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Intensidades da imagem

Direção Editorial
Lucas Fontella Margoni

Comitê Científico

Profa. Dra. Christine Pires Nelson de Mello


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Profa. Dra. Lúcia Ramos Monteiro


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Profa. Dra. Edilamar Galvão da Silva


Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP)
Intensidades da imagem

experiência estética no cinema


– análises críticas a partir de Walter Salles

Cyntia Gomes Calhado


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografias de capa: do filme (2002)
do filme (2008)
do filme (1998)
Preparação e Revisão de Textos: Cristiane B. Futagawa [Sushi] – Gauche Arte Textual

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


CALHADO, Cyntia Gomes

Intensidades da imagem: experiência estética no cinema – análises críticas a partir de Walter Salles [recurso eletrônico] /
Cyntia Gomes Calhado -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

117 p.

ISBN - 978-65-5917-369-3
DOI - 10.22350/9786559173693

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Intensidades da imagem. 2. Experiência estética. 3. Cinema contemporâneo. 4. Walter Salles. 5. Narrativa como
acontecimento.; I. Título.

CDD: 778
Índices para catálogo sistemático:
1. Cinema 778
Ao mestre Walter Salles, por ter me ensinado
com imagens a potência política dos afetos.
Agradecimentos

À Profa. Dra. Christine Mello, pela orientação dedicada e zelosa, pela


delicadeza, pela generosidade em partilhar seus conhecimentos, pela con-
vivência durante esses anos e por ter acreditado em mim e nesta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Cristian Borges e à Profa. Dra. Jane de Almeida, pelas sábias
observações durante a banca de qualificação do doutorado, que me ajudaram
a aprimorar o trabalho, a ampliar as referências bibliográficas e a repensar
de forma decisiva a estrutura e os objetivos da tese que originou este livro.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), pela bolsa de doutorado concedida e pelo apoio financeiro para a
realização da pesquisa.
À PUC, ao Programa de Comunicação e Semiótica.
Ao Prof. Dr. Renato Pucci Junior, pela atenção e auxílio na realização
do projeto de pesquisa.
Aos pesquisadores e amigos da Sociedade Brasileira de Estudos de
Cinema e Audiovisual (Socine), em especial a Sancler Ebert, pelas trocas.
Aos pesquisadores e amigos do Grupo de Pesquisa Cinematografia,
Expressão e Pensamento, especialmente a Rogério Luiz Oliveira, pelas pa-
lavras do texto de Apresentação.
Aos amigos do Programa de Comunicação e Semiótica, Felipe Neves,
Juliana Garzillo, Lucas Lespier, Pablo Villavicencio e Patricia Nechar, pela
cumplicidade e risadas.
A Antônio José Silva, pela formação, exemplo de resistência e inspi-
ração na docência.
A Vanessa Iurif, pela amizade.
A meus pais, Carlos e Sandra, avós, Lydia e Stella, e irmã, Tays, por tudo.
Sumário

Apresentação 13
Rogério Luiz Silva de Oliveira

Introdução 17

Parte 1 29
Narrativa audiovisual como acontecimento em suas relações com a experiência
estética da imagem
1. Da dramaturgia ficcional à dramaturgia plástica ...................................................................... 29
2. Atos narrativos de presentificação ................................................................................................. 34
2.1 Figural .................................................................................................................................................. 39
3. Ativação da sensibilidade háptica na experiência estética ................................................... 40

Parte 2 45
Análises críticas a partir de Walter Salles
4. Central do Brasil e a narrativa como acontecimento................................................................ 45
4.1 Análise da cena da romaria de Central do Brasil.................................................................. 46
5. Abril Despedaçado e as plasticidades espaciais da imagem cinematográfica ............... 54
5.1 Figural em Abril Despedaçado .................................................................................................... 55
5.2 Experiência de formas e cores em espaço bidimensional .............................................. 56
5.3 Círculo como motivo plástico condutor ................................................................................ 59
5.4 Experiência da intensidade do movimento ......................................................................... 60
6. Linha de Passe e os procedimentos fotográficos no cinema ................................................. 69

Parte 3 78
Intensidades da imagem no cinema contemporâneo
7. Vídeo como acontecimento na narrativa de Walter Salles ................................................... 78
8. Extremidades da imagem no cinema ............................................................................................ 91

Considerações finais 100

Referências 109
Apresentação

Rogério Luiz Silva de Oliveira 1

Em seu livro A vida sensível, o filósofo italiano Emanuele Coccia nos


inspira com as seguintes palavras:

Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos cir-
cunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens que
nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se escreveu,
não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada. (COCCIA,
2010, p. 9)

Os escritos contidos nesta publicação trazem reflexões que ampliam


e especificam o entendimento do excerto acima. Neste livro, a pesquisa-
dora e professora Cyntia Gomes Calhado apresenta análises fílmicas que
oferecem experiências de imersão em obras cinematográficas. As imagens,
neste caso, são tratadas como dispositivos para a manifestação sensória.
Aliando a argúcia de sua experiência como crítica com o rigor acadê-
mico de modelos teórico-metodológicos mobilizados por ela, a autora se
aprofunda na preocupação em compreender os caminhos pelos quais as
qualidades particulares da imagem se manifestam. A história, a psicaná-
lise, a semiologia, a semiótica, a psicologia. São todas áreas que, de uma
forma ou outra – sem que se queira filiar a investigação a todas elas ao
mesmo tempo –, são sugeridas no sentido de evidenciar as particularida-
des das tramas constituintes da narrativa visual de três filmes singulares

1
Professor de Direção de Fotografia do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (Uesb), autor do livro Fotografia e Memória: a criação de passados (Edições Uesb, 2014) e mestre e doutor com
estudos dedicados à imagem fotográfica.
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para a cinematografia brasileira: Central do Brasil (1998), Abril Despeda-


çado (2002) e Linha de Passe (2008). Responsáveis pela criação de padrões
imagéticos que habitam o imaginário cinematográfico do país, os filmes
servem como fornecedores da matéria-prima trabalhada ao longo dos ca-
pítulos. Os planos escolhidos para análise sintetizam não apenas os
contextos fílmicos e seus enredos, mas a própria experiência da direção de
fotografia, inegavelmente o foco do estudo.
Em se tratando da cinematografia, particularmente, o livro ecoa
questões e princípios fundamentais desse departamento da produção au-
diovisual: a relação câmera-corpo, a exposição, a iluminação, a
profundidade de campo, os movimentos de câmera, o aspect ratio (pro-
porção de tela), a noite americana, o contraste, a textura ou o foco. Nada
do que diz respeito à prática elementar da cinematografia parece passar
despercebido numa investigação que ainda evidencia a relação da direção
de fotografia com a história da arte ou mesmo com a arte fotográfica an-
tecedente (imagens fixas). Sem falar no diálogo com outros filmes da
história do cinema, um outro traço destacável e imprescindível à argu-
mentação promovida.
Mesmo diante dessa vasta enumeração que aponta para um pano-
rama tanto conceitual quanto dos princípios da direção de fotografia, o
exame sobre a atuação dos diretores de fotografia que assinam as obras
(Walter Carvalho e Mauro Pinheiro Jr.) é realizado segundo a maneira par-
ticular como essas imagens, por seus caminhos, tocam o sensível. E
contrariando o senso comum, não importa tratar de uma beleza alcançável
a observações superficiais. Pelo contrário, elege as intensidades da imagem
como objeto central. Faz isso tomando o belo como um conjunto de con-
tradições e subjetivações. Em lugar dos padrões convencionados por
consensos, argumenta em favor de traços e elementos imagéticos que
apontam para uma beleza expressa nas fissuras da imagem. Está nisso,
Cyntia Gomes Calhado | 15

por certo, a grande contribuição deste livro para o campo de estudos sobre
a imagem cinematográfica, já que o faz filtrando pela direção de fotografia.
Distanciando-se da busca de uma mera beleza, a tese desenvolvida
evidencia a relevância da direção de fotografia na construção narrativa ao
entender a imagem como ponto de encontro. Em sua postura teórico-me-
todológica, a autora evoca a pertinente ideia de dramaturgia plástica,
apresentada com a mediação de Jacques Rancière. Com isso, abre caminho
produtivo para a reflexão sobre espaço na/da imagem. Somam-se ao com-
plexo elaborado conceitos como disforme e figural, recorrentes ao longo
da história da filosofia. Aqui, recebem direcionamento visando o modo
como os elementos imagéticos são organizados no quadro cinematográ-
fico, a fim de se estender em reverberações sensórias disparadas pelas
técnicas de escritura do filme. São dois conceitos que auxiliam na busca
por respostas para uma questão estratégica: o que mais estaria nessas ima-
gens para além das formas realistas/representacionais?
Ao concentrar atenção na potencialidade e singularidade do plano,
elemento fundamental da narrativa cinematográfica, o livro oferta possi-
bilidade de investigar a ontologia da imagem cinematográfica. Dessa
busca, participam recursos como a memória, articulada no texto em duas
diferentes perspectivas: a primeira resulta do cabedal mnemônico aces-
sado para a leitura da imagem; a segunda advém das trocas culturais
promovidas entre pessoas criadoras de imagens com um passado estético.
Por essas razões também, e impulsionado pela materialidade da imagem,
o estudo que temos em mãos corresponde ao anseio de melhor entender a
imagem por meio das estratégias particulares da direção de fotografia.
Em franco desenvolvimento, o campo de estudos dedicado à cinema-
tografia ganha uma contribuição importante com esta publicação. Ao
entender a imagem cinematográfica enquanto acontecimento narrativo,
dá ênfase aos planos e sequências dos filmes dirigidos por Walter Salles.
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Ao arrazoar em torno da relação entre intensidade da imagem e experiên-


cia sensória, finda por compreender que o vigor imagético espelha o fervor
de um país. Ao esmiuçar sequências dos filmes analisados, o livro nos con-
vida a pensar o modo como o fenômeno sensório, provocado pelas
imagens dos filmes, nos sensibiliza. O conjunto aqui reunido, certamente,
insere novos elementos à ontologia da direção de fotografia, uma tradição
em via construtiva.
Introdução

Este livro tem origem em minha tese de doutorado, defendida em


2018. Inicio, portanto, fazendo um resumo do meu percurso acadêmico,
que teve início em 2005, com a graduação em Comunicação Social,
habilitação em Jornalismo, realizada na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Em 2006, desenvolvi um projeto de iniciação
científica vinculado ao grupo de pesquisa Jovens Urbanos, do
Departamento de Antropologia da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra.
Rosamaria Luiza de Melo Rocha, e com auxílio de bolsa CNPq. Além de
contribuir para minha formação como jornalista, já que eu tinha a
atribuição de produzir conteúdo para o site do grupo – um veículo de
divulgação científica –, a experiência me aproximou da carreira acadêmica
e foi importante para minha formação como pesquisadora.
O interesse pelo estudo dos procedimentos audiovisuais em filmes
brasileiros contemporâneos surgiu durante a elaboração do Trabalho de
Conclusão de Curso da graduação em Jornalismo, concluído em 2008. Ori-
entada pela Profa. Rachel Balsalobre, a pesquisa deu origem ao site
Caleidoscópio (www.cinecaleidoscopio.com.br), que traz ensaios sobre fil-
mes nacionais contemporâneos, além de artigos sobre aspectos da
produção, distribuição e circulação de filmes, leis de incentivo cultural e
história do cinema brasileiro.
Após a conclusão da graduação, realizei cursos para complementar
minha formação na área de audiovisual. Entre eles, o curso livre Cinema:
História e Linguagem (2008), ministrado pelo crítico Inácio Araújo, e os
cursos de extensão universitária Cinema e Televisão: História e Linguagem
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(2009) na PUC-SP e Cinema Contemporâneo na América Latina (2010) no


Memorial da América Latina.
A investigação dos procedimentos audiovisuais no cinema brasileiro
contemporâneo ganhou corpo e se aprofundou em minha dissertação de
mestrado – O dualismo cidade e campo em Central do Brasil: uma análise
da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas –
realizada no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr. Arlindo Machado.
Concluída em 2013 com auxílio da bolsa Capes, a pesquisa traçou pontos
de contato entre o longa-metragem Central do Brasil (1998) e a estética
pós-moderna. Durante a pesquisa, identifiquei no filme uma profusão de
citações com inversão de sentido que funcionam como marcas de
distanciamento anti-ilusionistas, o recurso da sobrecarga (estetismo
pronunciado), a centralidade do procedimento da metalinguagem, a
negação da dicotomia erigida pelo modernismo entre alta cultura e cultura
de massa – o great divide teorizado por Andreas Huyssen (1986) –, além
de seu hibridismo estilístico, já que esse longa mescla drama social,
melodrama, aspectos documentais e road movie. A análise também
demonstrou que Central do Brasil abarca diversas características da
estética maneirista.
Atuei profissionalmente, do início da graduação até o final do mes-
trado, como repórter, com passagens por diversos veículos, entre eles o
site Guia da Semana, publicações das editoras Abril e Lazuli, além de ter
tido experiências como crítica de cinema. Não só meus trabalhos mais re-
levantes como repórter se concentram na área cultural, como minha
trajetória nos estudos em audiovisual, e mais especificamente na análise
fílmica, se inicia pelo jornalismo cultural. O período de 2005 a 2013, em
que eu acompanhava de perto a cobertura jornalística e a crítica de cinema
realizadas no Brasil, foi marcante para o desenvolvimento de meus focos
Cyntia Gomes Calhado | 19

de pesquisa. Salvo algumas exceções e os casos de publicidade, aprendi


que, para um filme brasileiro suscitar debate na mídia, ele precisa reunir
um público expressivo ou ser premiado em festivais. No primeiro caso,
isso faz com que ele ganhe relevância social; no segundo, relevância artís-
tica, o que justifica a cobertura.
No cinema, as precárias dinâmicas do setor cultural brasileiro estão
localizadas, entre inúmeros outros fatores, na dificuldade de acesso ao pro-
duto cultural pelo público, seja por razões econômicas, seja por falta de
informação, e nas instabilidades crônicas no fomento ao filme nacional e
em relação à sua circulação. Nesse cenário, e considerando que o jorna-
lismo cultural ainda cumpre um papel na formação de público para o filme
nacional, me chamavam a atenção os filmes (normalmente ficcionais) que
conseguiam ser vistos por uma parcela considerável da população, a ponto
de motivarem algum tipo de discussão pública de caráter social ou audio-
visual. Esses filmes são chamados vulgarmente nos estudos de audiovisual
brasileiros de “filmes comerciais”, termo que sempre achei irônico, dadas
as condições para se ganhar dinheiro com cinema no Brasil. Me interes-
sava compreender, do ponto de vista dos procedimentos audiovisuais,
quais estratégias comunicacionais e de engajamento estavam sendo mobi-
lizadas por aqueles filmes para que a experiência estética se realizasse.
Entre os filmes com esse perfil que haviam sido lançados por volta
daquele período, os de maior destaque foram Central do Brasil (1998), Ci-
dade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007). Esses três longas tiveram
grande cobertura de mídia, público expressivo, premiações internacionais
e grande circulação no mercado estrangeiro. Optei no mestrado por estu-
dar Central do Brasil, pois o cineasta Walter Salles apresentava uma
carreira mais consistente no cinema do que Fernando Meirelles e José Pa-
dilha, diretores dos outros dois filmes citados. Ele já tinha realizado vários
longas-metragens, o que me permitia identificar recorrências temáticas e
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estilísticas. Além disso, meu acompanhamento de suas entrevistas, da aná-


lise de seus filmes e de sua atuação como produtor audiovisual, por meio
da VideoFilmes, me fazia crer que existia nele um desejo de fortalecer o
tipo de cinema que me interessava como pesquisadora: aquele com reper-
cussão na sociedade brasileira.
Após a conclusão do mestrado em 2014, iniciei minha atuação como
professora em cursos de Comunicação Social e Audiovisual do FIAM-
FAAM Centro Universitário. A experiência como docente em diversas dis-
ciplinas impulsionou minhas investigações nos campos do cinema, da
televisão e do vídeo. Nesse período, buscando ampliar meus conhecimen-
tos em artes visuais, realizei o curso História da Arte, do crítico Rodrigo
Naves. Também assisti, como ouvinte, a diversas aulas oferecidas pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), para am-
pliar meus conhecimentos em teoria de cinema e audiovisual.
Retornei ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP em 2015 para desenvolver a pesquisa de doutorado,
sob orientação da Profa. Dra. Christine Mello e com auxílio da bolsa CNPq.
Essa investigação, que deu origem a este livro, propõe a extensão da pes-
quisa de mestrado, buscando observar no campo da experiência estética,
a partir do cinema de Walter Salles, como o fenômeno das intensidades da
imagem pode ser compreendido como um tipo de acontecimento narra-
tivo. O intuito é contribuir para estudos sobre como as imagens podem
ampliar a experiência sensória. Também em 2015, passei a integrar o
Grupo de Estudos Extremidades: Redes Audiovisuais, Cinema, Perfor-
mance e Arte Contemporânea, coordenado por Christine Mello. O contato
com a abordagem das extremidades por ela proposta foi importante para
posicionar o objeto de estudo em um lugar descentralizado na história do
Cyntia Gomes Calhado | 21

cinema, buscando uma visão que desconstrói as linhas clássicas dos estu-
dos de audiovisual no Brasil. O contato com o livro Extremidades do vídeo
(2008a), de Christine Mello, abriu caminho para a inserção de teorias ori-
undas do mundo da comunicação e da arte que se distanciavam de
formatações clássicas do cinema, o que foi central para o encaminhamento
da pesquisa.
Esta investigação também tem influência do pensamento de Philippe
Dubois, que, em passagem pelo Brasil em 2016, ministrou os cursos As
Plasticidades Espaciais da Imagem Cinematográfica: Transparência (Back-
projection), Sobreimpressão e Splitscreen na ECA-USP e Cinema e
Fotografia no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, aos
quais tive a oportunidade de assistir.

Walter Salles

O diretor e produtor audiovisual Walter Salles (Rio de Janeiro, RJ,


1956) faz parte da renovação do ambiente cultural brasileiro pós-redemo-
cratização. Apesar de ser conhecido principalmente por sua atuação como
cineasta, pela qual obteve repercussão internacional, sua trajetória de mais
de trinta anos no audiovisual teve início na televisão. Realizou publicidade,
programas e documentários, sendo um dos pioneiros nas produtoras de
vídeo independentes que surgiram nos anos 1980. A partir dos anos 1990,
passou a se dedicar primordialmente ao cinema.
Cineasta em atividade, Walter Salles realizou, até 2021, dez longas-
metragens2, sendo três deles codirigidos por Daniela Thomas. Central do
Brasil (1998) foi o filme que o projetou dentro e fora do país. O longa é um

2
Jia Zhangke, um Homem de Fenyang (2014), Na Estrada (2012), Linha de Passe (2008), Água Negra (2005), Diários
de Motocicleta (2004), Abril Despedaçado (2002), O Primeiro Dia (1998, codireção Daniela Thomas), Central do
Brasil (1998), Terra Estrangeira (1995, codireção Daniela Thomas) e A Grande Arte (1991).
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dos marcos da Retomada3 e foi premiado com o Urso de Ouro no Festival


Internacional de Cinema de Berlim de 1998. Esta pesquisa inclui, ainda, a
análise de outros dois longas-metragens ficcionais do diretor produzidos
para exibição cinematográfica: Abril Despedaçado (2002) e Linha de Passe
(2008, codireção Daniela Thomas).
No conjunto de seus trabalhos, Walter Salles articula um plano de
visibilidade sobre a experiência contemporânea relacionada às identidades
locais, impactos da globalização e o desamparo.

Contato com alteridade e acontecimento narrativo

Vale a pena nos determos um pouco sobre a singularidade do desam-


paro entre os afetos e suas relações com o acontecimento e a narrativa. O
psicanalista Mário Costa Pereira (2008) afirma que a obra de Freud con-
fere uma evolução teórica ao desamparo, no sentido de:

[…] colocá-lo para além de uma simples regressão a uma fase em que o pe-
queno ser humano encontrava-se completamente incapaz de sobreviver por
seus próprios meios, de encontrá-lo além das figuras aterrorizantes do supe-
rego, para conferir-lhe um estatuto de dimensão da vida psíquica que indica
os limites e as condições de possibilidade do próprio processo de simbolização.
(PEREIRA, 2008, p. 127)

O caráter traumático do desamparo para Freud está ligado à nossa


insuficiência para compreender a grandeza de uma situação de perigo ou
de excitação. Em última análise, o desamparo se relaciona com o descom-
passo entre a magnitude de um evento e nossa capacidade de

3
Período de restabelecimento da produção cinematográfica nacional impulsionado pela criação da Lei Rouanet (1991)
e Lei do Audiovisual (1993). Apesar da definição exata da data padecer de certa arbitrariedade, autores como Lúcia
Nagib (2002) e Luiz Oricchio (2003) consideram que a Retomada foi de 1995 a 2002 e 2005, respectivamente.
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representação sob a forma de um objeto, estando ligado à ideia de desme-


sura, de ausência de capacidade de medida 4 . Em sua leitura do
pensamento freudiano, o filósofo Vladimir Safatle (2016, p. 53) dirá que o
desamparo implica sempre o reconhecimento de uma impotência, pois
provoca a suspensão, ainda que momentânea, da capacidade de ação, re-
presentação e previsão. Segundo Safatle, a situação traumática de
desamparo indica uma experiência temporal específica de indeterminação,
pois, “Contrariamente ao medo, ou mesmo à esperança, o desamparo não
projeta um horizonte de expectativas que permite aos instantes temporais
ganharem a forma da continuidade assegurada pela projeção do aconteci-
mento futuro” (SAFATLE, 2016, p. 52).
Estando esse tema ligado aos debates contemporâneos a respeito das
dinâmicas de reconhecimento social, a filósofa Judith Butler chama a aten-
ção para o fato de as relações de encontro com a alteridade envolverem
processos de despossessão e desamparo pelo outro. Tal despossessão re-
vela uma vulnerabilidade estrutural aos encontros e uma opacidade para
nós mesmos face àquilo que nos leva a nos vincularmos a outros, pois “so-
mos despossuídos de nós mesmos em virtude de alguma forma de contato
com o outro”5 (ATHANASIOU; BUTLER, 2013, p. 3, tradução nossa).
O desamparo é então compreendido como condição para o desenvol-
vimento de certa coragem afirmativa diante da violência da natureza
despossessiva das relações intersubjetivas e pela irredutibilidade da con-
tingência como forma fundamental do acontecimento. A coragem viria de
uma aposta na possibilidade de conversão da violência em processo de
mudança de estado, já que, para Safatle (2016, p. 56), as formas de des-
possessão ligadas à insegurança ontológica são modos de libertação.

4
Interessante observar como esses fenômenos se manifestam nos filmes catástrofe. A esse respeito, conferir a tese
de doutorado L’imminence de la catastrophe au cinéma: films de barrage, films sismiques [A iminência da catástrofe
no cinema: filmes de barragem e filmes sísmicos], de Lúcia Monteiro.
5
Do original: “we are dispossessed of ourselves by virtue of some kind of contact with another”.
24 | Intensidades da imagem

O teórico de cinema brasileiro Ismail Xavier (2003a) destaca o fato


de o motivo do encontro inesperado ser recorrente em roteiros de longas
brasileiros dos anos 1990 e 2000 que tematizam questões sociais. Xavier
cita três filmes dirigidos por Walter Salles – Central do Brasil, Terra
Estrangeira e O Primeiro Dia –, além de produções de outros diretores –
Os Matadores (Beto Brant, 1997) e Como Nascem os Anjos (Murilo Salles,
1996), entre outros – como exemplos de uma tendência de abordagem
dramática que “enfatiza encontros individuais, singularidades e tende a
deixar de lado formas narrativas mais diretamente preocupadas com a
exposição de forças histórico-sociais que condicionam a ação humana”6
(XAVIER, 2003a, p. 61, tradução nossa). Apesar da propensão a não
problematizar politicamente as complexidades da vida social
contemporânea, essas produções elaboram diagnósticos sociais a partir da
configuração de forças relacionadas ao motivo do encontro inesperado,
aspecto que Xavier vê como bastante presente e relevante no cinema
mundial e brasileiro dos anos 1990 e 2000. Mesmo que individualmente
esses filmes tendam a optar por abordagens psicológicas ou moralistas de
questões políticas e sociais, o conjunto da produção faz referência à
psicologia de indivíduos permeados por uma sensação de impotência
diante de estruturas de poder que parecem fora de alcance (XAVIER,
2003a, p. 61).
Podemos observar nos roteiros dos filmes analisados neste livro – Cen-
tral do Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe – que a ocorrência do
encontro inesperado, lido aqui como o contato dos personagens com situa-
ções de alteridade, é acompanhada por intensidades no plano da imagem.
Minha análise busca evidenciar que as intensidades são um dos modos de

6
Do original: “emphasize individual encounters, singularities, tending to leave aside narrative forms more directly
concerned with the exposure of the social-historical forces that condition human action”.
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acontecimento narrativo no cinema, pois a elaboração plástica dessas ima-


gens destoa da construção imagética até então apresentada pelo filme.
A escolha de concentrar a análise em acontecimentos narrativos se-
gue a proposta de realizar uma leitura não totalizante dos filmes.
Analisarei pequenos trechos dos longas, momentos específicos do traba-
lho, instantes singulares de planos que, por quebrarem a lógica até então
seguida pela narrativa, têm o poder de ressignificar a experiência cinema-
tográfica. Esses ruídos, pequenas desestabilizações na imagem em
movimento, são aqui lidos como extremidades da imagem cinematográ-
fica no cinema contemporâneo, seguindo a abordagem desenvolvida por
Christine Mello em Extremidades do vídeo (2008a). Essa leitura se contra-
põe a visões que buscam as especificidades de determinado meio, como o
cinema ou o vídeo, e privilegia as interconexões entre eles. A análise crítica
realizada a partir dessa noção baseia-se nos procedimentos de desconstru-
ção, contaminação e compartilhamento.
Os acontecimentos narrativos têm como característica uma ênfase no
aspecto figural da imagem. Por isso, farei uma análise figural de cenas de
Central do Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe, filmes que têm sido
pensados primordialmente no campo representacional, para identificar as
ocorrências da narrativa como acontecimento neles.
A narrativa como acontecimento é um estudo de André Parente
(2013). No entanto, o que me interessa aqui é compreender como o fenô-
meno estético das intensidades da imagem pode criar acontecimentos
narrativos. Neste estudo, entendo intensidades da imagem como um ins-
trumental de análise para a apresentação das qualidades plásticas
imagéticas: cores, definição, movimentos, volumes, texturas etc. A inten-
sidade está relacionada à gradação de apresentação de fenômenos
plásticos específicos. Como a atenção do espectador acompanha o au-
mento do estímulo, é possível organizar os procedimentos audiovisuais
26 | Intensidades da imagem

para ativar estados emocionais no espectador. Analisarei, portanto, a ex-


periência estética no audiovisual a partir dos modos como as qualidades
plásticas imagéticas podem estimular a percepção humana.
Para falar como o fenômeno estético das intensidades da imagem
pode criar acontecimentos narrativos, desenvolverei três aspectos em
torno da narrativa audiovisual como acontecimento em suas relações com
a experiência estética. O primeiro deles é o plano da dramaturgia ficcional
em relação à dramaturgia plástica, de acordo com o filósofo Jacques Ran-
cière. O segundo trata de atos narrativos de presentificação a partir das
reflexões de André Parente e da teórica de literatura, cinema e estética Ma-
rie-Claire Ropars-Wuilleumier. Já o terceiro diz respeito ao plano da
sensibilidade háptica, a partir da leitura do filósofo John Dewey.
A investigação de acontecimentos (também chamados eventos) fílmi-
cos que quebram o fluxo narrativo recebe outras abordagens. A partir da
ideia de permanência e atualização em filmes atuais do regime de atrações
– termo de Tom Gunning e André Gaudreault7 para designar um certo tipo
de endereçamento sensorial ao espectador promovido pelo Primeiro Ci-
nema –, Scott Bukatman (2006) afirma que esses eventos fílmicos
característicos das atrações interrompem, pela força excessiva das perfor-
mances dos corpos nas telas, o tecido narrativo, estando muitas vezes
marcados por efeitos cinemáticos de slow motion e ênfases de iluminação
e cores. Para o autor, essa força reside no excesso ligado à ordem espeta-
cular do instante, já que as performances dos corpos são passagens e
eventos fílmicos e, por isso, constituem um tênue equilíbrio entre a potên-
cia domesticadora da narrativa e o prazer disruptivo e puramente visual
da atração.

7
Termo que surge nos artigos “The Cinema of Attractions: Early Film, Its Spectator and the Avant-Garde”, de Tom
Gunning, publicado em Wide Angle, e “Le cinema des primiers temps: un defi à l’histoire du cinema?”, de André
Gaudreault e Tom Gunning, publicado no periódico japonês Gendai Shiso – Revue de la pensée d’aujourd’hui, ambos
em 1986.
Cyntia Gomes Calhado | 27

De sua análise, interessa-me salientar a afirmação a respeito de os


eventos fílmicos virem acompanhados de efeitos cinemáticos de slow
motion e ênfases de iluminação e cores. Porém, enquanto Bukatman
atribui à força disruptiva a performance dos corpos nas telas, defendo que
o acontecimento narrativo é uma performance da imagem enquanto tal.
Outros pesquisadores brasileiros têm se debruçado sobre novos mo-
dos de narrar no cinema contemporâneo. É o caso de Erly Vieira Jr. (2012),
que defende a existência de um realismo sensório, considerado como uma
das características centrais do chamado cinema de fluxo, vertente trans-
nacional do cinema a partir do final dos anos 1990, composta por
realizadores como Hou Hsiao-Hsien, Apichatpong Weerasethakul, Claire
Denis, Gus Van Sant, Lucrecia Martel e Naomi Kawase e caracterizada por
uma experiência estética fortemente calcada no sensorial. Ele utiliza o
termo realismo sensório para designar um outro tipo de contrato senso-
rial, que opera no âmbito de uma investigação sutil e microscópica do
cotidiano, numa espécie de real em tom menor, de poética sussurada, situ-
ado na esfera do comum e do ordinário.
Outra visada interessante para a narrativa no cinema contemporâneo
é realizada por Mariana Baltar (2016). Ela propõe uma ideia de permanên-
cia e atualização em filmes recentes do regime de atrações. Para a
pesquisadora, filmes que apresentam inserts, entendidos como eventos
performáticos de corpos que interrompem o fluxo narrativo, convocariam
um certo engajamento afetivo de ordem sensorial e sentimental. Essa
abordagem segue a de Scott Bukatman, mencionada anteriormente, atri-
buindo grande foco aos corpos filmados.
O interesse do presente estudo está em observar os novos modos de
experiência estética no cinema de grande público, que apresenta dinâmi-
cas diferentes das do cinema de fluxo, mais ligado à experimentação. A
28 | Intensidades da imagem

narrativa como acontecimento nos filmes Central do Brasil, Abril Despe-


daçado e Linha de Passe constitui momentos de exceção, já que essas obras
permanecem, em grande medida, no registro da representação. Esses ins-
tantes promovem fissuras no tecido narrativo, são momentos em que o
tempo se constitui como escritura e, então, podemos observar ocorrências
das intensidades da imagem.
Parte 1

Narrativa audiovisual como acontecimento em suas


relações com a experiência estética da imagem

1. Da dramaturgia ficcional à dramaturgia plástica

Como os conceitos de dramaturgia ficcional e dramaturgia plástica


estão intimamente ligados na obra do filósofo Jacques Rancière aos regi-
mes representativo e estético, respectivamente, será necessária uma
pequena digressão para explicar os regimes artístico-históricos estabeleci-
dos pelo autor.
Com o objetivo de fornecer parâmetros para a compreensão da arte,
Rancière institui três regimes artístico-históricos: o ético, mais relacionado
à Antiguidade, o representativo, ao Renascimento, e o estético, à Moderni-
dade. Em A partilha do sensível, o autor discute os três regimes, mas, de
um modo geral, é possível afirmar que o ético, no conjunto de sua obra,
não tem a mesma importância em relação à discussão sobre a passagem
do regime representativo para o estético, porque ainda não encontramos
ali propriamente um processo de identificação da arte como tal, mas ape-
nas um regime que regula o conteúdo de verdade de certas imagens
(RANCIÈRE, 2014a, p. 27).
A delimitação do que se entende no Ocidente por arte foi realizada
pelo regime representativo, no qual a arte sai do plano das artes
mecânicas – que pressupunham uma atividade voltada para a prática e
não para a “estética” – e passa às artes liberais, em cuja categoria os
humanistas italianos colocaram a pintura e a escultura, dando-lhes nova
estatura na hierarquia social em relação ao trabalho artesanal
(RANCIÈRE, 2012b, p. 29-30 apud RAMOS, 2014, p. 5).
30 | Intensidades da imagem

À passagem do regime representativo para o regime estético, Ran-


cière chama de revolução estética, o que significa simplesmente a produção
de uma equivalência sensível contra as hierarquias do regime representa-
tivo. O regime estético pode ser entendido como a democracia em matéria
de arte (RANCIÈRE, 2011b, p. 17 apud RAMOS, 2014, p. 7).
A noção de regime estético é a maneira a partir da qual Rancière com-
preende a arte no Ocidente desde o século XVIII. Ela é caracterizada pela
ruptura com as hierarquias estabelecidas pelo regime representativo,
identificando a obra de arte em sua singularidade, fora de qualquer gênero
ou tema que lhe seria próprio. No prelúdio de Aisthesis, pode-se ler:

O termo Aisthesis designa o modo de experiência segundo o qual, há dois sé-


culos, percebemos coisas muito diversas por suas técnicas de produção e suas
destinações como pertencendo conjuntamente à arte. Não se trata da “recep-
ção” das obras de arte. Trata-se do tecido de experiência sensível dentro do
qual elas são produzidas. Essas são condições completamente materiais – lu-
gares de performance e exposição, formas de circulação e de reprodução –,
mas também modos de percepção e regimes de emoção, categorias que as
identificam, modelos de pensamento que as classificam e interpretam. Essas
condições tornam possíveis que palavras, formas, movimentos e ritmos sejam
sentidos e pensados como a arte. (RANCIÈRE, 2011b, p. 10 apud RAMOS, 2014,
p. 5-6)

O regime estético também define os regimes de emoção e os de


pensamento, posicionando, no primeiro caso, a arte como pertencente à
esfera da sensibilidade, o que engendra uma forma de pensar diferente
daquelas comandadas unicamente pela razão – a ciência e a filosofia – e
incorpora a intuição e a criatividade como elementos a ser considerados
na formação do conhecimento. A estética liberta o sensível do acordo que
o prende a determinadas regras, como acontece no regime representativo,
o que não significa que com isso ele tenha se tornado o sensorial, ou seja,
Cyntia Gomes Calhado | 31

uma pura informação ou um puro estímulo produzido pelo sentido. O


sensível, ao contrário, já chega prefigurado pelo sentido, que,
engendrando uma relação entre o dito e o não dito, o visível e o invisível,
é distribuído possibilitando a interpretação, a avaliação, em suma, o debate
em torno dele.
O regime representativo corresponde à esfera das belas-letras e das
belas-artes, que definem as normas de composição e estabelecem as dife-
renças, respectivamente, entre os gêneros literários e artísticos: trata-se
de definir, no primeiro caso, as regras de verossimilhança que estruturam
a narrativa, cujo objeto central é a ação que produz as relações causais até
chegar a um desenlace final e, no segundo, as regras da composição
artística baseadas na norma do corpo proporcionalmente constituído, cuja
totalidade orgânica é alcançada pela relação harmônica entre as partes e
entre as partes e o todo.
Na primeira cena de Aisthesis, Rancière (2011b, p. 19-40 apud
RAMOS, 2014, p. 8) analisa uma passagem de História da arte na Antigui-
dade, de Winckelmann, em que é feito o elogio de uma estátua mutilada.
Rancière quer mostrar que ali encontra-se a base para a concepção do re-
gime estético, que consiste em romper com a totalidade orgânica e
instaurar o horizonte da fragmentação que mudou a percepção e cons-
trução do sentido da obra arte, como ocorreu no caso do princípio da
montagem cinematográfica.
No que toca ao problema da narrativa literária, dá-se o mesmo pro-
cesso, uma vez que a ação também aponta para uma unidade entre
princípio, meio e fim por meio da estrutura conflito, ação e desenlace. À
ordem causal representativa opõe-se, na literatura do século XIX, uma
tendência descritiva que, tal como Rancière aponta no livro Le fil perdu [O
fio perdido], deve ser entendida como:
32 | Intensidades da imagem

[…] a ruptura da ordem representativa e do que estava em seu cerne, a hie-


rarquia da ação. E essa ruptura está ligada ao que está no centro das intrigas
romanescas do século XX: a descoberta de uma capacidade inédita dos homens
e das mulheres do povo de aceder a formas de experiência que lhes eram até
então recusadas. (RANCIÈRE, 2014b, p. 20 apud RAMOS, 2014, p. 8)

Na descrição, por exemplo, dos objetos de uma cozinha, Rancière ob-


serva uma igualdade sensível que supera o privilégio da ação na narrativa
tradicional, uma igualdade de fragmentos e sensações. Não se busca mais
estabelecer uma lógica causal, em que as partes concorrem para constituir
um todo orgânico, mas sim que elas tenham uma importância equivalente
na construção do sentido.
Daí o pensador francês considerar que, junto com a literatura, o ci-
nema, ao se firmar como puro jogo entre movimento e luz, encarnava, nos
seus primórdios, a promessa do regime estético:

[…] a arte nova das formas visuais em movimento opõe-se à arte da represen-
tação, ou seja, à arte fundada na reprodução passiva de um dado preexistente.
Ele é performance sem mediação, sem modelo copiado nem texto interpretado,
sem oposição de uma parte passiva e de uma parte ativa. (RANCIÈRE, 2011b,
p. 228 apud RAMOS, 2014, p. 8)

O regime representativo separou as artes segundo gêneros, o que tor-


nou possível a criação de regras para o estabelecimento de uma hierarquia
entre elas. No regime estético, por sua vez, diluem-se as fronteiras entre
as artes, que se tornam equivalentes e passíveis de diálogo. Em segundo
lugar, trata-se de pensar que o regime representativo produziu uma hie-
rarquia com relação aos temas que são e não são dignos de ser
representados. No novo regime de fruição instaurado pelo regime estético,
surge uma indiferença em relação ao que deve ser tratado. Assim, qual-
quer tema passa a ser digno de abordagem.
Cyntia Gomes Calhado | 33

Por fim, há a questão de saber a quem se dirige determinada obra.


Tanto no regime ético quanto no representativo há uma delimitação do
público que pode ou não fruir a obra de arte. O exemplo é a distinção que
Aristóteles faz da tragédia como uma expressão para os “homens livres”,
ao passo que a comédia seria a expressão popular. A partir do regime
estético, a obra de arte passa a ser compreendida como um conjunto de
indeterminações que suscita um processo comunicativo do qual nem se-
quer o autor tem a palavra final sobre o seu sentido.
Saindo de uma visão histórica da arte e entrando no campo da teoria e
crítica, Rancière aponta que a dramaturgia própria ao regime representativo
é a ficcional, e a do regime estético, a plástica. Apesar de ele vincular os con-
ceitos de dramaturgia ficcional e dramaturgia plástica a períodos históricos
privilegiados, o filósofo mostra que a ficcional também está presente no re-
gime estético e que essas noções podem se sobrepor em uma mesma obra.
É o caso da análise que ele faz de filmes do Neorrealismo italiano:

Quando Pina, em Roma, cidade aberta (Roma, cittá aperta), escapa de uma fileira
de soldados, que a deveriam ter detido, para se precipitar atrás do caminhão que
leva seu noivo, numa corrida que começa à maneira do movimento burlesco,
para terminar em queda mortal, esse movimento excede, ao mesmo tempo, o
visível da situação narrativa e a expressão do amor. Assim como a queda no vazio
que encerra a corrida errante de Edmund, em Alemanha, ano zero (Germania
anno zero), excede qualquer (não) reação à ruína material e moral da Alemanha
de 1945. Esse movimento faz coincidir uma dramaturgia ficcional e uma drama-
turgia plástica. (RANCIÈRE, 2013, p. 18)

Pensando as relações entre a dramaturgia ficcional e a plástica – vis-


tas por ele como resultado de uma “dramaturgia complexa” –, mas desta
vez analisando cenas de filmes do cineasta francês Robert Bresson, Ran-
cière (2013, p. 18) dirá que “A beleza dessas sequências vem da contradição
que o visível traz ao significado narrativo”, o que, para ele, demonstra que
34 | Intensidades da imagem

a arte da era estética surge depois e desfaz os encadeamentos da arte re-


presentativa (RANCIÈRE, 2013, p. 14).
Sendo a dramaturgia estética uma perspectiva crítica, ela pode ser
identificada em qualquer tipo de filme8. Rancière assevera que esse traba-
lho de extração de uma fábula de outra – que ele chama de desfiguração –
realizado no cinema por Jean Epstein, Deleuze e Godard, já era praticado
pelos críticos de arte do século XIX:

[…] quando extraíam das cenas religiosas de Rubens, das cenas burguesas de
Rembrandt, ou das naturezas-mortas de Chardin, a mesma dramaturgia, em
que o gesto da pintura e a aventura da matéria pictórica eram postos no pri-
meiro plano, relegando para o plano de fundo o conteúdo figurativo dos
quadros. (RANCIÈRE, 2013, p. 13)

2. Atos narrativos de presentificação

Nesta parte, analisarei a narrativa como acontecimento do ponto de


vista do cinema narrativo no intuito de demonstrar como esse fenômeno
introduz uma fissura ou um desdobramento nas imagens, nos enunciados,
nas ações, nos personagens, nos narradores e nas narrativas produzidas,
afetando as imagens, sons e suas relações, criando atos narrativos de pre-
sentificação que não representam ou comunicam um acontecimento, mas
restituem o efeito vivo dos fatos e das falas, restituem suas presenças.
Para isso, recorrerei à visão de André Parente dos processos
narrativos-imagéticos, resultado da crítica a Deleuze. Em sua tese de
doutorado, orientada por Deleuze e publicada no Brasil com o título
Narrativa e modernidade: os cinemas não narrativos do pós-guerra
(2000), Parente pensa os signos da arte sem os reduzir ao significante e
aos processos de significação (representação). O autor busca teorizar a

8
Cf. Rancière, A Fábula cinematográfica (2013, p. 11): “[…] os críticos e os cinéfilos que compõem uma obra de formas
plásticas puras sobre o corpo de uma ficção comercial”.
Cyntia Gomes Calhado | 35

narrativa cinematográfica sem reduzi-la aos modelos linguísticos e


narratológicos subjacentes às semiologias9 do cinema e da literatura. Por
trás desse modelo, há a ideia de que a narrativa é representação. No caso
do cinema, segundo a semiologia, é a narrativa, e apenas ela, que nos
permite distinguir as unidades (sintagmas) e articulações que eles
expressam nas relações espaçotemporais. A abordagem semiológica
implica colocar entre parênteses os aspectos sensíveis da imagem, em
particular o movimento e o tempo, limitando a imagem a um processo
de representação narrativa. O esforço de Parente está em pensar a
imagem e a narrativa como acontecimentos que não se confundem com
suas atualizações em estruturas linguísticas (relação
significado/significante, significação, representação de universos
originários).
O trabalho de Parente tornou-se referência no campo dos estudos da
narratividade no cinema do pós-guerra. Em 1995, o autor da teoria crítica
das mídias Raymond Bellour, em sua conferência de abertura no colóquio
O cinema segundo Deleuze, faz referência a essa tese, dizendo que Parente
critica Deleuze e mostra que “a narrativa cinematográfica, assim como as
imagens e enunciados que a compõem, são o resultado de processos nar-
rativos-imagéticos” (PARENTE, 2013, p. 10). Apoiando-se na ideia de voz
narrativa, de Blanchot, e valendo-se do conceito deleuziano de aconteci-
mento, Parente afirma que “os processos imagéticos discernidos por
Deleuze são consubstanciais com os processos narrativos que condicionam
o relato, as imagens e os enunciados que o compõem” (PARENTE, 2013, p.
10), superando a antinomia postulada pelo filósofo francês.

9
Semiologia é a ciência geral dos signos da linha linguística desenvolvida por Ferdinand de Saussure (1857-1913). Já
a semiótica seria a linha filosófica teorizada por Charles Sanders Peirce (1839-1914) e Charles W. Morris (1901-1979).
Ambas têm como objeto os sistemas de signos e os de comunicação vigentes na sociedade.
36 | Intensidades da imagem

Em sua reflexão, Parente se debruça sobre os dois modos de subjeti-


vação presentes no pensamento deleuziano das imagens cinematográficas
– imagem-movimento e imagem-tempo. Segundo Deleuze (2013a), os
cinco processos imagéticos responsáveis pela formação das imagens cine-
matográficas são, por um lado, a especificação, a diferenciação e a
integração das imagens-movimento e, por outro, a ordenação e a seriação
das imagens-tempo. A imagem-movimento é aquela relacionada ao es-
quema sensório-motor, que se especifica em imagem-percepção (o que se
vê), imagem-afecção (o que se sente), imagem-ação (o que se faz) etc. A
imagem-movimento se encadeia conforme o esquema sensório-motor e,
ao fazê-lo, integra-se em um todo, mas está constantemente se diferenci-
ando em objetos, atos e formas de realidade. Normalmente identificada
com o cinema clássico, a imagem-movimento estabelece relações do ho-
mem com o mundo, que vão variar segundo a forma como cada cineasta
as conceber.
Já a imagem-tempo, condicionada por processos narrativos de
temporalização e relacionada à narrativa não verídica, distingue-se pela
qualidade intrínseca daquilo que vem a ser na imagem (seriação) e pela
coexistência de relações de tempo na imagem (ordenação). Na narrativa
não verídica, o acontecimento não se confunde com sua realização
espaçotemporal.

A série (qualidade) e a ordem (coexistência) do tempo rompem com o tempo


cronológico, linear, e promovem outros modos de narração e de narrativa no
cinema. Se, na narrativa verídica, composta de imagens-movimento, tudo re-
mete a um, na narrativa falsificante da imagem-tempo, existe uma
multiplicidade irredutível que afeta o cinema. (DELEUZE, 2013a, p. 267)

Marie-Claire Ropars-Wuilleumier foi a teórica que chamou a atenção


para o fato de que o cinema do pós-guerra tinha se transformado de arte
Cyntia Gomes Calhado | 37

do movimento em arte do tempo. Para ela, o tempo estava se tornando o


personagem principal do cinema e, desse modo, ele se constituiria como
uma escritura, tendo em vista que era necessário ler a imagem.

Aos olhos do espectador, o tempo é percebido como vivido, à medida que a


representação deixa de ser o suporte de uma ação imediatamente interpretá-
vel: aparecem então as diversas maneiras próprias ao tempo de passar sobre
os seres, conforme as diversas maneiras próprias aos seres de passar no
tempo. (ROPARS-WUILLEUMIER, 1970, p. 132 apud PARENTE, 2013, p. 269)

De acordo com a autora, no cinema moderno, muda-se de uma esté-


tica dramática para uma narrativa; de uma estética da representação para
uma da escritura; de uma sucessão para uma duração; de uma história
para uma narrativa. Ou, para empregar os termos de Jacques Rancière
(2013, p. 18), migra-se do regime representativo (com sua dramaturgia
ficcional) para um regime estético (com sua dramaturgia plástica).
A partir dos processos imagéticos responsáveis pela formação das
imagens cinematográficas estabelecidos por Deleuze (integração, diferen-
ciação, especificação, ordenação e seriação), Parente acrescenta que o
processo de especificação se produz somente quando existe uma história,
que “se manifesta em um campo de tensões e forças, conforme a distribui-
ção de objetos, obstáculos, meios e desvios que afetam as relações
sujeito/objeto” (PARENTE, 2013, p. 263). Para o autor, os processos ima-
géticos da imagem-movimento estabelecidos por Deleuze correspondem
aos processos de toda narrativa verídica, sendo esta imagética ou não. Na
narrativa verídica, o acontecimento que a constitui é apresentado como
preexistente a ela, ou seja, ela é apresentada como se tivesse sido, em um
dado momento, presente.
Diferentemente de Deleuze, Parente acredita que os processos de
temporalização são, ao mesmo tempo, imagéticos e narrativos. O que quer
38 | Intensidades da imagem

dizer que as imagens-tempo não são primeiras em relação às operações de


temporalização narrativas, mas é a narração temporalizante que
condiciona tanto as imagens-tempo quanto a narrativa não verídica.
Mesmo que a imagem-tempo suponha homens, situações, histórias, ações,
ela supera as relações sensório-motoras que eles mantêm.

Não há meio de fundar o tempo da imagem, que não se confunde com o pre-
sente abstrato do que é “representado” na imagem (objetos, ações, formas de
realidade e suas relações sensório-motoras), se introduzirmos nela uma fis-
sura, por meio da qual a narração se desdobra e se torna contemporânea da
ação que descreve. A imagem deve se duplicar ou se abrir em um movimento
infinito que a faça sair da consciência daquele que a percebe ou que age. Essa
operação supõe uma conduta particular de memória, de narração, que se pode
denominar, de acordo com Pierre Janet, de “presentificação”. (PARENTE,
2013, p. 268)

Ele segue a explicação afirmando que o ato narrativo de presentificação


é de outra natureza e não se confunde com a narração ou com a narrativa
de uma ação presente ou passada. Para Parente, a narrativa como aconteci-
mento só pode existir no cinema quando se produz um desdobramento no
filme por meio do qual a imagem exprime e afirma o tempo.
Desse modo, a narrativa como acontecimento intensifica a experiên-
cia cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do espectador se
identificam. O tempo é percebido como vivido, e cria-se uma relação entre
o espaço da imagem e o espectador.
Para entendermos o modo como a narrativa como acontecimento se
presentifica, podemos pensar na imagem como imagem-espaço, compre-
endida segundo Philippe Dubois (2012) como uma articulação entre o
espaço na imagem – representado, figurado, diegético, objetivo – e o es-
paço da imagem – literal, figural, da própria imagem –, que é o espaço
Cyntia Gomes Calhado | 39

vivido, do qual o espectador, fenomenologicamente, tem experiência du-


rante a projeção.

2.1 Figural

É longa a tradição a que o termo figural remete nas reflexões sobre a


figura e a figuração, sendo utilizado tanto no campo da linguagem e dis-
curso quanto no das artes plásticas. Philippe Dubois, no texto “La question
des figures à travers les champs du savoir: le savoir de la lexicologie: note
sur figura d’Erich Auerbach”, discorre sobre suas diversas acepções. No
início do século XIX, o historiador da arte francês Elie Faure (1922) escre-
veu seu famoso texto “De la cinéplastique” [A cineplástica]10, o filósofo
Jean-François Lyotard publicou Discurso, figura em 1971 11 e, posterior-
mente, o termo teve contribuições de outros historiadores da arte como
Georges Didi-Huberman (1990), de filósofos como Deleuze (2007), confi-
gurando-se em um tipo de análise fílmica praticada por diversos teóricos
e autores contemporâneos na área de audiovisual12.
O interesse dessa abordagem para os estudos de audiovisual estaria
em um olhar para as imagens não como representação, mas como pre-
sença. O figural sendo um acontecimento da imagem, uma presença
intensiva de sua materialidade.
Nesta pesquisa, adoto a sistematização de análise figural proposta por
Philippe Dubois (2012). Alguns termos próprios da análise figural que uti-
lizarei e precisam ser distinguidos são: figurativo, figurado, figurável e
figural. Da ordem da figuração visual, figurativo é o que procede da mí-
mese, do trabalho de semelhança, é o motivo que designa um referente.

10
Disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/Faure_Elie/fonction_cinema/cinemaplastique/Faure_
cineplastique.pdf. Acesso em: 18 ago. 2021.
11
LYOTARD, Jean-François. Discours, figures. Paris: Klincksieck, 1971.
12
DUBOIS, Philippe (dir.). L’Analyse figurale de films. De Boeck-Université, col. Arts & cinéma, 2002.
40 | Intensidades da imagem

Da ordem da representação, figurado é o que procede da construção de


um sentido secundário (simbólico, alegórico ou outro); é o produto de uma
operação semântica. O figurado não remete ao motivo (à referência figu-
rativa), mas à metáfora (portanto, no sentido justamente chamado
figurado). Figurável designa a figuração em potencial, o que não teve
acesso à figuração, mas espera por isso. Dessa forma, coloca em questão
as condições de aparição e de existência (virtual) da imagem. Já o termo
figural, que, para o autor, está no cerne da plasticidade no cinema, é tudo
o que subsiste em uma imagem quando se retira dela o figurativo (isto é,
o motivo referencial, sua parte iconográfica) e o figurado (a parte retórica).
Segundo o próprio autor,

Processus sempre em devir, o Figural é, portanto, um acontecimento da ima-


gem, isto é, ele surge sob o modo da fulgurância, revela uma ruptura no tecido
da representação, procede por alteração ou alteridade, e engendra efeitos ima-
nentes de presença intensiva da matéria. (DUBOIS, 2012, p. 113)

Defendo que a ênfase na experiência estética das plasticidades da


imagem é um aspecto de desconstrução da imagem cinematográfica pós-
-vídeo. Com isso, não quero dizer que antes do vídeo o cinema não
elaborava aspectos figurais da imagem, mas sim que a partir do impacto
do vídeo no audiovisual esse procedimento se intensifica. Isso se dá
devido ao fato de que o vídeo instaura uma mudança nos hábitos
perceptivos dos espectadores, em que o efeito de transparência da
imagem dá lugar a uma percepção dela como produção do visível, como
um efeito de mediação (MACHADO, 2011, p. 190).

3. Ativação da sensibilidade háptica na experiência estética

Do ponto de vista do pragmatismo, o filósofo americano John Dewey


(2010) traz contribuições importantes sobre a arte como experiência. Para
Cyntia Gomes Calhado | 41

o autor, experiência vai designar a interação constante e necessária esta-


belecida entre um organismo e o ambiente, sendo, sobretudo, uma
característica físico-natural; está implicada nas condições e nas dimensões
concretas da relação do indivíduo com o ambiente e, consequentemente,
não pode ser caracterizada por outro aspecto exclusivamente.
Dewey chama a atenção para a diferença entre a experiência contínua
e a singular. Na primeira, coisas acontecem, uma substitui outra e somos
como que levados pela corrente de um rio, “porque a interação do ser vivo
com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver”
(DEWEY, 2010, p. 109). Já a segunda apresenta “uma unidade que lhe
confere seu nome – aquela refeição, aquela tempestade, aquele
rompimento de amizade” (DEWEY, 2010, p. 112, grifo do autor). Como a
experiência é fruto da interação, o autor indica que esta última pode ser
rotineira, mera repetição, submissa a convenções práticas e
procedimentos intelectuais e, consequentemente, dispersa, fragmentada.
No entanto, quando a interação integra as várias capacidades humanas,
ela pode mobilizá-las livremente, promovendo uma experiência integral,
forte, de rara intensidade.
O filósofo aponta ainda para a importância do objeto ou da obra da
interação, da qual a experiência é o resultado. Segundo ele, o objeto ou a
obra deve apelar para o sujeito, deve mobilizá-lo de modo a estimular
sua percepção estética. A esse respeito, César Guimarães e Bruno Leal
afirmam que:

A “experiência” exige a mobilização sensorial e fisiológica do corpo humano;


ela é uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de percepção e,
portanto, envolve interpretação, repertório, padrões; existe sempre em função
de um “objeto”, cuja materialidade, condições de aparição e de circunscrição
histórica e social não são indiferentes. Se a “experiência” é assim cotidiana e
42 | Intensidades da imagem

relacional, ela não deixa de ser tensionada pela indiferença e pela intensidade.
(GUIMARÃES; LEAL, 2007, p. 6, grifos nossos)

Ao se referir às qualidades sensoriais – tato, paladar, visão e audição


–, Dewey dirá que elas têm qualidades estéticas que não se manifestam
isoladamente, como entidades simples e separadas, mas em suas ligações,
em sua interação. As cores não se relacionam só com cores, e sons com
sons, como na explicação a seguir:

Em um quadro, as cores são apresentadas como sendo do céu, nuvens, rios,


pedras, grama, joias, seda e assim por diante. Nem mesmo o olhar artificial-
mente treinado para ver a cor como cor, separada das coisas que as cores
qualificam, consegue isolar as ressonâncias e transferências de valor decor-
rentes desses objetos. (DEWEY, 2010, p. 239)

Isso se dá, pois “a ação de qualquer dos sentidos inclui atitudes e pre-
disposições que se devem ao organismo inteiro” (DEWEY, 2010, p. 240).
Essa afirmação é particularmente interessante no que tange aos estudos
de cinema e audiovisual, face à centralidade e isolamento em que a visão é
colocada nas análises fílmicas.

Não é apenas o aparelho visual, mas o organismo inteiro, que interage com o
meio em todos os seus atos […]. O olho, o ouvido ou seja lá o [sentido] que for
é apenas o canal pelo qual a resposta total ocorre. Uma cor vista é sempre
qualificada por reações implícitas de muitos órgãos, tanto os do sistema sim-
pático quanto os do tato. É um funil para toda a energia investida, e não sua
fonte. As cores são suntuosas e ricas simplesmente porque nelas está profun-
damente implicada uma ressonância orgânica total. (DEWEY, 2010, p. 240,
grifos do autor)
Cyntia Gomes Calhado | 43

A implicação disso para a experiência cinematográfica é que nela as


qualidades ópticas são indissociáveis das táteis e afetivas, devido à tendên-
cia intrínseca dos sentidos de se expandirem. Para Dewey (2010, p. 146),
“qualquer qualidade sensorial, por suas conexões orgânicas, tende a se es-
palhar e a se fundir”, ativando experiências anteriores. A singularidade da
experiência estética está, portanto, no fato de que o organismo que reage
na produção do objeto experimentado apresenta tendências de observa-
ção, desejo e emoção moldados por experiências anteriores. O papel do
artista na modulação de qualidades que acionam excitação afetiva, seja de
serenidade ou pungência, é explicado por Dewey por meio de uma citação
de Albert Barnes:

Há em nossa mente, em solução, um vasto número de atitudes afetivas, de


sentimentos prontos a serem reavivados quando chega o estímulo adequado,
e, mais do que qualquer outra coisa, são essas formas, esse resíduo da experi-
ência, que, mais plenas e mais ricas do que na mente do homem comum,
constituem o capital do artista. O que é chamado de magia do artista reside
em sua capacidade de transferir esses valores de um campo da experiência
para outro, de ligá-los aos objetos de nossa vida comum e, por meio desse
discernimento criativo, tornar esses objetos pungentes e momentosos.
(BARNES, 1928, p. 31 apud DEWEY, 2010, p. 234)

Ser afetado por uma imagem cinematográfica diz respeito, segundo


esse ponto de vista, ao modo como o material de uma experiência passada,
que se transpõe para as atitudes do presente, funciona em conexão com o
material fornecido pelos sentidos, gerando um aumento e individualização
da experiência atual. “O alcance de uma obra de arte é medido pelo número
e variedade de elementos de experiências passadas que são organicamente
absorvidos na percepção do aqui e agora” (DEWEY, 2010, p. 241).
Dos muitos modos que uma experiência cinematográfica pode nos
afetar, ressalto os acionamentos do corpo do espectador pela imagem ou,
44 | Intensidades da imagem

mais especificamente, da sua sensibilidade háptica, que designa a


capacidade tátil do corpo de entrar em contato com o ambiente por meio
de afetações indiretas nas fibras nervosas, tecidos da pele, músculos e
pelos (SANTAELLA, 2005, p. 77-78). Relacionada às sensações de pressão,
textura e vibração, essa sensibilidade possibilita uma forma intensiva de
sensorialização do corpo no espaço.
Podemos falar também em visualidade háptica, entendida segundo
Laura Marks (2000), como o modo como certas imagens podem ativar o
tato a partir da memória cultural e sensória de cada espectador por meio
da valorização de texturas de objetos normalmente filmados de perto.
Desse modo, a sensibilidade háptica está ligada à capacidade que as ima-
gens possuem de ampliar a experiência sensória.
Parte 2

Análises críticas a partir de Walter Salles

Nesta parte, realizo análises críticas de sequências de três longas-


-metragens de Walter Salles: Central do Brasil, Abril Despedaçado e Linha
de Passe. O critério para seleção dos trechos foi a presença de
atravessamentos das intensidades da imagem na narrativa audiovisual,
momentos em que as imagens e sons se tornam mais plásticos, corpóreos.
Em Central do Brasil, destaco a cena da romaria. Em Abril Despedaçado,
analiso três sequências: a de abertura do filme, a em que o personagem
Tonho assassina o irmão da família rival e a em que Tonho gira Clara em
uma corda indiana. Já em Linha de Passe, a cena estudada é a de uma festa
que acontece na casa de um dos amigos do personagem Bruno.

4. Central do Brasil e a narrativa como acontecimento

Figura 1: Frame do filme Central do Brasil (1998) com um dos personagens observando um monóculo com foto.

No texto “As virtualidades da narrativa cinematográfica” (2013),


André Parente apresenta uma crítica interna ao sistema-cinema criado
pelo teórico francês Gilles Deleuze, especialmente às relações entre o
virtual e a narrativa, instância entendida por Deleuze como condicionada
46 | Intensidades da imagem

à imagem. Parente defende que não existe oposição entre imagem e


narrativa, e sim entre concepções diferentes desses dois conceitos: uma
afirma que ambos são sistemas de representação e outra que são
acontecimentos. Ele busca mostrar que a narrativa também é
acontecimento, e não apenas representação.
Analisaremos a cena da romaria do longa-metragem Central do Bra-
sil (1998), de Walter Salles, a partir do conceito de acontecimento de
Parente. Para além de seus aspectos representacionais tradicionalmente
estudados, pretendemos demonstrar que a narrativa do filme também se
configura como acontecimento em planos dotados de maior plasticidade.

4.1 Análise da cena da romaria de Central do Brasil

Podemos verificar o estatuto da narrativa como acontecimento no


filme Central do Brasil. Nessa produção, uma narrativa não verídica apre-
senta a história de Dora, professora aposentada, cujo trabalho é escrever
cartas para analfabetos na estação de trem do Rio de Janeiro que dá título
ao longa. Ela resolve acompanhar o garoto Josué em uma viagem para
Bom Jesus do Norte, Pernambuco, em busca do pai, depois que a mãe do
menino morre atropelada nos arredores da estação. O argumento do filme
tem diversos pontos de contato com o roteiro de Alice nas Cidades (Wim
Wenders, 1974).
Apesar de Central permanecer, em grande medida, no registro da re-
presentação, podemos notar fissuras em sua narrativa, momentos em que
o tempo se constitui como escritura e, então, podemos observar ocorrên-
cias da narrativa como acontecimento.
Em diversas passagens do filme, vemos momentos de suspensão do
estatuto da representação, mas uma delas é particularmente interessante,
pois coincide com o ponto de virada da narrativa. Trata-se da cena da ro-
maria no Nordeste, que tecnicamente é marcada pelo virtuosismo de sua
Cyntia Gomes Calhado | 47

fotografia, conhecida pelo fato de grande parte da fonte de iluminação ser


proveniente de velas.
Caracterizada como uma personagem cínica, Dora aos poucos vai
revelando sua bondade como consequência de sua aproximação com
Josué. Esse arco dramático de ressensibilização tem como ápice o transe
religioso da personagem em meio a fogos de artifício, velas e ladainhas da
romaria, que culmina no desmaio de Dora na Casa dos Milagres, espécie
de templo em que religiosos acendem velas e deixam imagens de
familiares aos santos. O termo ressensibilização é utilizado pelo diretor
(em entrevista a BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 17) para explicar
essa mudança na trajetória da personagem. Interessante observar sua
escolha lexical, já que esse termo também é empregado em referência ao
processo de formação de imagens na película fotoquímica. Veremos, em
seguida, que esse aspecto da materialidade do cinema está presente na
cena como um índice metalinguístico.
Lúcia Nagib (2006, p. 74) identifica essa sequência como uma citação
de Glauber Rocha às avessas. Se, nos filmes do cinemanovista, o transe
religioso assumia o sentido de crítica à alienação, no longa de Salles, pro-
duz o milagre da revelação. A opção lexical de Nagib pela palavra revelação
a respeito do cinema de Walter Salles tampouco nos parece casual, já que
a poética do cineasta inclui a visão do cinema como revelação ‒ um pen-
samento defendido pelo teórico francês André Bazin, que associava o
realismo cinematográfico à noção espiritual de revelação, fruto da concep-
ção de uma ligação ontológica entre a película e o objeto representado. “O
cinema torna-se um sacramento; um altar onde uma espécie de transubs-
tanciação toma lugar” (STAM, 2010, p. 95). A abordagem de Bazin
caminha na direção do conceito de arte defendido por Walter Benjamin
em seu famoso texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade téc-
nica”, publicado em 1935. O autor observa que se atribui à arte um valor
48 | Intensidades da imagem

de culto e, dessa forma, ela ocupa o lugar de uma prática ritualística nas
sociedades secularizadas.
Após essa breve contextualização, passo para a análise desse trecho
do longa, com o objetivo de identificar nele atos narrativos de presentifi-
cação. A cena se inicia no registro da representação: Dora corre atrás de
Josué, que se perdeu na multidão de romeiros, e acaba entrando na Casa
dos Milagres. A luz e a imagem são o leitmotiv (motivo condutor) dessa
cena, como podemos ver nos frames abaixo.

Figura 2: Frame do filme Central do Brasil (1998). No início da cena, nota-se a ênfase nos pontos de luz das velas
dos romeiros e o templo ao fundo.

Figura 3: Frame do filme Central do Brasil (1998). Bem iluminada,


a imagem da Virgem Maria com o menino Jesus ocupa o centro do plano.
Cyntia Gomes Calhado | 49

Figura 4: Frame do filme Central do Brasil (1998).


Plano aproximado da imagem da Virgem Maria com o menino Jesus e pontos de luz ao fundo.

Figura 5: Frame do filme Central do Brasil (1998).


Dentro da Casa dos Milagres, inúmeras fotografias tornam-se visíveis pela iluminação de velas.

Um aspecto importante desse trecho do filme, como mencionamos, é


seu caráter metalinguístico. Nagib considera que o foco na materialidade
da imagem, conferida pelas fotografias em Central do Brasil, seria uma
herança de Wim Wenders:

A fotografia, ícone por excelência, segundo Peirce, graças a seu elo físico com
a natureza, é presença constante nos filmes de Wim Wenders, pelas quais os
personagens pretendem, sem jamais conseguir, obter a prova do real. (NAGIB,
2006, p. 74)

São as velas que iluminam a romaria noturna, e é graças a elas que


Dora pode ver as imagens religiosas e as fotografias nas paredes da Casa
dos Milagres. Salles cria visualmente uma metáfora do dispositivo cinema:
50 | Intensidades da imagem

uma sala escura em que a luz projetada revela imagens que sensibilizam a
retina (e a visão de mundo, em última análise) do espectador. É
interessante apontar que o cineasta articula conscientemente a relação luz-
-cinema-cena da romaria e, inclusive, a traz a público em entrevista após
a premiação do filme no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em
1998. Em suas palavras: “Que mais filmes brasileiros surjam, e que eles
sejam, como na romaria de Central, abençoados pela luz que mais
alumeia” (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 40).
Voltando à análise da cena, temos um plano subjetivo da personagem
que está prestes a desmaiar: é uma imagem desfocada simulando o efeito
de uma visão turva. Em seguida, seu rosto é tocado por diversas fotos 3x4,
cujo formato remete à película cinematográfica.

Figura 6: Frame do filme Central do Brasil (1998).


O plano subjetivo de Dora na Casa dos Milagres contém diversas fotos 3x4.

Figura 7: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano subjetivo de Dora mais aproximado e desfocado.
Cyntia Gomes Calhado | 51

Figura 8: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano subjetivo de Dora.

Figura 9: Frame do filme Central do Brasil (1998). Contraplano do rosto de Dora sendo tocado pelas fotos 3x4.

Intercalam-se, então, planos de fogos de artifício, em que a luz desen-


volve trajetória circular, e planos subjetivos da personagem desmaiando,
em que a câmera também realiza movimento circular.

Figura 10: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano de fogos de artifício.
Destaque para a luz desenvolvendo trajetória circular e pontos de luz ao fundo.
52 | Intensidades da imagem

Figura 11: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano de fogos de artifício na romaria.

O recurso da montagem paralela é novamente utilizado para relacio-


nar planos da personagem desmaiada no chão a planos de mais fogos de
artifício. A cena termina com um plano aproximado de uma imagem da
Virgem Maria com o menino Jesus pendurada em um estandarte, seguida
por um fade out. Os próximos frames ilustram esse percurso.

Figura 12: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano de fogos de artifício. Destaque para a plasticidade da luz.

Figura 13: Frame do filme Central do Brasil (1998). Plano de Dora desmaiada.
Cyntia Gomes Calhado | 53

Figura 14: Frame do filme Central do Brasil (1998).


Plano aproximado da imagem da Virgem Maria com o menino Jesus em estandarte e pontos de luz ao redor.

O plano subjetivo, que traz uma imagem desfocada, prepara a quebra


no registro da representação nessa cena. O regime da narrativa como
acontecimento é instaurado pelo plano dos fogos de artifício, em que a luz
desenvolve trajetória circular. Isso acontece porque a imagem do círculo
de luz, dotada de grande plasticidade, promove uma pausa na categoria do
tempo como um presente abstrato do que é “representado” ‒ objetos,
ações, formas de realidade e suas relações sensório-motoras ‒ e funda ou-
tra temporalidade, enfatizando o aspecto da imagem como escritura.
Nesse instante, o efeito de transparência é reduzido drasticamente em de-
trimento de uma percepção dela como produção do visível, como um efeito
de mediação. Portanto, podemos observar nesse plano uma ocorrência da
narrativa como acontecimento, já que ele não comunica um aconteci-
mento, mas restitui o efeito vivo da luz e, por decorrência, da experiência
cinematográfica, presentificando essa experiência para o espectador.
Busquei demonstrar, por meio da cena da romaria, que o filme Cen-
tral do Brasil apresenta, simultaneamente, dois modos de narração: o
representacional e o dos atos de presentificação. Além disso, proponho que
o plano em que predomina a plasticidade da luz em formato circular possa
54 | Intensidades da imagem

ser lido como aquele que instaura a narrativa como acontecimento na cena,
de acordo com a concepção de Parente.
Esse plano, visto como um ato de presentificação, introduz uma fis-
sura na representação das ações até então colocadas, promovendo um
desdobramento nas imagens. A dobra instaurada pelo acontecimento nar-
rativo abre uma multiplicidade de relações possíveis entre os espectadores
e essa imagem fílmica. Uma perspectiva de leitura que apresentamos para
essa cena é a metalinguística. Desse ponto de vista, o sentido que se produz
é o do cinema como um dispositivo capaz de sensibilizar os espectadores
e transformar seus modos de ver o mundo a partir de um pensamento
dessa arte como revelação.
Além do campo da hermenêutica, a narrativa como acontecimento
intensifica a experiência cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do
espectador se identificam. O tempo é, assim, percebido como vivido, e cria-
se uma relação entre a luz projetada ‒ o princípio do dispositivo cinema-
tográfico ‒ e o espectador.

5. Abril Despedaçado e as plasticidades espaciais da imagem


cinematográfica

Figura 15: Frame do filme Abril Despedaçado (2001) com imagem de um retrato pintado.

A ênfase na experiência estética das plasticidades espaciais da imagem


é um aspecto de desconstrução da imagem cinematográfica pós-vídeo. Para
Cyntia Gomes Calhado | 55

verificar de que modo procedimentos audiovisuais associados à perda do


efeito de tridimensionalidade e à desfiguração produzem acontecimentos de
imagem, entre eles, experiências de cores, formas e texturas, farei uma aná-
lise figural de cenas do longa-metragem Abril Despedaçado, que tem sido
pensado primordialmente no campo representacional. Essa análise busca
identificar os aspectos figurais da imagem, relacionando-os com os planos
narrativo e retórico do filme, já que, no projeto poético de Walter Salles, es-
ses aspectos estão em articulação permanente.

5.1 Figural em Abril Despedaçado

Abril Despedaçado narra a rivalidade entre duas famílias, cujos mem-


bros juram vingança e travam duelos que se perpetuam ao longo de
gerações, em um ciclo sem fim de matança. Trata-se de uma adaptação
livre do romance homônimo do escritor Ismail Kadaré (Gjirokastër, Albâ-
nia, 1936) para o sertão nordestino dos anos 1910. Em pesquisa realizada
pela produção do longa (BUTCHER; MÜLLER, 2002), verificou-se que, na
ocupação do território do Sertão dos Inhamuns, microrregião do Ceará,
vários crimes de sangue foram motivados por vendetas semelhantes às
descritas por Kadaré.
Na adaptação, Tonho (Rodrigo Santoro), filho do meio da família Bre-
ves, é impelido pelo pai (José Dumont) a vingar a morte do seu irmão mais
velho, vítima da luta ancestral entre famílias pela posse da terra. Se cum-
prir sua missão, Tonho terá sua vida partida em duas: os vinte anos que
ele já viveu, e o pouco tempo que lhe restará, já que passará a ser perse-
guido por um membro da família rival, como dita o código de vingança da
região. Angustiado pela perspectiva da morte e instigado por seu irmão
menor, Pacu (Ravi Ramos Lacerda), Tonho começa a questionar a lógica
da violência e da tradição. Nas pausas da rotina do extenuante trabalho no
decadente engenho familiar de cana-de-açúcar, vemos o personagem em
56 | Intensidades da imagem

situações de conflito de ideias e sentimentos. O surgimento de um pequeno


circo itinerante na região muda essa dinâmica. Os momentos de convívio
com a dupla circense, especialmente com a trapezista Clara, trazem poesia
e lirismo à vida de Tonho.
Apesar de Abril Despedaçado permanecer, em grande medida, no
campo do figurativo, da representação, podemos notar fissuras em sua
narrativa, momentos em que o figural se impõe. Selecionamos três cenas
nas quais esse fenômeno pode ser observado.
Na primeira, o figural é obtido por um procedimento de fotografia. A
baixa iluminação e a profundidade de campo reduzida da cena geram a
perda do efeito de tridimensionalidade do espaço diegético, e a ênfase plás-
tica recai sobre a experiência das formas e cores. Na segunda, trata-se de
um travelling que acompanha a corrida de Tonho atrás de um dos filhos
da família rival para matá-lo. A sequência, que se passa em uma vegetação
árida, apresenta o efeito de desfiguração, conferindo à imagem uma tex-
tura áspera. Na terceira, Tonho gira a trapezista Clara em uma corda e,
pelo procedimento de aceleração da imagem, temos novo episódio de des-
figuração, que produz experiências de formas, cores e texturas na imagem.

5.2 Experiência de formas e cores em espaço bidimensional

Na cena de abertura do filme, após um letreiro em fundo preto que


localiza a narrativa no aspecto espaçotemporal (“Sertão brasileiro, 1910”),
vemos a silhueta de uma pessoa com chapéu de couro andando à noite em
meio a uma vegetação árida e céu da cor azul royal. A cena é composta por
dois planos médios montados em campo/contracampo, com a primeira
tomada do personagem de frente e a segunda de costas. A cena tem baixa
iluminação e pouca profundidade de campo; o foco está no personagem, e
o fundo é desfocado.
Cyntia Gomes Calhado | 57

Figura 16: Frame do filme Abril Despedaçado (2001).


A ênfase plástica da primeira cena do filme recai sobre formas, linhas e cores no espaço bidimensional.

Figura 17: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Contracampo do plano anterior.

Pela banda sonora, descobrimos tratar-se de uma criança. Seu andar


é pontuado pelo som do pé no chão e há uma música instrumental. Em
voz off, Pacu, irmão mais novo da família Breves, apresenta-se. A locução
enfatiza o sotaque regional e os desvios da norma culta. O narrador fala
sobre a existência de duas histórias, sendo que ele não consegue se lembrar
de uma delas por causa da outra que ocupa sua mente: a história de sua
família. Uma mistura de elementos realistas e fabulares, em uma sequên-
cia que dá o tom que irá permear o restante da obra.
Um espectador menos atento provavelmente não notará nada de es-
pecial nessa abertura. Os aspectos formais que apontarei também podem
passar despercebidos mesmo aos críticos de cinema e analistas acadêmicos
acostumados a pensar o cinema de Walter Salles apenas do ponto de vista
58 | Intensidades da imagem

realista. Porém, um olhar atento aos aspectos figurais da imagem revela


que há, nessa sequência inicial, uma fissura na representação da ação que
promove um desdobramento na imagem.
O primeiro elemento que salta aos olhos é a indefinição das feições
do personagem. Devido à baixa iluminação da cena, vemos apenas sua si-
lhueta em preto, ou seja, o personagem se apresenta como forma, não
como figura. O mesmo acontece com a vegetação, que se dá a ver por meio
de linhas pretas que decoram o fundo azul. Em seguida, chama a atenção
o azul royal do céu, tonalidade artificial obtida em processo de pós-produ-
ção, que contrasta com os parâmetros realistas que o filme parece seguir.
As escolhas cromáticas no restante do filme reiteram esse artificialismo, o
que nos faz crer que seja deliberado.
Outro aspecto importante nesta leitura figural é a elaboração espacial
da cena. Apesar da imagem cinematográfica ser bidimensional, sabe-se
que o esforço para a manutenção da tridimensionalidade do espaço diegé-
tico13 é condição fundamental para o ilusionismo requerido pela narração.
A cena em questão promove uma suspensão do efeito de tridimensionali-
dade por meio da profundidade de campo reduzida. Dessa forma, a
imagem-espaço, em sua materialidade, revela-se ao espectador.
Ao observarmos a cena nos atendo aos aspectos plásticos apontados,
especialmente à baixa profundidade de campo, à forma preta em primeiro
plano e às linhas pretas no fundo azul, teremos uma experiência estética
de formas e cores no espaço bidimensional da imagem. Considerando que
o cinema é tido como a arte do tempo e do movimento, podemos pensar
que as soluções plásticas dessa cena visam aproximar a experiência
cinematográfica das sensações mais frequentemente exploradas pelas
artes visuais.

13
No cinema e em outros produtos audiovisuais, diz-se que algo é diegético quando ocorre dentro da ação narrativa
ficcional do próprio filme.
Cyntia Gomes Calhado | 59

5.3 Círculo como motivo plástico condutor

São diversos os contrastes explorados em Abril Despedaçado. Do


ponto de vista narrativo, observam-se as polarizações entre arcaico e mo-
derno, desejo e submissão, destino e liberdade. Do ponto de vista formal,
as cores vermelha e azul, a reta e o círculo, imobilidade e movimento, re-
alismo e fábula. Um dos motivos plásticos principais do filme é o círculo,
utilizado como solução formal para a lógica opressora da vendeta entre
famílias. A apresentação figurativa privilegiada dessa forma é a bolandeira
– tipo de engenho comum no século XX – utilizada pela família Breves para
a produção de rapadura. Privilegiada, pois, assim como um eixo, ela nor-
teará as demais variações plásticas dessa forma ao longo do filme. Sua
configuração lembra um relógio de ponteiros ou as engrenagens de um
instrumento de tortura medieval.
A segunda cena de Abril Despedaçado em que as plasticidades da
imagem cinematográfica se presentificam retrata a corrida de Tonho atrás
de um dos filhos da família rival para cobrar o sangue do irmão morto. As
disputas por território que vitimizam indistintamente os filhos homens
das duas famílias são elaboradas no plano formal pelo procedimento da
desfiguração dos personagens na paisagem. Esse elo trágico dos
personagens com o espaço geográfico que os esvazia de suas identidades
se faz ver plasticamente.
A passagem inicia-se com um travelling da esquerda para a direita,
que segue os personagens em uma vegetação árida. Porém, curiosamente
e sem justificativa narrativa aparente, a direção do movimento dos perso-
nagens se inverte, e passamos para um travelling da direita para a
esquerda. Portanto, mesmo correndo em linha reta, essa mudança de di-
reção do movimento faz com que os personagens acabem voltando ao
ponto inicial. Assim, atribui-se a essa corrida para a morte a circularidade
60 | Intensidades da imagem

da lógica da vingança familiar. Por correrem em paralelo e ser filmados de


lado, os corpos dos personagens se sobrepõem momentaneamente, em
outra elaboração formal da ideia de um mesmo destino trágico que os une.
De beleza plástica notável, a aceleração da cena promove, ainda, a desfigu-
ração progressiva dos personagens, cujos contornos se confundem com a
textura áspera e os tons terrosos da imagem.

Figura 18: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Travelling da esquerda para a direita.

Figura 19: Frame do filme Abril Despedaçado (2001).


Travelling da direita para a esquerda, após a inversão da direção do movimento.

5.4 Experiência da intensidade do movimento

Por criar uma possibilidade de liberdade, o amor entre Tonho e Clara


representa uma quebra do ciclo de vingança ao qual o personagem está
submetido. Apesar de haver uma cena de sexo entre os personagens na
parte final do longa, o momento em que Tonho gira a trapezista Clara na
Cyntia Gomes Calhado | 61

corda indiana é a verdadeira cena de amor do filme, segundo Walter Salles


(BUTCHER; MÜLLER, 2002, p. 180). A passagem é uma referência à tra-
pezista Marion de Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders (STRECKER,
2010, p. 115), personagem que exprime a fragilidade da vida por meio de
seus movimentos acrobáticos delicados.
Nessa cena de Abril Despedaçado, a estrutura circular se repete, mas
desta vez subvertendo o sentido opressor da bolandeira e propondo o cír-
culo como sonho e utopia. Essa sequência, tecnicamente uma das mais
difíceis do filme, contou com uma equipe de maquinistas portugueses.
Para os objetivos desta análise, me concentrarei na descrição de seis planos
da cena (P1, P2, P3, P4, P5, P6), que são aqueles em que Clara aparece
girando. O primeiro (P1) é um plano geral de Clara na corda para situar
espacialmente o espectador.

Figura 20: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Plano geral de Clara na corda indiana (P1).
62 | Intensidades da imagem

Depois, temos uma variação mais aproximada desse plano (P2).

Figura 21: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Variação aproximada (P2).

E, novamente, uma variação mais aproximada (P3), em que o efeito


de desfiguração começa a ser percebido.

Figura 22: Frame do filme Abril Despedaçado (2001).


Variação mais aproximada em que a desfiguração se torna aparente (P3).

A desfiguração se intensifica no plano mais aproximado da cena (P4).


Os três próximos frames ilustram alguns dos diversos ângulos do corpo de
Clara recortados pelo enquadramento, em efeito caleidoscópio. É impor-
tante salientar, em relação à concepção técnica dessa sequência, a parceria
da direção de arte com a direção de fotografia. A escolha de um vestido de
renda para o figurino de Clara favorece a formação de texturas na imagem
em um plano aproximado.
Transpondo o pensamento de Deleuze (2007) sobre a desfigura-
ção/deformação nas artes visuais para o contexto cinematográfico em
Cyntia Gomes Calhado | 63

questão, diria que esse plano abre mão da figuração e das formas para
fazer ver a força e a intensidade do movimento.
Para Deleuze, a tarefa da arte, seja ela qual for, é captar forças, tornar
visíveis as forças invisíveis, ou, na formulação do pintor Paul Klee, “não
apresentar o visível, mas tornar visível” (DELEUZE, 2007, p. 62). Por isso,
Deleuze diz que nenhuma arte é figurativa, mesmo utilizando figuras. No
esforço de captar forças, os artistas se deparam com outro problema, o da
decomposição e da recomposição dos efeitos da profundidade, das cores e
do movimento. Ele chama a atenção para o fato do movimento ser “um
efeito que remete ao mesmo tempo a uma força única que o produz e a
uma multiplicidade de elementos decomponíveis e recomponíveis sob essa
força” (DELEUZE, 2007, p. 63). É por isso que a apresentação do movi-
mento envolve procedimentos de deformação na figura, no corpo. Sobre o
procedimento de deformação, ele afirma que:

Quando uma força se exerce […] ela não dá origem a uma forma abstrata, […]
ao contrário, ela faz dessa uma zona de indiscernibilidade comum a várias for-
mas, irredutíveis a qualquer uma delas, e as linhas de força que ela faz passar
escapam de toda forma por sua própria nitidez, por sua precisão deformante.
(DELEUZE, 2007, p. 64-65)

Figura 23: Frame do filme Abril Despedaçado (2001).


Rastros de ângulos do corpo de Clara recortados pelo enquadramento (P4).
64 | Intensidades da imagem

Figura 24: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Variação de P4.

Figura 25: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Variação de P4.

Em seguida, temos uma vista em contraplongée (angulação em que a


câmera filma o objeto de baixo para cima) em que Tonho divide o quadro
com Clara.

Figura 26: Frame do filme Abril Despedaçado (2001).


Em contraplongée, Clara gira e Tonho observa seu movimento (P5).
Cyntia Gomes Calhado | 65

Finalmente, surge o plano considerado o de mais difícil realização do


filme, que corresponde ao clímax dessa cena, da narrativa como um todo
e, inclusive, comporta a acepção sexual do termo, já que, como apontamos,
a cena pode ser lida como uma metáfora do ato amoroso14. Nele, a câmera
é presa à corda, um pouco acima da posição da atriz, com a lente voltada
para baixo. O azul-claro do céu dá lugar aos tons terrosos do chão nessa
plongée (vista de cima para baixo) dos rastros de Clara. Essa configuração
espacial cria uma inversão da lei da gravidade, já que a personagem parece
flutuar. Trata-se de uma inversão formal que potencializa o sentido nar-
rativo de quebra da lei familiar anteriormente apontada.
A imagem como acontecimento se impõe em diferentes texturas, for-
mas espiraladas e gradação de tons terrosos, do marrom ao bege. Grande
parte de sua força e lirismo é consequência da solução técnica da cena. O
fato da câmera-corpo estar presa na corda faz com que seu movimento
seja impulsionado pela mesma força que move a atriz/personagem Clara,
que diegeticamente corresponde à força de Tonho. Como as imagens cap-
tadas são afetadas por essa força, elas apresentam a inscrição do tempo na
imagem. O resultado dessa operação, ao mesmo tempo técnica, plástica,
poética e narrativa, é um momento de grande lirismo. Esse plano con-
densa a visão poética de Salles de que, na experiência cinematográfica,
técnica, plasticidade da imagem e narrativa são forças indissociáveis.

14
Esse sentido é enfatizado pela fala de Clara “Roda mais, Tonho. Mais. Mais. Roda mais”, seguida de uma longa
risada, enquanto se escuta a respiração ofegante de Tonho.
66 | Intensidades da imagem

Figura 27: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Em P6, a câmera em plongée se movimenta junto com a
atriz, criando uma relação entre a força que impulsiona o movimento e as imagens captadas.

O efeito de montagem em fusão dos planos P6 e P7 reforça esse sen-


tido por meio da sobreposição de imagens.

Figura 28: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). Efeito de montagem em fusão P6-P7.

Por fim, temos um plano (P7), que é uma versão de P3 com o céu azul-
-escuro, representando o sol poente, para indicar a passagem do tempo.

Figura 29: Frame do filme Abril Despedaçado (2001). O céu azul-escuro em P7 indica a passagem do tempo.
Cyntia Gomes Calhado | 67

A análise figural de três cenas do longa Abril Despedaçado buscou


evidenciar diferentes modos de exploração das plasticidades espaciais da
imagem cinematográfica no filme. Vimos como a primeira cena promove
experiências estéticas de formas e cores, evidenciando a bidimensionali-
dade da imagem.
No segundo caso, após a identificação do círculo como motivo plástico
principal do filme, utilizado como solução formal para a lógica opressora
da vendeta entre famílias, analisamos como uma corrida em linha reta
produz uma impressão de circularidade por uma inversão da direção do
movimento dos personagens, filmados em travelling. Verificou-se também
como os efeitos de sobreposição dos corpos dos personagens e sua pro-
gressiva desfiguração e indistinção na textura áspera da imagem
contribuem para identificá-los como vítimas da lógica trágica da vingança
entre famílias.
Já na terceira cena, procurei mostrar como a estrutura circular se re-
pete, porém com uma leitura reelaborada, segundo a qual a carga
opressiva da bolandeira dá lugar ao círculo como sonho e utopia. A lei da
gravidade suspensa no plano em plongée, que funciona como metáfora do
ato amoroso, afirma a potência libertadora do afeto. As diferentes texturas,
formas espiraladas e gradação de tons terrosos são rastros da inscrição do
tempo na imagem nessa experiência de movimento intensivo.
A análise procurou demonstrar o efeito vídeo como uma extremidade
da imagem cinematográfica. Ele pode ser notado na desconstrução da re-
lação ilusionista com a imagem, em que a narrativa representacional
sustenta um determinado estatuto de realismo. O cinema pós-vídeo pro-
põe, então, uma experiência estética da narrativa como acontecimento,
criando zonas fronteiriças entre as plasticidades da imagem e a narrativa.
Dessa forma, observa-se a contaminação de procedimentos poéticos entre
68 | Intensidades da imagem

essas duas formas artísticas, como a perda do efeito de tridimensionali-


dade e a desfiguração. Já o compartilhamento pode ser percebido na opção
pela manutenção dos estatutos representacionais e narrativos aliada a mo-
mentos de quebra desses regimes, em que o figural ganha proeminência.
Nesse sentido, vale a pena fazer um resgate histórico e lembrar a
busca dos pintores de paisagem moderna descrita por Nelson Brissac Pei-
xoto (2004). Para ele, o domínio das nuvens na pintura marca um
questionamento do dispositivo perspectivo clássico, libertando o pintor
dos critérios habituais de identificação, semelhança e significação: “Se Cé-
zanne tem uma dívida, não é com a paisagem como motivo realista ou
como organização de formas. É com ‘alguma coisa’ que lhe pode vir aos
olhos, uma qualidade de cromatismo, um timbre colorido” (PEIXOTO,
2004, p. 146). A possibilidade de experimentar diretamente o aconteci-
mento em detrimento do controle das formas se torna a investigação dos
pintores de paisagem modernos.

Procurar a realidade sem ter outro guia senão a natureza na impressão ime-
diata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem
compor a perspectiva ou o quadro. É esse mundo primordial que se quer pin-
tar […]. A hierarquia clássica dos componentes da pintura – desenho, depois
cor – é invertida. (PEIXOTO, 2004, p. 147)

Da mesma forma que nas artes visuais a figuração dá lugar ao motivo


(para Cézanne), à figura (para Deleuze), defendo que esse fenômeno pode
ser observado no cinema contemporâneo. Certos cineastas partem de uma
realidade já imagética para capturar forças, explorar tatilidades,
sensorialidades, intensidades. A narrativa como acontecimento sendo esse
instante de crise e contaminação que promove outro regime de fruição,
mais corpóreo.
Cyntia Gomes Calhado | 69

6. Linha de Passe e os procedimentos fotográficos no cinema

Figura 30: Frame do filme Linha de Passe (2008). Foto 3x4 para reconhecimento da identidade.

Linha de passe designa a troca de passes entre os jogadores de um


time sem que a bola seja interceptada pelo adversário. O título do filme
que irei discutir e sua estrutura dramática se valem desse jargão do futebol
para narrar a história de uma família da Cidade Líder, bairro periférico da
Zona Leste de São Paulo. A mãe e os quatro filhos procuram equilibrar
sobrevivência e manutenção dos valores, sem desistir da realização dos
sonhos. Reginaldo, o caçula, tenta obstinadamente encontrar o pai. Aspi-
rante a jogador de futebol, Dario15 vê, aos dezoito anos, suas possibilidades
no esporte se fechando. Dinho é um frentista que busca refúgio na religião.
Dênis, o irmão mais velho que ganha a vida como motoboy, flerta com a
criminalidade enquanto se esforça para manter o filho, fruto de uma gra-
videz não planejada. A família é chefiada por Cleuza, empregada
doméstica, grávida do quinto filho.
Investigarei a sequência de uma festa que acontece logo após Dario
participar de um campeonato de futebol no condomínio em que sua mãe
trabalha. O filho da patroa de Cleuza, Bruno, convida-o para um jogo
amador com seus amigos, sabendo de suas habilidades nesse esporte. As
opções fílmicas desse trecho buscam ressaltar que a diferença de classe

15
Este personagem é interpretado por Vinícius de Oliveira, ator que protagonizou Central do Brasil.
70 | Intensidades da imagem

marca o encontro entre o universo de Dario e o de Bruno. Regada a drogas


e álcool, essa festa, realizada na casa de um dos amigos de Bruno, um
imóvel chique, com piscina, tem como contraponto outra festa desse
mesmo filme, organizada na casa de Dario em comemoração aos seus
dezoito anos.
Essa diferença de classe que marca as experiências de um jovem da
periferia e um da elite é trabalhada na composição fotográfica das cenas.
O contraste de luz e sombra caracteriza as duas festas, porém, enquanto
na de Dario a luz é amarelada, na do amigo de Bruno, a luz é branca e
superexposta. Dessa forma, o excesso e a carência de luz são a elaboração
plástica da desigualdade social vivida pelos personagens.
A sequência da festa do amigo de Bruno é dividida em três momen-
tos. No primeiro, o clima é de animação leve, os personagens começam a
dançar, beber e tomar uma mistura de drogas que estava sendo preparada.
Como vemos nos próximos frames, a cena se inicia desfocada, com a forma
de duas personagens femininas dançando, e nota-se o contraste entre luz
e sombra.

Figura 31: Frame do filme Linha de Passe (2008). A sequência inicia desfocada, com a forma de duas personagens
dançando. Nota-se o contraste entre luz e sombra.
Cyntia Gomes Calhado | 71

Figura 32: Frame do filme Linha de Passe (2008). Um pequeno movimento de câmera enquadra uma tela na pa-
rede, cujo tema é uma ilusão anamórfica. Aqui temos a cenografia antecipando o acontecimento de imagem que
virá a seguir.

O segundo momento corresponde ao pico de intensidade da sequên-


cia. Na banda sonora, a música eletrônica alta embala uma frenética dança
dos personagens. É quando observamos o acontecimento de imagem –
graças a um procedimento que detalharemos posteriormente –, e as ana-
morfoses16 estão mais pronunciadas.

Figura 33: Frame do filme Linha de Passe (2008).


Neste trecho da sequência, observamos o acontecimento de imagem com ênfase nas anamorfoses.

16
Arlindo Machado (1993) explica que o termo anamorfose surge no século XVII para designar uma técnica, já
praticada no século anterior, de perverter os cânones da perspectiva geométrica do Renascimento. Com o passar do
tempo, o termo passa a fazer referência a qualquer distorção do modelo realista, segundo o entendimento
renascentista, de representação figurativa. De uma técnica, passou a uma poética de abstração, um mecanismo de
produção de ilusão de ótica e uma filosofia de falsificação da realidade.
72 | Intensidades da imagem

Figura 34: Frame do filme Linha de Passe (2008). Outro quadro que apresenta anamorfose.

Figura 35: Frame do filme Linha de Passe (2008).


Destaque para a textura e para o procedimento fotográfico que marca a inscrição do tempo na imagem.

Figura 36: Frame do filme Linha de Passe (2008). Variação do quadro acima.
Cyntia Gomes Calhado | 73

Figura 37: Frame do filme Linha de Passe (2008). Elaboração plástica da desigualdade social trabalhada no roteiro.
A forma do personagem Dario é marcada pelo contraste entre luz e sombra.

Figura 38: Frame do filme Linha de Passe (2008).


Resultado plástico do procedimento fotográfico: distorção da luz em sentido circular.

No terceiro momento, o ritmo começa a desacelerar, e um tom


contemplativo ganha espaço. Vemos Dario ir à cozinha para beber água e,
em seguida, seu olhar voyeur se perde na dança erotizada dos casais na
sala. A superexposição da luz é mais pronunciada quando Dario entra na
cozinha; nesse trecho, os diversos reflexos da luz também são explorados.
O procedimento fotográfico dessa sequência, concebido e realizado por
Mauro Pinheiro Jr., incluiu uma alteração na correia da câmera, que,
diferente de seu funcionamento tradicional, expôs o negativo enquanto ele
estava em movimento. Como o negativo distorce a imagem em situações
de superexposição à luz, o resultado desse processo é a ampliação dos
74 | Intensidades da imagem

diversos pontos de iluminação da cena e a distorção da luz em sentido


circular. Esse recurso cria rastros do movimento da luz na imagem,
gerando diversos tipos de anamorfoses.

Figura 39: Frame do filme Linha de Passe (2008). Cena de Dario na cozinha, na qual a superexposição à luz é marcante.

Figura 40: Frame do filme Linha de Passe (2008). Versão distorcida do quadro acima.

Figura 41: Frame do filme Linha de Passe (2008). Plano subjetivo de Dario, que mostra os casais dançando. À di-
reita do quadro, observa-se a intensificação do reflexo da luz na mesa de vidro.
Cyntia Gomes Calhado | 75

Figura 42: Frame do filme Linha de Passe (2008).


No contracampo da cena acima, a ampliação do reflexo da luz na garrafa também chama a atenção.

Figura 43: Frame do filme Linha de Passe (2008). Contraste entre luz e sombra na imagem do casal dançando.

Figura 44: Frame do filme Linha de Passe (2008).


Destaque para a textura e o procedimento audiovisual que promove a inscrição do tempo na imagem.
76 | Intensidades da imagem

Figura 45: Frame do filme Linha de Passe (2008). Detalhe do efeito de ampliação do reflexo da luz em um copo.

Analogamente à sequência da Casa dos Milagres do filme Central do


Brasil, o contato de Dario com a alteridade, elaborado plasticamente pela
intensidade da luz, tem como consequência uma experiência de morte e
renascimento para o personagem. Ele se dá conta, pela primeira vez, de
que o sonho de se tornar jogador de futebol poderia se realizar caso ele
pertencesse a outra classe social. Assim como Dora, Dario desmaia após
ser sensibilizado pela luz. Essa experiência cinematográfica, ao mesmo
tempo imagética e narrativa, produz novas formas de subjetividade tanto
nos personagens como nos espectadores.
Porém, enquanto Dora vivia uma espécie de transe religioso, Dario
está sob o efeito de drogas. Esse estado de consciência alterado é utilizado
como pretexto para outra elaboração plástica das imagens que se apre-
senta simultaneamente aos efeitos fotográficos apontados. Trata-se de um
acontecimento de quebra do movimento fluido dos quadros fílmicos, mais
evidente no segundo trecho da sequência. Ele é obtido por meio da filma-
gem de alguns planos com velocidade alterada para seis e doze frames por
segundo. Sabe-se que o dispositivo cinematográfico se funda na ilusão de
movimento gerada pela apresentação sequencial de quadros estáticos. Ao
explorar o efeito de salto entre as imagens, em que se percebem os quadros
estáticos, esse trecho do filme promove uma experiência de desconstrução
Cyntia Gomes Calhado | 77

do dispositivo cinematográfico. Esse fenômeno marca uma das ocorrên-


cias da narrativa como acontecimento em Linha de Passe.
Apesar de esse filme permanecer, em grande medida, no registro da
representação, podemos notar fissuras, momentos em que o tempo se
constitui como escritura e, então, instaura-se a narrativa como
acontecimento. O segundo momento da sequência da festa quebra o
registro da representação. O regime da narrativa como acontecimento é
instaurado pelo procedimento de quebra do movimento fluido dos
quadros fílmicos. Isso acontece porque a percepção dos quadros fixos
promove uma pausa na categoria do tempo, como um presente abstrato
do que é “representado” – objetos, ações, formas de realidade e suas
relações sensório-motoras –, e funda outra temporalidade, enfatizando o
aspecto da imagem como escritura.
A grande plasticidade da luz nesses quadros, fruto das elaborações
fotográficas mencionadas, passa a constituir o interesse principal da expe-
riência estética da cena. Nesse instante, o efeito de transparência é
reduzido drasticamente em detrimento de uma percepção da imagem
como produção do visível, como um efeito de mediação. Portanto, pode-
mos observar nesse trecho uma ocorrência da narrativa como
acontecimento, já que ele não comunica um evento, mas restitui o efeito
vivo da luz e, por decorrência, da experiência cinematográfica, presentifi-
cando essa experiência para o espectador.
Um modo de leitura que proponho para essa sequência é: como o
contato com a alteridade, mediado pela experiência cinematográfica, pode
produzir novas formas de subjetividade. Isso ocorre devido ao procedi-
mento audiovisual fotográfico descrito, que cria zonas fronteiriças entre as
plasticidades da imagem e a narrativa. Essa relação tem a potência de pro-
duzir novos modos de subjetividade.
Parte 3

Intensidades da imagem no cinema contemporâneo

Nesta parte, observarei como as intensidades da imagem no cinema


podem ser lidas como um ponto de extremidade da experiência cinemato-
gráfica na contemporaneidade com base na abordagem das extremidades,
de Christine Mello (2008a; 2017).

7. Vídeo como acontecimento na narrativa de Walter Salles

Se é de caráter duvidoso afirmar que a realização cinematográfica


possa ter sido, em algum momento, inocente, sem dúvida, na contempo-
raneidade, é impensável conceber qualquer exercício de encenação que
não leve em conta seu lugar na história das formas. Os cineastas são, em
sua maioria, profissionais com sólida formação intelectual, oriundos das
universidades. Os públicos, por sua vez, são cada vez mais conscientes. E
eles têm à disposição na internet um banco de dados audiovisual que su-
pera, em volume e diversidade, qualquer acervo físico. Com seu
centenário, o cinema apresenta uma linguagem e circuito estruturados –
com seus gêneros, técnicas, parque exibidor e festivais – ao mesmo tempo
que busca espaço e a reinvenção de suas formas na relação com seus pares
audiovisuais – a televisão e o vídeo.
Esse contexto que acabamos de descrever começa a tomar forma por
volta dos anos de 1980, década na qual Walter Salles dá início à sua pro-
dução. Nesse momento, a ideia de uma “morte do cinema” era sentida por
diversos realizadores. O documentário Quarto 666 (1982), de Wim Wen-
ders, utiliza essa atmosfera como mote, reunindo cineastas como Werner
Herzog, Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Steven Spielberg, entre
Cyntia Gomes Calhado | 79

outros, para responder à pergunta: o cinema é uma linguagem em vias de


desaparecimento, uma arte que está morrendo? A discussão encontrou eco
na academia; Philippe Dubois (2011), Arlindo Machado (2011) e Raymond
Bellour (2012) foram alguns dos teóricos que analisaram o tema.
Arlindo Machado (2011, p. 190) observa que, nesse período, a popula-
rização da imagem eletrônica por meio da televisão e dos meios eletrônicos
em geral mudava os hábitos perceptivos dos espectadores em relação a uma
ontologia da imagem. Ocorre que, na passagem da imagem fotoquímica
para a eletrônica, o efeito de transparência da imagem foi reduzido drasti-
camente em benefício de uma percepção dela como produção do visível,
como um efeito de mediação (MACHADO, 2011, p. 190).
Prosseguindo seu raciocínio, Machado afirma que a imagem fotoquí-
mica – consistente, estável e realista – projetada de modo a produzir a
sensação de movimento dá continuidade ao modelo de imagem construído
no Renascimento, marcado pela reprodução mimética do visível. Essas ca-
racterísticas técnicas favoreceram a vinculação do cinema à função de
representação, assim como à função narrativa, já que esse tipo de imagem
é ideal para a manutenção do ilusionismo necessário ao processo narra-
tivo. Em oposição, a maleabilidade da imagem eletrônica, diz o autor, a faz
mais suscetível às transformações e anamorfoses, estando mais próxima,
portanto, da distorção, desintegração e abstração das formas e da instabi-
lidade dos enunciados.
Não busco com isso criar uma dicotomia entre esses dois tipos de
imagem nem endossar uma visão essencialista de que toda imagem foto-
química visa à transparência 17 , e toda imagem eletrônica, à opacidade.
Entendemos que essas diferenças estão ligadas aos modos de fruição, a

17
Conceitos de Ismail Xavier (2005), transparência se refere à operação cinematográfica em que o dispositivo é
ocultado em favor de um ganho maior de ilusionismo; já a situação de opacidade seria quando o dispositivo é revelado,
gerando maior distanciamento e crítica.
80 | Intensidades da imagem

tipos de experiências estéticas favorecidas por essas imagens. Apesar de o


cinema experimental problematizar a ilusão de transparência da imagem
fotoquímica desde os primórdios do cinema, acredito que a disseminação
da imagem eletrônica populariza essa desconstrução, operando uma mu-
dança nos hábitos perceptivos dos espectadores.
Gilles Deleuze (2013b, p. 92), em “Carta a Serge Daney: otimismo,
pessimismo e viagem”, texto de 1986, relaciona as três funções da imagem
cinematográfica definidas pelo crítico de cinema francês Serge Daney em
A rampa (2007) a seus conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo.
Se a imagem-movimento pode ser expressa na questão “o que há para ver
por trás da imagem?”, e a imagem-tempo na questão “o que há para ver
na imagem?”, o teórico aponta para a insuficiência desses conceitos para
lidar com os filmes que surgiam nos anos 1970 e 1980. Ele defende, em
diálogo com Daney, a existência de um terceiro estado da imagem, que ele
define como:

[…] quando não há mais nada para ver por trás dela [da imagem], quando não
há mais muita coisa para ver nela ou dentro dela, mas quando a sempre ima-
gem desliza sobre uma imagem preexistente, pressuposta quando “o fundo da
imagem é sempre já uma imagem”, indefinidamente, e que é isto que é preciso
ver. […] a tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual…), nem um qua-
dro-plano (no qual…), mas uma mesa de informação sobre a qual as imagens
deslizam como “dados”. (DELEUZE, 2013b, p. 101-102, grifos do autor)

A constatação sobre esse novo estado da imagem é compartilhada por


outros autores, como aqueles relacionados à teoria crítica das mídias, a
exemplo de Philippe Dubois (2011, p. 181-182), que considera o pós-vídeo
uma nova fase histórica do cinema, “em que os efeitos (estéticos) do vídeo
estão de tal modo integrados ao filme que […] o cinema contemporâneo
teria se transformado, globalmente, em um ‘efeito vídeo’”.
Cyntia Gomes Calhado | 81

Busco defender, em diálogo com esses autores, que a poética de Salles


é marcada pelo advento do vídeo e seus impactos no campo do audiovisual.
Em sua produção propriamente videográfica, como o documentário Kra-
jcberg – O Poeta dos Vestígios (TV Manchete, 1987), Salles explora uma
temporalidade distendida, planos abertos e produção sofisticada, trazendo
aspectos da experiência estética cinematográfica para a televisão. Em sua
produção para o cinema, a influência do vídeo não é tão evidente, pois
acredito que ela se apresenta enquanto um fenômeno maior, uma des-
construção que o vídeo traz ao audiovisual como um todo.
Como mencionei acima, leio o impacto do vídeo no audiovisual em
seu papel de promover uma mudança nos modos de fruição da imagem,
que podem ser verificados em uma valorização de seu aspecto espacial,
literal, figural, da imagem em si, em detrimento de uma visão da imagem
como representação de um estado de coisas que lhe é externo. Proponho,
aqui, seguindo o pensamento de Arlindo Machado e Christine Mello, que
um dos desvios que o vídeo produz no cinema é uma alteração na experi-
ência estética com a imagem. Detalho esses aspectos a seguir.
A ressignificação que o vídeo oferece à experiência cinematográfica
pode ser analisada por meio dos procedimentos de desconstrução, conta-
minação e compartilhamento, que são a base da leitura das extremidades
desenvolvida por Christine Mello (2008a). Trata-se de uma abordagem
crítica que dá visibilidade a procedimentos criativos híbridos e descentra-
lizados, que propiciam a interconexão entre diferentes linguagens.
O interesse por essa abordagem se relaciona com o local em que Sal-
les se insere no cinema brasileiro. Visto como um cineasta internacional
que propõe uma imagem globalizante e afetuosa do sertão, a produção de
Salles se situa nas bordas do que seria uma imagem canônica de Brasil:
aquela apresentada por Glauber Rocha e os cinemanovistas. A esse res-
peito, o pesquisador Fernando Mascarello (2006) vai afirmar que há uma
82 | Intensidades da imagem

“continuidade do glauberianismo como cânone estético-teórico nos estu-


dos brasileiros de cinema” (MASCARELLO, 2006, p. 129). É a partir de um
território descentralizado que Walter Salles busca ressignificar as visões
de país e a imagem cinematográfica.
Segundo Mello, o procedimento da desconstrução envolve práticas de
desmontagem de um significado para se obter outro: evoca a negação do
próprio meio e a necessidade de expansão de seus limites criativos. “A cor-
rente desconstrutiva pretende que a apreensão da realidade se dê pela
experiência sensória, sendo o processo de descoberta nela dimensionado
como campo de testagem e experimentalismo” (MELLO, 2017, p. 14).
Nesse sentido, há um interesse em observar a experiência com a imagem
em seu aspecto de presença e em suas relações com o corpo do espectador,
suas potências de acionamento sensório. Esse modo de leitura se baseia
em um entendimento de que os aspectos da imagem como representação
e produção de sentido são hegemônicos no contexto do audiovisual.
Sendo assim, busco destacar o fato de que uma das possibilidades de
perceber as figuras do vídeo no cinema contemporâneo está na descons-
trução que determinadas sequências de filmes promovem no
estabelecimento de uma relação ilusionista com a imagem. Nessas sequên-
cias, há uma suspensão da narrativa representacional – que sustenta, no
cinema, um determinado estatuto de realismo – em favor do convite a uma
experiência estética da narrativa como acontecimento. Esses pequenos
instantes dos filmes, quando vivenciados na relação com as demais partes
dos longas aqui analisados, de característica predominantemente repre-
sentacional, têm o interesse de intensificar a experiência cinematográfica
ao envolver o corpo do espectador. Isso porque a ênfase nos aspectos plás-
ticos presente nessas sequências contribui para o acionamento do sentido
háptico humano.
Cyntia Gomes Calhado | 83

Essas ocorrências são lidas aqui como pontas extremas dos longas-
-metragens analisados, por sua capacidade de ressignificar a experiência
com a imagem no cinema na contemporaneidade.
Já o procedimento da contaminação, de acordo com Mello (2017, p.
137), diz respeito a estratégias criativas que se associam a outros campos
artísticos, afetando as linguagens em diálogo. Diversos procedimentos au-
diovisuais utilizados no cinema contemporâneo podem ser considerados
apropriações de estratégias videográficas. Philippe Dubois (2011, p. 181-
182) cita como exemplo o retorno da câmera lenta e da imagem congelada;
a revalorização da sobreimpressão; o gosto pela imagem dividida, multi-
plicada, incrustada; as deformações ópticas ou cromáticas; e a insistente
referência visual às outras artes e à própria história do cinema.
Por fim, a abordagem das extremidades identifica o procedimento do
compartilhamento (2017, p. 195) como aquele relacionado às transforma-
ções na produção, recepção e distribuição audiovisuais. Aqui, é importante
chamar a atenção para o fato de que o contexto de produção dos três lon-
gas que destaco neste livro – dois deles lançados nos anos 2000 e um deles
em 1998 – é marcado pelo advento do cinema digital. A substituição pro-
gressiva do uso da película como suporte técnico de gravação dos filmes
para o suporte digital trouxe uma série de mudanças à indústria cinema-
tográfica. Houve as transformações de ordem técnica, como o surgimento
de novas câmeras e a necessidade de adequação das salas de cinema, mas
também existiram reorganizações nos modos de produção, destacando os
procedimentos de registro e edição. O desenvolvimento de sensores nas
câmeras digitais no mesmo formato e tamanho de um filme com 35mm
proporcionou uma reorganização dos fluxos de trabalho, e as produções
puderam ser realizadas a custos muito menores do que aqueles praticados
com o suporte fotoquímico. Essa mudança tecnológica impulsionou, na ca-
deia cinematográfica, uma substituição do uso do suporte fotoquímico pelo
84 | Intensidades da imagem

digital. Isso não quer dizer que ainda hoje não se realizem filmes em pelí-
cula, mas estamos observando aqui uma transformação tecnológica da
indústria do cinema em geral.
Além da transformação do suporte de filmagem, outro fator teve um
enorme impacto nos modos de fruição e circulação de conteúdos audiovi-
suais nesse período. No Brasil, os anos 2000 foram marcados pela
disseminação da internet, por meio da popularização da banda larga. A
possibilidade de se fazer downloads de filmes, o surgimento de serviços de
streaming e o compartilhamento de vídeos pelas redes sociais são apenas
alguns dos inúmeros fenômenos audiovisuais que as redes digitais propi-
ciaram. Em suma, os anos 2000 foram um período de profunda
reorganização na produção, recepção e distribuição audiovisual.
Considerando que o escopo da pesquisa que deu origem a este livro é
a experiência cinematográfica, debruço-me, agora, sobre os impactos da
substituição, na cadeia do audiovisual, da película pelo digital nos modos
de fruição da imagem. Com as câmeras digitais, pela primeira vez a pro-
dução de uma imagem de altíssima qualidade, comparável àquela da
película, tornava-se acessível à população com certo poder aquisitivo. Esse
fato abalou o lugar de prestígio e distinção que a imagem cinematográfica
ocupava até então. Houve, entre muitos cineastas atuantes nesse período,
um resgate e afirmação da materialidade da imagem de caráter analógico,
que se manifestava de diversos modos, sendo a opção por filmar em pelí-
cula um deles.
A imagem numérica também trouxe um aumento considerável das
possibilidades de manipulação e construção da imagem em comparação
com a imagem fotoquímica. Por essa razão, a popularização dessa nova
imagem técnica abalou uma das bases que sustentavam a relação ilusio-
nista com a imagem associada à experiência cinematográfica: a vinculação
entre o suporte fotoquímico e a realidade filmada.
Cyntia Gomes Calhado | 85

Nesse contexto, podemos compreender as intensidades da imagem


no cinema narrativo como uma forma de aumentar o engajamento dos
espectadores no cinema. Por meio de contatos com a materialidade da
imagem, ênfase em suas texturas e granulações, a experiência cinemato-
gráfica se torna mais corpórea, convocando a um engajamento afetivo de
ordem sensorial e sentimental.
A relação corpórea com a imagem a que me refiro se dá por meio de
acionamentos na sensibilidade háptica daquele que interage com ela. Cada
tipo de suporte da imagem (fotoquímico, eletrônico ou numérico) propicia
contatos físicos distintos com o espectador. Conforme varia a natureza téc-
nica do suporte, o registro da luz nele se dá de diferentes modos. Pode-se
dizer, assim, que a materialidade da imagem influi na experiência estética.
Imagens fotoquímicas, eletrônicas ou numéricas acionam o corpo dos es-
pectadores diferentemente, já que a experiência estética com a
materialidade da imagem se efetua sensorialmente.
O contato com as imagens por meio da percepção física de sua textura
depende do acionamento de alguns procedimentos audiovisuais. São eles
os responsáveis por promover acontecimentos de imagem, sendo as inten-
sidades da imagem um de seus tipos. O advento do vídeo favoreceu esse
tipo de experiência, pois aumentou a pluralidade de texturas imagéticas
no campo do audiovisual. Basta pensarmos na textura gerada pelas varre-
duras de uma imagem videográfica, no ruído provocado pela granulação
em preto e branco de uma imagem de televisão sem sinal ou nas barras de
cores (color bars) de um canal sem transmissão.
O cinema, mesmo aquele encontrado no circuito das salas convenci-
onais, se apropria dessas texturas amplamente. No campo do chamado
cinema de autor, o austríaco Michael Haneke e o canadense David Cronen-
berg são alguns dos realizadores que exploram de forma inventiva as
características das diferentes imagens técnicas. O filme Caché (Haneke,
86 | Intensidades da imagem

2005), premiado pela direção no Festival de Cannes no ano de seu lança-


mento, pode ser lido como um filme sobre o impacto do advento do vídeo
no audiovisual. A história explora as reações de um casal de classe média
parisiense ao receber vídeos anônimos com imagens da porta de sua casa,
filmadas com câmera parada. Os personagens se sentem ameaçados e
acreditam estar sofrendo perseguição.
No decorrer desse longa, somos expostos a tomadas que reproduzem
a mesma aparência das imagens registradas por câmeras de vigilância (câ-
mera estática e plano sequência), incluindo cenas em que vemos o efeito
de uma rebobinagem tal como as realizadas em fitas de VHS. Esse mesmo
efeito está presente em Violência Gratuita (Haneke, 2007), um filme sobre
a relação sádica que a audiência estabelece com imagens de violência.
Nessa produção, uma família em férias é surpreendida por dois jovens psi-
copatas. Eles mantêm a mulher, o marido e o filho como reféns,
submetendo-os a um jogo de perversão, violência e humilhações.
Em Happy End (2017), Haneke problematiza a autoria das imagens
na era do digital: o longa começa com três vídeos curtos feitos por celular
– os selfies – filmados na vertical, intercalados por créditos do filme. A
narrativa dessa produção gira em torno dos conflitos pessoais dos mem-
bros de uma família de empreiteiros em Calais, na França, que tenta evitar
ações judiciais dos empregados que foram vítimas de um desmorona-
mento. A sequência inicial explora também a textura granulada da
imagem de baixa definição do celular em relação às imagens de alta defi-
nição cinematográficas do restante do filme. Além disso, brinca com a
imagem vertical do selfie e o quadro horizontal do cinema.
O jovem cineasta canadense Xavier Dolan explorou recurso seme-
lhante em Mommy (2014), vencedor do Prêmio do Júri do Festival de
Cannes de 2014. Em uma das sequências do filme, que emula a estética de
um videoclipe, vemos, ao som da música “Wonderwall”, da banda Oasis,
Cyntia Gomes Calhado | 87

os personagens em uma janela de proporção 1:1. A narrativa aborda a con-


turbada relação de Steve, um adolescente portador de TDAH (Transtorno
de Déficit de Atenção com Hiperatividade), com sua mãe e uma vizinha,
que acaba se tornando sua professora particular. No meio da sequência, o
garoto empurra a lateral do quadro e, como consequência de seu gesto, a
proporção da janela muda, aumentando-a para 1.85:1. Vale dizer que as
proporções de tela (aspect ratio) mais usuais encontradas no circuito de
cinema comercial são de 1.33:1 e 1.85:1. Esse acontecimento de imagem é
utilizado como elaboração formal para o instante de liberdade vivido nar-
rativamente por Steve. O procedimento de ampliação da janela faz com
que ela passe de um quadrado (formato das imagens do Instagram, por
exemplo) para um retângulo, aumentando o campo visual dos espectado-
res e as perspectivas do personagem.
Nos anos de 1980, o cineasta David Cronenberg abordou os impactos
da televisão e do vídeo na sociedade em Videodrome – A Síndrome do Vídeo
(1983). Trata-se de uma ficção científica que, por meio de um enredo me-
tafórico, pensa a relação física dos humanos com televisores de tubo de
raios catódicos, fitas VHS e aparelhos de videocassete. Há sequências de
penetração física desses objetos nos personagens e vice-versa.
O brasileiro Walter Salles incorpora a imagem televisiva desde Terra
Estrangeira (codireção de Daniela Thomas, 1995), um marco do período
da Retomada. Nesse filme de ficção, um dos únicos longas que abordam
diretamente o governo Collor, há a reprodução da transmissão do anúncio
do confisco das poupanças realizada pela então ministra da Fazenda Zélia
Cardoso. Essa imagem, um acontecimento histórico da TV ao vivo, é apre-
sentada em um preto e branco granulado, fruto da baixa definição,
contrastando com a fotografia do restante do filme.
Em Central do Brasil, também assistimos a uma transmissão televi-
siva: uma propaganda de um programa popular do SBT, o Topa Tudo por
88 | Intensidades da imagem

Dinheiro. Mas, nesse filme, o pensamento sobre as imagens técnicas está


presente principalmente na plasticidade de algumas sequências. Reto-
mando a análise da cena da romaria, realizada na segunda parte, gostaria
de aprofundar um aspecto da minha leitura, apresentando uma reflexão
sobre as imagens técnicas, de caráter analógico e digital18. Como foi des-
crito, as principais fontes de luz dessa cena são as velas dos romeiros e, em
seguida, os fogos de artifício. Além disso, a Casa dos Milagres aparece
como uma metáfora do cinema: uma sala escura em que as diversas ima-
gens, incluindo fotografias, são vistas graças à iluminação das velas. Uma
análise das plasticidades da imagem dessa cena, organizadas por sua de-
cupagem, nos faz ver um caminho da luz do analógico (luz proveniente do
fogo das velas) para o digital (fogos de artifício).
Mencionamos, anteriormente, que a textura das imagens fotoquími-
cas gera uma sensação de realismo, assim como a textura das imagens
eletrônicas favorece um contato mais direto com a materialidade da ima-
gem devido a suas características de distorção e abstração das formas. A
textura da imagem digital, por sua vez, nos remete à artificialidade. Isso
acontece em razão da plasticidade de cada tipo de imagem técnica ser re-
sultado de seus processos próprios de formação. Dessa maneira, a
aparência da imagem digital é marcada por processos de formação que
envolvem codificação e decodificação numéricas.
Além disso, as inúmeras possibilidades de manipulação na pós-pro-
dução que a imagem digital permite fazem com que os elementos e objetos
da realidade captados pela câmera sejam submetidos a novos procedimen-
tos criativos e de escrita realizados por profissionais de outras áreas, como
o design gráfico. Uma imagem digital permite a criação de cores, texturas,
perspectivas e realidades independentes daquelas registradas na captação,

18
Gostaria de agradecer à pesquisadora Lúcia Monteiro por esta sugestão de leitura.
Cyntia Gomes Calhado | 89

portanto, artificiais. O momento da gravação das imagens se torna, então,


menos decisivo em relação a uma filmagem em película. A imagem foto-
química retém mais a presença do corpo e de seu movimento, assim como
os acontecimentos da filmagem. Dessa forma, a imagem digital é ideal para
filmes que precisam de efeitos especiais, que utilizam computação gráfica
para baratear custos de produção, como gravações em cenários difíceis ou
que exigem a criação de mundos fantásticos e na realização de animações,
por exemplo. Na imagem digital, como tudo se torna um dado numérico,
uma informação digital, a possibilidade de manipulação dessas informa-
ções aumenta, acarretando uma perda de seu aspecto indicial.
A esse respeito, vale a pena indicar um exemplo de manipulação da
imagem fotoquímica de uma cena analisada na segunda parte – a inicial
de Abril Despedaçado –, que é realizada por meio do efeito de noite ame-
ricana. Trata-se de um efeito fotográfico, e não digital, em que uma cena
noturna é filmada à luz do dia, mas de modo a parecer ter sido filmada à
noite, o que evita o uso de iluminação artificial. Caso a cor do céu dessa
mesma cena tivesse sido obtida por processos digitais, a textura da ima-
gem seria diferente. O mesmo acontece na cena da festa de Linha de Passe.
Os acontecimentos de imagem dessa sequência são resultado de procedi-
mentos analógicos, de caráter fotográfico. Por essa razão, a inscrição da
luz nos quadros pode ser um acontecimento de imagem, pois trata-se do
registro de um processo fotoquímico, fruto do contato da película com de-
terminada intensidade da luz no set.
Os espectadores estabelecem relações afetivas com os suportes. A ge-
ração à qual eles pertencem pode influenciar o tipo de experiência estética
com o mesmo suporte. Um exemplo disso está nos vídeos caseiros feitos
em Super 8mm e VHS, que, devido à baixa definição, imprimem granula-
ções específicas nas imagens geradas. Pelo fato desses suportes terem sido
acessíveis para uso doméstico no passado, quando vemos hoje imagens em
90 | Intensidades da imagem

VHS ou Super 8mm sentimos nostalgia; são imagens que nos evocam um
tipo de afetividade típica dos encontros familiares, imagens da memória.
O documentarista João Moreira Salles vai se valer desse tipo de relação
que estabelecemos com as imagens de baixa definição na elaboração da nar-
rativa visual de Santiago (2007) e de No Intenso Agora (2017). Em Santiago,
o documentarista revisita sua história – e a do Brasil – por meio das lem-
branças do mordomo que trabalhou para sua família durante 30 anos. A
narrativa visual é composta por imagens em preto e branco, basicamente
entrevistas feitas com Santiago em sua casa e tomadas da casa da Gávea, Rio
de Janeiro, em que a família Salles viveu. O único trecho em que a família
Salles aparece no filme pode ser lido como um acontecimento narrativo, pois
ele apresenta uma interrupção no registro imagético até então visto ao inse-
rir um vídeo curtíssimo em Super 8mm, colorido e sem som.
Um uso muito inventivo das imagens de baixa definição é encontrado
em alguns filmes de horror contemporâneos. A Bruxa de Blair (Daniel
Myrick e Eduardo Sánchez, 1999) tornou-se um marco desse gênero gra-
ças à sua narrativa visual. O filme mescla imagens de vídeo, coloridas,
filmadas com câmera na mão, com imagens preto e branco em formato
16mm. Trata-se de um mockumentary, um falso documentário sobre três
jovens que vão para a floresta Black Hills nos Estados Unidos atrás da
lenda local da Bruxa de Blair e desaparecem. O filme é realizado com ima-
gens produzidas por esses jovens e encontradas após seu
desaparecimento, o que faz com que o filme também flerte com o subgê-
nero found footage (vídeos encontrados). Nesse caso, as imagens de baixa
definição filmadas no estilo de uma gravação amadora – tremidas e sem
seguir as regras da decupagem cinematográfica – são incorporadas para
trazer maior verossimilhança.
Busquei demonstrar alguns dos efeitos do vídeo na experiência
cinematográfica contemporânea. Os exemplos de contaminação do vídeo
Cyntia Gomes Calhado | 91

na narrativa cinematográfica sendo compreendidos como acontecimentos


de imagem.

8. Extremidades da imagem no cinema

O acontecimento narrativo na cena da festa do amigo de Bruno em


Linha de Passe encontra análogos na filmografia de Salles. É o caso do mo-
mento da sequência da romaria do filme Central do Brasil em que a
personagem Dora desmaia ao ser sensibilizada pela luz proveniente de ve-
las e, posteriormente, de fogos de artifício, que desenham o quadro fílmico
em trajetória circular, criando círculos de luz. Enquanto Dario, em Linha
de Passe, está sob o efeito de drogas, o estado de consciência alterado de
Dora é atribuído a um transe religioso. Já em Abril Despedaçado, encon-
tramos outro exemplo desse mesmo procedimento no momento em que
Tonho gira a trapezista Clara na corda indiana, sequência que pode ser
lida como uma metáfora do ato amoroso. Em momentos de determinados
planos dessas cenas, a inscrição do tempo na imagem se faz presente por
meio de rastros de diferentes texturas, formas espiraladas e gradação de
tons terrosos, promovendo uma experiência de movimento intensivo.
O procedimento de ênfase nos aspectos plásticos da imagem (cor, ilu-
minação, textura, definição) coincide com momentos de alteridade
narrativos, gerando zonas fronteiriças entre as plasticidades da imagem e
a narrativa. As três cenas mencionadas dos filmes Linha de Passe, Central
do Brasil e Abril Despedaçado têm em comum o fato de: coincidirem com
o ápice do arco dramático dos personagens em questão (Dario, Dora e To-
nho) e, por essa razão, também serem pontos de virada do roteiro; os
personagens se encontrarem em estado de consciência alterado; apresen-
tarem música grandiloquente e pouca ou nenhuma fala; e serem
momentos catárticos.
92 | Intensidades da imagem

É pelo fato de as imagens intensas ser utilizadas para ressaltar


aspectos narrativos na obra de Walter Salles que os pontos de virada do
roteiro coincidem com as cenas em que há ocorrências da narrativa como
acontecimento.
Foi possível constatar, nesse exame das sequências, algumas questões
importantes do ponto de vista da realização cinematográfica. A plastici-
dade das cenas intensas nos três filmes analisados é fruto da concepção e
dos procedimentos fotográficos, que, na cadeia cinematográfica, ficam sob
a responsabilidade do diretor de fotografia. Normalmente, ele atua em
parceria com o diretor de arte para definir os aspectos propriamente plás-
ticos da imagem, a narrativa visual. Isso tem um impacto nos modos como
tradicionalmente se observa a autoria do cinema centrada na figura do di-
retor. A partir desse ponto de vista, os diretores de fotografia Walter
Carvalho (Central do Brasil e Abril Despedaçado) e Mauro Pinheiro Jr. (Li-
nha de Passe) adquirem um papel de relevo na construção da experiência
estética dos longas aqui analisados.
Serão elencados a seguir os procedimentos fotográficos realizados
nas cenas intensas dos filmes analisados. Em Central do Brasil, há uma
cena filmada em externa: o registro de uma romaria marcada pelo virtuo-
sismo de sua fotografia, conhecida pelo fato de grande parte da fonte de
iluminação ser proveniente de velas. Além desse aspecto, a decupagem é
organizada em torno dos motivos plásticos da luz e das imagens. Em mon-
tagem paralela, somos expostos a planos de Dora intercalados com outros
nos quais predominam desenhos de luz variados.
Em Abril Despedaçado, na cena em que Clara gira em uma corda in-
diana, a câmera é presa nessa corda, um pouco acima da posição da atriz,
com a lente voltada para baixo. Grande parte de sua força é consequência
dessa solução técnica, que faz com que seu movimento seja impulsionado
pela mesma força que move a atriz/personagem Clara, que diegeticamente
Cyntia Gomes Calhado | 93

corresponde à força de Tonho. Como as imagens captadas são afetadas por


essa força, elas apresentam a inscrição do tempo na imagem.
Por fim, na cena da festa em Linha de Passe, foi feita uma alteração
técnica na correia da câmera, que, ao modificar seu funcionamento tradi-
cional, expôs o negativo enquanto ele estava em movimento. Como o
negativo distorce a imagem em situações de superexposição à luz, o resul-
tado desse processo é a ampliação dos diversos pontos de iluminação da
cena e a alteração da luz em sentido circular. A plasticidade da imagem
organiza-se, então, em contrastes de luz e sombra, superexposição e refle-
xos da luz. Acompanhando isso, temos um acontecimento de quebra do
movimento fluido dos quadros fílmicos graças à filmagem de alguns pla-
nos com velocidade alterada para seis e doze frames por segundo.
A relação desses procedimentos fotográficos – e das imagens que eles
geram – com a narrativa contada, em cada um dos três filmes, resulta em
significados simbólicos a respeito do cinema. Aqui é importante pensar-
mos o contexto de uso das performances de imagem na obra de Walter
Salles em relação a outros tipos de cinema. Já observei que as imagens
intensas na obra desse cineasta são utilizadas com fins de engajamento
emocional do espectador. A parcimônia no uso desse recurso na narrativa
fílmica busca, no meu entender, manter uma experiência cinematográfica
baseada no ilusionismo narrativo. Esse aspecto distingue esse tipo de ci-
nema do cinema de fluxo, de filmes de narrativa sensorial, entre outras
tendências fílmicas contemporâneas.
Parto, agora, das análises fílmicas realizadas e da abordagem do con-
texto audiovisual de produção dessas obras para defender algumas ideias
a respeito da poética desse cineasta, considerando que a tese de doutorado
que originou este livro dá prosseguimento aos resultados da dissertação
de mestrado que também se debruçou sobre a obra de Walter Salles.
94 | Intensidades da imagem

A reflexão toma por base os impactos, para a experiência estética, da


substituição material do suporte da imagem cinematográfica do analógico
para o digital. Além das transformações técnicas já mencionadas, os cineas-
tas que produziam por volta dos anos 2000 lidavam com uma mudança na
ontologia da imagem. Alguns deles elaboraram essas questões em seus fil-
mes. Sobre esse aspecto, vale uma digressão. Os cineastas contemporâneos
de prestígio, reconhecidos em premiações de festivais internacionais de
ponta e que têm seus filmes em circulação no mercado estrangeiro, acom-
panham as discussões teóricas sobre a imagem e contribuem com elas
dentro de seu contexto de atuação cinematográfica por meio de seus filmes.
O contexto de atuação cinematográfica de um cineasta, que vai orga-
nizar sua produção em um nicho de mercado, envolve opções que giram
em torno dos objetivos desse realizador. O alcance dessas metas depende
de condições materiais de produção e circulação do longa-metragem no
mercado local. Nesse quesito, lidamos com as fragilidades na formação
cultural da população brasileira, com um circuito de exibição que privilegia
o filme estrangeiro e uma elitização crescente do acesso ao cinema. No caso
de Walter Salles, há outro fator histórico impactando sua obra: o período
da Retomada do cinema brasileiro. Essa influência se verifica, em seus fil-
mes, na afirmação da identidade e do cinema nacional que estavam
ameaçados com a extinção dos mecanismos públicos de fomento a esse
setor pelo governo Collor.
A seleção desses três longas-metragens do cineasta falados em língua
portuguesa e concebidos para o mercado cinematográfico brasileiro levou
em conta esse cenário e o fato de podermos verificar neles estratégias de
comunicação desse diretor com o público brasileiro. Como Walter Salles
também busca uma internacionalização de seu cinema, os filmes analisa-
dos contêm elementos que dialogam com longas de filmografias de outras
Cyntia Gomes Calhado | 95

nacionalidades que circulam em festivais. A abordagem de problemas so-


ciais da realidade local é um deles, associada a procedimentos estéticos
globais, tais como uma narrativa de impacto. Por elaborar questões da re-
alidade nacional, é importante para esse realizador preservar uma relação
ilusionista com a imagem, ainda que recorrendo a procedimentos em prol
de momentos de experiência mais sensória com a imagem. Devido a esses
fatores mencionados, podemos considerar a obra de Walter Salles como
um dos exemplos de cinema narrativo que promove uma experiência es-
tética intensa do ponto de vista da relação corpórea com a imagem.
Retomando a questão da substituição da película pelo digital e seus
impactos na experiência cinematográfica, gostaria de aprofundar alguns
aspectos citados anteriormente. Por volta dos anos 2000, os cineastas pre-
cisavam lidar com o fato de que a mudança do suporte impactou os modos
como os espectadores lidam com a imagem. A relação analógica entre a
imagem e o objeto filmado, que caracteriza o processo fotoquímico de for-
mação de imagens na película, favorece a crença, por parte dos
espectadores, da função representacional do cinema. Parte da teoria do
cinema, especialmente a corrente realista, se baseia nessa relação física,
material, entre a película e a natureza para afirmar que a imagem seria
um índice desse encontro, desse acontecimento, adquirindo um status de
prova do real. Não seria essa a relação que ainda justifica a presença de
nossas fotos no documento de identidade? E o que diríamos das imagens
de vigilância, utilizadas como prova para incriminar no âmbito jurídico?
O teórico francês André Bazin é um dos que associavam o realismo
cinematográfico à noção espiritual de “revelação”, fruto da concepção de
uma ligação ontológica entre a película e o objeto representado. Os cine-
astas que abordam realidades sociais em sua obra, em uma chave
representacional, como é o caso de Walter Salles, serão os mais impactados
96 | Intensidades da imagem

com o advento do digital, já que surge, entre o público médio, uma sus-
pensão do pacto de realidade com a imagem. A imaterialidade do suporte
digital e seus processos de codificação numérica de formação da imagem
colocam essa crença em xeque. A democratização das câmeras, no digital,
também contribui para uma popularização do ato de criar imagens e apro-
ximação do público dos procedimentos técnicos dessa área.
Esses aspectos mencionados dificultaram, do ponto de vista dos cine-
astas, a construção de uma relação de realismo com a imagem, fazendo
com que despontasse uma retomada nostálgica de momentos marcantes
dessa relação, como o Neorrealismo italiano, o Cinema Novo brasileiro,
entre outros. Os diretores utilizaram o procedimento de citação como um
dos modos de atualizar os afetos relacionados à memória daquelas ima-
gens. Central do Brasil tem um diálogo com o cinema de Wim Wenders
(NAGIB, 2006). Central do Brasil e Abril Despedaçado têm inúmeras refe-
rências a filmes do Cinema Novo. Já Linha de Passe é uma releitura de
Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti (1960). Os três filmes apresen-
tam referências a obras marcantes da história do cinema. Além disso,
diegeticamente os filmes de Walter Salles fazem referência a diversos tipos
de imagens, expondo o desenvolvimento de técnicas de registro e suportes
de períodos históricos e regiões variadas, tais como: retratos pintados, fo-
tografias, monóculos, citações a quadros da história da arte (por exemplo,
a Pietá invertida em Central do Brasil depois da cena da romaria) etc.
Por ocasião do lançamento de Central do Brasil, em entrevista do di-
retor (WS) para os críticos Carlos Alberto Mattos (CAM), José Carlos
Avellar (JCA) e Ivana Bentes (IB), esse uso das imagens é explicitado.

CAM – O que você conhecia do Nordeste?


WS – Eu tinha, evidentemente, uma memória visual…
IB – Deus e o Diabo…
Cyntia Gomes Calhado | 97

WS – Num primeiro momento uma memória visual que nós todos temos, a
herança cinemanovista. (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 13)

Se, como diz o crítico de cinema francês Serge Daney a respeito das
imagens do cinema contemporâneo, “o fundo da imagem é sempre já uma
imagem. Uma imagem de cinema” (DANEY, 2007, p. 233), vejamos como
a colocação de José Carlos Avellar é elucidativa a respeito da apropriação
da história do cinema brasileiro realizada por Walter Salles.

JCA – É curioso que em nossa conversa estejamos todo o tempo falando de


uma geografia real. Sinto o filme um pouco mais ligado a uma geografia cine-
matográfica. […] O Sertão aqui é um pouco menos o Sertão mesmo e um
pouco mais o Sertão representação cinematográfica do Brasil, é o Nordeste, ou
Nordestes, como diz o Walter, enquanto imagem expressiva.
WS – Exatamente.
JCA – Na verdade não é entrar no Sertão, mas pegar do Sertão o que existe de
imagem dele enquanto expressão cinematográfica. Eu penso no filme como
uma viagem ao Cinema Novo, mais do que uma viagem ao Sertão. (BENTES;
MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 16)

Em entrevistas posteriores à edição de 1998 do Festival Internacional


de Cinema de Berlim, quando o filme recebeu o Urso de Ouro de melhor
filme e o Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro, Walter
retoma o modo de construção narrativa baseada em imagens precedentes.

Um filme nunca existe sozinho. Traz consigo a memória viva de toda uma
cinematografia. No caso de Central do Brasil, o desejo de dialogar com uma
tradição cinematográfica da qual todos nós devemos nos orgulhar é explícito,
assim como é implícita a vontade de comunicação com o jovem cinema brasi-
leiro […]. Os prêmios para o filme são, portanto, para o cinema brasileiro
como um todo […]. (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 39)
98 | Intensidades da imagem

Em outro trecho da entrevista, Salles justifica uma sequência do filme


– na qual os personagens tiram uma fotografia, que é colocada posterior-
mente em um monóculo, de uma barraca com a imagem de Padre Cícero
– utilizando um argumento de citação: trata-se de uma vontade de home-
nagear o cineasta Wim Wenders.

IB – Aliás, pensando na cultura oral do Nordeste, no ter que ditar as cartas.


Um registro fotográfico, no monóculo: não é estranho numa região em que os
registros são precários?
WS – Eu preciso confessar pra você, a questão do monóculo é uma questão
mais wimwendersziana do que nordestina. […] Os lugares onde a possibili-
dade da migração é muito presente suscitam a necessidade de fixação pictórica
das pessoas que partiram. Se você entra numa casa nordestina, […] você en-
contra um número impressionante de retratos e imagens que permitem a
lembrança daqueles que partiram. A questão da imagem não é decorativa […].
Constitui-se numa memória, numa necessidade intrínseca quase que de so-
brevivência. Uma forma de resistir é lembrar a pessoa que se foi […].
(BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 23, 24)

Existe uma possibilidade dupla de leitura do trecho acima citado. A


explicação que o cineasta realiza da importância da imagem no Nordeste
pode ser expandida, considerando o conteúdo de suas demais falas du-
rante a entrevista. Podemos pensar seu discurso em relação à
problemática da imagem no período da crise do cinema dos anos 1980,
consequência dos impactos do vídeo e da televisão. As diversas inserções
na narrativa do filme de citações ao Cinema Novo, a Wenders, além da
presença de fotografias, imagens da iconografia cristã, referências à histó-
ria das artes visuais, quadros e do dispositivo óptico do monóculo,
poderiam ser lidas como um ato de resistência, de preservação da memó-
ria do cinema, de sua história, de seus mestres: “Uma forma de resistir é
lembrar a pessoa que se foi”.
Cyntia Gomes Calhado | 99

Além disso, todas essas referências à imagem podem ser interpreta-


das como ocorrências de performances da imagem no tecido fílmico, pois
elas colocam o espectador em contato com a materialidade da imagem. A
utilização variada de procedimentos de performance da imagem e a parci-
mônia de seu uso no decorrer dos filmes mantêm a narrativa
representacional ao mesmo tempo que proporciona uma experiência esté-
tica contemporânea no cinema.
Considerações finais

Esta pesquisa buscou compreender como o fenômeno estético das in-


tensidades da imagem pode criar acontecimentos narrativos. Na primeira
parte, observamos três aspectos em torno da narrativa audiovisual como
acontecimento em suas relações com a experiência estética. O primeiro
deles aborda a dramaturgia ficcional e a dramaturgia plástica, de acordo
com o filósofo Jacques Rancière (2013).
Vimos que o pensador francês trata essas noções como perspectivas
críticas, podendo, portanto, ser identificadas em qualquer tipo de filme e,
inclusive, coincidir em uma mesma obra, o que seria resultado de uma
dramaturgia complexa. Em suas análises cinematográficas, o autor chama
a atenção para o fato de que a dramaturgia plástica opõe-se à represen-
tação, ou seja, à mera reprodução passiva de um dado preexistente. Ela é
performance sem mediação, sem modelo copiado, nem texto interpretado,
“puro jogo entre movimento e luz” (RANCIÈRE, 2011, p. 228 apud RAMOS,
2014, p. 8).
Na dramaturgia plástica, o conteúdo figurativo é deixado em segundo
plano, em prol da aventura da matéria pictórica (RANCIÈRE, 2013). A ex-
periência estética, nesse caso, resulta da contradição que o visível traz ao
significado narrativo, desfazendo os encadeamentos da dramaturgia re-
presentativa baseada em regras de verossimilhança e centrada na ação que
produz as relações causais até chegar a um desenlace final e em regras da
composição artística alicerçadas em relações harmônicas entre as partes e
entre estas e o todo.
Em seguida, debrucei-me sobre os atos narrativos de presentificação
– um segundo aspecto em torno da narrativa audiovisual como
Cyntia Gomes Calhado | 101

acontecimento – a partir das reflexões de André Parente e da teórica de


literatura, cinema e estética Marie-Claire Ropars-Wuilleumier.
Em seu estudo sobre narrativa como acontecimento, Parente (2000)
pensa a imagem e a narrativa como acontecimentos que não se confundem
com suas atualizações em estruturas linguísticas (relação significado/sig-
nificante, significação, representação de universos originários). Desse
modo, o autor se opõe à abordagem semiológica que coloca em suspenso
os aspectos sensíveis da imagem, em particular o movimento e o tempo,
limitando a imagem a um processo de representação narrativa.
Para Parente, o ato narrativo de presentificação não se confunde com
a narração ou com a narrativa de uma ação presente ou passada e existe
no cinema quando se produz um desdobramento no filme por meio do
qual a imagem exprime e afirma o tempo. Nesse tipo de operação narra-
tiva, mesmo que a imagem suponha a relação entre homens, situações,
histórias e ações, ela supera as relações sensório-motoras que eles man-
têm.
A reflexão de Parente segue a de Marie-Claire Ropars-Wuilleumier
(1970), teórica que chamou a atenção para o fato de que o tempo estava se
tornando o personagem principal do cinema no pós-guerra e, assim, ele se
constituiria como uma escritura, uma vez que era necessário ler a imagem.
Trouxe o pensamento da autora segundo o qual, no cinema moderno, essa
arte tinha se transformado de arte do movimento em arte do tempo, o que
implicou diversas mudanças: de uma estética dramática para uma narra-
tiva; de uma estética da representação para uma da escritura; de uma
sucessão para uma duração; de uma história para uma narrativa. Ou, para
empregar os termos de Jacques Rancière (2013, p. 18), migra-se do regime
representativo (com sua dramaturgia ficcional) para um regime estético
(com sua dramaturgia plástica).
102 | Intensidades da imagem

Busquei dialogar com o pensamento desses autores para analisar a


narrativa como acontecimento do ponto de vista do cinema narrativo no
intuito de demonstrar como esse fenômeno introduz uma fissura ou um
desdobramento nas imagens, nos enunciados, nas ações, nos personagens,
nos narradores e nas narrativas produzidas, afetando as imagens, sons e
suas relações, criando atos narrativos de presentificação que não repre-
sentam ou comunicam um acontecimento, mas restituem o efeito vivo dos
fatos e das falas, restituem suas presenças.
Desse modo, acredito que a narrativa como acontecimento intensifica
a experiência cinematográfica, pois o tempo da imagem e o do espectador
se identificam. O tempo é percebido como vivido, e cria-se uma relação
entre o espaço da imagem e o espectador.
Para identificar as ocorrências da narrativa como acontecimento nos
três filmes do Walter Salles que foram analisados, adotei a análise figural
como metodologia, a partir da sistematização proposta por Philippe Du-
bois (2012). O interesse nessa abordagem para os estudos de audiovisual
estaria em um olhar para as imagens não como representação, mas como
presença. O figural sendo um acontecimento da imagem, uma presença
intensiva de sua materialidade.
Ainda na primeira parte, apresentei uma terceira visão em torno da
narrativa audiovisual como acontecimento, que diz respeito ao plano da
sensibilidade háptica, a partir da leitura do filósofo John Dewey (2010).
Busquei suas contribuições no campo da arte como experiência para de-
monstrar que as imagens não se relacionam apenas à visão humana. O
pensamento desse autor nos mostra que os sentidos – tato, paladar, olfato,
visão e audição – estão interconectados e operam por ressonância. O estí-
mulo ambiental é captado por um sentido – no caso da imagem, pelo
aparelho visual –, mas “uma cor vista é sempre qualificada por reações
Cyntia Gomes Calhado | 103

implícitas de muitos órgãos, tanto os do sistema simpático quanto os do


tato” (DEWEY, 2010, p. 240).
Para os interesses desta pesquisa, busquei ressaltar na experiência
cinematográfica os acionamentos promovidos pela imagem no corpo do
espectador, detendo-me nas relações entre a imagem e a sensibilidade
háptica, entendida como a capacidade tátil do corpo de entrar em contato
com o ambiente por meio de afetações indiretas nas fibras nervosas, teci-
dos da pele, músculos e pelos (SANTAELLA, 2005, p. 77-78). Por estar
ligada à sensação de pressão, textura e vibração, essa sensibilidade possi-
bilita uma forma intensiva de sensorialização do corpo no espaço.
Salientei também, no pensamento de Dewey, o fato de que as experi-
ências variam em intensidade, podendo ser rotineiras ou marcantes. Isso
ocorre pois as qualidades sensoriais presentes em determinado objeto ar-
tístico ativam experiências anteriores, atitudes afetivas e sentimentos.
Cabe ao realizador, nesse caso, produzir imagens que estimulem o corpo
do espectador a partir de sua memória cultural e sensória.
Esse entendimento é particularmente importante para este estudo,
pois, a partir dele, pude verificar tipos de procedimentos audiovisuais aci-
onados pelos realizadores dos filmes analisados com o objetivo de
promover uma experiência cinematográfica intensa. Aqui vale mencionar
que designo realizador todos os profissionais envolvidos na criação das
imagens cinematográficas, não apenas o(s) diretor(es) do filme.
Já a segunda parte foi dedicada às análises críticas de sequências dos
longas-metragens Central do Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe.
A escolha dos trechos foi baseada na presença de atravessamentos das in-
tensidades da imagem na narrativa audiovisual, momentos em que
imagens e sons se tornam mais plásticos, corpóreos.
Em Central do Brasil, examinei a cena da romaria no Nordeste, ponto
de virada da narrativa. Selecionei esta sequência por ela ser tecnicamente
104 | Intensidades da imagem

marcada pelo virtuosismo de sua fotografia, conhecida pelo fato de grande


parte da fonte de iluminação ser proveniente de velas, além de apresentar
jogos de luz realizados com fogos de artifício e uma profusão de imagens
diegéticas, fotos 3x4 e imagens de santos. A análise ressaltou dois modos
cinematográficos de narração destacados por Parente – o representacional
e os atos de presentificação – e apontou que o plano em que predomina a
plasticidade da luz em formato circular instaura a narrativa como aconte-
cimento na cena.
A partir dessas constatações, desenvolvi dois caminhos de leitura. O
primeiro deles diz respeito às implicações narrativas promovidas pelo
atravessamento do acontecimento imagético. Por alguns instantes, deixa-
mos de perceber as ações e dramas dos personagens e somos convidados
a uma experiência simbólica, de caráter metalinguístico. Desse ponto de
vista, o sentido que se produz é o do cinema como um dispositivo capaz de
sensibilizar os espectadores e transformar seus modos de ver o mundo a
partir de um pensamento dessa arte como revelação.
No segundo caminho, a atenção se volta para as implicações desse
acontecimento imagético na relação sensorial da imagem com o corpo dos
espectadores. Vimos que, como o tempo da imagem e o do espectador se
identificam nessas ocorrências, estabelece-se um contato entre a materia-
lidade da imagem cinematográfica – luz projetada – e o espectador. Além
disso, por essas cenas enfatizarem os aspectos plásticos da imagem, elas
contêm estímulos sensórios que favorecem o acionamento do sistema háp-
tico, configurando-se, assim, como momentos de intensidade para a
experiência cinematográfica.
Em Abril Despedaçado, analisei três sequências: a de abertura do
filme, a em que o personagem Tonho assassina o irmão da família rival e
a em que Tonho gira Clara em uma corda indiana. Nesse segundo filme, o
Cyntia Gomes Calhado | 105

foco da análise foram os diferentes tipos de elaborações plásticas encon-


trados nos acontecimentos de imagem. Verificamos como procedimentos
audiovisuais associados à perda do efeito de tridimensionalidade e à desfi-
guração produzem experiências de cores, formas e texturas.
Na primeira cena, graças a um procedimento de fotografia – baixa
iluminação e profundidade de campo reduzida – observamos a perda do
efeito de tridimensionalidade do espaço diegético e como a ênfase plástica
recai sobre a experiência das formas e cores.
Na sequência que acompanha a corrida de Tonho atrás de um dos
filhos da família rival para matá-lo, a sobreposição do corpo dos persona-
gens à vegetação árida promove o efeito de desfiguração dos corpos na tela
e a indistinção entre fundo e figura, conferindo à imagem uma textura
áspera. Essa corrida em linha reta produz uma impressão de circularidade
por uma inversão da direção do movimento dos personagens, filmados em
travelling. Considero esse modo de filmar a cena como uma das ocorrên-
cias do círculo como motivo plástico principal do filme, utilizado como
solução formal para a lógica opressora da vendeta entre famílias.
Na última cena analisada, em que Tonho gira a trapezista Clara em
uma corda, vimos como o procedimento de aceleração da imagem gera um
novo episódio de desfiguração. A unidade do corpo de Clara é perdida e
vivenciamos experiências de diferentes texturas, formas espiraladas e gra-
dação de tons terrosos, que funcionam como rastros da inscrição do tempo
na imagem nessa experiência de movimento intensivo. Procurei mostrar
também como a estrutura circular se repete, porém com uma leitura ree-
laborada, segundo a qual a carga opressiva da bolandeira dá lugar ao
círculo como sonho e utopia. A lei da gravidade suspensa no plano em
plongée, que funciona como metáfora do ato amoroso, afirma a potência
libertadora do afeto.
106 | Intensidades da imagem

Já em Linha de Passe, a cena estudada é a de uma festa que acontece


na casa de um dos amigos do personagem Bruno. O objetivo da análise foi
ressaltar a importância dos procedimentos fotográficos para uma experi-
ência cinematográfica intensa. Narrativamente, essa sequência aborda
como a diferença de classe marca a vida de um jovem da periferia e um da
elite. Essa relação de alteridade é elaborada plasticamente por meio de
uma concepção fotográfica baseada em contrastes de luz e sombra. A
grande plasticidade da luz nesses quadros, fruto das elaborações fotográ-
ficas mencionadas, passa a constituir o interesse principal da experiência
estética da cena.
Busquei apontar também uma possibilidade de leitura metalinguís-
tica para essa cena. Assim como na romaria do filme Central do Brasil, o
contato com intensidades de luz promove uma experiência de morte e re-
nascimento para o personagem. Por meio desse acontecimento de
imagem, os espectadores também vivem uma relação de alteridade capaz
de gerar novas formas de subjetividade. Observamos, portanto, uma afir-
mação das potencialidades da experiência cinematográfica.
É possível, ainda, ressaltar nessa cena o fato de ela apresentar um
procedimento de desconstrução do dispositivo cinematográfico. A suspen-
são da ilusão de movimento fluido dos quadros fílmicos no segundo
momento da festa promove uma experiência de salto entre as imagens,
em que se percebem os quadros estáticos. Esse fenômeno marca uma das
ocorrências da narrativa como acontecimento em Linha de Passe.
A terceira parte foi dedicada às intensidades da imagem no cinema,
fenômeno compreendido como um ponto de extremidade da experiência
cinematográfica na contemporaneidade, seguindo a abordagem das extre-
midades, de Christine Mello (2008a, 2017).
Por meio de procedimentos audiovisuais como os de desfiguração,
perda do efeito de tridimensionalidade e ênfase nas texturas da imagem,
Cyntia Gomes Calhado | 107

os acontecimentos narrativos acionam o sistema perceptivo tátil dos es-


pectadores, minimizando o apelo majoritariamente visual associado ao
cinema. É importante frisar que os procedimentos apontados são usual-
mente concebidos e realizados pelos departamentos de arte e fotografia da
cadeia cinematográfica, encarregados da concepção propriamente visual
da obra. A análise demonstrou que esses procedimentos surgem em mo-
mentos importantes do roteiro desses três filmes e vêm acompanhados de
uma sonoplastia que se soma a estímulos capazes de promover uma expe-
riência estética marcante.
É possível dizer que esses acontecimentos se apresentam como inten-
sidades da imagem, pois capturam plasticamente forças, sensorialidades,
tatilidades, configurando presentificações da imagem cinematográfica.
São momentos de ênfase na experiência sensória em que o corpo do es-
pectador é atravessado pelo espaço-tempo da imagem. Pontos de
extremidade que reorganizam a narrativa como um todo.
É interessante notar como a presença da narrativa como aconteci-
mento em filmes para grande público parece apontar para um
esgotamento da experiência estética no cinema contemporâneo a partir de
modelos linguísticos em que os processos imagéticos se reduziriam ao sig-
nificante e aos processos de significação (representação de um estado de
coisas). Com esses novos modos de narrar, os cineastas estariam mais in-
teressados pelos aspectos sensíveis da vida, convidando o espectador a
observar o que não se deixa facilmente fixar e compreender.
Dessa forma, entendo a narrativa como acontecimento na obra de
Salles como uma das estratégias de engajamento de público pela mobiliza-
ção dos afetos. Poderia elencar outras estratégias utilizadas, como a
sobrecarga dramatúrgica – em oposição à rarefação narrativa do cinema
de fluxo – e um estilo grandiloquente, muitas vezes melodramático. Nesses
108 | Intensidades da imagem

instantes, o apelo racional requerido pela narrativa é suspenso em detri-


mento de um envolvimento sensório. Isso faz com que os instantes da
narrativa como acontecimento, entendidos como performances de ima-
gem, apresentem-se como ruídos, desestabilizando um modo de
experiência estética baseada na representação que seus filmes em princí-
pio convocariam.
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