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22/09/2019 'Bacurau' é testemunho da extinção de vida inteligente na esquerda brasileira - 15/09/2019 - Ilustrada - Folha

OPINIÃO DEMÉTRIO MAGNOLI

'Bacurau' é testemunho da extinção de vida


inteligente na esquerda brasileira
Noutro tempo e lugar, as metáforas do filme seriam atribuídas a pré-adolescentes
excitados

15.set.2019 às 8h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/09/15/)

Demétrio Magnoli

A cena de abertura —as estrelas, o globo azul visto do espaço, a passagem de


um satélite artificial, ao som de “Não Identificado” na voz de Gal
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/meu-feminejo-e-so-marilia-mendonca-sem-o-resto-diz-gal-

costa.shtml)Costa (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/meu-feminejo-e-so-marilia-mendonca-sem-o-

resto-diz-gal-costa.shtml)— é tudo que se salva de “Bacurau”


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/08/bacurau-estreia-evocando-resistencia-em-pais-que-descamba-para-

ultraviolencia.shtml). 

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles deve ser visto como
um testemunho de nossa miséria intelectual —ou, mais precisamente, da
extinção de qualquer traço de vida inteligente na esquerda brasileira.

“O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha, fixou no


cinema brasileiro o teorema político do terceiro-mundismo. Mas era 1969.
“Bacurau” retoma o teorema, meio século depois, como se um muro não
tivesse caído e o mito de Cuba ainda brilhasse ali na esquina.

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Na trama, tão simples como uma cartilha do PCdoB, a burguesia nacional


associa-se ao imperialismo para massacrar o povo. Há uma divisão do
trabalho: a burguesia nacional priva o povo da água; já o imperialismo
encarrega-se de matá-lo, a rajadas de tiros, por mero prazer perverso.

Noutro tempo e lugar, as metáforas seriam atribuídas a pré-adolescentes


excitados. O imperialismo, claro, é americano, e emerge como um grupo de
extermínio invasor comandado por um alemão nazista americanizado. O
atirador psicótico, do tipo que conduz massacres em shopping centers,
funciona como modelo descritivo dos americanos. 

A burguesia nacional é o Brasil Sul —e, mais especificamente, São Paulo, o


palco de “execuções públicas no Anhangabaú”. Mas o Brasil branco e mau
como um pica-pau estende seus tentáculos até o longínquo povoado de
Bacurau por meio do odiado prefeito local, uma figura que intercambia
remédio contaminado e comida estragada por votos, e, crucialmente,
colabora na surdina com os estrangeiros exterminadores. 

Se a burguesia tem um locus geográfico, o povo também tem. O povo é o


Nordeste, e, mais especificamente, o sertão pernambucano, onde se situa a
imaginária Bacurau. Bom, solidário e unido como sempre deve ser, o povo
exibe qualidades novas, estranhas ao molde glauberiano do passado. Ele
transa à vontade, ignora tabus moralistas, consome democraticamente um
psicotrópico oral que estimula o humor e dilata o prazer. Bacurau, Baixo
Leblon: um Glauber do século 21.

Do seio do povo nasceram os chefes e os soldados das facções do crime. São


bandidos-guerrilheiros, meio Comando Vermelho, meio Sierra Maestra. O
povo gosta deles, mas os rejeita como desviantes —até a hora da verdade.
Diante do perigo mortal, do massacre iminente, os filhos enjeitados
retornam, lideram a resistência armada, salvam o povoado sitiado.
Fernandinho Beira-Mar, Marighella, Che Guevara.

Nesse ponto, a curva do clímax, Glauber cede lugar ao Tarantino de


“Bastardos Inglórios”, o filme de estética fascista que investe na sedução do
sangue. Não é mera inspiração, mas pura imitação. Os diretores, em transe
populista, conclamam os espectadores a aplaudir freneticamente,

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pavlovianamente, as gráficas execuções dos invasores americanos.


Hollywood é aqui.

Na cena final, “Bacurau” renuncia ao véu da ficção, desvelando-se como o que


é: uma peça de propaganda política. Aí, uma voz em off homenageia os
mártires do povoado que caíram sob os tiros dos exterminadores —e, entre
os nomes, surgem lado a lado Marielle Franco, assassinada por milicianos, e
Marisa Letícia, vítima de um AVC.

A mensagem ostensiva de “Bacurau” talvez merecesse algum exame em 1969.


Hoje, a atenção deve se voltar para sua mensagem involuntária, que ajuda a
decifrar a ascensão de Jair Bolsonaro. Nossa ultradireita feroz, caricata,
lunática é a imagem espelhada de nossa esquerda anacrônica, primitiva e
mistificadora. Dois objetos bem identificados.

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