para a direita, em um percurso horizontal: Telma Saraiva
com o sogro, Edilson Rocha (esposo) e filho; Telma Saraiva em praça
da cidade do Crato; Telma Saraiva na sala de sua casa por trás com
fotopintura da filha Edilma em tamanho natural. Na segunda linha;
Telma Saraiva em praia da cidade do Rio de Janeiro; Telma Saraiva
fotografada por Julio Saraiva destacando sua sombra de perfil; Telma
Saraiva vestida para festa de carnaval. Na terceira linha; Telma
Saraiva em seu estúdio iluminada por seus refletores; Telma Saraiva
na banheira; Telma Saraiva em jardim público. Na quarta linha; Telma
com Edilson e seus 4 filhos; Telma com seus instrumentos de trabalho,
pincel, palheta e cavalete.
Fonte: Acervo fotográfico da família Saraiva.
122

Em uma segunda etapa, organizamos as imagens pesquisadas dos acervos por tema:

1. Homens jovens
2. Homens adultos e idosos
3. Mulheres jovens e idosas
4. Crianças
5. Formaturas
6. Debutantes
7. Casamentos
8. Noivas
9. Primeira Comunhão
10. Batismos
11. Retratos 3/4
12. Nus
13. Autorretratos (24) de Telma
14. Telma: família
15. Telma: viagens
16. Telma: filhos
17. Telma: casa
18. Telma: matérias de revistas e de jornais
19. Telma: cidade do Crato
20. Telma: carnaval
123

Figura 50 – Mosaico da pesquisa das imagens


Da esquerda para a direita, em um percurso horizontal: fotografias de
meninas em trajes de primeira comunhão; abaixo; quatro
senhoras; abaixo; moças em trajes de formatura; abaixo;
crianças (duas delas vestidas de fantasias); abaixo; moças em
trajes de debutantes; última fila; dois homens (filhos de Telma),
duas mulheres.
Fonte: Imagens derivadas da Web (internet) e a outra, adveio do acervo
fotográfico da família Saraiva e dos pesquisados.
124

Fizemos um estudo das imagens, observando cenário, luz, vestuário, cores, composição,
gestual. A partir disso, com as entrevistas e as fotografias organizadas por temas geradores,
criamos os personagens com função e conteúdo para a ação:

Familiares: filhos; neta; filha; prima (Iacy Pierre); família Arraes (lado da mãe de Telma).
Conhecidos: vizinho; vendedora e colega; fotografadas.
Amigas: Madre Teresa e professora de Telma.
Personalidades da região: médico; padre; radialistas.
Fotografadas: mulheres; crianças; homens.
Especialistas: curadores; fotógrafos; professores.

Figura 51 – Imagem de registro do processo. Cada cartela contém os personagens e suas características
particulares como função para a ação. Como exemplo, temos; Vicelmo (radialista), Lalá (contadora), Allan
(fotógrafo), mãe de Allan (Socorro), Júlio do Santos (fotopintor), Seu Abdon (fotopintor), Naísa (professora),
Herbeno (vizinho, pintor), Carlota (colega e vendedora), Madre Feitosa (Colégio de freiras), Iacy Pierre (prima
de Telma), Bastinha (cordelista, professora), Celene (professora), Isa (vereadora), Sr. Cabral (radialista), família
Telma (pai, mãe, Edilma, Ricardo, Roberta).
Fonte: Foto elaborada pela autora.
125

Figura 52 – Mosaico da pesquisa das imagens. Da esquerda para a direita, em um percurso horizontal:
Fotopintura de Naísa (professora), e print screen de tela de computador com imagem de Naísa
para a pesquisa do roteiro. Em seguida, Neusa sentada no sofá de casa, foto ¾ de Neusa.
Terceira linha; sequência de fotografias de Iacy Pierre em traje de noiva, com seu esposo,
Iacy com 15 anos, Iacy com 10 anos, Iacy com 5 anos. E abaixo, print screen de tela de
computador com imagem de Socorro (mãe de Allan) segura sua foto de formatura, ao lado a
foto de formatura de seu esposo.
Fonte: Acervo fotográfico das famílias pesquisadas, e a outra, de registro da pesquisa da autora, e de
fotografia de still.
126

A partir dos temas e dos personagens, criamos a personagem Ana, inspirados pelos
depoimentos da neta de Telma, Roberta Rocha, e por ser o modelo que caberia também à voz
da documentarista. Procuramos um percurso de viagem – de Ana que chega do estrangeiro –
motivada pela herança da casa, que tratasse do tema de descobrir a biografia de Telma.

Percurso narrativo:

1. Viagem de avião
2. Estrada Fortaleza-Crato
3. Estrada Paradas
4. Chegada ao Crato
5. Chegada ao hotel
6. Igreja (Seminário): como a cidade amanhece
7. Feira de produtos (segunda-feira), a mais importante da cidade
8. Cartório: documentos da herança
9. Casa de Telma
10. Escola onde Telma estudou
11. Visitas aos parentes: salas de visitas
12. Visitas aos ambientes da cidade e à região do Cariri
13. Visitas aos ambientes da fotopintura
14. Visitas aos espaços públicos: praças, comércio, Horto
15. Espaços da herança: fórum, museu, casa-estúdio
16. Chapada do Araripe: floresta
17. Crato Tênis Clube: salão de festas hoje, piscina, fachada
18. Fachadas de espaços onde eram os antigos cinemas
19. Fotos de acervo histórico da cidade à época da juventude de Telma
20. Material de arquivo sobre a cidade do Crato à época da juventude de Telma
21. Acervo de fotografias de Telma.
127

Figura 53 – Imagem de registro do processo. Fonte: Foto elaborada pela autora.

Figura 54 – Imagem de registro do processo Fonte: elaborada pela autora.


128

Figura 55 – Este mosaico representa uma ilustração da pesquisa das imagens para a concepção dos
lugares por onde Ana visita. Da esquerda para a direita, em um percurso horizontal: Casa do
Fotopintor Abdon; Ambiente do salão de festas do Crato Tênis Clube. Segunda linha; Sala
da casa de Ricardo (filho), ao lado, vitrines com adereços, refletores, ornamentos utilizados
no cenário e indumentária das fotografias de Telma, em seu estúdio. Terceira linha; estúdio
fotográfico de Júlio Santos, fotopintor. Ao lado; sala da casa de Allan. Na quarta linha; Sala
da casa de Carlota, ao lado, fotografia de Edilma (filha) em trajes de noiva. Na quinta linha;
fotografia do músico Luiz Gonzaga, no meio; fotopintura de Madre Feitosa, seguida de
fotopintura do bispo do Crato. Na sexta linha; fotopintura de Telma quando bebê (foto de
Júlio Saraiva pintada por Telma), no meio, a mesma fotografia em preto/branco, e por último,
a placa de vidro do negativo da mesma foto de Telma.
Fonte: Acervo fotográfico das famílias pesquisadas, do registro da autora e das fotografias de still.
129

Figura 56 – Ilustração da pesquisa das imagens para a concepção dos lugares por onde Ana visita. Da esquerda
para a direita, em um percurso horizontal: sala de visita da casa de Telma, seguida da fotografia do
quarto de Edilma (filha). Abaixo; Detalhe da penteadeira com relógio, fotografia de Edilma
emoldurada e ornamentos no estilo clássico, do quarto de Edilma. Ao lado, detalhe da parede da
varanda com relógios que Telma colecionava. Abaixo, fotografia da sala da casa de Telma, no estado
em que se encontrava durante a captação das imagens para o documentário, em agosto de 2015. E
ao lado, fotografia de Telma na mesma penteadeira da filha.
Fonte: Uma parte das fontes é advinda do acervo da família Saraiva e a outra, de registro da autora, de fotografia
de still.
130

Figura 57 Ilustração da pesquisa das imagens para a concepção das descobertas de Ana. Da esquerda para a
direita, em um percurso horizontal: fotopintura da mãe de Telma, D. Mirô; Ao lado, Telma e Edilma.
Seguida de Telma com fotografia emoldurada do pai, Júlio Saraiva. No meio; Edilma em três fases,
duas delas jovem, e a última menina em trajes de espanhola. E na terceira linha; quatros dos cinco
filhos de Telma, e na última, Telma muito jovem, já com os três primeiros filhos.
Fonte: Uma das fontes é derivada da Web (internet) e as outras, adveio do acervo fotográfico da família Saraiva.
131

5.3 Escaleta

Definidos os temas, os personagens, as protagonistas e a ação, e desenvolvidos a sinopse


e o argumento, chegamos à síntese da história, com início, meio e fim. A partir disso, a segunda
etapa tratou da elaboração das partes do roteiro de longa-metragem, planejado para ter duração
entre 1h10min e 1h30min. Com essas diretrizes, produzimos a escaleta, estrutura desenvolvida
por meio de um esqueleto móvel, com o resumo de cada sequência.

Em cada sequência deve conter a situação e a ação do personagem. Uma parte do todo.
E, para que pudéssemos visualizar um panorama do todo, a maneira mais prática, para nós, foi
ordenar as sequências por meio de pequenas folhas de papel colorido, com cores distintas para
cada tema principal, exibindo-as em painel.
Escolhemos, no primeiro quadro, três temas condutores do enredo, cada qual associado
a uma cor no quadro geral da escaleta. Azul para a cidade do Crato, amarelo para Telma, e rosa
para Ana. Dessa forma, com facilidade, fez-se possível mover as partes dentro do todo,
buscando afinar uma lógica interna do ritmo da ação. As cores nos ajudam a equilibrar os temas,
para que estes não fiquem concentrados na continuidade da narrativa.

Figura 58 – Imagem de registro do processo Fonte: Foto realizada pela autora.


132

Durante o desenvolvimento, percebemos que um tema crescia – a participação das


mulheres fotografadas. Então, acrescentamos, com a cor verde, o tema Mulheres. Para uma
nova organização visual, identificamos Ana com a cor amarelo, e Telma com a cor amarelo
queimado. Observamos, pelo encadeamento das cores, que Ana inicia a história, apresentando
paulatinamente as imagens de Telma, para, do meio em diante, crescer a presença de Telma.
Assim, fechamos uma (primeira) versão completa do roteiro de longa-metragem.

Figura 59 – Imagem de registro do processo Fonte: Foto realizada pela autora.

1. Viagem de avião: Canadá – Brasil.

Após saber a notícia que receberá uma herança da tia-avó, Ana viaja ao Crato.

2. Viagem de carro: estrada Fortaleza – Crato.

Ana resolve ir de carro, para lembrar as viagens que fazia com os pais, durante sua infância.

3. Parada na barraca de frutas.


133

Repete a parada na beira da estrada para comer frutas, especialmente sapotis/cajus, como fazia
com seus pais.

4. Estrada – Passagem pela cidade de Quixadá.

Começa a sentir saudade da filha. Escuta a rádio local e lembra-se dos sotaques das cidades do
interior e da família.

5. Carro parado na estrada.

Resolve parar novamente, desta vez, para fazer xixi. Reclama da distância, do calor. Arrepende-
se de ter vindo de carro pela estrada.

6. Estrada – Casa Café com Tapioca.

Faz mais uma parada, agora, para comer, e percebe em Mazé, atendente do restaurante, tristeza
provocada pela monotonia.

7. Chegada ao Crato, à noite (crepúsculo).

A cidade, à noite, demonstra o longo percurso de um dia de viagem.

8. Hotel Villa Real.

Hospeda-se no mesmo hotel que ficava com seus pais, quando a casa de Telma estava cheia.

9. Amanhecer – Seminário.

Devido ao fuso horário, Ana acorda cedo. Escuta o som do sino e resolve ir à missa.

10. Feira – Centro da cidade.

Ana anda pelas barracas da feira. Por onde passa, escuta a rádio educadora: jingle de faroeste.
Observa as pessoas, as mulheres que trabalham nos restaurantes e comércios.

11. Casa de Telma – Encontro com filho de Telma (Ernesto).

Ana entra na casa de Telma como está hoje, empoeirada. Casa abandonada, esperando para a
venda. Ela observa, na casa, relógios, fotografias. Começa a ter informações sobre Telma. Ana
fala com o primo, Ernesto, sobre a herança.

12. Cartório.

Vai ao cartório, para levantar os documentos necessários ao processo para receber a herança. A
funcionária Teresinha dá informações sobre a vida de Ana e sua família. Fala das fotos que
134

Telma fez do casamento dos pais de Ana, especialmente a foto do vestido de noiva de sua mãe.
Ana deseja ver essas fotos.

13. Retorno à casa de Telma.

Ana fala com o primo Ernesto. Quer saber sobre a foto do casamento da mãe. É informada que
o acervo de Telma está dividido nas casas dos parentes na cidade. Então o primo diz para ela
começar a procurar as fotos na casa da prima Iacy de Pierre.

14. Casa de Iacy.

Acha a fotografia da mãe e conversam sobre suas fotos de infância. Deseja encontrar suas fotos.

Vê a cronologia dos ritos através da série de fotos de Iacy. Mulher clássica. Iacy lembra que
Allan tem fotos de Telma e que ele era muito amigo de infância de Ana. Allan ainda mora com
a mãe, Socorro. Socorro de Guigui.

15. Casa de Socorro, mãe de Allan.

Socorro fala do começo da vida profissional de Telma com o pai, Júlio Saraiva.
Socorro conversa sobre sua vida familiar e profissional. Faz Ana pensar na vida. Começa a
perceber a crise de insatisfação com sua profissão, pois terminou o curso de Direito, mas
trabalha fazendo assistência para seu marido. Não acha sua foto.

16. Estátua de Bárbara de Alencar – Praça da Sé – Crise 1.

Ana fala com Miguel por telefone. Reflete sobre o que ouviu de Socorro e pensa sobre sua
situação profissional.

17. Casa de Carlota, madrinha da sua mãe.

Visita Carlota. Fala sobre a inveja que Carlota teve de Telma. Episódio sobre as bonecas que
Carlota fazia e que Telma fazia melhor. Percebe a admiração que Telma gerava nas amigas.
Decide voltar à casa de Telma para ver mais fotos da tia-avó e procurar a sua.

18. Casa de Herbeno. Vizinha à casa de Telma.

Ana procura conhecer mais o trabalho profissional de Telma, vai à casa, está fechada e encontra
o vizinho e amigo de Telma. Herbeno fala sobre a amizade com Telma e como aprendeu técnicas
de desenho com a fotógrafa. Fala sobre sua juventude com Telma, fotografando pela cidade.
Mostra fotos de Telma jovem, na cidade. Herbeno sugere que ela fale com a professora de
Telma, Madre Feitosa.
135

19. Escola Santa Teresa – Madre Feitosa.

Professora de Telma na escola religiosa para mulheres. Vê-se espaços de divisão de mulheres e
de homens, antigamente e hoje. Foto de formatura de Telma. Série de formandas. Madre Feitosa
conta sobre como era a Telma, aluna na escola, suas habilidades desde jovem. Sugere que ela
conheça as amigas de escola de Telma. Todas foram fotografadas por ela.

20. Cordelista Bastinha Job.

Ganhou de presente sua foto de casamento de Telma. Professora, queria ser jornalista. Fala
sobre vocação e estudo para ser boa no que faz. Fala da dificuldade das mulheres para serem
independentes e terem seu reconhecimento profissional.

21. Salete Libório.

Atriz, fez a nordestina Bárbara de Alencar no teatro, que foi a primeira mulher presa política
brasileira. Casou e teve filhos. Fala de episódios sobre a vida de Bárbara, de Telma e de Violeta
Arraes, mulheres à frente de sua época.

22. Naísa, professora.

Professora. Não casou. Fez uma escola no quintal de sua casa, onde ensinava sobre as festas
populares. Não se arrepende de não ter casado e não ter tido filhos. Gosta da vida que tem hoje.
Aposentada, pode viajar.

23. Celene Queiroz.

Professora. Não casou. Fala que por ser independente profissionalmente e morar na cidade, a
família do namorado, moradora do campo, não quis que ele casasse com ela. Fala da dificuldade,
à época, de sair sozinha de casa e andar na cidade, sendo uma mulher.

24. A virgem Lalá.

Lalá escolheu ser contadora, a outra formação para quem não queria ser professora. Não casou;
os homens tinham medo de mulher independente. Fala com orgulho da virgindade mantida nos
seus 65 anos.

25. Jardim da casa de Violeta Arraes.

Violeta, prima de Telma, não tem fotos feitas por ela. Atuante na área cultural e política. Foi
combativa contra a ditadura militar. Ana reflete que Violeta, como Telma Saraiva, teve um
nome público.
136

26. Paisagem da Floresta com Cachoeira – Não volto mais – Crise 2.

Depois de ouvir tantas histórias de vida, Ana, bastante impressionada e angustiada, decide não
voltar mais ao Canadá.

27. Reisado.

Ana, guiada pela música do reisado, entra no terreiro de uma casa e participa da dança. Neste
momento, ela vê os personagens do anjo Miguel e o diabo. Ela relata a Miguel que se sente
como o diabo na vida do marido, e que não volta mais. Precisa resolver só com ela mesma sua
vida.

28. Casa de Ricardo e Edilma (filhos de Telma).

Almoço em família. Ana procura saber sobre a vida profissional de Telma. Veem fotos de
diversas fases. Ana percebe a dedicação profissional de Telma ao trabalho. Trabalhava de
segunda a segunda, o que todos repetem. Edilma fala sobre a tradição da fotopintura e mostra
seu álbum de fotos que a mãe fez.

29. Dona Neusa.

Ana volta ao hotel e para em uma casa que vende bebidas, compra uma água e conversa com
Dona Neusa, a proprietária que só fez uma foto 3/4 no Foto Saraiva. Ex-prostituta do cabaré
dos ricos. Vive em uma casa muito modesta. Corpo jovem para seus 75 anos.

30. Horto – cidade de Juazeiro do Norte.

Ana visita lugar religioso e de peregrinação que sua mãe e avó iam. Vê casais pagando
promessas por terem casado, outros pedindo para casar. Observa diversos casais, hétero e
homoafetivos. Reflete sobre Dona Neusa e Lalá (uma que teve muitos homens; outra, nenhum).

31. Allan encontra as fotos de infância de Ana.

Allan, filho de Socorro, acha a foto de infância de Ana, fantasiada de índia. Mas precisa
restaurar. Sugere ir ao estúdio do Sr. Abdon.

32. Casa de Abdon – fotopintor.

Sr. Abdon é um dos poucos, ainda, a trabalhar com fotopintura no Cariri. Não usa as tintas a
óleo que Telma usava, indica Sr. Júlio Santos.

33. Estúdio Júlio Santos – fotopintor.


137

Sr. Júlio restaura a foto e explica para Ana o processo de fotopintura que Telma utilizava, e o
que ele utiliza hoje. Entrega uma revista para Ana, com matéria jornalística sobre Telma. Na
revista, há um autorretrato de Telma como índia. Estranha a roupa de índia e lembra-se das
fantasias de carnaval dos blocos do Crato Tênis Clube.

34. Crato Tênis Clube – Piscina – Crise 3.

No clube, relembra sua infância, as brincadeiras com amigos e família. Vê fotos de carnaval no
clube. Filme sobre as festas de carnaval. Lembra-se que ganhava de todos os meninos
competindo na piscina. Vê-se perdida para “ganhar” dos meninos, mas animada com a foto
restaurada.

35. Casa Gino – monóculo.


Vai à Casa Gino, onde Telma comprava artigos fotográficos, para adquirir uma moldura para
sua foto e monóculos (iguais aos que tinha quando criança) para ela e a filha. Quer que a filha
a tenha como exemplo de reconhecimento e autonomia profissional.

36. Sonho de Ana.


Ana sonha que está no aquário, como estavam os peixes da filha e que saltaram para a morte.
Aquário com peixes de plástico.

37. Quarto de hotel.

Ana cola sua foto de infância como índia na parede, do lado, coloca a foto da revista de Telma
como índia, na mesma parede que tem fixado um quadro, reprodução de pintura romântica por
tema da índia Iracema, símbolo da formação do povo da região.

38. Fórum – Testamento de Telma.

Edilma lê o testamento de Telma. Ana não quer mais que a família venda a casa. Decide doar a
parte dela para um espaço que agregue o acervo de Telma, um memorial para que as gerações
vejam sua produção artística.

39. Estúdio de Telma.

Ana entra no estúdio, vê os objetos fotográficos, aparelhos, painéis, roupas, fotos, revistas.
Encontra mais autorretratos de Telma.

40. Casa Herbeno – Telma e o cinema.

Herbeno fala sobre as divas do cinema, de como Telma aprendeu a gostar de cinema com o pai,
138

que a levava criança para aprender a ler com as legendas dos filmes. Herbeno mostra para Ana
fotos de atrizes dos filmes que Telma via. O que ela comentava dos filmes, os autorretratos e
sobre Gilda.

41. Telma Shirley Temple.

Autorretrato de Telma como Temple.

42. Telma Scarlett O’Hara.

Autorretrato de Telma como O’Hara.

43. Telma Elizabeth Taylor.

Autorretrato como Taylor.

44. Telma como Ava Gardner.

Autorretrato como Gardner.

45. Telma como Ângela Maria.

Autorretrato como a cantora de rádio Ângela Maria.

46. Telma melancólica.

Autorretrato como atriz de filme mudo.

47. Telma como Gilda.

Autorretrato como Gilda.

48. Casa de internet.

Ana vê trecho do filme Gilda. Ana repete as legendas como Telma fazia.

49. Estúdio de Telma.

Ana entra no estúdio fotográfico de Telma. Apanha um DVD com trecho de depoimento de
Telma. Vê foto de Telma gueixa e fotos ensacadas dos autorretratos de Telma.

50. Crato Tênis Clube – Carnaval.

Ana vê o salão e a piscina do clube, hoje. Vê filmes de debutantes. Fotos de debutantes e misses
feitas por Telma. Encontra uma miss fotografada por Telma e conversam sobre beleza,
exigências para ser miss e como envelhecer.
139

51. Fuga do mundo real – precisa mudar a fantasia.

Vê filme de criança pulando na piscina e reflete sobre mudar sua fantasia.

52. Museu do Crato.

Ana visita o museu de arte e vê que há fotografias e esculturas do pai e do marido de Telma,
mas não tem nada do trabalho de Telma lá. Ana pensa sobre essa ausência de Telma no espaço
público da cidade.

53. Volta à pergunta sobre a fantasia.

Ana retira do saco as fotos de Telma e cola na parede do quarto do hotel, em frente à sua cama.
Junto à sua foto de infância, a Telma índia e a reprodução de Iracema. A parede fica toda
preenchida com as fotos de Telma.

54. Plano de Telma (Filme).

Um plano filmado de Telma, em que ela espera o diretor autorizá-la para que comece a falar.
Telma fala sobre a importância da fotografia em sua vida.

55. Ana no café com Allan.

Ana e Allan observam o que acontece fora do café e veem o movimento frenético das pessoas
na rua. Chega uma amiga (ou amigo) e eles conversam sobre fotografia.

56. Estúdio de Telma – Fotos embaralhadas.

Ana vai ao estúdio de Telma. Retira as fotos dos sacos, separando-as. De um lado, as fotos de
casamento, batismo, primeira comunhão, debutante; do outro lado, as fotos dos autorretratos de
Telma e fotos de fantasia de carnaval. Depois, lentamente, começa a mudar de lugar, saindo dos
lugares de oposição e se sobrepondo umas às outras. Nessa sobreposição, as imagens se fundem
umas com as outras, construindo imagens duplas e triplas, como noiva – freira, debutante –
índia, primeira comunhão – cantora de rádio, etc.

NÃO É O FIM
140

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resolvemos o enigma dos autorretratos, com uma versão dos fatos.


O objeto desta tese adveio de uma ação posta em crise. Diante do imprevisto, fizemos
outras perguntas e mudamos o rumo do processo, numa conjunção entre vida e arte, como
preveem os manuais de roteiro assentes no drama, ao nos depararmos com um obstáculo
intransponível que nos convoca à ação.
A resposta às questões sobre a viabilidade de uma narrativa que suplante o encontro
ausente comprova que há coerência de sentido para uma história híbrida, originada do
documentário e da ficção. Isso nos possibilitou alargar nossa compreensão sobre o que são os
fatos no real, na realidade e na imaginação, com seus sentidos de verdade e invenção. Trouxe-
nos, ainda, a fantasia como uma resposta às vicissitudes da existência, e também como
produtora de imagética.
Desse modo, reiteramos que a defesa fundamentou-se nos estudos do drama, da história
e da psicanálise, bem como em pesquisas sobre cinema documentário e ficção.
Comprovamos, por meio da elaboração do enredo de docuficção: Ana conduz a viagem
para que, através de seus humores, possamos conhecer, pelos intervenientes – mediante seus
testemunhos –, uma vida exemplar da fotopintora Telma Saraiva. Em paralelo, ressaltando que
a história ficcional da vida de Ana, do mesmo modo, amplia aspectos da ação documental,
também a definindo como personagem de projeção da roteirista (documentarista).
Ana repete a constituição de um modelo de fantasia, com base no que Lacan discorre,
ou seja, como não podemos ter acesso a uma realidade objetiva total, que seria o real, um dos
nossos acessos ocorre pela mediação da fantasia, funcionando como um ponto de contato com
o real. Como pontua José Bogalheiro, uma identidade fantasmática, emblema dos autorretratos
de Telma, o que se elabora enquanto passado e presente, e se projeta, como o que pode vir a
ser.
Utilizamos uma metodologia que começa do material preexistente (roteiro documental),
para selecionarmos os temas geradores – retirados das características das protagonistas – em
correlação com os eventos factuais. Fatos que estão de acordo com o desenvolvimento do
conflito, ou seja, procuramos uma teia de correspondências em torno das problemáticas que
envolvem o mundo das mulheres.
Buscamos estabelecer uma articulação entre a docuficção e o saber prático que foi
surgindo à medida da escritura do roteiro. Instituindo, dessa maneira, um tipo de roteiro-tese
141

das Vidas de Telma – criando uma espécie de diário das vidas da tese. Constatamos que se
tratou aqui da relação entre dois textos – a reflexão teórica e a escrita do roteiro – exemplo
disso, o capítulo que revela a natureza híbrida da tese: O mundo em gesto: contexto
sociopolítico.
A personagem Ana, que sai de casa movida por um fator externo (receber a herança) e
um fator interno (insatisfação com sua vida profissional, que afeta sua vida conjugal), encadeia
a ação através da viagem ao ambiente familiar e às memórias de infância, acionando a procura
das fotografias porque movida pela curiosidade de saber quem eram as mulheres de sua família,
para, com isso, alcançar entendimento sobre sua própria existência. Pela biografia de Telma
Saraiva, conhecemos a cidade do Crato, o ambiente do Cariri, o estúdio e a casa da fotógrafa,
sua família e seus amigos, suas referências de criação e sua produção fotográfica.
Mesmo que o roteiro da docuficção trace um curso narrativo previsível, isso não impede
o seu caráter aberto, o que é facilitado porque Ana é uma voz off, guiada pelo ponto de vista da
documentarista, que segue as balizas programadas do roteiro, mas que acontecem à disposição
dos encontros do presente.
As referências fílmicas utilizadas na pesquisa foram nosso meio de expressar o que é
colocado na obra de Abbas Kiarostami, como analisa Jacques Aumont (2008, p. 173): “Situa-
se numa zona de troca entre realidade e ficção, em que seres humanos desempenham ‘o seu
próprio papel’ (segundo a expressão adequada) em histórias que são, em parte, as suas e, em
parte, inventadas, do cineasta”.
Na perspectiva do fazer cinematográfico, situamo-nos no que João Moreira Salles (in
Labaki, 2015, p. 272), repetindo o que John Grierson comenta sobre Flaherty, diz: “‘O cinema
não é um braço da antropologia nem da arqueologia, mas um ato da imaginação’. Precisamente
essa imaginação narrativa – que Flaherty decerto possuía, alguns dizem até que em excesso
[...]. Ele não descreve; constrói”.
Foi dessa forma que respondemos às questões da tese, primeiramente para o lugar da
documentarista: com a ideia do artista como elaborador de si, enquanto personagem, baseados
em Catherine Russell (2011, p. 1), com o conceito de autobiografia contemporânea: “[...] un
sentido del ‘yo’ completamente basado en la experiencia y la observación”.23, e, “[...] como una
exploración de las identidades fragmentadas y dispersas de la sociedad pluralista de finales del

23
“[...] um sentido do ‘eu’ completamente baseado na experiência e na observação”. (RUSSELL, 2011, p. 1,
tradução nossa).
142

siglo XX”.24 A documentarista vira uma personagem, colocando-se “como intercessora de si


mesma, quando transcende a sua condição em direção a uma terceira pessoa que adentra a
narrativa”, segundo Deleuze, “que remete à necessidade do outro para sair de si mesmo, para
passar do ‘eu’ para o ‘eles’”. (YAKHNI, 2014, p. 107).
A segunda questão remete à compreensão da construção dos estatutos narrativos do
documentário e da ficção: entendendo que, apesar dos relativismos e contrapontos, a maneira
como se formam, por essência, baseia-se no que Aristóteles (384 a.C – 322 a.C.) aponta sobre
a história (mais próxima do documento) e a poesia (mais próxima da imaginação), e que
“diferem pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer”. Também é
importante mencionar o que Esslin (1978, p. 21-22) apresenta como argumento irrefutável:
“Ora, a diferença entre a realidade e o jogo dramático é a de que o que acontece na realidade é
irreversível”.
Consideramos que documentário e ficção são expressões dramatúrgicas, cujo meio é,
antes de tudo, uma imagem mental. Nesse sentido, nossa terceira via de explanações tem a
imagem cinematográfica como mediação do real, portanto: é a abordagem da arte da mímesis
que trata do verossímil e do prazer, o que, de fato, a diferencia de tudo o mais, segundo
Cauquelin (2005, p. 60), e cuja ideia é desenvolvida pela psicanálise, a partir de Vernant (apud
Lima, 2010, p. 86), desdobrando seu sentido de mímesis, trazendo a fantasia: “o que presidiu à
criação de suas mais belas obras foi uma phantasía, uma imaginação não mais dependente da
mímesis, mas oposta e superior a ela, por conta de sua sophía: pois a mímesis apenas representa
em imagem o que viu, mas a phantasía também o que não viu”.
Como esclarece Vernant (apud Lima, 2010), não é a imagem como “parecer” se opondo
ao “ser” – tradição platônica que expulsa da imagem o domínio do autenticamente real – mas é
a imagem como imaginação, capacidade de contemplar o invisível. E, por ter uma condição de
incompletude, fundamento de ser narcísico, referência ao conflito inerente ao caráter parcial
das pulsões, trata-se, portanto, “de um endereçamento contínuo, em que os objetos do mundo
empírico são remetidos ao roteiro fantasmático do sujeito”. (SILVA, 2014, p. 43).
Relacionado com a história de Telma e Ana, no que se refere à compreensão da
identidade fantasmática, José Bogalheiro conclui:

[...] A nossa identidade só é concebível como identidade fantasmática, pois ela tem que
ter conta o que já vivemos até ao momento presente, mas ao mesmo tempo incluir o que
ainda não foi vivido. Em cada momento, nós somos, simultaneamente, a vida passada

24
“[...] como uma exploração das identidades fragmentadas e dispersas da sociedade pluralista do final do século
XX”. (RUSSELL, 2011, p. 1, tradução nossa).
143

e essa que ainda não consumámos. Quando nós próprios nos perguntamos, ou nos
imaginamos, quem é que somos, não nos conformamos em ser apenas aquilo que já
fomos até ao momento, pois, simultaneamente, nos consideramos como seres de
indefinição. O que o futuro nos reserva acrescenta uma outra dimensão à nossa própria
identidade e, por isso, quer para nós próprios, quer para os outros somos um fantasma.
A personagem Ana, a neta, é a geração futura. No fantasma da Telma existe essa
geração futura. Se ela própria tivesse vivido a sua vida futura, o modo como que essa
neta a poderia ver seria algo materializado. Equivalendo a como essa neta a poderia ver,
existe a dimensão material da fotografia. Essa materialidade é o que nos amarra a essa
imagem que a própria Telma produziu. (BOGALHEIRO, 2016).

6.1 Imagem Conclusiva

Como um exercício de reflexão artística, transformamos o pensamento sobre a


docuficção em desenho, que ganhou esta forma:

Figura 60 – Ilustração. Fonte: elaborada pela


autora.

Partindo da primeira imagem, I, temos um ambiente na cor lilás, com elementos


documentais, e outro ambiente verde, o da ficção. Foi com esse pensamento que iniciamos
nossa pesquisa. Precisaríamos chegar às margens híbridas que não comprometessem os núcleos
“puros”, separados. Pesquisaríamos as características de cada um, para depois juntarmos as que
fizessem funcionar a história.
Depois, no decorrer dos estudos, percebemos que não era mais uma questão de sobrepor
ou juntar características, mas de estruturar uma coerência de pensamento sobre o todo, ou seja,
144

uma visão de mundo sobre os acontecimentos. Assim, a imagem I não conseguia mais elucidar
nossos objetivos, porque na explicação da realidade em questão, os acontecimentos não se
sucedem isoladamente. Então, chegamos às imagens II, que contêm em cada objetivo uma parte
do outro. Dessa maneira, nosso imaginário seria composto pelos dois, um contido no outro,
bastando dosar as ferramentas de como escolhemos ler a realidade. Há uma afirmação de
Godard (apud Salles in Labaki, 2015, p. 273), na qual nos inspiramos, para as imagens II:
“Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, assim como todos os grandes
documentários tendem à ficção [...]. E quem opta a fundo por um encontra necessariamente o
outro no fim do caminho”.
Todavia, mesmo com a contribuição de Godard, o desenho que nos surgiu ainda
mantinha os núcleos bem definidos, então fomos elaborando outra imagem, que ilustramos na
forma III. A imagem que melhor traduz nosso objetivo fílmico é aquela cuja nossa percepção
está disposta em camadas imbricadas, em que os dispositivos que nos fazem sentir e interpretar
os acontecimentos do mundo exterior, ambiente do qual somos parte, ocorrem simultaneamente.
A diferença está na intensidade de lilás ou de verde, entremeados, ao mesmo tempo, que
respondemos a cada ação e movimento da realidade que nos afeta. Nosso esforço aqui foi o de
procurarmos as ferramentas dramatúrgicas para dosar cada camada em cada evento, para que
pudéssemos traduzir da melhor maneira a experiência da documentarista e da vida da
documentada para o espectador.
João Moreira Salles (in Labaki, 2015, p. 273), em reflexão sobre evento e retórica,
ajudou-nos a expressar nossa intenção: “De um lado, é o registro de algo que aconteceu no
mundo; de outro, é narrativa, uma retórica construída a partir do que foi registrado”. Em outros
termos, trata-se do processo de mediação da linguagem. Salles (in Labaki, 2015, p. 276-277)
arremata: “O filme é uma redução da complexidade, uma diminuição da experiência. Ou, para
não sermos tão sorumbáticos, é no mínimo a construção de outra experiência”.

6.2 Telma Pop.arte

Um aspecto que apareceu de intruso, devido à necessidade de compreender a estética


das fotografias de Telma, foi o de localizarmos seu trabalho de imagens dentro da historiografia
da arte, para entendermos como o estilo da fotografia de retratos no estilo clássico – como ela
definia – transformou-se em um maneirismo peculiar, que só vamos conseguir dimensionar nas
décadas posteriores, com a pop arte, a kitsch arte e as imagens digitais dos selfies atuais.
145

Ao fazer uso das referências da cultura massiva, entendendo por cultura de massas o
consumo de bens e serviços da sociedade industrializada, Telma utiliza-as juntamente às
técnicas da fotopintura tradicional, exemplo magistral dos seus autorretratos. Telma ao
artificializar oniricamente, pelo uso das cores e do desenho, a aparência dos modelos
fotografados e a si, apontou para reflexões que veremos, depois, com muita força, no
movimento da pop-arte. Citamos, aqui, os marcos cronológicos de Andy Warhol (1928-1987),
que “fez a sua primeira mostra individual em 1952, na Hugo Gallery, onde exibe quinze
desenhos baseados na obra de Truman Capote”25. E, posteriormente, na década de 1970, com
Cindy Sherman (1954).
Abordamos, dessa forma, a produção de Telma, situando-a no contexto das expressões
do modernismo brasileiro. E, como se apropriou do cinema como referência direta para seu
trabalho de fotopintura, situamos a fotógrafa como precursora das neovanguardas (década de
1960) no Brasil.
Durante sua vida profissional, Telma não participou com regularidade dos espaços de
arte institucionais, quer fossem as galerias ou os cursos acadêmicos, pois teve formação artística
familiar e de maneira autodidata. No entanto, levantou questões do campo que viriam a ser
amplamente investigadas na arte contemporânea, pelas ferramentas digitais de manipulação da
imagem do retrato, como o photoshop; e na arte da performance, com a criação de múltiplas
personas e o uso popular dos autorregistros – os selfies.
Importante destacar que não encontramos referências de fotógrafas no Ceará, da década
de 1950, que vivessem profissionalmente de estúdio fotográfico próprio. É citado, em
depoimento, pelo fotopintor Júlio Santos, que as mulheres na cidade de Fortaleza que
trabalhavam com fotopintura costumavam fazer uma etapa, mas não eram nem proprietárias e
nem realizavam o processo integral, como fez Telma. Isso nos chama a atenção para os espaços
de formação e produção artística e comercial da época. Telma teve um ambiente familiar
favorável, através dos ensinamentos de seu pai, Júlio Saraiva.
Encerramos acompanhados pelas vozes dos realizadores, no que toca ao tema da
memória, motivo que nos fez encontrar o romance de Alejandro Zambra, intitulado Formas de
voltar para casa. Tomando de empréstimo a observação do escritor Alan Pauls, que prefacia o
livro, gostaríamos de localizar geracionalmente nossa tese:

25
Disponível em: https://educacao.uol.com.br/biografias/andy-warhol.htm. Acesso em: 10 jun. 2019.
146

“É a vida dos que não podem dizer ‘eu’ sem se incomodar, sem sentir que usurpam um posto
que não cabe a eles, mas podem entrever algo parecido com uma identidade na vida dos outros,
e reconhecê-la e soletrá-la em aventuras, paixões e intensidades nunca vividas. Ou, no pior
dos casos, podem inventá-la diretamente. Voltar para casa é, portanto, voltar a esse Passado
exemplar, despótico, fora do qual não parece haver vida possível, e nesse sentido é uma
condenação. Mas é também voltar para contar, voltar a contar a vida dos outros – os
protagonistas da História – para encontrar nela o lugar daquele que a conta, esse lugar onde
algo assim como um eu possa nascer, e, com este eu, uma vida possível, e um futuro. Nesse
sentido, voltar para casa seria o contrário de uma condenação. Mais que uma saída, inclusive:
seria uma libertação”.
147

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153

APÊNDICE
ROTEIRO: TODAS AS VIDAS DE TELMA

CARTELA
Em 2009, na cidade de Fortaleza, vi uma exposição de fotografias que não me saiu da memória.
Um ano depois, em 2010, numa viagem à cidade do Crato, peço um amigo para me apresentar
à fotógrafa, Telma Saraiva, autora dos retratos. Tivemos 3 encontros, e elaboramos um roteiro
para um documentário. Faltando dois meses para iniciarmos as gravações, no dia 8 de junho de
2015, Telma faleceu (pausa). Agora, encontramos outra forma para continuarmos nossa história.

FADE

SEQ. 1 - INT. CABINE DE PASSAGEIROS DE AVIÃO - DIA


Céu azul com sol da manhã, pequenas nuvens brancas. Som suave da turbina do avião. Dentro
do avião se observa o céu pela janela. Burburinhos inaudíveis do interior do avião.

ANA (V.O.)
Miguel,... essa é a primeira vez, depois de 10 anos, que viajo sem você....
10 anos de viagens juntos!

Pela janela do avião, vê-se a cidade margeada pelo oceano Atlântico.

COMANDANTE (V.O.)
...Temperatura na cidade 28º. Desejamos à todos, uma boa estadia!
Welcome to Brazil. We started our landing at Pinto Martins International Airport in Fortaleza…

ANA (V.O.)
Nooossa Senhora, que alegria, 28 graus, calor, sol!!!....vin-te e oi-to gra-us...Meu Padim Ciço
aahhhh eu quero aquele calor de mataarr!....
...e aí em Vancouver, hein, Miguel?! rsrs...deve tá um frio de lascar, acabei de ver no jornal que
o prognóstico pra essa semana ia ser menos 5º com chuva e frio, com chuva!... direto! sem
parar!... é isso mesmo Miguel? ....
Cidade margeada pelo oceano Atlântico.
154

ANA (V.O.)
Não esqueça que as aulas da Lia, as aulas de ballet são segundas e quartas às 14 horas, ela sai
da escola, já almoçou lá, e vai direto pra o ballet, você só precisa passar, pegar ela e deixar na
escola, beijos!...

Som eletrônico para colocarem os cintos e desligarem os celulares.

SEQ. 2 - EXT/INT. VIAGEM DE CARRO - DIA


Carro na estrada, Rodovia BR-116, saída de Fortaleza, Sol a pino. Vemos uma placa: Crato,
510 quilômetros. Paisagem externa, construções de um lado e do outro.
No interior de um carro, toca música eletrônica.
Painel do carro, ar-condicionado, painel touch, entrada de USB, rádio. Fixado no cd player
um pendrive vermelho transparente com luzinha branca piscando (está tocando).

MÚSICA CD DO CARRO
COME TO ME (Daniel Peixoto)
Tic...
tic tic tah

I never forget
You never forgot
Yeah

Tic tic tic tah Yeah


Tic tic tic tah Aham

Imagens da estrada do ponto de vista de quem dirige.

ANA (V.O.)
Podia ter pego logo um voo, e em meia hora eu tava no Crato, você teria feito isso... né? Mas
eu quero diferente... Eu aluguei um carro bacana! Com cd player, Bluetooth, rádio, e com ar-
condicionado! E ainda comprei do rapaz da loja o pendrive dele, com as músicas daqui... Sabe
155

por que eu fiz isso, Miguel? Porque toda vez que a gente viaja, é você quem dirige, e nunca me
deixa dirigir, agora, dessa vez, EU é que vou dirigindo...

MÚSICA CD DO CARRO (CONT.)


I am your marlboro man
And you can visite my paradise
Meet me deep inside
Meet me deep inside
You never forgot
I never forget
I never forget

ANA (V.O.)
Ahh bem que eu podia ter ficado um pouquinho em Fortaleza... tomar um banho de mar, aquele
vento delicioso, água morninha!!! muito tempo longe daqui!!! pausa
... quem sabe na volta, pego um banho de mar!!!...

Trecho com plantações de cajueiro, de um lado e outro da estrada.

MÚSICA CD DO CARRO - Música instrumental - O Alumioso Caririzeiro - DiFreitas

SEQ. 3 - EXT. PARADA BARRACA DE FRUTAS - DIA


Cajús, bananas, mangas, mamões, sapotis, expostos em cordas amarrados nos dois lados da
pequena tenda. Vendedor por trás do tabuleiro de frutas aguarda compradores.
(ACAMPAMENTO DO MST)

ANA (V.O.)
Eu sei que você foi contra essa viagem, que você me disse que com uma procuração o primo
podia resolver a questão da herança... eu sei que é difícil pra você entender, mas são muitos
anos longe daqui, e agora que eu tô aqui, tenho certeza que precisava ter vindo mesmo.....
(Pausa)
SEQ. 4 - EXT. ESTRADA - DIA
Paisagem da caatinga, ausência de construções, mato de um lado, mato de outro, cerca contínua
156

de cimento e arame na beira da estrada.

ANA (V.O.)
Passei por uma barraca de frutas na estrada, quando olhei direito, freei, parei o carro, porque vi
sacos com sapoti!!!nooossa... sapoti, nem acreditei... Comprei uns três pacotes, fiquei igual a
menina comendo... o dono da barraca ficou olhando assim pra mim, pensou que eu fosse uma
esfomeada ou uma lôca!

SEQ. 5 - EXT. COPA DE SAPOTIZEITO - DIA


Diversas copas de árvore sapotizeiro, com sapotis.

ANA (V.O.)
Na casa de minha avó tinha um pé de sapoti, enoooorme, era uma árvore de copa tão grande,
tão grande.. que cobria todo o quintal! Tudo ficava na sombra e deixava a areia fria, uma areia
fina, fina, cor de marfim... e aí a gente brincava de casinha, de cozinhar, e quando tava carregado
de sapoti uuuummm ficava aquele cheiro doce no quintal!!!

SEQ. 6 - EXT/INT. ESTRADA QUIXADÁ - DIA


Sol a pino. Carro na estrada, placa indica Quixadá. Formação rochosa a frente. Grandes
monólitos no entorno da estrada. Sons de frequência de rádio, que tenta sintonizar na rádio.
Carros ultrapassam na estrada.

RADIALISTA RÁDIO (programa de domingo)


Programa O Rei do Baião, campeão de audiência. Abraço a todos os ouvintes a todos os distritos
do nosso município.... tarde ensolarada na terra do monólitos.
A primeira música que ouviremos é do Gonzagão cantada pela banda Nazirê..

Ao longe a cidade de Quixadá.

ANA (V.O.)
Eita o sotaque do sertão .....
MÚSICA "ASAS DA ILUSÃO" (rádio)
157

Ah esse meu coração de novo/sabe deus onde me levará/


Apostando tudo nesse amor pôs a mão no fogo e se queimou/
E hoje sem um pingo de vergonha quer voltar/

SEQ. 7 - EXT. CARRO PARADO NA ESTRADA - DIA


Carro parado no acostamento da estrada. Porta aberta do lado do passageiro. Ana cansada (tom
de cansaço na fala). Som ambiente.

ANA (V.O.)
Tomei dois litros d'água, só faço beber água e mijar, beber água e mijar... e de vez em quando
como um sapoti!!!... (pausa) ah é tão bom fazer xixi na estrada, no Canadá eu jamais faria isso...
aqui pode, aqui pode fazer xixi na estrada, Miguel!!!

SEQ. 8 - EXT. ESTRADA PLACA CAFÉ COM TAPIOCA - DIA


Carro em movimento. Final de tarde. O sol caindo no horizonte. Céu com raios de luz
avermelhados. De dentro do carro passa por placas de informação com letras escritas a mão:
bolo e café - 300 metros. Outra placa escrita: bolo, café com tapioca, 200 metros. 100 metros,
outra placa bolo, café com tapioca da Mazé.

SEQ. 9 - INT. CASA CAFÉ COM TAPIOCA - DIA


Final de tarde. Em cima do balcão um bolo mole coberto com tampa de plástico, uma bandeja
com pequenas xícaras brancas com estampa floral de estética regional. Duas garrafas de café,
uma azul e outra vermelha.

ANA (V.O.)
Seis horas de viagem!... Ainda bem que eu encontrei a Mazé, fez um café forte, passou meu
sono....

Uma mulher (35), cabocla, cabelo liso preto, estatura mediana, esbelta, prepara uma tapioca.
Ana observa a Mazé preparando a tapioca. Amassa a goma branca na bacia de ágata, e distribui
158

a goma na frigideira, virando a tapioca na outra frigideira. De vez em quando olha em direção
à Ana.

ANA (V.O.)
Como é que deve ser a vida da Mazé fica o dia todo olhando essa estrada...esperando um
comprador. E esse silêncio.... (pausa)
Será que eu pergunto pra ela como é viver aqui... não tenho coragem...

SEQ. 10 - EXT. ESTRADA - FINAL DE TARDE


Da estrada (CE-230) céu final de tarde. Ceú em cores vermelho, amarelo e azul de final de tarde.
Toca música do rádio. Estrada com curvas, a frente, na subida da serra.

RÁDIO DO CARRO (JURA SECRETA -SIMONE)


Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que não causei

Nada do que posso me alucina


Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
De que por não saber ainda não quis
Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que não sofri.

SEQ. 11 - EXT. CRATO - NOITE


Da estrada (CE-230) com noite escura. Som ambiente. Celular em viva voz.

RECEPCIONISTA HOTEL (V.O.)


Boa noite, Hotel Villa Real, em que posso ajudar?
159

ANA (V.O.)
Boa noite! Por favor, esse hotel é o que fica em frente a praça que tem um Cristo, como o Cristo
Redentor?...
RECEPCIONISTA HOTEL (V.O.)
Sim, é esse mesmo, na praça do Cristo Rei.
ANA (V.O.)
Por favor, ainda tem o quarto que fica no segundo andar, que tem vista para a praça?
RECEPCIONISTA HOTEL (V.O.)
O quarto ainda está aqui mas tá ocupado, temos um vizinho tão bom quanto ele, mas não tem
vista pra praça, não, mas tem ar-condicionado.
ANA (V.O.)
A cama é boa, e o colchão, é confortável?...
RECEPCIONISTA HOTEL (V.O.)
Moça, todos os nossos quartos são bons, a cama depende do que a senhora desejar!
ANA (V.O.)
Ahahahah (risos), Desculpa a pergunta, me refiro ao colchão, se é confortável, é firme... tem
ortopédico?
RECEPCIONISTA (V.O.)
Temos quartos com colchões de molas ensacadas altamente resistentes, todos são assim. Vai
querer? A reserva é no nome de quem?
ANA (V.O.)
Ana Saraiva!

SEQ. 12 - INT. HOTEL NO CENTRO DA CIDADE - NOITE


Quarto do hotel. Ana observa fixamente na parede do quarto a reprodução da pintura à óleo, de
José Maria de Medeiros, de Iracema (1881). Se vê uma índia na beira do mar que observa uma
vara com ornamentos indígenas fincada no chão. Ela está solitária e melancólica. Vestida com
um saiote de penas e seios desnudos. Porta um colar de penas e sementes.

SEQ. 13 - EXT. SEMINÁRIO - DIA


Fachada da Igreja do Seminário.
ANA (V.O.)
Acordei cedo, dormi mal, um pouco de ansiedade, eu acho... acordando de vez em quando.. e
160

olhando aquele quadro da Iracema, sozinha na praia, a virgem dos lábios de mel!!!... aqui são
6 horas, em Vancouver deve ser o que? 5?....

Senhor abre as portas da igreja. Badaladas do sino da igreja.


Senhoras caminham do portão do átrio seguindo o caminho pelo canto do muro até a porta de
entrada.

ANA (V.O.)
Isso tudo se movendo, tudo sincronizado, me dá a impressão que o tempo parou, parece o
mesmo da minha infância...
Se minha mãe fosse viva, estava aqui, com quase 60 anos, eu acho, ela dizia que queria ficar
bem velhinha... pra ver os netos crescerem mas isso não aconteceu. (Pausa)

Cachorro deitado no meio do átrio observa as senhoras.

ANA (V.O.)
E aí, foi aqui nessa igreja, uma vez, que eu me escondi atrás da porta e dei meu primeiro beijo...
por onde anda esse menino?! rsrs brincadeira de criança beijar escondido, aquele nervoso todo,
se escondia e beijava logo pra ninguém ver, depois saia correndo. Um segredinho guardado...
nunca contei nem pra você, Miguel, a gente tem segredos, que ninguém fala.

Vista da cidade, do ponto mais alto do bairro do Seminário, com sol das 6h:30 da manhã.
SEQ. 14 - EXT - BARRACA DE FEIRA NO CENTRO DO CRATO - DIA
Segunda-feira com barracas da feira no entorno do rio Grangeiro. Movimento intenso dos
compradores pelas barracas. Rádio amarrado na barraca do feirante. Cereais, frutas, artigos de
casa à venda.

RÁDIO EDUCADORA (OFF)


(Canto de passarinhos) O canto da natureza exige silêncio vai começar, começar… (música)…
o show, show de notícias.

Mulheres olham os produtos. Caminhões, Topics, motos chegam com compradores e


trabalhadores que vem dos distritos. Mulheres vendem produtos nas suas barracas nas calçadas
161

das ruas, anunciam em voz alta os produtos à venda, atendem os compradores, ensacam os
produtos, contam o dinheiro e passam o troco.

RÁDIO EDUCADORA (OFF) cont.


(Sons de tiros de faroeste, toque de corneta)
Aqui começa a história do Cariri tenham todos um bom dia..

Mulheres nas cozinhas dos restaurantes entregam pratos para os moços servirem os clientes nas
mesas das lanchonetes para o café da manhã. Pratos de caldo de mocotó com pão de milho.
Movimento intenso de pessoas nas ruas.

SEQ. 15 - EXT/INT. CASA DE TELMA - DIA (MANHÃ)


Fachada de Casa grande de esquina. Portão aberto que dá para varanda. Algumas pessoas
passam pela calçada. Fonte de água desativada no centro do jardim. Na parede da varanda, ao
lado da porta de entrada vemos uma galeria de fotografias em preto e branco de pessoas e
lugares da cidade na década de 30: Lampião, Praça do Cristo Rei, Seminário, Feira na rua do
rio Grangeiro, Cine Cassino. Ernesto na varanda limpa as máquinas fotográficas.

ANA (V.O.)
Ernesto, é um dos meus primos, ele é o filho mais novo de Telma e essa é a casa que agora faz
parte da nossa herança.... Ele me achou muito parecida com minha mãe e eu não lembrava nada
da cara dele. Também pudera já são mais de 20 anos que eu não voltava por aqui.

Da varanda, janela aberta, vemos a sala de visita da casa de Telma, a sala escura com móveis
empoeirados, na mesa da sala do centro um vaso de flores de plástico empoeiradas.

ANA (V.O.)
Ernesto me disse que Telma morou nessa casa por toda sua vida. E foi aqui, onde eu passava
minhas férias na infância, que conheci o estúdio dela, o Foto Saraiva, o maior da região!

Sala de estar, com infiltração e um sofá-recamier. Escultura de bailarinos na mesa do canto.


ANA (V.O.)
E eu hoje, estou aqui, sou uma das herdeiras da casa, pela parte do meu avô, Salviano. Telma e
162

Salviano foram os dois únicos filhos de Júlio e D. Mirô, que construíram essa casa.

Santos católicos guardados dentro do móvel. Cristo crucificado na parede.


Disco de vinil do Ronnie Von na vitrola do móvel de madeira na sala.
Vários Relógios na parede lateral da varanda. Todos os Relógios com ponteiros parados.

ANA (V.O.)
Porque tem tantos relógios na varanda? Lembrei de um filme... não... acho que é 'Alice no País
das Maravilhas'. De um cara que controlava o tempo através de um relógio... para não
envelhecer.

Da sala por trás de uma grade que impede o acesso a segunda parte da casa, se vê o corredor
que leva ao estúdio fotográfico lacrado por uma porta de tijolos. Na frente do estúdio está o
cavalete onde Telma pintava.

ANA (V.O.)
Ali não era para criança fazer bagunça... Ah, mas quando eu podia, eu entrava, e era cheio de
objetos com luzes brilhantes. Chapéus de todas as cores, painéis pintados de céu. Roupas de
coelhos e bailarinas e ciganas.... Ela as vezes, deixava a gente brincar com essas fantasias...
depois da fotografia... E a gente brincava imitando nossos heróis da televisão. Eu gostava de
ser a She-Ha, e o menino do beijo ahahah era o He-Man... cadê ele? !!!
Na parede da sala de visita, foto da família: Telma e os filhos na festa de Natal. Da sala se vê
uma porta aberta para outro cômodo com fotos de dois filhos de Telma.

ANA (V.O.)
Eu queria entrar de novo ali, no Estúdio, ver se ainda tem todas aquelas coisas que eu adorava
na infância, mas Ernesto me proibiu, - ah mais porquê?!. (Ana imita como o Ernesto falou para
ela) - Por que não está mais como ela gostava de mostrar. Tem infiltração, nem ligamos mais a
energia elétrica… o estúdio fechado...há muito tempo... as fotografias estão todas ensacadas e
guardadas, alguns móveis não são mais os mesmos….. ahhh mas eu queria tanto entrar nesse
lugar.
SEQ. 16 - EXT/INT. CARTÓRIO - DIA
Fachada da casa de Telma e do lado, na outra esquina, o cartório.
163

SEQ. 17 - INT/CARTÓRIO - DIA


Sala com funcionários e pessoas em atendimento. Volume de pastas. Documentos com
cadastros de famílias (Certidões de batismo, morte, casamento).

ANA (V.O.)
O cartório onde assinamos os documentos do inventário fica ao lado da casa de Telma. Mas tu
não acredita o que me aconteceu, Miguel, quando eu entro eu me deparo com uma senhora
chamada Teresinha, a funcionária que me atendeu, e ela diz que me conhece! Sabe de quem eu
sou filha e de quem eu sou neta... assim, sem eu nunca ter lhe visto na vida.

Computadores nas mesas de atendimento. Fotografias dos donos na parede do cartório feitos
por Telma.

ANA (V.O.)
Aí ela me conta, que todas as fotos do cartório foram feitas por Telma e me conta também que
lembrava do dia do casamento de minha mãe... que quando era jovem ia para a praça, ficava no
sereno, pra ver o vestido da noiva. E o da minha mãe era um vestido lindo, todo de renda,
bordado... (silêncio-pausa) queria ter visto isso... e aí ela me diz que a Telma fez as fotografias
da minha mãe do casamento. ... minha mãe nunca me mostrou essas fotos, porque? será que
não foi feliz no casamento?.. nunca falamos sobre isso! (pausa) será que eu encontro essas
fotos?... acho que vou ficar mais uns dias por aqui. Ainda não comprei mesmo a passagem de
volta...

Pessoas passam na frente da casa de Telma e entram no cartório.

ANA (V.O.)
(pausa) Peço para o Ernesto, quero ver se encontro as fotografias de minha mãe. E ele me diz
que o acervo fotográfico de Telma, uma parte está no Estúdio e a outra parte está encaixotada
e guardada na casa dos parentes, até ele arranjar um lugar pra ficar. As fotos da minha mãe, ele
acha que eu vou encontrar na casa de Iacy, Iacy de Pierre... engraçado ele dizer Iacy de Pierre...
SEQ. 18 - INT. CASA DE IACY - DIA
Fotografias de Iacy aos 3 anos, Iacy aos 10 anos, Iacy aos 15 anos, Iacy aos 18 anos, Iacy como
164

noiva, Iacy com o marido no dia do noivado, feitas por Telma.

ANA (V.O.)
Na casa de Iacy, descubro que Pierre é o marido. Uma vez, numa viagem que fiz com você, pra
casa dos amigos de seu pai, me perguntaram se eu era a Ana de Miguel e eu fiquei puta! Não,
meu nome é Ana Saraiva Rocha!!! Saraiva da minha mãe e Rocha do meu pai! Ora mais, puta
dum machismo!... E eu não vou entrar nessa não!!

Fotografia da mãe de Ana, como noiva, feita por Telma.

ANA (V.O.)
Encontramos a foto de minha mãe, Linda! A foto tem um amarelo ouro que fica mais bonita
ainda! E tem um olhar incrível, um ar de felicidade!!! Como ela conseguia esse olhar de
felicidade?! Isso é fascinante!
(Pausa)

Olhos da mãe de Ana, com ar de felicidade.

ANA (V.O.)
Procurei as minhas fotos, de criança... mas não achamos, ela diz que pode ser que eu ache na
casa de Socorro, mãe de Allan. O Allan, meu colega de infância. Ah, sei quem é, é o He-man!!!

SEQ. 19 - INT. CASA DE SOCORRO DE ALLAN - DIA


Socorro sentada na mesa da sala, vasculha fotografias nos álbuns. Mostra para Ana as fotos
feitas por Telma. Fotografias de Socorro, com 6 meses, com 12 anos. Parede da casa, fotografia
de Socorro e de Guigui, marido de Socorro, feitos por Telma.

ANA (V.O.)
Allan não está, não chegou ainda do trabalho. D. Socorro me diz que ele se tornou um fotógrafo
como Telma, e se tornou seu grande amigo.

Fotos de Allan, aos 12 anos, aos 18 anos. Socorro mexe nos álbuns colocando em cima da mesa.
ANA (V.O.)
165

Ela me contou que a mãe dela contava, de que elas vieram de Assaré, Socorro com seis meses
de vida veio num pau-de-arara para fazer sua primeira fotografia.

Foto de Socorro, bêbe com 6 meses. Foto de Socorro com 11 anos de estudante. Detalhe dos
olhos, cabelos, boina.

ANA (V.O.)
E depois com 11 anos de idade, ela já foi sozinha. E que todo final de ano, os estudantes iam
para fazer suas fotos de formandos do primário e do ginasial.

Série de fotos de alunos, meninos e meninas, concludentes feito por Telma.

ANA (V.O.)
E assim sem mais nem menos, ela pergunta, se casei e se trabalho fora.
E eu digo que casei mas não trabalho fora.

Foto de formatura de Socorro (professora normalista)


ANA (V.O.)
E Socorro, o que fez?! Aí, com uma palavra colada na outra, diz uma frase assim: pedagógico,
casada, filho, e não fez mais nada na vida… (pausa) ficamos em silêncio (pausa)...

Imagem de Socorro olhando para câmera.

ANA (V.O.)
Esperei que ela continuasse e completasse a frase... o que acontece agora? …. E eu não sabia o
que lhe dizer. (pausa) Socorro, riu!... (pausa)

Passagem de tempo: Da sala pela porta aberta vemos a luz mudar de intensidade e as nuvens
passarem com mais rapidez.
Allan na sala de visita sentado no sofá, observa na direção da câmera.

ANA (V.O.)
Allan tá bonitão...
166

SEQ. 20 - INT. QUARTO DE ALLAN - DIA


Fotos de crianças fotografadas por Telma: criança com mão no rosto, criança com chapéu,
criança séria, criança de fantasia de onça e outra criança de bailarina, criança de primeira
comunhão, olhar de criança sorrindo.

ANA (V.O.)
Rimos juntos lembrando das vezes que entramos escondidos no Estúdio da Telma para vestir
os chapéus, poás, pintar o rosto todo com a maquiagem dela... morrendo de medo que ela
chegasse.... Allan acha que isso tudo influenciou na sua decisão de ser fotógrafo.

Allan em pé, rindo, por trás dele fotos de Telma na parede.


Allan mostra o painel que fez, mosaico das fotos de Telma.

ALLAN
Eu fui... pra perceber como ela dirigia o cliente, como ela arrumava a luz quanto tempo isso
levava, pra onde ela ia direcionar meu olhar...Pra onde essas pessoas estão olhando?

Fotos de Telma: homens e mulheres adultas.

ALLAN (V.O.)
O que Telma conversa na hora do retrato dela pra que o modelo, o cliente relaxe e tenha um
olhar único!? Quem foi fotografado por ela, tem aquele... um olhar saudoso..

Fotografias de mulheres adultas por Telma.

ALLAN
Então, é o máximo da fotógrafa fazer com que o cliente sinta-se a vontade naquele espaço pra
tirar uma foto! O jeito que ela vinha de pegar no rosto (repete os movimentos como Telma
fazia), olhar se tava melhor de um lado, melhor do outro...

Fotografias de mulheres jovens por Telma.


167

ALLAN (V.O.)
Se, era de frente, se a luz tava mais forte, se estava mais fraca...Então, tinha um momento grande
ali dentro pra ela fazer um click! Telma foi fotógrafa de um click por cliente! (é muita segurança
profissional!!!)

Fotos de Telma: homens adultos.

ALLAN (V.O.)
Ela até diz que quando fazia dois clicks, era para ser elegante! A cliente pedia: “Ah, vai fazer
só uma? Não dá pra fazer outra?” Mas, ela tinha certeza que a foto é a primeira! Então, fazia
mais uma pra não ser deselegante com a cliente. Era o que ela dizia... Então, era uma fotógrafa
de uma foto só!

Fotografias de mulheres e homens adultos, jovens, idosos por Telma.

ALLAN (V.O.)
Então, ela tinha aquele tempo dentro do estúdio: ia pra câmera, voltava pro modelo, ia pra
câmera, voltava, mexia na luz... e, esse tempo dessa organização da técnica dela é onde o cliente,
o modelo dela relaxa e entrava na vibração dela! Ela era uma mulher muito calma, então era
muito fácil pra ela desmontar um modelo e que ele ficasse o mais relaxado possível e entrasse
na foto dela!

Fotografias de mulheres jovens e meninas por Telma.

ANA (V.O.)
Não encontramos a minha foto, mas o Allan me prometeu que vai procurar!

SEQ. 21 - EXT. PRAÇA DA SÉ/ESCULTURA BÁRBARA DE ALENCAR - NOITE


Praça da Sé. Pernas de mulheres que caminham. Grupo de mulheres que conversam em pé.
Gestos das mãos, movimento dos braços. Penteados dos cabelos, ornamentos no corpo, brincos,
pulseiras. Mulheres brincam com crianças. Mulheres vendem comidas e artigos femininos.
168

ANA (V.O.)
Um pensamento não sai da cabeça, e se eu tivesse casado com Allan? O que eu estaria fazendo
da minha vida? Assistente de fotógrafo? Como eu sou sua assistente no escritório, Miguel? ...
Terminei minha faculdade de Direito e não saí disso!!!...

Ana observa a Estátua da Bárbara de Alencar. Toque do celular.

ANA (V.O.)
Carlota, a madrinha de minha mãe e amiga de Telma, quer me rever.
SEQ. 22 - INT. CASA CARLOTA - DIA.
Carlota sentada no sofá na sala de visita, relógios na parede.

ANA (V.O.)
Carlota, percebeu minha curiosidade e foi logo direta, sem meias palavras.

Carlota sentada no sofá na sala de visita.

CARLOTA
Você quer saber como foi minha amizade com ela? Foi uma amizade de criança, começando
cedo... ela sempre mais inteligente do que eu... (entendeu como é?). Eu tinha um pouquinho de
ciúme porque ela tinha o que eu não tinha! E, eu ia lá quebrava o que era dela! Levava carreira
da mãe dela! (Risos) Levei muita carreira de D. Mirô, viu? ... a Telma era uma pessoa fora de
série! Era 100% uma pessoa... sei não como era ela! Muito inteligente! Começou a trabalhar
com 12 anos (...) tinha as amizades dela, mas era uma pessoa que não saia nem de frente do
cavalete ... só pra trabalhar! Ela tinha negócio... e aquela vontade de trabalhar! E, assim foi a
vida dela todinha!

Bonecas japonesas feitas por Telma. Detalhes do rosto, boca, olhares, vestimentas.
ANA (V.O.)
Nooossa, nunca vi tanta sinceridade..
(pausa)... Será que eu tô é com inveja da Telma, do que ela conquistou profissionalmente?

Pequenas esculturas de porcelana de casais no estilo rococó. Esculturas de porcelana de


169

bailarinas. Compoteiras de vidros.

ANA (V.O.)
Não, eu não tenho inveja da Telma, eu tenho admiração... mas eu queria saber, como ela
conseguiu numa época muito mais difícil, do que é hoje para mim? (pausa)

Lustre de acrílico estilo clássico, com uma lâmpada vermelha, uma lâmpada azul, uma lâmpada
amarela acesas, no teto da sala.
PASSAGEM DE TEMPO (OUTRO DIA: POR DO SOL NA CHAPADA, ANOITECE,
LUZES SE ACENDEM NA CIDADE.

SEQ. 23 - EXT./ INT. CASA HERBÊNIO - DIA


Fachada da casa de Telma com portões fechados e transeuntes caminham pela calçada.

ANA V.O.
Ninguém em casa, o vizinho pergunta quem eu sou, diz que conheceu minha tia-avó, e aí me
convida para entrar.

Fotografia de Herbenio pintado por Telma.

ANA V.O.
E descubro que Herbenio é um grande admirador dela.

Herbênio está sentado na mesa da sala, e observa na direção de alguém que está do outro lado
da mesa.
HERBÊNIO (V.O.)
Eu era muito apegado a minha irmã, aí ela me levava com a turma dela, colegas de classe, para
fotografar os lugares pitorescos do Crato...

Fachada da Escola Santa Teresa. Fotos de Telma na praça Siqueira Campos, na praça do Cristo
Rei.
170

ANA (V.O.)
O Herbênio me conta que elas faziam fotos nas cachoeiras e faziam até nus, mas nunca ninguém
teve acesso a essas fotos.

Fotos da Telma e Jacira Brito (NUS).

Herbenio simula ele desenhando e olhando na direção de Ana.

HERBENIO
Eu ficava olhando ela pintando os retratos... ela já pintava... ela botava os retratos no cavalete
e a tinta... Aí, eu fui pegando, porque ela disse que na fotografia tinha que ter umas luzes, neh?
Relevo ao rosto, do cabelo (...) Ela é quem ajeitava... ela botava o rosto e dizia: “olha pra cá pra
minha mão” aí, a pessoa olhava pra mão. “Mais pra baixo... faça um ar de riso, um ar de
felicidade! Faça aquele ar de felicidade, mas, sem mostrar os dentes!” Sem mostrar os dentes
você faz aquele ar feliz. Aí, a pessoa fazia aquele ar feliz, sem mostrar os dentes e sem rir...
apenas a aparência de felicidade (...) Pra fotografia não ficar triste... aí, pronto!

Fotos de homens e mulheres jovens com ar de felicidade sem mostrar os dentes, fotografados
por Telma.

HERBÊNIO (V.O.)
O importante na fotografia são as pupilas... as pupilas é o que dá toda a aparência da pessoa...

Herbênio ajeita os objetos do seu oratório, que fica na sala.

ANA (V.O.)
Foi aí, que Telma virou a grande fotógrafa de toda a região.

Foto de bispo, miss Crato, Luiz Gonzaga, políticos feitos por Telma.

ANA (V.O.)
E Herbênio me disse que Telma fotografou muitas amigas, se eu fosse na escola onde ela
171

estudou, consigo ver as normalistas.

Fotografias de formandas normalistas, feitas por Telma.

SEQ. 24 - EXT/INT. ESCOLA SANTA TERESA - MADRE FEITOSA - DIA


Fachada da escola Santa Teresa. Madre Feitosa entra na capela e no altar se ajoelha e faz o sinal
da cruz, reza um pouco e se levanta.

MADRE FEITOSA (V.O.)


Concluiu no ano de 1948 ....se formou como professora...foi uma aluna exemplar, muito
dedicada ...e ela se integrava muito na parte de pintura... Já como pequena artista.

Madre Feitosa sentada observa alguém.

ANA (V.O.)
Madre Feitosa me contou uma história, de que uma professora da Telma tirou uma fotografia e
não tinha gostado e Telma pediu para ajeitar, e coloriu a foto. A professora adorou, ficou tão
grata, mas tão grata!!!.. que tudo que Telma pedia pra ela, conseguia.

Galeria de fotos de madres, padres, bispos. Foto de Madre Feitosa feita por Telma. Madre
Feitosa sentada observa alguém.

ANA (V.O.)
Me disse ainda que Telma era levada pelo pai, ao cinema, desde muito pequena para que
aprendesse a ler rápido pelas legendas do filmes. (pausa)

Foto de Telma menina. Telma jovem com seu filho bebê no colo.

ANA (V.O.)
E ela não tinha nem 17 anos, quando teve seu primeiro filho, e com 21 já tinha quatro. Uma
menina ainda, carregando outra menina no braço...

Foto de Telma com os filhos pequenos em tema natalino, em casa.


172

ANA (V.O.)
Que adorava colecionar as cartelas com atrizes de cinema que vinham no sabonete Lever,
porque nas cartelas vinham coloridas. (...) Depois disso tudo, temos que conhecer as normalistas.

Cartela sabonete Lever com atriz Ingrid Bergman, Larr Hamart.


Placa de formandas de professoras normalistas. Foto de Bastinha Job como formanda
normalista.

SEQ. 25 - INT. BASTINHA - DIA


Fotografia de Bastinha Job e o marido, feita por Telma.

ANA (V.O.)
Bastinha Job fez sua foto logo depois da cerimônia do casamento. Foi professora dos filhos de
Telma, que não deixou que ela pagasse e lhe deu essa foto de presente. Me contou que foi só
porque Patativa do Assaré, o grande poeta, lhe disse que ela escrevia muito bem, que ela
assumiu ser cordelista. Que era muito difícil naquela época, me disse também, que a primeira
cordelista Maria Batista Pimentel não pôde assinar com seu próprio nome, só no nome do
marido.

SEQ. 26 - EXT./INT. SALETE LIBÓRIO ATRIZ - DIA


Fachada do teatro Raquel de Queiroz. Fotografias de Telma que estão no teatro. Fotografias de
Salete por Telma.

ANA (V.O.)
Salete depois do curso de normalista foi ser atriz. Interpretou no teatro a Bárbara de Alencar, a
primeira mulher presa política lutando pela independência do Brasil. Quem é Bárbara? Ah é
aquela mulher na escultura que eu vi, na praça.
SEQ. 27 - EXT. CASA DE NAÍSA - DIA
Quintal com casa de farinha, jardim com bica de água. Foto de Naísa por Telma.

ANA (V.O.)
Naísa, professora, criou uma escola no quintal de sua casa. Não casou, não teve filhos.
173

SEQ. 28 - INT. CASA CELENE QUEIROZ - DIA


Penteadeira com perfumes, escovas de cabelo, esculturas de porcelanas no estilo rococó. Fivelas,
grampos para cabelo, colares, produtos de maquiagem. Na parede em cima da penteadeira três
fotografias de Celene feitas por Telma.

ANA (V.O.)
A Celene é professora, seu pai morreu jovem e ela precisou trabalhar cedo para sustentar a
família. Teve um namorado e estavam apaixonados, e planejaram se casar. Mas foi aí que a
família do rapaz preferiu que ele casasse com uma moça que não trabalhasse fora de casa. E
Celene não casou mais.

SEQ. 29 - INT. A VIRGEM LALÁ - DIA


Uma fotografia de Lalá jovem e duas fotografias de formatura de Lalá feitas por Telma.

ANA (V.O.)
Essa é Lalá, e por ser boa em cálculos, logo tornou-se contadora – essa era a outra opção para
quem não queria ser professora. Ela sempre teve o seu dinheiro, e acha que foi isso que assustou
os homens de sua juventude. Me disse que ainda é virgem.

SEQ. 30 - EXT. CASA FAMÍLIA ARRAES - DIA


Flores e arbustos no jardim ordenados de forma tradicional.

ANA (V.O.)
Violeta que não fez fotos com Telma, é sua prima, precisou sair do Crato para estudar sociologia
lutou contra a ditadura militar na América Latina. Casou teve dois filhos.

Roseiras no jardim.

Foto de Telma como formanda professora normalista.

ANA (V.O.)
Miguel, sabe o que eu descobri... sem querer... Telma teve um nome, saindo das paredes de
174

casa. ....
Telma não foi Telma de Edilson, foi Telma Saraiva. E eu?... Sou Ana do quê?

SEQ. 31 - EXT. CACHOEIRA DO CRATO/NÃO VOLTO MAIS - DIA


IMAGEM DE UMA FLORESTA COM CACHOEIRA, FINAL DE TARDE. BARULHO DA
FLORESTA COM RESPIRAÇÃO DA ANA.
Sons de pássaros, da água suavemente e do vento nas palmeiras (com sons que lembram o vento
do litoral).

SEQ. 32 - EXT. REISADO - DIA


Final de tarde. Quintal de casa, crianças dançam e tocam junto ao mestre e a mestra no ensaio
do reisado (Casa do Mestre Aldenir). O mestre dirige a evolução do episódio por meio de apitos.
Entram os tocadores, criando animação.

ANA (V.O.)
Miguel de tudo que ouço e vejo, fico pensando na minha vida, e só por isso resolvi te enviar
essas mensagens de aúdio. Mensagens só de ida, porque é de mim que espero respostas...

(pausa)

... E foi assim que fui parar num reisado, e descobri que uma das peças tinham 3 personagens:
a alma, o diabo e São Miguel.

Crianças vestidas de guerreiros dançam no passo do reisado.

ANA (V.O.)
Me vi no papel da alma. (pausa)

A alma surge coberta num lençol branco com um rosário na mão... ela foge do diabo que entra
todo vestido de vermelho de rabo e unhas afiadíssimas...começa a perseguir a alma, até agarrá-
la para arrastá-la para o inferno...
175

Detalhes da luta de São Miguel com o diabo.

ANA (V.O.)
...é nessa hora que surge o anjo São Miguel, e quem faz é uma moça com asas brancas
empunhando uma espada!

São Miguel luta com o diabo. A alma observa a luta.

ANA (V.O.)
Eles lutam e o diabo é vencido!!! Ê Miguel... Eu preciso tomar minha vida nas minhas mãos,
eu não quero que um santo lute por mim....

Meninas dançam e lutam com espada em punho. Seguidas pela música e apitos do mestre e da
mestra. Roda de ciranda com adultos, homens e mulheres dançam na música do reisado.

ANA (V.O.)
Entrei na dança, a música vai nos levando, quase sem querer. E foi assim, Miguel, no ritmo do
reisado que eu entendi que realmente, eu não vou voltar mais...

Imagem de floresta final de tarde. Sons do reisado.

SEQ. 33 - INT. CASA DE RICARDO/EDILMA ALMOÇO EM FAMÍLIA - DIA


Ricardo sentado na cadeira na sala, mostra as fotografias da mãe, nas revistas.

ANA (V.O.)
Almoço em família, alô, alô, estou no automático.
Na parede da casa, fotos dos 5 filhos de Telma em diferentes fases, crianças, jovens, adultos.

ANA (V.O.)
Mugunzá, arroz com piqui, doce de buriti!!! E nesse banquete o Ricardo, primo mais velho,
começa a falar de forma apaixonada do que ela fazia.
Pausa (...)
Será que eu consigo algum dia, que a Lia fale assim de mim também?.....
176

Telma pintando no cavalete. Telma sendo fotografada no estúdio. (Cristiano Mascaro)


Retrato de Telma quando criança com sombra na parede.

RICARDO
O dia-a-dia da minha mãe era interessante! Para não ser interrompida pelos fregueses que
chegavam toda hora procurando por Telma, ela resolvia trabalhar a noite, ela trabalhava até
muito tarde da noite. Muitas vezes, eu chegava de uma festa, ela ainda estava trabalhando...

Fotografias de Telma toda arrumada, em diferentes fases de sua vida adulta.

RICARDO (V.O.)
Então, ela acordava, levantava mais tarde, umas 8 e meia... E, como ela lidava com o público,
ela nunca dispensou uma maquiagem, cabelo num coque atrás ... E, estava pronta para receber
as pessoas.
Imagens do processo completo de revelação da foto, para a impressão e pintura.

RICARDO (V.O.)
Ela tinha uma técnica que era de retocar o retrato que ela chamava de ‘positivo’. E, ela também
fazia o mesmo tratamento no negativo em preto e branco para facilitar a coisa no positivo. Bom,
ai... ela começava a fazer os retratos coloridos, antes ela transportava as fotografias para uma
droga, que a fotografia praticamente desaparecia, ficando apenas os pontos mais escuros da
fotografia. Depois, ela colocava uma outra substância e a fotografia vinha agora o que
chamamos hoje de sépia. Porque a tinta usada por ela tinha uma certa transparência, então em
cima do preto não prestava. O preto invadia muito. Então, ela fazia esse trabalho com a
fotografia em sépia depois aplicava a cor. Então, ela ia lá pro seu cavalete e começava ...
Fotografias do estúdio e do laboratório de revelação.

RICARDO (V.O.)
Tem uma fotografia aqui de Fátima Lins, o pai dela era dono do Grande Hotel, Palace Hotel
aliás... Ela fez em tamanho natural. E, como a tinta a óleo levava um certo tempo para secar,
pra ela poder fazer a entrega da fotografia sem que ela borrasse... E, ela um dia colocou a
fotografia em uma certa posição e chegou um verdureiro e começou a falar com a fotografia
177

porque pensava que era uma pessoa... No entanto, era simplesmente uma fotografia, de corpo
todo! Em tamanho natural! Aliás, a minha irmã, tem uma também em tamanho natural e a pedra
do anel é exatamente o mesmo tamanho da do anel.

Fotografia do anel de Edilma em tamanho natural. Cores do fundo. Detalhes mãos, face, cabelos,
cores. Detalhes do conjunto da foto.

ANA (V.O.)
Edilma tem uma sequência de fotos feitas desde criança até sua vida adulta.

Edilma mostra o álbum de retratos feito por Telma, com sequência de fotos - desde bebê até
adulta.

ANA (V.O.)
...e me fala das fotopinturas tradicionais.

Foto-pinturas tradicionais de homens e mulheres (coleção do acervo Titus Riedl/Julio Santos).

ANA (V.O.)
Que essa imagem chapada com um fundo neutro vem da inspiração das imagens dos santos
medievais. Na fotografia tradicional as pessoas pouco sorriem porque isso era uma forma de
demonstrar respeito.
A foto pintura é na verdade uma transformação... ela utiliza técnicas de ampliação, aumenta a
imagem e passa do preto e branco para o colorido. Me disse ainda, que a fotopintura é de fato,
uma ficção...

Foto de Edilma noiva. Fotos de noivas fotografadas por Telma. Som da chapada, som dos
riachos e fontes, som da água em movimento.

ANA (V.O.)
Sabe aquela história que eu contava para você, e todas as vezes, mesmo eu já sabendo o final,
ainda fico surpresa... da minha avó que casou com meu avô sem amor... casou porque seus pais
queriam, e depois, sem amor, ela aprendeu a amá-lo. E depois que ele morreu, ela viúva, ainda
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jovem, não procurou outra pessoa para amar...

SEQ. 34 - INT. D. NEUSA - DIA


Sala integrada com a cozinha, fogão, geladeira. Da torneira da pia sai o chuveiro improvisado.
Em cima da pia, panelas penduradas.

ANA (V.O.)
E foi no caminho de volta ao hotel, cansada de conversa de família, paro numa casa e encontro
Neusa, 70 anos. Que sabe ler mas não sabe escrever. Vende cerveja gelada mas me oferece de
graça um café, forte e sem açúcar como eu gosto. (pausa)
Me mostra duas cicatrizes feitas por causa de uma cirurgia de estômago, no seu corpo que
envelheceu ainda esbelto e firme... eu com 35 anos tenho mais gordura localizada do que ela.

Fotos de Neusa na parede, quadros de santos, gravura de paisagem.

ANA (V.O.)
Ela mantém na única parede-divisória da casa, que separa a sala do seu quarto, suas fotografias
da juventude. Me disse, que era muito caro fazer uma fotopintura com Telma mas um dia foi
ao Estúdio Saraiva e fez uma para sua carteira de identidade.

Fotografia 3/4 de Neusa.

ANA (V.O.)
Os estrangeiros americanos da igreja Batista que chegavam na cidade, pediam logo era cem
fotos, um cento para a identidade e o passaporte. De tão bonitos que ficavam!!!

SEQ. 35 - EXT/INT. HORTO JUAZEIRO - DIA


FOTOMONTAGEM (ou filmagens): Vestido de noiva (como ex-voto) no centro da sala do
museu. Pátio externo, fitas de promessas amarradas, nomes assinados na parede da estátua,
conjunto de velas acesas, apagadas e derretidas.

ANA (V.O.)
Esse era um dos lugares preferidos de minha avó, muito devota do Padre Cícero, santo
179

milagreiro. Ela me trazia aqui, eu bem pequena ficava fascinada com a quantidade de coisas,
partes de corpos....Será que essas pessoas têm certeza mesmo do que pedem?... ocupando o
santo com seus dramas, o justo seria os dois pedirem com a mesma vontade, mas como faz
quando tudo muda?....

Em frente a estátua do Padre Cícero, grupos de pessoas, famílias fazem fotografias, tiradas por
fotógrafos ambulantes, com celulares, fazendo seus selfies.

ANA (V.O.)
Miguel, vc não vai acreditar no que eu tô pensando agora.... Imagina aí?!...
Do Horto, na extremidade do pátio com paisagem da chapada ao fundo, numa referência às
fotos de Lambe-lambe com fundo de lona pintada. Casais de homem e mulher, casais de mulher
com mulher, casais de homem com homem.

ANA (V.O.)
Lembrei da Lalá, a virgem! Falou com tanto orgulho do feito.... Miguel, pra onde vai nosso
desejo?...Aí lembro da Neusa, que teve saciado o seu desejo... E olha só, o que a Neusa me fez
ques-tão de mostrar, as fotos das filhas que puderam estudar!

Som de toque de celular.

SEQ. 36 - ALLAN ENCONTRA A FOTO DE ANA - DIA


Foto de Allan no quarto de sua casa pelo visor do celular com uma foto na mão. Fotografia de
Ana com 10 anos, como cigana. Detalhes das mãos, dos olhos, do rosto.

ANA (V.O.)
Allan encontrou duas fotos minhas, devo ter uns 10 anos. Tava muito tempo guardada, uma
criou pequenas manchas de fungos e mofos. Sugeriu que eu levasse ao Seu Abdon para restaurar,
só precisa de um retoque nas cores do painel.

Pequenas e poucas manchas brancas nas extremidades do fundo colorido. (Fotos do Bitu
Cassundé com fungos)
180

ANA (V.O.)
Ela inventava as fantasias para nos vestir nas fotos. Improvisava as mangas com papel crepon,
transformava lenços em vestidos, nos vestia com as roupas dela e por trás fazia amarrações para
ficar ajustado.

Ana como índia.


ANA (V.O.)
O Allan me explica que nessa foto ela me vestiu com a mesma blusa que está na foto dela como
índia. E aí eu pergunto ao Allan, que foto como índia?

Telma como índia-apache. Ana como índia. Detalhes da blusa.

SEQ. 37 - INT. CASA DE SR. ABDON - DIA


No quarto-estúdio Seu Abdon pinta no seu cavalete. Nas paredes fixadas as foto-pinturas no
estilo tradicional.

ANA (V.O.)
Seu Abdon me diz que minha foto está em bom estado mas que não vai poder restaurar porque
não usa a tinta à oléo que a Telma usava, que eu posso encontrar no estúdio do Seu Júlio Santos.

SEQ. 38 - INT. ESTÚDIO JÚLIO SANTOS - DIA


Estúdio de Sr. Júlio Santos. Cavalete com tintas à óleo.

ANA (V.O.)
Seu Júlio me disse que as que Telma usava ela comprava importada, com a ajuda do irmão
Salviano, meu avô, que falava muito bem inglês e conseguiram que viesse dos Estados Unidos
pelo correio.
Disse que se eu quiser eu posso mudar minha roupa ou somente retocar as partes com manchas...
me mostrou um volumoso mostruário de vestes pra que eu escolhesse.

Mostruário de vestes para as fotos.


Imagens passo a passo do processo de fotopintura: fotografia ampliada em baixo contraste,
impressão em sépia, foto sendo pintada em cavalete.
181

Foto com Telma como índia, na revista.

ANA (V.O.)
Seu Júlio ainda me mostrou uma revista com Telma como Índia, a mesma que Allan me mostrou.
Porque ela fez esse autorretrato assim? Será que era fantasia de carnaval?

Painel de cores, fundo pintado de forma abstrata.

ANA (V.O.)
Miguel... eu achava que tudo ia demorar muitos dias, e quando eu decidi foi tudo rápido, eu
recebi na mesma hora, minha foto restaurada.

SEQ. 39 - EXT. CRATO TÊNIS CLUBE/FOTOGRAFIA RESTAURADA - DIA


Foto de Ana como índia.

ANA (V.O.)
As cores antigas se juntaram as novas cores e ficaram vivas, pulsantes… talvez eu nem seja
assim, mais tão jovem, né?! Jovem como foi a Telma, a vida toda!!! Mas sabendo que as cores
vivas cobrem os pinguinhos de mofo do tempo… acho que não é mais isso que me interessa.

Imagem super 8, Crato Tênis Clube: criança sobe no escorregador e mergulha na piscina, sobe
do mergulho e olha para alguém fora da piscina, que está na direção da câmera. Pausa na
imagem da criança que olha.

SEQ. 40 - EXT/INT. CASA GINO MOLDURA - DIA


Frente da loja Gino. Prateleiras com porta-retratos estilo da década de 70, 80.

ANA (V.O.)
Quero uma moldura para minha foto restaurada, daquelas que vejo nos oratórios das casas daqui.
O Seu Abdon, me falou dessa loja, se eu tivesse sorte ainda pegava ela aberta.
182

Gravuras de garota pop ao lado da gravura da Monalisa. Molduras e quadros com imagens de
santos. Monóculos nas prateleiras.

SEQ. 41 - INT. SONHO DE ANA - NOITE


Aquário artificial com peixinhos flutuantes amarelos e vermelhos de plástico, envolto em
fumaça de gelo seco com luzes em tons de azuis escuros.

ANA (V.O.)
Acordei no meio da noite... lembrando do que você me falou que todos os peixinhos da Lia
morreram porque o ph da água estava alterado, e eu acho que você colocou comida demais e
alterou a qualidade da água....
(Pausa)
Aí sonhei que estava num aquário, como mulher-peixe, mas não era na forma de sereia não, era
uma mulher-peixe pequena, ajustada ao tamanho do aquário. E o aquário era parecido com o
dos peixes da Lia. De repente, apareceram os peixinhos de nossa filha que começaram a pular,
um depois do outro, num voo suicida.
(pausa)
Eu acho que eles pensavam estar num pedaço do mar e pulando iriam para o mar infinito... mas,
como é que a gente pode saber, né Miguel?.. o que está fora do aquário?! Mas também, como
ficar só nessas águas conhecidas? é o que vai acabando com nossos sonhos... é melhor ser
anfíbio, poder ir à água e à terra, pertencer a vários mundos, mulher-rã!!!

Detalhe dos peixinhos que se movem sem sair do lugar. Olhos dos peixinhos. Rã na parede do
aquário.
ANA (V.O.)
Não preciso dizer que não consigo mais voltar a dormir ... aí peguei minha foto restaurada, e as
fotos que Seu Júlio me deu, e coloquei na parede do quarto.
(pausa)
Aquela mulher fantasiada... era uma mulher-rã! Fiquei olhando, mas não entendo muito bem
por que....

SEQ. 42 - INT. QUARTO HOTEL-TELMA ÍNDIA - NOITE


Foto de Ana como índia feita por Telma. Gravura índia de José Maria de Medeiros. Foto da
183

revista de Telma-Índia. (Todas as 3 imagens na parede do quarto.)

ANA (V.O.)
Porque Telma fez essa foto dessa forma? Porque usa fantasia?...

Destalhes Telma-Índia: olhos, uma mão pousa no braço, face.

SEQ. 43 - EXT. FÓRUM - DIA


Alguém anda pelas calçadas quadriculadas com mosaicos antigos entrecortados com os
mosaicos atuais. Fachadas de casas antigas com placas comerciais.
Fachada do Fórum. Movimento de pedestres.

ANA (V.O.)
Edilma foi quem trouxe o testamento escrito por Telma e foi lido na audiência com o juiz
(leitura do testamento por Edilma). Ela pede que a casa seja um memorial com seu trabalho
artístico e eu estou de acordo. Peço Edilma para ir à casa de Telma, ela me entrega a chave.

SEQ. 44 - INT. CASA/ESTÚDIO TELMA - DIA


Quarto com decoração inspirada em filme. Cama e Escrivaninha estilo rococó. (sons do filme
de Shirley Telmple)
No estúdio escuro, luz do celular ilumina revistas Cruzeiro, Vida Doméstica, Cena Muda na
estante, refletores, tripés, vitrine com poás, câmeras fotográficas. Fotografias em preto e branco
feitas da casa e do estúdio quando estava em funcionamento.

Ana ilumina revista Cruzeiro com capa sobre carnaval e cinema, ilumina uma edição do Jornal
das Moças (sons de filmes de carnaval da década de 50/60).
Vê imagem de publicidade da época, homem vende brilhantina para o cabelo. Moldes de
vestidos para fazer. Festas de carnaval da década de 60.
O foco direcionado ilumina boneca gueixa em cima da prateleira, em cima da mesa mostram
os instrumentos de laboratório, tubos. Máquinas fotográficas.

Fotografia de Telma bebê em preto e branco, registro da foto no negativo em vidro. A mesma
foto de Telma bebê, colorida.
184

Pacotes com fotografias ensacadas. Foto mostra mulher de gueixa.

ANA (V.O.)
Me parecem outros autorretratos de Telma.

SEQ. 45 - INT. CASA HERBÊNIO - DIA


Herbênio sentado à mesa com álbuns com recortes de revistas das atrizes do cinema, folheia o
álbum e olha para alguém.

HERBENIO (V.O.)
Vamos fazer um retrato? ! “A pessoa não sabia o que era ? , mas ela educava o rosto da pessoa ...
olhava no visor: “um pouquinho mais assim... tá ótimo! Olhe para cá! (Tum!) e batia! O dom
dela!

Recortes de revista: Florinda Bolkan, Marlene Dietrich, Ava Gardner, Lamarr Herr, Marilyn
Monroe.

HERBENIO (V.O.)
Como Marilyn era mais uma modelo, ela não era atriz... (...)

Fotos de Elizabeth Taylor, Scarlet O'Hara, Sara Montiel, Ingrid Bergman.


HERBENIO (V.O.)
Ela se inspirava muito nas poses: Marlene Dietrich...(...) Olhe, pra tirar as fotos assim com a
mão no queixo das pessoas... Eu me lembro como se fosse agora! Porque ela se inspirava nas
atrizes (...) Ela se inspirava também em Elizabeth Taylor, no filme ‘Cleópatra’ ... ela fazia
muitas fantasias de Cleópatra, inspirada em Elizabeth Taylor... Marlon Brando... ela gostava
muito de Marlon Brando! Ela achava que a beleza era tudo!
Ela fazia a pessoa feia, bonita... Aqui, tem uma mulher do Crato que era feia.... era feia, mas as
fotos dela eram bonitas, porque ela era fotogênica... ela sabia transmitir o que a Telma pedia
pra ela!
Íamos muito ao cinema... os filmes de drama... era só drama épico... 10 mandamentos... os
185

dramas, imitação da vida... Esquina do pecado, Rita Hayworth, Madame X.... tudo era drama!
História da vida real....
(pausa)

AUTORRETRATO DE TELMA COMO SHIRLEY TEMPLE

ANA (V.O.)
Todos os dias, ela acordava e passava o batom e fazia os cachos dos cabelos castanhos, que por
algum tempo esconderam seus cabelos lisos e brancos. Os cachos vem da moda da Shirley
Temple, atriz de cinema da década de 30.
(pausa)
Telma viveu 86 anos de vida e dedicou mais de seus 60 anos a fotografia. E me faz pensar sobre
o que seja suficiente pra nos mover. (pausa) "86 anos, e uma vida dedicada a fotografia."

AUTORRETRATO DE TELMA COMO SCARLET OHARA

ANA (V.O.)
Nesse autorretrato ela parece com a Scarlett O’Hara no Vento Levou...

AUTORRETRATO DE TELMA COMO ELIZABETH TAYLOR

ANA (V.O.)
Aqui ela é Elizabeth Taylor como Cleópatra, imperatriz egípcia, encantadora pela beleza e
inteligência. Cabelos de um negro brilhante! O contraste com o verde e o rosa do vestido e da
pele é muito sedutor!

AUTORRETRATO DE TELMA COMO AVA GARDNER

ANA (V.O.)
A Condessa Descalça foi um filme que Telma viu várias vezes. Ava Gardner foi Maria Vargas,
dançarina espanhola que é levada para a cidade grande pelo produtor de cinema, e lá aprende
com o cineasta Harry Dawes a utilizar em seu favor a luz, para iluminar seu talento e beleza e
dessa forma conquistou Hollywood.
186

AUTORRETRATO DE TELMA COMO ANGELA MARIA

ANA (V.O.)
Aqui ela é uma musa cantora de rádio. Como a Ângela Maria, ou a Emilinha Borba, as vozes
femininas cantaram muitas dores de amores e paixões. A luz vem por trás dando volume aos
cabelos que formam um arco escuro em torno da face. O brilho das pérolas fica mais intenso
na sombra!

AUTORRETRATO DE TELMA COMO PERSONAGEM DE TIM BURTON

ANA (V.O.)
Aqui parece com os personagens dos filmes que a Lia gosta como as do Tim Burton, que nem
era filme da época dela quando jovem, mas parece a mesma expressividade das atrizes dos
filmes mudos. Tem melancolia com luz brilhante. Os cílios são tão definidos que podemos
contar um por um!

AUTORRETRATO DE TELMA COM ANIMAIS (LASSIE)


Foto de Telma com cachorro.

ANA (V.O.)
Edilma me disse que aqui ela se inspirou no filme da Lassie.

AUTORRETRATO DE TELMA COMO GILDA

ANA (V.O.)
Telma veste as luvas e encobre parte do rosto. Misteriosa. Lembro do filme da Rita Hayworth
como Gilda que dança um strep tease e que tira uma luva e joga para a plateia, a dama da noite.

SEQ. 46 - INT. CASA DE INTERNET/ TRECHO DO FILME GILDA - DIA


Cabine de divisórias de fórmica branca. Na mesa um monitor de computador, teclado, cabo do
fone de ouvido esticado para fora. Na tela do computador o filme Gilda. Sem legendas.

Escutamos som de áudio pelo fone de ouvido o que se passa na tela do computador.
187

Ana fala em português sobrepondo ao que Gilda conversa em inglês com a empregada
doméstica (Gilda e Maria observam pela janela os foliões na rua em festa de carnaval).

TRECHO DO FILME GILDA (1946)

GILDA
Olha Maria é carnaval.
MARIA
É... carnaval.
GILDA
O que significa exatamente?
MARIA
São os três dias que precedem a quaresma. Nos países católicos celebra-se com muita alegria
e festas. Depois vem o jejum e a penitência.
GILDA
Ou seja aproveitar enquanto se tem chance.
MARIA
Você diz coisas estranhas.
GILDA
Quero dizer... três dias semeando e, então vem a colheita.
(pausa)

SEQ. 47 - INT. NOVA MIRADA ESTÚDIO DE TELMA - DIA


Foto de Telma-gueixa retirada pela metade de um saco.
Detalhes da rosa no cabelo, a fita grega amarela na túnica vermelha, os olhos. (filmar e escanear)

ANA (V.O.)
Não sei se fui afetada pelas cores, ou foi o brilho das fantasias … me invadiu uma saudade tão
grande, que aperta o peito… Acho que faço uma viagem de volta pra minha infância... que não
volta mais.

Caixa com dvd, Dvd tem escrito Câmera Viajante (Telma) do Joe Pimentel (2007).
188

SEQ. 48 - TELMA FALA SOBRE FOTOGRAFIA - TRECHO VÍDEO - NOITE


Pelo monitor do computador, inicia o programa de reprodução do dvd, e aparece a imagem de
Telma sentada na sala de sua casa.

HOMEM (V.O.)
Qual a importância que tem a fotografia na vida da senhora?
TELMA
Como é?
HOMEM (V.O.)
Qual o significado que tem a fotografia na vida da senhora?

TELMA
Tudo... a fotografia na minha vida é tudo. Se me tirar a fotografia eu fico sem ar.

HOMEM (V.O.)
Só um minutinho... diga de novo.
TELMA
A fotografia na minha vida é tudo, se me tirar a fotografia eu fico sem ar... eu não vivo. Eu já
penso como é, porque eu já tô numa idade já avançada, como é que eu vou deixar de fazer, mas
eu acho que não vou, porque eu vou procurar fazer nem que seja pra casa, pra mim, porque eu
adoro fotografia. Tudo que tiver sobre fotografia... eu adoro!

SEQ. 49 - EXT. CRATO TÊNIS CLUBE - DIA


Pessoa caminha pela calçada do Crato Tênis Clube. Fachada do clube.

Salão do Crato Tênis Clube vazio.

ANA (V.O.)
No Crato Tênis Clube, Telma participava da sua festa principal, o carnaval, a única que fazia
ela sair de casa. Fazia as fantasias para a gente ir na festa da meninada que era pela manhã, e
os adultos iam na de noite. Eu queria mesmo era ir nas festas da noite, mas eles não deixavam...

Imagens super 8: adultos pulam no salão do clube. Orquestra toca, foliões dançam.
189

Fotos de Telma com fantasia para os blocos de carnaval. Telma de vestido, Telma de vestido
com homem dourado do bloco.

ANA (V.O.)
Telma ganhava os concursos anuais de melhor fantasia dos blocos carnavalescos, aí ela
brincava os 3 dias, só parava na quarta-feira de cinzas.....

Fotos de Telma com os filhos, dançando carnaval no salão.

SEQ. 50 - INT/EXT. CRATO TÊNIS CLUBE DEBUTANTES - DIA


Imagens de super-8 com os desfiles de debutantes no salão do Crato Tênis Clube.

ANA (V.O.)
E também era ela que projetava a decoração e ornamentos das festas das debutantes da cidade...
Fotos das debutantes feitas por Telma. Debutante com vestido branco e adereços no cabelo,
estilo clássico, apoiadas em colunas gregas, e grades com ornamentos florais.

SEQ. 51 - INT. FUGA DO MUNDO REAL/PRECISA MUDAR A FANTASIA - DIA


Teto do quarto de hotel.
ANA (V.O.)
Hoje, acordei com um grito! O meu mesmo. Tava sonhando e não sabia direito o que sonhava,
sentia uma pressão e gritei. Acordei. Não foi um grito forte não! Não era um grito forte para
fora. Era um grito só para acordar!
(pausa) Telma imaginou todas as suas vidas... eu tive a oportunidade de sair daqui e não fiquei
livre...
(pausa)
Que sonhos poderia ter aquela menina?
As luzes da manhã entram pela janela de vidro e reflete no teto.

ANA (V.O.)
Telma fez, daquele quarto escuro,
190

em poucos metros quadrados, o mundo mais possível que podia criar para ela mesma...
(pausa)
As imagens da Telma são também como um tipo de uma carta que eu procurei para mim, como
essa que eu conto para você.... Miguel.

O mesmo aquário de peixe industrial chinês (sem peixes, com rãs vivas).

SEQ. 52 - EXT/INT MUSEU DO CRATO - DIA


Fachada do museu. Sala do museu. Atendente do museu passeia pelas salas e apresenta cada
peça exposta (vemos as ações, sem o áudio do atendente).

ANA (V.O.)
Passei por aqui muitas vezes e nem sabia que era um museu da cidade, o segundo museu de
arte mais antigo do Ceará. Mas hoje entrei, antes de chegar na casa da Telma..

Sequência de telas pintadas sobre a cidade do Crato. Réplica de escultura de Vênus.

ANA (V.O.)
Procuro fotos de Telma mas o funcionário me informa que da família mesmo tem uma escultura
feita por Edilson,

Busto esculpido feito por Edilson.

ANA (V.O.)
...o marido de Telma e fotografias de Júlio, pai de Telma, ou seja somente os homens da
família...
Fotos da década de 40, 50 de: homens em frente ao Cassino. Fotos de homens na abertura da
feira de agropecuária. Foto de homens de roupa de futebol na frente do prédio do cinema. Foto
de fachada de cartazes de cinema da década de 50. Foto de padre com orquestra de músicos.
Foto de homens públicos.

ANA (V.O.)
Não entendi... porquê as fotografias de Telma não estão no Museu?... Como alguém que não é
191

daqui, vai poder conhecer o trabalho dela, que já teve exposições em Fortaleza, São Paulo, e na
Espanha?

SEQ. 53 - INT. QUARTO DO HOTEL - NOITE


Teto de Quarto de Hotel.

ANA (V.O.)
Acordei, as 3 horas da madrugada... É muito duro ficar sentada numa cadeira trabalhando num
papel pregado num cavalete de pintura, por quase toda a sua vida.
Algumas frases que ouvi esses dias não me saem da cabeça, Telma trabalhava obcecadamente
de segunda a segunda, das 8 horas da manhã até a madrugada, fotografava, retocava, revelava,
pintava. Ela nem tinha assistente e podia ter ganho dinheiro só com a fotografia comercial de
estúdio....
E o corpo sem a mente não funciona, né Miguel?! dá logo dor nas articulações. Dói logo a
bunda.
(pausa)

Olhares dos autorretratos de Telma.

ANA (V.O.)
Li que uma das principais regras para ser uma gueixa é ser tão anônima quanto for possível.
Isso ajudava a dar mais ainda um ar de mistério a elas, o que fazia com que os homens ficassem
ainda mais fascinados pelas gueixas. Por causa disso, elas usavam nomes artísticos e não
podiam revelar a verdadeira identidade aos clientes.

Detalhe do rosto, das mãos (Telma-gueixa).

ANA (V.O.)
O que fazia uma gueixa? A gueixa era uma artista, tinha uma vida regrada e com muitas
provações, tinha um tipo de sensualidade silenciosa e cheia de segredos bem guardados a sete
chaves.
Para ser gueixa de verdade, não basta apenas ser bonita e elegante. Elas tinham que aprender
tudo a respeito das artes, da pintura e da caligrafia.
192

Detalhes da cor vermelha da túnica. Vários tons de vermelhos.

ANA (V.O.)
O vermelho tem vários tons, vermelho-carmim ou vermelho-rubi. ... não sabemos mais se é
veludo ou é seda, de tão refinado.
As cores vermelhas se transformam mesmo em encarnadas, como dizia meu avô!

Detalhes dos bordados com fita amarela da túnica.

ANA (V.O.)
Uma fitinha amarela, que colocavam nos nossos vestidos de criança, acho que chama grega e
contorna um bordado, um bordado que é pintado na seda, uma coisa pode ser outra...

Detalhes cabelo e rosto Telma-gueixa. Olhos, faces.

ANA (V.O.)
Ahhh o cabelo, Miguel, o cabelo é um deslumbre a parte. Em alguns formam volumes no estilo
da Amy Winehouse, como um turbante que envolve todo o rosto.

Detalhes dos cabelos, Telma-gueixa. Telma-cantora de rádio, Telma cabelo curto.


ANA (V.O.)
O corpo da Telma-gueixa é um corpo que ocupa todo o espaço, o rosto se aproxima de nós, o
corpo se afasta!
Ela tinha um corpo esguio, uma moça de 1 metro e 50, e que nunca passou dos 50 quilos… no
molde dos corpos dóceis das mulheres que não saem de dentro de casa, ela não conseguiu se
encaixar nesse modelo...

Foto Telma-gueixa completa.

SEQ. 54 - INT. VOLTA A PERGUNTA SOBRE A FANTASIA - NOITE


Teto do quarto de hotel.
193

ANA (V.O.)
Tive a impressão de que ouvia o mesmo silêncio, que ouvi quando parei na casa da tapioca da
Mazé, no meio da estrada....

Foto restaurada de Ana como índia na parede.

ANA (V.O.)
Não sei se porque vi tudo isso de uma vez só, e não consegui mais dormir.

35 autorretratos de Telma, pregados na parede do quarto junto a foto restaurada de Ana.

ANA (V.O.)
Miguel, tirei os autorretratos dos sacos, e olho pra elas.
(pausa)
Comecei a imaginar aquela parede da casa da Telma, que o Ricardo me falou que tinha. As
fotografias que Telma colocou na varanda já velhinha para que todos vissem, com todas as suas
vidas imaginadas, e agora, aqui, projetadas....

Telma como espanhola em sépia, transição para a cor, Telma espanhola em cor.

ANA (V.O.)
Quando ela começou a fotografar em preto e branco, e depois começou a sentir falta das cores....

Detalhes dos sinais no rosto das fotos de Telma.

ANA (V.O.)
Cria com o lápis seu sinal de beleza.

Telma com fundo azul, e vestido verde, com fundo azul-esverdeado e vestido vermelho. (as
formas desfocam e formam manchas de cores)
194

ANA (V.O.)
O rosa combina com todo tipo de cor com o azul, com o verde, com o amarelo, com o roxo,
que vem do rosa com o azul...

As manchas de cores se transformam nos detalhes de mãos sobre o rosto, mão pousa uma
sobre a outra, mão segura uvas, mão segura lenço.

ANA (V.O.)
As mãos fazem um leque!

Telma espanhola com as mãos em leque fusão com a mão que pousa sobre o braço da foto
Telma-índia.

Foto de Telma-Índia.

ANA (V.O.)
A luz vem pelo lado, o olhar também, parece que foge, não, acho que não é bem esse olhar que
foge... É o olhar na mesma altura que o nosso. Ela não tem medo!
Deixa que a gente olhe para ela.

Foto de Telma-índia.
ANA (V.O.)
É uma Iracema moderna!

Telma-índia sai do foco e se transforma em manchas de cores.

ANA (V.O.)
Aí ela se maquiava todos os dias, e se admirava que as pessoas tiravam a maquiagem depois
da foto... (imitando Herbenio falando da Telma) Olha, Herbenio elas tiram a maquiagem?!...
(Pausa)
Tenho duas escolhas, tirar a maquiagem ou, eu colocar a maquiagem, mas porque só uma é
fantasia? E a outra é o quê?
Painel com fundo infinito de manchas de cores abstratas.
195

SEQ. 55 - INT. ANA ENCONTRA ALLAN NO CAFÉ - DIA


Do café vê-se pessoas passando na calçada e rua. No café está mais escuro, e na rua o sol é mais
intenso, dando a impressão de que estamos vendo uma tela de cinema ou um quadro ampliado
em movimento (tableaux vivant).

ANA (V.O.)
Encontro Allan e vamos a um café. Falo com ele sobre o que tenho aprendido esses dias. Sobre
as fotografias que tenho visto novamente.
(Pausa)
Allan me diz que vê o ato de fotografar como um rito social e me pergunta, quem somos nós
que estamos diante da câmera para fazer a fotografia. Seja com uma fantasia de espanhola ou
de debutante?

OFF (COUTINHO) SOBRE IRACEMA, MEMÓRIA, FANTASIA, IMAGINAÇÃO.

Do interior do café, vê-se pessoas passando na calçada e rua.

SEQ. 56 - INT. TELMA FOTOS EMBARALHADAS - DIA


Estúdio de Telma iluminado, em cima de uma mesa, uma mão feminina retira as fotografias
dos sacos e ordena classificando de acordo com o tema das fotos separando-as nos dois lados
da mesa. Do lado direito, coloca as fotos dos rituais: primeira comunhão, debutantes, casamento,
formatura, religiosos. Do lado esquerdo, coloca fotos de Telma: fantasias de espanhola, grega,
índia, gueixa.
Lentamente começa a deslocar as fotos de seus lugares, trocando algumas fotos de seus lados.
Lentamente as fotos são embaralhadas e se fundem uma nas outras, saindo da linha divisória,
criando camadas de imagens superpostas umas nas outras, podendo ver religiosa-grega,
debutante-índia, Casa de Telma foto de Cristiano Mascaro-com casa de Telma empoeirada 1,
noiva-Telma com sombra projetada na parede. Homem de paletó-criança de chapéu, Casa de
Telma foto de Cristiano Mascaro-com casa de Telma empoeirada 2, Telma Gueixa - Mulher
formanda, Telma índia-Telma no estúdio cercada de refletores.

NÃO É O FIM
196

Figura 61 – Cartaz fílmico, TODAS AS VIDAS DE TELMA. O roteiro docuficcional foi selecionado em edital
público da Lei Aldir Blanc de 2020. Em fevereiro e março de 2021 fizemos a captação das imagens. O lançamento
do filme está previsto para fevereiro de 2022, no espaço da casa da família Saraiva que agora é a Casa da fotografia
– Telma Saraiva. Fonte: Autorretratos do acervo da Família Saraiva. Arte Gráfica: Leo Ferreira.
197

ANEXO
Conversa com Titus Riedl

(...) Foto pintura é um fenômeno que acompanha a fotografia desde o início praticamente já
havia (...) pinturas coloridas e depois toda uma técnica... assim digo a foto pintura é sobretudo
uma técnica de transformação, da imagem em preto e branco para o colorido... enfim, que há
uma tradição, na verdade, tênue entre coloração, imagem e foto pintura... esses(...) colorir...
Não é necessariamente foto pintura... e, como tem poucos estudos a respeito... a melhor
classificação, digamos assim, na obra clássica, um estudo clássico, a gente vê isso... enfim, as
fases da coloração podem chegar a uma pintura que cobre toda a superfície fotográfica. Isso
caracteriza a foto pintura, é um dos motivos maior para realizar foto pintura a partir de uma
fotografia, é que a coloração e, frequentemente e, também a ampliação... tudo isso ao meu ver,
explica um pouco a popularidade da foto pintura até recentemente aqui no Nordeste... que era
muito difícil e muito caro obter as fotografias coloridas até épocas mais modernas quando já
havia técnica, já havia fitas coloridas, mas a ampliação, e (...)enfim, era muito cara! A foto
pintura permitia essa transformação da fotografia de um original em preto e branco para o
colorido e algo que é interessante nesse sentido é que junto com essa transformação que
frequentemente também era uma ampliação da imagem, uma imagem 3x4 que se torna 13, 18,
20 ,30 ou ainda em tamanho maiores! Junto com essa transformação que dá um aspecto
evidentemente oficial e mais... transmite uma autoridade maior a fotografia... foto pintura pra
mim tem muito a ver com prestígio social... quem não obteve uma foto pintura de si... tem uma
necessidade de ter uma imagem pra ver se tem mais representar... uma imagem representativa,
de mais prestígio social... inclusive porque, na fotografia ou foto pintura se podia agregar
elementos como paletó, gravata... ´dar uma roupa mais social, portanto o cliente, poderia
transformar uma imagem feita por um fotografo lambe-lambe, um fotógrafo da praça em uma...
num retrato de maior prestígio social, eu diria assim...E, frequentemente a foto pintura também
era não só mais importante mas praticamente é a única fotografia que se mostrava antigamente
nas casas. Frequentemente na sala de estar, na sala de entrada ou junto com o oratório
doméstico... portanto, ela nas casas, na população em termo geral, ela ganhou um destaque... tá
assim... eu sempre digo isso, porque eu gosto muito de foto pintura e desse universo (...) Da
minha coleção de foto pinturas ... essas imagens, durante 30, 40, 50 anos, às veze mais...a
principal referência iconográfica visual que havia nas casas, que existia nas casas. Portanto,
assim todo o universo afetivo, uma memória afetiva relacionada com esses quadros...isso, acho
que dá um certo destaque a foto pintura em termos da história da fotografia... porque talvez
tenha outra imagem acerca... eu diria ainda dois elementos que devem ser contemplados, o que
é curioso, na foto pintura e também fotografia popular aqui do Nordeste, as pessoas pouco
sorriem, elas não têm... não são soltas... a fotografia muda, na verdade, o olhar muda também,
do passado pra cá. As pessoas... o hábito fotográfico exigia muito respeito... quase uma
cerimônia, uma performance, quase um pequeno ritual... e, sorrindo teria se desfeito um pouco
desse aspecto da autoridade, do patrão, do dono da casa... a foto pintura, curiosamente, tem um
aspecto de serenidade, seriedade e também de autoridade e ultimamente de prestígio social... e,
isso, acho que é bastante particular desse universo... e, também tem dois aspectos que sempre
me chamava a atenção... que, primeiro, a foto pintura é tipicamente um(...) dos retratos, assim
praticamente não tem foto pintura de paisagens, etecetera... eu digo 99% talvez mais seja de
retrato humano... mas, um retrato bastante particular... porque nas foto pinturas antigas,
praticamente, não havia um fundo, uma perspectiva... era algo para(...) que na história das artes
é uma estética remota, antes do renascimento... na gótica ainda teve essas imagens que haviam
um fundo , quase um céu, um fundo quase infinito... e, foto pintura na verdade construía essa
198

estética... frequentemente, parecido com as imagens dos santos, com essas estampas de santos
que se encontra nas casas... e, caso, tem esse fundo que parece infinito ou só de uma cor... e,
por outro tem uma nitidez que a própria fotografia não dá... tem uma certa falsidade, digamos
assim, um certo constrangimento do olhar, que a fotografia... ela não permite. É a nitidez da
profundidade da imagem... se você tira uma fotografia do nariz, as orelhas não vão ficar com a
mesma clareza... e, se você tira uma fotografia das orelhas, o nariz, o primeiro plano não fica
nítido... e, o foto pintor, no entanto, no ato da pintura, ele vai acrescentar nitidez a todos os
planos do rosto... assim, o rosto vai perder a profundidade, frequentemente ele vai desfazer a...
(...)os clientes, os antigos donos de foto pintura, ele não gostavam das sombras, que ele
chamavam de carvão, que eles chamavam de manchas, das escuras... eles diziam para os foto
pintores: “Por favor... tira essa mancha, tira o carvão, tira as sombras!” O que acontece aí é um
chapamento do rosto, e ... o rosto da foto pintura é mais nítido do que comumente da fotografia,
mais também das artes acadêmicas... a ausência de sombras em algumas imagens dá um aspecto
um pouco irreal, como se fosse uma máscara, como se fosse... (...) de máscaras mortuárias...
Alguns acham que a Foto pintura ... ela tem um aspecto de uma arte mortuária.... e, esse seria
o elemento que queria destacar. (...) A foto pintura existia em toda a América Latina, tanto
assim, que encontrei foto pintura no México, na Argentina, no Uruguai... também em todo o
Brasil. Só que a tradição da foto pintura, assim, nos países mais do centro-sul, ela vai se
desfazendo, ela vai enfraquecendo bastante...mas, assim em tempo mais remotos que aqui do
Nordeste.... Eu digo que o Nordeste do Brasil é uma região onde a foto pintura sobrevivia,
chegou a sobreviver mais... e, isso seria um papel interessante dessa região... e, porque o Cariri,
o que faz o Cariri interessante nesse sentido.... por ser a cidade de romaria... eu, nas minhas
pesquisas, descobri que praticamente todas as cidades de romaria, há uma sobrevivência da
fotografia popular, que chamo fotografia popular...mais viva ou mais presente... os últimos
lugares, realmente dessas técnicas, como a fotografia de monóculos, que seria a fotografia de
(sem compreensão/palavra estrangeira) que são edição de slides, praticamente... e, também de
lambe-lambe, mas, também a foto pintura é também muito associada a esses lugares de maior
afluência, população e de... e, portanto, o Cariri ganhou um certo destaque nessa presença,
nessas técnicas... e, em outras regiões, em outros países já não existe a bem mais tempo...
(...)
A Telma, no caso, tem vários aspectos bastante especial, ela se diferenciava, ela nunca se
associava, nunca... nem sequer simpatizava muito com esses fotógrafos amadores, assim,
ambulantes... esses fotógrafos dos romeiros, ela não foi uma fotografa das romarias... enfim,
das multidões, digamos assim... No caso, ela mesma dizia, nas nossas conversas, que ela deve,
principalmente, enfim, seu conhecimento a seu pai- Seu Júlio Saraiva... e, o pai tinha
estabelecido no Crato, um dos estúdios, um dos comércios pioneiros aqui da região... e,
sobretudo, da cidade do Crato... e, ele era uma pessoa muito bem relacionada, na sociedade...
ele, enfim, trabalhou na prefeitura, tinha apoio e ele também apoiava políticos, ele era urbanista,
e era um pouco inventor e era uma pessoa bastante enraizada na sociedade cratense, e ele e toda
a família... enfim, consequência tem isso... e, Telma foi autodidata... ela realmente não passou
por uma escola, ou uma academia de arte... e, também tinha esse dom de ser inventora... enfim,
como o pai... sabe, experimentar... isso já estava um pouco na tradição da família... e, ela se
tornou uma fotografa, na verdade, eu chamaria... da elite do Crato. Uma fotografa da sociedade
do Crato... tanto assim, que os quadros dela(...)
(...)Não tenho conhecimento de outro fotografo pintor por aqui... que ela criou uma série de
imagens, de auto retratos... curioso que são autorretratos ... são pequenas viagens, viagem de
imagens, imagens que remetem ao mundo cinematográfico... são praticamente auto retrato, ela
se inserindo em filmes, de Hollywood, de índios(...) um pouco da estética que foi propagada
pelos antigos filmes lá nos anos 40, 50,60...que chegava aqui no Crato. Ela gostava muito de
cinema... quase todo mundo na época, os jovens começavam a coletar, colecionar esses postais,
199

também esses cartazes, essas imagens... dos filmes americanos. No fundo, ela vai antecipar algo
disso que hoje é o ‘self’, que é o self, um self com criação, que permite uma viagem de fantasia,
que permite... enfim, uma romantização, um embelezamento da sua própria vida... Portanto,
isso foi curioso, isso se verificou nos últimos 15 anos da vida dela, que ela guardava esse tipo
de imagem, que de alguma forma antecipou uma estética voltada a si mesmo, voltada aos seus
desejos... enfim, que parece bastante contemporâneo... Eu falaria que ela não se inseriu no
mercado de artes, não tinha contato... nem com academia, nem com galerias... ela foi tão
autodidata, digamos assim, que ela fez essa produção.... Praticamente, pra cabeça, ela não
pensou... quando eu vi esses auto retratos pela primeira vez, ela era muito tímida, ela muito
receosa de mostrar... ela tinha vergonha de não saber se isso era algo que se pode mostrar a um
estranho, um visitante... e, ela também não coletava os negativos... dificilmente você pode
construir uma(inaudível) partindo do arquivo... ela não tinha esse cuidado de um arquivo, que
seria importante para recuperar, ou de reconstruir uma vida artística... e, alguns diziam, uma
colega, um curador de São Paulo, que ela era um pouco uma Cindy Sherman do Nordeste do
Brasil... que eu não sei se esse conceito seria muito feliz, porque a Cindy Sherman é uma artista
americana que ainda(inaudível), de uma outra geração, de uma geração um pouco posterior,
que também era sempre assim... aparece sempre nas imagens, mas com um olhar, com um
piscar irônico... enfim, ela na verdade celebra um pouco essa dramaticidade... e, celebra essa
ambientação... ela cria esses pseudos ambientes dos anos 50,60, 70... Telma não tinha um
distanciamento irônico da sua obra... enfim, ela não fez essa obra pra um mercado de arte...
enfim, ela também não... era uma brincadeira... ela era brincalhona! Mas, ela... essas imagens
não foram feitas pra se comunicar... digamos assim. Pra ser pendurada em uma galeria, em um
museu... pra ter uma visitação ou observadores de fora... isso faz a obra de Telma de alguma
forma especialmente simpática... eu acho que Telma ou a obra de Telma... ela, no caso dela,
deve ser pensada bastante em relação ao seu personagem... uma personagem, que embora viajou
mas ficou a vida toda no Crato... uma pessoa que também tentava se afirmar dentro aqui do
Crato...mas, por outro lado tinha esses desejos de projetar pra outras realidades, e realidades
melhores, mais bonitas, um pouco de realidades melhoradas ou transformadas... que exatamente
a foto pintura permite...(...) Eu tenho imagens de mortos, de defuntos que foram pintados como
a última lembrança que você vai vendo o resultado não ser mais do que um defunto... imagens
de pessoas que nunca se casaram, mas a vida toda sonhavam que com esta... de ter um retrato...
de esposa, enfim! E, isso foi algo que ela via... percebia na foto pintura... a Foto pintura pode
ser refúgio sentimental, a foto pintura pode permitir uma viagem imaginária, enfim! E, portanto,
ela vivia, vibrava com essa possibilidade... o que faz a obra dela assim atual, a obra dela
especial! E, quem conhecia Telma, quem vivia, visitava a casa dela... percebia que toda a casa,
toda a ambientação... era um mundo, quase um refúgio, um pouco cinematográfico, um pouco
do mundo dos filmes (...) era kitsch... considerado um exagero, exagero deste embelezamento...
mas, o kitsch ultimamente ultra artístico... conquistou também as galerias, os museus... a partir
de 10 anos pra cá mais ou menos... o kitsch não está mais sendo visto como uma não arte, ao
contrário... enfim! Acho que esta tensão e nesta linha entre arte e kitsch, a obra dela é realmente
bastante interessante... interessante. (...) eu, de alguma forma, eu consegui minha coleta, eu
consegui telas que foram rejeitadas.... telas que estavam estragadas...e, que os foto pintores
haviam jogado fora para entregar as telas rejeitadas... a Telma não tinha esse trabalho... muito
pouco. Ela não tinha essa demanda de quadros antigos para refazer, portanto, até porque a
técnica dela era meio... as telas de óleo, dificilmente se estragavam, não tão facilmente pegavam
fungos ou mofo... e, eu nunca quis, inclusive, por que nunca perguntei se gostaria de vender ou
se queria se desfazer de quadros, assim... não teria na verdade dado um certo apoio, por isso
achava interessante pra ela na pinacoteca de SP, que havia algumas como memória da arte
brasileira, como um aspecto de memória... porque as telas ou mais rapidamente acabadas, dela
realmente... que não tem igual! Elas não são iguais as foto pinturas mais caricatas, do que outros
200

foto pintores que havia aqui na região... elemento também bastante específico, particular da
obra da Telma... é que os foto pintores, geralmente do Brasil, aqui também do Cariri e também
o (inaudível) em Fortaleza... trabalham com uma sequência de mestres, nem todo mundo fez
todo o acabamento... um fez o cabelo, outro era o pelo, o outro fazia... geralmente, o mestre
maior (inaudível) fazia o acabamento do rosto, dos olhos... porque os olhos dão mais vida... e,
a Telma não! Fez todo o processo da foto pintura... portanto, a Telma realmente podia ter
assinado as fotografias, porque ela tornou-se a autora integral... destas telas.(...) E, eu sempre
achei que seria artificial... eu não, a minha coleção não pretende ser completa, uma
abrangência... achei esquisito assim, a Telma não quis ceder para pinacoteca, ela não quis se
desfazer nem em vida desses quadros... e, que eu acho incoerente, porque não são tantos
também! Uma sequência que não passa dos 40, de autorretratos que ela fez... portanto, toda
venda, ou toda atuação que viesse... (...) desse conjunto mais coeso. (...) Como a foto pintura é
uma referência... maior referência afetiva e visual das casas, eu não queria tirar uma referência
dessas casas... elas são mais coerentes, mais bonitas, de certa forma, mais coesas, nas paredes
ou talvez no oratório das casas.... Isso é mais ... uma pequena explicação pra minha coleção e
pra esse processo de (...) aproximação dos museus, de apropriação dos museus... É claro que
chegaram a minha coleção, as fotos estão descontextualizadas... estão completamente fora desse
mundo afetivo anterior... eu, de alguma forma, eu coletei, de alguma forma... um último suspiro
da vida, porque senão as telas teriam sido descartadas... realmente, elas estavam sendo
descartadas... eu consegui descartar o mínimo... uma pequena quantidade (...) eu vi sendo...
jogando fora as telas antigas.... quando ao meu ver isso é uma coisa bastante particular... eu
gosto... as telas antigas geralmente, embora que... tenham defeitos, fungos ou manchas... elas
são mais bonitas que as mais recentes. Isso por uma razão material... antigamente, os papéis
eram mais indicados pra foto pintura... papel Kodak, sobretudo... antigamente tinha um oval,
eles fizeram calibragem dessas telas, havia vidro oval, havia um formato que hoje não se
consegue fazer, porque não tem mais moldureiras, vidreiros que fazem esse tipo de vidro... eles
eram mais majestosos para esses quadros, em termos gerais... Essa é uma razão de não ter telas
de Telma... elas estão realmente em casas da burguesia... ou na casa dela. Que enquanto a casa
dela era quase intacta, quase um museu- museu desse mundo, que se alguns tivesse retirado um
elemento, teria quebrado algo desse universo que ela criou em torno de si, de sua família...
(...)
O curioso do estúdio da Telma era... tinha uma sala que havia uma cadeira, quase um trono...
era tipicamente para fotografias de batizado... e, fotografia também de formatura(...) que é um
mercado praticamente maior(...) de casamento. (...) O curioso é que a casa toda dela se tornou
o estúdio... ela tinha uma pequena área livre, na varanda(...) que não era dentro do estúdio...
mas, (...) ela tinha essas imagens... até um pouco da vida toda... ela fez a sala de uma princesa,
de uma princesa, inclusive de um filme... ela falava. Móveis antigos, até eu diria, que a casa era
uma fronteira do kitsch... em todo o canto, até no banheiro, a rosa... ela tinha coleção de
relógios, coleção de santos, etc ... portanto, ela tinha essa visão, de fazer, de se tornar... ilusões,
encenações de aconchego, do belo...ela sempre gostava de falar isso. Portanto, ela tinha certa
repulsa (...) eu conheci a Telma quando eu fiz uma pesquisa sobre os mortuários na fotografia...
quando isso foi o meu primeiro encontro com a foto pintura, quando descobri que se faziam
fotografias de mortos e a partir daí a pintura era feita...imagens de vivos.... A Telma não
gostava, ela achava estas imagens de morte, algo repulsivo, algo desagradável, algo que repetia
a pobreza... e, ela não queria ser uma fotografa da pobreza, ela queria ser uma fotografa do
embelezamento, do melhoramento da realidade... Acho que isso tem muito a ver com a
trajetória de vida dela, ela teve a morte de um filho, violenta... que ela não gostava de falar...
então, a trajetória de vida constratava de certa forma com a dramaticidade da vida, com este
mundo idealizado, que ela criava para sua família e para si mesma....e, isso foi bastante
característico... portanto, as roupas, acrescentava sempre o dourado, uma certa aura em torno
201

da cabeça... enfim, ela era, fazia dos seus retratos pequenos santos de certa forma, também de
sua família(...) pequenas princesas, pequenos príncipes... isso foi um pouco da atuação de
Telma... e, tanto assim, mas ela teve o trabalho comercial, de fazer retrato para escolas,
identidade.... ela inclusive fazia fotografia colorida... ela não chegou a se adequar a nova
demanda, enquanto ela fazia fotografia colorida (...) Ela não se entendia como foto pintora
clássica, ninguém conhecia ela como foto pintora, era fotografa do estúdio Saraiva aqui do
Crato. (...) Só que de todas(...) da vida dela...Eu sempre digo que ela era fotógrafa de estúdio,
ela não gostava de ruas... sempre dizia que o marido dela era fotografo de rua... ela gostava
mesmo de fazer esses passeios... ela gostava (....) dessa forma ela se enclausurou no seu próprio
universo que ela criava... e, ela era uma fotografa de estúdio... eu vi também imagens que não
eram de muita sofisticação, não digo que ela tenha uma grande excelência na obra dos retratos
em termos gerais... ela chegou a fazer imagens também razoavelmente estereotipadas ...
portanto, quando ela me mostrou as imagens dos auto retratos, eu percebi que era realmente
especial, algo que se distancia, se destaca de sua obra em termos gerais... o que acontecia (...)
havia durante um filme... ela já tinha me mostrado os auto retratos, mas havia a presença de
uma outra curadora de fotografia- Roseli Cacava- que eu pedi na presença de Roseli que ela
mostrasse essas imagens, esses auto retratos, que a Roseli percebeu imediatamente também
algo especial... tinha algo(...) não tínhamos visto algo semelhante... e, a Roseli estava em
contato com outro curador(... ) São Paulo... ela repassou essa informação e ao mesmo tempo
vinha a sensibilidade com (inaudível) que é do museu de artes, da cultura cearense de
Fortaleza... e, esse foi o primeiro grupo, na verdade, que prestou atenção a essas imagens... aí,
nós levamos os auto retratos numa exposição do Centro Dragão do Mar em Fortaleza e depois
o Diógenes levou para uma pinacoteca e depois outra vez em uma exposição em SP... isso foi
momento que realmente havia uma atenção, que criou uma certa inserção das imagens dela no
mundo das artes, nas galerias, nos museus... mas, ela nunca chegou a galeria para vender...
inclusive, na época, não quis estar presente, timidez muito grande... Fortaleza, ela ainda foi...
mas, não pra SP. Ela não tava presente, as pessoas sentiram muito a falta dela... no entanto,
todas as exposições ela acompanhou a distância. (...) Porque, por exemplo, com esses auto
retratos, ela já estava com 70 anos quase.... ela não guardava em gaveta(...) acho que Telma
queria ser bem quista aqui no Crato... seu mundo realmente se desenvolveu aqui...
regionalmente. Ela não tinha ambições de sair daqui, também não tinha...(...) um elemento que
deve ser frisado... primeiro, a fotografia não tinha ainda uma autorização das artes... e, a foto
pintura muito menos ainda... não havia nenhuma instituição no Brasil... (fala confusa) que tinha
foto pintura em seu acervo. Ao contrário, era uma expressão marginal... Era algo do Nordeste,
nas casas de taipa... as fotografia de Telma não se encontraria em casas de taipa! (...) Ela
precisava de vários dias...de alguma forma, sendo um trabalho individual... ela precisava vários
dias, até que as tintas secassem, então, não foi trabalho de rápida entrega... mas, ela, de alguma
forma, sentiu-se honrada, as pessoas começavam a ligar, havia matérias nas revistas... mas, dito
com certo aspecto de estranhamento... também sempre com certo aspecto de não entender bem
porquê... porque as pessoas tinham esse interesse....agora, claramente as foto pinturas, da
mostra de SP, geraram muita simpatia... Em uma das exposições que o Diógenes curou, foi na
galeria Estação e foi junto com as imagens de Marilyn Monroe. .. e, isso teve uma razão prática
... porque a galeria, ela tem seus estatutos, dá visibilidade pra arte brasileira... Como as imagens
de Marilyn são todas americanas, até para seus associados, a galeria precisava de uma
justificativa... precisava algo, colocar um vínculo com o Brasil.. aí, o Diógenes que era curador,
ele se lembrava dessa 1ª exposição na Pinacoteca e me telefonou e, ele teve essa ideia... Olha,
a Marilyn nos Estados Unidos e a Telma no Brasil... e, curiosamente... e, praticamente a mesma
geração, a distância de anos é de 2 ou 3 anos... Se, a Marilyn tivesse sobrevivido, envelhecido...
ela, a Telma teria acompanhado a vida de Marilyn em sua viagem imaginária... e, teve a
implicação de todo um mundo feminino (...) que é importante essa questão de gênero, que é
202

um tema super atual (...) que vai acontecer, deste elemento... Essas primeiras expressões de uma
arte feminina, de uma arte das mulheres, ela foi tardiamente descoberta... Frida Callo, no
México... como também com muita distância de tempo vai superando a obra de seu marido(...)
do Rivera...Vai começas nos anos 70, de gênero, uma arte feminina militante... e, a Telma não
era militante, mas nos anos 70, já tinha feito boa parte dessa obra... de alguma forma, de tratar,
a trabalhar sem a vergonha, sem receio de seus desejos, e, a sua viagem imaginária de mulher,
menina ou de adolescente... é bastante surpreendente... o caso dela, por mim ela representa um
pouco... porque realmente, desconheço obra igual... mas, assim... esses dois elementos: tanto a
Foto pintura não tinha nenhum reconhecimento... até hoje é um capítulo marginal da
fotografia... mas, também, essa questão do self... da auto representação, do auto retrato e por
outro lado o papel do feminino... tornou-se supra atual nas últimas décadas... mais ou menos
até lá não tinha nem fotografia nas galerias brasileiras ou aparecia no mercado... e, hoje, já se
diz que a fotografia é no topo... no mercado de arte, a fotografia já, inclusive não só no Brasil...
As expressões mais valorizada, a fotografia está superando a artes plásticas tradicional.
(...)
O que mais chama atenção em mundo atual.... fotografia que não seja documental, mas que é
uma fotografia ‘misancene’, uma fotografia de encenação, uma fotografia de uma auto
imagem(...)Nisso as imagens de Telma se enquadram bem numa tradição que está sendo
valorizado... Talvez, é um pouco... esse elemento do kitsch... que por aqui não está sendo muito
entendido, evidentemente, quando se foi numa exposição da Telma em SP ou no exterior (...)
tem um certo momento... uma forma corajosa, uma forma caricata, também quando você se
auto retrata com heroísmo, de filmes de Hollywood... essa liberdade com que ela fez, estando
numa sociedade bastante coercitiva! Quando ela nasceu, quando ela foi trabalhar
profissionalmente... trabalhar profissionalmente para mulheres no Crato... muito restrita, a
liberdade dela se movimentar na cidade era muito restrita, podia ir ao cinema ou nas feiras, nas
2ª feiras, geralmente acompanhadas... não podiam ... nem tá isoladamente (...) Ela sempre
tornou sempre mais conhecida, mais associativa com a forma (...) ela se tornou a marca, a
sucessora desse estúdio Júlio Saraiva... Já é algo extraordinário! Super católica,
superconservadora... só que ela não teve na obra dessas imagens, não intecionadora do seu
tempo, não pode ser considerada a vanguarda, no sentido, de querer subverter, questionar ou de
fazer elementos estéticos... ela não foi teórica na sua obra, não foi analista... Ela nunca(...) ela
representa também esse refúgio.... Extremamente a si mesma! Portanto, não iria concordar se
falar dela como vanguardista da fotografia, isso de fato não foi.... e, o que vi... ela tinha
imaginário, câmeras como poucos aqui da região, o estúdio... nesse sentido foi privilegiado...
ela tem realmente um equipamento bem melhor que a maioria, que os outros estúdios, que dos
outros fotógrafos... e, ela era muito suficiente dessa situação, de certa forma, privilegiada que
ela tinha(...) Os cenários não eram muito interessantes, na verdade... eu acho... talvez seja
melhor falar com familiares...(...) porque se tiver recusas, tem um fotografo de SP, ele fez um
ensaio fantástico da casa... ele deve ter centenas de fotos disso, inclusive, ele fez para uma
revista e, a revista publicou 2 fotos..... Chama-se fotógrafo Carlos... mas, assim, se hospedou
aqui, é uma pessoa extremamente simpática... possivelmente, como tirar tempo para ... umas
imagens, mas ele tem pessoas que mexem com seu acervo... isso poderia quebrar o galho... As
imagens são mais bonitas... que vocês poderiam captar do mundo dela... se, vocês captam
conversas... talvez seja mais coeso fazer uma sequência fotográfica dessa casa que não existe
(...) É um dos melhores fotógrafos de arquitetura e interiores... (...) Eu não vi... eu teria interesse
para mim... finalmente ver essas fotografias que infelizmente(...)

(...)
Eu queria ainda falar um pouco a respeito daquela foto pintura e o que ela significa para mim,
porque eu acho esse mundo, esse universo tão interessante! Uma das questões que me chamou
203

a atenção...algo além do fato que em termos gerais, elas foram produzidas em série(...) assim,
numa cadeia de profissionais... nesses estúdios(...) que a Telma, como já falei, não fez... Mas,
isso é uma questão que a gente já conhece dos antigos estúdios ou dos ateliês dos artistas... O
artista principal, no caso, de Rubens, ele fazia só o acabamento dos olhos, tinha muitos
ajudantes ou aprendizes que fizeram toda uma obra em volta... que pouco se sabe isso hoje, e a
partir do romantismo surgiu também essa ideia também de gênio, e da necessidade da psique,
enfim, da pessoa, do realizador, do artista, pra contemplar e fazer todo o acabamento de uma
obra. O que eu acho particularmente bonito na foto pintura que é a questão desse mundo, desse
universo do cliente... porque uma democratização da arte, da obtenção de uma arte... a foto
pintura fazia possível que uma pessoa não abastada, ela tinha acesso a um alto padrão duma
imagem assim mesmo, imagem de autoridade da casa, Eu sempre chamo atenção a essa
democratização, porque a foto pintura acrescenta cidadania, a foto pintura faz do retratado um
cidadão pleno, de certa forma, porque isso, uma pequena fotografia de 3x4, essa fotografia de
identidade, ela não cria, agrega esse prestígio social. E, um outro elemento, quando eu achei
tudo particular da pintura brasileira ou das artes brasileira: quando tem olhar pra o povão,
digamos assim, pra multidão, pra pessoa comum... a arte tem uma tendência de criar umas
imagens estereotipadas, inclusive tem relativamente poucas imagens, de retratos das pessoas
comuns na história... inclusive das artes brasileiras no século 20. Geralmente as pessoas da
geração dos modernistas... Tarsila... enfim, (nome inaudível) ... eles criaram, fizeram retratos
de pessoas... enfim, dos seus companheiros, do colecionador, do outro pintor, do músico,
compositor... quando se faz, se cria uma imagem do operário, do pescador, frequentemente tem
uma assimilação de todos os rostos, torna-se um olhar um pouco patético, quase assim
xilografado, com traços bastante expressivo, de uma expressividade frequentemente um pouco
exagerada... e, você não encontra... enfim, muito um olhar, eu digo até, não interessado, ou não
de uma forma assimétrica, de um olhar de cima pra baixo pra população brasileira. Mas, de
fato, há um mundo dessas imagens de foto pintura, que os clientes estavam, na verdade, em
primeiro plano, os interesses dos clientes eram mais importantes do que os do próprio artista,
do próprio pintor, porque a maioria dos envolvidos na foto pintura não se entendiam, não tinham
uma compreensão de serem artistas, enfim, eles fizeram, inclusive, no que eu vi de estúdio
funcionando, muito rapidamente, eles fizeram, às vezes, a 30, 40, 50 imagens num dia pra secar,
numa sequência, e em poucos dias pra esses acabamentos num pacote todo... e, na verdade, aí
não interessam o feio ou o bonito das pessoas, enfim...eu gosto também de dá o exemplo: a
senhora antiga já aposentada, idosa, ela pode fazer, criar um retrato com o marido que faleceu
há 30 anos, a viúva utiliza uma imagem do seu viúvo, do seu marido, ex-marido... só que a
imagem frequentemente dele é de uma identidade, ou de uma carteira de trabalho... quer dizer,
na mesma fotografia, ele poderia aparecer como neto ou filho dela... enfim, mas isso não é ruim
para a pessoa retratada, ela se lembra do seu parceiro dessa forma, ela chegou a envelhecer mas
o marido ficou preservado na foto pintura na mesma imagem, como se tivesse uma sustentação
do tempo, na mesma imagem... o que eu gostaria de mostrar a imagem do Pe. Cícero como se
fosse o Pe. Cícero realmente o parceiro, o tio, o compadre...ele tá completamente inserido, na
verdade, na mitologia ou na imagem, na compreensão familiar... isso a foto pintura, ela permite,
a foto pintura... ela tem toda uma dimensão que a fotografia tradicional não tem... a fotografia
parece verossímil, mas, a foto pintura é uma transformação... ela é na verdade, ficção, a
ficcionalização do verossímil... você consegue fazer do morto um vivo! Resgatar como se fosse
a última imagem, última lembrança de um vivo, você consegue de um santo popular, enfim ..de
um personagem do Pe. Cícero, um familiar...(...)
204

Conversa com Ricardo Saraiva

A minha proximidade com minha mãe foi muito grande, eu permaneci no Crato até o 2º
científico e me ausentei apenas para fazer o 3º, em Recife, no Esuda. Logo depois eu terminei
o 3º científico, eu volto para o Crato e continua com a nossa relação. O dia-a-dia da minha mãe
era interessante! Como ela trabalhava muito a noite para não ser interrompida pelos fregueses
que chegavam toda hora procurando por Telma, ela resolvia trabalhar a noite, ela trabalhava até
muito tarde da noite. Muitas vezes, eu chegava de uma festa, ela ainda estava trabalhando...
Então, ela acordava, levantava mais tarde, umas 8 e meia... E, como ela lidava com o público,
ela nunca dispensou uma maquiagem, cabelo num coque atrás ... E, estava pronta para receber
as pessoas. Então, enquanto não chegava ninguém ela procurava recortar algumas fotos que ela
chamava de ‘papagá’ (??) da fotografia, depois ela tinha uma técnica que era de retocar o retrato
que ela chamava de ‘positivo’. E, ela também fazia o mesmo tratamento no negativo em preto
e branco para facilitar a coisa no positivo. Bom, ai... era só colocar dentro do envelope as
fotografias. Demorava pra fazer cada uma delas, acabava por vir a fazer 6 ou 12 fotos, era a
praxe. Então, ela fazia o trabalho das 12 fotos, e, colocava no envelope com o nome da pessoa
e colocava no seu arquivo. Ela também fazia acabado esse trabalho, ela começava a fazer os
retratos coloridos, antes ela transportava as fotografias para uma droga, que a fotografia
praticamente desparecia, ficando apenas os pontos mais escuros da fotografia. Depois, ela
colocava uma outra substância e a fotografia vinha agora o que chamamos hoje de sépia. Porque
a tinta usada por ela tinha uma certa transparência, então em cima do preto não prestava. O
preto invadia muito. Então, ela fazia esse trabalho com a fotografia em sépia depois aplicava a
cor. Então, ela ia lá pro seu cavalete e começava ... E, eu brincava com minha mãe: ”Minha
mãe, um dia a Sra. vai se intoxicar!” Porque muitas vezes ela misturava a tinta na própria palma
da mão. Aí, ela: ”Ah, isso aqui não há nada! E, eu: “Tudo bem!”, mas ela fazia! E, eu ficava
horas e horas olhando aquela fotografia(certo?) E, muitas delas, ela ajeitava boca, olho, tirava
aqueles pés de galinha falado. E, melhorava a fotografia. Agora, o mais impressionante de tudo
é quando ela pegava uma fotografia que a roupa tinha uma estampa pra ela colorir. Esta
estampa, então, dava muito trabalho! Tem uma fotografia aqui de Fátima Lins, o pai dela era
dono do Grande Hotel, Palace Hotel aliás... Ela fez em tamanho natural. E, como a tinta a óleo
levava um certo tempo para secar, pra ela poder fazer a entrega da fotografia sem que ela
borrasse... E, ela um dia colocou a fotografia em uma certa posição e chegou um verdureiro e
começou a falar com a fotografia porque pensava que era uma pessoa... No entanto, era
simplesmente uma fotografia, de corpo todo! Em tamanho natural! Aliás, a minha irmã, em
Fortaleza, tem uma também em tamanho natural e a pedra do anel é exatamente o mesmo
tamanho da do anel. Então, ficou essa fotografia lá... E, assim, minha mãe trabalhava: ora
colorindo, ora retocando, ora fazendo as fotografias... A paciência dela era ilimitada! Eu dizia
assim. Porque muitas vezes chegava uma criança e quando minha mãe acendia os refletores, o
menino se apavorava com tanta luz, e começava a chorar e tal e, ela fazia presepadas na frente
do menino... Sai a fotografia: o menino sorrindo! Eu digo: “Minha mãe, como a sra como foi
isso aqui?” Ela dizia:” É, paciência! Eu tenho muita paciência com criança!” Foi especialidade
dela (Não é?) E, iniciou os serviços de fotografia batendo os meus retratos. Aquele ali é um
deles. Bom, e depois dos trabalhos dos filhos, vinheram os das mães dos meninos, que ela fazia
as fotografias. E, ai, ela começa a fazer fotografia no estúdio, porque até então só quem
trabalhava era meu pai. Então, ele ficou com a responsabilidade de fazer as fotografias de
reportagem e ela fazia as fotografias de estúdio. E, assim, ela deslanchou! E, muitas pessoas
apareciam lá em casa, ela não tinha propaganda. A propaganda era de boca a boca do próprio
freguês(neh?). E, lá em casa era interessante... Chegava tanta gente procurando e sempre
205

adentrava a casa dizendo:” Telma?! Telma, o meu retrato tá pronto?” E, nós tínhamos um
papagaio e ele aprendeu exatamente a dizer como os fregueses (imita o papagaio). Muitas vezes,
minha mãe saia para ver quem era e, era o papagaio! Bom, só um momentozinho de
descontração...Mas, minha mãe, ela era muito dedicada no que fazia! Até muito próximo de se
aposentar, ainda estudava sobre fotografia! Ela nunca parou no tempo! Sempre tinham revistas,
livros que ela mandava buscar fora. O trabalho das tintas aconteceu com meu tio Salviano que
viu numa revista, ele falava inglês, e escreveu e pediu as tintas. E, ela começou a colorir as
fotografias de instantâneo que ela fazia: na nascente(certo?), subestação de luz do Crato, que
era também lá no Limeiro. As fotografias das colegas de classe(certo?). E, com essa técnica,
ela avançou e colocou isso como trabalho profissional. Então, várias pessoas de destaque na
cidade procuravam fazer as fotografias com ela. Então, é nessas revistas, uma delas foi a nossa
Madre Feitosa, ela fotografou Madre Feitosa muito jovem, muito bonita ela! E, quando passa
essa efervescência! Todo aluno do curso do colégio Diocesano, do colégio Estadual que
terminavam a 4ª série ginasial, a procuravam para fazer fotografias. Então, com isso vieram
pessoas de Pio Nono, Curucuri, Bodocó, Exu... Então, Muitas! Campos Sales... Eram muitas as
cidades! Do próprio Juazeiro! (Certo?) A mãe de uma amiga minha- Ângela Moraes- a mãe
dela trazia a turma do ABC para serem fotografados lá em casa... imagina a quantidade de
meninos dentro da casa e a algazarra que eles faziam! Mas, eles ficavam a vontade por conta
da dedicação que minha mãe tinha com a fotografia, com a paciência que tinha! D. Zuila
Moraes, que era a mãe da Ângela, ela contornava muito bem os meninos(certo?) E, de um por
um iam entrando no estúdio pra ela botar a beca, o nome do ABC no vacalhau (??), o
cabelo(neh?). E, fazia a fotografia de cada um. E, colocavam num álbum(certo?). E, elas davam
essas fotografias. O tempo passa e nós conhecemos uma pessoa- Augusto- era um marceneiro
muito bom! E, nós começamos a fazer quadros de formatura. Então, colégio Diocesano tem, o
Externato 5 de Julho tem, que na época era Associação Comercial, tem quadros feitos por ele e
fotografias feitas por minha mãe(certo?). Então(...) mas, a minha mãe também fazia certa
mágica nas fotografias... Essa aqui minha, é uma delas! Essa fotografia é da minha formatura
de Economia. E, as cores de economia não são essas... E, quando eu me formei em Direito, ela
quis me fazer uma surpresa e, como surpresa eu não podia(...)Chegar lá pra fazer uma
fotografia, pra ela dizer que ia me dá a fotografia, ela resolveu fazer nessa fotografia,
transformou para o curso de direito, as faixas vermelhas, o anel, a pedra... ela também
pintou(certo?). E, assim, ela conseguia fazer algumas coisas ... Outras pessoas aqui também da
região já tinham a mulher ou o marido já falecidos e queriam a fotografia dos dois juntos...
Então, ela pegava uma fotografia já existente de uma das pessoas e fazia a junção. O mais difícil
era porque às vezes, a iluminação de uma fotografia não era igual à da outra, a luz era em outra
direção. Então, nessa fotografia ela tinha praticamente que mudar toda a iluminação da outra
fotografia para que as duas tivessem o mesmo tipo de iluminação. Já vi fotografias feitas por
aí, mais você como crítico de arte, que eu também sou, você nota(neh?) Ah, a iluminação aqui
de um lado nessa outra foto tá do outro lado... Como é que é que as duas foram feitas numa só?!
Então, você de cara já sabia que aquilo era uma montagem! Mas, minha mãe fazia esse trabalho
e não deixava transparecer que tinha sido um ‘ajeitado’, como assim dizer... Então, eh (...)
muitas foram as procuras das pessoas pra ela fazer esse tipo de fotografia... e, mais: com a
dedicação que ela tinha ao trabalho, porque isso aí já vem do meu avô, primeiro fotógrafo
profissional do Crato! Existiam outros fotógrafos no Crato, mas profissionalmente, o Júlio
Saraiva Leão, foi quem primeiro montou um Foto pra atender as pessoas. E, foi a pedido dele,
do meu avô, que meu pai quando casou com minha mãe, não a retirasse de casa, que ele daria
o Foto pra ele administrar, porque ele queria ter a presença da filha na casa dele, ... porque ele
só teve um casal de filhos: o Salviano Saraiva e a Telma Saraiva. Então, foram os dois que
vingaram, porque eles ainda tiveram dois, mas dois abortos(certo?) espontâneo evidente! E, só
ficou o casal. Então, ele(tio) foi embora pra Recife, e fazia os trabalhos dele... mas, essa história
206

do meu tio que também é muito longa, vamos deixar a parte(...) Era comum, ela fazia o retoque
do negativo e retirava aqueles pés de galinha, ajeitava a boca... às vezes o camarada tinha um
lábio superior muito grande ou a boca muito pequenininha... e, ela no retoque ela fazia... mas,
o impressionante da coisa é que não mutilava as feições da pessoa! Então, as pessoas que eram
fotografadas por ela e ela fazendo esse trabalho, fazia com que a pessoa ficasse mais fotogênica!
Então, todo mundo gostava das fotografias! (Certo?) Americanos que vinham aqui pro Crato,
quando faziam fotografias para o passaporte, gostavam tanto da fotografia, que procuravam
saber qual era o preço do cento de fotografias! Quando era comum, nós fazíamos uma dúzia ou
meia dúzia... porque uma fotografia pra um documento, você não vai precisar ter uma poção!
Mas, eles gostavam tanto da fotografia! Porque toda fotografia da minha mãe era retocada,
toda! Não eram algumas, eram todas! Tanto ela retocava o negativo como o positivo. E, o
pessoal gostava(certo?) de se ver bonito na fotografia... e, aí, vem o boca a boca, e, mais gente
chegava pra fazer fotografias! (...) Na minha casa, tem essa fotografia, que minha irmã está lá,
como uma fidalga...(certo?). Então, lá com uma cabeleira, que na época nós não tínhamos
peruca, então a cabeleira era só de agave...e, ela não muito pequena, estava mudando os dentes
e ela não queria a fotografia com minha mãe, séria... A minha mãe queria que ela ficasse
sorrindo na fotografia, e, aí apareceu o buraco faltando os dentes! Mas, ela-pintora- fez os
dentes! Outra curiosidade interessante: a roupa... era interessante! A parte de fazenda mesmo
que existia era uma camisola da minha mãe. As mangas bufantes eram de papel crepom. O
colarinho da roupa, também de papel crepom(certo?). Mas, na fotografia você não ia ver a
textura, então, vinha a impressão que ela tinha feito a produção de uma roupa (neh?) que
aparecesse daquela forma, quando ela fazia esses improvisos lá em casa... Tem fotografia de
muitas meninas aqui no Crato, na época, que faziam fotografias com ela, e não tinham assim
uma roupa muito boa. E, ela coloca um ‘tule’ tirava a roupa da menina, botava um ‘tule’,
mandava a menina segurar uma rosa. E, pra que não saísse tudo igual, quando ela colorisse a
fotografia, ela dava uma cor diferente no ‘tule’: azul, vermelho, rosa...(certo?) depois, para ficar
mais diferente, ela resolveu fazer painéis, pra colocar por trás, para ficar diferente a fotografia...
Então, tem uns painéis que são só feitos com bucha e tinta... ela esfregava a tinta e fazia uns
borrões, mas o efeito que dava era fenomenal! Também improvisava uma grade de madeira,
que colocava umas flores e lá, ela posicionava a ‘artista’ (neh?) e, fotografava as
pessoas...Então, foram muitas fotografias dela feitas com essa arte que ela gostava de fazer.
Outra também, são fotos... tem uma que é interessante, que já era uma estampa existente... Era
uma janela, com tariscas brancas e tinha por trás um jardim muito bonito! E, um dia eu cheguei
lá, ela fez a fotografia de uma criatura, e o que eu estranhei! E, disse: “Minha mãe, por que está
de cabeça pra baixo?” Aí, ela foi e disse: “ É só a cor que interessa... isso aí ficou no fundo,
mas isso aí é só cor, não tem foco ai atrás, o foco... eu direciono para o rosto da criatura!”. E,
ai foi, e assim ela conseguiu fazer inúmeras fotografias dentro do seu jeito! Ela também não
fazia só fotografias... Ela fazia chapéu! Tenho em meus arquivos no computador, fotos desses
chapéus que ela fazia... (certo?) Ela fazia bonequinhas de pano pra colar na moldura que você
levava pra ornamentar sua casa...Muitas vezes a pessoa chegava lá e fazia encomenda pra ela:
“Telma, eu quero aqui uma com motivo japonês. Aí, ela fazia! “Telma, você não quer fazer
uma outra boneca fugindo a esse aqui do japonês?” ai ela dizia:” Posso fazer! Posso fazer uma
boneca holandesa com aqueles sapatos, com aqueles tamancos de madeira... E, ela agradava a
todo mundo! A minha mãe era muito perfeccionista nas coisas que ela gostava de fazer! E, em
quase tudo ela fazia as coisas... Em revistas aqui, tem uma fotografia dela vestida de grega. Eu
não me lembro muito bem qual era a fotografia... não sei se dá pra procurar aqui, eu não tive
tempo pra fazer essa pesquisa... Olha a madre Feitosa! Linda a fotografia da madre Feitosa!
Essa aqui na revista Bravo, foi uma das primeiras que apareceu com uma reportagem com ela.
(...) que ela cortou a calda do vestido do casamento para fazer esta... Essa roupa só tem um
corte. E, ela tem uma capa... ela era presa a mão. E, a fantasia, a roupa só tinha um corte, uma
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emenda! Ela colocou aqui na cintura um elástico por dentro e fechou. Então, fazia a dobra que
era para fazer a capa. Quer dizer, minha mãe, estava dando uma de modista! Sem ser, certo?
Eh... temos aqui outras fotografias de carnaval, que ela adorava carnaval! Vestida de
espanhola... então, a mantilha foi ela que fez, porque ela não queria uma mantilha muito
fechada, como é realmente a de uma espanhola... ela queria um negócio mais aberto e jogou lá
umas lantejoulas e deu um efeito fenomenal! E, então, ela sempre no carnaval... ela exibia duas
fantasias inéditas, e repetia uma de um ano já mais para trás, que às vezes, o camarada se
esquecia... Mas, ela gostava de carnaval, era praticamente a única festa que ela ia no Crato Tênis
Club. E, nas outras festas que aconteciam, como ‘debut’, (certo?) O papai era convidado pra
fazer no palco uma alegoria para entrada das meninas(...) então(...)

Conversa com Allan Bastos

(...) Então, a primeira vez que eu fixo o nome de Telma Saraiva na minha vida, é minha mãe...
pedindo que eu fosse no estúdio dela pra fazer uma foto 3X4, por causa de um documento.
Então, ela pede que eu vá nesse estúdio, e, ela dá uma ênfase assim, ela diz por duas vezes:”
Vá fotografar com Telma Saraiva!” Então, quando ela pedia a segunda vez, ai vejo que ali tem
uma importância! Ali tem algo que teria a ver de qualidade ou acho que era uma foto muito
importante para ser feita por Telma... Então, eu obediente fui pra casa da Telma... É uma foto
que eu fiz com 12 anos de idade. E, eu lembro de tudo! Da hora que eu chamei Telma da porta,
ela dentro como tava sempre pintando, ela olha e vem abrir a porta... e, é um garoto pedindo
um 3X4 e ela atende como se fosse um grande cliente! Não tinha essa de “Ah, se é um 3X4,
ou se é uma “(...)Ao mesmo tempo me leva pro estúdio e faz a foto. Eu não lembro o restante,
sabe? Se eu fui buscar... ou, se alguém foi buscar por mim. Mas, o momento do clic foi muito
importante! Pela ênfase que minha mãe me deu de ir fotografar com Telma Saraiva! E, o bacana
também que depois a foto vem autografada, nas costas tem um ‘saraiva’ legitimando o retrato.
E, é uma das fotos mais lindas que tenho! E, nesse dia eu queria ter feito uma foto-pintura, neh,
eu queria ser aquele danado: “Ó, minha mãe mandou eu vir fazer uma foto-pintura, e, faça a
mais cara que eu depois... eu venho buscar.(...) Mas, hoje eu poderia ter essa foto! Depois teria
ido ao encontro dela depois e hoje ter essa foto-pintura! E, aos 17 anos, eu fiz essa... antes de ir
morar em Recife, pra tirar minha identidade. Eu fui fazer o segundo 3X4 com ela. Aqui já tinha
uma intenção, além do retrato, eu queria aprender a fotografar com ela. Eu queria ver como ela
dirigia o seu cliente, o seu modelo... Eu queria ver como ela organizava o estúdio. Eu queria
ver a distância da câmera pro modelo, do modelo pro fundo, a altura da luz, que tamanho tinha
esse estúdio... já que ela tinha/era o melhor estúdio da região, a melhor fotógrafa! Eu queria ter
essa relação profissional agora com ela. Eu queria aprender! Eu fui... paguei meu 3X4 pra
conversar com ela, pra perceber como ela dirigia o cliente, como ela arrumava a luz quanto
tempo isso levava, pra onde ela ia direcionar meu olhar... Que aí, nesse tempo, eu já sabia quem
era Telma Saraiva. Já tinha essa relação toda com a fotografia dela, e, eu queria saber era essa
direção... Não no 3X4, mas na foto-pintura! Ela tem um olhar direcionado, isso me prendia a
atenção! Sabe? Pra onde essas pessoas estão olhando? O que Telma conversa na hora do retrato
dela pra que o modelo, o cliente relaxe e tenha um olhar único!? É como todas as fotos de Telma
tivesse um único olhar! Quem foi fotografado por ela, tem aquele... um olhar saudoso, um olhar
sempre para um lado... São poucas as fotos que eu vi de Telma, em que o modelo tá olhando
para a câmera... Principalmente, na foto-pintura! 3X4 não, já tá olhando pra câmera. Mas, a
foto-pintura tem um olhar direcionado, e eu queria saber de onde vinha aquele olhar... e, ali, a
gente ficou conversando por um tempo, isso antes de eu ir pra Recife estudar fotografia... Então,
eu fui lá no estúdio dela, pra eu como cliente entender como era... como ela organizava(...)
208

Então, é o máximo do profissionalismo! Da fotógrafa fazer com que o cliente sinta-se a vontade
naquele espaço pra tirar uma foto! O jeito que ela vinha de pegar no rosto, olhar se tava melhor
de um lado, melhor do outro... Se, era de frente, se a luz tava mais forte, se estava mais
fraca...Então, tinha um momento grande ali dentro pra ela fazer um click! Telma foi fotógrafa
de um click por cliente! Ela até diz que quando fazia dois clicks, era para ser elegante! A cliente
pedia: “Ah, vai fazer só uma? Não dá pra fazer outra?” Mas, ela tinha certeza que a foto é a
primeira! Então, fazia mais uma pra não ser deselegante com a cliente. Era o que ela dizia...
Então, era uma fotógrafa de uma foto só! Então, ela tinha aquele tempo dentro do estúdio: ia
pra câmera, voltava pro modelo, ia pra câmera, voltava, mexia na luz... e, esse tempo dessa
organização da técnica dela é onde o cliente, o modelo dela relaxa e entrava na vibração dela!
Ela era uma mulher muito calma, então era muito fácil pra ela desmontar um modelo e que ele
ficasse o mais relaxado possível e entrasse na foto dela! Então, quando eu fui fazer o meu
segundo 3X4, já bem consciente do que eu queria. Eu me permitiria a ficar vendo ela
trabalhando e instigando esse trabalho: perguntando até onde eu poderia ir aprendendo naqueles
minutos que nortearam meu retrato 3X4! Mas, mesmo assim ainda com vontade de ter sido uma
foto-pintura! Sabe?! De ter pousado pra ela, pra depois ela pintar. E, hoje eu tenho... Só que era
muito caro a foto-pintura dela! Era pra poucos! Pra poucos mesmo! E, eu não tinha condições...
minha família pagar uma foto-pintura! Até depois, quando fiquei amigo dela, eu ficava
brincando: “Eu podia ter vindo... ter dito que minha mãe mandou!” fazer a foto-pintura, e, hoje
vim buscar. Ter deixado ai...Não ter vindo buscar... e, hoje teria minha foto-pintura! Ela disse:
“Pois devia ter feito! Olha o tanto de foto-pintura que não vieram buscar!” E mostrava o tanto
de cliente que não foi buscar o resultado. Então, eu acho bem... bem, esses dois momentos são
importantes na minha vida!
(...)
Então, o que eu acho bacana é que os álbuns das famílias do Cariri, como aqui a minha, ela tem
uns laços afetivos com os retratos de Telma. Das casas serem ilustradas com esses retratos...
Vez está no álbum, ora no porta-retratos. No caso, aqui da minha casa, a foto vinha pro álbum,
muito tempo já ia pro porta-retratos... e, a foto aparece e some! Cada vez que ela volta, ela tem
aquele laço... ela volta, ela tem uma contemplação! Eu(...) A grande galeria de Telma Saraiva
está no Cariri, as casas do Cariri... É a galeria de Telma Saraiva! Podem até juntar num espaço
só... mas, o que é grande é que o Cariri tem tanta foto dela, que a galeria é o Cariri, as casas do
Cariri! Quem pesquisa pode circular pelas casas que vai encontrar o trabalho dela bem exposto.
Então, e, na minha casa, tinha hora que a foto tava no porta-retratos, hora tava na parede, hora
tava no álbum... e, cada vez a foto surgia, tinha uma contemplação nova! Amarrava mais,
aumentava mais esse laço! Quantas vezes eu parei olhando a foto de minha mãe?! Tentando
enxergar minha mãe naquela época... de até pensar o que aquele olhar diz? É o que vinha na
mente de quem tava sendo fotografado por Telma, pelas coisas que ela conversava pra deixar
o cliente dela bem relaxado. Sabe? Então, existe essa contemplação no Cariri todo, neh? Tem
muita casa com foto de Telma, e, as fotos não estão guardadas como um objeto antigo... as fotos
estão nas paredes, como um grande orgulho de ter passado pelo estúdio dela e ter aquela foto!
(...)

(...)
Então, essas fotos são as fotos do convívio aqui de minha casa: tem meu avô, minha avó, meu
pai e minha mãe. Então, são as fotos que estavam entre o álbum e o porta-retratos e o que me
trazia a contemplação de ficar olhando esses retratos, de ficar pensado o momento da foto... e,
elas foram aparecendo aos poucos na minha vida. Tinha foto que já era mais fácil, já estava no
álbum, eu reconhecia mais fácil que era meu pai... E, essa estética da formatura, da cadeira, da
luz, da pose... ela se repete nas casas, nas pessoas! Então, é uma foto fácil de encontrar! Ai, tá
aqui uma foto, que ela fazia a prova pro cliente vê: fazia um postal pra o cliente também
209

comprar e depois a foto-pintura. Fazia a foto-pintura... aqui tá meu pai, tá minha mãe... de minha
mãe, ela que fez a foto-pintura com dias cores. Tem o rosa, tem o verde do fundo, tem um
ourinho ali no brinco... mas, o que encanta é isso! É de como Telma conseguia lembrar do tom
da pele do seu cliente! E, depois de dias trazia esse tom de pele! O cliente chegar e perceber
que era ele mesmo! Sabe, então... a lembrança do tom de pele, de trazer de novo é o que me
encanta!

Conversa com Carlota

(...)
Você quer saber como foi minha amizade com ela? Foi uma amizade de criança, começando
cedo... ela sempre mais inteligente do que... (entendeu como é?). Eu tinha um pouquinho de
ciúme porque ela tinha o que eu não tinha! E, eu ia lá quebrava o que era dela! Levava carreira
da mãe dela! (Risos)Levei muita carreira de D. Milu, viu? Mas, nós nunca deixamos de ser
amigas! Ai, fomos passando o tempo... Ela também casou, teve filho... eu cheguei a banhar o
(inaudível) dos filhos dela. Quem banhava era eu... porque ela não tinha tempo! Ai, eu saia de
casa, ela era muito amiga minha! Eu ia pra lá, ai banhava os meninos dela! Era vida comum!
Mesmo de todo mundo! Agora, a Telma era uma pessoa fora de série! Era 100% uma pessoa...
sei não como era ela! Muito inteligente! Começou a trabalhar com 12 anos(...) tinha as amizades
dela, mas era uma pessoa que não saia nem de frente do cavalete ... pra trabalhar! Ela tinha
negócio... e aquela vontade de trabalhar! E, assim foi a vida dela todinha! Agora, eu lhe sou
positiva: quando ela sofreu esse acidente, quando chegou a ficar numa cadeira de rodas... eu
não aguentei mais andar na casa dela... (...) Foi agora, quando ela teve... Não, ela passou um
tempo doente, sofrimento... sofreu muito antes de morrer! Rolando... Isso aí! Acho que eu não
vou falar, que não é.... Certo, pois coisas que não interessa! (...) Alegre, ela era uma foliã
daquelas de raça maior! Quando dizia sexta-feira de carnaval, que era a noite do Havaí, no
Crato... que era conhecido, era tradicional... Ela se soltava! Ela só parava na 4ª feira de cinzas
com as pernas pra cima, toda inchada! Ela brincava muito, ela gostava! Mas, o único(...) Nela!
Uma viagem quando ela ia, era pra casa de uma filha(...) Era uma pessoa sempre,
exclusivamente pro serviço! Trabalhava muito bem! É a única coisa que posso dizer dela... A
única coisa que ela comparava muito... Eu tinha muito parecido com ela, era (...) relógio! Ela
colecionava relógio antigo e eu todo relógio importado! A diferença era essa! A dela era antiga,
o meu: apareceu um relógio e era bonito e eu tava nele! Contanto que eu passasse do tanto de
relógio que ela tinha... eu queria passar! Ela ria! Ela às vezes vinha aqui em casa e dizia:”
Carlota, cria juízo! Tu dentro de uma casa cheia de coisa!? E, eu digo: “‘Home’ pare! Se, lá...na
sua casa também não é cheia?” Mas, a dela tinha espaço! Porque tinha... tinha não! Ainda tem!
Eu ouvi dizer que vai até ser um museu... Edilma quer fazer um museu. E se for, vai ser um
sucesso! Porque eu vou dizer uma coisa: o que tem dela ali! Vai... É bonito! É coisa mesmo de
cinema! E, outra coisa: que ela tinha muita mania era por joia! Ela não podia ver um brilhante!
Podia ser do tamanho que fosse! Ela comprava! Não queria(...) E, os dez dedos das mãos dela
tinha brilhante, ela andava com as mãos cheia de brilhante! Ela tinha brilhante de 1 quilate e
meio num dedo! Uma pedra grande do tamanho do caroço de milho... e, ela andava desse jeito!
E, trabalhava com eles na mão, não tirava não! Mas, ela sempre dizia: “Oh, Carlota! Um dia a
ter de me sumir... de outra vida, pra outra coisa! Toda joia minha vai ser de Edilma! Aí, eu não
sei com quem ficou! Até houve um problema que tinha se sumido uma caixa de joia... ai,
acharam lá dentro de um banheiro... Acho que foi ela que botou e ninguém sabia, neh? Quem
me disse foi até o ‘pai véi’, porque tudo que se passava, ele dizia: “’ Home’, vá lá em casa hoje!
(...) Ah! minha filha! Eu inventei uma época, que eu era meio desbocada (‘cê’ sabe como é que
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é, neh?) Tem uma vida ‘véia’ de doida.... Aí: “Telma, pinta umas blusas pra mim?” Ela dizia:
“Carlota eu não tenho tinta como essas (inaudível), as tintas guache botou dentro d’água ela se
some!” “Ai, eu quero que você faça uns pagodes japonês.” Aí, ela pintava aquelas coisas mais
linda do mundo japonesa. Aí, eu saía vendendo... dizendo que tinha vindo do Japão. Era muita
coisa japonesa, até aquelas ‘letrazinha’ do Japão ela botava, sabe? Eu saia e ela dizia:” Não me
mete nesse arrocho, não!” Eu disse: “Você não entra não!” (...) Quando(inaudível) se sumia,
uma delas foi em(inaudível) não sei se você ouviu falar... Ela comprou logo duas: uma pra ela
e pra filha dela. A coisa mais linda do mundo! Aí, quando meteu dentro d’água, se sumiu! Ela
disse: “Mas, Carlotinha, a pintura... Aí, eu disse: “Minha filha, são desse jeito... japonês pinta
muito bem, mas a pintura deles é desse jeito: se você sujou, se some!” Ela ria era muito, porque
eu fazia muito isso!” Carlota, você vai me meter no inferno!” Eu dizia: “Meto, não... pode pintar
aí! Que eu mando o pau (inaudível)”. Aí, a gente rachava, sabe... ela ficava com uma parte do
dinheiro(...) Era essas coisas ... Minha amizade com Telma só foi esse tipo aqui dentro do
Crato. Se, ela tinha alguma coisa diferente... eu não me lembro!
(...)
É que o povo com 60, 70 anos já tá tudo com a cabeça meia... aí, você não pode nem conversar
por trás: vou falar com fulano pra puxar uma conversa, uma coisa... que elas dizem, e com 5
minutos elas não ‘sabe’ o que foi que disse... Porque tem muita amiga dela... (...) A minha é
zero! Ah! Também não tenho tempo pra identificar meu estado! Sabe? Eu vou aos 100! Eu
quero fazer 100 anos com juízo e com cabeça a que tenho! Trabalhando, brincando com boneca,
fazendo muito! (...) Rapaz! Deixei já com 2 anos mais ou menos... perdi o gosto de boneca, de
ganhar dinheiro... Não tem uma época que você perde? Adorava ter dinheiro pra poder dar, pra
ver estourar! Pra guardar quero não! (...) O tipo de boneca? Eu fazia, fabricava japonesa, que é
gueixa e fazia boneca comum mesmo: a bruxinha... Eu mandei muita bruxinha pra Fortaleza,
pra mandarem pra fora, lá pro Dragão(sabe?) Levavam de 100 bonequinhas e passavam pra
frente... sei pra onde é que elas iam não... É a bruxa mesmo feita de lã(...) Ela não trabalhava
nisso...Ela trabalhava as bonecas que ela fazia era coisa de sonho... porque ela botava os
cabelos... era de linha brilhante, uma raminha de pó, “piquelinha”, ficava aquelas bonecas tudo
de cacho... Já as boneca que eu fabrico, é boneca de cabelo de lã, com essas coisas assim...
porque é pra criança mesmo brincar! As dela era pra enfeite... Telma trabalhava e tinha uma
mão de fada! Mas, ela ainda dava valor as minhas... achava minhas lindas! Quando eu fui fazer
a primeira japonesa, que eu chamava de gueixa, que é chamada, neh? Eu fazia(inaudível) de
gesso, cabeça, mão e tudo... eu vou fazer uma gueixa(inaudível) Eu ainda tenho delas aqui feita!
Só não me lembro, não tenho mais a primeira... não sei! Que Telma foi quem pintou os olhos.
Eu não sabia como fazer. Aí ela dizia: “Carlota, traga aqui que vou pintar essa cabeça para
você.” Aí, foi ela que fez a primeira cabeça de uma gueixa pra mim ficar fabricando... E, eu
tenho uma menina minha que trabalha muito bem... ela fazia também e ia me ajudando(...) Essa
aqui foi um genro meu, quando faleceu ela disse que a única que ia me dá era essa lembrança
pra dá a Tereza... Aí, fez todinho à mão! O retrato tava todo estragado... aumentando aqui... foi
quase todo na mão! pintando e ajeitando... Agora, aquela outra que eu lhe mostrei que é da
minha menina, ela tinha 15 anos, era afilhada dela...e, nós era comadre, mina filha! Quando
procurei uma madrinha, tinha(inaudível) ou de Telma. (Risos). Aí, essa menina minha, ela fez
e deu a ela quando fez 15 anos, nem foi pintado, foi batido... Esse aqui foi pintado a óleo. (...)
Não, as fantasias, ela mesma mandava fazer fora, era fantasia Odalisca, essas coisas assim!
(Num sabe?) que ela gostava... (...) Eu nem via quando chegava o carnaval, porque ela
começava... Ela e Edilson... tinha umas amizades lá no Pimenta que ficava por lá. Também, aí
guiava a noite... era ela e o esposo... aí, pronto! (...) Na quarta-feira, ela não recebia ninguém...
na 5ª eu ia pra lá, pra ela me contar as fofocas (risos). Aí, a gente botava tudo em dias! Eu
gostava... eu achava muito bom entrar na casa de Telma. Eu passava era tempo sem andar lá...
aí, me dava uma saudade dela! Aí, eu ia bater lá... aí, pronto! Ficava andando de novo ...(...) O
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velho (pai de Telma) era gente boa! Era um cara bom! (...) Nós temos um pedacinho de praça,
ali perto da prefeitura, que o nome é Júlio Saraiva, porque aquela praça da prefeitura, era pra
ser o nome dele, porque foi ele quem deu aquela ideia... Foi tudo dele! Aquilo ali... Pra ela foi
a maior decepção quando chamaram para inaugurar e foi só um canteiro! Eu me lembro que ela
ficou com isso muito tempo na cabeça, não tinha respeitado o pai dela, neh? Ele deu tudo! Ele
fazia tudo para agradar...(...) Eles se davam muito bem, aí ela só tinha um irmão... aí, ele se
casou, morou em Recife, quando foi pra morrer veio pro Crato. Quando chegou morreu com
poucos dias! (...) Se sentiu mal(...) que foi quem fez o teatro do Crato, foi ele. Era uma família
toda de artista! Pronto, deixa eu dizer!) (...) A amizade sempre da gente era só dessas coisas
mesmo: de falar, fofocar...porque todo mundo fala mal da vida alheia, neh? Peraí! Quem não
falar é mentiroso! Que é bom! A gente ficar assim tirando o couro da pessoa um pedacinho, Ô
bicho bom! Eu adoro! Fora de brincadeira.... Eu me sento na calçada daqui prestando atenção...
sentada até o horário que dá! (num sabe?) Mas, é só(...) botar tudo em dia! (Risos) Já estou
misturando... (risos). Mas, quando der pra parar, diga! Porque eu gosto de misturar as
conversas! (...) Pois é... o que você quer saber mais? (...) Aí, ela tinha uma amiga, que era essa
Helena, viu? Helena casada com Hélder França, a mãe de(inaudível) que foi até vereador do
Crato, muito tempo... e era pessoa vizinha, morava numa casa dela, aliás hoje é um ponto de
negócio de bicicleta, neh? Dessas coisas do filho dela.... Vizinho. Pois ali, era onde ela morava
por muitos anos.
(...) Aqui, que é o meu menino, queria um bem danado a ele! Francisco José! Foi Telma que
pintou. Ele morreu dois dias antes do batizado da filha dele, que é essa que tá aqui em casa...
aquela lourinha, lá... viu uma lourinha? Pois é, ele vinha pro batizado dela, e morreu num
acidente! Abalou muita gente! Aí, ela foi pediu pra fazer o quadro dele, e reformou esse aqui
todinho! Foi todo restaurado, quando era pequeninho, e lá aumentou e pintou e deixou desse
jeito! Ela pegava um retrato seu... num estraga com o tempo? Ela deixava ele zerado! E ficava
as mesmas feições, viu? Num, não mudava não! Era a mesma coisa! E ficava..., a que a pessoa
tava era viva! Como prova: esse aqui eu digo é muito! A gente passa e pensa que ele tá olhando
pra gente! Num tem coisa que tem? Eu vou lhe contar uma coisa, você vai ficar... mas, eu vou
lhe contar! Olha esse retrato do meu rapaz, isso ai foi a paixão da minha vida! Só
tinha(inaudível) ... cinco milhões e um homem, morreu de uma besteira! Caiu de uma galha...
não me disse! Bateu a cabeça... No sábado, no domingo(...) Ele faleceu... porque não me avisou
o que era que tinha acontecido com ele! Às vezes, eu passo... Eu vejo ele olhando pra mim com
os olhos cheio d’água! (...) Aí, eu digo: Meu Deus! Eu comecei... Agora não! Vamos deixar
isso mais pra frente! Estou ficando doida... eu falo com ele, eu converso com ele! Fora de
brincadeira! (risos) Mas, ele deixou um oco em mim, como ele era vivo...

Conversa com Herbeno

(...)Eu conheço porque minha irmã mais velha era colega dela de classe, do colégio Santa
Tereza... eu era muito novo, eu tinha 8 anos... mas, já entendia de tudo, assim de arte... gostava
muito de fotografia...(...) eu era muito apegado a minha irmã, aí ela me levava com a turma
dela, colegas de classe, para fotografia dos lugares pitorescos do Crato... por exemplo: na praça
da Estação, ali sentado embaixo do Cristo Redentor, aqui no rio, que aqui não tinha canal, era
um rio limpo , de águas limpas, pedras, muita pedra... elas sentavam em cima das pedras, e eu
era quem tirava... ela mandava eu botar a máquina bem no... e, não respirar! Pra não mexer a
máquina, que era daquelas máquina de caixão... aí, foi aí onde eu fui pegando mais... ela gostava
muito de minhas fotos, porque não tremia... Ela tinha uns 18... ela é 12 anos mais velha que
212

eu... aí, ela foi vendo que eu tinha jeito... aí, eu ia na casa, porque a gente saia tudo de lá pra
tirar as fotos nas ruas, nesse tempo o Crato era muito pequeno, não tinha ninguém nas ruas, a
gente ia pra praça Siqueira Campos, pras casas mais bonitas do Crato... que ela queria tirar
retrato... Eu tenho tudinho... mas, não encontrei(...) Ela via os cenários e , eu era quem
fotografava... Elas sentadas nas casas bonitas do Crato(...) Aí, fui indo lá com 10 anos, 11 anos...
eu ia muito lá e já tinha os carnavais... quando em tempo de carnaval, ela me levava como se
fosse dela, da turma dela, dos carnavais... aí, minha irmã ia também! E, lá, nos carnavais, eu
gostava muito! Aí, fui pegando aquele gosto por artistas de cinema(...) Ela fazia todo ano um
bloco para os filhos e os amigos dos filhos... nesse tempo eu já não era amigo dos filhos, era só
amigo dela... porque não tinha idade para estar em bloco, mas, a gente ia pro clube...eu ajudava
a aprontar(...) O ambiente era muito bonito, de muito glamour... muito bonito! E, assim que a
orquestra começava a tocar, ela era a primeira a entrar no salão...fantasiada... toda de espanhola,
odalisca... ela era a primeira a entrar já pulando, neh.... Ela bebia um pouco... era o único dia
que ela bebia! Era nos carnavais... aí, já entrava pulando no salão, era a primeira... e, o marido
dela ficava lá, no canto dele, não saia da mesa(...) aí, todo mundo pulava, entrava e tudo e, eu
achava muito bonito, ela me chamava e, eu dançava com ela e, tudo... aí, fui crescendo, com 14
anos, ela já viu que eu tinha o dom.. Eu ficava olhando ela pintando os retratos... ela já pintava...
ela botava os retratos no cavalete e a tinta... assim, um tubinho assim, diz ela que vinha de fora...
nunca procurei(...) não tinha curiosidade(...) aí, ela pintava e me ensinava como eram as luzes,
o lado escuro dos rostos... que tinha que ter um lado escuro... pra dá relevo ao rosto...aí, eu fui
pegando, porque ela disse que na fotografia tinha que ter umas luzes, neh? Relevo ao rosto, do
cabelo(...) Ela é quem ajeitava... ela botava o rosto e dizia: “olha pra cá pra minha mão” aí, a
pessoa olhava pra mão. “Mais pra baixo... faça um ar de riso, um ar de felicidade! Faça aquele
ar de felicidade, mas, sem mostrar os dentes!” Sem mostrar os dentes você faz aquele ar feliz.
Aí, a pessoa fazia aquele ar feliz, sem mostrar os dentes e sem rir... apenas a aparência de
felicidade(...) Pra fotografia não ficar triste... aí, pronto! Aí, eu fui pegando e tudo... ela só
deixava eu entrar no estúdio, ninguém entrava... só eu! Porque ela gostava que eu ficasse
olhando, ás vezes ela mostrava o visor... ela me mostrava o visor e eu via a pessoa... eu dizia:
“Telma, tá muito bom!”(...)Ela bota luz direto só de um lado, e a luz do outro lado era mais
fraca...pra dá aquele tom...(...) exemplo: esse retrato aqui foi ela que bateu... uma amigo meu...
ela achou ele muito fotogênico(...) aí, ele olha assim, aí botou o refletor em cima da cabeça
dele, iluminou só desse lado... aí, ficou esse lado escuro... que deu relevo ao rosto...(...)A minha
eu tirei na casa dela, ela penteou, fez o cabelo dele e mandou que eu batesse de perfil... ai, eu
bati, ela me testava, para vê se eu tinha os dons...(...) aí, comecei a levar retratos pra ela de
artistas antigos... Toni Curtis, que ela gostava muito! Ela tinha foto de Marlene Dietrich... aí,
ela me mostrava todas as... as fotografias de mestres: Rita Hayworth, Florinda Bolkan...(...) A
Florinda é da década de 60... aí, eu levava todas as fotos pra lá, pra ela reproduzir pra mim(...)
aí, eu fiz esse retrato da Florinda... ela gostou muito... ela disse:” Vc deve pintar mais a lápis
primeiro... e depois quando você tirar todas as formas de luz e sombra...aí você começa a pintar
a óleo... eu vou lhe ensinar como é que pinta a óleo...o marrom, as partes escuras e nas partes
claras, o marrom com branco... então...(...) Na década de 70 eu passei pro óleo...o marido dela
também pintava à óleo- o Edilson...eu gostava muito dos quadros dele... então, eu fui... cada
quadro que eu pintava , eu pedia a opinião deles... sempre me orientavam... Tudo que tiver
pesado de um lado, você pesa também desse lado... eu fui aprendendo...o peso... se, você botar
um mar aqui, você tem que botar umas pedras... pra poder equilibrar o peso do quadro... e, tudo
isso eu ia pegando, e, rosto principalmente! Aí, começou as encomendas... de Cristo, de
madonas... Madre Feitosa gostava muito... ainda gosta! Madre Feitosa quando eu pintava um
Cristo, elas compravam... pra dá de presente as amigas(...) Os quadros clássicos... eu tenho o
museu de Louvre... e, a gente olhava muito... mas, era uma coisa muito diferente do que a gente
fazia... porque é muito rosto, muito trabalho e tudo! E, aí a gente nunca se meteu a...(...)Eu era
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louco pela Marilyn... tem retrato da Marilyn por todo canto... James Jean, , Marlon Brando...
que ela gostava muito! Então, aí...(...) foi o tempo que eu sai do Crato pra estudar(... ) Ditadura
de 64, eu voltei pra o Crato, com medo de ser preso em Recife(...)Eu frequentava muito a casa
de Miguel Arraes(...) aí, tavam procurando as pessoas que frequentavam a casa de Miguel
Arraes... fugi num avião cargueiro, ajudado por um amigo meu da aeronáutica... eu tinha amigo
por todo canto... aí, eu cheguei em 64 no Crato, mais passei até 74, passei dez anos com Telma...
foi nesses 10 anos que me ensinaram mais ainda a arte do cinema e da fotografia... 74, eu fui
para Cascavel trabalhar como dentista... mas, passei 18 anos fora de Telma(...) quando voltei
em 90, continuou nossa amizade... aí, fui morar vizinho a ela...na casa dela... morei 8 anos na
casa dela(...) Eu só vivia lá... trabalhava de manhã no consultório que era também lá na casa de
Telma... e, acompanhando todo o trabalho dela... Ela não era de sair, só saia no carnaval... ela
não era de sair pra canto nenhum! Ela ficava dentro de casa... trabalhando, trabalhando,
trabalhando.... Pra sustentar os filhos, pra dá educação aos filhos... mandou os filhos pra
Recife... tanto é que se formaram alguns... Edilma foi pras Belas Artes, no Rio... mas, Edilma
fazendo Belas Artes, conheceu o marido dela e se casou e veio embora... pra Teresina (...) As
mulheres só saiam de dia de domingo, até as 9 h da noite...aí, todo mundo ia pra casa.... Mas,
Telma raramente ela ia... ela já era casada...casou muito nova... ela ficava...ela era casa, objetos
dela... as antiguidades, foi colecionando, foi comprando... relógios, aqueles relógios cuco...
santuários... comprando, comprando... aí, fez uma coleção! E, ela vivia daquilo, naquele mundo
dela... de aguar o jardim de manhã... ela aguava o jardim... então, era a casa dela... Apesar de
ser uma casa... de ter muita coisa boa... ela era uma mulher simples... que tinha poucas
amizades... as amizades eram mais assim ... sobre fotografia... mas, ela não era de ter
convivência... às vezes, uma prima dela de Assaré vinha- a Mirian- que era de Assaré... a Madre
Feitosa vivia lá... a Carlota, neh? (...) No dia-a-dia era esse: tomava o café da manhã e ia logo
pro cavalete! Só saia na hora do almoço... almoço... e tudo dela era pouquinho... ela dizia que
quem come muito, morre cedo... ela sempre dizia(...) ela comia bem pouco... e, quando era no
jantar era... jantava pouca coisa... viu que ela morreu com86 anos, neh? Quer dizer... ela viveu
muito...(...)
(...)
Essa foto foi quando eu me formei... o cabelo era mais alto... então... “Telma, eu acho tão alto
esse cabelo!” então, ela foi e tirou e ainda ficou alto... eu adoro essa foto! Agora, vou tirar pra
botar no ‘paspatur’, outra moldura mais digna! (...) Foi pintura. Eu vi ela fazendo essa pintura,
tanto é que eu tive essa ideia de tirar mais o cabelo... aí, ela começou, neh? Ela enfaixa todinho...
aí, vai tirando, onde tem brilho... ela vai passando o branco... onde tem brilho... aí, vai
levantando o resto... (...) onde tem brilho, ela vai tirando(...) o rosto vai se formando...
engraçado! Os fios de cabelo, que coisa! Muito detalhista e muito responsável! Tanto é que nós
fizemos um incêndio proposital... Foi assim... eu nunca pedi nada emprestado, mas só querendo
uma máquina fotográfica pra... “Telma, eu não tenho máquina.. e queria tirar uma foto de
pessoa... e tudo! Você pudesse me emprestar sua máquina...” “Pois tá! Só se você tirar de
fleche... você tem esse fiozinho que Edilson botou...” Tava com defeito, um fio...mas, eu
esqueci do fio... e, bati as fotos... (...) pra fazer uma reportagem de um casamento na igreja, aí
nenhum prestou! Não prestou porque eu não botei o fio! “ai, Herbeno! O que a gente faz? A
reportagem do casamento não deu certo... quando a mulher vier buscar o filme, os retratos...
vamos incendiar o quarto escuro.” ai, nós pegamos as coisas de valor e botamos só papel velho...
aí, fizemos o incêndio! Ai, incendiou o quarto todinho, tudo... aí, ela sentou-se no parapeito e
eu assim muito triste quando a mulher chegou... “olha aí! Um caso...uma fatalidade, o estúdio
incendiou (o estúdio não, o quarto escuro!)” Valha, quer dizer que meus retratos não
prestaram?” (...) Quer dizer, ela fez isso por mim... por minha causa...uma coisa, aí, depois que
a mulher saiu, a gente foi renovar o quarto escuro... limpar... aí passou! (...) Ela usa os óculos
só pra perto... quando chegava uma pessoa, ela levantava os óculos, olhava pra pessoa, mas
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quando ela ia trabalhar, ela baixava pra câmera... entendeu? Ela só´ tinha óculos pra perto, pra
fazer as fotos... Aí, nós fomos(...) eu fui embora, voltei... fui morar vizinho a ela...(...) aí, foi
assim, a vida não foi só de coisas boas! (...) Ela se inspirava muito nas poses: Marlene
Dietrich...(...) Olhe, pra tirar as fotos assim com a mão no queixo das pessoas... Eu me lembro
como se fosse agora! Porque ela se inspirava nas atrizes(...) Ela se inspirava também em
Elizabeth Taylor, no filme ‘Cleópatra’ ... ela fazia muitas fantasias de Cleópatra, inspirada em
Elizabeth Taylor... Marlon Brando... ela gostava muito de Marlon Brando! Ela achava que a
beleza era tudo! Mas, ela transformava... tinha pessoas que eram fotogênicas... ela fazia as
pessoas ficarem bonitas! E, parecida, entendeu? Tinha as pessoas feias fotogênicas...beleza não
era importante, não... a importância era a simplicidade! Esse ar de felicidade que ela mandava
a pessoa colocar... aí, a pessoa ficava bonita... não era a pessoa que tinha que ser bonita! Ela
fazia a pessoa feia, bonita... Aqui, tem uma mulher do Crato que era feia... que ela sempre falou
dessa mulher... era feia, mas as fotos dela eram bonitas, porque ela era fotogênica... ela sabia
transmitir o que a Telma pedia pra ela! Ela sabia transmitir na foto.... Ela orientava a pessoa a
pensar num momento feliz da vida. “Pensa ai num momento que você viveu feliz!” aí, a pessoa
pensava, neh? Aí, só aquele olhar já mudava o visual... “Não ria...” Mas, só que um leve sorriso,
já mudava a pessoa... e, as luzes, refletores... Ela sabia tão bem colocar os refletores... Ah, ela
tirava rugas só nos refletores... Ela tirava rugas! (...)Pegava, ia botando de cima, em baixo,
atrás... aí, uma vez, uma mulher chegou e disse: “Telma, você fez o retrato de minha filha com
15 anos, e o cabelo dela tá branco! Pense no cabelo branco de minha filha com 15 anos?!” Ela
disse assim:” Minha filha, você não sabe, não entende de fotografia... essa luz que botei atrás é
justamente pra dá relevo aos cabelos dela! Mas, fica branco, mas os cabelos dela não são
brancos! Todo mundo tá vendo que é preto... mas, essa luz dá um relevo ao cabelo! Entendeu?
Não se preocupe não, que o cabelo dela não é branco, apenas é a luz do refletor!” (...) Íamos
muito ao cinema... os filmes de drama, nesse tempo não tinha esses filmes de ação... não tinha
nenhum filme de ação, era só drama épico... 10 mandamentos... os dramas, imitação da vida...
Esquina do pecado, Rita Hayworth, Madame X.... tudo era drama! História da vida real....
(...)
Ela dava muita importância a educação familiar... mulher para ela tinha que ser bem
comportada, e....tivesse dignidade! (...) Não, ela dizia só pra mim...e, eu pegava também muita
coisa... ela não falava de ninguém! Ela não... tinha certas épocas que o povo falava da vida
alheia...mas, ela não! Ela não falava de ninguém... a não ser de belo! Ela procurava na pessoa
uma coisa boa... (...) Nunca foi de moda... ela criava as roupas dela mesmo... ela se vestia como
queria... não tinha esse negócio de moda, de mini saia... Já a Edilma, a filha dela, ela dava plena
liberdade... A Edilma podia usar o que quisesse! A Telma eram vestidos que ela mesmo queria...
vestidos de seda... Ela gostava muito de ouro, roupas douradas...bonitas! Só ia pras festas com
vestidos bons! Os tecidos eram tudo de seda, ela gostava muito... (...) Eu levei pra lá o esboço
já feito(...) O importante na fotografia são as pupilas... as pupilas é que dá toda a aparência da
pessoa... (...) ai, ela disse: “Você suja com o carvão do lápis e com o algodão você suja a foto
todinha... aí, eu sujei a foto.... aí, olhando pra fotografia que eu batia, ela fez. “Bom, pegue a
borracha.” Aí, eu peguei a borracha, aí eu vim com a borracha em pincel...ai, vem olhando a
luz... Ela disse:” Muito bem! Ficou ótimo... agora pegue o cotonete...” Que tem partes que só
pegam o cotonete, neh? Por exemplo: aqui, na orelha... que tira o sujo que você de lápis... com
algodão... aí é quando vai aparecendo a foto, o relevo... vai aparecendo... Ela disse: “Herbeno,
tá uma foto muito boa... dê mais luz no cabelo aqui desse lado... Você tá pronto pra fazer
fotografia em preto e branco... Você tá pronto! “Aí, eu fiz(...) fotografia em preto e branco:
Florinda Bolkan... Também a lápis creon... francês .... Esse lápis é francês(...) Não existe mais!
Aí, fui e abandonei... os que vende nas livrarias tem um brilho... não presta com o brilho! (...)
Não, ela não se ligava muito... a vida da Telma era o trabalho...Ela não se ligava em estudar
língua...às vezes eu falava francês pra ela... ela ria tanto! Falava francês, não me lembro, coisa...
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ela dizia:” Você tem um sotaque de um francês! Se você estudasse mesmo ou se fosse para
França passar um ano, você voltava falando corretamente, fluentemente... porque você fala até
com sotaque!” Não, eu não lembro mais do francês...eu cantava pra ela... “Le marionete” (canta
em francês a música) “Menino, como tu canta bem o francês!” Aí, ela ia fazendo os retratos e
eu olhando... ela gostava muito... a presença dela ... muito da presença dela...
(...)
Telma, como foi Gilda? (...) “Só tem um beijo... e um strip-tease ... a única coisa do strip-tease
que ela tirou foi uma luva da mão direita... ela puxou com o dente e tirou a luva e jogou no rosto
do rapaz... aí, o marido dela viu ela jogando a luva no rapaz e bateu no rosto dela!” (...) O filme
ficou impróprio pra 18, a igreja condenou esse filme! (...) depois de muitos anos eu assisti
Gilda... Não tem nada demais! As novelas de hoje, da Globo tem muito mais impróprio que o
filme(...) (cantarola a trilha sonora de um filme) Essa é Florinda... Ela nunca falou em Carmem
Miranda... É porque a Carmem Miranda é mais de dança... ela gostava mais de artista modelos...
Marlene Dietrich, essa aqui era modelo, nunca foi atriz assim.... Marlene Dietrich, as fotos dela
são belíssimas! Como Marilyn era mais uma modelo, ela não era atriz... (...) As fotografias da
Telma nunca era olhando de frente... a fotografia era sempre de lado... mas, o rosto não, o
olhar... o olhar de lado, nunca era fotografia de frente... como essa... ela chamava ¾... “Vamos
fazer um retrato ¾ ! “A pessoa não sabia o que era ¾ , mas ela educava o rosto da pessoa em ¾
... olhava no visor: “um pouquinho mais assim... tá ótimo! Olhe para cá! (Tum!) e batia! O dom
dela! Mas, depois que a vida vai passando, aí em as coisas de minha outra história...

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