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Palhoça
2020
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
ARIANE COSTA DERNER
Palhoça
2020
3
AGRADECIMENTOS
RESUMO
O presente trabalho propõe uma análise conjunta de duas obras cujas personagens estão
diretamente relacionadas ao espelho e que veem suas imagens reproduzidas por outras pessoas
sendo refletidas nos espelhos, também buscou analisar como o sobressalto do amadurecimento
e morte reverberam nessas personagens. O primeiro estudo é sobre o filme Cléo de 5 á 7 (1962),
da cineasta francesa Agnès Varda, que usa a relação da protagonista com os espelhos como
forma de ver e refletir a visão dos que a cercam sobre sua personalidade e, posteriormente,
como ela obtém controle sobre sua própria imagem e sua relação com a morte. A segunda obra
em estudo é o poema Mirror, escrito em 1961 por Sylvia Plath, onde o espelho é a voz lírica e
que abriga a imagem e os anseios de uma mulher ao longo de sua vida. O poema questiona a
maturidade e, conseqüentemente, a morte. Ambos os produtos são analisados pela ótica do
filósofo italiano Emanuele Coccia, a partir de seu livro A Vida Sensível, de 2010, que propõe
uma nova forma de estudar e compreender como a reprodução de imagens e objetos culturais
surgem, permanecem e influenciam nosso mundo, com o espelho como principal meio de
reprodução.
.
ABSTRACT
The present work proposes a joint analysis of two works whose characters are directly
related to the mirror and which see their images reproduced by other people being reflected in
the mirrors, also sought to analyze how the jolt ripening and death reverberate in these
characters. The first study is about the film Cléo de 5 á 7 (1962), by the French filmmaker
Agnès Varda, which uses the protagonist's relationship with mirrors as a means to see and
reflect the views of those around her on her personality and, later, how she obtains control over
her own image and her relationship with death. The second work under examination is the poem
Mirror, written in 1961 by Sylvia Plath, where the mirror is the lyrical voice and who houses
the image and anxieties of a woman throughout her life. The poem questions maturity, and
consequently death. Both products are analyzed through the eyes of the Italian philosopher
Emanuele Coccia, using his book The Sensible Life, from 2010, which proposes a new way of
studying and understanding how the reproduction of images and cultural objects arise, remain
and influence our world, with the mirror as the main means of this reproduction.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 10
2 O ESPELHO REFLETIDO NA HUMANIDADE......................................................... 13
3 CLÉO COMO ESPELHO ............................................................................................... 27
4 MIRROR E O ESPELHO QUE ABSORVE................................................................... 52
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 57
6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 59
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1 INTRODUÇÃO
A ideia do tema desse trabalho demorou para surgir, foram dias de pura
procrastinação pois nada se encaixava em um tema que me chamasse a atenção, até que vi uma
simples frase em uma postagem na rede social Tumblr: “the relationship women have with their
own reflection...beyond complex”. Essa frase gerou uma série de comentários na postagem, de
muitas usuárias relatando suas próprias experiências, compartilhando que a fascinação que
tinham com espelho era sobre sempre verem uma pessoa completamente diferente refletida e
tentarem se reconhecer e reconectar com aquela imagem, que sabiam que aquela imagem no
espelho era a sua imagem, mas que não existia familiaridade ali. A cada novo comentário que
eu lia eu me reconhecia. Como poderia o reflexo de uma imagem ser algo tão complexo?
Essa simplória frase me relembrou um livro que li quando criança: O Menino no
Espelho, de Fernando Sabino. O livro é sobre as memórias da infância do autor e é divido em
contos, dentre esses, o que dá nome a obra. No capítulo que leva o nome do livro, o menino
Fernando faz amizade com seu reflexo, uma versão invertida de si mesmo e que pode sair do
espelho, acompanhando-o em suas aventuras. O livro conversava demais com a Ariane criança,
mas devo admitir que o capítulo “Menino no espelho” me deixou com um certo medo de em
algum momento ser substituída pelo meu próprio reflexo e ficar presa dentro do espelho, um
local que sempre observei e que imaginava que existia um portal para entrar ali, só nunca
considerei se existiria uma saída.
Falar sobre literatura infantil e não citar Alice através do espelho é quase um
sacrilégio, muitas das metáforas e explicações sobre o reflexo e o relacionamento dos
personagens com a superfície espelhada deste trabalho poderiam ter Alice como alicerce, mas
eu nunca gostei dela, pois diferente do menino Fernando, ela não era arteira e pôde ir para um
outro mundo, um mundo mágico. Assim como o menino Fernando eu sempre tive imaginação
suficiente para criar meu próprio mundo onde quer que eu estivesse. Não a incluir nessa análise
foi sim uma questão de favoritismo, não irei mentir.
Ao entrar na faculdade aprendi sobre planos e contra planos, tabelas de produção,
utilização de escalonamento para construção de roteiros, e claro, a assistir filmes. Dentre tantas
obras apresentadas e assistidas como clássicas, foi em um seminário introdutório ao curso que
conheci Agnès Varda pelo filme Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe (1975),
introduzido inclusive pela minha orientadora neste trabalho, em um auditório um tanto limpo,
mas que me causou uma bela crise alérgica devido aos produtos de limpeza.
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A pureza do corpo feminino e questões que vão além disso trazidas pelo feminismo
e pela própria Varda me deixaram maravilhada, mas acima de tudo o que me chamou atenção
foi a sua aparição no seu próprio filme e a voz calma e paciente de quem possui todo o tempo
do mundo para lhe explicar sobre qualquer assunto. Após esse maravilhoso primeiro encontro
infelizmente acabei esquecendo do nome da cineasta enquanto eu buscava incessantemente na
internet o título do filme (e não acertando uma única palavra) e me recusava a perguntar a
qualquer professora por pura vergonha.
Eventualmente durante a quarentena de uma pandemia, um período histórico que,
com toda certeza, afirmo que gostaria de não estar vivendo e questionando diariamente sobre:
o que é a morte? Até onde minha alma se estende? Alma realmente existe? A partir de quando
alma e morte se tornaram correlacionadas dentro de religiões para tentar capturar mais pessoas
para dentro de igrejas e templos? Porque o conceito de alma só é reconhecível quando é visto
fora de nós? E outras questões que minha mente acelerada por inúmeros motivos me fazia
pensar e me atormentar por pura ansiedade. Em meio a tudo isso, minha amiga me indicou o
filme Cléo de 5 a 7 (1962), e como a boa amiga que sou, eu assisti ao filme que me foi indicado.
E ainda bem que assisti, o resultado está nesse artigo.
Assim como aquela postagem do Tumblr se apresentou para mim por acaso, a
poesia Mirror de Sylvia Plath também foi da mesma forma. Enquanto eu tentava encontrar
alguma maneira de conectar o assunto de espelhos e mortalidade e pesquisando sobre estes na
literatura, o poema surgiu listado na reportagem Ten of the best mirrors in literature pelo jornal
The Guardian. O poema estava listado após o livro de Alice através do espelho.
Devido a uma série de coincidências e acontecimentos históricos que parecem
intermináveis, encontro-me aqui, escrevendo sobre espelhos, um objeto que sempre me
maravilhou e assombrou. Se afinal tal assunto me interessa tanto é por causa de todo
sentimentalismo humano que vem sendo transmitido desde a ideia de preservação de cultura.
Afinal, o que diferencia os seres humanos do resto dos animais, de acordo com um dos meus
professores de biologia do ensino médio, é a nossa capacidade de transmitir cultura de geração
em geração. Bem, acho que estamos fazendo um trabalho e tanto, porém melhorar sempre é
preciso, enfim a arte e a cultura são frutos de coincidências.
A pesquisa inicia situando o espelho no mundo, tendo o Japão como ponto de
partida, em seguida englobando oriente e ocidente e localizando o espelho dentro da mitologia,
história, literatura e arte. Ademais mostrando também o relacionamento entre o feminino e
objeto em estudo.
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Assim será desenvolvido nessa pesquisa a análise sobre o espelho como meio por
excelência para a multiplicação da nossa imagem no mundo, reflexão escrita pelo filósofo
Emanuele Coccia e publicada no livro A Vida Sensível (2010), que serve como base para essa
pesquisa. No ensaio, o filosofo sonda a sensibilidade, apoiado no embasamento de que o
sensível, por criar e moldar formas, ideias e a vida, é a imagem. A teoria é usada para examinar
o filme Cléo de 5 a 7 (1962) de Agnès Varda e a poesia Mirror escrita em 1961 pela autora
Sylvia Plath, ambas ambientando o espelho como um dos elementos centrais de suas obras.
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Um dos objetos que mais certamente cria uma mitologia ao seu redor, é o espelho. Desde
contos japoneses como em O Espelho de Matsuyama, traduzido por Yei Theodora Ozaki para
o inglês e publicado no livro The Japanese Fairy Book em 1903, que conta a história de uma
pequena e feliz família da Província de Echigo, uma parte remota do Japão até hoje, é separada
temporariamente quando o pai precisa viajar até a capital, deixando esposa e filha em casa.
Após meses o homem retorna com presentes para sua filha e esposa, ele presenteia a criança
com uma boneca por sua educação e promessa por obedecer a mãe, e a esposa recebe uma caixa
com um objeto jamais visto antes, um espelho. De acordo com o homem, na capital, aprendeu
um provérbio: assim como a espada é a alma do samurai, o espelho é a alma da mulher.
Desejando que sua alma não ficasse exposta, a mulher guardou o presente com muito carinho.
Após alguns anos, em seu leito de morte, a mãe presenteia a filha com a caixa e o espelho,
dizendo que sempre que se sentir sozinha, bastaria olhar para o objeto que veria a mãe. O pai
se casa novamente, e a filha querendo ser igualmente amável e carinhosa como sua mãe fora,
trata a madrasta da melhor forma possível, entretanto, a filha se sente extremamente solitária,
sempre recorrendo ao espelho para ver a imagem da mãe. A madrasta, espionando a garota e
acreditando que a jovem planejava enfeitiça-la, recorre ao marido, implorando que a deixe ir
embora por temer por sua vida. O homem, dividido entre acreditar em sua esposa e na bondade
da filha, confronta a jovem, descobrindo que o que a esposa acreditava sendo a jovem
enfeitiçando uma imagem sua, era, na verdade, ela conversando com o próprio reflexo,
acreditando ser a imagem da mãe. O pai, então, entendeu que a filha, que tanto amava a sua
mãe, cresceu à imagem e semelhança da mulher que tanto admirou.
Figura 1 - Capa do livro Japanese Fairy Tale Series, Book 10 Figura 2 - Yata no Kagami
Para os gregos, o reflexo mostrava a alma de quem refletia, presente ainda em rituais de
oráculos e leitura de sorte, como a catoptromancia, e a partir disto, surge o mito popular do
espelho quebrado, o pesquisador Piotr Sadowski analisa a indicialidade do espelho com a
humanidade e espiritualidade no livro From Interaction To Symbol: A Systems View of The
Evolution of Signs and Communication: “a crença igualmente popular é que quebrar um espelho
causará a morte de alguém ou dará azar. Na Grécia antiga, apenas olhar para o próprio reflexo,
a "alma" capturada no espelho, poderia convidar a morte, como o mito de Narciso ilustra a
famosa ilustração” (2009, p. 152, tradução nossa). Um espelho quebrado equivale a sete anos
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de azar, em parte devido aos romanos que acreditavam que o número representava o tempo de
um ciclo de vida humano. Justamente por abrigarem a alma, o espelho não reflete vampiros.
O espelho exala uma conexão espiritual entre ser humano e sua imagem, seja de
admiração ao seu próprio belo ou repúdio. Este objeto é certamente um meio para que até
mesmo as reflexões mais simplórias sobre nós mesmos, encontrem um caminho para o
mundo.
1
“At the same time looking intensely into a mirror or some other reflective sur-face was widely believed to
encourage contemplation, introspection, and mystical insight. In ancient and medieval times scryers (gazers
into reflective surfaces) peered into mirrors, crystals, waters, or polished metal to allegedly gain super-
natural knowledge. Roman scryers were called specularii, after speculum, the Latin for “mirror.” Both
words stem from specere, “to look,” as in speculation. As Mark Pendergrast shows in his fascinating
account of the cultural history of the mirror, all cultures on record believed in scrying and had some sort of
magic beliefs and practices associated with mirrors.”. (SADOWSKI, 2009, p. 152)
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ser confundido com um quadro. A pintura em si nos coloca como espectadores, todavia, somos
levados a nos questionar se apenas observamos a obra ou se também somos observados por ela.
Além disto, somos negligenciados da obra que está sendo pintada por Velázquez, dentro da
pintura, como escrito por Foucault “Em vez de girar em torno de objetos visíveis, esse espelho
atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aí poderia captar, e restitui a
visibilidade ao que permanece fora de todo olhar. ” (1966, p.24). As figuras no espelho são o
reflexo do rei Felipe IV e a rainha Mariana da Áustria, os objetos iniciais da pintura. O espelho
é inacessível para qualquer outro personagem no quadro além de nós, observadores, que
também nos tornamos personagens, afinal, somos os novos objetos de pintura. Essa
inacessibilidade aos outros personagens é um dos pontos centrais do quadro, o reflexo no
espelho não lhes é importante, um reflexo visto apenas por nós e pelos outros objetos do quadro.
O artifício do espelho e reflexo é construído em outros quadros de Velázquez, La Venus del
espejo (1647) e Cristo en casa de Marta y María (1618).
Figura 4 - La Venus del espejo (1647), Velázquez
Fonte: Artmajeur
Fonte: Wikipedia
Os espelhos modernos que utilizam a prata química para criar a fina superfície refletora
surgiram apenas no século XIX, levando-nos a refletir que o bronze polido da região da antiga
Suméria e a água criavam imagens distorcidas. Cabia acreditar nos olhos dos artistas para
reconhecer a si mesmo, mesmo que fosse através de outro olhar. Futuramente, o nitrato de prata,
em 1826, daria início a fotografia utilizada por Niépce e Daguerre. A empresa alemã Zeiss Ikon
em 1949 traria ao mercado a Contax S, a primeira câmera SLR (Single Lens Reflex) que contava
com um pentaprisma para que o fotógrafo pudesse visualizar a imagem ao nível do olho, as
câmeras digitais que surgiram inicialmente nos anos 90, contam com este mesmo uso de
espelhos.
Enquanto Rosângela Rennó utiliza o espelho como divisão entre a realidade retratada
nos jornais e a mulher real, a fotógrafa norte-americana Francesca Woodman é pautada no
surrealismo e a ligação entre espelho e alma. Recebeu grande influência do surrealismo, que
estudou enquanto morou em Roma e frequentou a livraria Maldoror, cuja especialidade era esse
mesmo movimento. Em 22 anos de vida, Woodman produziu cerca de 500 fotografias onde,
em sua maioria, ela era sua própria modelo. Seus trabalhos em filme fotográfico preto e branco
mostram seu retrato em síntese com o ambiente onde ela estava, seja este seu apartamento, um
prédio ou a natureza. Ainda em Roma, a fotógrafa também se interessou pela literatura gótica
onde os personagens são melodramáticos e com emocional perseverante desejando demonstrar
para o leitor a sua alma, além disso, cenários fantasmagóricos como templos, castelos e
destroços fazem parte da estética. É inegável o tom misterioso nas fotografias da artista que
usava a alta exposição da câmera para criação de vultos e borrar sua imagem. Francesca posava
nua para boa parte de suas fotografias e fazia grande utilização do espelho, como se tentasse se
aproximar de sua alma e levitar de seu corpo, sendo o espelho em qualquer frente artística o
objeto que chega mais próximo de revelar a alma do personagem, já que é impossível se ver
pelos olhos de outra pessoa precisamos nos ver pelos nossos próprios.
Figura 8 - Providence. Rhode Island (1975-1978), Woodman
Fonte: ArtNet
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Fonte: ArtNet
O ser humano possui necessidade de reproduzir sua imagem, como escreve Sadowski
“Enfatizei também o fato de que a necessidade de criar imagens permanentes é uma
consequência da memória de trabalho extensa exclusivamente humana e da consciência
resultante da passagem do tempo, com os sentimentos de ansiedade e nostalgia que os
acompanham” (2009, p. 150), utilizando a poesia para expressar por meio de palavras e a
pintura quando as palavras apenas não bastavam. A partir da literatura, com Narciso, Dorian
Gray e Ricardo II de Shakespeare, personagens masculinos que possuem conexões extremas
com o espelho o utilizaram para ecoar seus desejos mais profundos de beleza e poder.
Entretanto, o espelho viria a se tornar um objeto de feminilidade e as qualidades que
transformavam esses personagens masculinos em temerosos e fascinantes por suas reflexões,
tais qualidades quando aplicadas em personagens mulheres, criam o efeito de rejeição.
Os Irmãos Grimm transcreveram contos infantis de tradição oral na Alemanha, no livro
Kinder-und Hausmärchen (Contos de Fada para Crianças e Adultos) em 1812. Entre os contos,
a da Branca de Neve. Na história uma Rainha Má que possui um espelho mágico que sempre
conta a verdade, ela utiliza o objeto mágico para saber se é a mulher mais bonita de todo o reino,
recebendo a resposta positiva até o dia em que Branca de Neve completa dezessete anos.
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Enlouquecida pela inveja, a Rainha tenta a todo custo matar a jovem, que também é sua enteada.
A história foi popularizada mundialmente por Walt Disney e Joe Grant em 1934 e a personagem
se tornou referência para a criação de vilãs mágicas. A vilã, considerada uma feiticeira, utiliza
todo o seu poder para se manter jovem e desejável, e quando se transforma em uma velha para
enganar Branca de Neve, estaria refletindo sua imagem real, a do seu interior. Comparando com
os personagens citados anteriormente, a Rainha Má possui uma relação profunda com o seu
espelho, porém sendo delimitado apenas a sua vaidade. Assim como o Espelho de Yata no
Kagami, que mostra a verdade, o espelho mágico da Rainha Má também, a imagem e
personalidade dela não passando além de vaidade feminina que sonha em ser eternamente a
mais bonita, diferente de Dorian Gray e Ricardo II que foram personagens masculinos escritos
por homens, a Rainha Má foi uma personagem feminina escrita a partir de histórias infantis
passadas de forma oral entre gerações e compilado pelos irmãos Wilhelm Grimm e Jacob
Grimm, enfatizando um desejo masculino em uma personagem feminina.
A escritora Virginia Woolf, em 1928 escreveu dois artigos para a Arts Society, do Girton
College, que posteriormente seriam publicados no livro Um teto todo seu. A autora escreve
sobre a insuficiência de produtos literários criados por mulheres e as premissas sociais que
acarretam nisso. Dentre as pautas apresentadas, a reprodução do machismo, aplicando-se
também sobre personagens femininas, assim como citada anteriormente, a Rainha Má. Ainda
no livro, Virginia escreve uma de suas mais célebres frases que engloba tudo o que é prezado
apresentar neste artigo: “As mulheres serviram por todos estes séculos como espelhos
possuindo o mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro do seu
tamanho natural” (2014, p. 6).
Movimentos artísticos são imprescindivelmente dominados por artistas masculinos e
que ofuscam criadoras, ou até mesmo, apagam-nas da narrativa principal, transformando-as em
tesouros que cabem às mulheres cavarem o buraco mais fundo para que sejam encontradas, no
cinema, não é diferente. A historiadora de arte Linda Nochlin questionou em 1971 no ensaio
“Porque não houve grandes mulheres artistas?” como o reconhecimento nas áreas artísticas,
majoritariamente, se baseia na ideia mítica de genialidade, que aparentemente é um gene
presente apenas nos artistas masculinos. Entretanto, a genialidade sendo considerada um
presente divino entregue apenas aos escolhidos utiliza a paixão e o ego como combustível, um
combustível que moveu a história da arte por muitos anos, porém no campo de estudos
históricos, é necessário ser feita a avaliação de áreas que criam um artista, como afirmado no
ensaio:
21
Não é acidente o fato de que as condições cruciais para que se produza grande
arte sejam raramente investigadas, ou que as tentativas de investigação de questões
mais amplas foram, até muito recentemente, rejeitadas como não sendo temas de
atividades acadêmicas, ou por serem muito extensas, ou campo de outra disciplina,
como a sociologia. Encorajar uma abordagem desapaixonada, impessoal, sociológica
e institucionalmente orientada, revelaria toda uma subestrutura romântica, elitista, de
mérito próprio, monotemática na qual toda a carreira da história da arte está baseada,
e apenas recentemente foi questionada por um grupo de jovens dissidentes.
(NOCHLIN, 2016, p. 14 e 15)
pode quebrar com o padrão cinematográfico assim como Godard e Truffaut fizeram, como
explica Kelley Conway em Agnès Varda:
Como mencionado anteriormente, o mito do grande artista acaba novamente por não se
aplicar a mulheres, paramentando com a pintura, Michelangelo é considerado até hoje um gênio
e nunca precisou ser ultrapassado, por que o mesmo não foi aplicado a Agnès Varda?
Três anos dentro da Nova Onda, Varda inicia as gravações de seu segundo longa-
metragem, Cléo de 5 à 7 (1962), que viria a ser o seu filme mais reconhecido e um dos grandes
símbolos do movimento. No filme, acompanhamos Cléo, interpretada por Corinne Marchand,
pelo dia mais longo do ano, tanto em duração de luz do sol quanto em expectativa para Cléo,
enquanto ela aguarda o resultado de uma biópsia para saber se tem um câncer no estômago.
Durante uma hora e meia, assistimos a um documentário sobre Paris pelos olhos de Cléo e
reconhecemos a transformação da personagem e as suas facetas por meio dos que se relacionam
com ela. Uma jovem e promissora cantora que tem tudo mas que se vê obrigada a enfrentar o
vazio de sua juventude. A interpretação de Corinne Marchand lhe rendeu o Prêmio Suzanne
Bianchetti, que consagra a jovens promissoras atrizes, uma a cada ano, muitas das atrizes que
receberam este prêmio tiveram suas carreiras alavancadas a nível internacional, como
Geneviève Bujold e Audrey Tautou. O filme também foi selecionado como o representante
francês no Festival de Cannes de 1962, impulsionando a carreira de Varda. A diretora se tornou
2
Unlike other directors associated with the New Wave, Varda did not participate in France’s rich postwar culture
of cinéphilie. She was not a member of a ciné-club nor did she participate in the impassioned debates about
realism, the film director as auteur, or the nature of Hollywood cinema that filled the pages of Cahiers du
cinéma or Positif. She went to the cinema only once a year or so. [...] Unlike other directors associated with
the French New Wave at that time, Varda did not have a vast storehouse of images and narratives from
Hollywood or European films in her head, nor did she have a network of friends in the film industry with whom
she could collaborate on La Pointe Courte. (CONWAY, p. 10-11, 2015)
23
a primeira mulher a receber o prêmio honorário César pela sua carreira em 2001, em 2015
recebeu o prêmio honorário da Palma de Ouro em Cannes e o Oscar em 2017 pelo seu trabalho.
Cléo de 5 á 7 foi um sucesso mundial, principalmente nos Estados Unidos. Agnès Varda
recebeu propostas de venda dos direitos autorais do filme, até mesmo tendo Madonna querendo
interpretar Cléo em uma versão norte-americana do filme. Além desta proposta, a diretora
também foi oferecida a biografia da cantora francesa Édith Piaf, proposta a qual também
recusou por não querer pertencer a Hollywood.
O filme foi produzido por Georges de Beauregard, um dos produtores mais importantes
da Nouvelle Vague. Beauregard é considerado um descobridor de talentos por produzir os
primeiros filmes de muitos dos diretores que viriam a ficar famosos no movimento como
Jacques Rozier, Jacques Demy e claro, Agnès Varda. Além disso, Georges de Beauregard
juntamente com os produtores Pierre Braunberger e Anatole Dauman foram responsáveis pela
grande produção de filmes na Nova Onda, fugindo da produção tradicional e de grande
orçamento dos filmes, abrindo caminho para novos autores.
Dentre as idiossincrasias marcantes de Varda, como seu cabelo vermelho, sempre com
o mesmo corte, e o amor por batatas, a utilização de espelhos pela cineasta é sem dúvida, um
dos elementos que ao primeiro olhar indicam sua obra. Em Cléo de 5 à 7 (1962), o uso de
espelhos guia a personagem Cléo pela análise de sua imagem e transformação, essa gerada
enquanto tenta lidar com o medo de um diagnóstico médico que pode mudar sua vida.
Atualmente Agnès Varda é muito celebrada pela sua postura e autenticidade em relação às suas
criações artísticas, contudo ela não foi incluída dentro da linha central histórica no cinema
francês, deste modo, coube a ela escrever e pontuar seu local de direito na história do cinema,
como dito por McFadden “Varda assume a tarefa com suas próprias mãos: sua inscrição
curatorial em Les Plages d'Agnès reivindica seu lugar no cinema francês, preenchendo as
lacunas deixadas pelos historiadores e críticos de cinema.” (2014, p. 38, tradução nossa)3.
3 “
Varda takes the task into her own hands: her curatorial inscription in Les Plages d’Agnès claims her place in
French cinema, filling in the gaps left by film historians and critics.” (MCFADDEN, 2014, p. 38)
24
Diferentemente de Varda, é questionável se Sylvia Plath teve o controle sobre sua própria
narrativa artística, como mencionado por Susan Bassnett em Sylvia Plath An Introduction to
the Poetry: “Ela também observa a maneira como Plath ajudou Hughes a publicar nos primeiros
dias de seu casamento, em particular ajudando-o a adquirir leitores americanos, enquanto ele
então inverte o padrão e foi fundamental na edição e publicação de seu trabalho depois a morte
dela. ” (2005, p. 13, tradução nossa). O casamento com Ted Hughes e seu suicídio se tornam
caminhos recorrentes para a análise e influência sobre suas obras, vale ressaltar que felizmente,
não são os únicos caminhos. Sylvia, que viria a ter o reconhecimento anos após sua morte em
1963 e chegando ao patamar mítico de genialidade, infelizmente não recebeu a aclamação
aspirada durante seus anos de produção artística, seu único romance A Redoma de Vidro,
publicado em 1963 e Ariel, publicado dois anos após, se tornaram leituras obrigatórias no ensino
médio norte-americano e inspiram trabalhos acadêmicos, além de filmes e impulsionam novas
leitoras a verem seus sentimentos espelhados por outras mulheres. A poesia de Plath possui
uma mitologia própria, que muito tenta ser desvendado baseando-se na vida da autora, sua
escrita intimista e simbólica acaba erroneamente por classificá-la como uma poeta complicada
de se traduzir para um sentimento da própria leitora.
Muitos dos estudos sobre sua escrita procuram fazer conexões com episódios de sua
vida, e é certamente verdade que, em certo nível, Plath foi uma escritora fortemente
autobiográfica. No entanto, como insistiu e como Ted Hughes sempre argumentou,
ela não via a poesia essencialmente como um canal para seus sentimentos pessoais,
mas sim como um processo consciente de elaboração através do qual a experiência e
a emoção poderiam ser refinadas em um sentido alquímico e transformadas em algo
novo. A sua é uma poesia sobre a busca de identidade, e parte dessa busca era
encontrar uma voz como escritora e experimentar o ofício da poesia. (BASSNETT,
2005, p. 2, tradução nossa)4
É de extrema dificuldade encaixar os poemas de Sylvia Plath em apenas uma categoria, que
muitas vezes acaba sendo classificada como uma autora confessional ou que flerta
constantemente com a morte. Os sentimentos e angústias escritas por Plath não devem ser vistos
exclusivamente por uma lente ou com um objetivo de tentar apenas desvendar a mitologia e
símbolo da autora, antes mesmo de todos os adjetivos a ela abrituidos, Sylvia Plath é uma
mulher e suas palavras não reverberam no vazio, seus versos escritos sobre a depressão,
angústia, morte e família refletem o universo feminino.
4
“Many of the studies of her writing seek to make connections with episodes in her life, and it is certainly true
that on one level, Plath was a strongly autobiographical writer. Nevertheless, as she insisted and as Ted
Hughes has always argued, she did not see poetry primarily as a conduit for her personal feelings, but rather
as a conscious process of crafting through which experience and emotion could be refined in an alchemical
sense and transformed into something new. Hers is a poetry about searching for identity, and part of that
search was to find a voice as a writer and experiment with the craft of poetry.” (BASSNETT, 2005, p. 2)
25
O poema “Mirror” foi publicado pela primeira vez na revista New Yorker em 1963,
posteriormente viria a fazer parte da publicação do livro póstumo Crossing The Water:
Transicional Poems (1971), organizado por Ted Hughes. Mirror foi escrito em 1961, durante
a fase mais produtiva de Sylvia, dois anos antes de sua morte. O poema é narrado do ponto de
vista de um espelho em que, onisciente, observa uma mulher. A partir da segunda estrofe, o
poema assume um tom mais melancólico e filosófico em relação à mulher que o espelho vê,
trazendo à superfície a mortalidade da mulher.
As obras de Agnès Varda e Sylvia Plath se entrelaçam pelo fato de serem escritas por
mulheres e sobre mulheres. A utilização do espelho como meio entre as personagens e o mundo
abre uma nova percepção, ultrapassando a ideia de narcisismo feminino e obsessão com a
própria imagem e guiando para o caminho de entendimento do seu lugar no mundo e como a
figura feminina se vê em um mundo, além disto, uma imagem ou ideia não existe por si só,
muito menos se sustenta sozinha, o filósofo Emanuele Coccia discorre sobre o assunto:
5
Early responses to her poetry focussed on its darkness, on the imagery of blood and violence that appeared to
prefigure her eventual suicide. Later, her work was reassessed, particularly by feminist critics, who drew
attention to the power of her language, to the expressions of rage and outrage that run through her writing
and to the way in which her work can be seen as exemplifying many of the contradictions and dilemmas
faced by women struggling for self-realisation while endeavouring to conform to social expectations. While
some critics read into Plath’s work the story of a damaged individual whose death was the culmination of a
long flirtation with the idea of dying, others saw her as an Everywoman, whose poetry spoke of the pain of
being a women struggling to live up to impossible ideals of womanliness. ” (BASSNETT, 2005, p. 1)
26
Em Cléo de 5 á 7, após ter sua sorte lida nas cartas, temos o primeiro contato com os
espelhos do filme. A primeira figura refletida no espelho é a cartomante, seguida por Cléo,
mesmo ela se vendo refletida na superfície, a figura (de acordo com Coccia) que ela realmente
vê é a sua imagem reproduzida pelo olhar da cartomante, as cartas sendo um dos meios para a
análise da cartomante sobre Cléo e o espelho a reafirmação final da visão que ela tem sobre a
sua cliente, jovem e vaidosa, porém com pouco tempo a sua frente. A primeira imagem que
recebemos da protagonista é criada pelos sentimentos da cartomante, como dito por Coccia: “A
imagem é a forma vivendo em um outro corpo ou em um outro objeto. A objetividade, a
corporeidade, é, então, seu lugar, seu substrato, seu sujeito, mas não uma propriedade sua. ”
(COCCIA, 2010, p. 25). O contato com o primeiro espelho é breve e pouco marcante, como se
a pretensão fosse deixar as informações e sensibilidades dadas pela cartomante sobre a
personagem em segundo plano, sendo trazidas à luz apenas nos minutos finais do filme.
Figura 10 - Sequência na casa da cartomante (Cléo de 5 à 7, 1962)
Varda divide o filme em capítulos, com horário para iniciar e acabar, tendo início o
primeiro horário após Cléo sair da casa da cartomante. A partir do primeiro capítulo a relação
entre espelho e protagonista começa a ser desvendada. Ao chegar à entrada do prédio, Cléo para
novamente em frente a um espelho, estando localizado em frente a outro espelho, surge a mise
en abyme ou efeito Droste que consiste em uma imagem existindo dentro de outra imagem, no
caso a imagem de Cléo existe dentro da sua própria imagem e na poesia Mirror de Sylvia Plath
o espelho refletindo a parede oposta do quarto, de acordo com Coccia, existem quatro formas
de existência simultânea da imagem:
“Nesse momento, nossa forma existe em quatro modos distintos: como corpo
que se reflete no espelho, como sujeito que se pensa e faz experiência de si, como
forma que existe no espelho, e como conceito ou imagem na alma do sujeito pensante,
28
que lhe permite pensar em si mesmo. [...] O sensível é a multiplicação do ser. Pode-
se discutir se existe um único mundo ou infinitos. ” (COCCIA, 2010, p.33)
Durante o primeiro capítulo, após conversar com sua figura, seguimos com Cléo pelo
centro de Paris por três minutos até o início do segundo capítulo. Enquanto caminha em direção
ao café, Cléo é o centro de muitos olhares das pessoas que assim como ela estão na rua. Cléo é
uma cantora jovem e com uma fama modesta, com músicas cativantes e alegres (como virá a
ser discutido no capítulo seis pelo olhar de Bob), e sua beleza esguia com cabelos loiros, quase
brancos, chamam a atenção por destoar do estilo da Nova Onda, Rona Murray, professora de
Film and Media Studies na Holy Cross College no Reino Unido escreve que a escolha da atriz
Corinne Marchand teve um papel fundamental nestas características destoantes, o cabelo loiro
vai contra a naturalidade que os autores da Nova Onda perseguiam e pode até mesmo fazer
referência ao Star System do cinema norte-americano, com o qual visavam se afastar, além
disto, a magreza é um alicerce para a ênfase na doença da personagem:
A loireza, para esses novos cineastas, está associada à forma de cinema antiquada e
voltada para as estrelas. Sem saber a intenção de Varda, há algo vulnerável e frágil
em Cléo que sua loireza serve para enfatizar. Junto com seu corpo esguio, há a
sensação de que ela é uma presença leve - que poderia facilmente desaparecer de cena
- significando visualmente a sentença de morte que paira sobre essa personagem na
narrativa. (MURRAY, 2009, tradução nossa)7
Ao adentrar o café onde marcou de encontrar com Angèle, sua assistente, Cléo não é
recepcionada por olhares como na rua, ela parece deslocada e perdida enquanto tenta localizar
a assistente, como uma criança desorientada na multidão. Ao se encontrarem ela é questionada
pela supersticiosa assistente sobre a cartomante. Após falhar ao tentar consolar Cléo, a
protagonista recorre a um dos espelhos que preenchem o ambiente do café, reclamando para si
mesma sobre a frustração que teve com a leitura de cartas, que diferente do esperado, não serviu
nem mesmo como um simples alívio.
6 Cléo's image is reflected in multiple ways in the entryway mirrors. A fragmented and adorned object, she is a
substitute for something that is both there and not there. She becomes the woman she is not- a fantasy, a
fetishized object, someone to be looked at, reassuring rather than dangerous. Whether consciously constructed
to conform to the demands of masculine desire, Cléo's masquerade enables her to deceive and comfort herself
that she is healthy and to deny what she believes, given her symptoms and the prophecy of the fortune
teller. Cléo's consciousness is split into her knowing self and her denying self, corresponding, respectively, to
her interior self, where the illness is a reality, and her external self, whose beauty masks the illness. As Cléo
speaks to herself in the mirror, she is doubly fragmented. (MOUTON, 2001, p. 4)
7 Blondeness, for these new filmmakers, is associated with the outmoded, star-driven form of cinema. Without
knowing Varda’s intention, there is something vulnerable and fragile about Cléo that her blondeness serves to
emphasise. Together with her slim frame, there is a feeling of her being a slight presence – one which could
easily disappear out of the frame – signifying visually the death sentence that hangs over this character in the
narrative. . (MURRAY, 2009)
30
Durante todo o capítulo visto através de Angéle, Cléo age como uma criança. É
exagerada e deseja atenção, entreouve conversas de casais alheios no café e decide parar de
chorar quando sente que não tem mais a atenção direcionada a ela. As duas mulheres se
direcionaram a uma loja de chapéus para o final do capítulo, onde Cléo olha para a vitrine e
aponta “Eu quero aquele” com o brilho no olhar de uma criança em uma loja de doces. Angèle
questiona a escolha da mulher mais jovem, o uso de chapéu de pele no verão não é adequado.
A primeira ação de Angèle ao entrar na loja de chapéus é sentar-se em uma cadeira, colocando
a bolsa sobre seu colo e fitar Cléo com um riso de canto de boca, uma mãe observando sua
criança se divertindo. Cléo experimenta chapéu atrás de chapéu, aponta para outros e pede a
opinião sobre demais.
31
A loja é recheada com espelhos e Cléo passa por cada um deles com um diferente chapéu
e com poses diferentes, personificando o que cada chapéu transmite a ela. Ainda estamos
observando Cléo pelo olhar de Angèle, vemos uma jovem animada e com toda atenção voltada
a ela, criando novos sujeitos em frente a cada espelho e com cada chapéu vestido. Cléo não tem
controle sobre a sua imagem reproduzida pelo olhar de Angèle e transmitida por meio dos
espelhos, ela é fragmentada e multiplicada para fora de seu alcance e de sua percepção e Cléo
é a apenas vista assim por ser percebida por outra alma, a de Angèle. Não sabemos se esta
imagem produzida por Angèle sobre Cléo chega a mesma, quem a recebe é Angèle e o público.
O terceiro capítulo abre com outro monólogo de Cléo consigo mesma, em frente a um
espelho, assim como ocorre no primeiro capítulo, entretanto a diferença é que não vemos
primeiramente o espelho neste plano, a câmera serve como espelho para o público reproduzir a
imagem de Cléo. O uso da câmera nesta cena como alegoria para o espelho é um dos pontos-
chave do filme, dentre os muitos capítulos intitulados com o nome de pessoas que cercam Cléo,
temos acesso direto a imagem de Cléo por sua percepção e olhar, característica que apenas outro
personagem no filme consegue alcançar, Antoine, porém apenas ao final do filme.
Cléo é percebida inúmeras vezes como uma mulher deslumbrada com sua própria beleza
e juventude, e durante a uma hora e meia que a acompanhamos se torna perceptível que a
relação da personagem com o espelho e beleza vai muito além de puro narcisismo, pois é graças
ao espelho que podemos nos perceber no mundo, como Coccia escreve: “Como é apenas através
de um espelho que podemos nos tornar experiência para nós mesmos, também é apenas nos
32
meios que a nossa existência espiritual consegue se prolongar para fora de nós”. (2010, p. 47),
e para Cléo, se assegurar que ela ainda existe, que a morte e a confirmação da doença não
suprimiram seu desejo de viver, por mais que se distraia, o medo ainda existe ali.
A cena que abre o capítulo intitulado por Cléo a mostra experimentando um chapéu de
verão e novamente temos o voice-over da personagem, ouvimos suas pontuações sobre o
adereço que está experimentando. Cléo é uma mulher que reverbera o momento em que vive,
principalmente com o aparato da moda. O vestido acinturado de bolinhas, o cabelo loiro
ondulado e preso minuciosamente com a peruca a transformam numa boneca, o chapéu é mais
um enfeite à sua performance. Emanuele Coccia escreve que a moda para os seres humanos é
como o exoesqueleto: pelos, plumagens e escamas são para os demais animais, por não
possuirmos tais características, nossa specie utiliza tecidos, pedrarias e maquiagem para
reconhecer seus semelhantes e expressar sua individualidade dentro da comunidade, se tornar
reconhecido pelo que não nos pertence: “Ou seja, na moda somos nós mesmos que nos
transformamos em um meio, que nos tomamos o nosso próprio meio de existência enquanto
imagem”. (COCCIA, 2010, p. 86). Toda imagem necessita de um meio para sua reprodução e
assim, entrar em contato com o mundo e com outras almas, dessa forma, a moda é a forma
encontrada pelos humanos para repercutirmos a nossa existência utilizando nossos corpos como
meio para reverberação de nossas imagens e almas, sem necessitar recorrer ao espelho para tal
função.
Em umas das últimas interações com o espelho, Cléo altera a cor e tecido dos chapéus,
passando de cores claras e tecidos leves para a cor preta. O chapéu preto com um fino véu que
cai sobre o rosto acompanhado da frase que a cor lhe cai bem é um chiste a todo o filme, se aos
33
minutos iniciais a cartomante viu a morte no baralho, Cléo escolheu seu próprio chapéu para
seu funeral. O último chapéu provado é um gorro pontudo e preto, que contra as observações
iniciais de Angèle, Cléo o coloca na frente do espelho e decide ser o chapéu que irá comprar.
A estampa de bolinhas do vestido com o chapéu pontudo a transformam em uma palhaça,
destoando da personagem personificada por ela anteriormente e ilustrando a situação em que
está atuando:
Nos primeiros vinte minutos do filme, Cléo usa um vestido brilhante sem mangas,
com bolinhas grandes e caprichosas, sobre uma saia de baixo escura. Esse traje faz
dela a própria caricatura de uma estrela, chamando a atenção para sua personalidade
brilhante e "vale-tudo" e para suas características físicas relacionadas ao gênero. O
fato de o público estar ciente da angústia mental que nem o vestido nem a boca do
arco do cupido podem ocultar faz com que a roupa se destaque como um traje,
totalmente separada da pessoa por baixo. Quando, em uma chapelaria, ela escolhe um
gorro pontudo, enfeitado com pele, a fantasia está completa: ela é uma palhaça.
(NELSON, 1983, p. 738, tradução nossa) 8
8 For the first twenty minutes of the film, Cleo wears a bright, sleeveless frock, with big, whimsical polka dots,
over a dark underskirt. This costume makes of her the very caricature of a starlet, calling attention to her
bright, "anything-goes" personality and to her gender-related physical characteristics. The fact that the
audience is aware of the mental anguish that neither the dress nor the cupid's bow mouth can conceal makes
the clothing stand out as a costume, quite separate from the person beneath. When, in a hat shop, she picks out
a little, pointed, furtrimmed bonnet, the costume is complete: she is a female clown. (NELSON, 1983, p. 738)
34
O chapéu é embrulhado e mandado ser entregue na casa de Cléo, de acordo com Angèle,
não se deve usar nada de novo nas terças-feiras, muito menos carregá-las! Terminando a compra
na loja, as mulheres buscam um táxi para irem para casa, com Angèle escolhendo o carro pelo
número na placa que demonstra não ser azarado. Na viagem para casa, surge o letreiro do quarto
capítulo, intitulado por Angèle novamente, porém neste capítulo, mal vemos Cléo, somos
recepcionados pela frenética cidade de Paris e por uma motorista que conta suas histórias sobre
a profissão. O único espelho presente em cena é o retrovisor do carro e que reflete apenas a
motorista. Durante a viagem, o rádio notícia a Guerra de independência Argelina que ocorreu
de 1954 a 1962, tal guerra irá, de certo modo mudar a percepção de Cléo sobre sua própria
mortalidade em um encontro inesperado no final do dia mais longo do ano.
Ainda no mesmo programa de rádio, a notícia de outra operação médica feita na popular
cantora Edith Piaf surge, explanando que o fato dela ter sobrevivido é um milagre. Edith Piaf
viria a morrer em 1963, vítima de uma hemorragia causada pelo câncer no fígado, Cléo escuta
a notícia enquanto espera o resultado de seu exame de câncer no estômago.
Neste capítulo conhecemos a casa de Cléo, pintada de branco do chão ao teto, com
poucos móveis, apenas a cama e a penteadeira pintadas de cores escuras, destoando do resto do
ambiente. Dentre os objetos que decoram as paredes, uma coleção de relógios em uma prateleira
e uma série de espelhos espalhados pelo cômodo. O primeiro movimento de Cléo dentro de
casa é se despir do vestido de palhaça e ser vestida por Angèle com um roupão branco,
volumoso e com plumagens nas mangas e na barra da roupa, novamente sendo vestida como
uma boneca por Angèle.
35
Ela usa uma combinação de renda na altura do quadril e uma camisola com
acabamento de penas, presa apenas no busto. Ela mantém o penteado louro que tinha
desde o início: um estilo bufante, com cachos de chifre de carneiro na lateral e uma
trança na parte de trás da cabeça, derramando-se em cachos petulantes na parte
superior e algumas franjas errantes na frente. Essa criação excessivamente estilizada,
em conjunto com o roupão revelador com babados, produz outra caricatura: o gatinho
sexy - e os inúmeros gatinhos reais que brincam em sua cama reforçam a mensagem.
(NELSON, 1983, p. 739, tradução nossa) 9
Se Cléo não demonstrava sinais de perceber a reverberação de sua imagem por Angèle no
café e na loja de chapéu, agora ela mostra que entende, “Você é minha melhor audiência” diz
para Angèle, e mesmo assim escolhe acolher a imagem criada sobre ela. De uma criança
mimada ela se torna uma boneca sexualizada com aparência angelical, uma kitty cat cercada
por seus gatinhos pretos na sua cama, até mesmo a bolsa de água quente que Angèle entrega a
Cléo é um gato.
O capítulo de Angèle termina com ela dizendo para Cléo não mencionar que está doente para
o amante da cantora, que está vindo fazê-la uma visita, pois homens não gostam disso.
Figura 17 - Coleção de relógios na casa de Cléo (Cléo de 5 à 7, 1962)
9 She wears a hip-length lace slip and a feather-trimmed negligee, fastened only at the bust. She retains the blond
coiffure she has had from the beginning: a bouffant style, with ram's-horn curls on the side and a braid up the
back of her head, spilling out in flippant ringlets cross the top and a few errant bangs in front. This excessively
styled creation, in conjunction with the frilly, revealing negligee, produces another caricature: the sex kitten-
and the numerous real kittens that frolic on her bed reinforce the message. (NELSON, 1983, p. 739)
36
Pela primeira vez em um capítulo de Cléo, não inicia com uma espiadinha no que a
personagem está pensando, mas ainda começa mostrando Cléo e um espelho. No pequeno e
prateado espelho de mão, podemos ler por sua expressão e toque o que não nos foi dito, ela
busca por reafirmação, de sua beleza, de que sua saúde externa está intocável.
O amante de Cléo nem mesmo possui um nome e sua presença em cena se resume a dois
minutos e meio, mas pela primeira vez o nome de Cleópatra é pronunciado. Aqui é apresentada
mais uma faceta de Cléo, a artista, performance e atriz. Em seu encontro com o amante, ela nem
mesmo recorre ao espelho que tem pendurado ao lado da cama para captar a sensibilização de
sua imagem por seu amante pois, de acordo com a mesma, ele não se importa com ela, esta
reprodução já está totalmente desvendada e defasada. E Cléo não conta a seu amante que está
doente.
Figura 18 - O amante de Cléo em sua breve visita (Cléo de 5 à 7, 1962)
O encontro com o amante precede o ensaio com os músicos e quando o homem sai do
apartamento da cantora, ela vai até a penteadeira conferir sua aparência e preparar sua próxima
atuação. A cena é extremamente rápida e pode passar batida a um primeiro olhar sobre o filme.
Ela recorre ao espelho antes de reclamar sobre seu relacionamento amoroso para
Angèle, conferindo no reflexo se sua aparência está intacta. Assim como na primeira cena, aqui
ocorre um mise en abyme, porém sem ser por intermédio direto dos espelhos presentes no filme.
Em Mirror, o mise en abyme ocorre através da narração, o poema foi escrito por Plath mas
quem é a voz lírica é o espelho que observa uma mulher, que possivelmente é a própria autora,
no filme, a personagem Cléo é interpretada pela atriz Corinne Marchand, que se vê
interpretando uma personagem interpretando outra personagem, uma atriz dentro da atriz,
37
fazendo o filme e a realidade se chocarem. O efeito da mise em abyme ocorre quando uma
narrativa existe dentro de outra e em Cléo de 5 á 7, a realidade dos acontecimentos históricos
como a narrativa base da própria história e a história em si se entrelaçam, pois, além de ser um
filme ficcional também é um documentário sobre Paris nos anos 60.
Figura 19 - A cantora conferindo sua aparência no espelho da penteadeira (Cléo de 5 à 7, 1962)
A solidão e o medo são expressos no diálogo com a assistente, Cléo confessa que queria
ter contado ao amante sobre sua doença, que ele deveria ter sentido que algo não estava certo
com ela, que no caso sentiria se realmente a amasse e aponta que ela parece ser a única que
lembra da enfermidade, ao que Angéle desconversa, usando a superstição para fugir do assunto,
mas Cléo é perseverante e continua a falar sobre sua aflição até a chegada dos músicos Bob e
Maurice para o ensaio.
Enquanto Angèle abre a porta da casa para os músicos, abre-se o sexto capítulo.
O sexto capítulo é visto pelo olhar do músico Bob, interpretado pelo compositor e
pianista Michel Legrand, responsável pela trilha sonora e composição da música que é o clímax
do filme, como virá a ser explicado mais à frente.
brancos como jalecos e um saco de pão como o chapéu de enfermeira. Cléo se desespera quando
vê a injeção enorme, em sua conversa futura com Antoine descobrimos que ela é medrosa, e
dentre seus muitos medos são de agulhas e injeções, e claro, a morte.
O capítulo visto por Bob é divertido e até mesmo a câmera adquire movimentos
brincalhões, com zooms seguidos por planos abertos, balanços e circulando o piano. Os músicos
fazem o que prometem e animam Cléo com as rimas brincalhonas e personalidades opostas.
Figura 20 - Bob provocando Cléo (Cléo de 5 à 7, 1962)
Finalizando o capítulo de Bob e transitando para o próximo cujo tom é de Cléo, o músico
questiona o talento da cantora, afirmando que ela gosta mais das músicas de Maurice por serem
letras mais fáceis de aprender e aprender a letra é apenas o que ela tem que fazer.
Evidentemente, o capítulo sete inicia com a crítica afiada de Bob sobre Cléo fazendo com que
ela desmanche a máscara divertida e burlesca, até mesmo as pessoas que trabalham com ela a
consideram superficial e que necessita de elogios e atenção o tempo todo. Cléo reclama que
zombam do talento dela ao que Bob replica “Que talento? ”, apenas Maurice tenta defender
Cléo.
39
O clímax do filme inicia com “uma peça de apresentação de estilo ária, abre com arpejos
dramáticos de piano em uma tonalidade menor em apoio a uma melodia resignada e letras que
descrevem a sensação de vazio que resulta de estar sem o amor de alguém. ” (NORELLI, 2016,
tradução nossa)10. A música chamada de Lágrimas de Amor foi alterada para Sans Toi (Sem
Você) na gravação do soundtrack do filme.
A canção abre com Bob tocando uma melodia que soa, de certa forma, triste e
desesperadora ao mesmo tempo e assim Cléo canta. A câmera circula o piano até o terceiro
verso, cujas palavras são menos direcionadas e mais amplas, podendo se aplicar a qualquer
pessoa, passando de um romantismo universal para um lamento existencial sobre a morte. A
câmera que circulava, para em frente a Cléo e fecha em um primeiríssimo plano no rosto da
personagem, agora ela canta diretamente para a audiência de seu filme, nos olhando nos olhos,
expressando todo seu desespero que se torna mudo para seus amigos, mas não para o público.
Mesmo não expressando com palavras próprias, a melodia triste reflete diretamente nos
sentimentos mais urgentes de Cléo, negligenciados pela mesma em detrimento de manter as
personas criadas sobre ela pelo olhar de outras pessoas, ela sente tudo. Cléo é humana, movida
por sentimentos, angústias, sonhos e pelo desejo de pertencer a uma comunidade, se tornar um
camaleão adaptando-se a como as pessoas a imaginam foi a sua forma de sobrevivência até o
momento em que a música escracha suas personificações. Agora ela entende que ela precisa se
perceber no mundo, por si mesma, em vez de ser olhada ela precisa também olhar. Emanuele
Coccia escreve que nos percebemos no mundo por termos almas que são capazes de reproduzir
e transmitir sentimento, deixando nossa imagem viva no mundo até mesmo após a morte e nesse
momento Cléo deseja deixar sua imagem por conta própria no mundo, sem intervenção direta
de outros.
E como dizer que toda imagem só existe na medida em que há uma alma por
trás dela, que a percebe ou que, através dela, está no ato de imaginar. Há sensível
apenas porque há viventes no universo (homem ou animal, aqui a distinção não tem
nenhuma importância): a condição de possibilidade da percepção (e,
conseqüentemente, da imagem) é, de fato, a existência de um sujeito. [...] se é verdade
que as coisas se tornam propriamente percebidas fora dos objetos, elas não aguardam,
porém, um sujeito para constituir-se como perceptos, como imagens. E, vice-versa, é
a existência do sensível que torna possível a sensação, e não o contrário: é porque o
visível existe que a visão é possível, e é porque a música existe que a audição é
possível. (COCCIA, 2010, p. 36)
10 “aria-style showpiece, opens with dramatic piano arpeggios in a minor key in support of a resigned melody
and lyrics that describe the feeling of emptiness that results from being without one’s love.” (NORELLI, 2016)
40
Figura 21 - Cléo cantando Sans Toi e sobre sua mortalidade (Cléo de 5 à 7, 1962)
Fazendo uma prece por empatia, uma única lágrima escorre dos olhos de Cléo quando
canta “sem você”, tudo o que ela precisa é de alguém que lhe compartilhe uma amizade que
possa auxiliá-la em busca de sua verdade. No poema de Sylvia Plath, o espelho acusa a lua e as
velas de modificarem a aparência da mulher refletida, chamando-os de mentirosos, a assistente
de Cléo, seu amante e os músicos são como a lua e as velas do poema. Mirror de Sylvia Plath
se entrelaça ainda mais com o filme de Varda ao mencionar o medo do amadurecimento,
consequentemente, o da morte, uma aflição sentida pelas duas personagens.
“Ela descarta a natureza efêmera da música e, por extensão, ela mesma, chorando ‘O
que é uma música, quanto tempo pode durar?’ Se uma música não pode funcionar fora de sua
existência, então como pode possivelmente durar quando ela se for? ” (NORELLI, 2016,
tradução nossa)11, este questionamento é um dos principais que Coccia faz em A Vida Sensível,
que de acordo com o autor, a imagem se multiplica por vontade própria. O fato de Bob e
Maurice terem escrito a música já a transforma em uma imagem no mundo e Cléo a reproduz,
transformando-a em outra imagem. Mesmo que Cléo venha a falecer, a música irá manter a sua
memória viva pois hoje uma conexão entre sentimento e alma: “A reprodução é o movimento
supremo da transmissão [...] A reprodução está por toda parte, em todos os seus gestos,
materiais ou espirituais: a vida não faz senão produzir-se em imagens de si, emitir imagens. Da
mesma maneira, em toda imagem o vivente multiplica a si mesmo”. (COCCIA, p. 95).
Figura 23 – Cléo abandonando o ensaio (Cléo de 5 à 7, 1962)
Quando termina de cantar, Cléo não suporta mais ser uma boneca e seus sentimentos
começam a se expressar, ela é chamada novamente de caprichosa e de infantil por Bob, que ela
não poderia escolher quais músicas irá cantar por não saber ler partitura, sendo que Bob nunca
se incomodou em ensiná-la, ela não recebe apoio de Angéle. Rapidamente ela busca novamente
certificação em frente ao espelho, como se desse uma última olhada rápida nas imagens de si
que irá abandonar, “A máscara, no fundo, é esse paradoxo, o paradoxo da medialidade, aquele
pelo qual nosso corpo é meio, veículo que transforma nós mesmos em imagem e que nos força
a apropriamos de imagens para dar forma ao nosso corpo. ” (COCCIA, 2010). Ela troca o
roupão branco e plumado escolhido por Angèle por um vestido preto simples e arranca a peruca
que usava desde o início do dia, penteando o cabelo de deixando-o mais natural e liso, sem os
11
“She dismisses the song’s ephemeral nature and, by extension herself, crying ‘What’s a song, how long can it
last?’ If a song cannot function outside her existence, then how can it possibly endure when she is gone?”
(NORELLI, 2016
42
cachos minuciosamente feitos, e para completar a vestimenta, o novo chapéu, que não deveria
ser usado na terça-feira. A palhaça está pronta para desmontar seu próprio circo.
Ao sair de casa a primeira pessoa que encontra na rua é uma criança brincando com um
pianinho. Até mesmo uma criança pequena pode aprender música.
Ela anda sem rumo pela rua e é recebida com muitos olhares, boa parte masculinos e a
primeira companhia a qual recorre é a de um espelho na vitrine de uma loja, onde resume para
si mesma e para o espectador toda a primeira parte do filme. Quando fala em deixar-se nua,
Cléo afirma querer se livrar de todas as máscaras criadas por outros que ela vestiu, “A máscara,
no fundo, é esse paradoxo, o paradoxo da medialidade, aquele pelo qual nosso corpo é meio,
veículo que transforma nós mesmos em imagem e que nos força a apropriamos de imagens para
dar forma ao nosso corpo. ” (COCCIA, 2010, p. 88). Desse modo, ela precisa primeiramente
ficar nua para poder apropriar sua própria imagem no mundo.
O capítulo número oito possui um detalhe diferente dos outros: não é apresentado pelo
nome de um personagem, mas pela expressão “Quelques Autres”, alguns outros. Cléo se
direciona a um café movimentado e coloca uma de suas músicas para tocar no jukebox e
caminha pelo estabelecimento, sem que quase ninguém que está no café a olhe ou mesmo
reconheça que ela existe ali naquele momento. Dentre as inúmeras mesas, ela encontra uma
vazia, ao lado de uma coluna espelhada irregularmente. O rosto de Cléo é refletido
fragmentadamente nos espelhos: as múltiplas imagens que ela absorveu de si mesma se
apresentam todas ao mesmo momento.
12
“But the faceted mirrors in the Dome are clearly the forerunners of the flashbacks: Cleo's identity is fragmented,
too. Now the two ideas lend: her self image is fractured by the multifarious demands those who know her make
upon her, and her desire to fulfill these demands is a cancer of uncontrollably dividing cells within her brain,
splitting her personality as surely as the physical cancer is breaking her body” (NELSON, 1983, p. 740)
44
Dentro do café, Cléo passa por outros espelhos e não olha para nenhum deles e assim,
saí do café. Enquanto caminha pela rua, ela é vista por outras pessoas, olhares de curiosidade,
desejo e inveja, por parte de homens e mulheres mas começamos também a ver essas pessoas,
não como espectadores, mas através do olhar de Cléo, pessoas pelas quais ela passou na rua,
Angéle, seu amante, Bob, a cartomante, ela enxerga a todos. Ela está passando de objeto a
observadora e entende que “que os verdadeiros espelhos de nossa existência são os olhos dos
outros”. (NELSON, 1983, p. 740, tradução nossa)13. A última imagem do flashback é
justamente a peruca cacheada que foi jogada em cima do espelho da penteadeira.
Figura 27 - Peruca loira de Cléo pendurada na penteadeira (Cléo de 5 à 7, 1962)
Em uma galeria artística, alunos esculpem uma mulher em gesso usando Dorothée como
modelo, pelos olhos de Cléo vemos curiosidade nas formas presentes na galeria e na
concentração dos estudantes que olham rapidamente para a forma nua de Dorothée para
referência em sua escultura. E assim somos apresentados a Dorothée e a seu capítulo.
Contrapondo tudo o que foi falado sobre Cléo por Angéle, Bob e pela cartomante, a primeira
coisa que Dorothée pensa sobre a amiga é como ela é agradável de ir encontrá-la no ateliê.
A confidência de Dorothée sobre seu corpo e sobre estar nua em frente a uma equipe de
estudantes é aterrorizante para Cléo, a mesma admite que teria medo de encontrarem algum
“defeito” em seu corpo, mas a questão é justamente essa, um corpo para um artista plástico não
passa de formas e não é nada além de um simples corpo. Vale ressaltar que Cléo também sente
medo de a doença sair do interior para o exterior, alterando sua aparência. Durante o passeio de
carro com Dorothée, ela admite que prefere que a doença seja assim, porque pelo menos não
pode ser vista.
13
“the true mirrors of our existence are the eyes of others.” (NELSON, 1983, p. 740)
45
Dorothée é a primeira amiga que expressa preocupação genuína pela possível doença de Cléo
e a deixa falar, e é também graças a Dorothée que descobrimos o nome do amante de Cléo:
José. A amiga para em um local por um momento deixando Cléo sozinha esperando no carro,
nesta cena é possível perceber uma das características da Nouvelle Vague, o falso raccord, ou
seja, um corte que em que dois planos não se completam, causando um desmembramento do
espaço/tempo do filme e quebrando a narrativa e fazendo com que o espectador comece a
questionar a construção da história. Neste falso raccord observamos a rua e as pessoas que
compõem e dão vida a cidade, hábito que vem crescendo em Cléo desde a metade do filme.
As duas mulheres dirigem até um cinema, subindo pelas escadarias traseiras e entrando na
sala de projeção em que Raoul, namorado de Dorothée trabalha. Cléo e Raoul não se viam a
muito tempo e o capítulo do homem é inteiramente dedicado a um pequeno filme que Cléo e
Dorothée assistem direto do melhor lugar do cinema, diretamente da sala de projeção e
estrelando dois amigos pessoais de Varda: Godard e Anna Karina. Novamente, na mise-en-
abyme, o filme dentro do filme é sobre o personagem de Godard colocando óculos escuros e
confundido sua amada Anna com outra mulher após as suas despedidas, ele apenas percebe o
erro quando finalmente retira os óculos escuros.
Despedem-se de Raoul assim que o curta acaba e descem pelas mesmas escadas as quais
subiram e Dorothée deixa sua bolsinha cair, esparramando todo o conteúdo no chão, entre eles,
um espelho agora quebrado. O último capítulo de Cléo com um espelho começa com uma
superstição de morte e ouvimos novamente Cléo pensando após um bom tempo. Enquanto Cléo
enxerga o espelho quebrado como um presságio de morte, não indica necessariamente que tipo
de morte será, pode ser devido a sua doença ainda sem resultados, mas também pode ser sobre
a morte da sensibilização e das máscaras da réplica de sua imagem por outras pessoas, Cléo
14
“The little film-within-the-film, in which a man commits a grotesque error because he is wearing dark glasses,
provides a first lesson: the costumes we don't to protect ourselves from outside harm change our own
perception of the outside world. If Cleo has been dressing in order to influence others (and she once wears
sun glasses in a ridiculously unnecessary effort to remain incognito), it is partly because she is too self-
centered. Others are best seen as people, not as mirrors” (NELSON, 1983, p. 740).
46
está finalmente se libertando por inteira. Sofrer uma influência não quer dizer transformar se,
mudar de identidade. Coccia escreve que:
Podemos sofrer uma influência sem nem mesmo dar nos conta disso, na perfeita
convicção de continuar como aquilo que há de mais pessoal em nós. Ser influenciado
significa ter acolhido uma forma que vem do exterior sem ser alterado. Imitação e
influência são a vida própria do sensível. Lá onde há uma imagem, há influência.
(COCCIA, 2010, p. 72)
Todavia, Cléo tinha percepção da influência que recebia e escolhia retirar o que existia de
mais pessoal em si, em vez de ser um ser sensível, ela se tornou um meio para a sensibilização,
assim como o espelho. Ela refletia fielmente o que os outros viam nela.
Figura 28 - Cléo vê um presságio de morte no espelho quebrado (Cléo de 5 à 7, 1962)
A caminho do taxi, Cléo e Dorothée são surpreendidas por uma multidão aglomerada
em frente a uma loja, ao questionarem o que aconteceu vendo um vidro quebrado, assim como
o espelho que acabaram de quebrar, descobrem que um homem foi morto com um tiro. O medo
de Cléo sobre o destino é evidente e Dorothée percebe, sendo solidária e confortando a amiga,
afirmando que o agouro de morte do espelho quebrado fora para o homem morto na loja e por
mais que Dorothée não seja supersticiosa como Cléo, ela encontra uma maneira de acalmar a
amiga de uma forma eficaz. Cléo presenteia a amiga com o chapéu de palhaça já que não
necessita mais dele, nem mesmo para irritar Angéle.
E desse modo, despede-se de sua amiga, a vendo subir pela escada da Rue des Artistes.
47
Seguindo o seu caminho, ela vai até Parc Montsouris, uma localidade destoante do resto
da cidade coberta com concreto e vitrines, no parque a natureza se estende e é misturada com
crianças correndo pelo local. A cidade também é um organismo vivo e o mundo é, de acordo
com Coccia, o mundo é nossa pele, o órgão que se embaraça com a imaginação e é por meio de
nossa pele/mundo que a nossa linguagem possa existir fora de nós, pois a cidade é feita por
identidades de mulheres, homens e outros e por esse motivo ela existe, para reproduzir a
imagem de todos os seres humanos e transmitir suas almas.
A linguagem não é senão uma voz que se tornou capaz de toda e qualquer
forma de som, assim como a roupa não é senão uma pelagem que se tornou capaz de
identificar-se com todos os corpos do mundo. O homem é o animal capaz de
transformar todas as coisas em sua pelagem: ou melhor, em sua pele. E, vice-versa,
de transformar sua pele em objeto mundano: a linguagem. Nesse sentido, o homem
não faz a experiência do aberto, ele está aberto. Entre ele e sua pele, há o mundo.
(COCCIA, 2010, p. 87)
Além disso, é importante ressaltar a fragmentação de Cléo que ocorreu no café e com o
espelho quebrado que se ligam a criação da cidade como um espaço totalmente fragmentado.
Devido ao senso de comunidade existente dentro de uma pólis e da formação de identidade
humana que ocorre ao conviver com outros de sua espécie.
Cleo sempre se sentiu fragmentada, ela não fica chocada ao descobrir que a
cidade também consiste em fragmentos. Seu processo de transformação é ecoado pela
variedade implacável da cidade. Não há totalidade ou permanência a ser buscada,
nenhuma expectativa para a mulher ou para a cidade de chegar a uma identidade fixa.
(MOUTON, 2001, p. 9, tradução nossa)15
15
“Since Cleo has always experienced herself as fragmented, she is not shocked to find that the city also consists
of fragments. Her process of transformation is echoed by the city's relentless variety. There is no wholeness or
permanence to be sought, no expectation for the woman or for the city of arriving at a fixed identity”
(MOUTON, 2001, p. 9)
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forma exagerada e cantando Meu corpo precioso e caprichoso / O cerúleo de meus ossos
ousados / Minha isca fascinante que fica em espera / que nunca enganará e que o mundo deseja
provar / O sabor dos meus charmes e sorrisos. Seu pequeno momento de fantasia e aclamação
de um público sobre uma apresentação glamurosa é seguido por uma caminhada solitária em
direção a uma pequena cachoeira que brota entre as pedras do parque.
O último espelho do filme reside nesta cena, não em forma de vidro ou de pessoa, é uma
cachoeira pequena que cria um breve laguinho e Cléo se vê refletida por outro ser além dela
pela última vez. A ligação entre a significação dos reflexos no filme e no poema de Plath se
torna estreita ainda mais. O espelho no poema descreve que se torna um lago e quando passa
apenas de uma forma que reflete para uma que também absorve medos, torna-se capaz de
resgatar medos escondidos, no caso tanto para Cléo quanto para a mulher do poema de Plath, o
medo do amadurecimento e morte, e assim, novamente como na poesia, as duas mulheres se
curvam em frente ao lago em busca de quem realmente são.
Não vemos o reflexo de Cléo no lago e não ouvimos suas perguntas feitas sobre si
mesma para este espelho como ocorria em seus capítulos anteriores. O breve momento sozinha
ao lago serve para o espectador como a conexão silenciosa entre Cléo e o controle sobre sua
própria imagem refletida na água turbulenta que não cabe a mais ninguém além dela mesma
olhar.
O soldado Antoine se aproxima novamente de Cléo e devido ao novo caminho que Cléo
escolhe percorrer em sua jornada, os dois conseguem conversar abertamente sobre o medo da
morte, ela devido ao câncer e ele por ter que voltar a Argélia para lutar em uma guerra que ele
mesmo considera desnecessária. Assim como Dorothée, Antoine encoraja Cléo a continuar por
esse novo caminho e a aprender a ver para além de si, a diferença é que Antoine pode se tornar
próximo de Cléo devido a essa mudança já que ele não era um amigo antigo de Cléo como
Dorothée é.
Os dois novos conhecidos pegam o ônibus (sugestão de Antoine em vez do táxi por
parte de Cléo) para irem até o hospital falar diretamente com o médico de Cléo sobre o resultado
do exame. E assim inicia o último capítulo do filme, intitulado por CLÉO et ANTOINE. Caso
a supersticiosa Cléo soubesse que sua história fora dividida em capítulos e o último é justamente
o número treze, com certeza veria como um mau agouro.
Conversando sobre o verão, Cléo revela que seu verdadeiro nome é Florence e que Cléo
é abreviação de Cleópatra, e naturalmente Antoine relaciona o nome Florence com a natureza
que floresce e se transforma, assim como a protagonista. Juntamente com os passos deles, a
música Sans Toi ou Lágrimas de Amor os segue com um arranjo diferente, “bandolim, harpas,
cordas e instrumentos de sopro, uma interpretação de câmara mais íntima e calorosa da música”
(NORELLI, 2016, tradução nossa)16.
16
“mandolin, harps, strings and woodwinds, a more intimate, warm chamber interpretation of the song.”
(NORELLI, 2016)
50
Na viagem de ônibus até o hospital, o casal de amigos discute a nudez e como ela é
alarmante para Cléo enquanto é sensual e frágil para Antoine. Para ele, a pele faz parte do
desejo, mas também ao se despir, se torna completamente vulnerável e mortal. Conforme
escreve em seu livro, Coccia diz que a roupa se transforma como um “segundo corpo” e que
serve para ser preenchido com aparência, dessa maneira, o segundo corpo que é sustentado pelo
corpo anatômico (o composto por nossa pele) é a maneira que faz o corpo anatômico ser notado
no mundo. Estaremos sempre fadados a buscar uma “nova pele” pois a nudez é se alienar sobre
o que constitui nossa pele, nos reconhecer além de nossa aparência.
Na chegada ao hospital, o casal procura pelo médico até serem informados que ele não está
naquele local, então resolvem caminhar juntos pelo jardim onde muitas pessoas idosas e doentes
os observam e também passam tempo ao ar livre dentro do terreno do hospital. Cléo e Florence
sente medo de saber o resultado do exame e tem pouco tempo para encontrar o médico e pouco
tempo junto antes que Antoine vá embora para Argélia. Mas agora que ela entende como ela
pode continuar viva neste mundo mesmo após a morte, diz para Antoine que os dois têm tempo.
Figura 31 - Florence e Antoine no jardim do hospital (Cléo de 5 à 7, 1962)
O médico encontra Cléo/Florence mas para ele, o câncer não é uma questão de cartas
ou superstição, é ciência e pode ser tratado. Varda nos dá um presente enorme com este filme,
nos mostrando todas as possibilidades abertas para novos olhares e caminhos pelos quais
podemos ver, assim como essa análise é um olhar sobre o filme, muitas outras também podem
surgir, principalmente sobre a arte. A arte sendo a sensificação de todo sentimento humano, um
51
meio por onde se transmite. E Florence compreende que ela também deixou de ser um meio e
se tornou uma vivente, ela finalmente enxerga além das máscaras criadas por outros, percebe a
fragmentação da cidade devido ao sentimento depositados por todas as pessoas que compõem
aquela comunidade e percebe que por seus sentimentos terem tocado Dorothée e Antoine, ela
viverá para sempre.
O vivente não faz senão reproduzir-se em mil formas e modos. Então, o sensível, a
imagem, é o ser em ato dessa reprodução infinita. E todo animal é tanto mais capaz
de se reproduzir quanto mais é tocado pelo sensível. Assim, se chamará vida nada
além do que a capacidade de preservar e emanar imagens. (COCCIA, 2010, p. 95)
Florence e Antoine caminham lado a lado, aceitando sua mortalidade iminente, seja pela
doença, pela guerra ou por simplesmente serem humanos, pois sabem que existirão para sempre
neste mundo, pois seus sentimentos tocaram um ao outro, e a mim também.
Figura 32 - Florence e Antoine caminham juntos (Cléo de 5 à 7, 1962)
52
O filme de Agnès Varda e o poema de Sylvia Plath são complementares não apenas for
terem o espelho como meio de transformação, mas também por apresentares mulheres
utilizando esse meio para compreender o que a mudança, consequente da maturidade, altera em
suas visões de si mesmas dentro de do mundo. Mais um tema que conecta essas duas obras é o
inescapável medo da morte que ronda as duas mulheres protagonistas. O poema foi escrito em
1961 e o filme foi rodado em 1961 e tendo sua primeira exibição em 1962. Mesmo não se
conhecendo ou tendo qualquer tipo de amizade na época, essas duas mulheres obtiveram uma
conexão inesperada e profunda entre suas obras, que permite com que sejam lidas de forma
conjunta, como feito neste trabalho.
Originalmente escrito em inglês, o poema passa por disparidades quando traduzido para
(outras) línguas, como o português. Na língua anglo-saxônica, as terceiras pessoas do singular
e plural não possuem distinção de gênero, diferente de como ocorre nas línguas latinas, desse
modo, “Mirror” que poderia ser lido originalmente tanto como um objeto (ou no caso do poema,
como entidade) agênero, se torna masculino quando lido em português.
A voz lírica do poema é dúbia, por ser um poema escrito por Sylvia, ela seria a voz lírica
primordial, todavia, a voz que lemos no poema é a do espelho. O objeto narra a transformação
de uma mulher, esta mulher podendo ser Sylvia Plath. Além disso, o poema é formado por duas
estrofes com nove linhas cada, construindo a propriedade física de reflexão do espelho, como
dito pela professora de literatura americana Jo Gill:
Ele assume a voz do espelho ao declarar seus próprios atributos, sua neutralidade
(‘unmisted by love or dislike’) e seu papel ostensivo como mero refletor em vez de
criador. Esse hermetismo de auto-satisfação, porém, sutilmente dá lugar a algo um
pouco mais criativo e produtivo. Embora em um nível o espelho continue
simplesmente a replicar o que vê diante dele, em outro - e especificamente nas linhas
finais cada vez mais longas do poema - ele assume um papel totalmente mais criativo
e imaginativo. É como se o reflexo ultrapassasse as bordas da moldura. (GILL, 2008,
p. 63, tradução nossa)17
17 “It assumes the mirror’s voice as it declares its own attributes, its neutrality (‘unmisted by love or dislike’) and
its ostensible role as mere reflector rather than creator. This self-satisfied hermeticism, though, subtly gives
way to something rather more creative and productive. Although on one level the mirror continues simply to
replicate what it sees before it, on another – and specifically in the poem’s lengthening closing lines – it
assumes an altogether more creative, imaginative role. It is as though the reflection exceeds the edges of the
frame.”. (GILL, 2008, p. 63)
53
O espelho de Sylvia, que fica pendurado em seu quarto, é prata e exato, sem preconceitos
e apenas reflete o que vê, sem alteração da imagem, apesar de ser considerado cruel, é apenas
honesto, ou pelo menos é o que ele nos conta sobre si mesmo. Tanto tempo passa fitando a
parede rosa oposta a si que a considera parte de seu coração. O espelho é separado da imagem
da parede por outras pessoas, vultos e vozes, que eventualmente se aproximam para verem suas
imagens refletidas durante a noite.
Dentro da prata desse espelho, que agora se vê como um lago, uma jovem mulher é
inicialmente engolida pelo pequeno deus, para ser afogada. O reflexo da jovem é revisitado por
uma velha, que tem sua aparência alterada por velas e pela lua, que diferentes do espelho, são
mentirosas, pois modificam a imagem real. A velha sofre em detrimento da jovem ali, afogada,
e é fadada a ressentir eternamente o medo da imagem que agora vê de si mesma, refletida pela
exatidão do espelho/lago, e sente medo do terrível peixe que vive agora, na profundidade do
espelho, a velhice.
A fala reprimida feminina vem à tona através de um espelho falante e a mulher adquire
o poder de manipular sua linguagem e a evidência que o espelho fornece: ela se torna
a escritora que escreve sobre o espelho em que se percebe e sobre o espelho que é. Ela
se torna o texto em que ocorre aquela gravação. (GEORGANTA, 2010, p. 114,
tradução nossa)18
18 “The female repressed speech comes to the surface through a speaking mirror and the woman acquires the
power of manipulating her language and the evidence that the mirror provides: she becomes the writer who
writes of the mirror in which she perceives herself and of the mirror she is. She becomes the text in which that
recording occurs”. (GEORGANTA, 2010, p. 114)
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que o espelho adquire, porém, não engolindo comida ou oxigênio, mas angustias e verdades,
reforçando o aspecto de uma criatura, ou como se auto intitula o espelho no poema, little god
(pequeno deus).
Este pequeno deus também é capaz de mudar de forma, ao início da segunda estrofe
deixa de ser um espelho e se transforma em um lago, onde abriga o temido peixe e onde a jovem
foi afogada. A jovem afogada pode ser interpretada como uma versão mais nova da velha que
explora o lago, revelando o medo do envelhecimento e maturidade, este substantivo para
mulheres implicando não apenas mudanças psíquicas, mas corporais também. Sylvia escreve
sobre o temor do envelhecimento em cartas enviadas para sua mãe e publicadas no livro Letters
Home: “Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de me casar. Poupe-me de cozinhar três
refeições por dia, poupe-me da gaiola implacável da rotina e da rotina. Eu quero ser livre. Eu
quero, eu acho, ser onisciente. ” (1975, tradução nossa). No filme de Agnés Varda o mesmo
medo é pertinente na personagem Cléo, como apresentado no capítulo anterior, a discordância
é em que momento da vida este medo se apresenta para ela, o medo de envelhecer rápido demais
por causa de uma doença e vir a morrer. Neste lago, a mulher entende que é impossível viver
no passado.
Nossa forma adquire um ser diferente daquele natural, um ser que os escolásticos
chamavam esse extraneum, ser estranho, ser estrangeiro. O ser das imagens e o ser da
estranheza. Isso significa que as imagens não têm um ser natural, mas sim um esse
extraneum-, entre o corpo e o espírito, que dão lugar ao ser natural, há um ser estranho,
estrangeiro. (COCCIA, 2010, p.17)
Este pequeno deus também é capaz de mudar de forma, ao início da segunda estrofe
deixa de ser um espelho e se transforma em um lago, onde abriga o temido peixe e onde a jovem
55
foi afogada. A jovem afogada pode ser interpretada como uma versão mais nova da velha que
explora o lago, revelando o medo do envelhecimento e maturidade, este substantivo para
mulheres implicando não apenas mudanças psíquicas, mas corporais também. Sylvia escreve
sobre o temor do envelhecimento em cartas enviadas para sua mãe e publicadas no livro Letters
Home: “Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de me casar. Poupe-me de cozinhar três
refeições por dia, poupe-me da gaiola implacável da rotina e da rotina. Eu quero ser livre. Eu
quero, eu acho, ser onisciente. ” (1975, p.51, tradução nossa)19. No filme de Agnés Varda o
mesmo medo é pertinente na personagem Cléo, como apresentado no capítulo anterior, a
discordância é em que momento da vida este medo se apresenta para ela, o medo de envelhecer
rápido demais por causa de uma doença e vir a morrer. Neste lago, a mulher da poesia e também
Cléo entendem que é impossível viver no passado.
O inconsciente como discurso do Outro nos indica que não só ele é estruturado como
uma linguagem, mas que o lugar do Outro equivale ao lugar do código pessoal dos
significantes do sujeito. O grande Outro é o conjunto de significantes que marcam o
sujeito em sua história, seu desejo, seus ideais – eles sustentam suas fantasias
inconscientes e imaginárias. [...] E é no retorno do recalcado, através das
manifestações do inconsciente, que escapam ao controle do eu, que o sujeito
experimenta essa alteridade que nele se presentifica. (QUINET, 2010, p. 12)
No último verso de Mirror, Plath escreve que o terrível peixe emerge em sua direção,
ela não pode mais fugir do terrível animal por muito tempo pois em algum momento terá que
aceitá-lo e carregar consigo. Apesar de todas as alegorias e significados, o peixe é uma imagem
amedrontadora, mas que eventualmente deve ser entendido como parte de nós, parte do
autoconhecimento surge de compreender os mais profundos medos que sentimos de nós
mesmos, o medo do envelhecimento e consequentemente da morte é um deles.
19
I'm afraid of getting old. I'm afraid of getting married. Save me from cooking three meals a day, save me from
the relentless cage of routine and routine. I want to be free. I want, I think, to be omniscient”. (PLATH, p. 51,
1975)
20
“The terrible fish is the result of an attempt at self-definition, a 'fearful image of herself that has been
mysteriously inscribed on the surface of the glass' or, as William Freedman puts it, the demonic form that
threatened to tear the fragile membrane'. A turning point in her development, Mirror ‘represents a middle-
ground between the extremes of passivity and action, numbing self-cancellation and aggressive self-assertion',
a two-dimensional angel with the terrible fish ‘its concealed opposite and its concealed self’. (GEORGANTA,
2010, p. 115
56
Fonte: PaulKlee.net
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este trabalho, buscou-se identificar como o espelho serve de meio para a reprodução
da imagem no mundo analisando o filme Cléo de 5 a 7 (1962) de Agnès Varda e a poesia Mirror
(1961) de Sylvia Plath pela teoria do filósofo italiano Emanuele Coccia sobre a sensibilização
da imagem escrita no livro A Vida Sensível (2010). A análise inicia sobre como o misticismo
ao redor do espelho se apresenta desde a Grécia antiga e do Japão feudal e como continua até a
atualidade, esta introdução servindo para situar o foco da pesquisa.
No filme Cléo de 5 a 7 foi estudado a forma como a protagonista Cléo utiliza o espelho
para perceber como a reprodução de sua imagem ocorre nos olhos de outras pessoas e como ela
própria se transformou em um espelho para refletir essa imagem. Ao assumir tal imagem criada
por outras pessoas, ela se tornou uma mulher fragmentada e sem identidade própria, até o
momento em que não conseguiu mais sustentar tal faceta. Estudando o filme através da teoria
de Coccia, foi permitido esse entendimento e também a compreender como a imagem dela
reverbera pelo mundo e que irá se reproduzir independente de seu controle, pois a imagem tem
também vida própria.
O encontro de Cléo com Dorothée e posteriormente com Antoine a abriu os olhos para a
possibilidade de que ela também pode ver sua própria imagem no mundo e que ela não necessita
ser um espelho, muito menos que precisa se transformar em um espelho para que outros a vejam
como ela realmente é. Tal amadurecimento da personagem se torna possível pois ela se permitiu
abraçar novos sentimentos, entender quem ela se tornou e como o próprio mundo é a síntese de
imagens.
A vida sensível é a vida que se tornou possível através das imagens, a vida que as
imagens tornam possível. Assim, toda forma de aquisição, posse, reelaboração e
difusão do sensível deve fazer parte da mesma esfera. Do mesmo modo, as imagens
(o sensível) existem em nós, ou seja, são capazes de viver em nós também de formas
diferentes daquelas relativas ao conhecimento e à percepção, assim como também
vivemos do sensível com objetivos diferentes daqueles cognitivos. (COCCIA, 2010,
72-73)
Para Sylvia Plath e a poesia Mirror é o espelho que conta a história de uma mulher e o
objeto é o meio para a reprodução da imagem dela. A mulher é constantemente observada por
esse pequeno deus e ele engole e guarda os seus medos, entre eles, o do envelhecimento. Dentro
desse espelho uma jovem também vive, a versão mais jovem desta mulher que precisou ser
abandonada e junto dela, um horrível peixe nada à espreita, a espera de ser libertado.
58
Ali a forma do peixe é o que Coccia chama de extraneum, um ser estranho, estrangeiro.
O animal também é uma imagem da mulher, mas uma imagem que ela despreza e pretende
nunca assumir como sendo uma reprodução de sua alma no mundo externo.
Em suma, as duas obras se entrelaçam inicialmente pelo espelho, mas a profundidade
entre a relação de suas protagonistas com a síntese de suas imagens e sensibilização delas no
mundo é o que realmente as conecta. Além disto, as duas mulheres sentem medo do
amadurecimento e da morte, mas a partir do momento em que entendem que sua alma tocou o
mundo e das outras pessoas que as conheceram, se relacionaram com elas, seja dentro das suas
respectivas obras ou como espectadores, elas poderão viver para sempre.
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6 REFERÊNCIAS
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Iorque: Palgrave Macmillan, 2005.
CLÉO das 5 às 7. Direção de Agnès Varda. Paris: Georges de Beauregard, 1962. (90 min.),
son., P&B. Legendado.
GEORGANTA, Konstantina. A terrible fish is born: inescapable femininity in Sylvia Plath and
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https://digitalis.uc.pt/pt-
pt/artigo/terrible_fish_born_inescapable_femininity_sylvia_plath_and_w_b_yeats. Acesso
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LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. Rio de Janeiro:
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https://itpworld.wordpress.com/2009/05/01/varda-and-the-nouvelle-vague/. Acesso em: 02
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60
NELSON, Roy Jay. Reflections in a Broken Mirror: Varda's Cléo de 5 à 7. The French
Review, [S.I.], v. 56, n. 5, p. 735-743, 1983.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições
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OZAKI, Yei Theodora. Japanese Fairy Tales. New York: A.L.Burt Company., 1908.
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SJAASTAD, Elisabeth O.. Who’s afraid of Agnès Varda? Federation Of European Film
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